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<p>Papel histórico dos sistemas nacionais de ensino</p><p>Como sabemos, a sociedade burguesa ou moderna surgiu a partir do desenvolvimento e das transformações que marcaram a sociedade feudal. Nesta dominava a economia de subsistência que se caracterizava por uma produção voltada para o atendimento das necessidades de consumo. O seu desenvolvimento, porém, acarretou a geração sistemática de excedentes, intensificando o comércio, o que acabou por determinar a organização do próprio processo de produção especificamente voltado para a troca, surgindo, assim, a sociedade capitalista ou burguesa que, pela razão indicada, é também chamada de sociedade de mercado. Nesta, inversamente ao que ocorria na sociedade feudal, é a troca que determina o consumo. Portanto, o eixo do processo produtivo deslocou-se do campo para a cidade e da agricultura para a indústria, convertendo-se o saber (a ciência) de potência espiritual (intelectual) em potência material. Nessas novas condições, a estrutura da sociedade deixou de fundar-se em laços naturais, passando a basear-se em laços propriamente sociais, isto é, produzidos pelos próprios homens. Em consequência, a organização social passou a reger-se pelo direito positivo (sociedade contratual) e não mais pelo direito natural ou consuetudinário. Comment by jailson bezerra: Surgimento da sociedade capitalista ou burguesa</p><p>Está posta, aí, a equação que desembocará na questão escolar: o direito positivo, assim como o saber sistemático, científico, supõe registros escritos. Assim, o domínio de uma cultura intelectual, cujo componente mais elementar é o alfabeto, impõe-se como exigência generalizada de participação ativa na sociedade. Ora, a cultura escrita não é produzida de modo espontâneo, natural, mas de forma sistemática e deliberada. Portanto, requer, também, para a sua aquisição, formas deliberadas e sistemáticas, isto é, institucionalizadas, o que fez com que, na sociedade moderna, a escola viesse a ocupar o posto de forma principal e dominante de educação.</p><p>Em suma: o deslocamento do eixo do processo produtivo do campo para a cidade e da agricultura para a indústria provocou o deslocamento do eixo do processo cultural do saber espontâneo, assistemático para o saber metódico, sistemático, científico. Em consequência, o eixo do processo educativo também se deslocou das formas difusas, identificadas com o próprio processo de produção da existência, para formas específicas e institucionalizadas, identificadas com a escola.</p><p>Nesse contexto, a necessidade de disseminar as luzes da razão, tão bem teorizada pelo movimento iluminista, trouxe consigo a necessidade de difundir a instrução indistintamente a todos os membros da sociedade, o que foi traduzido na bandeira da escola pública, gratuita, universal, laica e obrigatória. Daí o dever indeclinável do Estado de organizar, manter e mesmo de impor a educação a toda a população.</p><p>Para cumprir esse desiderato, na medida em que, ao longo do século XIX, os Estados nacionais foram constituindo-se ou consolidando-se, cada país foi tomando a iniciativa de organizar os respectivos sistemas nacionais de ensino. E o papel desses sistemas era precisamente universalizar a instrução pública, entendida como aquela que assegura, ao conjunto da população, o domínio da leitura, escrita e cálculo, ademais dos rudimentos das ciências naturais e sociais (história e geografia). Portanto, a referência fundamental da organização dos sistemas nacionais de ensino estava dada pela escola elementar que, uma vez universalizada, permitiria erradicar o analfabetismo. É esse o papel histórico dos sistemas nacionais de educação que os principais países conseguiram cumprir satisfatoriamente, ainda que de formas distintas e em graus diferenciados de eficácia. Para se ter uma ideia da importância dessa questão, consideremos o. Até a metade do século XIX, o território que hoje corresponde à Itália era composto por diferentes reinos. Da luta pela unificação resultou, em 1861, a criação do reino da Itália sob a liderança do Piemonte, região industrializada do norte da península. Em consequência, foi estendida a toda a Itália a Lei Casati, um extenso texto composto de 380 artigos que fora aprovada no Piemonte em 1859. Essa lei tratava minuciosamente do ensino superior, dedicando- -lhe o Título II desdobrado em 15 capítulos e 141 artigos. Já o ensino primário foi objeto do Título V, compreendendo seis capítulos com 64 artigos. A responsabilidade pela instalação e manutenção das escolas elementares assim como pela admissão e pagamento dos professores foi deixada ao encargo das comunas, isto é, dos municípios. Comment by jailson bezerra: A parti do século XIX todos os países começaram a fazer seu próprio sistema de ensino.</p><p>Nesse contexto, a escola elementar marcava passo, premida por deficiências dos mais variados tipos que iam da precariedade das instalações físicas até o estigma social dos professores que, para sobreviver, eram obrigados a dar aulas particulares, sendo que, como denunciou o inspetor de Milão, nas zonas rurais se encontravam frequentemente professores que deviam atender a outras ocupações, "sendo não apenas mestres-organistas, mestres-sacristãos, mestres- -secretários, mas também mestres-costureiros, feitores, atendentes de botequim, camponeses" (CATARSI, 1985, p. 13). Além dessa condição profissionalmente degradante, o magistério primário, em especial as professoras, ficava subordinado ao mandonismo local, sofrendo perseguições, sendo obrigado a operar como cabo eleitoral de políticos, especialmente dos prefeitos, que por vezes tratavam as professoras como suas servidoras pessoais.</p><p>Com esse tratamento dado à instrução popular, a Itália chegou ao final do século XIX com metade de sua população analfabeta, o que levou Ernesto Nathan a afirmar em 1906: "Em relação à nossa posição social somos muito cultos e muito ignorantes, de um lado atormentados pelo analfabetismo, de outro pelo universitariíssimo" (BARBAGLI, 1974, p. 29). Portanto, sua situação não era muito diferente daquela do Brasil.</p><p>No entanto, ao longo do final do século XIX, desenvolveu-se uma intensa campanha pela "avocação do ensino primário ao Estado", ou seja, o governo central. A mobilização contou, inclusive, com a força do martírio da jovem professora cujo nome, emblematicamente, era Itália Donati. Nomeada para a escola de Porciani, um povoado da região da Toscana, ela foi acompanhada de seu irmão de nome Italiano visitar o prefeito que, após lhes oferecer um almoço, disse a ela de estabelecer-se em sua casa. Diante de sua firme recusa, o prefeito afirmou: "Oh, são surdos-mudos vocês dois? Quero que esteja aqui, está sempre foi a escola do prefeito e se não ficar aqui você será professora por seis meses e nada mais" (idem, p. 105). A vista do estado de indigência de sua família, que ela esperava ajudar com o salário de professora, ela não teve outra saída senão se sujeitar a essa imposição. Vítima de assédio sexual e da maledicência, tendo recebido cartas anônimas inclusive com a acusação de aborto, Itália Donati encontrou no suicídio o meio de recuperar a paz e a honra. Tendo se afogado num reservatório de água junto a um moinho, os policiais que resgataram seu corpo encontraram no bolso do avental um porta-moedas dentro do qual havia um bilhete com esta mensagem: "Seja o meu corpo deixado no Tribunal para as oportunas seções e visita médica que eu solicito porque sou inocente da acusação a mim feita. Na gaveta da escrivaninha da escola há uma caixa contendo meus escritos. Perdoai todos a pobres Infelizes - 1º de junho de 1886 - I. Donati, professora desventurada!" (idem, p. 107). Ela queria submeter-se a exames para provar sua inocência. Mas o Conselho Municipal recusou-se a atendê-la, alegando que o Conselho já estava reconhecendo oficialmente sua inocência e, portanto, sua requisição resultaria supérflua. Em carta deixada para seu irmão Italiano, ela reitera o pedido de que seu corpo seja submetido a exames dizendo "não te apavores com minha morte, mas tranquiliza-te pensando que com ela</p><p>retorna a honra da nossa família. Sou vítima da difamação pública e não deixarei de ser perseguida senão com a morte" (idem, p. 108).</p><p>Sua morte provocou grande impacto na imprensa, tendo à frente o jornal Corriere della Sera, de Milão, que se viu encorajado a persistir na denúncia da triste situação de muitas das colegas da professora toscana. Seu enterro causou grande comoção e em sua tumba foi posta uma lápide com a seguinte inscrição: "A Itália Donati / professora municipal em Porciano / tão bela quanto virtuosa / forçada por ignóbil perseguição / a pedir à morte a paz/e o atestado da sua honra. / Nascida em Cintolese em 1º de janeiro de 1863 / Morta em Porciano em 1º de junho de 1886" (CATARSI, 1985, pp. 112-113).</p><p>O movimento pela avocação da instrução pública elementar ao Estado foi incrementado com as denúncias sobre as perseguições sofridas pelas professoras por parte da política local. Nos debates travados no parlamento e na imprensa, a tese da avocação enfrentou a oposição dos conservadores, principalmente dos católicos que temiam o que chamavam de monopólio estatal e se arvoravam em defensores da autonomia local. Suas acusações dirigiam-se principalmente aos socialistas, dado que estes ligavam a defesa da avocação ao caráter laico do Estado nacional.</p><p>Por fim, a campanha resultou vitoriosa e em 1911, pela reforma Daneo-Credaro (idem, pp. 55-71 e 123-131), o ensino primário foi colocado sob a responsabilidade do Estado Nacional, instalando-se o sistema nacional de ensino, a partir do qual foi possível praticamente erradicar o analfabetismo.</p><p>A experiência da Itália é também elucidativa porque, embora unificado, o país era e ainda é formado por povoados com características bem diferenciadas, inclusive com dialetos distintos, incompreensíveis entre si. É comum sair de um pequeno povoado e, um quilômetro adiante, entrar em outro com dialeto totalmente diferente. Com a unificação adotou-se uma língua comum codificada a partir do dialeto florentino, que era falado apenas na região da Toscana, mas que, por ser a língua de Dante Alighieri, reconhecido como o maior escritor italiano, detinha prestígio suficiente para ser alçado à condição de língua oficial que passou a vigorar para toda a Itália após a unificação.</p><p>Consta que em 1861, ano do Ressurgimento italiano, apenas 2,5% da população falava italiano e somente 10% o compreendiam. Portanto, a esmagadora maioria sequer conhecia a língua. Em contrapartida, dados mais recentes indicam que "44% falam de maneira exclusiva ou predominantemente italiano, 5% falam um dos dialetos ou outros idiomas, 51% falam alternativamente italiano ou um dos dialetos" (DE MAURO, 2005).</p><p>Ora, foi exatamente nesse quadro que se instalou o sistema nacional de ensino na Itália a partir da Reforma de 1911 de iniciativa de Edoardo Daneo, que fora ministro da Instrução Pública entre 12 de dezembro de 1909 e 31 de março de 1910, tendo preparado o projeto de lei; e de Luigi Credaro, ministro de 1º de abril de 1910 a 19 de março de 1914, que conduziu o projeto à discussão e aprovação no parlamento em 4 de junho de 1911. Eis por que essa lei ficou conhecida como Lei Daneo-Credaro.</p><p>Esse exemplo da Itália permite-nos ver claramente a improcedência dos argumentos que se apoiam numa suposta necessidade de se preservarem as especificidades locais para se posicionar contra a proposta de instalação de um Sistema Nacional de Educação no Brasil. A experiência italiana mostra o inverso. Diante da diversidade das situações locais, a organização do sistema nacional de ensino tornou possível a toda a população do país o acesso às formas de expressão escrita, além de permitir, pelo aprendizado de uma língua comum, a comunicação entre todos os cidadãos italianos.</p><p>Esse entendimento fica ainda mais claro nesta nota redigida por Gramsci nos Cadernos do cárcere.</p><p>Se é verdade que toda linguagem contém os elementos de uma concepção do mundo e de uma cultura, será igualmente verdade que, a partir da linguagem de cada um, é possível julgar da maior ou menor complexidade da sua concepção do mundo. Quem fala somente o dialeto e compreende a língua nacional em graus diversos, participa necessariamente de uma intuição do mundo mais ou menos restrita e provinciana, fossilizada, anacrônica em relação às grandes correntes de pensamento que dominam a história mundial. Seus interesses serão restritos, mais ou menos corporativos ou economicistas, não universais. Se nem sempre é possível aprender outras línguas estrangeiras a fim de colocar-se em contato com vidas culturais diversas, deve-se pelo menos conhecer bem a língua nacional. Uma grande cultura pode traduzir-se na língua de outra grande cultura, isto é, uma grande língua nacional historicamente rica e complexa pode traduzir qualquer outra grande cultura, ou seja, ser uma expressão mundial. Mas, com um dialeto, não é possível fazer a mesma coisa [1975, vol. II, p. 1377; 1978, p. 13].</p><p>O caso italiano e a citada reflexão gramsciana estão em consonância com a posição que venho defendendo quando afirmo que a melhor forma de fortalecer as instâncias locais não é, necessariamente, lhes conferir autonomia deixando-as, de certo modo, à própria sorte. Na verdade, a melhor maneira de respeitar a diversidade dos diferentes locais e regiões é articulá-los no todo, e não isolá-los. Isso porque o isolamento tende a fazer degenerar a diversidade em desigualdade, cristalizando-a pela manutenção das deficiências locais. Inversamente, articuladas no sistema, se enseja a possibilidade de fazer reverter as deficiências, o que resultará no fortalecimento das diversidades em benefício de todo o sistema. Da mesma forma, também é reforçada minha posição sobre a compatibilidade entre o regime federativo e o Sistema Nacional de Educação. Com efeito, contrariamente ao argumento de que a adoção do regime federativo seria um fator impeditivo da instituição de um Sistema Nacional de Educação no Brasil, afirmo que a forma própria de se responder adequadamente às necessidades educacionais de um país organizado sob o regime federativo é exatamente por meio da organização de um Sistema Nacional de Educação. Isso porque, sendo a federação a unidade de vários estados que, preservando suas respectivas identidades, intencionalmente se articulam tendo em vista assegurar interesses e necessidades comuns, a federação postula o sistema nacional que, no campo da educação, representa a união intencional dos vários serviços educacionais que se desenvolvem no âmbito territorial dos diversos entes federativos que compõem o Estado federado nacional.</p><p>Diferentemente, o Brasil foi retardando essa iniciativa e, com isso, foi acumulando um déficit histórico imenso no campo educacional, em contraste com os países que implantaram os respectivos sistemas nacionais de ensino tanto na Europa como na América Latina, como o ilustram os casos da Argentina, Chile e Uruguai. Estes equacionaram o problema na passagem do século XIX para o XX. O Brasil já ingressou no século XXI e continua postergando a dupla meta sempre proclamada de universalizar o ensino fundamental e erradicar o analfabetismo.</p><p>Cabe, então, perguntar: como se põe hoje, no Brasil, a questão do Sistema Nacional de Educação? É possível, ainda, organizá-lo? Para responder a essa indagação, devemos começar pelos desafios à sua construção.</p>