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<p>João Calvino</p><p>ORAÇÃO</p><p>O exercício contínuo da fé</p><p>1ª edição</p><p>Editora Vida</p><p>Rua Conde de Sarzedas, 246 Liberdade</p><p>CEP 01512-070 São Paulo, SP</p><p>Tel.: 0 xx 11 2618 7000</p><p>Fax: 0 xx 11 2618 7030</p><p>www.editoravida.com.br</p><p>Editor responsável: Gisele Romão da</p><p>Cruz Santiago</p><p>Tradução: Carlos Caldas</p><p>Revisão de tradução: Rogério Portella</p><p>Revisão de provas: Josemar de Souza</p><p>Pinto</p><p>Projeto gráfico e diagramação: Claudia</p><p>Fatel Lino</p><p>Capa: Arte Peniel</p><p>©2016, John Knox e João Calvino</p><p>Compilação das obras originalmente</p><p>publicadas</p><p>em inglês com os títulos: Of Prayer: A</p><p>Perpectual Exercise of Faith.</p><p>The Daily Benefits Derived From It.</p><p>Todos os direitos desta tradução em</p><p>língua portuguesa reservados por Editora</p><p>Vida.</p><p>Proibida a reprodução por quaisquer</p><p>meios, salvo em breves citações, com</p><p>indicação da fonte.</p><p>Todos os direitos desta tradução em</p><p>língua portuguesa reservados por Editora</p><p>Vida.</p><p>Proibida a reprodução por quaisquer</p><p>meios, salvo em breves citações, com</p><p>indicação da fonte.</p><p>Scripture quotations taken from Bíblia</p><p>Sagrada, Nova Versão Internacional, NVI</p><p>® Copyright © 1993, 2000 by</p><p>International Bible Society ®.</p><p>Used by permission IBS-STL U.S.</p><p>All rights reserved worldwide.</p><p>Edição publicada por Editora Vida, salvo</p><p>indicação em contrário. Todas as citações</p><p>bíblicas e de terceiros foram adaptadas</p><p>segundo o Acordo Ortográfico da Língua</p><p>Portuguesa, assinado em 1990, em vigor</p><p>desde janeiro de 2009.</p><p>1. edição: set. 2016</p><p>Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)</p><p>(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)</p><p>Calvino, João, 1509-1564.</p><p>Oração : o exercício contínuo da fé / João Calvino ; [tradução Carlos Caldas]. -- São Paulo : Editora</p><p>Vida, 2016.</p><p>Título original: Of Prayer : A Perpetual Exercise of Faith. The Daily Benefits Derived From It.</p><p>1. Igreja Reformada - Doutrinas 2. Igreja Reformada - Doutrinas - Obras anteriores a 1800 3.</p><p>Teologia doutrinária - Obras anteriores a 1800 I. Título.</p><p>Oração: o exercíciocontínuo da fé</p><p>João Calvino</p><p>Da oração — o exercício perpétuo da fé</p><p>e os benefícios diários derivados dele.</p><p>As principais divisões do presente texto:</p><p>I. Conexão do tema da oração com os textos anteriores. A natureza</p><p>da oração e sua necessidade como exercício cristão (1, 2).</p><p>II. A quem a oração deve ser oferecida. Refutação da objeção apta</p><p>demais para se apresentar à mente (3).</p><p>III. Regras a serem observadas na oração (4-16).</p><p>IV. Por meio de quem a oração deve ser feita (17-19).</p><p>V. Refutação de um erro a respeito da doutrina de nosso Mediador e</p><p>Intercessor, com respostas aos principais argumentos formulados a favor da</p><p>intercessão dos santos (20-27).</p><p>VI. A natureza da oração, e algumas de suas ocorrências (28-33).</p><p>VII. A forma perfeita da invocação, ou uma exposição da Oração do</p><p>Senhor (34-50).</p><p>VIII. Algumas regras a serem observadas a respeito da oração, como o</p><p>tempo, a perseverança, a sensação da mente e a certeza da fé (50-52).</p><p>1</p><p>Resumo do conteúdo da parte anterior deste livro.</p><p>A transição para a doutrina da oração e sua</p><p>conexão com o tema da fé.</p><p>Da parte anterior deste trabalho, vimos com clareza quão completamente</p><p>destituído o homem é de todo o bem, quão desprovido, em todos os sentidos,</p><p>de buscar a própria salvação. Por conseguinte, se deseja encontrar auxílio em</p><p>sua necessidade, ele precisa ir além de si mesmo e procurar socorro em outro</p><p>lugar. Já se demonstrou que o Senhor se manifesta de forma bondosa e</p><p>espontânea em Cristo, em quem ele oferece toda a felicidade para nossa</p><p>miséria, toda a abundância para nossa necessidade, abrindo os tesouros do</p><p>céu para nós, para que possamos nos voltar com toda a fé para seu Filho</p><p>amado, depender dele em plena expectativa, descansar nele e nos apegarmos</p><p>a ele em plena esperança. Esta, de fato, é a filosofia secreta e oculta que não</p><p>pode ser aprendida por silogismos: a filosofia entendida de modo completo</p><p>pelas pessoas cujos olhos Deus abriu para contemplarem a luz em sua luz</p><p>(Salmos 36.9). Mas, depois que aprendemos pela fé que todas as coisas que</p><p>nos são necessárias ou defeituosas em nós são supridas em Deus e em nosso</p><p>Senhor Jesus Cristo — em quem está o prazer do Pai e em quem toda a</p><p>plenitude habita —, resta-nos extrair dessa fonte inexaurível e, em oração,</p><p>implorar dele o que aprendemos que nele se encontra. Saber que Deus é o</p><p>fornecedor soberano de todo o bem, que nos convida a apresentar a ele</p><p>nossos pedidos, e mesmo assim não nos aproximarmos dele nem lhe</p><p>pedirmos nada — longe de ser algo útil para nós —, será como quem sabe de</p><p>um tesouro, mas lhe permite permanecer enterrado. Por isso o apóstolo, a fim</p><p>de demonstrar que a fé desacompanhada de oração a Deus não pode ser</p><p>genuína, declara e afirma: a fé tem sua fonte no Evangelho; assim, pela fé em</p><p>nosso coração somos capacitados a invocar o nome de Deus (Romanos</p><p>10.14). E é exatamente o que ele expressou pouco antes, ou seja: o Espírito</p><p>de adoção, que sela o testemunho do Evangelho em nosso coração, nos dá</p><p>coragem para que façamos nossos pedidos conhecidos diante de Deus, e se</p><p>expressa com gemidos inexprimíveis, e nos capacita a clamar Aba, Pai</p><p>(Romanos 8.26). Este último ponto, que tocamos apenas com brevidade,</p><p>precisa agora ser considerado com mais detalhes.</p><p>2</p><p>Definição de oração. Sua necessidade e uso.</p><p>À oração, então, somos devedores para descobrir as riquezas entesouradas</p><p>para nós com nosso Pai celestial? Pois há um tipo de relacionamento entre</p><p>Deus e os homens pelo qual, tendo entrado no santuário superior, eles se</p><p>postam em sua presença e invocam suas promessas para que, quando a</p><p>necessidade obriga, aprendam pela experiência que não era vão tudo que eles</p><p>acreditavam apenas pela autoridade de sua palavra. Da mesma forma, vemos</p><p>que nada é colocado diante de nós como objeto de expectativa da parte do</p><p>Senhor que não sejamos ordenados a lhe pedir em oração, e isso é tão</p><p>verdadeiro que a oração desenterra os tesouros que o Evangelho de nosso</p><p>Senhor revela aos olhos da fé. Nenhuma palavra pode expressar com</p><p>suficiência a necessidade e a utilidade do exercício da oração. Não é sem</p><p>motivo que o Pai celestial declara que nossa única segurança reside em</p><p>invocar seu nome, pois, ao assim fazer, pedimos a presença de sua</p><p>providência para cuidar de nossos interesses, do seu poder para nos sustentar</p><p>quando estamos fracos e quase desfalecendo, de sua bondade para nos</p><p>receber com favor, ainda que estejamos miseravelmente carregados de</p><p>pecado; em suma, invocá-lo para que se manifeste a nós em todas as suas</p><p>perfeições. A partir daí, paz e tranquilidade admiráveis são concedidas à</p><p>nossa consciência; pois, lançando sobre o Senhor os apertos pelos quais</p><p>somos pressionados, descansamos plenamente satisfeitos com a segurança de</p><p>que nenhum dos nossos males lhe é desconhecido e de que ele é capaz de</p><p>fazer o melhor para nós e está desejoso de fazê-lo.</p><p>3</p><p>Objeção: a oração parece inútil, pois Deus já conhece nossas</p><p>necessidades. Resposta da instituição e finalidade da oração. Confirmação</p><p>pelo exemplo. Sua necessidade e propriedade. A oração nos lembra de modo</p><p>constante da nossa obrigação e nos leva a meditar sobre a divina</p><p>providência. Conclusão. A oração, um exercício muito útil. Comprovação de</p><p>tudo isso por meio de três passagens das Escrituras.</p><p>No entanto, alguns dirão: Mas ele não conhece nossas dificuldades sem</p><p>precisar ser avisado, e o que é para o nosso bem, de modo que, de alguma</p><p>maneira, lhe pareça supérfluo fazer pedidos por meio de nossas orações,</p><p>como se ele estivesse cochilando, ou mesmo dormindo, até ser acordado pelo</p><p>barulho da nossa voz? Os que assim argumentam não prestaram atenção à</p><p>finalidade pela qual o Senhor nos ensinou a orar. Não é nem por causa dele,</p><p>mas por nossa causa. Ele de fato deseja, e isto é justo, que a devida honra lhe</p><p>seja dada pelo reconhecimento de que tudo que os homens desejam ou</p><p>sentem seja útil, e que oremos para obter, seja derivado dele. Contudo,</p><p>mesmo os benefícios da homenagem que nós lhe ofertamos retornam para</p><p>nós mesmos. Por isso quanto mais os santos patriarcas proclamavam com</p><p>confiança as misericórdias de Deus a si mesmos e aos outros,</p><p>benefício especial que teriam o privilégio de desfrutar quando, auxiliados</p><p>pela intercessão dele, invocariam a Deus com maior liberdade. Nesse sentido,</p><p>o apóstolo diz que temos “plena confiança para entrar no Lugar Santíssimo</p><p>pelo sangue de Jesus, por um novo e vivo caminho que ele nos abriu”</p><p>(Hebreus 10.19,20). Portanto, somos indesculpáveis se não abraçamos de</p><p>peito aberto (como se diz) o dom inestimável que nos está destinado.</p><p>19</p><p>A ira de Deus jaz sobre quem rejeita Cristo como Mediador.</p><p>Isso não exclui a intercessão recíproca dos santos na terra.</p><p>Além disso, considerando que Jesus é o único caminho e o único acesso</p><p>pelo qual podemos nos aproximar de Deus, os que se desviam do caminho e</p><p>rejeitam o acesso não têm qualquer outro recurso; o trono dele será apenas de</p><p>ira, juízo e terror. Em suma, como o Pai o consagrou nosso guia e cabeça,</p><p>quem o abandona ou o deixa de lado em qualquer esforço mancha e oculta o</p><p>selo que Deus imprimiu. Cristo, por conseguinte, é o único Mediador por cuja</p><p>intercessão o Pai se mostra propício e disposto a ouvir (1Timóteo 2.5). Pois</p><p>ainda que aos santos seja permitido usar intercessões, pelas quais eles</p><p>imploram a Deus a favor da salvação uns dos outros, e da qual o apóstolo faz</p><p>menção (Efésios 6.18,19; 1Timóteo 2.1), as intercessões dependem daquela</p><p>intercessão, tão distantes que estão dele. Pois as intercessões que como</p><p>membros do corpo de Cristo oferecemos uns pelos outros brotam do</p><p>sentimento de amor e têm como referência a cabeça do corpo, que é Jesus.</p><p>Assim, feitas em nome de Cristo, que mais podem declarar, a não ser que</p><p>nenhum homem deriva o menor benefício da oração senão pela intercessão de</p><p>Jesus? Como não há nada na intercessão de Cristo que impeça os membros da</p><p>igreja de oferecerem orações uns pelos outros, de modo que seja estabelecido</p><p>como princípio fixo, que todas as intercessões na igreja, portanto, tenham</p><p>como referência a intercessão de Cristo. Por isso devemos ser especialmente</p><p>cuidadosos para demonstrar nossa gratidão nesta questão: Deus perdoa nossa</p><p>indignidade, e não apenas permite que cada indivíduo ore por si mesmo, mas</p><p>permite que os cristãos intercedam uns pelos outros. Deus deu lugar na igreja</p><p>aos intercessores que mereceriam ser rejeitados quando oram por conta</p><p>própria; assim, quão presunçoso seria abusar da bondade ao usá-la para</p><p>obscurecer a honra de Cristo?</p><p>20</p><p>Refutação dos erros que interferem na intercessão de Cristo:</p><p>a) Cristo, o Mediador da redenção; os santos, mediadores da intercessão.</p><p>Resposta confirmada pelo claro testemunho da Escritura e por uma</p><p>passagem de Agostinho. A natureza da intercessão de Cristo.</p><p>Além do mais, os sofistas são culpados da mais pura leviandade quando</p><p>alegam que Cristo é o Mediador da redenção, mas os crentes são mediadores</p><p>da intercessão; como se Jesus tivesse realizado apenas a mediação temporária</p><p>e deixado a mediação eterna e imperecível para seus servos. Esse de fato é o</p><p>tratamento que ele recebe dos que fingem roubar-lhe o mínimo da sua honra.</p><p>Muito diferente é a linguagem das Escrituras, cuja simplicidade deve</p><p>satisfazer todo homem piedoso, sem se importar com os fingidos. Pois</p><p>quando João diz: “[...] Se, porém, alguém pecar, temos um intercessor junto</p><p>ao Pai, Jesus Cristo, o Justo” (1João 2.1), ele não anuncia apenas o advogado;</p><p>não está ele atribuindo a Cristo a intercessão perpétua?</p><p>O que Paulo quer dizer quando declara que Jesus “está à direita de Deus, e</p><p>também intercede por nós” (Romanos 8.34)? Quando, em outra passagem, ele</p><p>declara que Jesus é o único Mediador entre Deus e o homem (1Timóteo 2.5),</p><p>não está ele se referindo às súplicas mencionadas pouco antes? Tendo</p><p>previamente dito que orações devem ser oferecidas por todos os homens, ele</p><p>acrescenta de imediato, para confirmar a declaração, que há um só Deus e um</p><p>só Mediador entre Deus e o homem. Agostinho não apresenta uma</p><p>interpretação diferente, ao afirmar: “Os cristãos recomendam-se mutuamente</p><p>em suas orações. Mas aquele por quem ninguém intercede, enquanto ele</p><p>mesmo intercede por todos, é o único Mediador verdadeiro”. Ainda que o</p><p>apóstolo Paulo fosse um membro importante abaixo da autoridade de Cristo,</p><p>por ser membro do corpo de Cristo, e saber que o verdadeiro sumo sacerdote</p><p>da Igreja rasgou o véu do Santo dos Santos, e por firme e expressa verdade</p><p>entrou no mais íntimo santuário do céu em santidade — santidade não</p><p>imaginária, mas eterna (Hebreus 9.11,24) —, ele também pede orações dos</p><p>fiéis a seu favor (Romanos 15.30; Efésios 6.19; Colossenses 4.3). Paulo não</p><p>faz de si mesmo o mediador entre Deus e o povo, mas pede que todos os</p><p>membros do corpo de Cristo orem uns pelos outros, pois eles devem ser</p><p>simpáticos uns com os outros: se um sofre, todos sofrem com ele (1Coríntios</p><p>12.26). E assim as orações mútuas dos cristãos que trabalham na terra sobem</p><p>até o Cabeça, que subiu primeiro ao céu, e em quem há propiciação pelos</p><p>nossos pecados. Pois se Paulo fosse mediador, então os outros apóstolos</p><p>também o seriam, e assim haveria muitos mediadores, e a declaração de</p><p>Paulo não se sustentaria: “Pois há um só Deus e um só mediador entre Deus e</p><p>os homens: o homem Cristo Jesus” (1Timóteo 2.5), “em quem também</p><p>somos um” (Romanos 12.5), “se mantemos a unidade da fé no vínculo da</p><p>paz” (Efésios 4.3) (Agostinho, Contra Parmenian, livro II, cap. 8). De igual</p><p>maneira, em outra passagem Agostinho diz: “Se tu precisas de um sacerdote,</p><p>ele está acima dos céus, onde intercede por quem na terra morreu por ti”</p><p>(Agostinho sobre Salmos 94). Não imaginamos que ele se lance sob os</p><p>joelhos do Pai e, suplicante, interceda por nós; mas entendemos com o</p><p>apóstolo que ele aparece na presença de Deus e que o poder de sua morte tem</p><p>o efeito da intercessão perpétua por nós; tendo adentrado o interior do</p><p>santuário, ele continua até o fim do mundo a apresentar as orações do seu</p><p>povo, que permanece do lado de fora, no átrio exterior.</p><p>21</p><p>Sobre a intercessão dos santos que vivem com Cristo no céu. Ficção</p><p>dos papistas a esse respeito. Refutação: a) Absurdo; b) Ausência de</p><p>menção na Escritura; c) Apelo à consciência dos supersticiosos;</p><p>d) Blasfêmia. Exceção. Respostas.</p><p>A respeito dos santos que tendo morrido no corpo vivem em Cristo, se lhes</p><p>atribuímos orações, não imaginemos que contem com outro meio de suplicar</p><p>a Deus além de Jesus — o único caminho —, ou que as orações deles são</p><p>aceitas por Deus em outro nome que não o de Jesus. Portanto, como as</p><p>Escrituras nos conduzem só a Cristo, e como o Pai celestial se agrada em unir</p><p>todas as coisas nele, é o extremo da estupidez, para não dizer loucura, tentar</p><p>obter acesso por meio de outros, só para ser afastado dele sem quem o acesso</p><p>seja obtido. Mas quem pode negar que essa foi a prática por muito tempo, e</p><p>ainda é, onde quer que o papado prevaleça? Para buscar o favor de Deus,</p><p>impõem-se sempre os méritos humanos e sempre que Cristo é deixado de</p><p>lado, suplica-se a Deus em nome deles (dos santos falecidos).</p><p>Pergunto se isso não é transferir para eles o ofício de único intercessor que</p><p>há pouco alegamos para Cristo? Que anjo ou demônio já pronunciou uma</p><p>sílaba a qualquer humano a respeito da fantasiosa intercessão dos santos</p><p>falecidos? Não há uma palavra sobre o assunto nas Escrituras. Qual é então a</p><p>base para essa ficção? Com certeza, enquanto a mente humana busca ajuda</p><p>no que não é sancionado pela Palavra de Deus, ela manifesta sua</p><p>desconfiança de forma plena (cf. seç. 27). Mas, se apelarmos à consciência de</p><p>todos os que se alegram na intercessão dos santos, descobriremos que a única</p><p>razão é o fato de estarem cheios de ansiedade, como se supusessem a</p><p>insuficiência de Cristo ou seu excesso de rigor. No entanto, com essa</p><p>ansiedade eles desonram Cristo e roubam dele o título de único</p><p>Mediador, dado a ele pelo Pai como privilégio especial — e não deve ser</p><p>transferido a nenhum outro. Ao assim fazer, eles obscurecem a glória da sua</p><p>natividade e anulam sua cruz; em suma, privam e defraudam do devido</p><p>louvor tudo que ele fez ou sofreu, e tudo isso objetivou demonstrar que ele é</p><p>e deve ser considerado o único Mediador. Ao</p><p>mesmo tempo, eles rejeitam a</p><p>bondade de Deus ao se manifestar a eles como Pai, pois ele não lhes é Pai</p><p>caso não reconheçam Cristo como irmão. Isso eles se recusam plenamente a</p><p>fazer se não pensam que Jesus sente por eles a afeição de um irmão; ninguém</p><p>terá afeição mais gentil ou terna que a dele. Por isso as Escrituras falam só a</p><p>respeito dele, enviam-nos só a ele e nos estabelecem nele. “Ele”, diz</p><p>Ambrósio, “é a boca pela qual falamos ao Pai; os olhos pelos quais vemos o</p><p>Pai; a mão direita pela qual nos oferecemos ao Pai. A não ser pela intercessão</p><p>dele, nem nós nem qualquer dos santos podemos manter o relacionamento</p><p>com Deus” (Ambrósio, De Isaac et anima). Se eles objetam que as orações</p><p>públicas oferecidas nas igrejas concluem com as palavras por meio de Jesus</p><p>Cristo, nosso Senhor, essa é uma fuga frívola, pois o insulto menor não é</p><p>oferecido à intercessão de Cristo ao confundi-la com as orações e méritos dos</p><p>mortos do que por omiti-la por completo e fazer menção apenas dos mortos.</p><p>Então, em todas as suas litanias, hinos e discursos — em que todo tipo de</p><p>honra é prestada aos santos falecidos —, não há menção de Cristo.</p><p>22</p><p>Erros monstruosos resultantes dessa ficção.</p><p>Refutação. Exceção feita por seus advogados. Resposta.</p><p>Mas aqui a estupidez chegou a tal ponto que dá espaço para a manifestação</p><p>do gênio da superstição, que, uma vez sacudida a rédea, costuma agir sem</p><p>limites. Depois de os homens começarem a olhar para a intercessão dos</p><p>santos, a administração peculiar foi gradualmente designada a cada um deles,</p><p>de modo que ora um, ora outro, intercessor é invocado — conforme a</p><p>diversidade dos assuntos. Indivíduos adotaram santos particulares e</p><p>depositaram fé neles como divindades tutelares. E logo havia deuses</p><p>estabelecidos não apenas conforme o número de suas cidades (acusação</p><p>levantada pelo profeta contra o antigo Israel, Jeremias 2.28; 11.13), mas</p><p>conforme o número de pessoas. No entanto, enquanto os santos em todos os</p><p>seus desejos referem-se apenas à vontade divina, veja só, e com essa vontade</p><p>concordam, destinar-lhes qualquer outra oração, a não ser o desejo da vinda</p><p>do Reino de Deus é pensar de forma estúpida, carnal e até mesmo insultuosa</p><p>a respeito deles. Nada pode estar mais distante da compreensão assim que</p><p>imaginar que cada um deles, sob a influência de um sentimento particular,</p><p>está disposto a ser mais favorável a seus adoradores. Muitas pessoas caíram</p><p>nessa horrível blasfêmia de invocá-los não para simplesmente ajudar, mas</p><p>para presidir sua salvação. Observe a profundidade em que homens</p><p>miseráveis caem quando se esquecem do seu lugar, isto é, a Palavra de Deus.</p><p>Nem falo sobre os tipos mais monstruosos de impiedade que, mesmo</p><p>detestáveis a Deus, anjos e homens, praticam e não sentem dor ou vergonha.</p><p>Prostrados perante uma estátua ou um quadro de Bárbara ou Catarina ou de</p><p>qualquer outro, eles balbuciam um Pater Noster, e tão distantes estão os</p><p>pastores deles que, seduzidos pela fragrância do ganho, aprovam e aplaudem</p><p>tal atitude. Mas enquanto tentam se livrar do ódio desse procedimento vil e</p><p>criminoso, sob cujo pretexto defendem a prática de invocar Eloi (Elígio) ou</p><p>Medardo para ajudar seus servos e enviar-lhes ajuda dos céus, ou que a Santa</p><p>Virgem ordene a seu Filho que faça tudo que ela pedir? O Concílio de</p><p>Cartago proibiu que no altar orações fossem dirigidas aos santos. É provável</p><p>que esses homens santos, incapazes por completo de suprimir a força de</p><p>costumes depravados, chegassem a este ponto, que orações públicas não</p><p>poderiam ser viciadas com formas como a expressão Sancte Petre, ora pro</p><p>nobis [São Pedro, rogai por nós]. Mas quão longe a extravagância diabólica</p><p>não foi, a ponto de homens não hesitarem em transferir aos mortos os</p><p>atributos peculiares de Cristo e de Deus?</p><p>23</p><p>Argumentos dos papistas a respeito da intercessão dos santos:</p><p>a) Com base no dever e ofício dos anjos. Resposta. b) Com base em uma</p><p>expressão de Jeremias a respeito de Moisés e Samuel. Resposta: réplica</p><p>do argumento; c) O significado do profeta confirmado por uma</p><p>passagem semelhante de Ezequiel, e o testemunho de um apóstolo.</p><p>Eles laboram em vão para provar que a intercessão tem apoio das</p><p>Escrituras. Muitas vezes lemos (eles dizem) das orações dos anjos, e não</p><p>apenas isso, mas se diz que as orações dos cristãos são levadas à presença de</p><p>Deus mediante as orações deles. Mas, se eles forem comparar os santos que</p><p>partiram desta vida com os anjos, será necessário provar que os santos são</p><p>espíritos ministradores, aos quais foi delegado o ofício de superintender nossa</p><p>salvação e ainda a tarefa de nos guiar em todos os nossos caminhos, de nos</p><p>envolver, admoestar, confortar e vigiar. Tudo isso foi designado aos anjos,</p><p>mas nada aos santos. A forma absurda de sua confusão dos santos falecidos</p><p>com os anjos é aparente pelos muitos ofícios pelos quais as Escrituras</p><p>distinguem uns dos outros. Ninguém, a não ser que seja solicitado, presumirá</p><p>executar o ofício de testemunhar a favor de um juiz terreno. De onde então</p><p>esses vermes tiram base para se colocarem diante de Deus como</p><p>intercessores, quando o ofício não lhes foi designado? Deus se agradou de dar</p><p>aos anjos o encargo da nossa segurança. Por isso eles participam das nossas</p><p>reuniões solenes, e a igreja para eles é um teatro onde eles contemplam a</p><p>manifesta sabedoria de Deus (Efésios 3.10).</p><p>Os que transferem para os outros o encargo que lhes é peculiar sem dúvida</p><p>pervertem e confundem a ordem estabelecida por Deus e que deve ser</p><p>inviolável. Com destreza semelhante, eles citam outas passagens. Deus disse</p><p>a Jeremias: “[...] ‘Ainda que Moisés e Samuel estivessem diante de mim,</p><p>intercedendo por este povo, eu não lhes mostraria favor. Expulse-os da minha</p><p>presença! Que saiam!’” (Jeremias 15.1). Como (perguntam eles) Deus teria</p><p>falado assim dos mortos, a não ser que ele soubesse que intercedem pelos</p><p>vivos? Minha inferência, pelo contrário, é a seguinte: como nem Moisés nem</p><p>Samuel intercederam pelo povo de Israel, então não há intercessão pelos</p><p>mortos. Pois quem dos santos pode trabalhar pela salvação das pessoas</p><p>quanto Moisés, que, enquanto em vida, ultrapassou a todos, não fez nada?</p><p>Portanto, se insistirem nas artimanhas miseráveis de que os mortos</p><p>intercedem pelos vivos, porque o Senhor disse: “Ainda que [eles]</p><p>intercedessem (intercesserint), argumentarei da seguinte maneira: Moisés, a</p><p>respeito de quem é dito, “se tivesse intercedido”, não intercedeu pelo povo na</p><p>necessidade mais extrema: por conseguinte, é provável que nenhum outro</p><p>santo interceda, pois todos eles estão atrás de Moisés em humanidade,</p><p>bondade e solicitude paternal. Por isso o que eles receberão pelos sofismas</p><p>são ferimentos causados pelas próprias armas com as quais acreditam estar</p><p>muito protegidos. Contudo, é ridículo usar assim essa simples sentença, pois</p><p>o Senhor apenas declara que não poupará as iniquidades do povo, mesmo que</p><p>algum Moisés ou Samuel, com quem ele foi tão indulgente em suas orações,</p><p>intercedesse por eles. O sentido é extraído com mais clareza de uma</p><p>passagem semelhante em Ezequiel: “‘Mesmo que estes três homens — Noé,</p><p>Daniel e Jó — estivessem nela, por sua retidão eles só poderiam livrar a si</p><p>mesmos. Palavra do Soberano, o Senhor’” (Ezequiel 14.14). Não há dúvida</p><p>aqui que as palavras devem ser entendidas como foram pronunciadas: se duas</p><p>dessas pessoas citadas vivessem de novo, pois a terceira ainda estava viva na</p><p>época, ou seja, Daniel, que se encontrava no auge de sua juventude e de</p><p>piedade incomparável. Por conseguinte, deixemos de lado as pessoas a</p><p>respeito de quem as Escrituras declaram ter cumprido sua missão. Quando</p><p>Paulo menciona Davi, ele não diz que o rei ajudou sua posteridade por meio</p><p>de orações, mas apenas que ele (Davi) serviu “‘ao propósito de Deus em sua</p><p>geração’” (Atos 13.36).</p><p>24</p><p>d) Quarto argumento papista com base na natureza</p><p>da caridade, mais perfeita nos santos glorificados. Resposta.</p><p>Eles mais uma vez objetam: “Seremos privados dos desejos piedosos de</p><p>quem a vida toda respirou apenas piedade e misericórdia?”. Não tenho o</p><p>desejo de bisbilhotar o que</p><p>eles fazem ou meditam; mas a probabilidade é</p><p>que, em vez de estarem sujeitos ao impulso de vários desejos particulares,</p><p>com uma vontade fixa e inamovível desejam o Reino de Deus, que consiste</p><p>não menos na destruição dos ímpios que na salvação dos cristãos. Sendo</p><p>assim, não pode haver dúvida de que a caridade deles está confinada à</p><p>comunhão do corpo de Cristo e não vai além do compatível com a natureza</p><p>da comunhão. Mas, ainda que eu admita que oram assim por nós, eles, no</p><p>entanto, não perdem a tranquilidade a ponto de serem distraídos por</p><p>preocupações terrenas: menos longe estão eles, por conseguinte, de serem</p><p>invocados por nós. Nem se segue que a invocação deva ser usada porque,</p><p>enquanto os homens estão vivos na terra, eles podem orar uns pelos outros.</p><p>Isso serve para manter vivo o sentimento de caridade, quando eles, como</p><p>deve ser, compartilham as necessidades e levam as cargas uns dos outros.</p><p>Eles o fazem por ordem do Senhor, e não sem uma promessa, as duas coisas</p><p>de importância primária na oração.</p><p>Mas as razões são inaplicáveis aos mortos, aqueles com quem o Senhor,</p><p>tendo retirado da sociedade, nos deixou sem a possibilidade de</p><p>relacionamento (Eclesiastes 9.5,6), e a eles também, tanto quanto podemos</p><p>conjecturar, ele deixou sem possibilidade de se relacionar conosco. Contudo,</p><p>se alguém alegar que eles conservam a mesma caridade para conosco, como</p><p>unidos a nós na única fé, quem nos revelou que eles têm ouvidos capazes de</p><p>ouvir os sons da nossa voz ou ouvidos claros o bastante para discernir nossas</p><p>necessidades? Nossos oponentes, porém, falam de fato na ilusão dos seus</p><p>pensamentos a respeito de algum tipo de luz que brilha dos santos falecidos e</p><p>na qual, como em um espelho, eles, do alto de sua elevada morada,</p><p>contemplam os assuntos dos homens; mas afirmá-lo com a confiança</p><p>presumida por esses homens significa apenas desejar, por meio de sonhos</p><p>extravagantes do cérebro, e sem nenhuma base de autoridade, bisbilhotar e</p><p>penetrar nos juízos ocultos de Deus e pisotear as Escrituras, que tantas vezes</p><p>declaram estar a sabedoria da carne em inimizade com a sabedoria divina,</p><p>condenam de modo completo a vaidade da nossa mente e, humilhando-nos a</p><p>razão, nos pedem que olhemos apenas para a vontade divina.</p><p>25</p><p>Argumento fundamentado em uma</p><p>passagem de Moisés. Resposta.</p><p>As outras passagens das Escrituras empregadas por eles para defender seu</p><p>erro são muito distorcidas. Jacó (eles dizem) pede aos filhos de José: “‘[...]</p><p>Sejam eles chamados pelo meu nome e pelos nomes de meus pais Abraão e</p><p>Isaque [...]’” (Gênesis 48.16). Em primeiro lugar, vejamos como era a</p><p>natureza da invocação entre os israelitas. Eles não imploram aos antepassados</p><p>que os socorram, mas pedem a Deus que se lembre dos seus servos Abraão,</p><p>Isaque e Jacó. Logo, o exemplo deles não dá apoio para que se dirijam de</p><p>maneira direta aos santos. Mas sendo assim a dureza mental de quem assim</p><p>procede, por não compreenderem o significado de invocar o nome de Jacó,</p><p>nem porque este deve ser invocado, não é estranho que eles se equivoquem</p><p>de maneira tão pueril para fazer o que fazem. A expressão ocorre repetidas</p><p>vezes nas Escrituras. Isaías fala de mulheres sendo chamadas pelo nome de</p><p>homens, quando elas os têm por marido e vivem sob sua proteção (Isaías</p><p>4.1). Invocar o nome de Abraão sobre os israelitas consistia em referir a</p><p>origem da sua raça nele e conservá-lo em lembrança distinta como fundador e</p><p>pai da nação. Jacó não o faz por qualquer ansiedade de preservar a</p><p>celebridade do seu nome, mas por saber que toda a felicidade de seus</p><p>descendentes consistia na herança da aliança estabelecida com eles por Deus.</p><p>Entendendo que lhes daria a soma de todas as bênçãos, ele ora para ser</p><p>contado como pertencente a seu povo; isso não era outra coisa senão a</p><p>transmissão da sucessão da aliança a eles. Também eles, quando fazem</p><p>menção do assunto em suas orações, não se entregam à intercessão dos</p><p>mortos, mas se lembram da aliança que seu Pai mui misericordioso</p><p>estabeleceu para ser-lhes bondoso e propício por causa de Abraão, Isaque e</p><p>Jacó. Mas, em outros aspectos, quão pouco os santos confiavam nos méritos</p><p>dos seus antepassados, pois a voz pública da Igreja declara nos profetas “[...]</p><p>Abraão não nos conhece e Israel nos ignora [...]” (Isaías 63.16). Enquanto a</p><p>Igreja assim se pronuncia, ela ao mesmo tempo acrescenta: “Volta por amor</p><p>dos teus servos, por amor das tribos que são a tua herança”, não pensando em</p><p>termos de intercessão, mas advertindo apenas acerca dos benefícios da</p><p>aliança. Agora, de fato, quando temos o Senhor Jesus, em cuja mão a eterna</p><p>aliança de misericórdia foi não apenas estabelecida, mas confirmada, que</p><p>nome melhor que o dele podemos usar em nossas orações? E desde que os</p><p>bons doutores concluiriam com base nos textos que os patriarcas são</p><p>intercessores, gostaria que eles me dissessem o motivo pelo qual, dentre a</p><p>multidão tão grande, não há lugar para Abraão, o pai da Igreja? Sabemos bem</p><p>de que grupo eles selecionam seus intercessores. Que eles me digam que</p><p>coerência há em negligenciar e rejeitar Abraão, a quem Deus preferiu aos</p><p>demais e elevou ao mais alto grau de honra. A única razão é que não existia a</p><p>prática na Igreja antiga, de modo que eles acharam melhor ocultar a novidade</p><p>da prática não dizendo nada dos patriarcas: como se por mera diversidade de</p><p>nomes eles pudessem desculpar a prática ao mesmo tempo nova e impura.</p><p>Eles também objetam algumas vezes que se pede a Deus misericórdia do</p><p>povo: “Por amor ao teu servo Davi [...]” (Salmos 132.10). Isso está tão longe</p><p>de dar base ao erro deles que consiste na sua mais forte refutação. Devemos</p><p>considerar o caráter de Davi. Ele foi separado do grupo dos fiéis para</p><p>estabelecer a aliança preparada por Deus. Isso tem mais relação com a aliança</p><p>que com o indivíduo. Davi é um tipo da intercessão única de Cristo. Mas o</p><p>aspecto peculiar a Davi como tipo de Cristo com certeza não se aplica aos</p><p>outros.</p><p>26</p><p>Argumento fundamentado no fato de as orações dos</p><p>santos serem ouvidas. Resposta confirmada pela</p><p>Escritura e ilustrada com exemplos.</p><p>Mas alguns parecem ser movidos pela afirmação geral de que as orações</p><p>dos santos geralmente são atendidas. Por quê? Porque eles oravam.</p><p>“Clamaram a ti” (diz o salmista), “e foram libertos; em ti confiaram, e não se</p><p>decepcionaram” (Salmos 22.5). Vamos também orar seguindo o exemplo</p><p>deles, para que também sejamos ouvidos. Quão melhor argumenta Tiago:</p><p>“Elias era humano como nós. Ele orou fervorosamente para que não</p><p>chovesse, e não choveu sobre a terra durante três anos e meio. Orou outra</p><p>vez, e os céus enviaram chuva, e a terra produziu os seus frutos” (Tiago</p><p>5.17,18). Teria ele inferido que Elias contava com algum privilégio particular</p><p>e que faríamos bem recorrer a ele por causa disso? De modo algum. Ele</p><p>demonstra a eficácia perpétua da oração pura e piedosa, para que sejamos</p><p>induzidos a orar da mesma maneira. A bondade e a prontidão de Deus em</p><p>ouvir são interpretadas de maneira perversa, se o exemplo deles não nos</p><p>inspirar com confiança cada vez mais forte na promessa divina, pois ele</p><p>declarou que inclinará o ouvido não para um, dois ou poucos indivíduos, mas</p><p>a quem invocar seu nome. Na ignorância eles são os menos desculpáveis,</p><p>pois entendem como se fossem desprezar de forma ativa as muitas</p><p>admoestações das Escrituras. Repetidas vezes Davi foi libertado pelo poder</p><p>de Deus. Isso lhe concedeu poder para sermos libertos por suas súplicas?</p><p>Muito diferente é a afirmação que ele fez: “Liberta-me da prisão, e renderei</p><p>graças ao teu nome. Então os justos se reunirão à minha volta por causa da</p><p>tua bondade para comigo” (Salmos 142.7). E outra vez: “Os justos verão isso</p><p>e temerão [...]” (Salmos 52.6). “Este pobre homem clamou, e o Senhor o</p><p>ouviu; e o libertou de todas as suas tribulações” (Salmos 34.6). Em Salmos há</p><p>muitas orações semelhantes, e nelas Davi pede a Deus que lhe conceda o que</p><p>pede por esta razão, isto é, que o justo não seja envergonhado, e sim</p><p>encorajado a esperar. Uma passagem é suficiente: “Portanto, que todos os que</p><p>são fiéis orem a ti enquanto podes ser encontrado</p><p>[...]” (Salmos 32.6). Citei a</p><p>passagem porque os delirantes empregam a língua venal em defesa do papado</p><p>e não se envergonham de aduzir a isso em prova da intercessão dos mortos.</p><p>Como se Davi quisesse outra coisa senão mostrar os benefícios obtidos da</p><p>clemência e condescendência divinas quando tiver sido ouvido. Em geral,</p><p>podemos nos apegar à experiência da graça de Deus, para nós mesmos e para</p><p>os outros, o que confirmará nossa fé em suas promessas. Não vou citar as</p><p>muitas passagens nas quais Davi apresenta a graça divina como base para a</p><p>confiança, pois todos os leitores de Salmos delas se lembrarão. Jacó ensinara</p><p>a mesma coisa antes por seu próprio exemplo: “‘não sou digno de toda a</p><p>bondade e lealdade com que trataste o teu servo [...]’” (Gênesis 32.10). Ele de</p><p>fato alega a promessa, mas não apenas a promessa; pois ao mesmo tempo</p><p>acrescenta o efeito, para animá-lo a ter confiança maior na futura bondade</p><p>divina. Deus não é como os homens que se cansam da própria libertinagem;</p><p>ele deve ser estimado por sua natureza, como Davi faz com acerto quando</p><p>diz: “[...] resgata-me, Senhor, Deus da verdade” (Salmos 31.5). Depois de</p><p>atribuir o louvor da salvação a Deus, ele complementa que Deus é</p><p>verdadeiro, pois, se não fosse como é, os favores concedidos no passado não</p><p>seriam a base infalível para a oração confiante. No entanto, quando sabemos</p><p>com que frequência ele nos ajuda, isso demonstra e prova sua bondade e</p><p>fidelidade, de modo que não há motivo para temer que nossa esperança seja</p><p>envergonhada ou frustrada.</p><p>27</p><p>Conclusão: os santos não podem ser invocados sem impiedade.</p><p>Ela: a) Rouba a glória de Deus; b) Destrói a intercessão de Cristo;</p><p>c) Repugna à Palavra de Deus; d) Opõe-se ao método devido</p><p>de oração; e) Não dispõe de exemplo aprovado; f) Flui da falta</p><p>de confiança. Última objeção. Resposta.</p><p>No todo, como as Escrituras colocam a principal parte do culto na</p><p>invocação a Deus (sendo esse o ofício de piedade que ele requer de nós em</p><p>preferência a todos os sacrifícios), é um sacrilégio manifesto oferecer orações</p><p>a outros. Pois é dito no salmo: “Se tivéssemos esquecido o nome do nosso</p><p>Deus e tivéssemos estendido as nossas mãos a um deus estrangeiro, Deus não</p><p>o teria descoberto? Pois ele conhece os segredos do coração!” (Salmos</p><p>44.20,21). Mais uma vez, Deus deseja ser invocado apenas por causa da fé, e</p><p>ele nos insta a que moldemos nossas orações de acordo com a regra da sua</p><p>Palavra: em resumo, como a fé se fundamenta na Palavra, e é a matriz da</p><p>oração correta, nossas orações se tornam impuras no momento em que nos</p><p>afastamos dela. Entretanto, já demonstramos que, se consultarmos o conjunto</p><p>das Escrituras, descobriremos que Deus reclama essa honra apenas para si</p><p>mesmo. Quanto ao ofício de intercessor, vimos que ele é peculiar a Cristo, e</p><p>que nenhuma oração é agradável a Deus, a não ser a santificada pelo</p><p>Mediador. E ainda que os crentes ofereçam orações a Deus a favor dos</p><p>irmãos, vimos que isso em nenhum momento tira as prerrogativas da</p><p>intercessão única de Cristo, pois a confiança está depositada em que eles se</p><p>encomendem a Deus. Mais além, vimos sua transferência, por ignorância,</p><p>para os mortos, a respeito de quem não lemos em nenhum lugar a recepção da</p><p>ordem de orar por nós. As Escrituras sempre nos exortam a que oremos uns</p><p>pelos outros, mas não dizem uma sílaba a respeito dos mortos. Tiago</p><p>tacitamente exclui os mortos quando combina as duas coisas: “Portanto,</p><p>confessem os seus pecados uns aos outros e orem uns pelos outros para serem</p><p>curados [...]” (Tiago 5.16). Isso é suficiente para condenar neste erro, que o</p><p>início da oração certa flui da fé, e que a fé deriva-se de ouvir a Palavra de</p><p>Deus — e nela não há nem uma menção a uma intercessão fictícia, pois é</p><p>superstição adotar intercessores sem serem devidamente apontados. Enquanto</p><p>as Escrituras falam em várias formas de oração, não encontramos exemplo</p><p>dessa intercessão, sem a qual os papistas pensam não haver oração. Ainda</p><p>mais, evidencia-se que a superstição resulta dessa desconfiança, pois não</p><p>estão satisfeitos com Cristo como intercessor ou privaram-no dessa honra. A</p><p>última possibilidade é provada com facilidade por sua afronta ao manter,</p><p>como o argumento mais forte a favor da intercessão dos mortos, que não</p><p>somos dignos de acesso a Deus. Sim, reconhecemos a verdade da afirmação,</p><p>mas daí inferimos que eles não deixam nada para Cristo, porque consideram a</p><p>intercessão dele como nada, a menos que seja suplementada pela intercessão</p><p>de George, Hipólito e outros fantasmas.</p><p>28</p><p>Tipos de oração: votos, súplicas, petições e ações de graças.</p><p>Conexões entre elas, seu uso e necessidades constantes.</p><p>Explicação particular confirmada pela razão, pela Escritura</p><p>e pelo exemplo. Regras para a súplica e ação de graças.</p><p>Mas ainda que a oração esteja confinada com adequação a votos e súplicas,</p><p>é tão forte a afinidade entre a petição e a ação de graças que as duas podem</p><p>ser compreendidas com o mesmo nome. Pois as formas enumeradas por</p><p>Paulo (1Timóteo 2.1) se enquadram na primeira parte da divisão. Pela oração</p><p>e súplica, derramamos nossos desejos diante de Deus, pedindo também as</p><p>coisas que tendem a promover a glória divina e a exaltação do nome de Deus,</p><p>bem como os benefícios contribuintes para nosso bem. Pela ação de graças,</p><p>celebramos, da forma devida, a bondade divina para conosco, atribuindo à</p><p>liberalidade dele toda bênção recebida. Davi inclui os dois aspectos em uma</p><p>sentença: “‘e clame a mim no dia da angústia; eu o livrarei, e você me</p><p>honrará’” (Salmos 50.15). As Escrituras, com razão, nos ordenam a usar as</p><p>duas formas de maneira contínua. Já descrevemos a grandeza do nosso</p><p>desejo, enquanto a experiência proclama que os apuros que nos pressionam</p><p>de todos os lados são tão numerosos e tão grandes a ponto de nos fazerem</p><p>suspirar e gemer sem parar diante de Deus e implorar a ele com súplicas.</p><p>Ainda que fossem isentos de adversidades, mesmo o mais santo deveria ser</p><p>estimulado primeiro pelos próprios pecados e, depois, pelos inumeráveis</p><p>assaltos das tentações, para desejar uma cura. O sacrifício de louvor e ação de</p><p>graças nunca pode ser interrompido sem culpa, pois Deus não cessa de</p><p>derramar sobre nós favor após favor para nos levar à gratidão, não importa</p><p>quão lentos ou preguiçosos sejamos. Em suma, tão grandes e variadas são as</p><p>riquezas de sua liberalidade para conosco, tão maravilhosos e grandiosos os</p><p>milagres que contemplamos em toda parte, que nunca nos faltará assunto e</p><p>material para louvor e ação de graças.</p><p>Para deixar a questão ainda mais clara: como todas as nossas esperanças e</p><p>todos os nossos recursos estão depositados em Deus (isso já foi plenamente</p><p>demonstrado), nem nós mesmos nem nossos interesses podem prosperar sem</p><p>a bênção dele; devemos então submeter a ele com constância o que somos e</p><p>tudo o que possuímos. Independentemente do que deliberarmos, falarmos ou</p><p>fizermos, tudo deve ser deliberado, falado e realizado sob sua mão e vontade,</p><p>ou seja, sob a esperança de sua assistência. Deus pronunciou uma maldição</p><p>sobre quem confia em si mesmo ou em outras pessoas, faz planos e</p><p>resoluções sem considerar a vontade dele ou sem invocar sua ajuda para</p><p>planejar e executar</p><p>(Tiago 4.14; Isaías 30.1; 31.1). Assim, como já se observou, ele recebe a</p><p>honra devida quando é reconhecido como o autor de todo o bem. Segue-se</p><p>que, ao derivar todo o bem das suas mãos, devemos continuamente expressar</p><p>nossa gratidão, pois não temos o direito de usar os benefícios procedentes de</p><p>sua liberalidade se não proclamarmos seu louvor de forma assídua e não lhe</p><p>dermos graças, pois é com essa intenção que os benefícios nos são dados.</p><p>Quando Paulo declara que toda criatura de Deus “é santificad[a] pela</p><p>palavra de Deus e pela oração” (1Timóteo 4.5), ele indica que sem a palavra e</p><p>sem a oração nada é santo e puro, sendo a palavra usada por metonímia para</p><p>designar fé. Davi, ao experimentar a graça do Senhor, declarou com</p><p>elegância: “Pôs um novo cântico na minha boca” (Salmos 40.3); com isso ele</p><p>indica a malignidade de nosso silêncio quando não louvamos a Deus por suas</p><p>bênçãos e</p><p>não enxergamos que cada bênção concedida a nós é motivo de</p><p>nova ação de graças. Por isso Isaías, ao anunciar as singulares misericórdias</p><p>de Deus, diz: “Cantem ao Senhor um novo cântico [...]” (Isaías 42.10). Pela</p><p>mesma forma, Davi diz em outra passagem: “Ó Senhor, dá palavras aos meus</p><p>lábios, e a minha boca anunciará o teu louvor” (Salmos 51.15). De igual</p><p>maneira, Ezequias e Jonas declaram que quando fossem libertados</p><p>“celebrariam a bondade de Deus com canções em seu templo” (Isaías 38.20;</p><p>Jonas 2.1-10). Davi apresenta uma regra para todos os crentes com as</p><p>seguintes palavras: “Como posso retribuir ao Senhor toda a sua bondade para</p><p>comigo? Erguerei o cálice da salvação e invocarei o nome do Senhor”</p><p>(Salmos 116.12,13). A Igreja segue essa regra em outro salmo: “Salva-nos,</p><p>Senhor, nosso Deus! Ajunta-nos dentre as nações, para que demos graças ao</p><p>teu santo nome e façamos do teu louvor a nossa glória” (Salmos 106.47). E</p><p>outra vez: “Escreva-se isto para as futuras gerações, e um povo que ainda será</p><p>criado louvará o Senhor [...]. Assim o nome do Senhor será anunciado em</p><p>Sião e o seu louvor em Jerusalém” (Salmos 102.18,21). Onde quer que os</p><p>cristãos peçam ao Senhor para fazer alguma coisa por causa do seu nome,</p><p>enquanto se declararem indignos de obter o que for em nome deles mesmos,</p><p>eles se obrigam a dar graças e prometem fazer bom uso da graça divina sendo</p><p>seus proclamadores.</p><p>Oseias, falando da futura redenção da Igreja, diz: “[...]’Perdoa todos os</p><p>nossos pecados e, por misericórdia, recebe-nos, para que te ofereçamos o</p><p>fruto dos nossos lábios’” (Oseias 14.2). Não apenas nossa língua proclama a</p><p>bondade divina, mas também nos inspira a amar a Deus: “Eu amo o Senhor,</p><p>porque ele me ouviu quando lhe fiz a minha súplica” (Salmos 116.1). Em</p><p>outra passagem, ao falar da ajuda experimentada, ele disse: “Eu te amo, ó</p><p>Senhor, minha força” (Salmos 18.1). Nenhum louvor jamais agradará a Deus</p><p>se não fluir do amor. Precisamos prestar atenção à declaração de Paulo: todos</p><p>os desejos são viciosos e perversos se não forem acompanhados de ação de</p><p>graças. Suas palavras são: “[...] em tudo, pela oração e súplicas, e com ação</p><p>de graças, apresentem seus pedidos a Deus” (Filipenses 4.6). Muitos,</p><p>influenciados por preguiça, cansaço, impaciência, amargura e medo, usam</p><p>murmurações em suas orações; assim, Paulo nos exorta ao controle de nossos</p><p>sentimentos para bendizermos a Deus com alegria mesmo antes de obter o</p><p>que pedimos. Entretanto, se essa conexão deve subsistir em pleno vigor entre</p><p>coisas quase contrárias, mais sagrado é o laço que nos une para celebrar os</p><p>louvores de Deus sempre que ele atende a nossos pedidos. Como já</p><p>demonstramos, nossas orações, que de outra maneira seriam poluídas, passam</p><p>a ser santificadas pela intercessão de Cristo. Assim, o apóstolo, ao nos exortar</p><p>a oferecer “continuamente a Deus um sacrifício de louvor, que é fruto de</p><p>lábios que confessam o seu nome” (Hebreus 13.15), faz-nos lembrar de que</p><p>sem a intervenção do sacerdócio de Jesus nossos lábios não são puros o</p><p>bastante para celebrar o nome de Deus. Daí se infere o engano monstruoso</p><p>prevalecente entre os papistas, pois a maioria deles se admira quando Cristo é</p><p>chamado de intercessor. A razão pela qual Paulo nos exorta dizendo “orem</p><p>continuamente [e] deem graças em todas as circunstâncias”</p><p>(1Tessalonicenses 5.17,18) se encontra no desejo de que nós dirijamos nossas</p><p>orações a Deus com a maior assiduidade, em todo tempo, em todo lugar, em</p><p>todas as coisas e em todas as circunstâncias. Quando obtidas, sejam</p><p>atribuídas a ele, fornecendo assim base perpétua para oração e louvor.</p><p>29</p><p>As propriedades da oração: particular e pública, constante, em</p><p>épocas determinadas etc. Exceção no tempo de necessidade.</p><p>Orar sem cessar. Sua natureza. Refutação da tagarelice de papistas e</p><p>hipócritas. O escopo e as partes da oração. A oração em segredo.</p><p>Orar em todos os lugares. Oração particular e pública.</p><p>A assiduidade na oração, ainda que se refira em especial às orações</p><p>particulares de indivíduos, se estende também em alguma medida às orações</p><p>públicas da igreja. Estas, deve-se dizer, não podem ser contínuas e não devem</p><p>ser feitas, a não ser da maneira que, pelo bem da ordem, foi estabelecida pelo</p><p>consenso público. Isso eu admito, e como há certas horas previamente</p><p>estabelecidas, horas que, conquanto não façam diferença para Deus, são</p><p>necessárias para o uso do homem, que a conveniência geral possa ser</p><p>consultada, e que todas as coisas sejam feitas na igreja, como Paulo ordena,</p><p>“com decência e ordem” (1Coríntios 14.40). No entanto, não há nada que</p><p>impeça cada igreja de estar agora e sempre movida ao uso mais frequente da</p><p>oração e a ser mais afetada com zelo pelo impulso de alguma necessidade</p><p>maior. Da perseverança na oração, muito próxima da assiduidade, falaremos</p><p>no fim deste capítulo (seçs. 51 e 52). Essa necessidade é muito diferente do</p><p>termo grego battologian (em português, “tagarelar”), repetir a mesma coisa,</p><p>que nosso Salvador proibiu (Mateus 6.7). Ele não nos proíbe de orar muito,</p><p>com frequência, ou grande fervor, mas nos adverte contra a suposição da</p><p>possibilidade de extorquir alguma coisa de Deus pela importunação com o</p><p>falatório tagarela — como se ele pudesse ser persuadido à semelhança dos</p><p>homens. Sabemos que os hipócritas, por não considerarem sua relação com</p><p>Deus, apresentam orações tão pomposas como se integrassem um espetáculo.</p><p>O fariseu, que agradeceu a Deus por não ser como o outro homem,</p><p>proclamou seus louvores diante dos homens, como se desejasse ganhar</p><p>reputação pela santidade ou por suas orações. Assim, a vã repetição, que por</p><p>motivo semelhante prevalece agora no papado — algumas pessoas repetem</p><p>as mesmas orações frívolas o tempo todo —, e outras empregam uma longa</p><p>série de frases para a ostentação vulgar. O falatório infantil é uma zombaria</p><p>em relação a Deus, e não se estranha sua proibição na igreja, para que todo</p><p>sentimento lá expresso seja sincero, procedente do mais fundo do coração.</p><p>Outro abuso também condenado pelo Salvador, próximo deste, ocorre quando</p><p>os hipócritas, por pura ostentação, cortejam a presença de muitas testemunhas</p><p>e preferem orar em lugares públicos e obter aplausos. O verdadeiro objeto da</p><p>oração, como já dissemos (seç. 4 e 5), é levar os pensamentos diretamente a</p><p>Deus para celebrar seu louvor ou implorar sua ajuda; daí se entende com</p><p>facilidade que o lugar primário da oração se encontra na mente e no coração,</p><p>ou, antes, a oração é propriamente uma efusão e manifestação do sentimento</p><p>íntimo diante de quem nos sonda o coração. Eis por que (como já foi dito)</p><p>quando nosso divino Mestre se agradou em apresentar a melhor regra para a</p><p>oração, disse: “‘Mas quando você orar, vá para seu quarto, feche a porta e ore</p><p>a seu Pai, que está em secreto [...]’” (Mateus 6.6). Dissuadindo-nos do</p><p>exemplo dos hipócritas, que buscam o aplauso dos homens pela ostentação</p><p>ambiciosa na oração, ele acrescenta o melhor caminho: entrar no quarto,</p><p>fechar a porta, e lá orar. Por meio dessas palavras (segundo o meu</p><p>entendimento), ele nos ensinou a buscar um lugar de retiro que possa nos</p><p>capacitar a voltar para ele todos os nossos pensamentos e a entrar</p><p>profundamente em nosso coração, prometendo que Deus manteria uma</p><p>conversa com os sentimentos da nossa mente, da qual o corpo é o templo.</p><p>Com isso, ele não disse ser impossível orar também em outros lugares, mas</p><p>demonstra que a oração é de alguma maneira de natureza secreta, tendo o</p><p>principal lugar na mente e exigindo a tranquilidade distanciada dos tumultos</p><p>das preocupações comuns. Eis o motivo pelo qual nosso Senhor, quando ia se</p><p>dedicar com mais intensidade à oração, se retirava para lugares afastados do</p><p>alvoroço do mundo, lembrando-nos assim, por seu exemplo, que não</p><p>devemos negligenciar os auxílios que nos capacitam a mente — disposta por</p><p>si mesma a vaguear — e a se tornar sincera no propósito da oração. Mesmo</p><p>assim, ele não se absteve de orar quando a ocasião o exigiu, ainda que</p><p>estivesse no meio de uma multidão; assim devemos, sempre que necessário,</p><p>levantar “mãos santas” (1Timóteo 2.8) em todos</p><p>os lugares. Por esse motivo,</p><p>acreditamos que quem se recusa a orar nas reuniões públicas dos santos</p><p>desconhece o significado de orar à parte, sozinho ou em casa. Já quem</p><p>negligencia a oração solitária, em particular, ainda que frequente com</p><p>diligência reuniões públicas, ora ao vento, pois se preocupa mais com a</p><p>opinião dos homens que com o juízo secreto de Deus. Para que as orações</p><p>públicas da igreja não fossem desprezadas, o Senhor lhe concedeu</p><p>antigamente a mais honorável denominação, em especial quando chamou o</p><p>templo de “casa de oração” (Isaías 56.7). Por meio dessa expressão, Deus</p><p>lhes mostrou que o dever da oração é a parte principal no culto e que, para</p><p>capacitar os cristãos a se envolverem de maneira voluntária com a oração, o</p><p>templo lhes é apresentado como uma espécie de bandeira. Uma nobre</p><p>promessa foi acrescentada: “O louvor te aguarda em Sião, ó Deus; os votos</p><p>que te fizemos serão cumpridos” (Salmos 65.1). Com essas palavras, o</p><p>salmista nos lembra de que as orações da igreja nunca são vãs, pois Deus</p><p>sempre fornece a seu povo material para uma canção de alegria. Ainda que as</p><p>sombras da Lei tenham cessado, porque Deus se agradou por esta ordem</p><p>manter a unidade da fé também entre nós, não pode haver dúvida de que a</p><p>mesma promessa nos pertence — promessa sancionada por Cristo com os</p><p>próprios lábios e que Paulo declara estar perpetuamente em vigor.</p><p>30</p><p>Sobre os lugares públicos, ou igrejas, em que as orações comunitárias</p><p>são oferecidas. O uso correto pelas igrejas. Abuso.</p><p>Como Deus em sua Palavra ordena a oração comum, os templos públicos</p><p>são lugares destinados à oração, e quem se recusa a se unir ao povo de Deus</p><p>nessa observância não tem base para o pretexto usado, de que entra em seu</p><p>quarto para poder obedecer ao mandamento do Senhor. Pois quem promete</p><p>conceder o desejo de duas ou três pessoas reunidas em seu nome (Mateus</p><p>18.20) declara que de modo algum despreza as orações feitas em público,</p><p>desde que não ocorra ostentação nem a busca de aplauso humano, e que haja</p><p>afeição verdadeira e sincera nos recônditos do coração. Se esse é o uso</p><p>legítimo das igrejas (e sem dúvida é), devemos tomar cuidado com a imitação</p><p>da prática, que começou séculos atrás, de imaginar que as igrejas são</p><p>habitações de Deus, onde ele está mais pronto a nos ouvir, ou de pensarmos</p><p>que há algum tipo de santidade secreta que torna a oração mais santa. Pois,</p><p>sabendo que somos os verdadeiros templos de Deus, oramos em nós mesmos</p><p>se vamos invocar a Deus em seu santo templo. Deixemos as ideias grosseiras</p><p>para os judeus ou para os pagãos, sabendo que temos mandamento de orar</p><p>sem distinção de lugar “em espírito e em verdade” (João 4.23). É verdade que</p><p>por ordem de Deus o templo antigamente era dedicado a orações e sacrifícios,</p><p>mas isso na época em que a verdade (agora plenamente manifesta, não temos</p><p>permissão de confinar a nenhum templo material) estava oculta sob a figura</p><p>de sombras. Mesmo o templo não foi apresentado aos judeus como</p><p>confinamento da presença de Deus em suas paredes; seu objetivo de prepará-</p><p>los para contemplar a imagem do verdadeiro templo. Uma repreensão severa</p><p>foi feita por Isaías e por Estevão aos que pensavam que Deus pudesse de</p><p>alguma maneira habitar em templos feitos por mãos humanas (Isaías 66.2;</p><p>Atos 7.48).</p><p>31</p><p>A respeito de falar e cantar. Isso não ajuda, se não proceder do</p><p>coração. O uso da voz se refere mais à oração pública que à particular.</p><p>Compreende-se daí a clareza perfeita de que nem palavras nem cânticos (se</p><p>usados em oração) são de menor importância ou valem um “i” diante de</p><p>Deus, a não ser que procedam de sentimentos profundos do coração. Antes,</p><p>provocam a ira divina contra nós caso sejam apenas da boca para fora, pois</p><p>isso significa abusar do seu sagrado nome e zombar de sua majestade. Isso se</p><p>infere das palavras de Isaías que, ainda que tenham significado mais amplo,</p><p>repreendeu também o seguinte vício: “[...] ‘Esse povo se aproxima de mim</p><p>com a boca e me honra com os lábios, mas o seu coração está longe de mim.</p><p>A adoração que me prestam é feita só de regras ensinadas por homens’”</p><p>(Isaías 29.13). Não condenamos palavras ou cânticos; antes, os</p><p>recomendamos, desde que sejam apresentados em sinceridade. Pois assim o</p><p>pensamento de Deus é mantido vivo em nossa mente, pensamento que por</p><p>sua natureza volúvel e inconstante logo se enfraquece e é distraído por vários</p><p>assuntos, a não ser que meios sejam usados para ajudá-lo. Além disso, como</p><p>a glória divina deve ser apresentada em todas as partes do nosso corpo, o</p><p>serviço especial ao qual a língua deve ser devotada é o de cantar e falar,</p><p>contanto que pronuncie o que tenha sido expressamente criado para declarar e</p><p>proclamar o louvor de Deus. Esse emprego da língua é principalmente no</p><p>culto público que deve acontecer quando os santos se reúnem. Dessa maneira,</p><p>o Deus a quem servimos em um espírito e uma fé é por nós glorificado como</p><p>se tivéssemos uma única voz e uma única boca; e isso abertamente, para que</p><p>cada um possa receber a confissão da fé de seu irmão, e ser convidado e</p><p>incitado a imitá-la.</p><p>32</p><p>O ato de cantar conta com grande antiguidade,</p><p>mas não é universal. Como realizá-lo.</p><p>Sem dúvida, o uso de cânticos nas igrejas (que mencionei de passagem)</p><p>não é apenas muito antigo, mas também foi usado pelos apóstolos, como</p><p>podemos compreender das palavras de Paulo: “[...] cantarei com o espírito,</p><p>mas também cantarei com o entendimento” (1Coríntios 14.15). Da mesma</p><p>maneira, ele diz aos colossenses: “[...] ensinem e aconselhem-se uns aos</p><p>outros com toda a sabedoria, e cantem salmos, hinos e cânticos espirituais</p><p>com gratidão a Deus em seu coração” (Colossenses 3.16). Na primeira</p><p>passagem, ele nos ordena cantar com a voz e com o coração; na última, ele</p><p>recomenda cânticos espirituais, pelos quais os piedosos se edificam</p><p>mutuamente. No entanto, essa não era a prática universal — como atesta</p><p>Agostinho (Confissões, livro IX, cap. 7) — ao declarar que a igreja de Milão</p><p>começou a usar cânticos no tempo de Ambrósio e que, quando a fé ortodoxa</p><p>era perseguida por Justina, mãe de Valentiniano, as vigílias do povo eram</p><p>mais frequentes que o normal; a prática foi mais tarde seguida pelas outras</p><p>igrejas ocidentais. Pouco antes ele disse que esse costume veio do Oriente. E</p><p>também sugere (Retractationes, livro II) que o costume foi recebido na África</p><p>em seu tempo. Suas palavras são: “Hilário, homem que tinha posição de</p><p>tribuno, atacou com as invectivas mais amargas que conseguiu usar o</p><p>costume que passou a existir em Cartago, de cantar hinos do livro de Salmos</p><p>no altar, seja antes da oferta, seja quando esta era distribuída ao povo; eu lhe</p><p>respondi, a pedido dos meus irmãos”. Se o cantar estiver equilibrado pela</p><p>gravidade conveniente à presença de Deus e dos anjos, ele concederá</p><p>dignidade e graça às ações sagradas, pois tem a capacidade poderosa de</p><p>estimular a mente ao verdadeiro zelo e ardor na oração. Todavia, devemos</p><p>tomar cuidado para que os ouvidos não estejam mais atentos à música que a</p><p>mente ao sentido espiritual das palavras. Agostinho confessa (Confissões,</p><p>livro X, cap. 33) que o medo desse perigo algumas vezes fez que ele</p><p>desejasse a introdução de uma prática observada por Atanásio, que ordenou</p><p>aos leitores usarem apenas uma gentil inflexão de voz, mais próxima à</p><p>recitação que ao cântico. Contudo, mais uma vez, considerando as vantagens</p><p>advindas do canto, estamos inclinados na outra direção. Se houver</p><p>moderação, não há dúvida do caráter sagrado e salutar da prática. No entanto,</p><p>os cânticos compostos apenas para agradar e dar prazer aos ouvidos são</p><p>indignos da majestade da Igreja, e não podem ser agradáveis a Deus.</p><p>33</p><p>As orações públicas devem ser feitas na língua comum, não em um idioma</p><p>estrangeiro. Razão: a) A natureza da Igreja; b) A autoridade do apóstolo. A</p><p>necessidade perene da afeição sincera. A língua nem sempre é necessária.</p><p>Genuflexão, e cobertura da cabeça.</p><p>Também sabemos que as orações públicas não devem ser proferidas em</p><p>grego entre os latinos ou em latim entre os franceses e ingleses (como até o</p><p>momento se pratica), mas</p><p>na língua comum, para que todos os presentes</p><p>possam entendê-las, pois elas devem ser usadas para a edificação de toda a</p><p>igreja — que não será beneficiada nem um pouco por sons não inteligíveis.</p><p>As pessoas que não são movidas por nenhum sentido de humanidade ou</p><p>caridade devem, pelo menos de alguma maneira, ser advertidas pela</p><p>autoridade de Paulo, cujas palavras não são ambíguas: “Se você estiver</p><p>louvando a Deus em espírito, como poderá aquele que está entre os não</p><p>instruídos dizer o ‘Amém’ à sua ação de graças, visto que não sabe o que</p><p>você está dizendo? Pode ser que você esteja dando graças muito bem, mas o</p><p>outro não é edificado” (1Coríntios 14.16,17). Como pode alguém admirar a</p><p>licença desabrida dos papistas, quando o apóstolo protesta contra isso de</p><p>forma pública, e não hesita em prorromper em orações longas em uma língua</p><p>estrangeira, orações nas quais ele mesmo muitas vezes não entende uma</p><p>sílaba, e que não deseja que os outros entendam? Diferente é o que Paulo</p><p>prescreve: “Orarei com o espírito, mas também orarei com o entendimento;</p><p>cantarei com o espírito, mas também cantarei com o entendimento”, querendo</p><p>dizer por espírito um dom especial de línguas, que alguns receberam, mas o</p><p>distorceram quando o dissociaram da mente, isto é, do entendimento. O</p><p>princípio ao qual devemos sempre nos apegar é: que na oração, pública e</p><p>particular, a língua sem a mente torna-se desagradável a Deus. Mais que isso,</p><p>a mente deve ser incitada a ir além do que a língua é capaz de expressar. Por</p><p>fim, a língua não é nem mesmo necessária nas orações particulares, a não ser</p><p>na medida em que o sentimento interno é insuficiente para a incitação ou a</p><p>veemência do incitamento transporta a pronúncia da língua juntamente</p><p>consigo. Pois ainda que as melhores orações sejam algumas vezes proferidas</p><p>sem palavras, quando o sentimento da mente é avassalador, a língua</p><p>espontaneamente irrompe em palavras, e os outros membros do corpo em</p><p>gestos. Daí o murmúrio dúbio de Ana (1Samuel 1.13), algo semelhante ao</p><p>que é experimentado por todos os santos quando expressões concisas e</p><p>abruptas lhes escapam. Os gestos corporais geralmente observados em</p><p>oração, como ajoelhar-se e descobrir a cabeça (Atos 20.36), são exercícios</p><p>pelos quais tentamos nos elevar à mais alta veneração a Deus.</p><p>34</p><p>O modelo da oração apresentado por Cristo demonstra a bondade ilimitada</p><p>do nosso Pai celestial. O grande consolo recebido por ela.</p><p>Devemos agora atentar não apenas para o método mais certo, mas também</p><p>à forma da oração, entregue a nós pelo Pai celestial por intermédio do seu</p><p>Filho amado, mediante a qual podemos reconhecer sua bondade e</p><p>condescendência sem limites (Mateus 6.9; Lucas 11.2). Além de nos</p><p>admoestar e exortar a buscá-lo em todas as nossas necessidades (como os</p><p>filhos se entregam à proteção dos pais quando oprimidos por qualquer</p><p>ansiedade), entendendo que não estávamos tão conscientes de quão grande</p><p>era nossa pobreza, ou o que era certo ou interessante pedirmos, ele</p><p>providenciou, por conta da nossa ignorância, um modelo de oração. Onde</p><p>fracassamos, ele generosamente providenciou. Foi nos dada uma forma que</p><p>nos apresenta em um quadro o que é correto desejar, bom para nossos</p><p>interesses e necessário pedir. Da sua bondade nesse sentido derivamos o</p><p>maior conforto de saber que, quando pedimos usando suas palavras, não</p><p>pedimos nada absurdo, estranho ou sem razão; em suma, nada que não lhe</p><p>seja agradável. Platão, vendo a ignorância dos homens em apresentar seus</p><p>desejos a Deus, deseja que, se os pedidos forem atendidos, estes lhes sejam</p><p>os mais injuriosos, e declara que a melhor forma de oração é a que um antigo</p><p>poeta apresentou: “Ó rei Júpiter, dê o que é melhor, queiramos isto ou não;</p><p>mas livre-nos do que é mal mesmo quando o pedimos” (Alcibíades II). O</p><p>pagão demonstra sabedoria ao discernir quão perigoso é pedir a Deus a</p><p>determinação de nossas paixões; ao mesmo tempo, ele nos lembra de nossa</p><p>condição infeliz por não sermos capazes de abrir os lábios diante de Deus</p><p>sem perigo, a não ser que seu Espírito nos instrua a orar da maneira correta</p><p>(Romanos 8.26). Portanto, o valor mais elevado que devemos ter como</p><p>privilégio é quando o Filho unigênito de Deus põe palavras em nossa boca e</p><p>assim liberta nossa mente de toda hesitação.</p><p>35</p><p>A Oração do Senhor divide-se em seis petições.</p><p>Subdivisão em duas partes principais: a primeira se refere</p><p>à glória de Deus; a segunda, à nossa salvação.</p><p>Essa forma ou regra de oração é composta por seis petições. Posso</p><p>concordar com os que a dividem em sete, pelo modo adversativo de dicção</p><p>usado pelo evangelista, que parece ter pretendido unir duas cláusulas da</p><p>oração em uma só, como se tivesse dito: “Não nos deixeis cair em tentação,</p><p>mas ajuda-nos em nossa fragilidade, e livra-nos para que não caiamos”.</p><p>Escritores antigos concordam conosco: a adição por Mateus da sétima</p><p>cláusula deve ser considerada a explicação da sexta petição. Mas, ainda que o</p><p>primeiro lugar da oração seja designado à glória de Deus, mesmo isso é mais</p><p>especialmente o objeto das três primeiras petições, nas quais devemos ver</p><p>apenas a glória de Deus, sem qualquer referência ao nosso benefício. As três</p><p>petições seguintes são devotadas a nossos interesses e relacionam-se às coisas</p><p>úteis para a petição. Quando pedimos que o nome de Deus seja santificado,</p><p>como Deus deseja provar se o amamos e o servimos livremente ou se por</p><p>promessa de recompensa, não devemos pensar em absoluto em nossos</p><p>interesses. Nas outras petições semelhantes, essa é a única maneira pela qual</p><p>devemos ser afetados. É verdade que dessa maneira nossos interesses são</p><p>bastante promovidos, pois, quando o nome de Deus é santificado da maneira</p><p>pedida, nossa santificação é também promovida. Mas com respeito a esse</p><p>benefício, devemos, como já disse, fechar os olhos e ficarmos cegos de certa</p><p>forma, para não o vermos; e, estando eliminadas todas as esperanças das</p><p>vantagens pessoais, ainda assim não devemos cessar de desejar e orar pela</p><p>santificação e por tudo mais que pertence à glória de Deus. Temos exemplos</p><p>em Moisés e em Paulo: eles não consideraram difícil desviar o olhar e os</p><p>pensamentos de si mesmos, e com intenso e fervente zelo desejar a morte, se</p><p>por meio da perda o Reino e a glória de Deus pudessem ser promovidos</p><p>(Êxodo 32.32; Romanos 9.3). Quando pedimos o pão diário, ainda que</p><p>desejemos o que é vantajoso para nós mesmos, devemos também buscar em</p><p>especial a glória divina, a ponto de não pedirmos nada que não seja para a</p><p>glória de Deus. Prossigamos agora para uma exposição da oração.</p><p>Pai nosso, que estás nos céus.</p><p>36</p><p>O uso do termo Pai implica: a) A oração a Deus de forma</p><p>exclusiva em nome de Cristo; b) Deixar de lado toda a falta de</p><p>confiança; c) A esperança de todas as coisas para o nosso bem.</p><p>A primeira sugestão, feita logo no início, é, tal como já dissemos (seç. 17-</p><p>19), que todas as nossas orações a Deus devem ser apresentadas apenas em</p><p>nome de Cristo, pois não há outro nome que as possa recomendar. Ao chamar</p><p>Deus de Pai, com certeza pedimos em nome de Cristo. Pois com que</p><p>confiança poderia qualquer homem chamar Deus de Pai? Quem teria a</p><p>presunção de se arrogar a honra de filho de Deus, a não ser que fôssemos</p><p>graciosamente adotados como seus filhos em Cristo? Sendo ele o verdadeiro</p><p>Filho, ele nos foi dado como irmão, de modo que o que ele possui por</p><p>natureza se torne nosso por adoção, se abraçarmos essa grande misericórdia</p><p>com fé firme. Pois como João diz: “Contudo, aos que o receberam, aos que</p><p>creram em seu nome, deu-lhes o direito de se tornarem filhos de Deus” (João</p><p>1.12). Por conseguinte, ele se chama nosso Pai, e se agrada em ser assim</p><p>chamado por nós, para que por esse nome agradável sejamos libertos de toda</p><p>falta de confiança, pois em nenhum lugar se pode encontrar afeição mais</p><p>forte que no pai. Também ele não poderia nos ter dado testemunho mais forte</p><p>de seu amor ilimitado que em nos chamar de filhos. Mas seu amor a nós é tão</p><p>maior e mais excelente que o dos pais terrenos, pois ele em muito ultrapassa</p><p>todos os homens em bondade e misericórdia (Isaías 63.16). Os</p><p>pais terrenos,</p><p>deixando de lado todos os afetos paternais, são capazes de abandonar os</p><p>filhos; Deus, no entanto, nunca nos abandonará (Salmos 27.10), visto que não</p><p>pode negar a si mesmo. Pois nós temos sua promessa: “‘Se vocês, apesar de</p><p>serem maus, sabem dar boas coisas aos seus filhos, quanto mais o Pai de</p><p>vocês, que está nos céus, dará coisas boas aos que lhe pedirem!’” (Mateus</p><p>7.11). O profeta disse algo parecido: “‘Haverá mãe que possa esquecer seu</p><p>bebê que ainda mama e não ter compaixão do filho que gerou? Embora ela</p><p>possa esquecê-lo, eu não me esquecerei de você!’” (Isaías 49.15). Contudo,</p><p>se somos seus filhos, como o filho não se entrega à proteção de um estranho</p><p>sem ao mesmo tempo reclamar da crueldade ou pobreza do seu pai, nós não</p><p>podemos pedir ajuda a nenhum outro que não ele, a menos que queiramos</p><p>acusá-lo de pobreza, descuido, crueldade ou austeridade excessiva.</p><p>37</p><p>Objeção: nossos pecados nos excluem da presença daquele a quem</p><p>constituímos Juiz, não Pai. Resposta com base na natureza de Deus</p><p>(descrita por um apóstolo), da parábola do filho pródigo</p><p>e da expressão Pai nosso. Cristo, o zeloso da nossa adoção;</p><p>o Espírito Santo, a testemunha.</p><p>Não aleguemos timidez por causa da consciência do pecado, pelo qual</p><p>nosso Pai, ainda que bondoso e misericordioso, se sente ofendido todos os</p><p>dias. Pois se entre os homens o filho não pode ter advogado melhor para</p><p>pleitear sua causa que seu pai, e não terá intercessor melhor para reconquistar</p><p>seu favor perdido, mesmo que ele se torne um suplicante abatido por</p><p>reconhecer a própria falta, desanimado até para implorar a misericórdia do</p><p>pai, cujos sentimentos paternais não podem ser movidos por tais rogos, o que</p><p>fará o “Pai das misericórdias e Deus de toda consolação” (2Coríntios 1.3)?</p><p>Não atentará ele para as lágrimas e os gemidos dos filhos que suplicam por si</p><p>mesmos (em especial quando veem que ele os convida e os exorta a assim</p><p>fazer), mais que qualquer outro advogado a quem os tímidos podem recorrer,</p><p>não sem alguma aparência de desespero, porque eles não confiam na bondade</p><p>e clemência do pai? A exuberância do seu cuidado paternal lhes é apresentada</p><p>na parábola (Lucas 15.20), quando o pai com braços abertos recebe o filho</p><p>que se afastara dele, e gastara seu sustento em uma vida suja, e de todas as</p><p>maneiras pecou de modo terrível contra ele. Ele não espera que o perdão seja</p><p>pedido com palavras, mas, antecipando o pedido, o reconhece ao longe, corre</p><p>ao seu encontro, o consola e restaura seu favor. Ao nos apresentar o</p><p>admirável exemplo de brandura em um homem, ele determinou mostrar quão</p><p>maior abundância podemos esperar dele que não é apenas um Pai, mas o</p><p>melhor e mais misericordioso de todos os pais, a despeito de quão ingratos,</p><p>rebeldes e ímpios filhos sejamos, desde que nos entreguemos à sua</p><p>misericórdia. E a melhor garantia que temos é que ele é como um pai, se</p><p>somos cristãos; ele se agradou de ser chamado não apenas Pai, mas Pai nosso,</p><p>como se pedíssemos a ele da seguinte maneira: Ó Pai, que tens tanta afeição</p><p>por teus filhos, estás tão pronto a perdoar, nós, teus filhos, nos aproximamos</p><p>de ti e apresentamos nossos pedidos, completamente persuadidos de que não</p><p>tens outro sentimento para conosco que o de um pai, ainda que não sejamos</p><p>dignos de um pai assim. Mas como nosso coração pequeno é incapaz de</p><p>compreender favor tão ilimitado, Cristo é não apenas a garantia da nossa</p><p>adoção, mas também nos dá o Espírito como testemunha da adoção, para que</p><p>por meio dele possamos clamar em voz alta e com liberdade “Aba, Pai”. Por</p><p>conseguinte, sempre que estivermos oprimidos por qualquer sentimento de</p><p>hesitação, lembremo-nos de pedir a ele que corrija nossa timidez e nos ponha</p><p>sob a orientação magnânima do Espírito, que nos capacita a orar com</p><p>ousadia.</p><p>38</p><p>Porque Deus é chamado Pai nosso de forma geral.</p><p>Entretanto, a instrução que nos foi dada não é que cada indivíduo em</p><p>particular o chame Pai, mas que todos em comum o chamemos Pai nosso.</p><p>Assim, somos lembrados de quão forte sentimento de amor fraternal deve</p><p>haver entre nós, pois somos todos, pela mesma misericórdia e livre bondade,</p><p>filhos do Pai. Pois se ele, de quem todos obtemos tudo que é bom, é o nosso</p><p>Pai comum (Mateus 23.9), tudo que foi distribuído a nós deve ser</p><p>comunicado aos outros, assim que a ocasião solicitar. Mas, se estivermos</p><p>desejosos de estender as mãos e ajudar uns aos outros, não há nada pelo qual</p><p>possamos beneficiar mais nossos irmãos que entregá-los ao cuidado e à</p><p>proteção do melhor dos pais, pois não podemos desejar nada melhor se ele</p><p>nos é propício e favorável. E, de fato, também devemos isso a nosso Pai.</p><p>Pois, como quem ama de verdadeira e de todo o coração o pai da família, essa</p><p>pessoa estende o mesmo amor e a boa vontade em relação a toda a sua casa,</p><p>para que o zelo e a afeição sentidos em relação ao Pai celeste sejam</p><p>estendidos a seu povo, sua família, e, por fim, à sua herança — tão honrada</p><p>por ele a ponto de lhes conceder a designação da “plenitude” do Filho</p><p>unigênito (Efésios 1.23). Que dessa maneira os cristãos modelem sua oração</p><p>para torná-la comum e abracem todos os irmãos em Cristo; não apenas os que</p><p>no presente podem ser vistos e identificados, mas todos os homens vivos</p><p>sobre a terra. O que Deus determinou com respeito a eles é piedoso e</p><p>humano. Devemos considerar em especial os da família da fé, a quem o</p><p>apóstolo recomendou expressamente que devemos cuidar em tudo (Gálatas</p><p>6.10). Em resumo, todas as nossas orações devem se referir à comunidade</p><p>estabelecida por nosso Senhor em seu Reino e família.</p><p>39</p><p>Podemos orar de modo especial por nós mesmos e por outras pessoas,</p><p>conquanto tenhamos em mente a referência geral a todos.</p><p>Isso não nos impede de orarmos de forma específica por nós mesmos e</p><p>pelos outros, desde que não percamos de vista a comunidade, mas a ela</p><p>sempre façamos referência. Pois as orações, ainda que veiculadas em termos</p><p>especiais, mantendo seu objeto em vista, nunca deixam de ser comuns. Tudo</p><p>isso pode ser facilmente entendido por analogia. Há o mandamento geral de</p><p>Deus para socorrer as necessidades de todos os pobres, e o mandamento é</p><p>obedecido pelos que com essa visão socorrem todos os que veem ou sabem</p><p>que estão em crise, ainda que deixem de lado pessoas cujas necessidades não</p><p>são menos urgentes — por ignorância ou incapacidade de ajudar de um modo</p><p>ou de outro. Nesse sentido, não há nada repugnante à vontade de Deus em</p><p>quem formula orações particulares, tendo em vista a sociedade comum da</p><p>igreja, orações nas quais, publicamente, ainda que em termos especiais,</p><p>recomendem a Deus, ou aos outros, as necessidades das quais se agradou</p><p>tornar conhecidas.</p><p>É verdade que a oração e a entrega do nosso ser não são iguais em tudo.</p><p>Podemos apenas conceder a bondade da nossa liberdade às pessoas de cujas</p><p>necessidades estamos cientes, ainda que em oração possamos ajudar</p><p>estranhos, não importa quão longe estejamos deles. Faz-se isso pela forma</p><p>geral de oração que, incluindo todos os filhos de Deus, nos inclui também. A</p><p>exortação de Paulo aos cristãos dos seus dias para levantar “mãos santas, sem</p><p>ira e sem discussões” (1Timóteo 2.8) é semelhante. Ao lembrar-lhes que a</p><p>dissensão consiste em uma barreira à oração, ele demonstra o desejo de que</p><p>eles façam suas orações de comum acordo.</p><p>40</p><p>Em que sentido se diz que Deus está no céu.</p><p>O uso tríplice da doutrina para nosso consolo. Três causas.</p><p>Resumo do prefácio da Oração do Senhor.</p><p>As palavras seguintes são que estás nos céus. Não devemos daí inferir que</p><p>ele está enclausurado e confinado na circunferência do céu, como que por um</p><p>tipo de limite. Pois Salomão confessa: “‘[...] Os céus, mesmo os mais altos</p><p>céus, não podem conter-te [...]’” (1Reis 8.27), e o próprio Deus por</p><p>intermédio do profeta diz: “[...] ‘O céu é o meu trono; e a terra, o estrado dos</p><p>meus pés [...]’” (Isaías 66.1); assim ele afirma que sua presença não está</p><p>confinada a nenhuma região, e Deus se encontra em todo o espaço. Contudo,</p><p>nossa mente grosseira é incapaz de conceber sua glória inefável, designada</p><p>pela palavra céu, pois nada que nossos olhos</p><p>podem contemplar é tão repleto</p><p>de esplendor e majestade. Considerando-se nosso costume com os objetos</p><p>confinados ao lugar discernido por nossos sentidos, nenhum lugar pode ser</p><p>designado para Deus; por conseguinte, caso o busquemos, devemos nos</p><p>elevar acima de todo o discernimento corpóreo e mental. Mais uma vez, a</p><p>expressão nos lembra de que ele se encontra muito além do alcance de</p><p>variação ou corrupção, pois ele sustém todo o Universo com sua mão e a tudo</p><p>governa com seu poder. Portanto, o efeito da expressão é idêntico à</p><p>afirmação de sua majestade infinita, essência incompreensível, poder</p><p>ilimitado e duração eterna. Quando falamos a respeito de Deus dessa</p><p>maneira, nossos pensamentos devem ser elevados ao máximo; não lhe</p><p>devemos atribuir nada terrestre ou de natureza carnal, nem medi-lo por</p><p>nossos padrões diminutos, ou supor que a vontade dele seja como a nossa. Ao</p><p>mesmo tempo, devemos depositar nele nossa confiança, entender que o céu e</p><p>a terra são governados por sua providência e por seu poder. Em resumo, sob</p><p>o nome do Pai somos informados de que Deus, manifestado a nós em sua</p><p>própria imagem, pode ser por nós invocado com fé confiante; o nome Pai não</p><p>foi concedido apenas para inspirar em nós confiança, mas também para frear</p><p>nossa mente e impedi-la de seguir deuses fictícios ou imaginários. Assim,</p><p>ascendemos do Filho unigênito ao supremo Pai dos anjos e da Igreja. Seu</p><p>trono está fixado nos céus; portanto, não é em vão que nos aproximamos</p><p>dele, cujos cuidados experimentamos de fato. “Aquele que se aproxima de</p><p>Deus”, diz o apóstolo, “precisa crer que ele existe e que recompensa aqueles</p><p>que o buscam” (Hebreus 11.6). Cristo clama ao Pai, em primeiro lugar, para</p><p>que depositemos nossa fé nele, e em segundo, para que estejamos seguros de</p><p>que nossa salvação não é negligenciada por ele, pois Deus se compraz em nos</p><p>estender sua providência. Por meio desses princípios elementares, Paulo nos</p><p>prepara para orar com correção; pois antes de dizer da necessidade de tornar</p><p>nossos pedidos conhecidos a Deus, ele afirma: “[...] está o Senhor. Não</p><p>andem ansiosos por coisa alguma [...]” (Filipenses 4.5,6). Daí se conclui que</p><p>a dúvida e a perplexidade pairam sobre as orações das pessoas cuja mente</p><p>não conta com a crença firmemente estabelecida de que “Os olhos do Senhor</p><p>voltam-se para os justos” (Salmos 34.15).</p><p>41</p><p>A necessidade da primeira petição: prova da nossa injustiça.</p><p>O significado do nome de Deus. Como ele é santificado. Partes da</p><p>santificação. Lamento pelos pecados que profanam o nome de Deus.</p><p>A primeira petição é: Santificado seja o teu nome. A necessidade de</p><p>apresentar a petição indica nossa grande desgraça. O que pode ser mais</p><p>descabido que nossa ingratidão e malícia, nossa audácia e petulância serem</p><p>tais, a ponto de querer destruir a glória de Deus? No entanto, mesmo que</p><p>todos os ímpios irrompam com fúria sacrílega, a santidade do nome de Deus</p><p>ainda resplandece. O salmista exclama: “Como o teu nome, ó Deus, o teu</p><p>louvor alcança os confins da terra [...]” (Salmos 48.10). Onde Deus se faz</p><p>conhecido, suas perfeições devem ser expostas; seu poder, bondade,</p><p>sabedoria, justiça, misericórdia e verdade nos enchem de admiração e nos</p><p>incitam a manifestar seu louvor. Portanto, como o nome de Deus não é</p><p>devidamente santificado na terra — e nós não temos condições de fazê-lo —,</p><p>nossa obrigação consiste em, pelo menos, fazer que ele seja objeto das nossas</p><p>orações. O resumo de tudo isso é: devemos desejar que Deus receba a honra</p><p>devida, e os homens nem sequer pensem em falar dele sem a maior</p><p>reverência. O oposto da reverência é a profanidade, sempre comum no</p><p>mundo, e prevalecente hoje em dia. Daí a necessidade da petição, incabível se</p><p>a piedade existisse de fato em nosso meio. Porém, se o nome de Deus é</p><p>santificado da forma devida apenas ao ser separado dos demais nomes,</p><p>suplicamos não apenas que Deus vindique seu nome santo de todo desprezo e</p><p>insulto, mas também que ele leve toda a raça humana a reverenciá-lo. Pois</p><p>Deus se nos manifesta em parte por sua Palavra e, em parte, por suas obras.</p><p>Ele não é santificado, a não ser que atribuamos a ele o que lhe é devido, e</p><p>assim recebamos tudo que provém dele, dando louvor igualmente à sua</p><p>justiça e misericórdia. Na diversidade manifesta de suas obras, ele inscreveu</p><p>as marcas de sua glória, e deve receber de cada língua o louvor por tudo que</p><p>fez. Assim, as Escrituras manterão a devida autoridade sobre nós, e nada nos</p><p>impedirá de celebrar os louvores de Deus, em relação a todo o seu domínio.</p><p>A petição implica o desejo do perecimento e extinção de toda a impiedade</p><p>poluente do nome sagrado, e a cessação de tudo que obscurece ou prejudica</p><p>sua glória, o fim de todo insulto, a supressão de toda blasfêmia e a</p><p>manifestação cada vez maior da majestade divina.</p><p>42</p><p>Distinção entre a primeira e a segunda petições. O que é o Reino de</p><p>Deus. Como ele deve vir. Exposição especial da petição. Ela nos faz</p><p>lembrar de três coisas. O advento do Reino de Deus ao mundo.</p><p>A segunda petição é: Venha o teu Reino. Não há aqui nada de novo, mas</p><p>mesmo assim há boa razão para distingui-la da primeira. Pois, se levarmos</p><p>em conta nossa letargia no mais importante de todos os assuntos, veremos</p><p>como é necessário que o que deveria ser, em si, perfeitamente conhecido</p><p>precise ser inculcado com mais extensão. Por isso, depois de recebermos o</p><p>mandamento de pedir que Deus sujeite e, por fim, destrua por completo tudo</p><p>que mancha seu nome santo, adiciona-se outra petição, contendo quase o</p><p>mesmo desejo, a saber: “Venha o teu Reino”. A definição do Reino já foi</p><p>apresentada. Agora repetirei de forma resumida que Deus reina quando os</p><p>homens, negando a si mesmos e desprezando o mundo e esta vida terrena,</p><p>devotam-se à justiça e desejam o céu. Assim, o Reino consiste em duas</p><p>partes: a primeira ocorre quando Deus corrige todos os desejos depravados da</p><p>carne, que guerreiam contra ele, pela ação de seu Espírito; a segunda, quando</p><p>ele trouxer todos os nossos pensamentos em obediência à sua autoridade.</p><p>Logo, a petição se apresenta de forma devida só por quem começa por si</p><p>mesmo; em outras palavras, quem ora para ser purificado de todas as</p><p>corrupções prejudiciais à tranquilidade e pureza do Reino de Deus. Então,</p><p>como a Palavra divina representa seu cetro real, recebemos a ordem de orar</p><p>para que ele nos subjugue a mente e o coração para a obediência voluntária.</p><p>Isso ocorre quando ele apresenta a eficácia de sua Palavra pela inspiração</p><p>secreta do seu Espírito e a eleva ao merecido lugar de honra. Precisamos,</p><p>depois disso, ir até os ímpios, que com perversidade e loucura desesperada</p><p>resistem à sua autoridade. Portanto, Deus estabelece seu Reino ao humilhar o</p><p>mundo todo, ainda que em diferentes maneiras, domando a luxúria de alguns,</p><p>quebrando o orgulho ingovernável de outros. Deveríamos desejar sua</p><p>ocorrência todos os dias, para que Deus reúna as igrejas para si mesmo de</p><p>todos os cantos do mundo, fazendo que cresçam em número e sejam</p><p>enriquecidas com seus dons e entre elas estabeleça a sua ordem; além disso,</p><p>que ele castigue todos os inimigos da doutrina e da religião pura, dissipe seus</p><p>planos e destrua seus esforços. Conclui-se daí haver boa base para o preceito</p><p>que ordena o progresso diário, pois os esforços humanos nunca prosperam</p><p>tanto quando as impurezas do vício são purgadas e a integridade floresce em</p><p>pleno vigor. Mas sua completude se dará no advento final de Cristo, como</p><p>Paulo declarou: “[...] Deus seja tudo em todos” (1Coríntios 15.28). Essa</p><p>oração, por conseguinte, deve nos retirar das corrupções do mundo que nos</p><p>separam de Deus e impedem o florescimento de seu Reino entre nós; em</p><p>segundo lugar, deve nos inflamar com o desejo ardente da mortificação da</p><p>carne; por fim, deve nos ensinar a suportar a cruz; pois o progresso do Reino</p><p>de Deus se dará assim. Não devemos nos preocupar se o homem exterior</p><p>decair e se o homem interior for renovado. Eis a natureza do Reino de Deus:</p><p>enquanto nos submetemos à sua justiça, ele nos faz participantes de sua</p><p>glória. Assim se propagam a sua luz e a sua verdade de forma contínua,</p><p>e as</p><p>mentiras e as trevas de Satanás e seu reino são dissipadas, se extinguem e são</p><p>destruídas. Deus protege seu povo e o guia pela ação do seu Espírito, e o</p><p>confirma em perseverança, e ao mesmo tempo frustra as conspirações ímpias</p><p>dos inimigos, dissipa seus enganos e fraudes, impede sua malícia e freia sua</p><p>petulância até que por fim destrua o anticristo “com o sopro de sua boca” e</p><p>destrua toda impiedade “pela manifestação de sua vinda” (2Tessalonicenses</p><p>2.8).</p><p>43</p><p>Distinção entre a segunda e a terceira petições. A vontade aqui não</p><p>significa a vontade secreta ou o beneplácito de Deus, mas a vontade</p><p>manifestada na Palavra. Conclusão das três primeiras petições.</p><p>A terceira petição é: Seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu.</p><p>Ainda que isso dependa do Reino, e não possa ser desvinculado dele, ele não</p><p>recebe um lugar separado, de forma indevida, por conta de nossa ignorância,</p><p>incapaz de apreender com facilidade, e de uma vez só, o significado da</p><p>afirmação “Deus reina no mundo”. Isso, portanto, não deve ser tomado</p><p>inadequadamente como a explicação de que Deus será o Rei do mundo</p><p>quando todos se submeterem à sua vontade. Não tratamos aqui do segredo</p><p>pelo qual ele governa todas as coisas e as destina a seu fim (cf. cap. 24, seç.</p><p>17). Pois, ainda que demônios e homens se levantem em tumulto contra ele,</p><p>Deus é capaz, por seu incompreensível conselho, não apenas de destruir a</p><p>violência, mas de torná-la subserviente à execução dos seus decretos.</p><p>Falamos aqui a respeito da outra vontade de Deus: a que consiste no</p><p>contraponto da obediência voluntária. Por conseguinte, o céu é</p><p>expressamente contrastado com a terra, pois, como se diz em Salmos, os</p><p>anjos “obedecem à sua palavra” (Salmos 103.20). Portanto, somos ordenados</p><p>a orar para que tudo que é feito no céu por ordem de Deus, com os anjos</p><p>sempre dispostos a fazer o que é certo, seja realizado na terra sob a mesma</p><p>autoridade, e que toda rebelião e depravação sejam extintas. Ao apresentar</p><p>esse pedido, renunciamos aos desejos da carne, pois quem não submete por</p><p>completo as afeições a Deus faz o oposto à vontade divina — tudo que</p><p>procede de nós é vicioso. Mais uma vez, somos ensinados por essa oração a</p><p>negar a nós mesmos para que Deus nos governe de acordo com sua vontade.</p><p>Não apenas isso, mas, tendo aniquilado nossos pensamentos, possa criar</p><p>novos pensamentos e nova mentalidade para que não tenhamos outro desejo</p><p>senão a conformidade absoluta com sua vontade. Em resumo, não desejar</p><p>nada de nós mesmos, mas ter o coração governado por seu Espírito, sob cuja</p><p>orientação interna aprendemos a amar o que agrada a Deus e a detestar o que</p><p>lhe desagrada. Deve-se então almejar o que anula e suprime os desejos</p><p>repugnantes à vontade divina.</p><p>Estes são os três primeiros tópicos da oração, e ao apresentá-los se deve ter</p><p>em mente apenas a glória de Deus, não levando em conta a nós mesmos, nem</p><p>considerando nossas vantagens — as quais, ainda que sejam bastante</p><p>promovidas, não devem neste momento constituir o objeto da nossa petição.</p><p>Ainda que tudo pelo qual oramos aconteça no devido tempo, mesmo que</p><p>nada peçamos ou nem pensemos a seu respeito, é nossa obrigação orar e</p><p>pedir. Não é de somenos importância que assim façamos, para podermos</p><p>testificar e professar nossa condição de servos e filhos de Deus, desejosos de,</p><p>por todos os meios a nosso alcance, promover a honra devida a nosso Senhor</p><p>e Pai e nos devotarmos, com confiança, a seu serviço. Se os homens — ao</p><p>orar pedindo a santificação do nome de Deus, a vinda do Reino e a realização</p><p>da sua vontade — não o fazem pelo desejo de lhe promover a glória, não</p><p>devem ser considerados entre os servos e filhos de Deus, e tudo acontecerá</p><p>contra a vontade deles, para que se voltem de sua confusão e destruição.</p><p>44</p><p>O resumo da segunda parte da Oração do Senhor. Três petições.</p><p>O que está contido na primeira. Declaração da bondade sobejante</p><p>de Deus e da nossa falta de confiança. O que pão quer dizer.</p><p>O motivo de o pedido de pão preceder o do perdão de pecados.</p><p>A razão de ele se chamar nosso. Por que buscá-lo hoje, ou todos</p><p>os dias. A doutrina resultante dessa petição, ilustrada por um</p><p>exemplo. Duas classes de homens pecam em relação a essa petição.</p><p>Em que sentido se pode dizer pão nosso. A causa de pedirmos a</p><p>Deus que ele o dê a nós.</p><p>Vem agora a segunda parte da oração; nela descemos aos nossos</p><p>interesses, não para que percamos de vista a glória de Deus (à qual, Paulo</p><p>declara, devemos ter respeito até por questões de comida e bebida, 1Coríntios</p><p>10.31) e peçamos apenas o que nos é necessário, mas a distinção, como já</p><p>observamos, é a seguinte: Deus declara as três primeiras petições</p><p>pertencentes a ele e assim nos atrai a si mesmo, para que assim possamos</p><p>provar nossa piedade. Depois ele nos permite olhar para nossos benefícios,</p><p>mas ainda sob uma condição, a saber, quando pedirmos algo para nós</p><p>mesmos, será para que todos os benefícios concedidos manifestem a glória</p><p>divina, pois não temos obrigação maior que viver e morrer por ele.</p><p>Pela primeira petição da segunda parte, Dá-nos hoje o nosso pão de cada</p><p>dia, oramos em geral para que Deus nos dê todo o necessário ao corpo na</p><p>nossa condição atual, não apenas comida e roupas, mas tudo que ele sabe que</p><p>nos ajudará a comer o pão em paz. Lançamos sobre ele nossas preocupações</p><p>e nos entregamos à sua providência, para que ele possa nos alimentar,</p><p>proteger e preservar. Pois nosso Pai celestial não desdenha cuidar do nosso</p><p>corpo e protegê-lo, para que nossa fé seja exercitada nessas questões</p><p>pequeninas, enquanto o buscamos para tudo, mesmo uma fatia de pão e um</p><p>gole de água. Pois, em razão de uma estranha desigualdade, preocupamo-nos</p><p>mais com o corpo que com a alma, e muitos que entregam a alma a Deus</p><p>continuam ansiosos pelas questões do corpo, temerosos de não ter o que</p><p>comer, bem como quanto ao que vestirão, e tremem de medo, a não ser que</p><p>tenham as mãos cheias de milho, vinho e azeite (Salmos 4.8). Então muito</p><p>mais valor damos a esta vida sombria e passageira que à imortalidade</p><p>bendita. Mas quem confia em Deus lança fora toda ansiedade quanto à carne</p><p>e o busca para receber dádivas ainda maiores, como a salvação e a vida</p><p>eterna. Logo, não é um pequeno exercício de fé esperar em Deus por coisas</p><p>que, de outro modo, nos dariam muita preocupação; nem fizemos pouco</p><p>progresso quando nos livramos da descrença, que nos fere até os ossos.</p><p>A especulação de alguns concernente ao pão para a subsistência não está</p><p>nem um pouco de acordo com o ensino do Salvador; pois nossas orações</p><p>seriam defeituosas se não buscássemos de Deus até a nutrição da vida</p><p>passageira. A razão da dúvida é profana, incoerente com o caráter dos filhos</p><p>de Deus, que deve ser caráter espiritual, não apenas para ocupar a mente com</p><p>preocupações terrenas, mas para imaginar que Deus também se ocupa delas.</p><p>Como se sua bênção e seu favor paternal não fossem apresentados ao nos dar</p><p>o alimento, ou como se não houvesse uma declaração de que a piedade tem a</p><p>“promessa da vida presente e da futura” (1Timóteo 4.8). Mas, ainda que o</p><p>perdão dos pecados seja muito mais importante que a nutrição do corpo,</p><p>Cristo pôs o inferior em primeiro lugar, para assim nos elevar de modo</p><p>gradual às duas outras petições, que pertencem propriamente à vida celestial</p><p>— dessa maneira providenciando para nossa preguiça. Somos ordenados a</p><p>pedir pelo nosso pão, para que estejamos contentes com a medida que nosso</p><p>Pai celestial se agradou em nos conceder, e para que não tentemos conseguir</p><p>as coisas por meios ilícitos. Ao mesmo tempo, devemos nos apegar a fato de</p><p>que tudo isso é nosso por doação, porque, como Moisés afirma (Levítico</p><p>26.20; Deuteronômio 8.17), nosso esforço, trabalho e mãos nada adquirem</p><p>para nós mesmos, a não ser que a bênção divina esteja presente; mesmo o pão</p><p>sobejante não teria utilidade se Deus não o transformasse para nossa nutrição.</p><p>E essa liberalidade de Deus não é menos necessária para o rico que para o</p><p>pobre, pois, ainda que os celeiros e armazéns deles estejam repletos, eles</p><p>ressecariam e ficariam ansiosos por suas necessidades se não</p><p>mais forte</p><p>sentiam a motivação para a oração. Será suficiente fazer referência ao</p><p>exemplo de Elias, que, estando seguro do propósito divino de cumprir a</p><p>promessa de chuva dada a Acabe, assim mesmo orou ansiosamente de</p><p>joelhos e enviou seu servo sete vezes para ver o que estava acontecendo</p><p>(1Reis 18.42); não que ele desacreditasse do oráculo, mas por saber que era</p><p>sua obrigação apresentar o desejo na presença de Deus, para que sua fé não</p><p>ficasse sonolenta nem entorpecida. Por conseguinte, conquanto seja verdade</p><p>que, enquanto somos indiferentes ou insensíveis à nossa desgraça, ele nos</p><p>acorda e nos vigia e algumas vezes nos ajuda mesmo que não tenhamos</p><p>pedido. É bom para nós que supliquemos sempre. Em primeiro lugar, para</p><p>que nosso coração sempre se inflame com o desejo sério e ardente de buscá-</p><p>lo, amá-lo e servi-lo, enquanto nos habituamos a procurar seu auxílio como</p><p>uma âncora sagrada em toda necessidade; segundo, para que nenhum desejo,</p><p>nenhuma vontade — da qual nos envergonhemos na presença dele — possa</p><p>penetrar na nossa mente, enquanto aprendemos a depositar todos os nossos</p><p>desejos em sua presença e a derramar nosso coração diante dele; e que, por</p><p>fim, estejamos preparados para receber todos os seus benefícios com</p><p>verdadeira gratidão, enquanto nossas orações nos fazem lembrar de que tudo</p><p>procede de suas mãos. Além disso, tendo obtido o que pedimos, sejamos</p><p>persuadidos de que ele respondeu às nossas orações, sejamos conduzidos a</p><p>desejar seu favor de modo mais ardente e, ao mesmo tempo, ter maior prazer</p><p>em receber as bênçãos — cuja obtenção percebemos serem respostas às</p><p>nossas orações. Por fim, a prática e a experiência confirmam o pensamento de</p><p>sua providência em nossa mente, de maneira adaptada à nossa fraqueza,</p><p>quando ele não apenas promete que nunca falhará conosco, e com</p><p>espontaneidade nos concede acesso para a aproximação dele em todo</p><p>momento de necessidade, e que sua mão tem sido estendida para auxiliar seu</p><p>povo, não para diverti-lo com palavras, mas demonstrando ser ele um auxílio</p><p>presente. Por essas razões, ainda que nosso misericordioso Pai jamais cochile</p><p>nem durma, parece que isto acontece, para que ele possa nos exercitar,</p><p>quando de outra maneira estaríamos indiferentes ou preguiçosos para pedir, e</p><p>rogar, e suplicar com ardor por nossa necessidade. Logo, é um absurdo muito</p><p>grande dissuadir os homens da oração, por fingir que a Divina Providência,</p><p>sempre vigilante no governo do Universo, seja em vão importunada por</p><p>nossas súplicas, quando, ao contrário, Deus mesmo declara: “O Senhor está</p><p>perto de todos os que o invocam, de todos os que o invocam com</p><p>sinceridade” (Salmos 145.18). Não é melhor a alegação frívola de outros que</p><p>é supérfluo orar por coisas que o Senhor está pronto a conceder por sua</p><p>própria decisão; pois é o prazer dele que essas mesmas coisas, que fluem de</p><p>sua espontânea liberalidade, sejam reconhecidas como concedidas por nossas</p><p>orações. Isso é testificado pela sentença memorável nos salmos, à qual várias</p><p>outras correspondem: “Os olhos do Senhor voltam-se para os justos e os seus</p><p>ouvidos estão atentos ao seu grito de socorro” (Salmos 34.15). Esta</p><p>passagem, enquanto exalta o cuidado que a Divina Providência exerce de</p><p>modo espontâneo pela segurança dos cristãos, não omite o exercício da fé</p><p>pelo qual a mente é despertada da preguiça. Os olhos de Deus estão despertos</p><p>para assistir aos cegos em suas necessidades, mas ele, de igual maneira, se</p><p>satisfaz em ouvir nossos gemidos, para que nos dê prova melhor do seu</p><p>amor.</p><p>Dessa maneira, ambas as coisas são reais: “sim, o Protetor de Israel não</p><p>dormirá; ele está sempre alerta!” (Salmos 121.4); e ainda que nos pareça que</p><p>ele está mudo e entorpecido, ele se retira como se tivesse se esquecido de</p><p>nós.</p><p>4</p><p>Regras a serem observadas na oração. A primeira:</p><p>reverência a Deus. Como a mente deve se comportar.</p><p>Que, então, a primeira regra da oração correta seja ter o coração e a mente</p><p>moldados para que se tornem os que entram em conversação com Deus. Nós</p><p>o conseguiremos em relação à mente se, deixando de lado pensamentos e</p><p>preocupações carnais que possam interferir na pura e direta contemplação a</p><p>Deus, a mente tenha como único intento se encontrar em oração, mas</p><p>também, tanto quanto possível, ser elevada de si mesma. Não insisto com a</p><p>mente tão desengajada que não sinta as perturbações da ansiedade; ao</p><p>contrário, o fervor da oração é inflamado pela ansiedade. Assim, vemos que</p><p>os santos servos de Deus sofrem grande angústia, para não dizer solicitude,</p><p>quando fazem subir ao Senhor a voz do queixume a partir do abismo</p><p>profundo e das mandíbulas da morte. Digo que todas as preocupações</p><p>estranhas sejam expulsas — preocupações pelas quais a mente pode se</p><p>dispersar, se afastar do céu e rastejar sobre a terra. Quando digo que ela deve</p><p>ser elevada, quero dizer que ela não deve levar à presença de Deus quaisquer</p><p>coisas que nossa razão cega e estúpida tem o hábito de inventar, nem se</p><p>manter confinada nas pequenas medidas da própria vaidade, mas se elevar à</p><p>pureza digna de Deus.</p><p>5</p><p>Toda a distração da mente deve ser excluída, e todos os nossos</p><p>sentimentos devem ser envolvidos com seriedade. Isso é confirmado pela</p><p>forma de levantar as mãos em oração. Devemos pedir apenas o que Deus</p><p>permite. Para nos ajudar em nossa fraqueza, Deus concede o Espírito para</p><p>ser nosso guia em oração. O papel do Espírito nesse sentido. Devemos orar</p><p>com o coração e os lábios.</p><p>Ambas as coisas são especialmente dignas de nota. Primeira, todos os que</p><p>professam orar voltem os pensamentos e sentimentos e não sejam (como é</p><p>comum) distraídos por pensamentos dispersos; porque nada é mais contrário</p><p>à reverência devida a Deus que a frivolidade — indicativo da mente muito</p><p>dada à leniência e destituída de temor. Quanto a isso, devemos trabalhar com</p><p>a máxima diligência que pudermos, quanto mais difícil o percebermos; pois</p><p>não há homem que seja tão devotado à oração que não sinta muitos</p><p>pensamentos rastejantes em sua mente, ou que quebrem o ritmo da oração, ou</p><p>que o atrasem por alguma volta ou digressão. Consideremos quão</p><p>inconveniente isso é quando Deus nos admite em um relacionamento</p><p>familiar, mas, mesmo assim, abusamos de sua grande condescendência,</p><p>misturando coisas sagradas e profanas, e não o reverenciamos mantendo a</p><p>mente sob controle; é como se na oração estivéssemos conversando com uma</p><p>pessoa igual a nós, e assim nos esquecemos dele, permitindo que nossos</p><p>pensamentos vão e voltem. Saibamos então que só quem se impressiona com</p><p>a majestade de Deus e se envolve na oração livre de todos os afetos e</p><p>preocupações terrenas está preparado da forma devida. A cerimônia da</p><p>elevação das mãos em oração objetiva nos fazer lembrar de que estamos</p><p>muito distantes de Deus, a não ser que nossos pensamentos se elevem, como</p><p>está dito em Salmos: “A ti, Senhor, elevo a minha alma” (Salmos 25.1). E as</p><p>Escrituras repetidas vezes usam a expressão elevar nossas orações,</p><p>significando que as pessoas ouvidas por Deus não devem rastejar no atoleiro.</p><p>A suma é: quanto mais liberalmente Deus lida conosco, nos convidando com</p><p>condescendência a descarregarmos nossos fardos em seu colo, menos</p><p>desculpáveis seremos se essa bênção admirável e incomparável não superar</p><p>as demais coisas em nossa avaliação, e que a oração envolva com seriedade</p><p>todo nosso pensamento e sentimento. Isso não acontecerá, a não ser que</p><p>nossa mente se empenhe muito contra todos os impedimentos e assim se</p><p>eleve. Nossa segunda proposição é que devemos pedir a Deus só o que ele</p><p>permite. Pois ainda que ele nos peça para derramarmos o coração (Salmos</p><p>62.8), ele não permite desejos tolos e depravados; e quando ele promete que</p><p>concederá aos que creem os seus desejos, sua indulgência não chega a ponto</p><p>de se submeter aos caprichos deles. Falhas graves são cometidas em toda</p><p>parte nessas duas questões. Pois não apenas muitos sem modéstia e</p><p>reverência presumem invocar a Deus a respeito de suas frivolidades, mas</p><p>levam seus sonhos de modo desavergonhado, quaisquer que sejam, ao</p><p>tribunal de Deus. Tamanha é a tolice ou estupidez na qual laboram</p><p>desfrutassem do</p><p>favor divino junto com o pão. A expressão hoje usada pelos evangelistas</p><p>impõe uma restrição no desejo imoderado pela busca de bens — desejo ao</p><p>qual somos extremamente aptos para julgar com indulgência, mas daí advêm</p><p>outros males: quando nossos recursos são de rica abundância,</p><p>ambiciosamente os desperdiçamos em prazeres, luxo, ostentação e outros</p><p>tipos de extravagância. Por isso somos ordenados a pedir apenas o que a</p><p>necessidade exige, para cada dia, confiando que o Pai celestial, que supre o</p><p>dia de hoje, não falhará conosco no dia de amanhã. Quão maior nossa</p><p>abundância seria, não importando quão repletos estejam nossos celeiros e</p><p>armazéns, se mesmo assim pedirmos pelo pão diário, pois precisamos ter</p><p>convicção de que toda a substância é nada, a não ser que o Senhor derrame</p><p>sua bênção e a torne frutífera. Mesmo o que está em nossas mãos não é</p><p>nosso, a não ser que ele a nós o conceda e nos permita usar. Nada é mais</p><p>difícil para o orgulho humano que admitir essa verdade, e o Senhor declara</p><p>que disso deu prova especial para todos os tempos, quando alimentou seu</p><p>povo com maná no deserto (Deuteronômio 8.3), para assim nos lembrar de</p><p>que “‘Nem só de pão viverá o homem, mas de toda palavra que procede da</p><p>boca de Deus’” (Mateus 4.4). Dessa maneira, fica claro que apenas pelo</p><p>poder de Deus nossa vida e força são sustentadas, ainda que ele nos abençoe</p><p>por meio de instrumentos corporais. Assim, desde que ele se agrade, nos dá</p><p>prova de uma descrição oposta, ao quebrantar a força, ou como ele mesmo</p><p>diz: “‘Quando eu cortar o suprimento de pão [...]’” (Levítico 26.26),</p><p>deixando-nos insatisfeitos mesmo quando comemos e com sede mesmo</p><p>quando bebemos. Quem, insatisfeito com o pão diário, permite-se a cupidez</p><p>sem limite e insaciável, ou está cheio da própria abundância, e assim confia</p><p>na própria riqueza, zomba de Deus ao orar. Pois uns pedem o que não querem</p><p>obter, o que muitos deles abominam, isto é, apenas o pão de cada dia, e</p><p>muitos deles escondem sua avareza de Deus, enquanto a oração verdadeira</p><p>deve derramar toda a alma e cada sentimento interior na presença dele. Os</p><p>outros pedem o que não esperam receber, isto é, o que imaginam já possuir.</p><p>Ao chamá-lo nosso, Deus, como já dissemos, demonstra sua bondade de</p><p>forma poderosa, tornando nosso o que não podemos reivindicar. Nem</p><p>devemos rejeitar a afirmação pela qual já adverti, isto é, que esta palavra é</p><p>dada ao que se obtém mediante trabalho justo e honesto, em contraste com o</p><p>que é obtido por fraude e roubo, pois nada pode ser nosso se obtido do</p><p>prejuízo alheio.</p><p>45</p><p>Conexão íntima entre essa petição e a seguinte. Por que nossos pecados</p><p>são chamados dívidas. A violação da petição: a) Por quem pensa ser</p><p>capaz de satisfazer Deus pelos próprios méritos ou de outras pessoas;</p><p>b) Por quem sonha com a perfeição que torna o perdão desnecessário.</p><p>A razão de o eleito ser incapaz de alcançar a perfeição nesta vida.</p><p>Refutação dos sonhadores libertinos a respeito da perfeição. Objeção</p><p>refutada. Em que sentido devemos perdoar quem pecou contra nós.</p><p>Como se deve entender a condição.</p><p>A sexta petição é: Perdoa as nossas dívidas. Nela e na seguinte, nosso</p><p>Salvador resumiu tudo que diz respeito à vida celestial, pois as duas cláusulas</p><p>contêm a aliança espiritual feita por Deus para a salvação da Igreja: “‘[...]</p><p>Porei a minha lei no íntimo deles e a escreverei nos seus corações [...]’”</p><p>(Jeremias 31.33); “‘Eu os purificarei de todo o pecado [...]’” (33.8). Nesse</p><p>ponto o Salvador inicia com o perdão de pecados e então acrescenta a bênção</p><p>subsequente, isto é, que Deus nos protegerá pelo poder e auxílio do seu</p><p>Espírito, para que possamos permanecer invencíveis contra as tentações. Aos</p><p>pecados, ele dá o nome de dívidas, porque merecemos o castigo que lhes é</p><p>devido — dívida impagável, se não fôssemos desobrigados por essa remissão</p><p>resultante de sua livre misericórdia, quando ele cancelou a dívida, não</p><p>aceitando nada em troca; por sua própria misericórdia, recebeu a satisfação</p><p>em Cristo, que se entregou em resgate por nós (Romanos 3.24). Portanto,</p><p>quem espera satisfazer Deus por méritos próprios ou por méritos de outros,</p><p>ou compensar ou barganhar o perdão por meio de satisfações, não tem parte</p><p>no seu perdão, e, quando se dirige a Deus nessa petição, não faz mais que</p><p>subscrever a própria acusação e selar a condenação com seu testemunho. Pois</p><p>se confessa devedor, a menos que seja desobrigado por meio do perdão. Mas</p><p>ele não recebe o perdão; antes, o rejeita, quando quer apresentar a Deus seus</p><p>méritos e satisfações, pois ao agir assim não lhe implora misericórdia, mas</p><p>apela à sua justiça. Então quem sonha com a perfeição que torne</p><p>desnecessário pedir perdão e encontre discípulos entre os que têm coceira nos</p><p>ouvidos e se inclinam para ouvir falsidades; que eles entendam que esses a</p><p>quem eles adquirem foram afastados de Cristo, pois o Senhor, instruindo</p><p>todos a confessar suas culpas, não apenas pecadores, não para tranquilizá-los</p><p>ou encorajá-los nos pecados, mas por saber que os crentes nunca estarão</p><p>isentos dos pecados da carne; assim que não permaneçam sempre sujeitos à</p><p>justiça de Deus. Isso deve ser desejado, deve ser de fato nosso dever extremo,</p><p>para realizar todas as partes da nossa tarefa, bem como para que nos</p><p>congratulemos de verdade diante de Deus como puros de toda mancha; mas</p><p>assim como Deus se agrada em renovar sua imagem em nós por etapas, pois</p><p>sempre haverá o resíduo de corrupção na nossa carne, nunca devemos</p><p>negligenciar o remédio. Mas se Cristo, de acordo com a autoridade que lhe</p><p>foi dada pelo Pai, nos ordena que, no curso da vida, imploremos perdão,</p><p>podemos tolerar os novos mestres que, pelo fantasma da perfeita inocência,</p><p>se esforçam para deslumbrar os simples e fazê-los crer que podem ficar</p><p>completamente livres da culpa? Isso, como João declarou, não é outra coisa</p><p>senão fazer Deus mentiroso (1João 1.10). Do mesmo modo, os homens tolos</p><p>mutilam a aliança que contém nossa salvação ao omitir seu único cabeça (da</p><p>aliança) e assim a destroem por inteiro; são culpados não só de profanidade</p><p>ao separar o que deveria ser conectado de forma indissolúvel, mas também da</p><p>impiedade e crueldade de subjugar almas miseráveis com desespero — de</p><p>traição a eles mesmos e a seus seguidores, em que se estimulam à falta de</p><p>cuidado diametralmente oposta à misericórdia divina. É excessivamente</p><p>infantil objetar que quando desejam a vinda do Reino de Deus oram ao</p><p>mesmo tempo pela abolição do pecado. A perfeição absoluta é posta diante</p><p>de nós na primeira divisão da oração, mas na última, nossa própria fraqueza.</p><p>Então as duas correspondem com perfeição uma à outra — nós buscamos o</p><p>alvo e, ao mesmo tempo, não negligenciamos o remédio exigido por nossas</p><p>necessidades. Na parte seguinte da petição, oramos para que sejamos</p><p>perdoados “assim como perdoamos aos nossos devedores”; isto é, da mesma</p><p>forma que poupamos e perdoamos quem nos ofendeu de alguma maneira, por</p><p>palavra ou tratamento abusivo. Não que possamos perdoar a culpa da falta ou</p><p>ofensa; isso pertence só a Deus; mas podemos perdoar na seguinte medida: é</p><p>possível nos despirmos em caráter voluntário de ira, ódio e vingança e apagar</p><p>a lembrança das injúrias mediante o esquecimento voluntário. Por</p><p>conseguinte, não devemos pedir o perdão dos nossos pecados a Deus, a não</p><p>ser que perdoemos os ofensores ou todos os que nos injuriaram. Se</p><p>retivermos qualquer ódio na mente, se pensarmos em vingança e criarmos</p><p>meios de retribuir o mal com o mal, se não nos entendermos com nossos</p><p>inimigos, se não formos bondosos para com eles e se não nos esforçarmos</p><p>para a reconciliação com eles, pedimos a Deus que não nos perdoe. Pois</p><p>pedimos a ele que faça conosco o que fazemos com os outros. É o mesmo</p><p>que pedir a ele que faça apenas o que fizermos. Assim, o que algumas</p><p>pessoas obterão com a petição, a não ser o juízo mais severo? Por fim, deve-</p><p>se observar que a condição de ser perdoado como perdoamos nossos</p><p>devedores não é acrescentada porque ao perdoar os outros nós merecemos</p><p>perdão, como se a causa do perdão fosse expressa; mas pelo uso da expressão</p><p>o Senhor se agradou em consolar parcialmente a fraqueza da nossa fé,</p><p>usando-a como sinal para nos assegurar de que nossos pecados estão</p><p>perdoados quando temos a consciência de perdoar os outros, quando nossa</p><p>mente está completamente limpa de inveja, ódio e malícia; e parcialmente</p><p>usando como distintivo para excluir do número de seus filhos quem, disposto</p><p>a vingar e relutante em perdoar, obstinadamente mantém a inimizade,</p><p>lançando sobre os outros a indignação desaprovada nele mesmo; para que não</p><p>se aventure a invocá-lo como Pai. No evangelho de Lucas, temos isso</p><p>declarado de forma distinta nas palavras de Cristo.</p><p>46</p><p>A sexta petição reduzida a três pontos: a) As várias formas da tentação.</p><p>As ideias depravadas da nossa mente. As astúcias de Satanás, à direita e</p><p>à esquerda; b) O que significa cair em tentação. Não pedimos para não</p><p>sermos tentados por Deus. Qual o significado de o mal, ou do maligno.</p><p>Resumo dessa petição. Quão necessária ela é. Condena o orgulho dos</p><p>supersticiosos. Inclui muitas qualidades excelentes. Em que sentido se</p><p>pode dizer que Deus nos conduz à tentação.</p><p>A sexta petição corresponde (como já observamos) à promessa de escrever</p><p>a lei em nosso coração; mas, por não obedecemos a Deus sem uma luta</p><p>contínua, sem esforços agudos e árduos, aqui oramos para que ele nos</p><p>capacite com uma armadura e nos defenda com sua proteção, pare sermos</p><p>capazes de obter a vitória. Por essa petição, somos lembrados de que não</p><p>apenas necessitamos do dom do Espírito para interiormente nos abrandar o</p><p>coração, e assim voltá-lo à obediência e direcioná-lo a Deus, mas também da</p><p>sua ajuda, que nos fará invencíveis contra todos os enganos e ataques</p><p>violentos de Satanás. As formas da tentação são muitas e variadas. Os</p><p>pensamentos depravados da nossa mente nos provocam a transgredir a lei —</p><p>pensamentos que nossa concupiscência sugere ou que o Diabo excita são</p><p>tentações; e coisas que pela própria natureza não são más tornam-se tentações</p><p>pelos enganos do Diabo, quando apresentadas a nossos olhos de maneira tal</p><p>que sua visão nos afasta de Deus. Essas tentações estão à direita e à esquerda.</p><p>À direita, quando riquezas, poder e honra, que por seu deslumbramento e</p><p>semelhança com o bem que apresentam, geralmente deslumbram os olhos dos</p><p>homens e tanto os enganam com suas lisonjas que, apanhados em seus laços e</p><p>intoxicados por sua doçura, acabam se esquecendo de Deus; à esquerda,</p><p>quando ofendidos pela dificuldade e amargura da pobreza, desgraça,</p><p>desprezo, aflições e outras coisas parecidas, eles se desesperam, lançam fora</p><p>toda a confiança e esperança, e se encontram totalmente distanciados de</p><p>Deus. Com respeito a esses tipos de tentação, acesa pela nossa</p><p>concupiscência, ou apresentada por artimanhas da guerra de Satanás contra</p><p>nós, oramos a Deus, o Pai, que não nos permite sermos vencidos; antes, ele</p><p>nos leva e apoia com sua mão, para que, fortalecidos assim por seu poder</p><p>grandioso, possamos permanecer firmes contra todos os ataques do inimigo</p><p>maligno, quaisquer que sejam os pensamentos enviados à nossa mente;</p><p>oramos também para que, independentemente da situação, voltemo-nos para</p><p>o bem, isto é, não fiquemos inflados com a prosperidade nem derrubados pela</p><p>adversidade. Todavia, não pedimos para nos isentar da tentação — necessária</p><p>para nos provocar, estimular e pressionar, para que não fiquemos letárgicos.</p><p>Não sem razão, Davi desejou ser provado, e não sem causa o Senhor a cada</p><p>dia prova seus eleitos, castigando-os pela desgraça, pobreza, tribulação e</p><p>outros tipos de cruz. Mas as tentações de Deus e de Satanás são muito</p><p>diferentes: Satanás tenta para destruir, condenar, confundir, derrotar; Deus,</p><p>ao demonstrar a seu povo que lhes provará a sinceridade e assim exercitar a</p><p>força deles. Desse modo, eles mortificarão, domarão e cauterizarão a carne, a</p><p>qual, se não for assim tratada, se exultará sem medida. Além disso, Satanás</p><p>ataca os desarmados e despreparados, para destruí-los por estarem</p><p>desprevenidos; contudo, Deus, junto com a tentação, providenciará “um</p><p>escape, para que o possam suportar”. Não vem tanto ao caso se pela palavra</p><p>mal podemos entender o Diabo ou o pecado. Satanás é de fato o inimigo que</p><p>lança redes contra nossa vida, mas pelo pecado ele se armou para nos</p><p>destruir.</p><p>Nossa petição, portanto, é que não sejamos vencidos nem sobrepujados</p><p>pela tentação, mas que na força do Senhor permaneçamos firmes contra todos</p><p>os poderes pelos quais somos atacados; em outras palavras, que não caiamos</p><p>em tentação: que, estando sob o cuidado e a proteção de Deus,</p><p>permaneçamos invencíveis diante do pecado, da morte, das portas do inferno</p><p>e de todo o poder do Diabo; em outras palavras, que sejamos libertos do mal.</p><p>Deve-se observar isso com cuidado, pois não temos força para combater o</p><p>Diabo ou resistir à violência dos seus ataques. Pedir a Deus o que já está em</p><p>nosso poder significaria zombar dele. Sem dúvida, quem se prepara para a</p><p>luta por si mesmo não entende quão ousado e bem preparado é o inimigo a</p><p>ser enfrentado. Por isso pedimos libertação do poder dele, como se fosse a</p><p>boca de um leão furioso que, em um instante, nos rasgaria com suas presas e</p><p>garras e nos engoliria, se o Senhor não nos tivesse resgatado da morte;</p><p>sabendo ao mesmo tempo que, se o Senhor está presente e luta por nós, aí</p><p>permanecemos firmes e por meio dele “conquistaremos a vitória” (Salmos</p><p>60.12). Quem quiser que confie nos recursos e forças que pensa possuir. Para</p><p>nós, basta a permanência firme e forte apenas no poder do Senhor. Contudo,</p><p>a oração abrange muito mais coisas. Se o Espírito de Deus é nossa força na</p><p>luta contra Satanás, não obteremos vitória, a menos que sejamos cheios do</p><p>Espírito e assim libertos de toda a enfermidade da carne. Portanto, quando</p><p>oramos para ser libertos do pecado e de Satanás, ao mesmo tempo desejamos</p><p>ser enriquecidos com novos suprimentos da graça divina, até que, repletos</p><p>dela, triunfemos sobre todo o mal. Para alguns, pode parecer rude e difícil</p><p>pedir a Deus não nos deixar cair em tentação, pois, como Tiago declara</p><p>(Tiago 1.13), a tentação é contrária à natureza divina. A dificuldade já foi em</p><p>parte resolvida pelo fato de que nossa concupiscência é a causa e, portanto,</p><p>recebe a culpa de todas as tentações que nos vencem. Tiago quis dizer que é</p><p>injusto e vão atribuir a Deus vícios que nossa consciência nos leva a atribuir a</p><p>nós mesmos. Mas isso não impede que Deus, quando julga necessário,</p><p>permita que Satanás nos ataque e nos entregue à mente réproba e a desejos</p><p>vergonhosos e assim, por motivo justo, mas frequentemente oculto, permite</p><p>que sejamos tentados. Ainda que a causa seja com frequência oculta aos</p><p>homens, é conhecida dele. Daí se vê que a expressão não é inadequada, se</p><p>estivermos convencidos de que não é sem motivo sua ameaça de dar sinais</p><p>seguros de vingança, ao cegar os reprovados e lhes endurecer o coração.</p><p>47</p><p>As três últimas petições demonstram que as orações dos</p><p>cristãos devem ser públicas. A conclusão da Oração do Senhor.</p><p>Motivo da adição da palavra amém.</p><p>Essas três petições, às quais nos recomendamos a Deus, e a tudo que</p><p>temos, mostram com clareza o que já observamos (seç. 38 e 39): as orações</p><p>dos cristãos devem ser púbicas e respeitar a edificação da Igreja e o progresso</p><p>dos cristãos na comunhão espiritual. Pois ninguém pede que algo lhe seja</p><p>dado como indivíduo, mas pedimos em conjunto pelo pão diário e o perdão</p><p>dos pecados, para que não caiamos em tentação e sejamos libertos do mal.</p><p>Mais ainda, está subentendida a razão da nossa grande ousadia em pedir e</p><p>confiar no recebimento (seç. 11 e 36). Ainda que a expressão não exista nos</p><p>manuscritos latinos, está tão bem de acordo com o todo que não podemos</p><p>pensar em omiti-la.</p><p>As palavras são: Teu é o Reino, o poder e a glória para sempre. Eis a</p><p>tranquila e firme segurança da fé. Fossem nossas orações dirigidas a Deus</p><p>pelo nosso mérito, quem se aventuraria a sussurrar diante dele? Agora, não</p><p>importa quão miseráveis, indignos e isentos de valor sejamos, nunca nos</p><p>faltará razão para orar, nem base para a confiança, pois o Reino, o poder e a</p><p>glória nunca</p><p>deixarão de ser do Pai. A última palavra é Amém, pela qual se</p><p>expressa a prontidão do nosso desejo de obter o que pedimos, enquanto nossa</p><p>esperança é confirmada — todas as coisas já foram obtidas e serão</p><p>concedidas a nós, pois foram prometidas por Deus, que não pode mentir. Isso</p><p>concorda com a expressão a respeito da qual já fizemos advertência:</p><p>“Concede, ó Senhor, por causa do teu nome, não por causa de nós ou pela</p><p>nossa justiça”. Por isso os santos não apenas expressam o fim de suas</p><p>orações, mas se confessam indignos de obter se a razão não estivesse em</p><p>Deus mesmo e se a confiança deles não fosse encontrada inteiramente na</p><p>natureza divina.</p><p>48</p><p>A Oração do Senhor contém tudo que podemos ou devemos</p><p>pedir a Deus. Quem a ultrapassa peca de três formas.</p><p>Todas as coisas que devemos pedir a Deus (das quais somos capazes) estão</p><p>contidas nessa fórmula, como se ela fosse uma regra de oração concedida por</p><p>Cristo, nosso Mestre divino, quem o Pai apontou como nosso professor e o</p><p>único que devemos ouvir (Mateus 17.5). Ele é a sabedoria eterna do Pai e,</p><p>sendo feito homem, foi manifestado como o Maravilhoso Conselheiro (Isaías</p><p>11.2; 9.6). Por isso essa oração é tão completa em todas as suas partes.</p><p>Qualquer coisa que lhe seja estranha, qualquer coisa que a ela não se refira, é</p><p>ímpia e indigna da aprovação divina. Pois Deus, nessa oração, prescreveu de</p><p>forma resumida o que é digno dele, o que lhe é aceitável e o que nos é</p><p>necessário; em resumo, tudo que ele se agrada em conceder. Portanto, quem</p><p>presume ir além e pedir algo mais de Deus, em primeiro lugar busca</p><p>acrescentar algo à sabedoria divina (agir assim é blasfêmia insana); segundo,</p><p>recusando-se a se confinar nos limites da vontade divina e desprezando-a,</p><p>fica perdido, sendo dirigido pelas próprias ambições; por fim, nunca obterá</p><p>nada, pois ora sem fé. E as orações pronunciadas sem fé, por estarem em</p><p>desacordo com a Palavra de Deus, não podem subsistir. Quem,</p><p>desconsiderando a regra do Mestre, é indulgente com os próprios desejos, não</p><p>apenas não tem a palavra de Deus, mas se opõe a ela. Por isso Tertuliano (De</p><p>fuga in persecutione) de maneira correta e elegante a denominou oração</p><p>legítima, tacitamente indicando que todas as outras orações são ímpias e</p><p>ilícitas.</p><p>49</p><p>Podemos, de acordo com o exemplo dos santos, moldar nossas orações</p><p>com palavras diferentes, conquanto não haja diferença no sentido.</p><p>Todavia, não queremos dar a entender que nos restringimos tanto a essa</p><p>forma de oração que seja ilegal mudar dela uma palavra ou sílaba. Pois nas</p><p>Escrituras encontramos muitas orações com palavras bastante diferentes</p><p>dessa, mas formuladas pelo mesmo Espírito, e podemos utilizá-las com</p><p>grande proveito. Muitas orações são também sugeridas aos cristãos pelo</p><p>mesmo Espírito, e de modo contínuo, ainda que em sua forma não sejam</p><p>muito parecidas com essa. Queremos dizer que homem nenhum deve desejar,</p><p>esperar ou pedir algo que não esteja compreendido nessa oração. Ainda que</p><p>as palavras difiram muito, não há diferença no sentido. Assim, todas as</p><p>orações — provenientes das Escrituras e de corações piedosos — devem se</p><p>referir à oração ensinada por Jesus, ainda que nenhuma possa se igualar a ela,</p><p>muito menos ultrapassá-la em perfeição. Ela não omite nada que possamos</p><p>conceber em louvor a Deus e considerar bom para o homem, e é tão exata</p><p>que qualquer esperança de melhorá-la deve ser renunciada. Em resumo,</p><p>lembremo-nos de ter aqui a doutrina da sabedoria celestial. Deus nos ensinou</p><p>o que ele deseja; ele deseja o necessário.</p><p>50</p><p>Devem-se observar algumas circunstâncias. Sobre a designação</p><p>de horas especiais de oração. O que se deve objetivar e o que se deve</p><p>evitar. A vontade de Deus, a regra das nossas orações.</p><p>Ainda que se tenha dito (seç. 7 e 27) que devemos sempre elevar a mente a</p><p>Deus, e orar sem cessar, mesmo em nossa fraqueza, tal é nosso torpor que</p><p>precisamos ser apoiados e estimulados, e para tanto precisamos separar horas</p><p>especiais para esse exercício — horas que não podem ser passadas sem</p><p>oração, durante as quais todo o interesse da nossa mente deve estar</p><p>completamente ocupado. Quando nos levantamos pela manhã, antes do início</p><p>do dia de trabalho, quando nos assentamos para nos alimentar, quando, pela</p><p>bênção divina, recebemos o alimento e quando nos recolhemos para</p><p>descansar. Mas isso não deve ser uma observação supersticiosa das horas,</p><p>como se estivéssemos realizando tarefas para Deus, e assim estaríamos</p><p>isentos de orar nas demais horas; antes, devemos considerar isso uma</p><p>disciplina pela qual nossa fraqueza é exercitada e repetidas vezes estimulada.</p><p>Em particular, deve ser nossa vontade, sempre que estivermos ansiosos, ou</p><p>virmos os outros pressionados por apertos, recorrer a Deus no mesmo</p><p>momento, não apenas em ritmo acelerado, mas com a mente disposta. Mais</p><p>uma vez, não devemos omitir o testemunho do nosso reconhecimento da mão</p><p>divina, louvando e agradecendo a Deus, quando passarmos por um momento</p><p>de prosperidade. Por último, devemos evitar o confinamento de Deus em</p><p>certas circunstâncias, em todas as nossas orações, ou de lhe prescrever tempo,</p><p>lugar ou modo de ação. Assim, a oração nos ensina a não fixar nenhuma lei</p><p>ou não impor nenhuma condição a ele, mas deixar a seu cargo completo a</p><p>adoção do curso de procedimento que ele achar melhor (quanto ao método,</p><p>tempo ou lugar). Pois antes que nós mesmos lhe ofereçamos qualquer oração,</p><p>pedimos que a vontade dele seja feita, e, ao assim fazer, subordinamos nossa</p><p>vontade à dele, como se tivéssemos colocado um freio na nossa vontade e,</p><p>em vez de presumir que damos licença a Deus, que o tenhamos como quem</p><p>governa e dispõe sobre todos os desejos.</p><p>51</p><p>Recomendação especial da perseverança na oração por preceito e</p><p>exemplo. Condenação de quem atribui a Deus um tempo</p><p>e uma forma especial de ouvir.</p><p>Se com a mente assim moldada à obediência nos permitirmos ser</p><p>governados pelas leis da Divina Providência, aprenderemos com facilidade a</p><p>perseverar em oração e permitir que todos os nossos desejos esperem de</p><p>modo paciente no Senhor, pois, ainda que não pareça, ele está sempre</p><p>presente conosco e, no tempo por ele determinado, manifestará quão distante</p><p>estava de ter os ouvidos fechados às nossas orações, ainda que aos olhos dos</p><p>homens pareça que Deus não se importa. Isso será um consolo, se a qualquer</p><p>tempo não conceder resposta imediata às nossas orações, impedindo-nos de</p><p>desanimar ou de dar lugar ao abatimento, como acontece com quem, ao</p><p>invocar a Deus, o faz com fervor, mas, a não ser que ele responda da primeira</p><p>vez e lhe atenda de imediato, imagina-o com raiva e ofendido e, abandonando</p><p>toda a esperança de sucesso, para de orar. Ao contrário, deferindo nossa</p><p>esperança com bem temperada equidade de ânimo, insistamos que a</p><p>perseverança nos é bastante recomendada nas Escrituras. Podemos ver com</p><p>frequência em Salmos como Davi e outros crentes, depois de quase esgotados</p><p>de orar, parecendo até dar socos no ar quando se dirigiam ao Deus que não os</p><p>ouvia, mesmo assim não pararam de orar porque a autoridade devida não é</p><p>dada à Palavra de Deus, a não ser que a fé nele depositada seja superior a</p><p>todos os eventos. Outra vez, não vamos provocar Deus, cansando-o com</p><p>nossa importunação e provocando sua ira contra nós. Muitos praticam a</p><p>barganha com Deus sobre certas condições e, como servos da própria luxúria,</p><p>querem submetê-lo a algumas estipulações, e, se ele não concordar de</p><p>imediato com eles, ficam indignados, com raiva, murmuram, reclamam e</p><p>fazem barulho. Ofendido assim, ele sempre concede a essas pessoas, em sua</p><p>ira, o que a outras nega por misericórdia e bondade. Temos prova disso nos</p><p>filhos de Israel, que melhor lhes teria sido se não fossem ouvidos pelo</p><p>Senhor, pois eles comeram carne junto com a indignação divina (Números</p><p>11.18,33).</p><p>52</p><p>Sobre a dignidade da fé, em resposta à oração, por meio da qual</p><p>sempre obtemos o que nos é mais importante. O conhecimento</p><p>disso é de extrema importância.</p><p>Se mesmo depois de uma longa espera nossos sentidos não são capazes de</p><p>perceber os resultados da oração ou de experimentar qualquer</p><p>dos seus</p><p>benefícios, nossa fé nos assegurará do que não se pode perceber pelos</p><p>sentidos: a obtenção do melhor para nós, tendo o Senhor prometido se</p><p>interessar por todos os nossos problemas a partir do momento em que os</p><p>depositamos diante dele. Assim, teremos abundância na pobreza e conforto</p><p>na aflição. Ainda que todas as coisas falhem, Deus nunca nos abandonará e</p><p>ele não pode frustrar a expectativa e a paciência do seu povo. Só ele é</p><p>suficiente para tudo, pois compreende todo o bem, e nos irá revelá-lo no Dia</p><p>do Juízo — o dia em que seu Reino será manifesto de forma plena. Podemos</p><p>acrescentar: ainda que Deus atenda a todos os nossos pedidos, ele nem</p><p>sempre dará a resposta nos termos das nossas orações, mas, enquanto</p><p>aparentemente nos mantém em suspense, nos mostra que, mesmo de maneira</p><p>desconhecida, nossas orações não são vãs. Esse é o significado das palavras</p><p>de João: “E, se sabemos que ele nos ouve em tudo o que pedimos, sabemos</p><p>que temos o que dele pedimos” (1João 5.15). Pode parecer que há um</p><p>exagero de palavras, mas a declaração é a mais útil, a saber: mesmo quando</p><p>Deus não atende a nossos pedidos, ele os ouve e é favorável às nossas</p><p>orações, para que nossa esperança, baseada na sua Palavra, nunca seja</p><p>desapontada. Mas os cristãos sempre carecem do apoio da paciência divina,</p><p>pois não podem subsistir muito se não a tiverem como base. São severos os</p><p>juízos pelos quais o Senhor nos prova e nos exercita, pois ele sempre nos leva</p><p>a extremos; e, quando ele o faz, nos permite sofrer antes de obtermos o gosto</p><p>da sua doçura. Como disse Ana: “‘O Senhor mata e preserva a vida; ele faz</p><p>descer à sepultura e dela resgata’” (1Samuel 2.6). O que poderiam eles fazer,</p><p>a não ser perder o ânimo e cair no desespero, aflitos, desolados e meio</p><p>mortos, confortados com o pensamento de que são considerados por Deus e</p><p>que haverá fim para os males do presente? Por mais seguras que sejam suas</p><p>esperanças, eles não cessam de orar, pois oração desacompanhada de</p><p>perseverança não leva a resultado algum.</p><p>Índice de referências bíblicas</p><p>Gênesis 18.23; 22.1; 32.10; 32.13; 48.16</p><p>Êxodo 32.32</p><p>Levítico 26.20; 26.26</p><p>Números 11.18,33</p><p>Deuteronômio 8.2; 8.3; 8.17; 13.3</p><p>Juízes 9.20; 16.28</p><p>1Samuel 1.13; 2.6; 15.11</p><p>2Samuel 7.27; 7.28</p><p>1Reis 8.27; 18.42</p><p>2Reis 19.4</p><p>Salmos 4.8; 5.3; 5.7; 7.6; 15.1 18.1; 20.3; 22.5; 25.1; 25.7; 25.18; 26.2;</p><p>27.10; 31.5; 32.6; 33.22; 34.6; 34.15; 34.15; 34.15; 36.9; 39.13; 40.3; 41.4;</p><p>41.15; 44.20,21; 48.10; 50.15; 50.15; 50.15; 51.5; 51.15; 51.17; 52.6; 56.9;</p><p>60.12; 62.8; 65.1; 65.2; 80.4; 86.2; 91.15; 94; 102.18, 21; 103.20; 106.47;</p><p>107.6,13, 19; 116.1; 116.12,13; 119.76; 121.4; 132.10; 141.2; 142.7; 143.2;</p><p>145.18; 145.19</p><p>Provérbios 18.10</p><p>Eclesiastes 9.5,6</p><p>Isaías 1.15; 4.1; 9.6; 11.2; 29.13; 29.13; 30.1; 31.1; 38.3; 38.20; 42.10;</p><p>49.15; 56.7; 63.16; 63.16; 64.5-9; 65.24; 66.1; 66.2</p><p>Jeremias 2.13; 2.28; 11.11; 11.13; 14.7; 15.1; 31.33; 32.16; 33.8; 42.2;</p><p>42.9</p><p>Lamentações 3.8</p><p>Ezequiel 14.14</p><p>Daniel 9.18; 9.18-20</p><p>Oseias 14.2</p><p>Joel 2.32</p><p>Jonas 2.1-10</p><p>Zacarias 13.9</p><p>Mateus 4.1,3; 4.4; 6.6; 6.7; 6.9; 7.7; 7.11; 17.5; 18.20; 21.22; 23.9</p><p>Marcos 11.24</p><p>Lucas 9.55; 11.2; 15.20</p><p>João 1.12; 4.23; 9.31; 14.13; 16.24; 16.24; 16.26</p><p>Atos 7.48; 13.36; 20.36</p><p>Romanos 3.24; 8.26; 8.26; 8.26; 8.34; 9.3; 10.14; 10.14,17; 12.5; 15.30</p><p>1Coríntios 10.13; 10.31; 12.26; 14.15; 14.15; 14.16,17; 14.40; 15.28</p><p>2Coríntios 1.3; 1.20; 6.7,8</p><p>Gálatas 6.10</p><p>Efésios 1.23; 3.10; 3.12; 4.3; 6.16,17; 6.18; 6.18,19; 6.19</p><p>Filipenses 4.5,6; 4.6</p><p>Colossenses 3.16; 4.3</p><p>1Tessalonicenses 3.5; 5.17,18</p><p>2Tessalonicenses 2.8</p><p>1Timóteo 2.1; 2.1; 2.5; 2.5; 2.5; 2.5; 2.8; 2.8; 4.5; 4.8</p><p>Hebreus 4.16; 9.11,24; 10.19,20; 11.6; 13.15</p><p>Tiago 1.2,14; 1.5; 1.13; 4.3; 4.14; 5.13; 5.15; 5.16; 5.17,18</p><p>1Pedro 5.8</p><p>2Pedro 2.9</p><p>1João 1.9; 1.10; 2.1; 2.1; 3.22; 3.22; 5.14; 5.15</p><p>Baruque 2.18,19; 3.2</p><p>I. Conexão do tema da oração com os textos anteriores. A natureza da oração e sua necessidade como exercício cristão (1, 2).</p><p>As principais divisões do presente texto</p><p>II. A quem a oração deve ser oferecida. Refutação da objeção apta demais para se apresentar à mente (3).</p><p>III. Regras a serem observadas na oração (4-16).</p><p>IV. Por meio de quem a oração deve ser feita (17-19).</p><p>V. Refutação de um erro a respeito da doutrina de nosso Mediador e Intercessor, com respostas aos principais argumentos formulados a favor da intercessão dos santos (20-27).</p><p>VI. A natureza da oração, e algumas de suas ocorrências (28-33).</p><p>VII. A forma perfeita da invocação, ou uma exposição da Oração do Senhor (34-50).</p><p>VIII. Algumas regras a serem observadas a respeito da oração, como o tempo, a perseverança, a sensação da mente e a certeza da fé (50-52).</p><p>que têm a</p><p>audácia de impor a Deus desejos tão vis que eles se envergonhariam de</p><p>compartilhá-los com outros homens. Escritores profanos ridicularizaram e até</p><p>mesmo expressaram seu desprezo quanto a essa pretensão; mesmo assim, o</p><p>vício sempre prevalece. Por isso, os ambiciosos adotaram Júpiter como seu</p><p>patrono; os avarentos, Mercúrio; pessoas com aspirações literárias, Apolo e</p><p>Minerva; os belicosos, Marte; os licenciosos, Vênus; da mesma forma, no</p><p>tempo presente, como tenho observado, homens em oração dão licença a seus</p><p>desejos ilícitos como se estivessem contando histórias jocosas entre seus</p><p>companheiros. Deus não concede sua condescendência para ser ridicularizado</p><p>dessa maneira, mas vindica a própria luz e põe nossos desejos sob o limite de</p><p>sua autoridade. Por conseguinte, devemos atender à observação de João:</p><p>“Esta é a confiança que temos ao nos aproximarmos de Deus: se pedirmos</p><p>alguma coisa de acordo com a vontade de Deus, ele nos ouvirá” (1João 5.14).</p><p>Mas como nossas faculdades estão longe dessa perfeição, devemos tentar</p><p>auxiliá-las de alguma maneira. Como o olho da mente deve estar voltado para</p><p>Deus, a afeição do coração deve seguir na mesma direção. Para nos assistir</p><p>em nossa fraqueza, Deus nos dá a orientação do Espírito em nossas orações</p><p>para ditar o que é certo e regular nossos afetos. Porque “não sabemos como</p><p>orar”, o “próprio Espírito intercede por nós com gemidos inexprimíveis”</p><p>(Romanos 8.26). Isso não quer dizer que ele de fato ore ou gema, mas nos</p><p>estimula em nossos suspiros e desejos e confiança — incapazes de serem</p><p>concebidos por nossas forças naturais. Não sem razão Paulo dá o nome de</p><p>gemidos inexprimíveis às orações feitas pelos cristãos sob a orientação do</p><p>Espírito Santo, pois os exercitados de verdade em oração têm consciência de</p><p>que ansiedades cegas os oprimem e os deixam perplexos, para que eles</p><p>possam descobrir o que os faz orar; mas eles param e hesitam na tentativa de</p><p>sussurrar. Daí que orar da maneira correta é um dom especial. Não fazemos</p><p>esta afirmação como desculpa para nossa preguiça como se fôssemos deixar a</p><p>responsabilidade de orar com o Espírito Santo e assim darmos vazão ao</p><p>descuido ao qual somos tão inclinados, ainda que ouçamos algumas vezes a</p><p>expressão ímpia de que devemos esperar até que ele tome posse de nossa</p><p>mente enquanto ocupados de outra maneira. Nosso sentido é que, cansados</p><p>do desânimo e da preguiça, desejamos a ajuda do Espírito com ardor. E nem</p><p>Paulo, quando nos exorta a orar com o Espírito (1Coríntios 14.15), cessa de</p><p>nos estimular à vigilância, intimando que, enquanto a inspiração do Espírito é</p><p>efetiva para a formação da oração, ela não impede nem retarda os nossos</p><p>esforços; nesta questão Deus se agrada de testar quão eficientemente a fé</p><p>influencia nosso coração.</p><p>6</p><p>A segunda regra da oração: um sentimento da nossa necessidade.</p><p>Esta regra é violada por: a) Orações formais e superficiais; b) Hipócritas,</p><p>que não têm consciência dos seus pecados; e pela c) Distração na oração.</p><p>Alternativas.</p><p>Outra regra de oração é: ao pedir, devemos sempre sentir de verdade</p><p>nossas necessidades, e considerar com seriedade a carência de todas as coisas</p><p>pedidas, acompanhando a oração com o desejo sincero de obter o que</p><p>pedimos. Muitos repetem orações de maneira superficial, em uma forma já</p><p>estabelecida, como se estivessem realizando uma tarefa para Deus, ainda que</p><p>a confessem um remédio necessário para os males da sua condição, pois lhes</p><p>seria fatal serem deixados sem o auxílio divino pelo qual imploram; mesmo</p><p>assim, parecem realizar um dever por costume, porque a mente deles</p><p>permanece fria nesse ínterim, e eles não ponderam no que pedem. Um</p><p>sentimento geral e confuso de sua necessidade os impulsiona a orar, mas isso</p><p>não os faz solícitos como em uma questão de consequência presente, para que</p><p>eles possam obter o suprimento de suas necessidades. Além disso, não</p><p>podemos imaginar nada mais odioso, nem mais execrável a Deus, que a</p><p>ficção de pedir o perdão dos pecados, enquanto quem pede, ao mesmo tempo,</p><p>não se considera pecador ou, pelo menos, não se vê nesse momento como</p><p>pecador; em outras palavras: uma ficção que Deus tem na conta de um</p><p>escárnio? No entanto, a humanidade, como já disse, é cheia de depravação;</p><p>então, no modo do culto superficial, eles sempre pedem muitas coisas a Deus</p><p>que pensam que lhes acontecerão sem a beneficência divina, ou que lhes</p><p>virão de algum outro lugar, ou que já são sua propriedade. Essa é outra falta</p><p>que parece menos hedionda, mas não deve ser tolerada. Alguns murmuram</p><p>orações sem meditar, sendo seu único princípio que Deus deve ser propiciado</p><p>pela oração. Os cristãos devem ser vigilantes quanto a nunca aparecer na</p><p>presença de Deus com a intenção de apresentar um pedido, a não ser que</p><p>estejam sob séria impressão e, ao mesmo tempo, desejem obter o que pedem.</p><p>Embora se deva pedir só o que for para a glória de Deus, não se pode, no</p><p>primeiro momento, pensar em nossas necessidades, ainda que não peçamos</p><p>com menos fervor e veemência de desejo. Por exemplo, quando oramos que o</p><p>nome divino seja santificado, essa santificação deve, por assim dizer, ser</p><p>desejada por nós com fervor, como uma intensa fome e sede.</p><p>7</p><p>Objeção ao fato de que nem sempre precisamos orar. Resposta: devemos</p><p>orar sempre. Esta resposta é confirmada mediante o exame dos perigos pelos</p><p>quais nossa vida e salvação são ameaçadas a cada momento. É confirmada</p><p>ainda pelo mandamento e permissão de Deus, pela natureza do verdadeiro</p><p>arrependimento e pela consideração da impenitência. Conclusão.</p><p>Se há objeção a este ponto, admito que a necessidade que nos impele a orar</p><p>nem sempre é igual, e a distinção nos é ensinada com proveito por Tiago:</p><p>“Entre vocês há alguém que está sofrendo? Que ele ore. Há alguém que se</p><p>sente feliz? Que ele cante louvores” (Tiago 5.13). Por conseguinte, o próprio</p><p>senso comum afirma que, como somos muito preguiçosos, precisamos ser</p><p>estimulados por Deus a orar de modo fervoroso sempre que se fizer</p><p>necessário. Davi fala do tempo em que Deus “pode ser encontrado” (um</p><p>tempo oportuno); pois, como ele declarou em várias outras passagens, quanto</p><p>mais difíceis as circunstâncias, os aborrecimentos, os temores e outros tipos</p><p>de pressão sobre nós, mais livre é nosso acesso a Deus, como se ele nos</p><p>convidasse para si mesmo. Não é menos verdadeira a injunção de Paulo de</p><p>orar “em todas as ocasiões” (Efésios 6.18); pois, conquanto prosperemos, de</p><p>acordo com nosso ponto de vista, as coisas acontecem, e ainda que possamos</p><p>estar rodeados de alegria por todos os lados, não há um momento em que</p><p>nossa vontade não nos exorte a orar. Um homem tem muito trigo e vinho;</p><p>mas como ele não pode desfrutar de um pedaço de pão, a não ser pela</p><p>contínua generosidade de Deus, seus armazéns ou celeiros não o impedirão</p><p>de pedir o pão diário. Então, se considerarmos os perigos iminentes a cada</p><p>momento, o próprio medo nos ensinará que nenhum tempo deve ser vivido</p><p>sem oração. Mas isso pode ser mais bem conhecido em questões espirituais.</p><p>Quando os muitos pecados, dos quais temos consciência, permitirão que nos</p><p>assentemos seguros sem suplicar libertação da culpa e do castigo? Quando as</p><p>tentações nos darão uma trégua, tornando desnecessário que a ajuda chegue</p><p>depressa? Mais que isto, o zelo pelo Reino e glória de Deus não nos deveria</p><p>prender pelo começo, mas nos impulsionar sem pausa, para que todo</p><p>momento pareça apropriado. Mas não é sem motivo que a assiduidade na</p><p>oração é ordenada com tanta frequência. Não falo da perseverança, que será</p><p>considerada mais adiante; as Escrituras, porém, ao nos lembrar da</p><p>necessidade de constante oração, nos acusam de preguiça, porque não</p><p>sentimos quanto precisamos desse cuidado e dessa assiduidade. Por esse</p><p>princípio são restringidos, da mesma forma, e banidos da oração a hipocrisia</p><p>e o artifício de mentir a Deus. Deus promete estar próximo de quem o invoca</p><p>em verdade e declara que quem o busca de todo o coração o encontrará; por</p><p>conseguinte, quem se compraz na própria sujeira não pode ter desejo dele.</p><p>Um dos requisitos da oração legítima é o arrependimento.</p><p>Daí a constante</p><p>declaração das Escrituras e Deus não ouve os ímpios; que as orações deles,</p><p>bem como seus sacrifícios, são abominação a ele. Pois é certo que quem</p><p>fecha seu coração encontrará os ouvidos de Deus fechados, e quem, pela</p><p>dureza de coração, provoca sua severidade o encontrará inflexível. Por isso</p><p>ele afirma em Isaías: “‘Quando vocês estenderem as mãos em oração,</p><p>esconderei de vocês os meus olhos; mesmo que multipliquem as suas</p><p>orações, não as escutarei! As suas mãos estão cheias de sangue!’” (Isaías</p><p>1.15). Da mesma forma, em Jeremias: “[...] ‘[...] Ainda que venham a clamar</p><p>a mim, eu não os ouvirei’” (Jeremias 11.11); pois ele considera o mais alto</p><p>insulto o ímpio se orgulhar de sua aliança enquanto lhe profana o nome</p><p>sagrado com sua vida. Daí as queixas de Isaías: “[...] ‘Esse povo se aproxima</p><p>de mim com a boca e me honra com os lábios, mas o seu coração está longe</p><p>de mim. A adoração que me prestam é feita só de regras ensinadas por</p><p>homens’” (Isaías 29.13). De fato, ele não limita isso apenas às orações, mas</p><p>declara que abomina o fingimento em todas as partes do culto. Daí as</p><p>palavras de Tiago: “Quando pedem, não recebem, pois pedem por motivos</p><p>errados, para gastar em seus prazeres” (Tiago 4.3). É mesmo verdade (como</p><p>em breve veremos mais uma vez) que o piedoso, nas orações que pronuncia,</p><p>não confia no próprio valor; assim, a admoestação de João não é supérflua: “e</p><p>recebemos dele tudo o que pedimos, porque obedecemos aos seus</p><p>mandamentos e fazemos o que lhe agrada” (1João 3.22); a consciência má</p><p>nos fecha as portas. Segue-se daí que ninguém, a não ser os adoradores</p><p>sinceros de Deus, ora de maneira certa, ou é ouvido. Portanto, que quem ora</p><p>se sinta insatisfeito com o que está errado com sua condição e assuma a</p><p>incapacidade de fazer algo sem o arrependimento — algo que diz respeito ao</p><p>caráter e sentimento do suplicante humilde.</p><p>8</p><p>A terceira regra: a supressão de todo o orgulho.</p><p>Exemplos: Daniel, Davi, Isaías, Jeremias, Baruque.</p><p>A terceira regra a ser adicionada é: quem vai até a presença de Deus para</p><p>orar deve se despir de todos os pensamentos vangloriosos, deixar de lado toda</p><p>ideia de valor; em suma, descartar toda a autoconfiança e humildemente dar a</p><p>Deus toda a glória, para não se arrogar a nada, mesmo que pouco, de si</p><p>mesmo, nenhum orgulho vão que faça com que Deus desvie seu rosto. Dessa</p><p>submissão, que lança fora toda a altivez, temos numerosos exemplos nos</p><p>servos de Deus. Quanto mais santos, mais humildes se prostravam quando</p><p>iam à presença do Senhor. Por isso Daniel, a quem o Senhor mesmo</p><p>concedeu altos elogios, disse: “Inclina os teus ouvidos, ó Deus, e ouve; abre</p><p>os teus olhos e vê a desolação da cidade que leva o teu nome. Não te fazemos</p><p>pedidos por sermos justos, mas por causa da tua grande misericórdia. Senhor,</p><p>ouve! Senhor, perdoa! Senhor, vê e age! Por amor de ti, meu Deus, não te</p><p>demores, pois a tua cidade e o teu povo levam o teu nome” (Daniel 9.18-20).</p><p>Ele não faz isso de forma indireta, da maneira costumeira, como se fosse um</p><p>dos indivíduos na multidão: antes, confessa individualmente culpa, e, como</p><p>suplicante comprometendo-se no asilo do perdão, declara de modo distinto</p><p>ter confessado o próprio pecado e o pecado do seu povo, Israel. Davi também</p><p>nos apresenta um exemplo dessa humildade: “Mas não leves o teu servo a</p><p>julgamento, pois ninguém é justo diante de ti” (Salmos 143.2). De maneira</p><p>semelhante, Isaías ora: “Vens ajudar aqueles que praticam a justiça com</p><p>alegria, que se lembram de ti e dos teus caminhos. Mas, prosseguindo nós em</p><p>nossos pecados, tu te iraste. Como, então, seremos salvos? Somos como o</p><p>impuro — todos nós! Todos os nossos atos de justiça são como trapo imundo.</p><p>Murchamos como folhas, e como o vento as nossas iniquidades nos levam</p><p>para longe. Não há ninguém que clame pelo teu nome, que se anime a</p><p>apegar-se a ti, pois escondeste de nós o teu rosto e nos deixaste perecer por</p><p>causa das nossas iniquidades. Contudo, Senhor, tu és o nosso Pai. Nós somos</p><p>o barro; tu és o oleiro. Todos nós somos obra das tuas mãos. Não te ires</p><p>demais, ó Senhor! Não te lembres constantemente das nossas maldades. Olha</p><p>para nós! Somos o teu povo!” (Isaías 64.5-9). Veja que eles não confiam em</p><p>nada, a não ser nisto: considerando que são do Senhor, eles não se</p><p>desesperam, pois são objetos do cuidado divino. Jeremias diz: “Embora os</p><p>nossos pecados nos acusem, age por amor do teu nome, ó Senhor! [...]”</p><p>(Jeremias 14.7). Isso foi escrito de maneira verdadeira e piedosa por um autor</p><p>incerto (quem quer que tenha sido ele), que compôs o livro atribuído ao</p><p>profeta Baruque: “Mas não são os que estão vivos que louvam a tua grandeza</p><p>e a tua justiça, isto é, aqueles que estão muito aflitos, os que andam curvados</p><p>e enfraquecidos, os que terão ficado cegos e os que estão com fome. ‘Ó</p><p>Senhor, nosso Deus, não pedimos que tenhas pena de nós por causa das</p><p>coisas boas que nossos antepassados e nossos reis fizeram’. [...] ‘Ouve-nos,</p><p>Senhor, e tem compaixão de nós, pois temos pecado contra ti’” (Baruque</p><p>2.18,19; 3.2).</p><p>9</p><p>Vantagem da supressão do orgulho. Essa atitude conduz ao sincero pedido</p><p>de perdão, acompanhado da confissão humilde e da segura confiança na</p><p>misericórdia divina. Isso nem sempre pode ser expresso por palavras. Essa é</p><p>uma atitude peculiar aos penitentes piedosos. Nunca se deve omitir a</p><p>introdução geral à busca do favor para nossas orações.</p><p>Em resumo, a súplica por perdão, com confissão humilde e sincera da</p><p>culpa, forma a preparação e o começo da oração justa. Pois o mais santo dos</p><p>homens não pode esperar obter algo de Deus, a não ser que tenha sido</p><p>livremente reconciliado a ele. Deus não pode ser propício a ninguém, a não</p><p>ser a quem ele perdoa. Logo, não é estranho que essa seja a chave pela qual</p><p>os cristãos abrem a porta da oração, como aprendemos de várias passagens de</p><p>Salmos. Davi, ao apresentar um pedido em um assunto diferente, diz: “Não te</p><p>lembres dos pecados e transgressões da minha juventude; conforme a tua</p><p>misericórdia, lembra-te de mim, pois tu, Senhor, és bom” (Salmos 25.7). E</p><p>outra vez: “Olha para a minha tribulação e o meu sofrimento, e perdoa todos</p><p>os meus pecados” (Salmos 25.18). Vemos também aqui a insuficiência de nos</p><p>responsabilizarmos por nossos pecados a cada dia que passa;</p><p>devemos também ter em mente os que podem há muito estar sepultados no</p><p>esquecimento. Pois em outra passagem o mesmo profeta, confessando um</p><p>crime grave, aproveita a oportunidade para retroceder até o próprio</p><p>nascimento: “Sei que sou pecador desde que nasci; sim, desde que me</p><p>concebeu minha mãe” (Salmos 51.5); não para extenuar a falta pela</p><p>corrupção de sua natureza, mas como que para acumular os pecados de toda a</p><p>sua vida, pois, quanto mais rigoroso ele fosse em condenar a si mesmo, mais</p><p>aplacável Deus seria. Ainda que os santos nem sempre expressem termos de</p><p>perdão de pecados, se refletirmos com cuidado sobre as orações apresentadas</p><p>nas Escrituras, a verdade do que declaro aparecerá com rapidez, isto é, a</p><p>coragem deles em orar era derivada apenas da misericórdia divina, e sempre</p><p>começavam pedindo-lhe perdão. Pois, quando o homem interroga sua</p><p>consciência, tão distante ele está de se considerar capaz de lançar suas</p><p>preocupações com confiança na presença de Deus que, se não confiasse na</p><p>misericórdia e no perdão, tremeria só de pensar em se aproximar de Deus.</p><p>Há, de fato, outra confissão especial. Quando os cristãos desejam libertação</p><p>do castigo, ao mesmo tempo eles oram para que seus pecados sejam</p><p>perdoados; pois seria absurdo desejar que o efeito fosse retirado enquanto a</p><p>causa permanece. Pois devemos nos acautelar de não imitar os tolos que,</p><p>ansiosos apenas para curar os sintomas, negligenciam a raiz da doença. De</p><p>fato, nosso esforço deve ser para ter Deus propício mesmo antes que ele</p><p>ateste seu favor por sinais externos, porque essa é a ordem que ele mesmo</p><p>escolhe, e será de pouco proveito experimentar sua bondade se não houver</p><p>consciência de que ele está apaziguado, e isso nos capacita a considerar seu</p><p>amor para conosco. Disso somos lembrados com constância pela resposta do</p><p>Salvador. Tendo determinado curar o paralítico, ele diz: “Teus pecados te são</p><p>perdoados”; em outras palavras, ele eleva nossos pensamentos ao objeto que</p><p>deve ser particularmente desejado, isto é, a admissão no favor de Deus, e</p><p>então concede o fruto da reconciliação ao nos perdoar. Mas além da</p><p>confissão especial da culpa presente — que deve ser feita pelos cristãos —,</p><p>ao suplicar o perdão de cada falta e castigo, a introdução geral que procura o</p><p>favor às orações nunca deve ser omitida, porque as orações nunca chegarão a</p><p>Deus, a não ser que sejam encontradas em livre misericórdia. Quanto a isso,</p><p>podemos usar as palavras de João: “Se confessarmos os nossos pecados, ele é</p><p>fiel e justo para perdoar os nossos pecados e nos purificar de toda injustiça”</p><p>(1João 1.9). Sob a Lei era necessário consagrar as orações pela expiação do</p><p>sangue, para que pudessem ser aceitas e para que o povo fosse advertido de</p><p>sua indignidade com relação àquele alto privilégio, e, sendo purgados de toda</p><p>impureza, eles encontrariam confiança na oração inteiramente na</p><p>misericórdia de Deus.</p><p>10</p><p>Objeção à terceira regra da oração. Da glória dos santos.</p><p>Resposta. Confirmação da resposta.</p><p>Todavia, algumas vezes, os santos, ao suplicar a Deus, pareciam confiar</p><p>em sua própria justiça, tal como quando Davi disse: “Guarda a minha vida,</p><p>pois sou fiel a ti [...]” (Salmos 86.2). Ezequias disse: “‘Lembra-te, Senhor, de</p><p>como tenho te servido com fidelidade e com devoção sincera, e tenho feito o</p><p>que tu aprovas’ [...]” (Isaías 38.3). Essas expressões querem dizer que pela</p><p>regeneração eles estão entre os servos e filhos a quem Deus demonstrará</p><p>favor. Já vimos como ele declara por meio do salmista: “Os olhos do Senhor</p><p>voltam-se para os justos e os seus ouvidos estão atentos ao seu grito de</p><p>socorro” (Salmos 34.15), e mais uma vez pelo apóstolo: “e recebemos dele</p><p>tudo o que pedimos, porque obedecemos aos seus mandamentos e fazemos o</p><p>que lhe agrada” (1João 3.22). Nessas passagens ele não estabelece um valor</p><p>para a oração como obra meritória, mas designa estabelecer a confiança dos</p><p>conscientes da integridade e inocência não fingidas, que todos os cristãos</p><p>devem ter, pois a afirmação do cego que teve a visão restabelecida está em</p><p>perfeito acordo com a verdade divina: Deus não ouve pecadores (João 9.31);</p><p>considerando que usamos a palavra “pecadores” no sentido comum das</p><p>Escrituras para designar os que, sem qualquer desejo por justiça, dormem</p><p>seguros em seus pecados; pois nenhum coração apresentará uma oração</p><p>genuína se ao mesmo tempo não desejar a santidade. As alegações feitas</p><p>pelos santos quanto à sua pureza e integridade correspondem às promessas</p><p>feitas em sua própria experiência, uma manifestação do que todos os servos</p><p>de Deus devem esperar. Por isso eles quase sempre usam esse modo de</p><p>oração quando se comparam com seus inimigos diante de Deus — eles</p><p>desejam ser libertos da injustiça pela mão divina. Ao fazer essas</p><p>comparações, não causa admiração que eles apresentem sua integridade e</p><p>simplicidade de coração e que, pela justiça de sua causa, o Senhor esteja</p><p>disposto a lhes dar socorro. Não tiramos do piedoso o privilégio de desfrutar</p><p>de uma consciência pura perante o Senhor, e assim se sentindo, assegurado</p><p>das promessas com as quais ele conforta e apoia seus verdadeiros adoradores,</p><p>mas devemos deixar de lado todo pensamento dos méritos próprios deles e</p><p>encontrar a confiança deles de sucesso na oração somente na divina</p><p>misericórdia.</p><p>11</p><p>Quarta regra da oração: a confiança inabalável de sermos ouvidos</p><p>nos incentiva à oração. O tipo de confiança necessária, ou seja, a</p><p>convicção profunda da nossa miséria, unida à esperança absoluta.</p><p>A partir dessas verdadeiras fontes de oração. Como a desconfiança</p><p>prejudica a oração. Em geral, a fé é necessária.</p><p>A quarta regra de oração é que, não obstante nosso ser se encontrar</p><p>rebaixado e verdadeiramente humilhado, devemos ter ânimo para orar com a</p><p>segura esperança de sermos ouvidos. Há de fato uma aparência de</p><p>contradição entre essas duas afirmações, entre o sentimento de justa vingança</p><p>divina e a firme confiança em seu favor, mas elas estão perfeitamente de</p><p>acordo, pois a bondade de Deus exalta os esmagados pelos próprios pecados.</p><p>Pois, como já demonstramos (cap. III, seções 1 e 2) que o arrependimento e a</p><p>fé andam de mãos dadas, sendo unidos por um laço indissolúvel — um</p><p>provocando terror, e a outra, alegria —, assim, na oração, ambos devem estar</p><p>presentes. Davi concorda com isso em poucas palavras: “Eu, porém, pelo teu</p><p>grande amor, entrarei em tua casa; com temor me inclinarei para o teu santo</p><p>templo” (Salmos 5.7). Deus, em sua bondade, inclui a fé, mas ao mesmo</p><p>tempo não exclui o temor; pois não só a majestade divina impele nossa</p><p>reverência, mas nossa própria indignidade também tira de nós todo o orgulho</p><p>e a autoconfiança e nos mantém em temor. A confiança da qual falo não é a</p><p>que liberta a mente da ansiedade e a suaviza com doce e perfeito descanso; tal</p><p>descanso é peculiar aos que em todos os seus assuntos não são perturbados</p><p>por nenhuma preocupação, feridos por nenhum remorso, agitados por</p><p>nenhum temor. Mas o melhor estímulo dos santos para orar é quando, em</p><p>consequência de suas necessidades, sentem a maior inquietude, e são levados</p><p>ao desespero, até que a fé, em momento oportuno, venha em seu auxílio;</p><p>porque em apuros dessa natureza a bondade de Deus resplandece sobre eles,</p><p>de modo que, enquanto gemem, sobrecarregados pelo peso das calamidades</p><p>do presente, e atormentados pelo medo de calamidades ainda maiores,</p><p>confiam na bondade e, dessa maneira, têm aliviadas as dificuldades das</p><p>provações e recebem conforto na esperança da libertação final. Por</p><p>conseguinte, é necessário que a oração de quem crê resulte desses</p><p>sentimentos e manifeste a influência deles; a saber, ainda que o cristão gema</p><p>no presente e ansiosamente tema novos males, ele ao mesmo tempo deve</p><p>recorrer a Deus, não duvidando de que este está pronto para estender sua mão</p><p>ajudadora. Pois não é fácil dizer quanto Deus se irrita por nossa falta de</p><p>confiança quando pedimos, mas não temos confiança na sua bondade. Por</p><p>conseguinte, nada está mais de acordo com a natureza da oração que</p><p>apresentá-la como uma regra fixa, que não deve ocorrer por acaso, mas sim</p><p>seguir os passos da fé. A este princípio Cristo nos direciona com as seguintes</p><p>palavras: “‘Portanto, eu digo: Tudo o que vocês pedirem em oração, creiam</p><p>que já o receberam, e assim sucederá’” (Marcos 11.24). Ele declara o mesmo</p><p>em outra passagem: “‘E tudo o que pedirem em oração, se crerem, vocês</p><p>receberão’” (Mateus 21.22). As palavras de Tiago concordam com isso: “Se</p><p>algum de vocês tem falta de sabedoria, peça-a a Deus, que a todos dá</p><p>livremente, de boa vontade; e lhe será concedida” (Tiago 1.5). Ele expressa</p><p>com adequação o poder da fé ao contrapô-la à dúvida. Não menos digna de</p><p>menção é sua declaração adicional: quem se aproxima de Deus com a mente</p><p>hesitante, que duvida, sem a certeza de ser ouvido ou não, não obterá nada</p><p>em suas orações. Ele compara tais pessoas a ondas do mar, impelidas e</p><p>agitadas pelo vento. Por isso que em outra passagem ele denomina a oração</p><p>genuína de “oração feita com fé” (Tiago 5.15). Mais uma vez, considerando-</p><p>se que Deus declara que dará a cada homem de acordo com sua fé, ele afirma</p><p>a impossibilidade de obter algo sem fé. Em suma, a fé obtém tudo o que é</p><p>oferecido na oração. Este é o sentido de Paulo na passagem bem conhecida à</p><p>qual homens fracos dão pouca atenção: “Como, pois, invocarão aquele em</p><p>quem não creram? E como crerão naquele de quem não ouviram falar? E</p><p>como ouvirão, se não houver quem pregue? [...] Consequentemente, a fé vem</p><p>por se ouvir a mensagem, e a mensagem é ouvida mediante a palavra de</p><p>Cristo” (Romanos 10.14,17). Deduzindo-se de forma gradual a origem da</p><p>oração na fé, ele mantém que Deus não pode ser invocado com sinceridade, a</p><p>não ser por quem, mediante a pregação do Evangelho, sua misericórdia e boa</p><p>vontade se tornaram conhecidas, isto é, explicadas de termos conhecidos.</p><p>12</p><p>Essa fé e esperança plena consideradas extremamente absurdas</p><p>por</p><p>nossos oponentes. Seu erro descrito e refutado por várias passagens da</p><p>Escritura, mostrando que a oração aceitável é acompanhada por essas</p><p>qualidades. Não há incompatibilidade entre essa certeza e o reconhecimento</p><p>de nossa destituição.</p><p>Nossos oponentes não consideram de modo algum essa necessidade. Como</p><p>consequência, quando dizemos que os cristãos devem sentir firme segurança,</p><p>eles pensam que estamos dizendo a coisa mais absurda do mundo. Mas, se</p><p>eles tivessem qualquer experiência com a oração verdadeira, sem dúvida</p><p>entenderiam que Deus não pode ser invocado de maneira tola sem o sentido</p><p>firme da benevolência divina. No entanto, como nenhum homem pode</p><p>perceber bem o poder da fé, sem ao mesmo tempo senti-lo no coração, que</p><p>proveito há em discutir com homens desse caráter, que com clareza</p><p>demonstram que jamais contaram com algo além da imaginação fútil? O</p><p>valor e a necessidade da segurança pela qual contendemos são aprendidos</p><p>principalmente por meio da oração. Quem não o enxerga dá prova de uma</p><p>consciência muito estúpida. Portanto, deixando os cegos dessa maneira,</p><p>fixemos nossos pensamentos nas palavras de Paulo: Deus só pode ser</p><p>invocado como tal por quem obteve conhecimento de sua misericórdia no</p><p>Evangelho e se sente seguro e firme de que a misericórdia está pronta a lhe</p><p>ser concedida. Que tipo de oração seria essa? “Senhor, estou de fato em</p><p>dúvida se tu te inclinas ou não para me ouvir; mas, estando oprimido pela</p><p>ansiedade, eu me dirijo a ti para que se for digno, tu possas me auxiliar.”</p><p>Nenhum dos santos — cujas orações nos são apresentadas nas Escrituras —</p><p>orou assim. Nem somos ensinados dessa maneira pelo Espírito Santo, que nos</p><p>diz: “Assim, aproximemo-nos do trono da graça com toda a confiança, a fim</p><p>de recebermos misericórdia e encontrarmos graça que nos ajude no momento</p><p>da necessidade” (Hebreus 4.16); e em outro lugar nos ensina: “por intermédio</p><p>de quem temos livre acesso a Deus em confiança, pela fé nele” (Efésios</p><p>3.12). A confiança relativa à obtenção do que pedimos, a confiança ordenada</p><p>pelo Senhor, e ensinada por todos os santos mediante seu exemplo, deve ser</p><p>mantida com firmeza por nós, com as duas mãos, caso venhamos a orar com</p><p>algum proveito. A única oração aceitável a Deus é a que flui (se assim posso</p><p>me expressar) desse pressuposto de fé e é encontrada em plena segurança de</p><p>esperança. Ele poderia se contentar em usar o simples nome da fé, mas ele</p><p>acrescenta não apenas a confiança, mas liberdade ou ousadia, para que por</p><p>essa marca ele possa nos distinguir dos incrédulos, que de fato gostam de que</p><p>oremos a Deus, mas oram de maneira aleatória. Por isso, toda a igreja ora da</p><p>seguinte maneira: “Esteja sobre nós o teu amor, Senhor, como está em ti a</p><p>nossa esperança” (Salmos 33.22). A mesma condição é apresentada pelo</p><p>salmista em outra passagem: “Os meus inimigos retrocederão, quando eu</p><p>clamar por socorro. Com isso saberei que Deus está a meu favor” (Salmos</p><p>56.9). E mais uma vez: “De manhã ouves, Senhor, o meu clamor; de manhã</p><p>te apresento a minha oração e aguardo com esperança” (Salmos 5.3). Por</p><p>essas palavras concluímos que as orações são lançadas com inutilidade ao ar,</p><p>caso não sejam acompanhadas da fé, por meio da qual, como uma torre de</p><p>vigia, pode-se esperar por Deus em quietude. Com isso concorda a ordem da</p><p>exortação de Paulo. Pois antes de instar os cristãos à oração contínua no</p><p>Espírito, com vigilância e assiduidade, ele os exorta a tomar o “escudo da fé</p><p>[...] o capacete da salvação e a espada do Espírito, que é a palavra de Deus”</p><p>(Efésios 6.16,17).</p><p>Que o leitor se lembre do que já observei: a fé jamais fracassa, mesmo que</p><p>acompanhada do reconhecimento da nossa impiedade, pobreza e iniquidade.</p><p>Quando os cristãos mais se sentem oprimidos pela pesada carga de</p><p>iniquidade, e destituídos não apenas de tudo o que pode buscar para eles o</p><p>favor de Deus, mas sobrecarregados com muitos pecados que fazem deles um</p><p>motivo de horror, mesmo assim eles não cessam de se apresentar, e esse</p><p>sentimento não os impede de comparecer à sua presença, pois não há outro</p><p>acesso a ele. A oração genuína não é aquela pela qual nós nos exaltamos com</p><p>arrogância diante de Deus, ou damos muito valor a tudo que seja nosso, mas</p><p>aquela pela qual, enquanto confessamos a culpa, apresentamos nossas</p><p>tristezas a Deus, como as crianças apresentam suas reclamações aos pais.</p><p>Disso o salmista nos dá exemplo: “[...] ‘Misericórdia, Senhor! Cura-me, pois</p><p>pequei contra ti’” (Salmos 41.4). Eu confesso de fato que esses aguilhões</p><p>seriam dardos mortais se Deus não desse socorro; no entanto, nosso Pai</p><p>celestial adicionou, com inefável bondade, a cura pela qual, acalmando toda a</p><p>perturbação, suaviza nossas preocupações e faz nossos medos desaparecerem.</p><p>Ele, em bondade, nos atrai para si mesmo; assim, removendo todas as</p><p>dúvidas e obstáculos, torna o caminho mais suave para nós.</p><p>13</p><p>À nossa indignidade opomos: a) O mandamento de Deus.</p><p>b) A promessa. Rebeldes e hipócritas de todo condenados.</p><p>Passagens da Escritura que confirmam o mandamento de orar.</p><p>Antes de qualquer outra coisa, ao unir-se conosco em oração, por essa</p><p>injunção mesma ele nos convence de uma teimosia ímpia, se não</p><p>obedecemos. Ele não poderia dar um mandamento mais preciso que o</p><p>presente em Salmos: “‘clame a mim no dia da angústia [...]’” (50.15). Como</p><p>não há ofício de piedade mais frequente nas Escrituras, não há motivo para</p><p>que dele nos afastemos. “‘Peçam’”, diz nosso Divino Mestre, “‘será dado;</p><p>busquem, e encontrarão; batam, e a porta será aberta’” (Mateus 7.7). Nesse</p><p>ponto, uma promessa é adicionada ao preceito, e isso é necessário. Porquanto,</p><p>ainda que todos confessem que precisamos obedecer aos preceitos, muitos</p><p>recusariam o convite divino, se ele não tivesse prometido ouvir e encontrar-se</p><p>pronto para responder. Apresentadas essas duas posições, é certo que todos os</p><p>que alegam, na base de sofismas, que não precisam se apresentar de forma</p><p>direta a Deus não são apenas rebeldes e desobedientes, mas também culpados</p><p>de incredulidade, na medida de sua desconfiança das promessas. É o</p><p>momento certo para prestar atenção a isso, porque os hipócritas, fingindo</p><p>humildade e modéstia, desprezam o preceito, cheios de orgulho, bem como</p><p>negam todo o crédito ao convite gracioso de Deus; isto é, eles tiram de Deus</p><p>uma parte preciosa da adoração devida. Pois quando ele rejeitou os sacrifícios</p><p>— que pareciam consistir em algo santo —, declarou que o principal e mais</p><p>precioso à sua vista, acima de tudo, é ser invocado no dia da necessidade.</p><p>Portanto, quando ele pede o que lhe pertence, e insta conosco e urge de nós o</p><p>entusiasmo para lhe obedecer, não deve haver pretexto para dúvidas, não</p><p>importa quão especiais estas possam ser, pois nada disso nos servirá como</p><p>desculpa. Logo, todas as passagens das Escrituras que nos ordenam a orar são</p><p>colocadas diante de nossos olhos como muitas bandeiras para inspirar nossa</p><p>confiança. Seria muita pretensão ir à presença de Deus se ele não nos tivesse</p><p>convidado de antemão. Ele abre o caminho para nós por sua própria voz:</p><p>“‘[...] É o meu povo, direi; e ela dirá: “O Senhor é o meu Deus”’” (Zacarias</p><p>13.9). Vemos como ele se antecipa aos adoradores e deseja que eles o sigam,</p><p>por isso não precisamos temer que a melodia por ele entoada se mostre</p><p>desagradável. Tragamos à mente, de maneira especial, a nobre descrição do</p><p>caráter divino, pela confiança na superação de todos os obstáculos: “Ó tu que</p><p>ouves a oração, a ti virão todos os homens” (Salmos 65.2). Pode existir algo</p><p>mais amável ou agradável que contemplar o próprio Deus apresentado com</p><p>um título que nos assegura de que nada está de acordo com sua natureza do</p><p>que ouvir as orações dos suplicantes? Por essa razão o salmista infere que o</p><p>livre acesso não é concedido a uns poucos indivíduos, mas a todos os</p><p>homens, pois Deus se dirige a todos nos seguintes termos: “‘e clame a mim</p><p>no dia da angústia; eu o livrarei, e você me honrará’” (Salmos 50.15). Davi</p><p>apela à promessa concedida para obter o que pede: “‘Ó Senhor dos Exércitos,</p><p>Deus de Israel, tu mesmo o revelaste a teu servo, quando disseste:</p><p>“Estabelecerei uma dinastia para você”. Por isso o teu servo achou coragem</p><p>para orar a ti’” (2Samuel 7.27). Concluímos daí que ele estaria com medo,</p><p>mas a promessa lhe deu coragem. Por isso, em outra passagem, ele se</p><p>fortifica com o ensino geral de que Deus “realiza os desejos daqueles que o</p><p>temem; ouve-os gritar por socorro e os salva” (Salmos 145.19). Podemos</p><p>observar em Salmos como a continuidade da oração é quebrada, e uma</p><p>transição é feita, em um momento, ao poder de Deus, em outro, à sua</p><p>bondade, e em outro ainda, à fidelidade de suas promessas. Parece que Davi</p><p>mutila suas orações ao apresentar seus sentimentos. Os cristãos, contudo,</p><p>bem sabem por experiência que seu ardor cresce lânguido somente se novo</p><p>combustível for adicionado, e, por conseguinte, a meditação sobre a natureza</p><p>da Palavra de Deus na oração não é de modo algum supérflua. Não</p><p>declinemos a imitação do exemplo de Davi e a apresentação de pensamentos</p><p>que nos possam reanimar a mente apática com novo vigor.</p><p>14</p><p>Outras passagens a respeito das promessas pertencentes</p><p>aos pios quando invocam a Deus. Sua realização, apesar de não contarmos</p><p>com a mesma santidade que outros distintos servos de Deus, ainda que não</p><p>nos comprazamos na confiança vã, e nos apeguemos com sinceridade à</p><p>misericórdia de Deus. Quem não invoca a Deus pela necessidade premente</p><p>não é melhor que o idólatra. Essa concorrência de temor e confiança une</p><p>passagens diferentes da Escritura, para nos humilhar a nós mesmos por meio</p><p>da oração, fazendo nossas orações ascenderem.</p><p>É estranho que essas promessas agradáveis nos afetem de maneira tão fria,</p><p>ou rara, se o fazem, pois a maioria dos homens prefere oscilar entre altos e</p><p>baixos, esquecendo-se da fonte de águas vivas, e procure cisternas vazias em</p><p>vez de abraçar a liberalidade divina que lhes é oferecida de maneira</p><p>voluntária (Jeremias 2.13). “O nome do Senhor”, diz Salomão, “é uma torre</p><p>forte; os justos correm para ela e estão seguros” (Provérbios 18.10). Joel,</p><p>depois de predizer o desastre terrível e próximo, apresenta uma declaração</p><p>memorável: “‘E todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo [...]”</p><p>(Joel 2.32). Sabemos que isso se refere ao Evangelho. Apenas um em cem é</p><p>movido a se dirigir à presença de Deus, ainda que exclame como Isaías:</p><p>“‘Antes de clamarem, eu responderei; ainda não estarão falando, e eu os</p><p>ouvirei’” (Isaías 65.24). Em outro momento, essa honra é outorgada de modo</p><p>geral a toda a Igreja — honra pertencente a todos os membros de Cristo:</p><p>“‘Ele clamará a mim, e eu lhe darei resposta, e na adversidade estarei com</p><p>ele; vou livrá-lo e cobri-lo de honra’” (Salmos 91.15). Todavia, minha</p><p>intenção, como já declarei, não é enumerar todas as passagens, mas apenas</p><p>selecionar algumas delas, dentre as mais admiráveis, como modelos da forma</p><p>tão bondosa com que Deus nos atrai para si mesmo, e quão extrema é nossa</p><p>ingratidão quando, mesmo com motivos tão poderosos, nossa preguiça ainda</p><p>nos impede. Por conseguinte, que estas palavras sempre ressoem em nossos</p><p>ouvidos: “O Senhor está perto de todos os que o invocam, de todos os que o</p><p>invocam com sinceridade” (Salmos 145.18). De modo semelhante, Deus</p><p>declara, nas passagens citadas de Isaías e Joel, a abertura de seus ouvidos às</p><p>nossas orações e seu prazer quando lançamos a ele nossas preocupações,</p><p>como se fosse um sacrifício de odor suave. O benefício especial das</p><p>promessas que recebemos quando formulamos nossa oração, não com medo e</p><p>dúvidas, mas quando confiamos em sua palavra — cuja majestade em outro</p><p>momento nos paralisaria —, é o fato de ousarmos chamar-lhe Pai, com ele</p><p>mesmo condescendendo na sugestão desse nome amabilíssimo. Fortificados</p><p>por tais convites, é necessário saber que temos material suficiente para a</p><p>oração, pois nossas orações não dependem do nosso mérito, mas todo o seu</p><p>valor e esperança de sucesso são encontrados nas promessas de Deus e</p><p>dependem delas, de modo que não precisam de outro fundamento — sendo</p><p>necessário olharmos para cima ou para baixo, para a direita ou para a</p><p>esquerda. É preciso, por conseguinte, que se fixe em nossa mente que,</p><p>conquanto não nos igualemos à tão exaltada santidade dos patriarcas, profetas</p><p>e apóstolos, mesmo assim a ordem para orar é comum a eles e a nós também,</p><p>e a fé é comum, pois se dependemos da Palavra de Deus, somos, a esse</p><p>respeito, companheiros deles. Pois o fato de Deus declarar, tal como já</p><p>vimos, que ouvirá a todos e lhes será favorável encoraja o maior de todos os</p><p>miseráveis a esperar alcançar seu pedido; por isso, devemos atender às</p><p>formas gerais de expressão, que, tais como indicadas de forma geral, não</p><p>excluem ninguém, do primeiro ao último; o que se deve ter é sinceridade de</p><p>coração, consciência da própria indignidade, humildade e fé, que não</p><p>podemos, pela hipocrisia da oração enganadora, profanar o nome de Deus.</p><p>Nosso misericordioso Pai não rejeitará a quem ele não só encoraja a</p><p>comparecer à sua presença, mas o insta de todas as maneiras possíveis. Eis o</p><p>método de oração de Davi ao qual já me referi: “‘Ó Soberano Senhor, tu és</p><p>Deus! Tuas palavras são verdadeiras, e tu fizeste essa boa promessa a teu</p><p>servo’” (2Samuel 7.28). Em outra passagem, igualmente é dito: “Seja o teu</p><p>amor o meu consolo, conforme a tua promessa ao teu servo” (Salmos</p><p>119.76). E todo o conjunto dos israelitas sempre se fortificava com a</p><p>memória da aliança, pois Deus prescreveu que eles não deveriam orar com</p><p>medo (Gênesis 32.13). Nisso eles imitaram o exemplo dos patriarcas, em</p><p>particular Jacó, que, depois de confessar-se indigno das muitas misericórdias</p><p>recebidas da mão do Senhor, diz-se encorajado a fazer pedidos ainda maiores,</p><p>pois Deus prometera que os concederia a ele. No entanto, quaisquer que</p><p>sejam os pretextos empregados pelos não cristãos, quando não se dirigem a</p><p>Deus sempre que necessário, nem o buscam, nem imploram sua ajuda, eles</p><p>lhe tiram a honra devida, como se estivessem fabricando para si mesmos</p><p>novos deuses e ídolos, pois dessa forma negam que Deus seja o autor de</p><p>todas as suas bênçãos. Ao contrário, nada liberta de modo mais eficiente a</p><p>mente dos pios da dúvida que se armar com o pensamento de que nenhum</p><p>obstáculo será capaz de impedi-los enquanto forem obedientes ao</p><p>mandamento de Deus, segundo o qual nada lhe é mais grato que a obediência.</p><p>Então, uma vez mais, o que já disse fica ainda mais claro. Isto é, o espírito</p><p>ousado em oração lida bem com o medo, a reverência e a ansiedade, e não há</p><p>incoerência no fato de Deus erguer os prostrados. Dessa maneira, formas de</p><p>expressão aparentemente inconsistentes se harmonizam de maneira</p><p>admirável. Jeremias e Davi falam em apresentar com humildade nossas</p><p>súplicas a Deus (Jeremias 42.9; Daniel 9.18). Em outra passagem, Jeremias</p><p>diz: “[...] ‘Por favor, ouça a nossa petição e ore ao Senhor, ao seu Deus, por</p><p>nós e em favor de todo este remanescente [...]’” (Jeremias 42.2). Já aos</p><p>crentes sempre se diz que devem elevar as preces. Assim diz Ezequias,</p><p>pedindo ao profeta que assuma o ofício da intercessão (2Reis 19.4). E Davi</p><p>diz: “Seja a minha oração como incenso diante de ti e o levantar das minhas</p><p>mãos como a oferta da tarde” (Salmos 141.2). A explicação é que, mesmo</p><p>sendo crentes, persuadidos do amor paternal de Deus, alegremente confiantes</p><p>em sua fidelidade, e não tendo hesitação em implorar a ajuda que ele oferece</p><p>de modo voluntário, eles não exultam com uma segurança orgulhosa ou</p><p>supina, mas permanecem suplicantes humildes.</p><p>15</p><p>Objeção fundamentada em alguns exemplos, ou seja, as orações se</p><p>provaram eficientes, ainda que não segundo a forma prescrita. Resposta.</p><p>Tais exemplos, mesmo que não objetivem ser imitados por nós, são muito</p><p>úteis. Objeção: as orações dos fiéis algumas vezes não são eficientes.</p><p>Resposta confirmada por uma nobre passagem de Agostinho. Regra para a</p><p>oração correta.</p><p>Neste ponto, como objeção, várias questões são levantadas. As Escrituras</p><p>relatam que Deus algumas vezes atendeu a algumas orações feitas por mentes</p><p>que não estavam em ordem nem em paz. É verdade que era bem fundada a</p><p>razão pela qual Jotão imprecou contra os habitantes de Siquém:</p><p>que um</p><p>desastre sobreviria sobre eles, pois ele estava inflamado com ódio e desejo de</p><p>vingança (Juízes 9.20); e Deus, ao atender à execração, parece aprovar os</p><p>impulsos apaixonados. Fervor semelhante aprisionou Sansão, quando orou</p><p>“[...] ‘[...] Ó Deus, eu te suplico, dá-me forças, mais uma vez, e faze com que</p><p>eu me vingue dos filisteus por causa dos meus dois olhos!’” (Juízes 16.28).</p><p>Pois, ainda que houvesse um tanto de bom zelo, o sentimento predominante</p><p>nele era o desejo fervente e, por conseguinte, vicioso por vingança. Deus</p><p>permite, e aparentemente pode se inferir que essas orações são efetivas, ainda</p><p>que não formuladas em conformidade com a regra da palavra. Como</p><p>resposta, digo em primeiro lugar que a lei perpétua não é revogada por</p><p>exemplos singulares; em segundo lugar, sugestões especiais algumas vezes</p><p>são feitas por alguns indivíduos, cujos casos se tornam diferentes dos da</p><p>maioria dos homens. Pois devemos prestar atenção à resposta que nosso</p><p>Salvador deu a seus discípulos quando eles pediram de maneira descuidada</p><p>para imitar o exemplo de Elias: “[...] ‘Vocês não sabem de que espécie de</p><p>espírito vocês são [...]’” (Lucas 9.55). Devemos, por isso, ir além e dizer que</p><p>os desejos concedidos por Deus nem sempre lhe são agradáveis; mas ele os</p><p>atende, porque é necessário, como uma forma de dar o exemplo, para</p><p>evidenciar a clara doutrina das Escrituras, isto é, que ele auxilia os miseráveis</p><p>e ouve os gemidos dos afligidos com injustiça que lhe imploram o auxílio.</p><p>Dessa maneira, ele executa seu juízo quando as queixas dos necessitados,</p><p>ainda que em si mesmas indignas de atenção, sobem a ele. Pois com que</p><p>frequência, ao infligir castigo aos ímpios por sua crueldade, roubo, violência,</p><p>luxúria e outros crimes, ao refrear a audácia e a fúria, e também ao derrubar</p><p>poderes tirânicos, ele declarou conceder assistência aos imerecidamente</p><p>oprimidos, ainda que, ao se dirigir a uma divindade desconhecida, eles</p><p>simplesmente dão murros no ar? Há um salmo que ensina com nitidez que as</p><p>orações não são sem efeito, ainda que não penetrem os céus pela fé (Salmos</p><p>107.6,13,19). Pois ele enumera as orações que, por instinto natural, a</p><p>necessidade obriga os não cristãos a fazer, não menos que os cristãos, e pelas</p><p>quais revela que Deus, ainda assim, lhes é propício. Isso serve para testificar,</p><p>mediante a disposição para ouvir, que as orações deles lhe são agradáveis?</p><p>Não; antes, em primeiro lugar, é para magnificar ou apresentar a misericórdia</p><p>de Deus pelas circunstâncias, que mesmo os desejos dos não cristãos não são</p><p>negados; e, em segundo lugar, para estimular os verdadeiros adoradores a</p><p>orarem com fervor, quando virem que algumas vezes mesmo os lamentos dos</p><p>ímpios não ficam sem resposta. Mas isso não é razão para que os cristãos se</p><p>desviem da lei divinamente imposta, ou tenham inveja dos não cristãos, como</p><p>se estes tivessem obtido muita coisa ao receber seu pedido. Observamos (cap.</p><p>III, seç. 25) que dessa maneira Deus deu preferência ao arrependimento</p><p>fingido de Acabe, para poder demonstrar quão pronto ele está a ouvir seus</p><p>eleitos quando, com contrição verdadeira, buscam seu favor. Ele também</p><p>repreende os judeus, que, pouco depois de experimentar a boa vontade divina</p><p>em ouvir suas orações, voltaram às suas inclinações perversas. Isso está</p><p>plenamente claro no livro de Juízes: sempre que eles choravam, mesmo que</p><p>suas lágrimas fossem enganosas, eram libertos das mãos dos inimigos.</p><p>Portanto, como Deus faz o sol brilhar de modo indiscriminado sobre maus e</p><p>bons, ele não despreza as lágrimas de quem tem uma boa causa, cujas</p><p>tristezas merecem alívio. Entretanto, ainda que os ouça, isso se deve mais à</p><p>salvação que ao suprimento de comida dado por ele a quem despreza sua</p><p>bondade.</p><p>Parece haver uma questão ainda mais difícil referente a Abraão e a Samuel.</p><p>Abraão, sem qualquer instrução da Palavra de Deus, orou a favor do povo de</p><p>Sodoma, e Samuel, contrariando a proibição expressa, orou a favor de Saul</p><p>(Gênesis 18.23; 1Samuel 15.11). Semelhante é o caso de Jeremias, que orou</p><p>para que a cidade não fosse destruída (Jeremias 32.16ss). É verdade que essas</p><p>orações foram recusadas, mas é difícil afirmar que eles oraram sem fé. Os</p><p>leitores simples, assim espero, ficarão satisfeitos com esta solução, isto é, que</p><p>se inclinando ao princípio geral pelo qual Deus se agrada em ser</p><p>misericordioso até mesmo com os indignos, eles não estavam de todo</p><p>destituídos de fé, ainda que nesse exemplo particular seu desejo não tenha</p><p>sido atendido. Agostinho observa com sagacidade: “Como os santos oram</p><p>com fé quando pedem a Deus algo contrário a seu decreto? A saber, porque</p><p>eles oram de acordo com sua vontade, não a vontade oculta e imutável, mas a</p><p>que ele lhes sugere, para que ele os ouça de outra maneira; e ele faz essa</p><p>distinção com sabedoria” (A cidade de Deus, livro XXII, cap. 2). Isso é dito</p><p>em verdade; pois, em seu conselho incompreensível, ele regula os</p><p>acontecimentos, para que as orações dos santos, ainda que envolvam a</p><p>mistura de fé e erro, não sejam vãs. E mesmo que isso não sancione a</p><p>imitação que sirva de desculpa para os santos, duvido que excedam os</p><p>devidos limites. Por conseguinte, mesmo não havendo uma promessa</p><p>específica, nosso pedido a Deus deve ter uma condição anexada. Aqui</p><p>podemos nos referir à oração de Davi: “[...] Desperta-te, meu Deus! Ordena a</p><p>justiça!” (Salmos 7.6); pois ele nos lembra que recebeu uma instrução</p><p>especial para orar pela bênção temporal.</p><p>16</p><p>As quatro regras de oração a seguir não devem ser seguidas com</p><p>rigidez, como se cada oração deficiente nelas em algum aspecto</p><p>fosse rejeitada por Deus. Sua demonstração por meio de exemplos.</p><p>Conclusão, ou resumo desta seção.</p><p>É também importante observar que as quatro leis da oração tratadas aqui</p><p>por mim não são reforçadas com muito rigor, como se Deus rejeitasse as</p><p>orações nas quais não encontrasse perfeita fé ou arrependimento,</p><p>acompanhadas de zelo fervoroso e desejos devidamente moldados. Dissemos</p><p>(seç. 4): ainda que a oração seja a relação familiar dos cristãos com Deus,</p><p>devem-se observar a reverência e a modéstia. Não devemos dar livre vazão a</p><p>nossos desejos, nem desejar nada distante do que Deus permite; além disso, a</p><p>não ser que a majestade de Deus seja desprezada, nossa mente deve ser</p><p>elevada à veneração pura e casta. Nenhum homem jamais o conseguiu com</p><p>perfeição absoluta. Pois, sem falar dos homens em geral, com que frequência</p><p>reclamações de Davi são intemperantes? Não que ele queira de fato</p><p>argumentar com Deus ou reclamar em seu juízo; no entanto, mediante a</p><p>enfermidade, ele não encontra consolo melhor que derramar suas dores no</p><p>colo do Pai celestial. Até mesmo nosso gaguejar é tolerado por Deus, e</p><p>perdão é concedido à nossa ignorância tantas vezes quantas necessitamos; de</p><p>fato, sem essa indulgência, não teríamos liberdade para orar. Mas ainda que</p><p>fosse intenção de Davi se submeter por inteiro à vontade de Deus, e orasse</p><p>com o mesmo fervor e não menor paciência, mesmo assim emoções</p><p>indesejáveis surgiriam — emoções que não variariam muito da primeira lei</p><p>que expusemos. Em particular, podemos ver em uma afirmação do salmo 39</p><p>como esse santo foi levado pela veemência da dor e se tornou incapaz de não</p><p>expressá-la. “Desvia de mim os teus olhos, para que eu volte a ter alegria,</p><p>antes que eu me vá e deixe de existir” (Salmos 39.13). Essa poderia ser</p><p>chamada “linguagem do homem desesperado”, cujo único desejo é que Deus</p><p>se retire e o deixe em seus dissabores. Não que sua mente devota mergulhe</p><p>nessa destemperança, ou que, como os réprobos, deseje se ver livre de Deus;</p><p>ele apenas reclama que a ira divina é mais do que pode suportar. Nesses</p><p>testes, surgem desejos que não estão de acordo com a regra da Palavra, na</p><p>qual os santos não consideram de forma devida o que é legal e correto. De</p><p>fato, orações contaminadas por tais faltas merecem ser rejeitadas; mas Deus</p><p>as perdoa, desde que os santos se lamentem, corrijam-se e caiam em si.</p><p>Faltas semelhantes são cometidas em consideração à segunda lei (quanto a</p><p>isso, veja a seç. 6), pois os santos sempre têm de lutar contra</p><p>a própria frieza,</p><p>seus desejos e sua miséria, que nem sempre os motivam o suficiente à oração</p><p>séria. Também a mente deles vagueia e quase sempre se perde; por isso,</p><p>nessa questão, há também necessidade de perdão, para que suas orações,</p><p>longe de serem lânguidas ou mutiladas, interrompidas ou difusas, sejam</p><p>recebidas com uma recusa. Um dos sentimentos naturais que Deus imprimiu</p><p>em nossa mente é que a oração só é genuína caso os pensamentos se elevem.</p><p>Daí a cerimônia de levantar as mãos, a respeito da qual já advertimos — uma</p><p>cerimônia conhecida de todas as épocas e nações, ainda em uso. Mas quem,</p><p>ao levantar as mãos, não está consciente da preguiça e do coração apegado à</p><p>terra? Com respeito ao pedido por remissão de pecados (seç. 8), ainda que</p><p>nenhum cristão o omita, todos os exercitados de verdade na oração sabem</p><p>que eles não contam com um décimo do sacrifício a respeito do qual Davi</p><p>fala: “Os sacrifícios que agradam a Deus são um espírito quebrantado; um</p><p>coração quebrantado e contrito, ó Deus, não desprezarás” (Salmos 51.17).</p><p>Logo, deve-se buscar sempre o perdão duplo; primeiro, porque há</p><p>consciência de muitas faltas que não os tocam para fazer que se sintam</p><p>insatisfeitos consigo mesmos como deveriam; segundo, na medida de sua</p><p>capacidade para desfrutar de ganho no arrependimento e no temor de Deus,</p><p>eles são humilhados com tristeza por suas ofensas, e oram pela remissão do</p><p>castigo determinado pelo juiz. O que mais deturpa a oração, caso Deus não se</p><p>manifeste com indulgência, é a fraqueza ou imperfeição da fé; mas é</p><p>maravilhoso que esse defeito seja perdoado por Deus, que sempre exercita</p><p>seu povo com juízos severos, como se ele quisesse mesmo lhes extinguir a fé.</p><p>A mais dura das provações é quando os crentes são forçados a exclamar: “Ó</p><p>Senhor, Deus dos Exércitos, até quando arderá a tua ira contra as orações do</p><p>teu povo?” (Salmos 80.4), como se as próprias orações deles o tivessem</p><p>ofendido. Da mesma maneira, Jeremias diz: “Mesmo quando chamo ou grito</p><p>por socorro, ele rejeita a minha oração” (Lamentações 3.8), não deixando</p><p>dúvida de que se encontrava muito perturbado. Muitos exemplos do mesmo</p><p>tipo ocorrem nas Escrituras, nos quais se manifesta que a fé dos santos</p><p>sempre foi misturada com dúvidas e temores, pois mantinham algum grau de</p><p>descrença ao mesmo tempo em que criam e esperavam. No entanto, pelo fato</p><p>de nunca chegarem ao limite extremo, essa é apenas uma razão adicional para</p><p>corrigirem suas faltas, para que a cada dia cheguem mais perto da lei perfeita</p><p>da oração e ao mesmo tempo percebam o abismo de males em que estavam</p><p>mergulhados. Eles tentavam encontrar a cura, mas trouxeram sobre si novas</p><p>doenças, pois não há oração que Deus não desdenhe sem causa; ele não</p><p>desconsiderou as manchas com as quais todos estavam poluídos. Não</p><p>menciono essas coisas para que os cristãos possam perdoar a si mesmos de</p><p>quaisquer faltas que tenham cometido, mas para que possam se vigiar e, por</p><p>conseguinte, suportar os obstáculos até vencê-los; e ainda que Satanás tente</p><p>bloquear todos os caminhos para nos impedir de orar, eles são capazes, não</p><p>obstante, de superar tudo, estando persuadidos com firmeza de que, mesmo</p><p>não isentos de problemas, seus esforços são agradáveis a Deus, e seus desejos</p><p>são aprovados, desde que se esforcem e mantenham o objetivo, mesmo que</p><p>não o alcancem de imediato.</p><p>17</p><p>Por meio de quem Deus deve ser invocado, ou seja, Jesus Cristo.</p><p>Isto se fundamenta na consideração da majestade divina e no preceito</p><p>e na promessa do próprio Deus. Portanto, Deus deve ser invocado</p><p>apenas em nome de Cristo.</p><p>Nenhum homem é merecedor de avançar no próprio nome e aparecer na</p><p>presença de Deus, nosso Pai celestial, para nos livrar de uma vez por todas do</p><p>temor e da vergonha, com os quais todos se sentem oprimidos. Por isso nos</p><p>deu seu Filho, Jesus Cristo nosso Senhor, para ser nosso Advogado e</p><p>Mediador, e sob sua guia podemos nos aproximar seguros, confiantes de que</p><p>com ele como nosso Intercessor nada que pedimos em seu nome nos será</p><p>negado, como não há nada que o Pai possa negar a ele (1Timóteo 2.5; 1João</p><p>2.1; cf. seç. 36 e 37). Para isso é necessário fazer referência a tudo que</p><p>ensinamos antes a respeito da fé; pois, como a promessa nos dá Cristo como</p><p>nosso Mediador, a não ser que nossa esperança de obter o que pedimos esteja</p><p>baseada nele, isso tirará de nós o privilégio da oração. Pois é impossível</p><p>pensar da terrível majestade de Deus sem que nos alarmemos; e o sentido da</p><p>nossa própria indignidade deve nos manter em nosso próprio lugar, até que</p><p>Cristo se interponha e converta um trono de glória terrível em um trono de</p><p>graça, como o apóstolo ensina que devemos nos aproximar “do trono da</p><p>graça com toda a confiança, a fim de recebermos misericórdia e encontrarmos</p><p>graça que nos ajude no momento da necessidade” (Hebreus 4.16). Como se</p><p>estabeleceu uma regra sobre como orar, também uma promessa foi feita de</p><p>que: quem ora será ouvido, de modo que devemos orar em nome de Cristo. A</p><p>promessa é de que obteremos o que pedirmos em seu nome: “‘E eu farei o</p><p>que vocês pedirem em meu nome’”, diz nosso Salvador, “‘para que o Pai seja</p><p>glorificado no Filho. [...] Até agora vocês não pediram nada em meu nome.</p><p>Peçam e receberão, para que a alegria de vocês seja completa’” (João 14.13;</p><p>16.24). Então está claro que quem ora a Deus em outro nome — que não o de</p><p>Cristo — falsifica suas ordens com teimosia e considera a vontade dele como</p><p>nada, e com isso não obterá nenhuma promessa. Como Paulo disse: “pois</p><p>quantas forem as promessas feitas por Deus, tantas têm em Cristo o ‘sim’.</p><p>Por isso, por meio dele, o ‘Amém’ é pronunciado por nós para a glória de</p><p>Deus” (2Coríntios 1.20), isto é, são confirmadas e cumpridas nele.</p><p>18</p><p>Desde o princípio todos os cristãos foram ouvidos apenas</p><p>por meio dele: contudo, isso se restringe de modo especial ao período</p><p>subsequente à sua ascensão. O fundamento dessa restrição.</p><p>< Devemos prestar atenção às circunstâncias do tempo com cuidado. Cristo</p><p>ordena aos discípulos que recorram à sua intercessão depois de sua ascensão</p><p>ao céu: “‘Nesse dia, vocês pedirão em meu nome [...]” (João 16.26). De fato,</p><p>é correto que, desde o princípio, quem orou foi ouvido por causa do</p><p>Mediador. Por essa razão Deus ordenou na Lei que apenas o sacerdote</p><p>entraria no santuário, levando o nome das 12 tribos de Israel sobre seus</p><p>ombros, e com a mesma quantidade de pedras preciosas em seu peito,</p><p>enquanto o povo permanecia à distância no átrio exterior e de lá unia suas</p><p>orações às do sacerdote. O sacrifício objetivava ratificar e confirmar as</p><p>orações deles. A sombria cerimônia da Lei ensinava em primeiro lugar que</p><p>todos estamos excluídos da face de Deus, e, por conseguinte, há a</p><p>necessidade do surgimento de um Mediador em nosso nome, que nos leve</p><p>sobre seus ombros e nos mantenha junto ao seu peito, para que sejamos</p><p>ouvidos na pessoa dele. Em segundo lugar, que nossas orações, como</p><p>dissemos, nunca estão livres de impureza, mas são purificadas pela aspersão</p><p>de seu sangue. E vemos que os santos, quando desejavam obter alguma coisa,</p><p>encontravam esperança nos sacrifícios, porque sabiam que dessa maneira</p><p>todas as orações seriam confirmadas. “Lembre-se de todas as tuas ofertas”,</p><p>diz Davi, “e aceite os teus holocaustos” (Salmos 20.3). Daí se infere que</p><p>desde o princípio Deus era aplacado pela intercessão de Cristo, ao receber as</p><p>orações do seu povo. Então por que Cristo fala de um novo tempo (“neste</p><p>dia”) quando os discípulos deveriam orar em seu nome, a não ser que essa</p><p>graça, agora apresentada de maneira mais luminosa, deveria também receber</p><p>nossa mais alta consideração? Nesse sentido, pouco antes ele disse: “‘Até</p><p>agora vocês não pediram nada em meu nome [...]’” (João 16.24). Não que</p><p>eles desconhecessem o ofício do Mediador (todos os judeus eram instruídos</p><p>nos rudimentos), mas eles não entenderam com clareza que Cristo, por sua</p><p>ascensão aos céus, seria o advogado da Igreja em maior escala. Por</p><p>conseguinte, para consolá-los da dor de sua ausência, ele assegura seu ofício</p><p>de advogado e diz que até aquele momento eles não contavam com o</p>