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<p>Porém em nada considero a vida preciosa para mim mesmo,</p><p>contanto que complete a minha carreira e o ministério que</p><p>recebi do Senhor Jesus para testemunhar o evangelho da graça</p><p>de Deus.</p><p>—ATOS 20:24</p><p>Sumário</p><p>Introdução à edição em português</p><p>Sobre o autor</p><p>Capítulo 1: História dos mártires cristãos até as primeiras perseguições</p><p>gerais sob o governo de Nero</p><p>Capítulo 2: As dez primeiras perseguições</p><p>Capítulo 3: Perseguições sofridas pelos cristãos na Pérsia</p><p>Capítulo 4: Perseguições papais</p><p>Capítulo 5: Um relato da Inquisição</p><p>Capítulo 6: Um relato das perseguições na Itália sob o papado</p><p>Capítulo 7: Um relato sobre a vida e as perseguições sofridas por John</p><p>Wycliffe</p><p>Capítulo 8: Um relato das perseguições na Boêmia sob o papado</p><p>Capítulo 9: Um relato da vida e das perseguições a Martinho Lutero</p><p>Capítulo 10: Perseguições gerais na Alemanha</p><p>Capítulo 11: Um relato das perseguições nos Países Baixos</p><p>Capítulo 12: A vida e a história de William Tyndale, verdadeiro servo e</p><p>mártir de Deus</p><p>Capítulo 13: Um relato da vida de João Calvino</p><p>Capítulo 14: Um relato das perseguições na Grã-Bretanha e na Irlanda,</p><p>antes do reinado de Mary <small>I</small></p><p>Capítulo 15: Um relato das perseguições na Escócia durante o reinado de</p><p>Henrique <small>VIII</small></p><p>Capítulo 16: Perseguições na Inglaterra durante o reinado da rainha Mary</p><p>Capítulo 17: Ascensão e avanço da religião protestante na Irlanda, com um</p><p>relato do massacre bárbaro de 1641</p><p>Capítulo 18: Ascensão, progresso, perseguições e sofrimentos dos Quakers</p><p>Capítulo 19: Um relato da vida de John Bunyan e das perseguições a ele</p><p>Capítulo 20: Um relato da vida de John Wesley</p><p>Capítulo 21: Perseguições dos protestantes franceses no sul da França, entre</p><p>1814 e 1820</p><p>Capítulo 22: O início das missões estrangeiras americanas</p><p>Epílogo da edição original</p><p>Créditos das imagens</p><p>Introdução à edição em português</p><p>Tertuliano de Cartago (cerca de 150–220 d.C.), um dos grandes Pais da</p><p>Igreja cristã, a�rmou certa vez: “O sangue dos mártires é a semente dos</p><p>cristãos”. Quando registrou essas palavras, esse importante teólogo não</p><p>imaginava quanto martírio ainda aguardava os �éis a Cristo ao longo dos</p><p>séculos por vir.</p><p>Em determinadas épocas, esse sangue santo proveniente dos “homens</p><p>dos quais o mundo não era digno”, nas palavras do autor de Hebreus</p><p>(11.38), �uiu como um rio caudaloso no solo dominado pelos poderes das</p><p>trevas. Várias foram as tentativas infernais, personi�cadas em agentes</p><p>humanos, de eliminar a mensagem pura do evangelho ou mesmo de</p><p>mesclá-la a mandamentos de homens. No entanto, onde quer que essa</p><p>semente santa fosse derramada, mesmo depois de anos, brotava o fruto da</p><p>Luz e a salvação alcançava multidões.</p><p>Ainda hoje, em pleno século 21, em várias partes do mundo, os �lhos</p><p>de Deus sofrem martírio e perseguição unicamente por professarem sua fé</p><p>no Cristo que morreu e ressuscitou para nos reconciliar com o Pai. A</p><p>maioria dos atuais mártires não possui sequer direito de defesa, mas isso não</p><p>lhes é empecilho para viver e apregoar a fé que aprenderam e transformou</p><p>sua vida. Muitas organizações mundiais escolhem ignorar o massacre, as</p><p>prisões e a privação de direitos tão injustas. Ou escolhem de�nir como</p><p>questões culturais às quais decidem não tanger. Por isso, um registro</p><p>histórico como este é tão relevante para os nossos dias. Esta obra é uma</p><p>tentativa de dar voz a esses heróis da fé e reacender o debate.</p><p>Quando decidimos imprimir essa versão, foi com grande temor e</p><p>tremor. As cenas descritas são cruentas. A maldade e a “criatividade” a que</p><p>se pode chegar na aplicação das torturas causam intensa e profunda</p><p>comoção. Mantivemos cada relato como consta no original, sem suavizar a</p><p>linguagem. Nosso intento não é chocar, mas provocar reverência diante do</p><p>amor e sacrifício pessoal que todos esses mártires demonstraram por Cristo</p><p>e levantar o questionamento: até onde eu iria por Jesus?</p><p>Nossa edição vem belamente ilustrada por pinturas famosas, gravuras de</p><p>edições passadas deste e de outros livros que contam essa parte da história</p><p>cristã e fotogra�as para tornar sua experiência ainda mais sensorial. Os</p><p>capítulos 17 a 22 são relatos adicionais que contam sobre a perseguição e</p><p>martírio cristãos até o século 19.</p><p>Como Igreja de Cristo, não podemos deixar estes registros fenecerem</p><p>com o tempo. O precioso testemunho deixado pelos irmãos e irmãs que</p><p>você conhecerá ao folhear estas páginas ainda é um agente encorajador aos</p><p>cristãos contemporâneos em momentos de crise de fé e perseguição.</p><p>Olhar para trás e reconhecer o preço que foi pago — primeiramente e</p><p>acima de tudo, por Jesus e, depois, por todos esses preciosos servos e servas</p><p>de Deus — para que tivéssemos acesso à mensagem transformadora do</p><p>evangelho e à Bíblia faz o cristão assumir sua parte da responsabilidade de</p><p>ser guardião e propagador das boa-novas às gerações futuras até que Ele</p><p>volte! Maranata!</p><p>—DOS EDITORES</p><p>Quando ele abriu o quinto selo, vi, debaixo do altar, as almas daqueles que</p><p>tinham sido mortos por causa da palavra de Deus e por causa do testemunho</p><p>que sustentavam. Clamaram em grande voz, dizendo: Até quando, ó</p><p>Soberano Senhor, santo e verdadeiro, não julgas, nem vingas o nosso sangue</p><p>dos que habitam sobre a terra? Então, a cada um deles foi dada uma</p><p>vestidura branca, e lhes disseram que repousassem ainda por pouco tempo,</p><p>até que também se completasse o número dos seus conservos e seus irmãos que</p><p>iam ser mortos como igualmente eles foram. —APOCALIPSE 6:9-11</p><p>Sobre o autor</p><p>John Foxe (ou Fox) nasceu em Boston, Lincolnshire, em 1517, e a�rma-</p><p>se que seus pais viviam em circunstâncias respeitáveis. Foxe foi privado do</p><p>pai ainda jovem e, apesar de pouco tempo depois sua mãe ter se casado</p><p>novamente, ele ainda permaneceu sob o mesmo teto que o novo casal.</p><p>Devido a sua precoce demonstração de talentos e inclinação ao</p><p>aprendizado, seus amigos o persuadiram a ir para Oxford, onde ele poderia</p><p>cultivá-los e amadurecê-los.</p><p>Durante seus estudos em Oxford, ele se destacou pela excelência e</p><p>perspicácia de seu intelecto, aprimorado pela disputa entre os seus colegas</p><p>da universidade, unidos ao incansável zelo e dedicação de sua parte. Em</p><p>pouco tempo, essas qualidades lhe renderam a admiração de todos e, como</p><p>recompensa por seus esforços e sua conduta agradável, ele foi eleito</p><p>membro do Magdalen College, algo considerado de muita honra na</p><p>universidade e raramente concedido, exceto em casos de grande distinção.</p><p>Parece que a primeira demonstração de sua genialidade foi na poesia e na</p><p>composição de algumas comédias em latim, que ainda sobrevivem. Porém,</p><p>logo direcionou seus pensamentos a um assunto mais sério: o estudo das</p><p>Sagradas Escrituras. De fato, ele se aplicou à teologia com mais fervor do</p><p>que circunspecção e descobriu sua parcialidade quanto à Reforma, que</p><p>tinha então começado, antes de ser conhecido pelos apoiadores dela ou por</p><p>aqueles que os protegiam — uma circunstância que lhe comprovou a fonte</p><p>de seus primeiros problemas.</p><p>Diz-se que ele a�rmava frequentemente que a primeira questão que</p><p>motivou sua pesquisa da doutrina papista foi ter visto diversas coisas, de</p><p>natureza mais mutuamente repugnante, serem impostas aos homens ao</p><p>mesmo tempo. Sobre esse fundamento, sua resolução e desejada obediência</p><p>àquela Igreja sofreram certo abalo e, aos poucos, instalou-se uma aversão a</p><p>tudo mais.</p><p>Seu primeiro cuidado foi examinar a história antiga e moderna da</p><p>Igreja, averiguar seu início e avanço, considerar as causas de todas as</p><p>controvérsias surgidas nesse intervalo de tempo e ponderar diligentemente</p><p>seus efeitos, sua solidez, suas enfermidades etc.</p><p>Antes de completar 30 anos, ele havia estudado os patriarcas gregos,</p><p>latinos e outros autores eruditos, as atas dos Concílios, os decretos dos</p><p>consistórios e adquirido uma incrível habilidade no idioma hebraico.</p><p>Nessas ocupações, ele frequentemente passava uma parte considerável da</p><p>noite, ou até mesmo a noite inteira; e, para relaxar a mente após estudo tão</p><p>incessante, ele recorria</p><p>acabaram de ser pronunciadas, tudo foi</p><p>consumado. Após muitos tratos cruéis, aquele manso cordeiro foi posto,</p><p>não direi em sua cama de ferro ardente, mas em sua macia cama de plumas.</p><p>Tão poderosamente Deus agiu em Seu mártir Lourenço, tão</p><p>milagrosamente Ele fortaleceu o Seu servo no fogo, que este não se tornou</p><p>um leito de dor consumidora, mas uma plataforma de revigorado repouso.</p><p>Na África, a perseguição se alastrou com peculiar violência. Muitos</p><p>milhares receberam a coroa do martírio; dentre eles, os mais distintos</p><p>foram:</p><p>Cipriano, bispo de Cartago, prelado eminente e um piedoso ornato da</p><p>Igreja. O brilho de sua genialidade era dosado pela solidez de seu</p><p>julgamento e, com toda a proeza de um cavalheiro, ele mesclava as virtudes</p><p>de um cristão. Suas doutrinas eram ortodoxas e puras; sua linguagem,</p><p>simples e elegante, e suas maneiras, graciosas e decisivas. Em suma, ele era</p><p>um pregador piedoso e educado. Na juventude, foi educado nos princípios</p><p>do gentilismo; possuidor de uma fortuna considerável, vivia na própria</p><p>extravagância do esplendor e em toda a dignidade da pompa.</p><p>Por volta do ano 246 d.C., Cecílio, ministro cristão de Cartago, tornou-</p><p>se o venturoso instrumento da conversão de Cipriano. Devido a isso e ao</p><p>grande amor que ele sempre manteve pelo promotor de sua conversão, foi</p><p>denominado Cecílio Cipriano. Antes de seu batismo, ele estudou as</p><p>Escrituras com atenção e, impressionado com as belezas das verdades nelas</p><p>contidas, decidiu praticar as virtudes ali recomendadas. Após seu batismo,</p><p>vendeu sua propriedade, distribuiu o dinheiro entre os pobres, vestiu-se</p><p>com trajes simples e iniciou uma vida de austeridade. Pouco tempo depois,</p><p>foi nomeado presbítero. Sendo grandemente admirado por suas virtudes e</p><p>obras, foi quase unanimemente eleito bispo de Cartago por ocasião da</p><p>morte de Donato, em 248 d.C.</p><p>Os cuidados de Cipriano não se estenderam apenas a Cartago, mas</p><p>também à Numídia e à Mauritânia. Em todas as suas transações, ele tomava</p><p>o cuidado de aconselhar-se com o seu clero, sabendo que somente a</p><p>unanimidade poderia servir à Igreja, sendo esta uma de suas máximas:</p><p>“Que o bispo esteja na igreja e a igreja, no bispo, de modo que a unidade só</p><p>possa ser preservada por uma estreita ligação entre o pastor e seu rebanho”.</p><p>No ano 250 d.C., Cipriano foi publicamente proscrito pelo imperador</p><p>Décio, sob a alcunha de Cecílio Cipriano, bispo dos cristãos, e o brado</p><p>geral dos pagãos foi: “Cipriano aos leões, Cipriano às feras”. O bispo,</p><p>porém, afastou-se da fúria da multidão, e suas propriedades foram</p><p>imediatamente con�scadas. Durante seu isolamento, ele escreveu 30</p><p>piedosas e elegantes cartas ao seu rebanho, mas lhe causaram grande</p><p>desconforto várias cismas que se in�ltraram na Igreja nessa época. Com a</p><p>diminuição do rigor da perseguição, ele retornou a Cartago e fez tudo que</p><p>estava ao seu alcance para eliminar as opiniões equivocadas. Contudo, uma</p><p>terrível praga eclodiu em Cartago e, como de costume, foi imputada aos</p><p>cristãos. Consequentemente, os magistrados começaram a persegui-lo como</p><p>forma retaliação, o que ocasionou uma epístola deles a Cipriano, em</p><p>resposta à qual o bispo justi�ca a causa do cristianismo. No ano 257 d.C.,</p><p>Cipriano foi levado perante o procônsul Aspásio Paterno, que o exilou em</p><p>uma pequena cidade no mar da Líbia. Com a morte desse procônsul, ele</p><p>retornou a Cartago, mas logo foi detido e levado perante o novo</p><p>governador, que o condenou a ser decapitado. Essa sentença foi executada</p><p>no dia 14 de setembro de 258 d.C.</p><p>Santo Cipriano, por Mestre de Messkirck (1500–43). Esta pintura compunha a ala</p><p>lateral da Igreja de São Mar�n, em Messkirck, Alemanha.</p><p>Os discípulos de Cipriano, martirizados nessa perseguição, foram Lúcio,</p><p>Flaviano, Vitórico, Remo, Montano, Juliano, Primelo e Donaciano.</p><p>Em Útica7 ocorreu uma terrível tragédia: por ordem do procônsul, 300</p><p>cristãos foram colocados ao redor de uma fornalha acesa de fabricação de</p><p>cal. Preparada uma panela com carvão e incenso, eles foram ordenados a</p><p>sacri�car a Júpiter ou seriam lançados nessa fornalha. Eles unanimemente o</p><p>rejeitaram, saltaram corajosamente para a abertura e foram imediatamente</p><p>sufocados.</p><p>Frutuoso, bispo de Tarragona, na Espanha, e seus dois diáconos,</p><p>Augúrio e Eulógio, foram queimados por serem cristãos.</p><p>Alexandre, Malco e Prisco, três cristãos da Palestina, e uma mulher do</p><p>mesmo lugar, voluntariamente se declararam cristãos. Por esse motivo,</p><p>foram condenados a ser devorados por tigres, sentença prontamente</p><p>executada.</p><p>Máxima, Donatila e Segunda, três virgens de Tuburga, receberam fel e</p><p>vinagre para beber; depois, foram severamente açoitadas, atormentadas em</p><p>uma forca, esfregadas com cal, queimadas em uma grelha, importunadas</p><p>por animais selvagens e, por �m, decapitadas.</p><p>Aqui se faz adequado observar o destino singular, mas miserável, do</p><p>imperador Valeriano, que durante muito tempo perseguira tão</p><p>terrivelmente os cristãos. Por um estratagema, esse tirano foi aprisionado</p><p>por Sapor, imperador da Pérsia. Este o levou para o seu próprio país e o</p><p>tratou com uma indignidade sem precedentes, fazendo-o ajoelhar-se como</p><p>o escravo mais desprezível e pisando sobre ele como se fosse uma banqueta</p><p>ao montar em seu cavalo.</p><p>Após mantê-lo durante sete anos nesse estado abjeto de escravidão,</p><p>ordenou que seus olhos fossem arrancados, embora estivesse já com 83</p><p>anos. Ainda não saciado em seu desejo de vingança, Sapor logo ordenou</p><p>que o corpo de Valeriano fosse esfolado vivo e esfregado com sal, tormentos</p><p>sob os quais ele expirou. Assim caiu um dos imperadores mais tirânicos de</p><p>Roma e um dos maiores perseguidores dos cristãos.</p><p>No ano 260 d.C., Galiano, �lho de Valeriano, sucedeu seu pai. Durante</p><p>seu reinado, excetuando-se alguns mártires, a Igreja desfrutou de paz</p><p>durante alguns anos.</p><p>A NONA PERSEGUIÇÃO, SOB O GOVERNO DE AURELIANO, 274 D.C.</p><p>Os principais sofredores foram:</p><p>Félix, bispo de Roma. Esse prelado foi enviado à diocese romana em</p><p>274 d.C. Ele foi o primeiro mártir da petulância de Aureliano, sendo</p><p>decapitado no dia 22 de dezembro do mesmo ano.</p><p>Agapito, um jovem cavalheiro que vendeu sua propriedade e deu o</p><p>dinheiro aos pobres, foi detido como cristão, torturado e decapitado em</p><p>Preneste, cidade situada a um dia de distância de Roma.</p><p>A rainha Zenóbia diante de Aureliano, por Giovanni Ba�sta Tiepolo (1696–1770). Parte</p><p>do acervo do Museu do Prado, Madri, Espanha.</p><p>Esses foram os únicos mártires registrados durante esse reinado, logo</p><p>interrompido pelo assassinato do imperador por seus próprios empregados</p><p>domésticos, em Bizâncio.</p><p>Aureliano foi sucedido por Tácito, que foi seguido por Probo, e este por</p><p>Caro, que foi morto por uma tempestade, sendo sucedido por seus �lhos</p><p>Cárnio e Numeriano. Durante todos esses reinados, a Igreja teve paz.</p><p>Diocleciano subiu ao trono imperial no ano 284 d.C. e a princípio</p><p>demonstrou grande favor aos cristãos. No entanto, em 286 d.C., associou-</p><p>se a Maximiano no império e alguns cristãos foram mortos antes de</p><p>irromper qualquer perseguição geral.</p><p>Dentre eles estavam Feliciano e Primo, dois irmãos.</p><p>Marcos e Marceliano eram gêmeos, nativos de Roma e de ascendência</p><p>nobre. Seus pais eram pagãos, mas os tutores a quem a educação dos �lhos</p><p>foi con�ada os educaram como cristãos. Sua constância acabou vencendo os</p><p>que desejavam que eles se tornassem pagãos, e seus pais e toda a família se</p><p>converteram à fé que antes haviam reprovado. Eles foram martirizados</p><p>sendo amarrados a estacas e tendo os pés perfurados com cravos. Após</p><p>permanecerem nessa situação durante um dia e uma noite, seus sofrimentos</p><p>tiveram �m quando eles foram perfurados com lanças.</p><p>Zoe, a esposa do carcereiro que cuidava desses dois mártires, também foi</p><p>convertida por eles. Ela foi pendurada em uma árvore com uma fogueira de</p><p>palha sob seus pés. Depois, seu corpo foi retirado e lançado em um rio,</p><p>com uma grande pedra amarrada, para que afundasse.</p><p>No ano 286 da Era Cristã ocorreu um caso extraordinário: uma legião</p><p>de soldados, composta por 6.666 homens, continha somente cristãos. Essa</p><p>legião era denominada Legião Tebana, porque</p><p>os homens haviam sido</p><p>criados em Tebas. Eles �caram aquartelados no leste até o imperador</p><p>Maximiano ordenar que marchassem para a Gália, a �m de ajudá-lo contra</p><p>os rebeldes da Borgonha. Eles atravessaram os Alpes em direção à Gália, sob</p><p>o comando de Maurício, Cândido e Exupério, seus dignos comandantes, e</p><p>�nalmente se juntaram ao imperador. Nessa época, Maximiano ordenou</p><p>um sacrifício no qual todo o exército deveria ajudar. De semelhante modo,</p><p>ordenou que eles prestassem o juramento de lealdade e, ao mesmo tempo,</p><p>jurassem ajudar na extirpação do cristianismo na Gália.</p><p>Alarmados com essas ordens, cada indivíduo da Legião Tebana se</p><p>recusou absolutamente a sacri�car ou a prestar os juramentos prescritos.</p><p>Maximiano �cou tão enfurecido que ordenou que a legião fosse dizimada,</p><p>isto é, um de cada dez homens fosse separado dos demais e morto a espada.</p><p>Após a execução dessa ordem sangrenta, os que permaneceram vivos ainda</p><p>foram in�exíveis, ocorrendo uma segunda dizimação, sendo morta a</p><p>décima parte dos homens vivos. Essa segunda penalidade não causou maior</p><p>impressão do que a primeira; os soldados perseveraram em sua postura e</p><p>seus princípios, mas, aconselhados por seus o�ciais, levantaram um leal</p><p>protesto contra o imperador. Seria presumível que isso o tivesse abrandado,</p><p>mas teve efeito contrário: enfurecido com a perseverança e a unanimidade</p><p>deles, Maximiano ordenou que toda a legião fosse morta, sentença</p><p>executada pelas outras tropas, que os retalharam a espada, no dia 22 de</p><p>setembro de 286 d.C.</p><p>O mar�rio de São Maurício, por El Greco (1541–1614). Acervo do Monastério de San</p><p>Lorenzo do Escorial, Madri, Espanha.</p><p>Albano, de quem a cidade de Saint Albans, em Hertfordshire, recebeu o</p><p>nome, foi o primeiro mártir britânico. A Grã-Bretanha recebeu o evangelho</p><p>de Cristo através de Lúcio, o primeiro rei cristão, mas não sofreu a ira da</p><p>perseguição durante muitos anos.</p><p>Ele era originalmente pagão, mas foi convertido por um eclesiástico</p><p>cristão, chamado Anfíbalo, ao qual protegeu devido à sua religião. Tendo</p><p>sido informados acerca do lugar onde estava escondido, os inimigos de</p><p>Anfíbalo foram à casa de Albano. Para facilitar a fuga de Anfíbalo, quando</p><p>os soldados chegaram, Albano se apresentou como a pessoa que eles</p><p>procuravam. O engano foi descoberto e o governador ordenou que ele fosse</p><p>açoitado; em seguida, ele foi condenado a ser decapitado, em 22 de junho</p><p>de 287 d.C.</p><p>O venerável Beda8 nos assegura de que, por conta disso, o carrasco se</p><p>converteu repentinamente ao cristianismo e pediu permissão para morrer</p><p>em lugar de Albano ou com ele. Obtendo este último pedido, os dois foram</p><p>decapitados por um soldado que assumiu voluntariamente a tarefa de</p><p>carrasco. Isso aconteceu no dia 22 de junho de 287 d.C. em Verulamium,</p><p>hoje Saint Albans, em Hertfordshire, onde uma magní�ca igreja foi erguida</p><p>em memória dele na época de Constantino, o Grande. O edifício,</p><p>destruído nas guerras saxônicas, foi reconstruído por Ofa, rei da Mércia, e</p><p>um mosteiro foi erigido ao lado. Algumas de suas ruínas ainda são visíveis,</p><p>e a igreja é uma nobre estrutura gótica.</p><p>Fé, uma cristã de Aquitaine, na França, foi condenada a ser assada em</p><p>uma grelha e, depois, decapitada, no ano 287 d.C.</p><p>Quintino era cristão e natural de Roma, mas determinado a propagar o</p><p>evangelho na Gália. Pregava juntamente com um certo Luciano em</p><p>Amiens; depois disso, Luciano foi a Beaumaris, onde foi martirizado.</p><p>Quintino permaneceu na Picardia e era muito zeloso em seu ministério.</p><p>Detido como cristão, ele foi estirado com polias9 até suas articulações serem</p><p>deslocadas; seu corpo foi, então, dilacerado com açoites de arame, e óleo e</p><p>piche ferventes foram derramados sobre sua carne nua; tochas acesas foram</p><p>aplicadas em suas laterais e axilas e, após ter sido assim torturado, foi levado</p><p>de volta à prisão. Morreu em decorrência das barbáries que sofreu, em 31</p><p>de outubro de 287 d.C. Seu corpo foi submerso no rio Somme.</p><p>A DÉCIMA PERSEGUIÇÃO, SOB O GOVERNO DE DIOCLECIANO, 303 D.C.</p><p>Sob o comando desse imperador romano, a comumente denominada Era</p><p>dos Mártires ocorreu, em parte, pelo crescente número e magni�cência dos</p><p>cristãos, e também pelo ódio de Galério, �lho adotivo de Diocleciano, que,</p><p>estimulado por sua mãe, uma pagã intolerante, nunca deixou de instigar o</p><p>imperador a promover a perseguição enquanto este não cumprisse esse</p><p>propósito.</p><p>O dia fatal determinado para iniciar a obra sangrenta foi 23 de fevereiro</p><p>de 303 d.C., quando a Terminália era celebrada e no qual os pagãos cruéis</p><p>se vangloriavam de esperar pôr �m à cristandade.</p><p>No dia marcado, a perseguição começou na cidade de Nicomédia, na</p><p>manhã em que seu prefeito se dirigiu, com grande número de o�ciais e</p><p>assistentes, à igreja dos cristãos, onde, abrindo as portas à força,</p><p>apoderaram-se de todos os livros sagrados e os lançaram às chamas.</p><p>Tudo isso aconteceu na presença de Diocleciano e Galério, que, não</p><p>contentes com queimar os livros, mandaram derrubar a igreja. Isso foi</p><p>seguido por um severo édito, ordenando a destruição de todas as outras</p><p>igrejas e livros cristãos. Logo depois, seguiu-se uma ordem de considerar</p><p>criminosos os cristãos de todas as denominações.</p><p>A publicação desse édito ocasionou um martírio imediato, pois um</p><p>corajoso cristão não apenas o rasgou do local em que fora a�xado, como</p><p>também execrou o nome do imperador por sua injustiça. Tal provocação foi</p><p>su�ciente para invocar a vingança pagã sobre sua cabeça.</p><p>Consequentemente, ele foi detido, severamente torturado e, depois,</p><p>queimado vivo.</p><p>Todos os cristãos foram detidos e encarcerados, e Galério ordenou, às</p><p>ocultas, que o palácio imperial fosse incendiado, para que os cristãos</p><p>pudessem ser acusados de incendiários, criando uma desculpa plausível para</p><p>executar a perseguição com maior severidade. Um sacrifício em massa foi</p><p>ordenado, o que ocasionou vários martírios. Nenhuma distinção foi feita</p><p>entre idade ou sexo. O nome “cristão” era tão desagradável aos pagãos que</p><p>todos, indiscriminadamente, foram sacri�cados devido às suas opiniões.</p><p>Muitas casas foram incendiadas e famílias cristãs inteiras pereceram nas</p><p>chamas; outros tiveram pedras presas ao pescoço e, amarrados, foram</p><p>lançados ao mar. A perseguição se tornou geral em todas as províncias</p><p>romanas, porém mais particularmente no Leste. E, por haver durado 10</p><p>anos, é impossível determinar o número de martirizados ou enumerar os</p><p>diversos modos de martírio aos quais foram submetidos.</p><p>Grelhas, �agelos, espadas, punhais, cruzes, veneno e fome foram</p><p>utilizados em diversas partes para extinguir os cristãos, e não havia mais</p><p>torturas a se inventar contra pessoas que não tinham cometido crimes, mas</p><p>pensavam de maneira diferente dos defensores da superstição.</p><p>Uma cidade da Frígia, composta inteiramente por cristãos, foi queimada</p><p>e todos os habitantes pereceram nas chamas.</p><p>Finalmente, cansados de massacres, vários governadores de províncias</p><p>representaram à corte imperial a impropriedade de tal conduta. Por isso,</p><p>muitos cristãos foram poupados da execução, mas, embora não tenham</p><p>sido mortos, seus algozes �zeram o máximo possível para tornar miserável a</p><p>vida desses professos — muitos deles tiveram as orelhas cortadas, o nariz</p><p>fendido, o olho direito arrancado, os membros inutilizados por terríveis</p><p>deslocamentos, e a carne queimada com ferro em brasa em lugares visíveis.</p><p>Agora, faz-se necessário particularizar as pessoas mais evidentes que</p><p>entregaram a vida em martírio nessa sangrenta perseguição.</p><p>Sebastião, um mártir célebre, nasceu em Narbonne, na Gália. Foi</p><p>ensinado nos princípios do cristianismo em Milão e, depois, tornou-se um</p><p>o�cial da guarda do imperador em Roma. Ele permaneceu um verdadeiro</p><p>cristão em meio à idolatria, não foi seduzido pelos esplendores da corte, sua</p><p>conduta permaneceu ilibada e não se corrompeu por expectativas de</p><p>nomeação. Por recusar-se a ser pagão, o imperador ordenou que ele fosse</p><p>levado para um campo próximo à cidade, denominado Campo de Marte, e</p><p>�echado até a morte, sentença executada em seguida. Alguns cristãos</p><p>piedosos, que foram ao lugar da execução</p><p>para enterrar seu corpo,</p><p>perceberam nele sinais de vida e o levaram imediatamente a um local</p><p>seguro, onde prontamente cuidaram da sua recuperação e,</p><p>consequentemente, o prepararam para um segundo martírio. Assim,</p><p>quando se viu em condições de sair, colocou-se intencionalmente no</p><p>caminho do imperador enquanto este ia ao templo e o repreendeu por suas</p><p>diversas crueldades e irracionais preconceitos contra o cristianismo. Tão</p><p>logo superou sua surpresa, Diocleciano ordenou que Sebastião fosse detido,</p><p>levado a um local próximo ao palácio e espancado até a morte; e, para que</p><p>os cristãos não voltassem a utilizar-se de meios para recuperar ou enterrar</p><p>seu corpo, ordenou que ele fosse lançado no esgoto público. Não obstante,</p><p>uma senhora cristã chamada Lucina encontrou meios de removê-lo do</p><p>esgoto e enterrá-lo nas catacumbas, repositórios dos mortos.</p><p>São Sebas�ão, por Andrea Mantegna (1431–1506). Parte do acervo do Palácio Santa</p><p>Sofia, em Veneza, Itália.</p><p>Nessa época, após sensatas considerações, os cristãos concluíram ser</p><p>ilegal portar armas sob o governo de um imperador pagão. Maximiliano,</p><p>�lho de Fábio Vítor, foi o primeiro a ser decapitado sob esse regulamento.</p><p>Vito, um siciliano de família considerável, foi criado como cristão.</p><p>Quando suas virtudes aumentaram com a idade, sua constância o sustentou</p><p>sob todas as a�ições e sua fé foi superior ao maior dos perigos. Ao descobrir</p><p>que Vito havia sido instruído nos princípios do cristianismo pela ama que o</p><p>educara, seu pai, Hilas, que era pagão, usou de tudo para conduzi-lo de</p><p>volta ao paganismo, porém não obteve sucesso. Assim, sacri�cou seu �lho</p><p>aos ídolos no dia 14 de junho de 303 d.C.</p><p>Vítor era um cristão de uma boa família em Marselha, na França. Ele</p><p>passava grande parte da noite visitando os a�itos e fortalecendo os fracos —</p><p>para sua própria segurança, não realizava esse trabalho piedoso durante o</p><p>dia — e gastou sua fortuna aliviando as angústias de pobres cristãos.</p><p>Entretanto, acabou sendo preso por decreto do Maximiano, co-imperador</p><p>com Diocleciano, que ordenou que ele fosse amarrado e arrastado pelas</p><p>ruas. Durante a execução dessa ordem, ele foi tratado com todo tipo de</p><p>crueldades e indignidades pela população enfurecida. Permanecendo</p><p>in�exível, sua coragem foi considerada obstinação. Submetido à ordem de</p><p>ser estendido sobre o cavalete, ele voltou os olhos para o Céu e orou a Deus</p><p>para lhe dar paciência e, após isso, sofreu as torturas com a mais admirável</p><p>coragem. Quando os carrascos se cansaram de a�igir-lhe com tormentos,</p><p>ele foi levado a uma masmorra. Em seu con�namento, conduziu seus</p><p>carcereiros, Alexandre, Feliciano e Longino à fé em Cristo. Quando esse</p><p>caso chegou ao conhecimento do imperador, este ordenou que eles fossem</p><p>imediatamente mortos; os carcereiros foram, consequentemente,</p><p>decapitados. Vítor foi novamente colocado no cavalete, espancado sem</p><p>misericórdia com bastões e, novamente, enviado à prisão.</p><p>Ao ser indagado pela terceira vez acerca de sua religião, ele perseverou</p><p>em seus princípios. Um pequeno altar foi, então, trazido e a ele foi</p><p>ordenado oferecer imediatamente incenso sobre aquele altar. Indignado</p><p>com o pedido, Vítor ousadamente deu um passo à frente e, com o pé,</p><p>derrubou o altar e o ídolo. Isso enfureceu tanto o co-imperador</p><p>Maximiano, que estava presente, que este ordenou que o pé com o qual ele</p><p>havia chutado o altar fosse imediatamente cortado. Vítor foi lançado em</p><p>um moinho e esmagado pelas mós, no ano 303 d.C.</p><p>Máximo, governador da Cilícia, estava em Tarso. Três cristãos foram</p><p>levados perante ele: Taraco, um idoso, Probo e Andrônico. Após repetidas</p><p>torturas e exortações para que se retratassem, a execução deles foi</p><p>�nalmente ordenada. Levados ao an�teatro, vários animais selvagens foram</p><p>soltos sobre eles, mas nenhum dos animais, embora famintos, os tocou.</p><p>Então, o guarda trouxe um grande urso que, naquele mesmo dia, havia</p><p>destruído três homens; porém, aquela voraz criatura e uma feroz leoa se</p><p>recusaram a tocar os prisioneiros. Vendo que destruí-los por meio de</p><p>animais selvagens fora ine�caz, Máximo ordenou que eles fossem mortos à</p><p>espada, no dia 11 de outubro de 303 d.C.</p><p>Romano, um nativo da Palestina, era diácono da igreja de Cesareia no</p><p>início da perseguição feita por Diocleciano. Condenado em Antioquia por</p><p>sua fé, ele foi açoitado, colocado no cavalete, seu corpo dilacerado com</p><p>ganchos, sua carne cortada com facas, o rosto escari�cado, os dentes</p><p>arrancados dos alvéolos e os cabelos arrancados pela raiz. Logo depois, foi</p><p>ordenado o seu estrangulamento, em 17 de novembro de 303 d.C.</p><p>Susana, sobrinha de Caio, bispo de Roma, foi pressionada pelo</p><p>imperador Diocleciano a casar-se com um nobre pagão, parente próximo</p><p>dele. Recusando a honra pretendida, foi decapitada por ordem desse</p><p>mesmo imperador.</p><p>Doroteu, mordomo cristão da casa de Diocleciano, empenhou-se ao</p><p>máximo para conduzir outras pessoas à fé em Cristo. Em seus esforços</p><p>religiosos, juntou-se a Gorgônio, outro cristão palaciano. Eles foram</p><p>primeiramente torturados, depois estrangulados.</p><p>Pedro, um eunuco pertencente ao imperador, era um cristão de recato e</p><p>humildade singulares. Ele foi deitado em uma grelha e assado em fogo lento</p><p>até expirar.</p><p>Cipriano, conhecido pelo título de mágico para distingui-lo de Cipriano</p><p>bispo de Cartago, era natural de Antioquia. Ele teve formação liberal em</p><p>sua juventude e se dedicou particularmente à astrologia. Após isso, viajou</p><p>para aperfeiçoar-se na Grécia, no Egito, na Índia etc. Ao longo do tempo,</p><p>conheceu Justina, uma jovem de Antioquia, cujo nascimento, beleza e</p><p>talentos a tornavam admirada por todos os que conviviam com ela. Ele era</p><p>um cavalheiro pagão quando pediu a bela Justina em casamento; porém,</p><p>logo se converteu, queimou seus livros de astrologia e magia, recebeu o</p><p>batismo e se sentiu revigorado por um poderoso espírito de graça. A</p><p>conversão de Cipriano transformou o cavalheiro pagão que havia se</p><p>declarado a Justina e, em pouco tempo, ele abraçou o cristianismo. Durante</p><p>as perseguições sob Diocleciano, Cipriano e Justina foram detidos como</p><p>cristãos: ele foi rasgado com pinças e ela, castigada; e, após sofrerem outros</p><p>tormentos, os dois foram decapitados.</p><p>Eulália, uma senhora espanhola de família cristã, foi notável em sua</p><p>juventude pela doçura de temperamento e solidez de entendimento,</p><p>raramente encontradas nos caprichos dos anos juvenis. Sendo detida como</p><p>cristã, o magistrado tentou, da maneira mais branda, levá-la ao paganismo,</p><p>mas ela ridicularizou as divindades pagãs com tanta aspereza que o juiz,</p><p>indignado com seu comportamento, ordenou que ela fosse torturada. Seus</p><p>lados foram rasgados com ganchos e seus seios, queimados da maneira mais</p><p>chocante, até que ela expirou pela violência das chamas, em dezembro de</p><p>303 d.C.</p><p>No ano 304 d.C., quando a perseguição chegou à Espanha, Daciano,</p><p>governador de Tarragona, ordenou que Valério, o bispo, e Vicente, o</p><p>diácono, fossem detidos, postos a ferros e aprisionados. Devido à �rme</p><p>resolução dos prisioneiros, Valério foi banido e Vicente foi torturado, seus</p><p>membros deslocados, sua carne dilacerada com ganchos e foi posto em uma</p><p>grelha, não apenas com um fogo embaixo, mas também com espinhos no</p><p>topo, que penetravam em sua carne. Esses tormentos não o destruíram,</p><p>nem mudaram a sua resolução. Ele foi reenviado à prisão e con�nado em</p><p>uma masmorra pequena, repugnante e escura, recoberta com pedras a�adas</p><p>e cacos de vidro, onde morreu em 22 de janeiro do mesmo ano. Seu corpo</p><p>foi lançado no rio.</p><p>A perseguição sob o comando de Diocleciano começou a se intensi�car</p><p>especialmente no ano 304 d.C., quando muitos cristãos foram submetidos</p><p>a torturas cruéis e às mortes mais dolorosas e ignominiosas, das quais</p><p>enumeraremos as mais célebres e particulares.</p><p>Saturnino, um sacerdote de Albitina, cidade da África, foi reenviado à</p><p>prisão após ser torturado e morreu de fome. Seus quatro �lhos, após serem</p><p>atormentados de diversas maneiras, tiveram o mesmo destino do pai.</p><p>Dativas, um nobre senador romano, Télica, uma cristã piedosa, e</p><p>Vitória, uma jovem de considerável família e fortuna,</p><p>com alguns outros</p><p>não tão conhecidos, todos auditores de Saturnino, foram torturados de</p><p>maneira semelhante e pereceram pelos mesmos meios.</p><p>Ágape, Quiônia e Irene, três irmãs, foram detidas em Tessalônica</p><p>quando a perseguição de Diocleciano chegou à Grécia. Elas foram</p><p>queimadas e receberam a coroa do martírio nas chamas, no dia 25 de março</p><p>de 304 d.C. Descobrindo ser incapaz de impressionar Irene, o governador</p><p>ordenou que ela fosse exposta nua nas ruas. Após a execução dessa ordem</p><p>vergonhosa, uma fogueira foi acesa próxima à muralha da cidade, e, em</p><p>meio àquelas chamas, o espírito dela se elevou além do alcance da crueldade</p><p>do homem.</p><p>Agato, um homem de mentalidade piedosa, Cassice, Filipa e Eutíquia</p><p>foram martirizados na mesma época, mas os detalhes não nos foram</p><p>transmitidos.</p><p>Marcelino, bispo de Roma que sucedeu a Caio nessa função, opôs-se</p><p>fortemente a prestar honras divinas a Diocleciano e, por isso, sofreu</p><p>martírio com grande variedade de torturas, no ano 324 d.C. Até expirar, ele</p><p>confortou sua alma com a perspectiva das gloriosas recompensas que</p><p>receberia pelas torturas sofridas no corpo.</p><p>Vitório, Carpóforo, Severo e Severiano eram irmãos, todos eles tinham</p><p>empregos de grande con�ança e honra na cidade de Roma. Havendo</p><p>exclamado contra a adoração a ídolos, foram detidos e golpeados com</p><p>açoites em cujas extremidades eram presas bolas de chumbo. Esse castigo</p><p>foi aplicado com tanto excesso de crueldade que os piedosos irmãos se</p><p>tornaram mártires devido a tal severidade.</p><p>Timóteo, um diácono da Mauritânia, e sua esposa, Maura, haviam se</p><p>casado a menos de três semanas quando foram separados pela perseguição.</p><p>Timóteo, detido como cristão, foi levado diante de Arriano, governador de</p><p>Tebas. Este, sabendo que Timóteo detinha a guarda das Sagradas Escrituras,</p><p>ordenou que as entregasse a �m de serem queimadas, ao que ele respondeu:</p><p>“Se eu tivesse �lhos, preferiria entregá-los para serem sacri�cados do que</p><p>abrir mão da Palavra de Deus”. Muito irritado com essa resposta, o</p><p>governador ordenou que seus olhos fossem inutilizados com ferros em brasa</p><p>e disse: “Os livros serão, no mínimo, inúteis para você, porque não os lerá”.</p><p>Sua paciência com tal procedimento foi tão grande que o governador �cou</p><p>mais exasperado. Assim, tentando superar a resistência de Timóteo,</p><p>ordenou que ele fosse pendurado pelos pés, com um peso amarrado no</p><p>pescoço e uma mordaça na boca. Vendo-o nesse estado, sua esposa, Maura,</p><p>pediu-lhe ternamente que se retratasse; porém, quando a mordaça foi tirada</p><p>de sua boca, em vez de concordar com os pedidos da esposa, ele culpou o</p><p>amor muito equivocado dela e declarou sua decisão de morrer pela fé.</p><p>Diante disso, Maura resolveu imitar a coragem e �delidade do marido e</p><p>acompanhá-lo ou segui-lo para a glória. Após tentar em vão alterar a</p><p>resolução dela, o governador ordenou que fosse torturada, o que ocorreu</p><p>com grande severidade. Após isso, Timóteo e Maura foram cruci�cados um</p><p>perto do outro, no ano 304 d.C.</p><p>Sabino, bispo de Assis, recusando-se a sacri�car a Júpiter e empurrando</p><p>o ídolo para longe dele, teve sua mão cortada por ordem do governador da</p><p>Toscana. Enquanto estava na prisão, conduziu o governador e sua família à</p><p>fé em Cristo, todos os quais sofreram martírio por isso. Pouco depois da</p><p>execução deles, o próprio Sabino foi açoitado até a morte, em dezembro de</p><p>304 d.C.</p><p>Mar�rio de Timóteo e Maura, por Henryk Siemiradzki (1843–1902). Parte do acervo do</p><p>Museu Nacional de Varsóvia, Polônia.</p><p>Cansado da farsa do Estado e dos assuntos públicos, o imperador</p><p>Diocleciano renunciou ao diadema imperial e foi sucedido por Constâncio</p><p>e Galério. O primeiro, um príncipe absolutamente brando e humano; o</p><p>segundo, igualmente notável por sua crueldade e tirania. Eles dividiram o</p><p>império em dois governos iguais: Galério governava o Leste e Constâncio, o</p><p>Oeste. As pessoas dos dois governos sentiram os efeitos das inclinações dos</p><p>dois imperadores, porque os ocidentais eram governados da maneira mais</p><p>branda, mas os residentes no leste sentiam todos os sofrimentos de opressão</p><p>e torturas prolongadas.</p><p>Dentre os muitos martirizados por ordem de Galério, enumeraremos os</p><p>que tiveram mais destaque.</p><p>An�ano era um cavalheiro importante em Lucia e estudioso de Eusébio;</p><p>Julita, uma Licônia de ascendência real, porém mais celebrada por suas</p><p>virtudes do que por sua nobreza. Enquanto ela estava no cavalete, seu �lho</p><p>foi morto diante de seus olhos. Julita, da Capadócia, era uma dama de</p><p>distinguida capacidade, grande virtude e coragem incomum. Para</p><p>completar a execução, Julita teve piche fervente derramado nos pés, os</p><p>�ancos rasgados com ganchos e seu martírio terminou por decapitação, em</p><p>16 de abril de 305 d.C.</p><p>Hermolau, um cristão venerável e piedoso de idade avançada e íntimo</p><p>de Pantaleão, sofreu martírio em decorrência de sua fé no mesmo dia e da</p><p>mesma maneira que Pantaleão. Eustrácio, secretário do governador de</p><p>Armina, foi jogado em uma fornalha ardente por exortar alguns cristãos que</p><p>haviam sido detidos a perseverarem na fé.</p><p>Nicander e Marciano, dois eminentes o�ciais militares romanos, foram</p><p>presos devido à fé que professavam. Por serem homens de grandes</p><p>habilidades em sua pro�ssão, os meios mais extremos foram usados para</p><p>induzi-los a renunciar ao cristianismo. Devido à ine�cácia desses esforços,</p><p>eles foram decapitados.</p><p>No reino de Nápoles ocorreram vários martírios — em particular,</p><p>Januário, bispo de Benevento; Sósio, diácono de Miseno; Próculo, outro</p><p>diácono; Eutíquio e Acúcio, dois laicos; Festo, um diácono, e Desidério,</p><p>um leitor. Todos, por serem cristãos, foram condenados pelo governador da</p><p>Campânia a serem devorados por animais selvagens. Os animais, porém,</p><p>não os tocaram e, por isso, eles foram decapitados.</p><p>Quirino, bispo de Síscia, sendo levado diante de Matênio, o governador,</p><p>recebeu ordem de sacri�car às divindades pagãs, em conformidade com os</p><p>éditos de diversos imperadores romanos. O governador, percebendo sua</p><p>constância, o enviou para a prisão e ordenou que ele fosse posto a ferros,</p><p>lisonjeando-se de que os sofrimentos de uma prisão, algumas torturas</p><p>ocasionais e o peso das correntes conseguiriam superar a resolução de</p><p>Quirino. Porém, este era um homem decidido em seus princípios. Com</p><p>isso, ele foi enviado a Amâncio, o principal governador da Panônia, agora</p><p>Hungria, que o acorrentou e o levou pelas principais cidades do Danúbio,</p><p>expondo-o ao ridículo por onde quer que fosse.</p><p>São Januário emerge incólume da fornalha, por Jusepe de Ribera (1591–1652). Parte</p><p>do acervo da Catedral de Nápoles, Itália.</p><p>Chegando �nalmente a Sabaria e descobrindo que Quirino não</p><p>renunciaria à sua fé, ordenou que este fosse lançado em um rio, com uma</p><p>pedra presa ao pescoço. Ao ser executada a sentença, Quirino �utuou</p><p>durante algum tempo e, exortando o povo nos termos mais piedosos,</p><p>concluiu suas advertências com a seguinte oração: “Não é novidade para ti,</p><p>ó todo-poderoso Jesus, parar o curso dos rios ou fazer um homem andar</p><p>sobre a água, como �zeste a Teu servo Pedro. O povo já viu em mim a</p><p>prova do Teu poder. Concede-me agora entregar a minha vida por Tua</p><p>causa, ó meu Deus”. Ao pronunciar as últimas palavras, afundou</p><p>imediatamente e morreu, em 4 de junho de 308 d.C. Seu corpo foi,</p><p>posteriormente, resgatado e enterrado por alguns cristãos piedosos.</p><p>Pân�lo, natural da Fenícia, de uma família bem considerada, era um</p><p>homem de tão extenso aprendizado que foi chamado de um segundo</p><p>Orígenes. Ele foi recebido no corpo do clero em Cesareia, onde fundou</p><p>uma biblioteca pública e investiu o seu tempo praticando todas as virtudes</p><p>cristãs. Ele copiou a maior parte das obras de Orígenes com sua própria</p><p>mão e, auxiliado por Eusébio, produziu uma cópia �el do Antigo</p><p>Testamento, que sofrera muitíssimo por ignorância ou negligência de</p><p>transcritores anteriores. No ano 307 d.C., ele foi detido e sofreu tortura e</p><p>martírio.</p><p>Marcelo, bispo de Roma, banido por causa de sua fé, morreu em 16 de</p><p>janeiro de 310 d.C. como mártir devido aos sofrimentos que lhe foram</p><p>in�igidos no exílio. Pedro, o décimo-sexto bispo de Alexandria, foi</p><p>martirizado em 25 de novembro do ano 311 d.C., por ordem de Máximo</p><p>César, que reinava no Leste.</p><p>Agnes, uma virgem de apenas 13 anos, foi decapitada por ser cristã; o</p><p>mesmo aconteceu a Serene, a imperatriz de Diocleciano. Valentino, um</p><p>sacerdote, sofreu o mesmo destino em Roma, e Erasmo, um bispo, foi</p><p>martirizado na Campânia.</p><p>Pouco depois disso, a perseguição diminuiu nas partes centrais do</p><p>império, bem como no ocidente, e, �nalmente, a Providência começou a</p><p>manifestar a Sua vingança contra os perseguidores. Maximiano tentou</p><p>corromper sua �lha Fausta a assassinar Constantino, seu marido. Ele</p><p>descobriu, e Constantino o forçou a escolher sua própria morte.</p><p>Maximiano preferiu a ignominiosa morte do enforcamento após ser</p><p>imperador por quase 20 anos.</p><p>Constantino era o �lho bom e virtuoso de um pai bom e virtuoso,</p><p>nascido na Bretanha. Sua mãe era Helena, �lha do rei Coilus. Ele foi um</p><p>príncipe muito generoso e gracioso, desejava nutrir e desenvolver o</p><p>aprendizado e as boas artes, costumava ler, escrever e estudar. Seu sucesso</p><p>foi maravilhoso e foi próspero em tudo que se dedicou a fazer, o que, na</p><p>época, foi (e verdadeiramente se supôs ser) considerado decorrente de ele</p><p>ser um grande favorecedor da fé cristã. Após abraçar essa fé, ele sempre a</p><p>reverenciou com a maior devoção e religiosidade.</p><p>Assim, Constantino, su�cientemente equipado com força humana, mas</p><p>especialmente com a força de Deus, iniciou sua jornada dirigindo-se à</p><p>Itália, por volta do último ano da perseguição, em 313 d.C. Magêncio,</p><p>sabedor da vinda de Constantino e con�ando mais em sua diabólica arte da</p><p>magia do que na boa vontade de seus súditos, que ele pouco merecia, não</p><p>saiu da cidade, nem o encontrou em campo aberto, mas, com guarnições</p><p>cúmplices, esperou-o num caminho com diversas di�culdades. Constantino</p><p>teve com eles diversas escaramuças e, pelo poder do Senhor, os derrotou e</p><p>os pôs em fuga.</p><p>Não obstante, aproximando-se agora de Roma, Constantino ainda não</p><p>sentia grande conforto, mas, sim, grande preocupação e pavor em sua</p><p>mente pelos encantos mágicos e feitiçarias de Magêncio, com os quais este</p><p>havia vencido anteriormente Severo, enviado contra ele por Galério. Por</p><p>isso, tomado de grande dúvida e perplexidade e revolvendo em sua mente</p><p>muitas coisas acerca de que ajuda ele poderia ter contra a e�cácia dos seus</p><p>encantamentos, dirigindo-se à cidade e olhando para o céu muitas vezes,</p><p>perto do pôr do sol, Constantino viu um grande brilho na parte sul do céu,</p><p>aparecendo na semelhança de uma cruz com a inscrição In hoc vinces, isto é:</p><p>“Com isto vencerás”.</p><p>Eusébio Panfílio testemunha ter ouvido o próprio Constantino relatar</p><p>frequentemente, e também jurar ser verdadeiro e certo, o que ele viu com</p><p>os seus próprios olhos no céu, e também os soldados que estavam ao seu</p><p>redor. À vista daquilo, �cou muito atônito e, consultando seus homens</p><p>sobre o signi�cado, eis que, durante a noite, enquanto dormia, Cristo lhe</p><p>apareceu com o sinal da mesma cruz que ele vira antes, pedindo-lhe que a</p><p>reproduzisse e a carregasse em suas guerras diante dele, e assim seriam</p><p>vitoriosos.</p><p>Visão da cruz, por Raphael (1483–1520). Parte do acervo da Sala de Constan�no,</p><p>Museu do Va�cano.</p><p>De tal maneira, Constantino estabeleceu a paz da Igreja que, durante</p><p>mil anos, não encontramos relatos de perseguição contra os cristãos, até</p><p>chegarmos ao tempo de John Wickliffe.</p><p>Essa vitória de Constantino, apelidado o Grande, foi muito feliz e</p><p>gloriosa! Devido a tanta alegria, os cidadãos que o haviam enviado antes,</p><p>com grande triunfo o levaram à cidade de Roma, onde ele foi recebido com</p><p>todas as honras, e comemoraram juntos durante sete dias. E além disso,</p><p>erigiram no mercado a sua imagem segurando na mão direita o sinal da</p><p>cruz, com a inscrição “Com este sinal saudável, o verdadeiro sinal de</p><p>fortaleza, eu resgatei e libertei a nossa cidade do jugo do tirano”.</p><p>Concluiremos nosso relato da décima e última perseguição geral com a</p><p>morte de Jorge, santo titular e padroeiro da Inglaterra. Jorge nasceu na</p><p>Capadócia, �lho de pais cristãos; dando provas de sua coragem foi</p><p>promovido ao exército do imperador Diocleciano. Durante a perseguição,</p><p>ele abdicou de seu comando e foi ousadamente ao senado onde declarou ser</p><p>cristão, aproveitando a ocasião também para protestar contra o paganismo e</p><p>enfatizar o absurdo da adoração a ídolos. Essa insubordinação provocou o</p><p>Senado de tal forma, que Jorge foi condenado a ser torturado e, por ordem</p><p>do imperador, foi arrastado pelas ruas e decapitado no dia seguinte.</p><p>A lenda do dragão, associada a esse mártir, é comumente ilustrada</p><p>representando Jorge sentado em um cavalo em posição de ataque e</p><p>trans�xando o monstro com sua lança. Esse dragão de fogo simboliza o</p><p>diabo que foi vencido pela �rmeza da fé de Jorge em Cristo, a qual</p><p>permaneceu inabalável a despeito da tortura e morte.</p><p>Fragmentos de uma estátua gigante de Constan�no, o Grande, no Monte Capitolino,</p><p>Itália.</p><p>2 Embora essa interpretação para o incêndio de Roma seja corrente, não há suficiente</p><p>evidência histórica de que Nero o tenha iniciado ou tocado a lira enquanto ele</p><p>acontecia. No entanto, ele realmente culpou os cristãos por isso e usou essa tragédia</p><p>para promover sua agenda polí�ca.</p><p>3 Caio Plínio Segundo, também conhecido como Plínio, o Velho.</p><p>4 Representante do governo romano nas províncias sob sua jurisdição.</p><p>5 Mt 25:35</p><p>6 Mt 25:40</p><p>7 Cidade fundada pelos fenícios na Tunísia, norte da África, próximo a Cartago. Tornou-</p><p>se província romana no século 2.</p><p>8 (672–735) Monge, teólogo e historiador anglo-saxão, conhecido como o “Pai da</p><p>erudição inglesa”.</p><p>9 Pode referir-se ao Cavalete ou Potro, que já exis�a em 65 d.C. É um instrumento de</p><p>tortura no formato de uma mesa com um cilindro em uma ou nas duas extremidades</p><p>(ver imagem na p.227). Os pulsos da ví�ma eram presos em uma delas e os</p><p>calcanhares na outra. Por meio de polias e alavancas, este cilindro podia ser girado</p><p>sobre seu próprio eixo, es�cando as cordas até que as juntas da ví�ma fossem</p><p>deslocadas e, finalmente, separadas provocando uma dor excruciante.</p><p>Capítulo 3</p><p>Perseguições sofridas pelos cristãos na</p><p>Pérsia</p><p>Tendo o evangelho sido difundido na Pérsia, os sacerdotes pagãos, que</p><p>adoravam o Sol, �caram muito alarmados e temeram perder a in�uência</p><p>que, até então, exerciam sobre a mente e as propriedades das pessoas. Por</p><p>isso, acharam conveniente reclamar ao imperador que os cristãos eram</p><p>inimigos do Estado, além de manterem uma traidora harmonia com os</p><p>romanos, os grandes inimigos da Pérsia.</p><p>O imperador Sapor, naturalmente avesso ao cristianismo, acreditou</p><p>facilmente no que foi dito contra os cristãos e deu ordens de os perseguirem</p><p>em todas as partes de seu império. Devido a essa ordem, muitas pessoas</p><p>renomadas na Igreja e no Estado se tornaram mártires da ignorância e</p><p>ferocidade dos pagãos.</p><p>Ao ser informado das perseguições na Pérsia, Constantino o Grande</p><p>escreveu uma longa carta ao monarca persa, na qual relatava a vingança que</p><p>recaíra sobre os perseguidores e o grande sucesso que acompanhara os que</p><p>se abstiveram de perseguir os cristãos.</p><p>Falando de suas vitórias sobre os imperadores rivais de seu próprio</p><p>tempo, Constantino declarou: “Eu os subjuguei unicamente pela fé em</p><p>Cristo; por isso, Deus foi o ajudador que me deu vitória na batalha e me fez</p><p>triunfar sobre os meus inimigos. De semelhante modo, Ele ampliou para</p><p>mim os limites do Império Romano, que se estende desde o Oceano</p><p>Ocidental até quase as partes mais remotas do Oriente; para esse domínio,</p><p>não ofereci sacrifícios às antigas divindades, nem usei encantamento ou</p><p>adivinhação: apenas ofereci orações ao Deus Todo-poderoso e segui a cruz</p><p>de Cristo. Eu �caria feliz se o trono da Pérsia também encontrasse glória</p><p>acolhendo os cristãos, para que você comigo, e eles com você, desfrutem de</p><p>toda a felicidade”.</p><p>Em consequência desse apelo, a perseguição cessou naquela época, mas</p><p>foi reinstaurada posteriormente, quando outro rei subiu ao trono da Pérsia.</p><p>PERSEGUIÇÕES SOB OS HEREGES ARIANOS</p><p>O autor da heresia ariana foi Ário, nativo da Líbia e sacerdote de</p><p>Alexandria, que começou a publicar os seus erros em 318 d.C. Ele foi</p><p>condenado por um concílio de bispos da Líbia e do Egito, sendo essa</p><p>sentença con�rmada pelo Concílio de Nice, em 325 d.C. Após a morte de</p><p>Constantino, o Grande, os arianos encontraram meios de agradar o</p><p>imperador Constantino, seu �lho e sucessor no oriente; com isso, uma</p><p>perseguição foi levantada contra os bispos ortodoxos e o clero. O célebre</p><p>Atanásio10 e outros bispos foram banidos e suas posições foram ocupadas</p><p>por arianos.</p><p>Atanásio de Alexandria, parte do acervo do Museu Arqueológico, em Varna, Bulgária.</p><p>No Egito e na Líbia, 30 bispos foram martirizados e muitos outros</p><p>cristãos cruelmente atormentados. Em 386 d.C, Jorge, o bispo ariano de</p><p>Alexandria, iniciou, sob a autoridade do imperador, uma perseguição</p><p>naquela cidade e em seus arredores, executando-a com a mais infernal</p><p>severidade. Em sua maldade diabólica, ele foi auxiliado por Catofônio,</p><p>governador do Egito; Sebastião, general das forças egípcias; Faustino, o</p><p>tesoureiro, e Heráclio, um o�cial romano.</p><p>Nesse ponto, as perseguições se in�amaram de tal forma que os clérigos</p><p>foram expulsos de Alexandria, suas igrejas foram fechadas e as severidades</p><p>praticadas pelos hereges arianos foram tão grandes quanto as praticadas</p><p>pelos idólatras pagãos. Se um homem acusado de ser cristão fugisse, toda a</p><p>sua família era massacrada e seus bens, con�scados.</p><p>PERSEGUIÇÃO SOB O GOVERNO DE JULIANO, O APÓSTATA</p><p>Esse imperador era �lho de Júlio Constâncio e sobrinho de Constantino, o</p><p>Grande. Ele estudou os rudimentos da gramática sob a inspeção de</p><p>Mardônio, um eunuco pagão de Constantinopla. Algum tempo depois, seu</p><p>pai o enviou a Nicomédia, para ser instruído na religião cristã pelo bispo de</p><p>Eusébio, seu parente; porém, seus princípios foram corrompidos pelas</p><p>doutrinas perniciosas de Ecebólio, o retórico, e Máximo, o mágico.</p><p>Juliano, o Apóstata, presidindo uma conferência de sectários, por Edward Armitage</p><p>(1817–96). Parte do acervo da Galeria de Arte Walker, Liverpool, Inglaterra.</p><p>Constâncio morreu no ano 361 d.C. e foi sucedido por Juliano. Este,</p><p>logo que alcançou a dignidade imperial, renunciou ao cristianismo e</p><p>abraçou o paganismo, que durante alguns anos havia caído em grande</p><p>descrédito. Embora houvesse restaurado a adoração idólatra, não elaborou</p><p>éditos públicos contra o cristianismo. Ele chamou de volta todos os pagãos</p><p>banidos, permitiu a todas as seitas o livre exercício da religião, mas privou</p><p>todos os cristãos de cargos no tribunal, na magistratura e no exército. Era</p><p>casto, calmo, vigilante, laborioso e piedoso; contudo, proibiu qualquer</p><p>cristão de manter uma escola ou seminário público de aprendizado e privou</p><p>todo o clero cristão dos privilégios que lhes haviam sido concedidos por</p><p>Constantino, o Grande.</p><p>O bispo Basílio se tornou famoso pela sua oposição ao arianismo, a qual</p><p>trouxe sobre ele a vingança do bispo ariano de Constantinopla; ele se</p><p>opunha igualmente ao paganismo. Os agentes do imperador tentaram em</p><p>vão dissuadir Basílio com promessas, ameaças e cavaletes, mas ele se</p><p>manteve �rme na fé e permaneceu na prisão para ser submetido a outros</p><p>sofrimentos, quando o imperador chegou acidentalmente a Ancira. Juliano</p><p>decidiu interrogar Basílio pessoalmente. Quando esse santo homem foi</p><p>levado diante do imperador, ele fez tudo que estava ao seu alcance para</p><p>dissuadi-lo de perseverar na fé. Entretanto, Basílio não apenas continuou</p><p>tão �rme quanto antes, mas, com espírito profético, predisse que o</p><p>imperador morreria e seria atormentado na outra vida. Enfurecido com o</p><p>que ouviu, Juliano ordenou que o corpo de Basílio fosse rasgado todos os</p><p>dias em sete partes diferentes até sua pele e carne estarem totalmente</p><p>mutiladas. Essa sentença desumana foi executada com rigor, e o mártir</p><p>expirou devido à sua severidade, em 28 de junho de 362 d.C.</p><p>Donato, bispo de Arezzo, e Hilarino, um eremita, sofreram na mesma</p><p>época; também Górdio, um magistrado romano. Artêmio, comandante</p><p>supremo das forças romanas no Egito, sendo cristão, foi privado de seu</p><p>cargo; depois, de suas propriedades, e, �nalmente, de sua cabeça.</p><p>A perseguição durou terrivelmente no segundo semestre do ano 363</p><p>d.C.; porém, como muitas das particularidades não nos foram transmitidas,</p><p>é necessário observar, em geral, que na Palestina muitos foram queimados</p><p>vivos; outros, arrastados pelos pés nus pelas ruas até expirarem; alguns</p><p>foram escaldados até a morte; muitos, apedrejados, e um grande número</p><p>teve a cabeça despedaçada com bastões. Em Alexandria, inúmeros foram os</p><p>mártires que sofreram por meio de espada, fogo, cruci�cação e</p><p>apedrejamento. Em Aretusa, vários foram eviscerados e milho foi colocado</p><p>dentro de sua barriga; em seguida, porcos foram levados para alimentar-se</p><p>neles e, ao devorarem os grãos, devoravam também as entranhas dos</p><p>mártires. Na Trácia, Emiliano foi queimado em uma estaca, e Domício foi</p><p>assassinado em uma caverna para onde havia fugido em busca de refúgio.</p><p>O imperador Juliano, o apóstata, morreu de um ferimento sofrido em</p><p>sua expedição persa, no ano 363 d.C.; mesmo enquanto expirava, proferiu</p><p>as mais horríveis blasfêmias. Ele foi sucedido por Joviano, que restaurou a</p><p>paz à Igreja.</p><p>Após o falecimento de Joviano, Valentiniano sucedeu ao império e</p><p>associou-se a Valente, que detinha o comando no oriente e era um ariano</p><p>com inclinação implacável e perseguidora.</p><p>PERSEGUIÇÃO INSTAURADA PELOS GODOS E PELOS VÂNDALOS</p><p>Muitos godos citas11 abraçaram o cristianismo na época de Constantino, o</p><p>Grande, e a luz do evangelho se difundiu consideravelmente na Cítia,</p><p>embora os dois reis que governavam aquele país e a maioria do povo</p><p>continuassem pagãos. Fritigerno, rei dos visigodos (ocidentais), era um</p><p>aliado dos romanos, mas Atanarique, rei dos ostrogodos (orientais), estava</p><p>em guerra com eles. Nos domínios do primeiro, os cristãos viveram sem ser</p><p>molestados; o último, derrotado pelos romanos, executou sua vingança</p><p>contra seus súditos cristãos, iniciando suas injunções pagãs no ano 370 d.C.</p><p>Na religião, os godos eram arianos e se denominavam cristãos; por isso,</p><p>destruíram todas as estátuas e os templos dos deuses pagãos, mas não</p><p>�zeram mal às igrejas cristãs ortodoxas.</p><p>Alarico tinha todas as qualidades de um grande general. À bravura</p><p>selvagem do bárbaro gótico, ele acrescentou a coragem e a habilidade do</p><p>soldado romano. Liderou suas forças através dos Alpes até a Itália e, apesar</p><p>de rechaçado naquele momento, retornou depois com uma força</p><p>irresistível.</p><p>Pollice verso (Polegar para baixo), de Jean-Léon Gérôme (1824–1904). Parte do acervo</p><p>do Museu de Arte de Phoenix, Arizona, EUA.</p><p>O ÚLTIMO “TRIUNFO” ROMANO</p><p>Após a feliz vitória sobre os godos, um “triunfo”, como foi chamado, foi</p><p>celebrado em Roma. Durante centenas de anos, generais de sucesso haviam</p><p>recebido essa grande honra ao voltarem de uma campanha vitoriosa. Nessas</p><p>ocasiões, durante vários dias a cidade era entregue à marcha de tropas</p><p>carregadas de despojos e que arrastavam, atrás de si, prisioneiros de guerra,</p><p>dentre os quais era frequente haver entre os cativos reis e generais vencidos.</p><p>Esse seria o último triunfo romano, visto que celebrou a última vitória</p><p>romana. Embora houvesse sido conquistado pelo general Estilicão, foi o</p><p>jovem imperador Honório quem recebeu todo crédito, entrando em Roma</p><p>no carro da vitória e dirigindo-o até o Capitólio em meio aos brados da</p><p>população. Posteriormente, como era habitual nessas ocasiões, houve</p><p>combates sangrentos no Coliseu, onde gladiadores, armados com espadas e</p><p>lanças, lutavam tão furiosamente quanto se estivessem no campo de</p><p>batalha.</p><p>Tendo a primeira parte do entretenimento sangrento terminado, os</p><p>corpos dos mortos foram removidos por meio de ganchos e a areia</p><p>avermelhada foi coberta com uma nova camada limpa. Depois disso, os</p><p>portões da muralha da arena foram abertos e vários homens altos e bem</p><p>formados, no auge da juventude e força, apareceram. Alguns carregavam</p><p>espadas; outros, lanças de três pontas e redes. Eles marcharam uma vez ao</p><p>redor da muralha e, parando diante do imperador, ergueram as armas com</p><p>os braços estendidos e, em uníssono, entoaram esta saudação: Ave, Cæsar,</p><p>morituri te salutant! – “Salve, César, os que estão prestes a morrer te</p><p>saúdam!”.</p><p>Então, os combates recomeçaram. Os gladiadores com redes tentavam</p><p>enroscar os que usavam espadas e, quando conseguiam, golpeavam</p><p>impiedosamente seus antagonistas com a lança de três pontas, até</p><p>morrerem. Quando um gladiador feria seu adversário e o deixava estirado</p><p>impotentemente aos seus pés, ele olhava para os rostos ansiosos dos</p><p>espectadores e gritava: Hoc habet! — “O que ele recebe?” (tradução livre)</p><p>—, e aguardava a decisão da plateia: matar ou poupar.</p><p>Se os espectadores lhe estendessem as mãos com o polegar para cima, o</p><p>homem derrotado era retirado para, se possível, recuperar-se de seus</p><p>ferimentos. Porém, se o sinal fatal de “polegar para baixo” fosse dado, o</p><p>vencido deveria ser morto; se ele demonstrasse alguma relutância em</p><p>apresentar o pescoço para o golpe mortal, havia o grito desdenhoso das</p><p>galerias: Recipe ferrum! — “Receba o aço!”. Pessoas privilegiadas na plateia</p><p>até desciam à arena para testemunhar melhor as agonias de morte de uma</p><p>vítima incomumente corajosa antes de seu cadáver ser arrastado para fora</p><p>através do portão da morte.</p><p>O espetáculo continuava. Muitos eram mortos, e o povo,</p><p>ensandecidamente empolgado com a bravura desesperada daqueles que</p><p>continuavam lutando, gritava em aplausos. Porém, de repente, houve uma</p><p>interrupção. Uma �gura grosseiramente trajada apareceu durante certo</p><p>momento em meio à plateia e então, corajosamente, saltou para a arena.</p><p>Via-se que ele era um homem de presença rude, mas imponente, de cabeça</p><p>raspada e rosto bronzeado.</p><p>Sem hesitar um instante sequer, ele avançou sobre dois gladiadores</p><p>envolvidos em uma luta de vida ou morte e, impondo a mão sobre um</p><p>deles, reprovou-o severamente por derramar sangue inocente. Em seguida,</p><p>voltando-se para os milhares de rostos enfurecidos ao seu redor, repreendeu-</p><p>os com voz solene e grave, que ressoava através da vasta construção. Suas</p><p>palavras foram: “Não retribuam a misericórdia de Deus em afastar a espada</p><p>de seus inimigos matando uns aos outros!”.</p><p>Berros e gritos raivosos sufocaram imediatamente a sua voz: “Este não é</p><p>um lugar para pregar! Em meio aos gladiadores! — Os antigos costumes de</p><p>Roma precisam ser observados!”. Empurrando o estranho para o lado, os</p><p>gladiadores quiseram atacar-se novamente, mas o homem �cou entre eles,</p><p>mantendo-os separados e tentando em vão ser ouvido. “Sedição! Sedição!</p><p>Fora com ele!”, foi então a aclamação. Os gladiadores, enfurecidos pela</p><p>interferência de um estranho em sua vocação escolhida, mataram-no de</p><p>imediato com suas espadas. Pedras, ou qualquer outro tipo de projétil à</p><p>mão, também choviam sobre ele vindos do povo furioso, e assim ele</p><p>pereceu no meio da arena.</p><p>Suas vestes revelavam que ele era um dos eremitas que �zeram o voto de</p><p>viver de forma santa, em oração e abnegação, reverenciados até mesmo</p><p>pelos romanos desatenciosos e amantes do combate. Os poucos que o</p><p>conheciam contaram como ele viera das regiões selvagens da Ásia em</p><p>peregrinação, para visitar as igrejas e celebrar o Natal em Roma; eles sabiam</p><p>que ele era um homem santo e seu nome era Telêmaco — nada mais. Seu</p><p>espírito havia sido instigado pela visão de milhares de pessoas se reunindo</p><p>para ver homens se matando. Em seu zelo simplório, tentou convencê-los</p><p>da crueldade e perversidade de sua conduta. Ele morreu, mas não em vão.</p><p>Sua obra foi realizada no momento em que ele foi abatido, pois o choque</p><p>de tal morte diante dos olhos deles transformou o coração do povo: viram</p><p>os aspectos hediondos do vício favorito ao qual se rendiam cegamente e,</p><p>desde o dia em que Telêmaco morreu no Coliseu, nenhuma outra luta de</p><p>gladiadores foi realizada ali.</p><p>PERSEGUIÇÕES DESDE MEADOS DO SÉCULO 5 ATÉ O FIM DO SÉCULO 7</p><p>Protério foi feito sacerdote por Cirilo, bispo de Alexandria, que conhecia</p><p>bem suas virtudes antes de designá-lo para pregar. Com a morte de Cirilo, a</p><p>cadeira de Alexandria foi preenchida por Díscoro, um inimigo inveterado</p><p>da memória e família de seu antecessor. Condenado pelo concílio de</p><p>Calcedônia por haver adotado os erros de Eutique, ele foi deposto, e</p><p>Protério foi escolhido para �car em seu lugar, o que foi aprovado pelo</p><p>imperador. Isso ocasionou uma insurreição perigosa, porque a cidade de</p><p>Alexandria se dividiu em duas facções: a que defendia a causa do antigo</p><p>prelado e a outra, a do novo. Em uma das manifestações, os eutiquianos</p><p>decidiram vingar-se de Protério, que fugiu para a igreja na busca pelo</p><p>santuário. Mas, na sexta-feira santa de 457 d.C., um grande número deles</p><p>invadiu a igreja e assassinou barbaramente o prelado; depois disso,</p><p>arrastaram o seu corpo pelas ruas, insultaram-no, esquartejaram,</p><p>queimaram-no e espalharam as cinzas no ar.</p><p>Quarto Concílio Ecumênico da Calcedônia, por Varsily Surikov (1848–1916).</p><p>Hermenegildo, um príncipe gótico, era o �lho mais velho de Leovigildo,</p><p>um rei dos godos, na Espanha. Esse príncipe, originalmente ariano,</p><p>converteu-se à fé ortodoxa por intermédio de sua esposa, Ingonda. Quando</p><p>o rei soube que seu �lho havia mudado seus sentimentos religiosos,</p><p>destitui-o do comando em Sevilha, onde era governador, e ameaçou matá-</p><p>lo se não renunciasse a fé recentemente adotada. Para impedir o</p><p>cumprimento das ameaças de seu pai, o príncipe começou a colocar-se em</p><p>postura de defesa, e muitos da persuasão ortodoxa na Espanha se</p><p>declararam em favor dele. O rei, exasperado com esse ato de rebelião,</p><p>começou a punir todos os cristãos ortodoxos que suas tropas conseguiam</p><p>deter. Iniciou-se assim uma perseguição muito severa, e ele também</p><p>marchou contra seu �lho à frente de um exército muito poderoso. O</p><p>príncipe se refugiou em Sevilha, de onde fugiu, sendo �nalmente cercado e</p><p>levado em Asieta. Acorrentado, foi enviado para Sevilha e, na festa da</p><p>Páscoa, recusou-se a receber a Eucaristia de um bispo ariano. Diante disso,</p><p>o rei, enfurecido, ordenou que seus guardas esquartejassem o príncipe, o</p><p>que eles realizaram prontamente, em 13 de abril de 586 d.C.</p><p>Martinho, bispo de Roma, nasceu em Todi, na Itália. Naturalmente</p><p>inclinado à virtude, seus pais lhe conferiram uma educação admirável. Ele</p><p>se opôs aos hereges chamados monotelistas,12 que eram apadrinhados pelo</p><p>imperador Heráclio. Martinho foi condenado em Constantinopla, onde foi</p><p>exposto ao ridículo nos lugares mais públicos, despojado de todos os</p><p>símbolos de distinção episcopal e tratado com o maior desprezo e</p><p>severidade. Após passar alguns meses na prisão, Martinho foi enviado a</p><p>uma ilha situada a certa distância e, ali, esquartejado em 655 d.C.</p><p>João, bispo de Bérgamo, na Lombardia, era um homem instruído e um</p><p>bom cristão. Ele fez os maiores esforços para limpar a Igreja dos erros do</p><p>arianismo e, juntando-se a essa santa obra com João, bispo de Milão, teve</p><p>muito sucesso contra os hereges, pelo que foi assassinado em 11 de julho de</p><p>683 d.C.</p><p>Quiliano nasceu na Irlanda e recebeu de seus pais uma educação piedosa</p><p>e cristã. Ele obteve a licença do pontí�ce romano para pregar aos pagãos na</p><p>Francônia, na Alemanha. Em Wurtzburg, ele converteu Gosberto, o</p><p>governador, cujo exemplo foi seguido pela maior parte do povo nos dois</p><p>anos seguintes. Persuadindo Gosberto de que seu casamento com a viúva de</p><p>seu irmão era pecaminoso, foi decapitado no ano 689 d.C.</p><p>PERSEGUIÇÕES DESDE OS PRIMÓRDIOS DO SÉCULO 8 ATÉ QUASE O</p><p>FIM DO SÉCULO 10</p><p>Bonifácio, arcebispo de Mentz e patriarca da igreja alemã, era inglês e, na</p><p>história eclesiástica, é considerado um dos mais brilhantes ornatos dessa</p><p>nação. Originalmente, seu nome era Winfred, ou Winfrith, e ele nasceu em</p><p>Kirton, em Devonshire, então parte do reino da Saxônia Ocidental. Logo</p><p>aos 6 anos, começou a descobrir uma propensão à re�exão e pareceu</p><p>solícito em obter informações acerca de assuntos religiosos. O abade</p><p>Wolfrad, ao descobrir que ele possuía um gênio brilhante e uma forte</p><p>inclinação ao estudo, enviou-o a Nutscelle, um seminário de aprendizado</p><p>na diocese de Winchester, onde teria maior oportunidade de crescimento</p><p>do que em Exeter.</p><p>Após o</p><p>devido estudo, ao vê-lo quali�cado para o sacerdócio, aos 30</p><p>anos o abade o obrigou a receber essa santa ordenação. Desde então, ele</p><p>começou a pregar e a trabalhar pela salvação de seus semelhantes. Foi</p><p>autorizado a assistir a um sínodo de bispos no reino dos saxões ocidentais.</p><p>Posteriormente, em 719 d.C., foi para Roma, onde Gregório II, que então</p><p>se assentava no trono de Pedro, recebeu-o com grande amizade e,</p><p>encontrando-o pleno de todas as virtudes que compõem o caráter de um</p><p>missionário apostólico, dispensou-o sem comissionamento, para que</p><p>pudesse pregar o evangelho aos pagãos onde quer que os encontrasse.</p><p>Passando pela Lombardia e pela Baviera, chegou à Turíngia, país que,</p><p>anteriormente, havia recebido a luz do evangelho; depois, visitou Utrecht e</p><p>seguiu para a Saxônia, onde converteu alguns milhares ao cristianismo.</p><p>Durante o ministério desse manso prelado, Pepino foi declarado rei da</p><p>França. Era a ambição daquele príncipe ser coroado pelo mais sagrado</p><p>prelado que ele pudesse encontrar. Bonifácio foi convidado a realizar a</p><p>cerimônia, o que fez em Soissons, no ano 752. No ano seguinte, sua idade</p><p>avançada e muitas enfermidades recaíram tão pesadamente que, com o</p><p>consentimento do novo rei e dos bispos de sua diocese, ele consagrou Lulo,</p><p>seu compatriota e �el discípulo, e o colocou na diocese de Mentz.</p><p>Estátua de São Bonifácio, em frente à igreja de Mainz, Alemanha.</p><p>Assim desincumbido de seu cargo, recomendou, em termos muito</p><p>fortes, a igreja de Mentz aos cuidados do novo bispo, desejando que ele</p><p>terminasse a igreja de Fuld e providenciasse seu enterro nela, visto que seu</p><p>�m estava próximo. Havendo deixado essas ordens, tomou o barco para o</p><p>Reno e foi à Frísia, onde converteu e batizou vários milhares de nativos</p><p>bárbaros, demoliu templos e ergueu igrejas nas ruínas daquelas estruturas</p><p>supersticiosas. No dia designado para a con�rmação de um grande número</p><p>de novos convertidos, ele ordenou que se reunissem em uma nova planície</p><p>aberta, próxima ao rio Bourde. Ele se dirigiu ao local no dia anterior e,</p><p>montando uma barraca, decidiu permanecer ali a noite toda, para estar</p><p>pronto de manhã cedo. Sendo informados disso, alguns pagãos, que eram</p><p>seus inveterados inimigos, lançaram-se sobre ele e os companheiros de sua</p><p>missão durante a noite. Mataram Bonifácio e 52 de seus companheiros e</p><p>assistentes no dia 5 de junho de 755 d.C. Assim caíram o grande patriarca</p><p>da Igreja germânica, a honra da Inglaterra e a glória da época em que ele</p><p>viveu.</p><p>Quarenta e duas pessoas de Amório, na Alta Frígia, foram martirizadas</p><p>no ano 845 d.C. pelos sarracenos, cujas circunstâncias são descritas a seguir.</p><p>No reinado de Teó�lo, os sarracenos devastaram muitas partes do</p><p>império oriental, conquistaram várias vantagens consideráveis sobre os</p><p>cristãos, tomaram a cidade de Amório e inúmeras pessoas sofreram</p><p>martírio. Flora e Maria, duas senhoras distintas, sofreram martírio ao</p><p>mesmo tempo.</p><p>Perfeito nasceu em Córdoba, na Espanha, e foi criado na fé cristã.</p><p>Dotado de um gênio ativo, dominou toda a literatura útil e instruída</p><p>daquela época; ao mesmo tempo, não era mais celebrado por suas</p><p>habilidades do que admirado por sua piedade. Por �m, foi ordenado</p><p>sacerdote e desempenhou os deveres de seu cargo com grande assiduidade e</p><p>pontualidade. Declarando publicamente que Maomé era um impostor, foi</p><p>condenado a ser decapitado e, consequentemente, executado no ano 850</p><p>d.C. Após isso, seu corpo foi enterrado com honras pelos cristãos.</p><p>Adalberto, bispo de Praga, nasceu na Boêmia. Após envolver-se em</p><p>muitos problemas, começou a direcionar seus pensamentos à conversão dos</p><p>in�éis; para isso, foi para Dantzig, onde converteu e batizou muitas pessoas,</p><p>o que enfureceu os sacerdotes pagãos, que vieram sobre ele e o executaram</p><p>com dardos, em 23 de abril de 997 d.C.</p><p>PERSEGUIÇÕES NO SÉCULO 11</p><p>Alfege, arcebispo de Canterbury, era descendente de uma família</p><p>considerável em Gloucestershire e recebeu uma educação adequada ao seu</p><p>ilustre nascimento. Seus pais eram cristãos dignos, e Alfege pareceu herdar</p><p>suas virtudes.</p><p>Com a morte de Ethelwold, a diocese de Winchester �cou vaga.</p><p>Dunstan, o arcebispo de Canterbury, como primaz de toda a Inglaterra,</p><p>consagrou Alfege à vacância do bispado, para satisfação geral de todos os</p><p>envolvidos na diocese.</p><p>Dunstan tinha uma extraordinária veneração por Alfege e, à beira da</p><p>morte, fez seu ardente pedido a Deus para que este pudesse sucedê-lo na</p><p>diocese de Canterbury, o que só veio a acontecer quase 18 anos após a</p><p>morte de Dunstan em 1006.</p><p>Após Alfege haver governado a cidade de Canterbury durante</p><p>aproximadamente quatro anos, com grande reputação para si mesmo e</p><p>benefício para o povo, os dinamarqueses �zeram uma incursão na Inglaterra</p><p>e sitiaram Canterbury. Quando o projeto de atacar essa cidade foi</p><p>descoberto, muitas das principais pessoas fugiram dela e teriam persuadido</p><p>Alfege a seguir seu exemplo. Ele, porém, como um bom pastor, não quis</p><p>dar ouvido a tal proposta. Enquanto ele estava atarefado em ajudar e</p><p>encorajar o povo, Canterbury foi tomada. O inimigo entrou na cidade e</p><p>destruiu com fogo e espada tudo que estava em seu caminho. Alfege teve a</p><p>coragem de se dirigir aos inimigos e oferecer-se à espada deles como mais</p><p>digno de sua fúria do que o povo: implorou que o povo fosse poupado e</p><p>que eles lançassem toda a sua fúria sobre ele. Consequentemente, os</p><p>inimigos o prenderam, amarraram suas mãos, insultaram-no, abusaram dele</p><p>de maneira rude e bárbara e o obrigaram a permanecer no local até sua</p><p>igreja ser queimada e os monges, massacrados. Depois, dizimaram todos os</p><p>habitantes, tanto eclesiásticos quanto laicos, deixando vivo apenas um</p><p>décimo das pessoas. Eles mataram 7.236 pessoas e deixaram vivos apenas</p><p>quatro monges e 800 laicos. Após isso, con�naram o arcebispo em uma</p><p>masmorra, onde o mantiveram prisioneiro durante vários meses.</p><p>Durante seu con�namento, propuseram-lhe reaver sua liberdade com a</p><p>quantia de 3.000 libras e convencer o rei a comprar sua saída do reino com</p><p>uma quantia adicional de 10.000 libras. Como as circunstâncias de Alfege</p><p>não lhe permitiriam satisfazer essa exorbitante exigência, eles o amarraram e</p><p>o submeteram a severos tormentos, obrigando-o a revelar o tesouro da</p><p>igreja. Para isso, asseguraram-lhe sua vida e liberdade, mas o prelado</p><p>persistiu piamente em sua recusa de dar aos pagãos qualquer informação.</p><p>Eles o reenviaram à prisão, con�naram-no durante mais seis dias e, em</p><p>seguida, conduziram-no para Greenwich como prisioneiro, onde o</p><p>julgaram. Alfege ainda permaneceu in�exível no tocante ao tesouro da</p><p>igreja, mas os exortou a abandonar sua idolatria e abraçar o cristianismo.</p><p>Isso enfureceu tanto os dinamarqueses, que os soldados o arrastaram para</p><p>fora da audiência e o espancaram sem piedade. Um dos soldados, que havia</p><p>sido convertido por ele, sabendo que suas dores persistiriam e sua morte</p><p>havia sido determinada, e acionado por uma espécie de compaixão bárbara,</p><p>decapitou-o, encerrando seu martírio no dia 19 de abril de 1012.</p><p>Isso aconteceu no mesmo local em que agora está a igreja de Greenwich,</p><p>que é dedicada a ele. Após sua morte, seu corpo foi jogado no rio Tâmisa,</p><p>mas, ao ser encontrado no dia seguinte, foi sepultado na catedral de São</p><p>Paulo pelos bispos de Londres e de Lincoln. Em 1023, seus restos foram</p><p>removidos dali para Canterbury por Ethelnoth, o arcebispo daquela</p><p>província.</p><p>Gerardo, um veneziano, dedicou-se ao serviço de Deus desde a tenra</p><p>idade: entrou em uma casa religiosa, onde permaneceu durante algum</p><p>tempo, e depois decidiu visitar a Terra Santa. Indo para a Hungria,</p><p>conheceu Estêvão, o rei daquele país, que o tornou bispo de Chonad.</p><p>Altar da Igreja de Santo Alfege, Greenwich, Londres, Inglaterra.</p><p>Ouvo e Pedro, sucessores de Estêvão, foram depostos; então, André,</p><p>�lho de Ladislau, primo-irmão de Estêvão, recebeu uma proposta da coroa</p><p>sob a condição de empregar a sua autoridade para extirpar da Hungria a</p><p>religião cristã. O ambicioso príncipe aceitou a proposta, mas Gerardo, ao</p><p>ser informado dessa barganha ímpia, considerou seu dever protestar contra</p><p>a</p><p>monstruosidade do crime de André e convencê-lo a retirar sua promessa.</p><p>Com essa visão, foi ao príncipe juntamente com três prelados igualmente</p><p>zelosos da religião. O novo rei estava em Alba Regalis, mas, ao atravessarem</p><p>o Danúbio, os quatro bispos foram parados por um grupo de soldados de</p><p>sentinela ali. Sofreram pacientemente o ataque de uma saraivada de pedras</p><p>quando os soldados os espancaram sem piedade e, �nalmente, os mataram</p><p>com lanças. O martírio deles aconteceu no ano 1045.</p><p>Estanislau, bispo de Cracóvia, era descendente de uma ilustre família</p><p>polonesa. A piedade de seus pais era igual a sua opulência, e esta eles</p><p>utilizaram para todos os propósitos de caridade e benevolência. Durante</p><p>algum tempo, Estanislau permaneceu indeciso quanto a adotar uma vida</p><p>monástica ou engajar-se no clero secular. Por �m, foi persuadido a esta</p><p>última opção por Lambert Zula, bispo de Cracóvia, que o ordenou e fez</p><p>dele um cânone de sua catedral. Lambert morreu em 25 de novembro de</p><p>1071, quando todos os envolvidos na escolha de um sucessor se declararam</p><p>favoráveis a Estanislau e ele assumiu o prelado.</p><p>Boleslau, o segundo rei da Polônia, possuía, por natureza, muitas boas</p><p>qualidades; porém, cedendo às suas paixões, deparou-se com muitas</p><p>maldades e acabou recebendo a denominação de Cruel. Estanislau era o</p><p>único que tinha coragem de confrontar suas falhas, quando, aproveitando</p><p>uma oportunidade de falar-lhe em particular, mostrava abertamente a</p><p>perversidade de seus crimes. O rei, muito exasperado com suas repetidas</p><p>liberdades, �nalmente decidiu, a qualquer custo, tirar a vida desse prelado</p><p>tão extremamente �el. Certo dia, ouvindo dizer que o bispo estava sozinho</p><p>na capela de São Miguel, a pouca distância da cidade, enviou alguns</p><p>soldados para assassiná-lo. Os soldados se incumbiram prontamente da</p><p>tarefa sangrenta; porém, ao chegarem à presença de Estanislau, o venerável</p><p>aspecto do prelado lhes inspirou tal temor que não conseguiram fazer o que</p><p>haviam prometido. Ao voltarem, o rei, descobrindo que eles não tinham</p><p>obedecido às suas ordens, atacou-os violentamente, então pegou a adaga de</p><p>um deles e correu furiosamente até a capela onde, encontrando Estanislau</p><p>no altar, cravou-lhe a arma no coração. O prelado expirou imediatamente,</p><p>em 8 de maio de 1079.</p><p>10 Atanásio de Alexandria (293–373), teólogo e arcebispo de Alexandria, Egito. Foi forte</p><p>oponente ao Arianismo, que pregava que Jesus era criado por Deus e não Deus, como</p><p>o Pai.</p><p>11 Da Cí�a, região da Eurásia cuja extensão variou com o tempo, cobrindo desde a</p><p>fronteira da Mongólia com a China até o rio Danúbio, na Bulgária. Os citas eram</p><p>nômades equestres e �nham o pastoreio como principal a�vidade.</p><p>12 O monotelismo afirmava que a natureza humana de Cristo fora absorvida pela</p><p>divina, havendo então no Salvador apenas uma natureza. O Concílio da Calcedônia, 451</p><p>d.C., estabeleceu que as naturezas divina e humana subsis�am no Cristo encarnado.</p><p>Capítulo 4</p><p>Perseguições papais</p><p>Até aqui, nossa história de perseguição se limitou principalmente ao</p><p>mundo pagão. Chegamos agora a um período em que a perseguição,</p><p>disfarçada de cristianismo, cometeu mais maldades do que as que haviam</p><p>desonrado os anais do paganismo. Desconsiderando as máximas e o espírito</p><p>do evangelho, a Igreja papal, armando-se com o poder da espada, molestou</p><p>a Igreja do Senhor e a devastou durante vários séculos. Esse período, na</p><p>história, foi adequadamente denominado a “Idade das Trevas”. Os reis da</p><p>Terra entregaram seu poder à “Besta” e se submeteram a serem pisoteados</p><p>pelos miseráveis vermes que, frequentemente, ocupavam o trono papal,</p><p>como foi o caso de Henrique, imperador da Alemanha. A tormenta da</p><p>perseguição papal se lançou primeiramente sobre os valdenses, na França.</p><p>PERSEGUIÇÃO SOFRIDA PELOS VALDENSES NA FRANÇA</p><p>O papismo levou à Igreja diversas inovações e inundou o mundo cristão</p><p>com trevas e superstições. Poucos perceberam claramente a tendência</p><p>perniciosa de tais erros e se determinaram a demonstrar a luz do evangelho</p><p>em sua verdadeira pureza e a dispersar as nuvens que astutos sacerdotes</p><p>haviam levantado em torno dele, com o intuito de cegar o povo e</p><p>obscurecer o verdadeiro brilho das boas-novas.</p><p>O principal deles foi Berengário, que, por volta do ano 1000, pregou</p><p>ousadamente as verdades do evangelho segundo a sua pureza original.</p><p>Muitos, por convicção, concordaram com sua doutrina e foram, por isso,</p><p>denominados berengarianos. Berengário foi sucedido por Peer Bruis, que</p><p>pregava em Toulouse sob a proteção do conde Ildefonso. E todos os</p><p>princípios dos reformadores, juntamente com as razões de sua separação da</p><p>Igreja de Roma, foram publicados em um livro escrito por Bruis13 tendo</p><p>como título Anticristo.</p><p>No ano de 1140, o número de reformados era muito grande, e a</p><p>probabilidade de seu aumento alarmava o papa. Então, ele escreveu a vários</p><p>príncipes pedindo que os expulsassem de seus domínios e empregou muitos</p><p>homens instruídos para escrever contra as doutrinas deles.</p><p>Em 1147, por causa de Henrique de Toulouse, considerado seu mais</p><p>eminente pregador, eles foram denominados henricianos. Por não</p><p>admitirem, no tocante à religião, prova alguma além do que se podia</p><p>deduzir das próprias Escrituras, o partido papista lhes deu o nome de</p><p>“apostólicos”. Por �m, Pedro Waldo, ou Valdo, natural de Lyon, eminente</p><p>por sua piedade e conhecimento, tornou-se um vigoroso oponente do</p><p>papismo. Na época, os reformados foram designados por ele “valdenses”.</p><p>Informado pelo bispo de Lyon acerca dessas ocorrências, o papa</p><p>Alexandre III excomungou Valdo e seus adeptos e ordenou que o bispo os</p><p>exterminasse, se possível, da face da Terra; assim começaram as perseguições</p><p>papais contra os valdenses.</p><p>O comportamento de Valdo e dos reformados ocasionou a primeira</p><p>ascensão da Inquisição, pois o papa Inocêncio III designou certos monges</p><p>como inquisidores, a �m de interrogar e entregar os reformados ao poder</p><p>secular. O processo era curto visto que uma acusação era considerada</p><p>adequada para a culpa e nunca era concedido ao acusado um julgamento</p><p>imparcial.</p><p>Ao descobrir que esses meios cruéis não surtiram o efeito pretendido, o</p><p>papa enviou vários monges eruditos para pregar entre os valdenses e</p><p>empenhar-se em dissuadi-los de suas opiniões. Dentre esses monges estava</p><p>um certo Dominic, que parecia ser extremamente zeloso na causa do</p><p>papismo. Esse Dominic instituiu uma ordem que, com base em seu nome,</p><p>foi denominada Ordem dos Frades Dominicanos. Os membros dessa</p><p>ordem foram, desde então, os principais inquisidores nas várias inquisições</p><p>promovidas ao redor do mundo. O poder dos inquisidores era ilimitado;</p><p>eles acusavam quem quisessem, sem considerar idade, sexo ou posição</p><p>social. Por mais infames que fossem os acusadores, a acusação era</p><p>considerada válida; até mesmo informações anônimas, enviadas por carta,</p><p>eram consideradas provas verídicas. Ser rico era um crime comparável à</p><p>heresia; portanto, muitos endinheirados foram acusados de heresia ou</p><p>favoráveis aos hereges, para que fossem obrigados a pagar por suas opiniões.</p><p>Os amigos mais queridos ou parentes mais próximos não podiam, sem</p><p>correr perigo, servir a qualquer pessoa que estivesse presa devido à religião.</p><p>Dar aos con�nados um pouco de palha ou um copo de água era</p><p>considerado favorecimento aos hereges e motivo de consequente processo.</p><p>Nenhum advogado ousava defender seu próprio irmão, e a maldade deles se</p><p>estendia além do túmulo; por isso, os ossos de muitos mortos foram</p><p>desenterrados e queimados, como exemplos para os vivos. Se um homem</p><p>em seu leito de morte fosse acusado de ser um seguidor de Valdo, suas</p><p>propriedades eram con�scadas e os herdeiros delas, defraudados em sua</p><p>herança. Alguns eram enviados para a Terra Santa enquanto os</p><p>dominicanos tomavam posse de suas casas e propriedades, e, quando os</p><p>proprietários voltavam, costumavam �ngir que não os conheciam. Essas</p><p>perseguições continuaram durante vários séculos, sob diferentes papas e</p><p>outros grandes dignitários da Igreja Católica.</p><p>Auto de fé na Praça Maior em Madri, Francisco Rizi (1614–85). Parte do acervo do</p><p>Museu</p><p>do Prado, Madri, Espanha. Este quadro retrata um julgamento da Inquisição.</p><p>PERSEGUIÇÕES SOFRIDA PELOS ALBIGENSES</p><p>Os albigenses eram um povo da religião reformada, que habitava o país de</p><p>Albi14. Eles foram condenados por sua religião no Concílio de Latrão por</p><p>ordem do Papa Alexandre III. Não obstante, cresceram de maneira tão</p><p>prodigiosa que muitas cidades eram habitadas somente por pessoas de seu</p><p>credo, e vários nobres eminentes abraçaram suas doutrinas. Dentre estes</p><p>estavam Raymond, conde de Toulouse; Raymond, conde de Foix; o conde</p><p>de Beziers e outros.</p><p>Um frade de nome Pedro foi assassinado nos domínios do conde de</p><p>Toulouse. O papa fez do assassinato uma desculpa para perseguir aquele</p><p>nobre e seus súditos. Para isso, enviou pessoas a toda a Europa a �m de</p><p>reunir forças para agir coercitivamente contra os albigenses e prometeu o</p><p>paraíso a todos os que se juntassem a essa guerra — denominada por ele</p><p>Guerra Santa — e portassem armas durante 40 dias. As mesmas</p><p>indulgências foram, de semelhante modo, oferecidas a todos os que se</p><p>unissem ao propósito de envolver-se em cruzadas na Terra Santa.</p><p>O corajoso conde defendeu Toulouse e outros lugares com a mais</p><p>heroica coragem e triunfou várias vezes contra os delegados do papa e</p><p>Simão, conde de Monforte, um fanático nobre católico. Incapazes de</p><p>sujeitar abertamente o conde de Toulouse, o rei da França, a rainha-mãe e</p><p>três arcebispos formaram outro formidável exército e conseguiram a façanha</p><p>de persuadir o conde de Toulouse a participar de uma conferência. Nela, o</p><p>conde foi traiçoeiramente capturado, feito prisioneiro, forçado a aparecer</p><p>descalço e de cabeça descoberta diante de seus inimigos e obrigado a assinar</p><p>uma desprezível retratação. Isso foi seguido por uma severa perseguição</p><p>contra os albigenses e ordens expressas para que os laicos não lessem as</p><p>sagradas Escrituras. Também em 1620, a perseguição contra os albigenses</p><p>foi muito severa. Em 1648, uma forte perseguição ocorreu em toda</p><p>Lituânia e Polônia. A crueldade dos cossacos15 foi tão excessiva que os</p><p>próprios tártaros se sentiram acabrunhados das barbáries deles. Dentre</p><p>outros que sofreram estava o reverendo Adrian Chalinski, assado vivo em</p><p>fogo lento, cujos sofrimentos e modo de morte podem representar os</p><p>horrores que os mestres do cristianismo sofreram por parte dos inimigos do</p><p>Redentor.</p><p>A reforma do erro papista foi projetada muito anteriormente na França:</p><p>no século terceiro, um homem instruído, chamado Almerico, e seis de seus</p><p>discípulos foram condenados a ser queimados em Paris por a�rmarem que</p><p>Deus estava ausente no pão sacramental, como em qualquer outro pão; que</p><p>era idolatria construir altares ou santuários para santos e que era ridículo</p><p>oferecer-lhes incenso.</p><p>Porém, o martírio de Almerico e seus pupilos não impediu que muitos</p><p>reconhecessem a justeza de suas ideias e vissem a pureza da religião</p><p>reformada. Assim sendo, a fé em Cristo aumentava continuamente e, com o</p><p>tempo, não apenas se disseminou por muitas partes da França como</p><p>também difundiu a luz do evangelho em diversos outros países.</p><p>No ano 1524, em Melden, uma cidade na França, um tal de John Clark</p><p>colocou na porta da igreja uma nota na qual chamava o papa de Anticristo.</p><p>Por essa ofensa, ele foi repetidamente açoitado e depois marcado na testa</p><p>com ferro em brasa. Seguindo para Mentz, na Lorena, ele demoliu algumas</p><p>imagens, pelo que teve a mão direita e o nariz cortados, e os braços e o</p><p>peito rasgados com pinças. Ele suportou essas crueldades com</p><p>surpreendente coragem e teve a cabeça su�cientemente fria para cantar o</p><p>Salmo 115, que proíbe expressamente a idolatria; depois, foi lançado na</p><p>fogueira e queimado até virar cinzas.</p><p>Muitas pessoas de convicção reformada foram, nessa época, espancadas,</p><p>torturadas, açoitadas e queimadas até a morte, em várias partes da França</p><p>— porém, mais particularmente em Paris, Malda e Limousin.</p><p>Um nativo de Malda foi queimado em fogo lento por dizer que a missa</p><p>era uma evidente negação da morte e paixão de Cristo. Em Limousin, João</p><p>de Cadurco, um clérigo da religião reformada, foi detido e condenado a ser</p><p>queimado.</p><p>Por falar em favor dos reformados, Francis Bribard, secretário do cardeal</p><p>de Pellay, teve a língua cortada e foi queimado em 1545. James Cobard, um</p><p>professor da cidade de São Miguel, foi queimado em 1545 por declarar que</p><p>“a missa era inútil e absurda”. Aproximadamente na mesma época, catorze</p><p>homens foram queimados em Malda e suas esposas foram obrigadas a</p><p>assistir à execução.</p><p>Em 1546, Peter Chapot levou à França várias Bíblias na língua francesa</p><p>e as vendeu publicamente ali; por isso, foi levado a julgamento, condenado</p><p>e executado alguns dias depois. Logo em seguida, um aleijado de Meaux,</p><p>um professor de Fera chamado Stephen Poliot e um homem chamado John</p><p>English foram queimados em decorrência de sua fé.</p><p>Em 1548, Monsieur Blondel, um joalheiro rico, foi preso em Lyon e</p><p>enviado a Paris. Ali, foi queimado em virtude de sua fé por ordem do</p><p>tribunal, em 1549. Herbert, um jovem de 19 anos, foi entregue às chamas</p><p>em Dijon; isso ocorreu também com Florent Venote no mesmo ano.</p><p>No ano 1554, dois homens da religião reformada, com o �lho e a �lha</p><p>de um deles, foram apreendidos e presos no castelo de Niverne. Sob</p><p>interrogatório, confessaram sua fé e foram condenados à execução. Sujos</p><p>por graxa, enxofre e pólvora, eles bradaram: “Ponham sal, ponham sal nesta</p><p>carne pecaminosa e podre”. Suas línguas foram então cortadas e, depois,</p><p>eles foram lançados às chamas, que logo os consumiram devido às</p><p>substâncias in�amáveis com a qual eles foram besuntados.</p><p>O MASSACRE DA NOITE DE SÃO BARTOLOMEU EM PARIS, E OUTROS</p><p>Esse ato diabólico de sanguinária brutalidade começou no dia 22 de agosto</p><p>de 1572. A intenção era destruir de uma só vez a raiz da árvore protestante,</p><p>que anteriormente só sofrera parcialmente em seus galhos. O rei da França</p><p>havia proposto argutamente um casamento entre sua irmã e o príncipe de</p><p>Navarra, Henrique de Bourbón, capitão e príncipe dos protestantes. Esse</p><p>casamento imprudente foi celebrado publicamente em Paris em 18 de</p><p>agosto, pelo cardeal de Bourbon, em um palco elevado que fora erguido</p><p>com essa �nalidade. Eles jantaram em grande pompa com o bispo e cearam</p><p>com o rei em Paris. Quatro dias depois, ao voltar do Concílio, o Almirante</p><p>Coligny foi baleado nos dois braços; então, disse a Maure, o ministro de sua</p><p>falecida mãe: “Ó, meu irmão, agora percebo que sou realmente amado pelo</p><p>meu Deus, pois, por causa de Sua santidade, estou ferido”. Embora o</p><p>vidame16 o tivesse aconselhado a fugir, ele permaneceu em Paris; pouco</p><p>depois, foi morto por Besme, que depois declarou nunca haver visto um</p><p>homem enfrentar a morte com mais valentia do que o almirante.</p><p>O massacre no dia de São Bartolomeu, por France Dubois (1790–1871). Parte do</p><p>acervo do Museu Cantonal de Belas Artes, em Lausanne, Suíça.</p><p>Os soldados foram instruídos a, dado certo sinal, irromper</p><p>instantaneamente à matança em todas as partes da cidade. Mataram o</p><p>almirante lançando-o à rua através de uma janela; na rua, sua cabeça foi</p><p>cortada e enviada ao papa. Os selvagens papistas, ainda enfurecidos contra</p><p>ele, cortaram seus braços e órgãos genitais e, após arrastá-lo pelas ruas</p><p>durante três dias, o penduraram pelos calcanhares fora da cidade. Depois</p><p>dele, mataram muitas pessoas excelentes e honradas que eram protestantes</p><p>— como o conde Rochefoucault, Telínio, genro do almirante, Antônio,</p><p>Clarimonto, marquês de Ravely, Lewes Bussius, Bandineu, Pluvialius,</p><p>Burneio e outros — e, lançando-se sobre o povo, continuaram o massacre</p><p>durante muitos dias. Nos três primeiros, eles mataram 10 mil pessoas de</p><p>todas as classes e condições. Os corpos eram lançados nos rios e o sangue</p><p>corria pelas ruas em abundância; o rio parecia uma correnteza de sangue.</p><p>Sua raiva infernal era tão feroz que eles mataram até mesmo os papistas dos</p><p>quais suspeitavam não serem muito �rmes à sua diabólica religião. De Paris,</p><p>a destruição se espalhou por todos os cantos do reino.</p><p>Mil homens, mulheres e crianças foram mortos em Orleans, e 6.000 em</p><p>Rouen. Em Meldith,</p><p>a um bosque próximo à faculdade, lugar muito</p><p>frequentado pelos estudantes à noite por sua sombria tristeza. Nesses</p><p>passeios solitários, era comum ouvi-lo emitir fortes soluços e suspiros e,</p><p>com lágrimas, derramar suas orações a Deus. Na sequência, esses retiros</p><p>noturnos deram origem à primeira suspeita de seu afastamento da Igreja de</p><p>Roma. Pressionado a dar uma explicação dessa mudança de conduta, ele se</p><p>recusou a inventar desculpas, declarou suas opiniões e, por sentença da</p><p>faculdade, foi condenado, sentenciado como herege e expulso.</p><p>Alguns amigos, ao ouvirem o relato sobre a situação, �caram muito</p><p>ofendidos ao saberem que Foxe fora abandonado pelos próprios amigos.</p><p>Assim foi-lhe oferecido refúgio na casa de Sir omas Lucy, de</p><p>Warwickshire, que o enviou para instruir seus �lhos. A casa �cava à</p><p>distância de uma curta caminhada a partir de Stratford-on-Avon. Alguns</p><p>anos depois, essa propriedade foi palco da folclórica expedição de caça</p><p>empreendida por Shakespeare quando menino. Foxe morreu quando</p><p>Shakespeare tinha 3 anos.</p><p>Mais tarde, Foxe se casou na casa de Lucy. Porém, o temor aos</p><p>inquisidores papistas acelerou sua partida de lá, pois eles não se</p><p>contentaram com perseguir transgressões públicas e começaram a</p><p>mergulhar nos assuntos privados das famílias. Diante disso, ele começou a</p><p>considerar o que seria o melhor a se fazer para livrar-se de mais</p><p>inconveniências e decidiu ir à casa de seu sogro ou de seu padrasto.</p><p>O pai de sua esposa era um cidadão de Coventry, cujo coração não lhe</p><p>era indiferente, sendo mais provável que ele fosse bem recebido por causa</p><p>de sua �lha. Resolveu ir primeiramente até ele e, enquanto isso, por meio</p><p>de cartas, tentar saber se seu padrasto o receberia ou não. Foi o que fez,</p><p>recebendo como resposta “que lhe parecia uma situação difícil receber em</p><p>sua casa alguém que ele sabia ser culpado e condenado por um delito</p><p>capital, e que não ignorava o risco que enfrentaria por fazê-lo; entretanto,</p><p>demostrando-se um parente, negligenciaria seu próprio perigo. Se ele</p><p>mudasse de atitude, poderia ir, sob a condição de permanecer o tempo que</p><p>ele mesmo desejasse; mas, se não pudesse ser persuadido a isso, precisaria</p><p>contentar-se com uma estada mais curta e não colocar em perigo a ele e sua</p><p>mãe”.</p><p>Nenhuma condição deveria ser recusada. Além disso, ele foi</p><p>secretamente aconselhado por sua mãe a ir e a não temer a severidade de</p><p>seu padrasto, “porque talvez houvesse sido necessário escrever como ele</p><p>escreveu, mas, quando surgisse a ocasião, ele recompensaria suas palavras</p><p>com seus atos”. De fato, Foxe foi mais bem recebido pelos dois do que</p><p>esperava.</p><p>Por esses meios, ele se manteve escondido durante algum tempo e,</p><p>depois, viajou para Londres, na última parte do reinado de Henrique VIII.</p><p>Ali, sendo desconhecido, �cou muito angustiado e chegou a correr perigo</p><p>de morrer de fome se a Providência não houvesse interferido em seu favor</p><p>da seguinte maneira:</p><p>Certo dia, quando Foxe estava sentado na igreja de St. Paul, exausto por</p><p>um jejum prolongado, um estranho sentou-se ao seu lado e o</p><p>cumprimentou com cortesia, colocou uma quantia em dinheiro em sua</p><p>mão e pediu que se animasse; ao mesmo tempo, informou-lhe que, dentro</p><p>de alguns dias, novas perspectivas se apresentariam para a sua futura</p><p>subsistência. Ele nunca soube quem era aquele estranho; porém, ao �m de</p><p>três dias, recebeu um convite da duquesa de Richmond para ser tutor dos</p><p>�lhos do conde de Surry, que, juntamente com seu pai, o duque de</p><p>Norfolk, estava preso na torre, por ciúme e ingratidão do rei. As crianças</p><p>con�adas aos seus cuidados foram omas, que ascendeu ao ducado;</p><p>Henry, depois conde de Northampton, e Jane, que se tornou condessa de</p><p>Westmoreland. No desempenho de suas funções, ele satisfez plenamente as</p><p>expectativas da duquesa, tia deles.</p><p>Maria Tudor, rainha da Inglaterra e esposa de Philipp II, por António Mouro (1519–75).</p><p>Parte do acervo do Museu do Prado, Madri, Espanha.</p><p>Esses dias felizes continuaram durante a última parte do reinado de</p><p>Henrique VIII e os cinco anos do reinado de Eduardo VI, até que Mary</p><p>chegou à coroa e, logo após sua ascensão, entregou todo o poder às mãos</p><p>dos papistas.</p><p>Nessa época, Foxe, que ainda estava sob a proteção de seu nobre aluno,</p><p>o duque, começou a provocar inveja e ódio em muitos, particularmente no</p><p>Dr. Gardiner, então bispo de Winchester, que logo depois se tornou o seu</p><p>inimigo mais violento.</p><p>Ciente disso e vendo as terríveis perseguições que se iniciavam, Foxe</p><p>começou a pensar em deixar o reino. Mas, tão logo �cou sabendo de sua</p><p>intenção, o duque se empenhou em persuadi-lo a permanecer. Seus</p><p>argumentos foram tão poderosos e sinceros que Foxe desistiu de abandonar</p><p>seu asilo naquele momento.</p><p>Naquela época, o bispo de Winchester era muito íntimo do duque (pelo</p><p>patrocínio de cuja família ele havia ascendido à respeitabilidade de que</p><p>então gozava) e, frequentemente, o esperava para ministrar o culto nas</p><p>várias vezes em que ele solicitou que pudesse visitar seu velho tutor. A</p><p>princípio, o duque negou seu pedido, certa vez alegando sua ausência e, em</p><p>outra, indisposição. Por �m, ocorreu que Foxe, sem saber que o bispo</p><p>estava na casa, entrou na sala onde o duque e ele estavam conversando e,</p><p>vendo o bispo, retirou-se. Gardiner perguntou quem era ele, e o duque</p><p>respondeu que era “seu médico, um tanto descortês por ser recém-chegado</p><p>da universidade”. O bispo respondeu: “Gosto muito de seu semblante e</p><p>aspecto e, quando houver ocasião, mandarei chamá-lo”. O duque entendeu</p><p>aquela fala como mensageira de algum perigo que se aproximava e, agora,</p><p>ele mesmo achava que era hora de Foxe deixar a cidade e até mesmo o país.</p><p>Consequentemente, providenciou em silêncio tudo que fosse necessário</p><p>para a sua retirada, enviando um de seus servos a Ipswich para contratar um</p><p>barco e preparar todos os requisitos para a sua partida. Também arranjou a</p><p>casa de um de seus servos, um camponês, onde ele poderia se alojar até que</p><p>o vento se tornasse favorável. Estando tudo pronto, Foxe se despediu de seu</p><p>nobre patrono e, com sua esposa, que na época estava grávida, partiu</p><p>secretamente rumo ao navio.</p><p>Pouco depois de a embarcação haver deixado o porto, chegou uma</p><p>tempestade muito violenta que durou todo o dia e a noite e, no dia</p><p>seguinte, os levou de volta ao porto de onde haviam partido. Durante o</p><p>tempo em que o navio esteve no mar, um o�cial, enviado pelo bispo de</p><p>Winchester, invadira a casa do camponês com um mandado para prender o</p><p>sr. Foxe onde quer que ele fosse encontrado e levá-lo de volta à cidade. Ao</p><p>ouvir essa notícia, ele alugou um cavalo sob o pretexto de deixar a cidade</p><p>imediatamente; porém, voltou secretamente na mesma noite e entrou em</p><p>acordo com o capitão do navio para navegarem para qualquer lugar assim</p><p>que o vento mudasse. Ele só desejava prosseguir e não duvidava de que</p><p>Deus daria vitória ao seu empreendimento. O marinheiro se deixou</p><p>convencer e, dentro de dois dias, deixou seus passageiros em segurança em</p><p>Nieuport.</p><p>Após passar alguns dias naquele local, Foxe partiu para Basileia, onde</p><p>encontrou vários refugiados ingleses que haviam deixado o país para evitar a</p><p>crueldade dos perseguidores, associou-se a eles e começou a escrever sua</p><p>História dos atos e monumentos da Igreja, publicado pela primeira vez em</p><p>latim em Basileia, em 1554, e em inglês em 1563.</p><p>Enquanto isso, após a morte da rainha Maria, a religião reformada</p><p>voltou a �orescer na Inglaterra e a facção papista a declinar muito, o que</p><p>induziu a maior parte dos protestantes exilados a retornarem ao seu país de</p><p>origem.</p><p>Dentre outros, com a ascensão de Elizabeth ao trono, Foxe retornou à</p><p>Inglaterra. Ao chegar, encontrou um amigo �el e diligente em seu último</p><p>aluno, o duque de Norfolk, até a morte privá-lo de seu benfeitor. Após o</p><p>falecimento do duque, Foxe herdou uma pensão que lhe fora legada pelo</p><p>amigo e rati�cada por seu �lho, o conde de Suffolk.</p><p>Os sucessos desse bom homem também não pararam por aqui. Tendo</p><p>sido recomendado à rainha</p><p>200 foram presos, e posteriormente levados um a um</p><p>para serem cruelmente assassinados. Em Lyon, 800 foram massacrados. Ali,</p><p>crianças abraçadas aos pais e pais que as abraçavam afetuosamente foram</p><p>alimento agradável às espadas e mentes sanguinárias daqueles que se</p><p>autodenominavam Igreja Católica. Nessa cidade, 300 pessoas foram</p><p>assassinadas na casa do bispo, e os monges ímpios não permitiam que</p><p>fossem enterradas.</p><p>Ao chegar a notícia do massacre de Paris, os portões de Augustobona</p><p>foram fechados para que nenhum protestante pudesse escapar; todos os</p><p>indivíduos da Igreja Reformada foram diligentemente procurados,</p><p>encarcerados e, depois, assassinados barbaramente. A mesma crueldade foi</p><p>praticada em Avaricum, Troys, Toulouse, Rouen e muitos outros lugares,</p><p>correndo de cidade em cidade, vila e vilarejo em todo o reino.</p><p>Como corroboração dessa horrível carni�cina, a interessante narrativa a</p><p>seguir, escrita por um católico romano sensato e instruído, aparece neste</p><p>local com peculiar propriedade:</p><p>“As núpcias”, diz ele, “do jovem rei de Navarra com a irmã do rei francês</p><p>foram solenizadas com pompa, e todos os afetos, todas as garantias de</p><p>amizade, todos os juramentos sagrados entre homens foram</p><p>profusamente proferidos pela rainha-mãe, Catharine, e pelo rei.</p><p>Enquanto isso, o resto da corte só pensava em festividades, diversões e</p><p>bailes de máscaras.</p><p>“Por �m, à meia-noite da véspera do dia de São Bartolomeu, o sinal</p><p>foi dado. Imediatamente, todas as casas dos protestantes foram</p><p>arrombadas ao mesmo tempo. Alarmado com o tumulto, o almirante</p><p>Coligny saltou da cama quando um grupo de assassinos entrou correndo</p><p>em seu quarto. Eles eram che�ados por um tal de Besme, que fora criado</p><p>como doméstico na família dos Guises. Esse desgraçado en�ou a espada</p><p>no peito do almirante e também cortou seu rosto. Besme era alemão, e,</p><p>posteriormente tomado pelos protestantes, os Rochellers quiseram levá-</p><p>lo para enforcá-lo e esquartejá-lo; porém, ele foi morto por um tal de</p><p>Bretanville. Henrique, o jovem duque de Guise, que depois formou a</p><p>liga católica e foi assassinado em Blois, parado na porta até a horrível</p><p>matança ser concluída, perguntou em voz alta: ‘Besme, está feito?’.</p><p>Imediatamente depois, os ru�ões atiraram o corpo para fora da janela, e</p><p>Coligny expirou aos pés de Guise.</p><p>“O conde de Teligny também foi sacri�cado. Ele se casara, cerca de</p><p>10 meses antes, com a �lha de Coligny. Seu semblante era tão</p><p>envolvente que, ao avançarem para matá-lo, os ru�ões foram tomados de</p><p>compaixão; outros, porém, mais bárbaros, avançaram e o assassinaram.</p><p>“Enquanto isso, todos os amigos de Coligny foram assassinados em</p><p>todas as partes de Paris; homens, mulheres e crianças foram massacrados</p><p>promiscuamente e todas as ruas estavam cheias de corpos moribundos.</p><p>Alguns sacerdotes, segurando um cruci�xo em uma mão e um punhal</p><p>na outra, correram em direção aos chefes dos assassinos e os exortaram</p><p>fortemente a não pouparem parentes e nem amigos.</p><p>“Tavannes, marechal da França, um soldado ignorante e</p><p>supersticioso, que uniu a fúria da religião ao furor da festa, cavalgou</p><p>pelas ruas de Paris, gritando aos seus homens: ‘Deixem sangrar! Deixem</p><p>sangrar! Sangrar é tão saudável em agosto quanto é em maio’. Nas</p><p>memórias da vida desse entusiasta, escritas por seu �lho, lemos que o pai</p><p>em seu leito de morte, fez uma con�ssão geral de seus atos, ao que o</p><p>padre, surpreso, disse: ‘O quê? Nenhuma menção do massacre de São</p><p>Bartolomeu?’ — e Tavannes respondeu: ‘Considero-o um ato meritório,</p><p>que lavará todos os meus pecados’. Sentimentos tão horríveis assim</p><p>podem inspirar um falso espírito de religião!</p><p>“O palácio do rei foi uma das principais cenas da carni�cina. O rei de</p><p>Navarra estava hospedado no Louvre, e todos os seus empregados eram</p><p>protestantes. Muitos deles foram mortos na cama com suas esposas;</p><p>outros, fugindo nus, foram perseguidos pelos soldados nas várias salas do</p><p>palácio e até mesmo na antecâmara do rei. A jovem esposa de Henrique</p><p>de Navarra, acordada pelo terrível tumulto, temendo por seu consorte e</p><p>por sua própria vida, tomada pelo horror e extremamente cansada,</p><p>saltou da cama para lançar-se aos pés do rei, seu irmão. Porém, mal</p><p>havia aberto a porta do quarto quando alguns de seus empregados</p><p>protestantes entraram correndo em busca de refúgio.</p><p>“Os soldados vieram imediatamente após eles, perseguiram-nos à</p><p>vista da princesa e mataram um que se arrastou para debaixo da cama.</p><p>Dois outros, feridos com alabardas, caíram aos pés da rainha, de modo</p><p>que ela �cou coberta de sangue.</p><p>“O conde de Rochefoucault, um nobre jovem, muito estimado pelo</p><p>rei por seu ar agradável, sua polidez e uma peculiar felicidade ao</p><p>conversar, havia �cado até às 11 horas da noite em agradável convivência</p><p>com o monarca e dado, com o máximo de hilaridade, asas à sua</p><p>imaginação. O monarca sentiu certo remorso e, tocado por uma espécie</p><p>de compaixão, pediu-lhe duas ou três vezes que não voltasse para casa,</p><p>mas dormisse no Louvre. O conde disse que ele precisava voltar à sua</p><p>esposa; o rei não o pressionou mais, porém disse: ‘Deixem-no ir! Vejo</p><p>que Deus decretou a sua morte’. E, duas horas depois, ele foi</p><p>assassinado.</p><p>“Pouquíssimos protestantes escaparam da fúria de seus entusiasmados</p><p>perseguidores. Dentre eles estava o jovem La Force (depois conhecido</p><p>como o famoso marechal de La Force), uma criança com cerca de 10</p><p>anos cujo parto foi extremamente notável. Seu pai, seu irmão mais velho</p><p>e ele mesmo foram capturados pelos soldados do duque de Anjou. Esses</p><p>assassinos se lançaram aos três e os golpearam aleatoriamente; eles</p><p>caíram um sobre o outro. O mais novo não recebeu um golpe sequer,</p><p>mas, parecendo estar morto, fugiu no dia seguinte; sua vida,</p><p>maravilhosamente preservada, durou assim 45 anos.</p><p>“Muitas das desventuradas vítimas fugiram para o lado da água e</p><p>algumas cruzaram o Sena em direção aos subúrbios de Saint Germain. O</p><p>rei as viu pela janela, que dava para o rio, e disparou contra elas com</p><p>uma carabina, carregada para essa �nalidade por um de seus pajens.</p><p>Enquanto isso, a rainha-mãe, imperturbável e serena em meio ao</p><p>massacre, olhando de um terraço, incentivava os assassinos e ria dos</p><p>gemidos agonizantes dos abatidos.</p><p>Essa rainha bárbara era incendiada por uma ambição inquieta e, para</p><p>saciá-la, alterava permanentemente seu partidarismo.</p><p>“Alguns dias depois, o tribunal francês tentou dissimular, por meio de</p><p>leis, aquela horrível ocorrência. Eles �ngiram justi�car o massacre por</p><p>uma calúnia e acusaram o almirante de uma conspiração, na qual</p><p>ninguém acreditou. O parlamento foi recomendado a proceder contra a</p><p>memória de Coligny; seu corpo morto foi suspenso com correntes na</p><p>forca de Montfaucon. O próprio rei foi assistir a esse chocante</p><p>espetáculo. Um de seus cortesãos o aconselhou a retirar-se e reclamou do</p><p>fedor do cadáver, mas ele respondeu: ‘Um inimigo morto cheira bem’.</p><p>Os massacres do dia de São Bartolomeu foram pintados no salão real do</p><p>Vaticano, em Roma, com a inscrição Pontifex, Coligny necem probat, isto</p><p>é: ‘O papa aprova a morte de Coligny’.</p><p>“O jovem rei de Navarra foi poupado por meio de política, mas não</p><p>por piedade da rainha-mãe. Ela o manteve prisioneiro até a morte do rei,</p><p>para que ele pudesse ser uma garantia e promessa de submissão dos</p><p>protestantes que poderiam fugir.</p><p>“Essa horrível carni�cina não se limitou apenas à cidade de Paris.</p><p>Ordens semelhantes foram expedidas do tribunal aos governadores de</p><p>todas as províncias da França; assim sendo, no espaço de uma semana,</p><p>aproximadamente 100 mil protestantes foram feitos em pedaços em</p><p>diferentes partes do reino! Somente dois ou três governadores se</p><p>recusaram a obedecer às ordens do rei. Um deles, Montmorrin,</p><p>governador de Auvergne, escreveu ao rei a seguinte carta, que merece ser</p><p>transmitida por toda a posteridade.</p><p>‘SENHOR, recebi uma ordem, selada por Vossa Majestade, de matar</p><p>todos os protestantes de minha província. Tenho demasiado respeito por</p><p>Vossa Majestade para crer que a carta seja falsa; porém, se (Deus não</p><p>permita) a ordem for genuína, tenho demasiado respeito por Vossa</p><p>Majestade para obedecê-la.’”</p><p>Em Roma, a horrível alegria foi tão grande que eles marcaram um dia de</p><p>grande festa e um jubileu, com grande indulgência a todos os que</p><p>participassem e demostrassem toda expressão de alegria que pudessem</p><p>imaginar! E o primeiro homem a transmitir a notícia recebeu 1.000 coroas</p><p>do cardeal de Lorena por sua mensagem ímpia. O rei ordenou também que</p><p>todas as demonstrações de alegria fossem mantidas o dia todo, concluindo</p><p>que toda a raça dos huguenotes17 estava extinta.</p><p>Muitos que pagaram grandes somas de dinheiro por seu próprio resgate</p><p>foram mortos imediatamente depois, e várias cidades que estavam sob a</p><p>promessa de proteção e segurança do rei foram destruídas assim que se</p><p>renderam, com base naquelas promessas, aos generais ou capitães do rei.</p><p>Em Bordeaux, por instigação de um monge vilão que, em seus sermões,</p><p>costumava exortar os papistas a matarem, 264 pessoas foram cruelmente</p><p>assassinadas; algumas delas eram senadores. Outro da mesma fraternidade</p><p>piedosa produziu um massacre semelhante em Agêndico, no rio Meno. Ali,</p><p>por sugestão satânica dos “santos” inquisidores, o populacho atacou os</p><p>protestantes, matou-os, saqueou suas casas e derrubou sua igreja.</p><p>O duque de Guise, entrando em Blois, fez com que seus soldados se</p><p>lançassem sobre o espólio e matassem ou afogassem todos os protestantes</p><p>que conseguissem encontrar. Nisso, não pouparam idade nem sexo,</p><p>profanando as mulheres e, depois, assassinando-as. Dali, ele foi para Mere e</p><p>cometeu os mesmos ultrajes durante muitos dias seguidos. Nesse lugar, eles</p><p>encontraram um pastor chamado Cassebônio e o lançaram no rio.</p><p>Em Anjou, mataram Albiacus, um ministro. Ali muitas mulheres foram</p><p>violadas e assassinadas, dentre elas duas irmãs que foram abusadas diante do</p><p>pai, amarrado a uma parede pelos assassinos para vê-las; em seguida, as duas</p><p>e o pai foram mortos.</p><p>Após pagar uma grande quantia por sua vida, o presidente de Turim foi</p><p>cruelmente espancado com clavas, despido de suas roupas e pendurado</p><p>pelos pés, com a cabeça e o peito no rio. Antes de morrer, abriram-lhe a</p><p>barriga, arrancaram suas entranhas e as jogaram no rio; depois, levaram seu</p><p>coração por toda a cidade na ponta de uma lança.</p><p>Em Barre, muita crueldade foi usada, mesmo para com crianças</p><p>pequenas, que eles estripavam com tanta raiva que roíam com os dentes. Os</p><p>que haviam fugido para o castelo, quando cederam, quase foram</p><p>enforcados. Assim �zeram na cidade de Matiscon, considerando diversão</p><p>cortar seus braços e pernas e, depois, matá-los; e, para entretenimento de</p><p>seus visitantes, frequentemente lançavam os protestantes de uma ponte alta</p><p>no rio, dizendo: “Vocês já viram homens pularem tão bem?”.</p><p>Em Penna, 300 foram desumanamente abatidos após lhes haver sido</p><p>prometida segurança, e 45 em Albia, no dia do Senhor. Apesar de a cidade</p><p>de Nonne haver cedido sob promessa de salvaguarda, os espetáculos mais</p><p>horríveis foram ali exibidos.</p><p>Homens e mulheres de todas as condições foram assassinados</p><p>indiscriminadamente; as ruas ecoavam gritos de dor e nelas corria sangue, e</p><p>as casas ardiam em chamas atiradas pelos depravados soldados. Uma</p><p>mulher, arrastada para fora de seu esconderijo com o marido, foi</p><p>primeiramente abusada pelos brutais soldados; depois, �zeram-na segurar a</p><p>espada enquanto traspassavam as entranhas de seu marido.</p><p>Em Samarobridge, eles assassinaram mais de cem protestantes após</p><p>prometer-lhes paz; em Antsidor, cem foram mortos, sendo parte deles</p><p>lançada em um lago e a outra parte, em um rio. Cem encarcerados em</p><p>Orleans foram aniquilados pela multidão furiosa.</p><p>Os protestantes de Rochelle, que haviam escapado milagrosamente da</p><p>fúria do inferno e fugido para lá, vendo quão mal estavam os que se</p><p>submeteram àqueles “santos” demônios, levantaram-se em defesa de sua</p><p>vida, e algumas outras cidades, encorajadas por isso, �zeram o mesmo.</p><p>Contra Rochelle o rei enviou quase todo o poderio da França, que a sitiou</p><p>durante sete meses. Embora por seus ataques tenham executado</p><p>pouquíssimos habitantes, pela fome destruíram 18 mil dos 22 mil. Um</p><p>número excessivamente alto de mortos, para os vivos enterrarem, tornaram-</p><p>se alimento para vermes e pássaros carnívoros. Muitas pessoas levaram seus</p><p>caixões ao pátio da igreja, deitaram-se neles e deram o último suspiro. Sua</p><p>dieta havia sido, durante muito tempo, aquilo diante do que estremecem as</p><p>mentes dos que têm abundância; até mesmo carne humana, vísceras,</p><p>esterco e as coisas mais repugnantes se tornaram, no �m, o único alimento</p><p>desses defensores da verdade e liberdade, das quais o mundo não era digno.</p><p>Primeira página do Édito de Nantes, de 1598. Parte dos Arquivos Nacionais da França.</p><p>Em todos os ataques, os sitiadores receberam uma recepção tão intrépida</p><p>que 132 capitães, com um número proporcional de homens, foram mortos</p><p>no campo. Por �m, o cerco foi interrompido a pedido do duque de Anjou,</p><p>irmão do rei, que foi proclamado rei da Polônia. O rei, cansado, aquiesceu</p><p>facilmente e, por isso, foram-lhe concedidas condições honrosas.</p><p>Trata-se de uma notável interferência da Providência visto que não mais</p><p>do que dois ministros do evangelho foram envolvidos em todo esse terrível</p><p>massacre.</p><p>Os trágicos sofrimentos dos protestantes são demasiadamente</p><p>numerosos para detalhar. Porém, o tratamento de Philip de Deux dará uma</p><p>ideia do restante. Após os canalhas matarem esse mártir em sua cama,</p><p>foram até a esposa, que estava sendo atendida pela parteira, prestes a dar à</p><p>luz. A parteira lhes pediu que suspendessem o assassinato, pelo menos até o</p><p>nascimento da criança, que era a vigésima. Não obstante, eles enterraram na</p><p>pobre mulher toda a lâmina de uma adaga. Ansiosa pelo parto premente,</p><p>ela correu para um celeiro de milho; porém, eles a perseguiram até ali,</p><p>esfaquearam-na na barriga e, depois, a lançaram na rua. Com a queda, a</p><p>criança saiu da mãe moribunda e, sendo apanhada por um dos ru�ões</p><p>católicos, foi esfaqueada e jogada no rio.</p><p>DA REVOGAÇÃO DO ÉDITO DE NANTES À REVOLUÇÃO FRANCESA, EM</p><p>1789</p><p>As perseguições ocasionadas pela revogação do édito de Nantes ocorreram</p><p>sob o governo de Luís XIV. Esse édito foi instituído por Henrique o</p><p>Grande, da França, em 1598, e garantia aos protestantes, em todos os</p><p>aspectos civis ou religiosos, o mesmo direito dos demais súditos do reino.</p><p>Todos esses privilégios foram con�rmados aos protestantes por meio de</p><p>outro estatuto, denominado édito de Nîmes por Luís XIV, que os seguiu à</p><p>risca até o �m de seu reinado.</p><p>No período de Luís XIV, o reino quase foi arruinado por guerras civis.</p><p>Naquele momento crítico, os protestantes, sem prestar atenção à</p><p>advertência do nosso Senhor — “todos os que lançam mão da espada à</p><p>espada perecerão” (Mt 26:52) —, desempenharam um papel tão ativo em</p><p>favor do rei, que ele foi obrigado a reconhecer-se em dívida com os braços</p><p>deles em seu estabelecimento no trono. Em vez de acalentar e recompensar</p><p>aquele partido que havia lutado por ele, raciocinou que o mesmo poder que</p><p>o protegera poderia derrubá-lo e, ouvindo as maquinações do papa,</p><p>começou a emitir proscrições e restrições, indicativas de sua decisão �nal.</p><p>Rochelle foi imediatamente atrelado a um incrível número de denúncias.</p><p>Montauban e Millau foram ensacados por soldados. Comissários papistas</p><p>foram nomeados para presidir os assuntos dos protestantes, não havendo</p><p>apelo de sua ordenança exceto o conselho do rei. Isso atingiu os</p><p>protestantes na raiz de seus exercícios civis e religiosos, impedindo-os de</p><p>processar um católico em qualquer tribunal. Isso foi seguido por outra</p><p>injunção para que se investigasse, em todas as paróquias, o que os</p><p>protestantes haviam dito ou feito nos últimos 20 anos. Isso encheu as</p><p>prisões com vítimas inocentes e condenou outras às galés ou ao exílio.</p><p>Os protestantes foram expulsos de todos os cargos, ofícios, privilégios e</p><p>empregos, �cando assim privados dos meios de obter seu sustento, e a</p><p>brutalidade foi tão excessiva que não foi permitido nem às parteiras</p><p>trabalharem, obrigando as mulheres a se submeterem, naquela crise da</p><p>natureza, aos seus inimigos, os brutais católicos. Seus �lhos lhes eram</p><p>tirados para serem educados</p><p>pelos católicos e, aos 7 anos, obrigados a</p><p>abraçar o papismo. Os reformados foram proibidos de aliviar seus próprios</p><p>enfermos ou pobres, de todo culto privado, e o culto divino deveria ser</p><p>realizado na presença de um sacerdote papista. Para impedir as infelizes</p><p>vítimas de deixarem o reino, todas as passagens das fronteiras eram</p><p>rigorosamente vigiadas; contudo, pela boa mão de Deus, aproximadamente</p><p>150 mil pessoas escaparam de sua vigilância e emigraram para diferentes</p><p>países, para relatar essa funesta narrativa.</p><p>Tudo que foi relatado até aqui foram apenas infrações ao seu privilégio</p><p>estabelecido, o édito de Nantes. Por �m, a diabólica revogação desse decreto</p><p>foi aprovada em 18 de outubro de 1685 e registrada no dia 22,</p><p>contrariando toda forma de lei. Instantaneamente, os dragões18 foram</p><p>aquartelados sobre os protestantes em todo o reino e espalharam por toda a</p><p>França a mesma notícia de que o rei não mais permitiria huguenotes em seu</p><p>reino e, portanto, eles precisariam decidir-se a mudar de religião. Com isso,</p><p>os intendentes de todas as paróquias (que eram governadores e espiões</p><p>papistas estabelecidos sobre os protestantes) reuniram os habitantes</p><p>reformados e lhes disseram que eles deveriam, sem demora, tornar-se</p><p>católicos, espontaneamente ou à força. Os protestantes responderam que</p><p>“estavam prontos para sacri�car sua vida e suas propriedades ao rei, mas sua</p><p>consciência, pertencente a Deus, não poderiam abandonar”.</p><p>Instantaneamente, as tropas tomaram os portões e as avenidas das</p><p>cidades e, colocando guardas em todas as passagens, entraram de espada na</p><p>mão, gritando: “Sejam católicos ou morram!”. Em suma, eles praticaram</p><p>toda perversidade e todo horror que conseguiram imaginar para forçá-los a</p><p>mudar de religião.</p><p>Eles penduravam homens e mulheres pelos cabelos ou pelos pés e os</p><p>defumavam com feno até quase morrerem; se ainda se recusassem a assinar</p><p>uma retratação, eram novamente pendurados. As barbaridades eram</p><p>repetidas até conseguirem, pelo cansaço dos tormentos sem morte, obrigar</p><p>muitos a render-se a eles.</p><p>De alguns, arrancavam com pinça todos os �os de cabelo e da barba.</p><p>Outros, atiravam em grandes fogueiras e tiravam, repetindo o processo até</p><p>extraírem deles uma promessa de renegar.</p><p>Alguns eram despidos e, após receberem os mais infames insultos, eram</p><p>espetados com al�netes da cabeça aos pés e cortados com canivetes, e, às</p><p>vezes, eram arrastados pelo nariz com pinças em brasa até prometerem</p><p>converter-se. Às vezes, amarravam pais e maridos enquanto violentavam</p><p>suas esposas e �lhas diante de seus olhos. Multidões foram aprisionadas nas</p><p>masmorras mais fétidas, onde eram praticados em segredo todos os tipos de</p><p>tormentos. Suas esposas e �lhos eram trancados em mosteiros.</p><p>Os que se esforçavam por escapar fugindo eram perseguidos nos</p><p>bosques, caçados nos campos e fuzilados como animais selvagens.</p><p>Nenhuma condição ou qualidade os protegia da ferocidade daqueles</p><p>dragões do inferno; até mesmo os membros do parlamento e o�ciais</p><p>militares, embora em serviço, receberam ordem de deixar seus postos e ir</p><p>diretamente para casa para sofrer semelhante tormenta. Os que reclamavam</p><p>ao rei eram enviados para a Bastilha, onde tinham o mesmo destino. Os</p><p>bispos e os intendentes marchavam à frente dos dragões com uma tropa de</p><p>missionários, monges e outros eclesiásticos, para animar os soldados a uma</p><p>execução muito agradável à sua Santa Igreja e muito gloriosa ao seu deus</p><p>demoníaco e seu rei tirano.</p><p>Ao elaborar o édito para revogar o de Nantes, o concílio �cou dividido:</p><p>alguns queriam que todos os ministros fossem detidos e forçados ao</p><p>papismo, e igualmente os leigos; outros eram favoráveis a bani-los, porque</p><p>sua presença fortaleceria os protestantes na perseverança e, se fossem</p><p>forçados à conversão, seriam sempre inimigos secretos e poderosos no seio</p><p>da Igreja, por seu grande conhecimento e experiência em assuntos</p><p>controversos. Esta última posição prevaleceu; eles foram condenados ao</p><p>banimento, com prazo de apenas 15 dias para deixarem o reino.</p><p>No mesmo dia em que foi publicado o édito de revogação dos</p><p>privilégios dos protestantes, suas igrejas foram demolidas e seus ministros,</p><p>banidos, com prazo de 24 horas para deixar Paris. Os papistas não lhes</p><p>permitiram desfazer-se de suas propriedades e colocaram todo tipo de</p><p>obstáculo no caminho para atrasar sua fuga até a expiração do tempo</p><p>limite, o que os sujeitaria à condenação vitalícia às galés. A guarda foi</p><p>duplicada nos portos marítimos e as prisões �caram abarrotadas com as</p><p>vítimas, que sofreram tormentos e privações dos quais a natureza humana é</p><p>obrigada a estremecer.</p><p>Os sofrimentos dos ministros e de outros que foram enviados às galés</p><p>pareciam exceder a tudo. Acorrentados ao remo, eles �cavam expostos ao ar</p><p>livre noite e dia, em todas as estações do ano e em todos os climas; e</p><p>quando, por fraqueza do corpo, desmaiavam sob o remo, em vez de um</p><p>tônico para reanimá-los ou alimento para revigorá-los, recebiam apenas</p><p>golpes com um �agelo, um caniço ou uma ponta de corda. Por falta de</p><p>roupas su�cientes e limpeza necessária, eles eram atormentados por vermes</p><p>da maneira mais penosa e cruelmente oprimidos pelo frio, que afastava à</p><p>noite os carrascos que os espancavam e atormentavam durante o dia. Quer</p><p>estivessem saudáveis ou enfermos, em vez de uma cama, eles tinham para</p><p>dormir apenas uma prancha dura, de 45 centímetros de largura, sem</p><p>qualquer cobertura além de seu miserável traje, que era uma camisa da lona</p><p>mais grossa, um pequeno gibão de sarja vermelha, com uma fenda de cada</p><p>lado até a cava, e mangas abertas que não chegavam ao cotovelo; e, a cada</p><p>três anos, recebiam uma túnica grosseira e um pequeno gorro para cobrir a</p><p>cabeça, que era sempre mantida calva como marca de sua infâmia. A</p><p>quantidade de provisão era tão pouca quanto os sentimentos daqueles que</p><p>os condenaram a tais sofrimentos, e seu tratamento quando enfermos era</p><p>chocante demais para relatar; condenados a morrer nas tábuas de um porão</p><p>escuro, coberto por vermes e sem a mínima comodidade para as</p><p>necessidades �siológicas. Nem �gurava dentre os menores horrores sofridos</p><p>o fato de, como ministros de Cristo e homens honestos, serem acorrentados</p><p>lado a lado a criminosos e os mais execráveis vilões, cujas línguas blasfemas</p><p>nunca se calavam.</p><p>Se eles se recusassem a ouvir a missa, eram sentenciados a bastonadas,</p><p>cuja punição terrível descrevemos. Inicialmente, as correntes eram retiradas</p><p>e as vítimas entregues às mãos dos turcos que comandavam os remos; estes</p><p>as despiam e as estendiam sobre um grande canhão de maneira que não</p><p>conseguiriam desviar-se; nesse momento, um terrível silêncio reinava em</p><p>toda a galé. O turco designado para carrasco, que considerava o sacrifício</p><p>aceitável ao seu profeta Maomé, batia com a maior crueldade na desgraçada</p><p>vítima com uma clava áspera, ou a ponta de uma corda com nós, até a pele</p><p>ser esfolada dos ossos e o condenado estar a ponto de expirar; depois,</p><p>aplicavam uma atormentadora mistura de vinagre e sal e o enviavam ao</p><p>hospital mais intolerável, onde expiravam milhares de outros que haviam</p><p>sofrido crueldades.</p><p>O MARTÍRIO DE JOHN CALAS</p><p>Deixamos de citar muitos outros martírios individuais para inserir o de</p><p>John Calas, ocorrido em 1761, que é uma prova indubitável do fanatismo</p><p>do papismo e mostra que nem a experiência nem o aprimoramento</p><p>conseguem erradicar os preconceitos inveterados dos católicos romanos ou</p><p>torná-los menos cruéis ou inexoráveis para com os protestantes.</p><p>John Calas era um comerciante da cidade de Toulouse, onde se</p><p>estabelecera, vivia em boa reputação e se casara com uma inglesa de origem</p><p>francesa. Calas e sua esposa eram protestantes e tinham cinco �lhos,</p><p>educados por eles na mesma religião. Porém, Lewis, um dos �lhos, tornou-</p><p>se católico romano, tendo sido convertido por uma criada que serviu à</p><p>família durante aproximadamente 30 anos. O pai, contudo, não expressou</p><p>aborrecimento ou má vontade na ocasião, mas manteve a empregada na</p><p>família e estabeleceu uma anuidade para o �lho. Em outubro de 1761, a</p><p>família era formada por John Calas e sua esposa,</p><p>uma serva, Mark Antony</p><p>Calas, o �lho mais velho, e Peter Calas, o segundo �lho. Mark Antony foi</p><p>instruído no Direito, mas não pôde ser admitido na prática, por ser</p><p>protestante; por isso, �cou melancólico, leu todos os livros que conseguiu</p><p>encontrar acerca de suicídio e parecia determinado a se autodestruir. A isso,</p><p>podemos acrescentar que ele levava uma vida dissoluta, era muito viciado</p><p>em jogos e fazia tudo que poderia constituir o caráter de um libertino. Por</p><p>esse motivo, seu pai o repreendia frequentemente e, às vezes, com</p><p>severidade, o que aumentava consideravelmente a tristeza que parecia</p><p>oprimi-lo.</p><p>A família de John Calas se despede quando ele é �rado da prisão para ser executado,</p><p>por D. Chodowiecki (1726–1801). Parte do acervo da Biblioteca Wellcome, Londres,</p><p>Inglaterra.</p><p>Em 13 de outubro de 1761, o sr. Gober La Vaisse, um jovem cavalheiro</p><p>de aproximadamente 19 anos, �lho de La Vaisse, um célebre advogado de</p><p>Toulouse, foi recebido por volta das 17 horas da tarde por John Calas e o</p><p>�lho mais velho, Mark Antony, que era seu amigo. Calas o convidou para</p><p>jantar, e a família e seu convidado se sentaram em um recinto no andar</p><p>superior; todos eles — Calas e sua esposa, os �lhos Antony e Peter Calas, e</p><p>La Vaisse, o convidado. Não havia ninguém mais na casa, exceto a criada</p><p>anteriormente mencionada.</p><p>Eram aproximadamente 19 horas. A ceia não demorou muito, mas,</p><p>antes de terminar, Antony saiu da mesa e, como costumava fazer, foi até a</p><p>cozinha, que �cava no mesmo andar. A empregada perguntou se ele estava</p><p>com frio. Ele respondeu: “Pelo contrário, estou queimando”, e a deixou.</p><p>Nesse meio tempo, seu amigo e sua família deixaram o recinto em que</p><p>jantaram e foram para um dos cômodos. Calas e La Vaisse se sentaram</p><p>juntos em um sofá; o �lho mais novo, Peter, em uma poltrona, e a mãe em</p><p>outra cadeira, e, sem perguntar por Antony, continuaram conversando até</p><p>entre 21 e 22 horas, quando La Vaisse se despediu, e Peter, que adormecera,</p><p>foi acordado para ajudá-lo com uma lâmpada.</p><p>No andar térreo da casa de Calas havia uma loja e um armazém,</p><p>separado da loja por um par de portas dobráveis. Quando Peter Calas e La</p><p>Vaisse desceram as escadas e chegaram à loja, �caram extremamente</p><p>chocados ao ver Antony enforcado por sua camisa, presa a uma barra que</p><p>ele havia estendido sobre o topo das duas portas dobráveis, para isso</p><p>deixando-as semiabertas. Ao descobrirem aquela horrível cena, eles</p><p>gritaram, o que fez Calas descer e a mãe ser tomada de tanto terror que</p><p>�cou tremendo no corredor acima. Quando a empregada teve</p><p>conhecimento do que havia acontecido, continuou embaixo, porque temia</p><p>contar à sua senhora ou porque se ocupava em ajudar ao seu senhor, que</p><p>estava abraçado ao corpo de seu �lho e banhando-o com suas lágrimas. A</p><p>mãe, que �cara sozinha, desceu e se juntou à cena já descrita, com as</p><p>legítimas e naturais emoções. Enquanto isso, Peter fora enviado a La Moire,</p><p>um cirurgião da vizinhança.</p><p>La Moire não estava em casa, mas seu aprendiz, o sr. Grosle, foi</p><p>imediatamente com Peter. Ao examinar, descobriu que o corpo estava</p><p>morto. A essa altura, uma multidão papista havia se formado em torno da</p><p>casa e, de alguma maneira, ouvindo dizer que Antony Calas morrera</p><p>subitamente e que o cirurgião que examinou o corpo declarou que ele tinha</p><p>sido estrangulado, entendeu que ele fora assassinado e, como a família era</p><p>protestante, supôs que o jovem estava prestes a mudar de religião e foi</p><p>morto por esse motivo.</p><p>O pobre pai, tomado de tristeza pela perda de seu �lho, foi aconselhado</p><p>por seus amigos a chamar a polícia para evitar ser despedaçado pela</p><p>multidão católica, que supunha que ele havia assassinado o �lho.</p><p>Isso feito, David, o principal magistrado, ou capitólio, tomou sob</p><p>custódia Calas, o �lho Peter, a mãe, La Vaisse e a empregada e os protegeu</p><p>sob guarda. Ele chamou o sr. De la Tour, médico, e os senhores La Marque</p><p>e Perronet, cirurgiões, que examinaram o corpo em busca de marcas de</p><p>violência, mas nada encontraram exceto a marca da ligadura no pescoço;</p><p>também viram que os cabelos do falecido estavam penteados da maneira</p><p>habitual, perfeitamente lisos e sem o menor desalinho; suas roupas estavam</p><p>também dobradas regularmente e colocadas sobre o balcão, e sua camisa</p><p>não estava rasgada, nem desabotoada.</p><p>Não obstante esses sinais de inocência, o capitólio achou adequado</p><p>concordar com a opinião da turba e maquinou em sua mente que o velho</p><p>Calas havia mandado buscar La Vaisse dizendo que tinha um �lho para ser</p><p>enforcado; que La Vaisse fora desempenhar o papel de carrasco e fora</p><p>ajudado pelo pai e pelo irmão.</p><p>Como nenhuma prova do suposto fato pôde ser obtida, o capitólio</p><p>recorreu a uma monitória, ou informação geral, na qual o crime era</p><p>considerado um fato e as pessoas eram obrigadas a testemunhar contra os</p><p>acusados como se eles fossem culpados. Com isso, disseram que La Vaisse</p><p>foi autorizado pelos protestantes a ser o executor de qualquer �lho que</p><p>devesse ser enforcado por mudar de religião; disseram também que, quando</p><p>os protestantes enforcavam seus �lhos, eles os obrigavam a ajoelhar-se, e</p><p>uma das interrogações foi se alguém vira Antony Calas ajoelhado diante de</p><p>seu pai quando este o estrangulou, o que declara, de semelhante modo, que</p><p>Antony morreu católico romano e que provas de seu catolicismo eram</p><p>requeridas.</p><p>Porém, antes da publicação dessa monitória, a turba entendeu que, no</p><p>dia seguinte, Antony Calas entraria na fraternidade dos Penitentes Brancos.</p><p>Por isso, o capitólio fez com que seu corpo fosse enterrado no meio da</p><p>igreja de Santo Estêvão. Alguns dias após o enterro do falecido, os</p><p>Penitentes Brancos celebraram um culto solene a ele em sua capela; panos</p><p>brancos foram pendurados na igreja e no meio dela foi erguida uma tumba,</p><p>em cujo topo foi colocado um esqueleto humano segurando em uma das</p><p>mãos um papel, no qual estava escrito “Abjuração de heresia”, e na outra</p><p>uma palma, o emblema do martírio. No dia seguinte, os franciscanos</p><p>realizaram um culto do mesmo tipo a ele.</p><p>O capitólio deu continuidade à perseguição com implacável severidade</p><p>e, sem que a mínima prova fosse apresentada, julgou adequado condenar os</p><p>infelizes pai, mãe, irmão, amigo e serva à tortura, colocando-os a ferros no</p><p>dia 18 de novembro.</p><p>Desses procedimentos terríveis, os sofredores apelaram ao parlamento,</p><p>que imediatamente tomou conhecimento do caso e anulou a sentença do</p><p>capitólio como irregular, mas manteve a acusação. Com o carrasco depondo</p><p>que era impossível Antony enforcar-se daquela maneira, a maioria do</p><p>parlamento foi da opinião que os prisioneiros eram culpados e, portanto,</p><p>ordenou que fossem julgados pelo tribunal criminal de Toulouse. Alguém</p><p>votou pela inocência, mas, após longos debates, a maioria decidiu em favor</p><p>de tortura e roda, e provavelmente condenou o pai por meio de</p><p>experimentos, sendo ele culpado ou não, esperando que, na agonia, ele</p><p>confessasse o crime e acusasse os outros presos, cujo destino, portanto, eles</p><p>suspenderam.</p><p>O pobre Calas, porém, um velho de 68 anos, foi condenado sozinho</p><p>àquele terrível castigo. Ele sofreu a tortura com grande �rmeza e foi levado</p><p>à execução em um estado de espírito que despertou a admiração de todos os</p><p>que o viam, particularmente de dois dominicanos (padre Bourges e padre</p><p>Coldagues) que o assistiram em seus últimos momentos. Estes declararam</p><p>que o consideravam não apenas inocente do crime de que era acusado, mas</p><p>também um exemplo de verdadeira paciência, fortaleza e caridade cristãs.</p><p>Ao ver o carrasco preparado para dar-lhe o golpe fatal, ele fez uma nova</p><p>declaração ao padre Bourges, mas, enquanto as palavras ainda estavam em</p><p>sua boca, o capitólio, autor daquela catástrofe, que subiu ao cadafalso</p><p>meramente para satisfazer seu desejo de testemunhar aquela punição e</p><p>morte, correu até ele e berrou: “Desgraçado, vermes reduzirão seu corpo a</p><p>cinzas! Fale a verdade”. O sr. Calas não respondeu, mas virou a cabeça um</p><p>pouco para o lado, e, naquele momento, o carrasco cumpriu a sua função.</p><p>O clamor popular contra aquela família foi tão violento em Languedoc,</p><p>que todos esperavam ver os</p><p>�lhos de Calas partindo-se na roda e a mãe ser</p><p>queimada viva. O jovem Donat Calas foi aconselhado a fugir para a Suíça;</p><p>ele o fez e encontrou um cavalheiro que, a princípio, só pôde lamentar e</p><p>aliviá-lo, sem ousar julgar o rigor exercido contra seu pai, sua mãe e seus</p><p>irmãos. Pouco depois, um dos irmãos, que só fora banido, também se</p><p>lançou nos braços da mesma pessoa, que, durante mais de um mês, tomou</p><p>todas as precauções possíveis para assegurar-se da inocência da família. Uma</p><p>vez convencido, ele se considerou obrigado pela consciência a acionar seus</p><p>amigos, a utilizar seu dinheiro, sua caneta e seu crédito para reparar o erro</p><p>fatal dos sete juízes de Toulouse e fazer com que o processo fosse revisado</p><p>pelo conselho do rei. Essa revisão durou três anos e é bem sabida quanta</p><p>honra os senhores de Grosne e Bacquancourt adquiriram ao investigar essa</p><p>causa memorável. Cinquenta magistrados do Tribunal de Recursos</p><p>declararam, por unanimidade, toda a família de Calas inocente,</p><p>recomendando-os à benevolente justiça de sua majestade. O duque de</p><p>Choiseul, que nunca deixava escapar uma oportunidade de sinalizar a</p><p>grandeza de seu caráter, não apenas ajudou aquela infeliz família com</p><p>dinheiro, como também obteve para ela uma grati�cação de 36.000 libras</p><p>concedida pelo rei.</p><p>Em 9 de março de 1765 foi assinado o embargo que justi�cou a família</p><p>de Calas e mudou seu destino. O inocente e virtuoso pai daquela família</p><p>havia sido executado em 9 de março de 1762. Multidões de todas as partes</p><p>de Paris correram para vê-los sair da prisão e bateram palmas de alegria,</p><p>enquanto lágrimas lhes escorriam dos olhos.</p><p>Esse terrível exemplo de fanatismo usou a caneta de Voltaire para</p><p>depreciar os horrores da superstição; embora ele mesmo fosse in�el, seu</p><p>ensaio sobre tolerância honra sua escrita e foi um meio bendito de diminuir</p><p>o rigor da perseguição na maioria dos estados europeus. A pureza do</p><p>evangelho afastará igualmente a superstição e a crueldade, pois a brandura</p><p>dos princípios de Cristo nos ensina somente o consolo neste mundo e a</p><p>segurança da salvação no vindouro.</p><p>Perseguir por ter uma opinião diferente é tão absurdo quanto perseguir</p><p>por ter um semblante diferente. Se honramos a Deus, mantemos sagradas</p><p>as puras doutrinas de Cristo, con�amos plenamente nas promessas contidas</p><p>nas Sagradas Escrituras e obedecemos às leis políticas do estado em que</p><p>residimos. Temos direito indiscutível à proteção em vez de perseguição e a</p><p>servir ao Céu como nossa consciência, orientada pelas regras do evangelho,</p><p>possa direcionar.</p><p>Retrato de Voltaire, por Nicolas de Largillière (1724–25). Parte do acervo do Museu</p><p>Nacional do Palácio de Versalhes, França.</p><p>13 Pierre de Bruys (1095–1131), pregador francês considerado por muitos como um</p><p>dos precursores da Reforma Protestante.</p><p>14 Localizada ao sul da França, na região da Occitânia, a 500 km de Paris.</p><p>15 Provenientes da Europa Oriental, os cossacos eram inicialmente tribos nômades (daí</p><p>o nome cossaco, do turco kazak, “homem livre”). Estão entre os povos que formaram a</p><p>Rússia. A par�r do século 16, passaram a funcionar como uma democracia militarista,</p><p>que prestava serviço aos czares ou a quem lhes pagasse.</p><p>16 Título feudal francês possuído por um encarregado de organizar o exército e recolher</p><p>os impostos do senhor feudal a quem era submisso.</p><p>17 Nome atribuído, pelos inimigos, a todo seguidor da religião protestante na França</p><p>nos séculos 16 e 17. A origem do termo provavelmente se deve a Besançon Hugues,</p><p>líder protestante suíço.</p><p>18 Uma Infantaria montada até o século 18, quando passaram a formar uma Cavalaria</p><p>propriamente.</p><p>Capítulo 5</p><p>Um relato da Inquisição</p><p>Quando a religião reformada começou a difundir a luz do evangelho por</p><p>toda a Europa, o papa Inocêncio III foi tomado por um grande temor</p><p>quanto ao futuro da Igreja Romana. Consequentemente, instituiu vários</p><p>inquisidores, ou pessoas que deveriam investigar, apreender e punir hereges,</p><p>como os reformados eram denominados pelos papistas.</p><p>À frente desses inquisidores estava um certo Dominic, que havia sido</p><p>canonizado pelo papa para tornar a sua autoridade mais respeitável. Ele e os</p><p>outros inquisidores se espalharam por vários países católicos romanos e</p><p>trataram os protestantes com a mais extrema severidade. Com o passar do</p><p>tempo, não achando serem esses inquisidores itinerantes de tanta valia</p><p>quanto imaginara, o papa decidiu estabelecer tribunais �xos e regulares de</p><p>inquisição. Após essa ordem de criação dos tribunais regulares, a primeira</p><p>agência da Inquisição foi estabelecida na cidade de Toulouse, e Dominic,</p><p>por ter sido o primeiro inquisidor itinerante, tornou-se o primeiro</p><p>inquisidor regular.</p><p>Tribunais de Inquisição foram, então, erguidos em vários países, mas a</p><p>Inquisição espanhola se tornou a mais poderosa e temida de todas. Até</p><p>mesmo os próprios reis da Espanha, embora arbitrários em todos os outros</p><p>aspectos, foram ensinados a temer o poder dos senhores da Inquisição, e as</p><p>horríveis crueldades que eles exerceram compeliram multidões, cuja opinião</p><p>diferia daquela dos católicos romanos, a esconder cuidadosamente seus</p><p>sentimentos.</p><p>Os mais zelosos de todos os monges papistas, e os que mais</p><p>implicitamente obedeciam à Igreja de Roma, eram os dominicanos e os</p><p>franciscanos. Por isso, o papa considerou adequado investi-los do direito</p><p>exclusivo de presidir os diferentes tribunais da Inquisição e lhes deu os mais</p><p>ilimitados poderes. Assim, como juízes delegados por ele e imediatamente</p><p>representantes de sua pessoa, eles foram autorizados a excomungar ou</p><p>sentenciar à morte quem julgassem enquadrado diante da mais leve</p><p>informação de heresia. Eles tinham permissão para publicar cruzadas contra</p><p>todos os que considerassem hereges e para fazer alianças com príncipes</p><p>soberanos, a �m de unir as forças destes às cruzadas deles.</p><p>Auto da fé presidido por São Dominic, por Pedro Berruguete (1450–1504). Parte do</p><p>acervo do Museu do Prado, Madri, Espanha.</p><p>Em 1244, seu poder foi aumentado ainda mais pelo imperador</p><p>Frederico II, que se declarou protetor e amigo de todos os inquisidores e</p><p>publicou dois cruéis éditos: (1) que todos os hereges que continuassem</p><p>obstinados deveriam ser queimados e (2) que todos os hereges que se</p><p>arrependessem fossem condenados à prisão perpétua.</p><p>Esse zelo do imperador para com os inquisidores da persuasão católica</p><p>romana surgiu de um relato, que havia sido propagado por toda a Europa,</p><p>de que ele pretendia renunciar ao cristianismo e converter-se em</p><p>maometano. Devido a isso, o imperador tentou, no auge do fanatismo,</p><p>contradizer o relato e demonstrar seu apego ao papismo por meio de</p><p>crueldade.</p><p>Os o�ciais da Inquisição são três inquisidores, ou juízes, um procurador</p><p>�scal, dois secretários, um magistrado, um mensageiro, um recebedor, um</p><p>carcereiro, um agente de bens con�scados, vários assessores, conselheiros,</p><p>carrascos, médicos, cirurgiões, porteiros, familiares e visitantes que</p><p>deveriam jurar sigilo.</p><p>A principal acusação contra os sujeitos a esse tribunal é a de heresia, que</p><p>compreende tudo o que é falado ou escrito contra qualquer um dos artigos</p><p>do credo ou das tradições da Igreja Romana. De semelhante modo, a</p><p>Inquisição toma ciência de quem é acusado de ser mágico, de quem lê a</p><p>Bíblia na língua comum, o Talmude dos judeus ou o Alcorão dos</p><p>maometanos.</p><p>Em todas as ocasiões, os inquisidores desenvolveram seus processos com</p><p>a máxima severidade e puniram com a mais incomparável crueldade quem</p><p>os ofende. Um protestante raramente recebia misericórdia, e um judeu que</p><p>se tornasse cristão estaria longe de estar seguro.</p><p>Na Inquisição, a defesa tinha pouca utilidade para o prisioneiro, porque</p><p>uma simples suspeita era considerada razão su�ciente para condenação, e</p><p>quanto maior fosse sua riqueza, maior seria o perigo. A principal parte das</p><p>crueldades dos inquisidores se devia à sua rapacidade: eles destruíam a vida</p><p>de alguém para se apossar de sua propriedade e, sob o pretexto de zelo,</p><p>saqueavam todo indivíduo que julgavam ofensivo.</p><p>Na Inquisição, nunca foi permitido ao prisioneiro ver o rosto de seu</p><p>acusador ou das</p><p>testemunhas de acusação; todos os métodos de ameaça e</p><p>tortura eram usados para obrigá-lo a se autoacusar e, desse modo,</p><p>corroborar suas provas. Se a jurisdição da Inquisição não fosse totalmente</p><p>admitida, a vingança seria denunciada contra quem a questionasse; porque,</p><p>se qualquer um de seus o�ciais sofresse oposição, era quase certo que</p><p>aqueles que se lhes opunham sofreriam por sua audácia. A máxima da</p><p>Inquisição era impor, por terror e temor, a obediência aos objetos de seu</p><p>poder. Nascimento nobre, classe social elevada, grande dignidade ou</p><p>empregos renomados não eram proteção contra as suas atrocidades, e os</p><p>o�ciais de menor poder da Inquisição podiam fazer tremer as mais</p><p>destacadas personalidades.</p><p>Quando condenada, a pessoa acusada era severamente açoitada,</p><p>violentamente torturada, enviada às galés ou sentenciada à morte. Nos dois</p><p>casos, as propriedades eram con�scadas. Após o julgamento, realizavam</p><p>uma procissão até o local da execução, cuja cerimônia era denominada ato</p><p>de fé.</p><p>O RELATO DE UM ATO DE FÉ REALIZADO EM MADRI EM 1682.</p><p>Os o�ciais da Inquisição, precedidos por trombetas, tambores e seu</p><p>estandarte, marcharam no dia 30 de maio, em cavalgada, até o palácio da</p><p>grande praça, onde declararam por proclamação que, no dia 30 de junho, a</p><p>sentença dos prisioneiros seria executada.</p><p>Desses prisioneiros, 20 homens e mulheres, mais um maometano</p><p>renegado, deveriam ser queimados; 50 judeus e judias, nunca antes presos,</p><p>arrependidos de seus crimes, foram sentenciados a um longo período de</p><p>con�namento e a usar um gorro amarelo19. Todo o tribunal da Espanha</p><p>esteve presente naquela ocasião. A cadeira do grande inquisidor foi colocada</p><p>em uma espécie de tribuna muito acima do trono do rei.</p><p>Dentre os que sofreriam havia uma jovem judia de beleza requintada de</p><p>apenas 17 anos. Estando no mesmo lado do cadafalso onde a rainha estava</p><p>sentada, a jovem, na tentativa de obter perdão, dirigiu-se a ela com o</p><p>seguinte discurso patético: “Grande rainha, a sua real presença não me</p><p>ajudará em minha miserável condição? Considere a minha juventude e, ó!</p><p>Considere que estou prestes a morrer por professar uma religião inculcada</p><p>desde minha primeira infância!”. Sua majestade pareceu ter muita</p><p>compaixão de sua angústia, mas desviou o olhar, pois não se atreveria a</p><p>dizer uma palavra em benefício de uma pessoa que havia sido declarada</p><p>herege.</p><p>A missa teve início. No meio da cerimônia, o sacerdote saiu do altar,</p><p>colocou-se perto do cadafalso e se sentou em uma cadeira preparada para</p><p>aquela �nalidade. Então, o principal inquisidor desceu do an�teatro,</p><p>vestido com seu manto e com uma mitra na cabeça. Após curvar-se ao altar,</p><p>seguiu em direção ao balcão do rei e subiu até ele, acompanhado por alguns</p><p>de seus o�ciais, carregando uma cruz e os evangelhos, com um livro</p><p>contendo o juramento pelo qual os reis da Espanha se obrigavam a proteger</p><p>a fé católica, extirpar os hereges e apoiar com todo o seu poder e força os</p><p>processos e decretos da Inquisição; um juramento semelhante foi</p><p>ministrado aos conselheiros e a toda a assembleia. A missa começou por</p><p>volta do meio-dia e só terminou às 9 horas da noite, sendo prolongada por</p><p>uma proclamação da sentença dos vários criminosos, recitada</p><p>separadamente em voz alta, uma após a outra.</p><p>Após isso, foram queimados 21 homens e mulheres, cuja intrepidez em</p><p>sofrer aquela morte horrível foi verdadeiramente surpreendente. A</p><p>proximidade do rei aos criminosos fazia com que seus gemidos moribundos</p><p>lhe fossem muito audíveis. Entretanto, ele não poderia estar ausente</p><p>daquela cena terrível, por ser considerada religiosa, e seu juramento de</p><p>coroação o obrigava a sancionar, por sua presença, todos os atos do</p><p>tribunal.</p><p>O que já dissemos pode ser aplicado às inquisições em geral, bem como</p><p>à da Espanha em particular. A Inquisição em Portugal estava em um plano</p><p>exatamente semelhante ao da Espanha, havendo sido instituída</p><p>praticamente na mesma época e sujeita aos mesmos regulamentos. Os</p><p>inquisidores permitiam que a tortura fosse usada somente três vezes, mas,</p><p>durante esses períodos, era tão severamente in�igida que o prisioneiro</p><p>morria sob ela ou permanecia aleijado pelo resto da vida, sofrendo as mais</p><p>fortes dores a cada mudança de clima. Faremos uma ampla descrição dos</p><p>fortes tormentos ocasionados pela tortura, a partir do relato de um homem</p><p>que a sofreu nos três respectivos tempos, mas, felizmente, sobreviveu às</p><p>crueldades pelas quais passou.</p><p>Na primeira vez em que o torturaram, seis carrascos entraram,</p><p>deixaram-no só com a roupa íntima e o deitaram de costas em uma espécie</p><p>de suporte, a alguns metros do chão. O procedimento começou colocando</p><p>um colar de ferro em torno do pescoço dele e um anel em cada pé, que o</p><p>prendiam ao suporte. Estando os membros assim estendidos, enrolaram</p><p>duas cordas em torno de cada coxa; então a um determinado sinal, essas</p><p>cordas, que passavam por baixo do cadafalso através de orifícios feitos para</p><p>essa �nalidade, eram todas esticadas ao mesmo tempo por quatro dos</p><p>homens.</p><p>É fácil conceber que as dores que se sucediam imediatamente eram</p><p>intoleráveis. As cordas, de �na espessura, penetravam na carne do</p><p>prisioneiro até os ossos, fazendo o sangue jorrar em oito lugares diferentes</p><p>ao mesmo tempo. Se o prisioneiro persistia em não confessar o que os</p><p>inquisidores exigiam, as cordas eram apertadas dessa maneira quatro vezes</p><p>sucessivas.</p><p>A maneira de in�igir a segunda tortura foi a seguinte: eles forçaram os</p><p>braços do homem para trás, de modo que as palmas das mãos �cassem</p><p>viradas para fora; então, por meio de uma corda que prendia os pulsos, uma</p><p>engrenagem foi girada, de forma que aproximaram os braços alguns graus,</p><p>de maneira que os dorsos das mãos se tocaram e �caram exatamente</p><p>paralelos entre si.</p><p>Em consequência dessa violenta contorção, os dois ombros foram</p><p>deslocados e uma quantidade considerável de sangue saiu de sua boca. Essa</p><p>tortura foi repetida três vezes, e, depois disso, ele foi novamente levado para</p><p>a masmorra, e o cirurgião colocou os ossos deslocados no lugar.</p><p>Dois meses após isso, o prisioneiro, já um pouco recuperado, foi</p><p>novamente enviado à sala de tortura e ali, pela última vez, obrigado a sofrer</p><p>outro tipo de punição, in�igida duas vezes sem intervalo. Os carrascos</p><p>amarraram uma grossa corrente de ferro em torno de seu corpo, cruzando</p><p>no peito e terminando nos pulsos. Então, colocaram-no de costas contra</p><p>uma tábua grossa em cujas extremidades havia uma polia através da qual</p><p>passava uma corda que prendia a ponta da corrente que estava nos seus</p><p>pulsos. Então, o carrasco, esticando a ponta da corda por meio de uma</p><p>roldana colocada a certa distância atrás dele, pressionava ou machucava a</p><p>barriga à medida que as extremidades das correntes eram apertadas. Eles o</p><p>torturaram dessa maneira a ponto de seus pulsos e seus ombros serem</p><p>totalmente deslocados. Foram, contudo, logo restabelecidos pelos</p><p>cirurgiões; porém, os bárbaros, ainda não satisfeitos com essa espécie de</p><p>crueldade, submeteram-no à mesma tortura pela segunda vez, que ele</p><p>sofreu (embora, se possível, com dores mais agudas) com igual constância e</p><p>resolução. Depois disso, ele foi novamente devolvido à masmorra, atendido</p><p>pelo cirurgião para colocar curativos nas suas contusões e ajustar a parte</p><p>deslocada. Ali, ele continuou até o ato de fé, ou libertação da prisão,</p><p>quando foi liberto aleijado e doente pelo resto da vida.</p><p>UM RELATO DO CRUEL TRATAMENTO E DA QUEIMA DE NICHOLAS</p><p>BURTON, UM COMERCIANTE INGLÊS, NA ESPANHA</p><p>O sr. Nicholas Burton era um cidadão de Londres havia algum tempo e</p><p>comerciante, morador da paróquia de Little Saint Bartholomew. Em 5 de</p><p>novembro, por volta do ano 1560 de nosso Senhor, conduzindo, pací�ca e</p><p>silenciosamente, seu comércio de mercadorias e estando na cidade de</p><p>Cádiz, na região da Andaluzia, Espanha, entrou em seu alojamento um</p><p>Judas — ou, como eles os chamam, um familiar dos patriarcas da</p><p>Inquisição —, que, perguntando por Nicholas Burton, �ngiu ter uma carta</p><p>para entregar-lhe em mãos; por isso, falou com ele imediatamente. E, não</p><p>havendo carta para ser entregue, o tal promotor,</p><p>ou familiar, movido pelo</p><p>diabo, seu mestre, de quem era o mensageiro, inventou outra mentira e</p><p>disse que embarcaria para Londres nos navios que o referido Nicholas</p><p>Burton havia fretado se lhe permitisse — o que era, em parte, para saber</p><p>onde ele carregava seus bens a �m de que pudessem se apropriar deles e,</p><p>principalmente, para ganhar tempo até que o sargento da Inquisição</p><p>chegasse para deter o referido Nicholas Burton, o que �zeram</p><p>imediatamente.</p><p>Então, percebendo que eles não eram capazes de oprimi-lo ou acusá-lo</p><p>de haver escrito, falado ou feito naquele país qualquer coisa contrária às leis</p><p>eclesiásticas ou temporais do mesmo reino, Burton lhes perguntou</p><p>corajosamente que acusação eles tinham contra ele para prendê-lo e lhes</p><p>pediu que declarassem a causa, e ele lhes responderia. Não obstante, os</p><p>inquisidores nada responderam, mas, com palavras ameaçadoras,</p><p>ordenaram-lhe que se mantivesse em paz e não lhes dirigisse palavra</p><p>alguma.</p><p>Assim, levaram-no para a imunda prisão comum da cidade de Cádiz,</p><p>onde ele permaneceu a ferros entre ladrões durante 14 dias. Durante todo o</p><p>tempo, ele instruiu os pobres prisioneiros na Palavra de Deus, em</p><p>conformidade com o bom talento que Deus lhe dera a esse respeito, e</p><p>também na língua espanhola para dizer o mesmo, de modo que, naquele</p><p>curto tempo, ele levou vários daqueles espanhóis supersticiosos e ignorantes</p><p>a abraçarem a Palavra de Deus e a rejeitarem suas tradições papistas.</p><p>Quando isso chegou ao conhecimento dos o�ciais da Inquisição, eles o</p><p>levaram a ferros dali para uma cidade chamada Sevilha, para uma prisão</p><p>mais cruel e mais rigorosa chamada Triana, onde os ditos patriarcas da</p><p>Inquisição o processaram secretamente, segundo sua costumeira cruel</p><p>tirania, para que nunca mais ele fosse capaz de escrever ou falar com</p><p>qualquer pessoa de sua nação, de modo que até hoje não se sabe quem foi o</p><p>seu acusador.</p><p>Posteriormente, no dia 20 de dezembro, eles levaram o referido</p><p>Nicholas Burton, com um grande número de outros prisioneiros que</p><p>professavam a verdadeira religião até o centro de Sevilha, em um lugar onde</p><p>os inquisidores mencionados sentaram-se para o julgamento, que</p><p>denominavam de auto. Vestiram-no com uma capa de lona na qual em</p><p>diversas partes estava pintada a �gura de um enorme demônio,</p><p>atormentando uma alma entre labaredas, e em sua cabeça um chapéu</p><p>igualmente pintado.</p><p>Sua língua foi arrancada da boca com uma vara fendida, para que ele</p><p>não pronunciasse sua consciência e fé às pessoas. Assim ele foi colocado</p><p>com outro inglês de Southampton e vários outros homens condenados por</p><p>religião, também franceses e espanhóis, em um cadafalso em frente à dita</p><p>Inquisição, onde as sentenças e julgamentos foram lidos e pronunciados</p><p>contra eles.</p><p>Imediatamente após as sentenças serem proferidas, eles foram levados</p><p>dali para o local da execução fora da cidade, onde foram queimados da</p><p>maneira mais cruel. Por sua fé inabalável, Deus é louvado.</p><p>A propósito, nas chamas da fogueira, Nicholas Burton tinha um</p><p>semblante tão alegre, abraçando a morte com toda paciência e alegria, que</p><p>os atormentadores e inimigos que estavam ali disseram que o diabo tirou</p><p>sua alma antes de ele chegar ao fogo e, portanto, perdera sua sensibilidade.</p><p>Aconteceu que, após a prisão de Nicholas Burton, todos os bens e</p><p>mercadorias que ele havia levado consigo para a Espanha, por meio do</p><p>transporte comum na época, foram (como era de praxe) imediatamente</p><p>apreendidos e con�scados, e também se apropriaram de muitas coisas que</p><p>pertenciam a outro comerciante inglês, pelo fato de Burton ser credenciado</p><p>como seu administrador. Por isso, tão logo as notícias chegaram ao</p><p>comerciante, bem como da prisão de seu administrador e do arresto de seus</p><p>bens, ele enviou seu advogado para a Espanha, com sua autorização para</p><p>reivindicar seus bens e exigi-los de volta. O nome dele era John Fronton,</p><p>cidadão de Bristol.</p><p>Após seu advogado desembarcar em Sevilha e mostrar à casa sagrada</p><p>todas as suas cartas e escritos solicitando que os bens lhe fossem entregues,</p><p>responderam-lhe que ele deveria mover um processo nos termos da lei e</p><p>contratar um advogado (tudo, sem dúvida, para atrasá-lo) e, por cortesia,</p><p>designaram-lhe um para enquadrar sua súplica por ele, e outras cartas de</p><p>petição semelhantes, nos moldes em que deveriam ser apresentadas à santa</p><p>corte, exigindo oito reais20 para cada carta, embora nada disso tenha</p><p>surtido efeito. E, durante três ou quatro meses, aquele sujeito ia sempre</p><p>duas vezes por dia, toda manhã e tarde, ao palácio dos inquisidores,</p><p>implorando-lhes de joelhos por seu despacho, mas principalmente ao bispo</p><p>de Tarragona, chefe da Inquisição em Sevilha, para que ele, por sua absoluta</p><p>autoridade, ordenasse que a restituição lhe fosse feita; porém, a pilhagem</p><p>era tão boa e vantajosa que seria muito difícil vê-la novamente.</p><p>Por �m, após quatro meses inteiros dedicados a ações e pedidos, e</p><p>também sem resultado, recebeu deles a resposta de que precisaria exibir</p><p>melhores provas e trazer da Inglaterra, para comprovação daquele assunto,</p><p>certi�cados mais contundentes do que os que já haviam sido apresentados</p><p>ao tribunal. Diante disso, Fronton foi imediatamente para Londres e, a</p><p>toda velocidade, voltou a Sevilha com cartas mais amplas e maiores de</p><p>testemunho, e também certi�cados segundo os pedidos deles, e os exibiu no</p><p>tribunal.</p><p>Não obstante, os inquisidores ainda procrastinavam, desculpando-se por</p><p>falta de tempo livre e por estarem ocupados com assuntos mais</p><p>importantes; e, com essas respostas, adiaram o caso durante quatro meses.</p><p>Finalmente, quando Fronton havia gastado quase todo o seu dinheiro e,</p><p>portanto, pedia mais diligentemente pelo despacho, eles encaminharam a</p><p>totalidade do assunto ao bispo, que, ao avaliá-lo, respondeu que “por si</p><p>mesmo, ele sabia o que tinha que fazer, mas era apenas um único homem e</p><p>a determinação se aplicava aos outros comissários tanto quanto a ele”; e,</p><p>assim, postergando e empurrando de um para outro, Fronton não</p><p>conseguia obter a �nalização do processo. Contudo, por causa de sua</p><p>persistente súplica, resolveram despachá-lo da seguinte maneira: um dos</p><p>inquisidores, chamado Gasco, homem muito experiente nessas práticas,</p><p>desejava que Fronton recorresse a ele após o jantar.</p><p>O sujeito se alegrou por ouvir essa notícia, e supôs que seus bens lhe</p><p>seriam restituídos, e que fora chamado com o propósito de conversar com o</p><p>outro que estava na prisão para tratar com ele sobre suas contas a �m de</p><p>não haver mal-entendido. Ouvindo os inquisidores pronunciarem que seria</p><p>necessário que ele falasse com o prisioneiro e estando, com isso,</p><p>razoavelmente convencido de que, �nalmente, eles tiveram boa-fé, dirigiu-</p><p>se ao encontro à noite.</p><p>Imediatamente após sua chegada, o carcereiro foi instruído a tranca�á-lo</p><p>em uma prisão que lhe indicaram. Fronton, inicialmente esperando haver</p><p>sido chamado para algum outro assunto e vendo-se, contrariamente à sua</p><p>expectativa, lançado em uma masmorra escura, �nalmente percebeu que os</p><p>acontecimentos eram muito diferentes do que ele havia suposto.</p><p>Porém, dois ou três dias depois, ele foi levado ao tribunal, onde</p><p>começou a exigir seus bens. Por ser um artifício que servia bem aos seus</p><p>interesses sem maiores circunstâncias, pediram-lhe que dissesse a Ave Maria:</p><p>Ave Maria, gratia plena, Dominus tecum, benedicta tu in mulieribus, et</p><p>benedictus fructus ventris tui Jesus Amen.</p><p>O mesmo foi escrito palavra por palavra enquanto ele falava, e sem mais</p><p>falar em reivindicar seus bens, porque era desnecessário, eles mandaram</p><p>prendê-lo novamente e moveram uma ação contra ele como herege, por</p><p>não haver dito Ave Maria à moda romana, terminando-a de modo muito</p><p>suspeito, porque deveria ter acrescentado Sancta Maria mater Dei, ora pro</p><p>nobis peccatoribus; abreviando isso, �cou su�cientemente evidente (disseram</p><p>eles) que ele não permitia a mediação de santos.</p><p>Assim, eles lançaram mão de uma disputa para detê-lo na prisão durante</p><p>um período mais longo e, depois, levaram-no a sua plataforma</p><p>disfarçadamente, segundo os seus costumes, sentenciaram-no a perder todos</p><p>os</p><p>bens pelos quais querelava, apesar de não serem dele, e, além disso,</p><p>passar um ano na prisão.</p><p>Mark Brughes, um inglês, capitão do navio inglês Minion, foi queimado</p><p>em uma cidade de Portugal. William Hoker, um jovem de</p><p>aproximadamente 16 anos, sendo inglês, foi apedrejado até a morte por</p><p>certos jovens na cidade de Sevilha, pela mesma causa justa.</p><p>Batalha de Almansa, por Ricardo Balaca (1844–80). Parte do acervo do Congresso dos</p><p>Deputados, Madri, Espanha.</p><p>ALGUMAS MALDADES PECULIARES DA INQUISIÇÃO SÃO EXPOSTAS</p><p>POR UMA OCORRÊNCIA MUITO SINGULAR</p><p>Quando a coroa da Espanha foi contestada, no início do século 16, por</p><p>dois príncipes que igualmente aspiravam à soberania, a França defendeu a</p><p>causa de um concorrente e a Inglaterra, a do outro.</p><p>O duque de Berwick, �lho natural de James II, que abdicou do trono da</p><p>Inglaterra, comandou as forças espanholas e francesas e derrotou os ingleses</p><p>na célebre batalha de Almansa. O exército foi, então, dividido em duas</p><p>partes: uma constituída por espanhóis e franceses, liderada pelo duque de</p><p>Berwick, que avançou em direção à Catalunha; e a outra composta somente</p><p>por tropas francesas, comandada pelo duque de Orleans, que procedeu à</p><p>conquista de Aragon.</p><p>Quando as tropas se aproximaram da cidade de Aragon, os magistrados</p><p>foram oferecer as chaves ao duque de Orleans; ele, porém, disse-lhes</p><p>orgulhosamente que eles eram rebeldes e que não aceitaria as chaves, pois</p><p>tinha ordens de entrar na cidade através de uma brecha.</p><p>Consequentemente, fez uma brecha nas muralhas com seu canhão e,</p><p>então, adentrou na cidade através dela, juntamente com todo o seu exército.</p><p>Após cumprir ali todos os regulamentos necessários, partiu para dominar</p><p>outros lugares, deixando uma forte guarnição para, ao mesmo tempo,</p><p>intimidar e defender, sob o comando de seu tenente-general, o sr. de Legal.</p><p>Esse cavalheiro, apesar de haver sido criado como católico romano, não</p><p>tinha superstição alguma. Ele unia grandes talentos a grande coragem, era</p><p>um o�cial hábil e um cavalheiro talentoso.</p><p>Antes de partir, o duque havia ordenado a cobrança de pesados tributos</p><p>à cidade da seguinte maneira:</p><p>1. Os magistrados e principais habitantes pagariam mil coroas21 por mês,</p><p>para alimentação do duque.</p><p>2. Cada casa pagaria uma pistola22, o que equivaleria a 18 mil pistolas</p><p>por mês.</p><p>3. Todo convento e mosteiro pagaria um donativo proporcional às suas</p><p>riquezas e aluguéis.</p><p>As duas últimas contribuições deveriam ser destinadas à manutenção do</p><p>exército.</p><p>O dinheiro pago pelos magistrados, principais habitantes e todas as</p><p>casas era arrecadado assim que cobrado; porém, quando os cobradores</p><p>chegavam para coletar os valores dos superiores de conventos e mosteiros,</p><p>descobriam que os eclesiásticos não estavam tão dispostos, como outras</p><p>pessoas, a separar-se do seu dinheiro.</p><p>Dos donativos a serem levantados pelo clero:</p><p>O Colégio dos Jesuítas pagaria 2.000 pistolas;</p><p>os carmelitas, 1.000;</p><p>os agostinianos, 1.000 e</p><p>os dominicanos, 1.000.</p><p>O sr. de Legal enviou aos jesuítas uma ordem peremptória para pagarem</p><p>imediatamente. O superior dos jesuítas deu como resposta que o clero</p><p>pagar pelo exército era contra todas as imunidades eclesiásticas e que ele</p><p>não conhecia argumento algum que autorizasse tal procedimento. O sr. de</p><p>Legal enviou quatro companhias de dragões para se alojarem na faculdade,</p><p>com a seguinte mensagem sarcástica: “Para convencê-lo da necessidade de</p><p>pagar, enviei quatro argumentos substanciais à sua faculdade, extraídos do</p><p>sistema da lógica militar; portanto, espero que vocês não precisem de</p><p>advertências adicionais para orientar a sua conduta”.</p><p>Esses procedimentos deixaram os jesuítas muito perplexos, os quais</p><p>enviaram um estafeta ao tribunal para o confessor do rei, que era da ordem</p><p>deles. Entretanto, os dragões foram muito mais rápidos em saquear e fazer</p><p>estragos do que o mensageiro em sua jornada, de modo que os jesuítas,</p><p>vendo tudo se encaminhando para destruição e ruína, consideraram</p><p>adequado resolver o assunto de maneira amigável e pagaram a dívida antes</p><p>do mensageiro retornar. Os agostinianos e os carmelitas, advertidos pelo</p><p>que havia acontecido aos jesuítas, prudentemente pagaram, fugindo do</p><p>estudo de argumentos militares e de receberem lições de lógica pelos</p><p>dragões.</p><p>Os dominicanos, porém, todos familiares ou agentes dependentes da</p><p>Inquisição, imaginaram que essa exata circunstância seria sua proteção, mas</p><p>se enganaram, porque o sr. de Legal não temia e nem respeitava a</p><p>Inquisição. O principal dos dominicanos enviou ao comandante militar</p><p>uma mensagem de que sua ordem era pobre e não tinha dinheiro para</p><p>pagar o donativo porque, em suas palavras: “Toda a riqueza dos</p><p>dominicanos consiste somente nas imagens de prata dos apóstolos e santos,</p><p>em tamanho natural, colocadas na nossa igreja, e seria sacrilégio removê-</p><p>las”.</p><p>Essa insinuação teve por intenção aterrorizar o comandante francês, o</p><p>qual os inquisidores imaginavam que não ousaria ser tão profano a ponto</p><p>de desejar a posse dos preciosos ídolos. Ele, porém, noti�cou de que as</p><p>imagens de prata seriam admiráveis substitutas do dinheiro e teriam mais</p><p>caráter em sua posse do que na dos próprios dominicanos, “Porque”, disse</p><p>ele, “enquanto vocês as possuem da maneira atual, elas �cam em nichos,</p><p>inúteis e imóveis, sem produzir o mínimo benefício para a humanidade em</p><p>geral ou para vocês mesmos; mas, quando estiverem em minha posse, serão</p><p>úteis. Eu as colocarei em movimento, visto que pretendo transformá-las em</p><p>moedas, para que possam viajar como os apóstolos, serem bené�cas em</p><p>diversos lugares e circular para serviço universal da humanidade”.</p><p>Os inquisidores �caram perplexos com esse tratamento que nunca</p><p>esperaram receber, nem mesmo de cabeças coroadas; por isso, decidiram</p><p>entregar suas preciosas imagens em uma procissão solene, para que</p><p>pudessem incitar o povo a uma insurreição. Os frades dominicanos foram,</p><p>consequentemente, ordenados a marchar até a casa do sr. de Legal, com os</p><p>apóstolos e santos de prata, de maneira triste, com velas acesas e clamando</p><p>amargamente ao longo de todo o percurso: “Heresia, heresia”.</p><p>Ouvindo sobre esse comportamento, o sr. de Legal ordenou que quatro</p><p>companhias de granadeiros se en�leirassem na rua que levava à sua casa.</p><p>Cada granadeiro recebeu ordem de ter seu mosquete carregado em uma</p><p>mão e uma vela acesa na outra, para repelirem força contra força ou fazer</p><p>honras à ridícula solenidade.</p><p>Os frades �zeram todo o possível para provocar tumulto, mas as pessoas</p><p>comuns tiveram demasiado medo das tropas armadas para obedecer-lhes.</p><p>As imagens de prata foram, portanto, necessariamente entregues ao sr. de</p><p>Legal, que as enviou à casa da moeda e ordenou que fossem cunhadas</p><p>imediatamente.</p><p>Fracassado o projeto de levantar uma insurreição, os inquisidores</p><p>decidiram excomungar o sr. de Legal, a menos que ele libertasse seus</p><p>preciosos santos de prata da prisão na casa da moeda antes que fossem</p><p>derretidos ou, de algum modo, mutilados. O comandante francês se</p><p>recusou absolutamente a entregar as imagens, dizendo que, certamente, elas</p><p>deveriam viajar e fazer o bem. Diante disso, os inquisidores elaboraram o</p><p>formulário de excomunhão e ordenaram ao seu secretário que o lesse para o</p><p>sr. de Legal.</p><p>O secretário executou pontualmente sua missão e leu a excomunhão</p><p>deliberada e distintamente. O comandante francês ouviu com muita</p><p>paciência e, educadamente, disse ao secretário que responderia no dia</p><p>seguinte.</p><p>Quando o secretário da Inquisição se foi, o sr. de Legal ordenou ao seu</p><p>próprio secretário que preparasse um formulário de excomunhão</p><p>exatamente igual ao enviado pela Inquisição, porém colocando os nomes</p><p>dos inquisidores em lugar do seu.</p><p>Na manhã seguinte, ele pediu quatro regimentos armados e ordenou</p><p>que acompanhassem seu secretário e agissem conforme as instruções dele.</p><p>O secretário foi à sede da Inquisição e insistiu em entrar; após muita</p><p>discussão, isso lhe foi concedido. Tão logo entrou, leu, em voz audível, a</p><p>excomunhão enviada pelo sr. de Legal contra os inquisidores. Todos eles</p><p>estavam presentes e a ouviram com espanto, porque nunca haviam</p><p>encontrando alguém que se comportasse com tanta ousadia. Eles clamaram</p><p>em alta voz contra o sr. de Legal como herege e disseram: “Esse foi um</p><p>insulto da maior ousadia contra a fé católica”. Porém, para surpreendê-los</p><p>ainda mais, o secretário francês disse que eles deveriam retirar-se de seus</p><p>atuais alojamentos, pois o comandante francês queria aquartelar as tropas</p><p>na Inquisição, que era o lugar mais confortável de toda a cidade.</p><p>Os inquisidores exclamaram em alta voz no momento em que o</p><p>secretário os colocou sob forte guarda e os enviou a um local designado</p><p>pelo sr. de Legal para recebê-los. Vendo o andamento das coisas, os</p><p>inquisidores imploraram pela permissão de levar suas posses particulares, o</p><p>que foi concedido. Assim partiram imediatamente para Madri, onde</p><p>�zeram as queixas mais amargas ao rei. O monarca, porém, lhes disse que</p><p>não poderia fazer-lhes nenhuma reparação, pois tais prejuízos foram</p><p>herdados de seu avô, o rei das tropas da França, por cujo único auxílio ele</p><p>podia estar �rmemente estabelecido em seu reino. “Se fossem minhas</p><p>próprias tropas”, disse ele, “eu as haveria punido; porém, sendo como é, não</p><p>posso pretender exercer qualquer autoridade sobre eles”.</p><p>Nesse meio tempo, o secretário do sr. de Legal abriu todas as portas da</p><p>Inquisição e libertou os prisioneiros, que totalizavam 400; dentre eles havia</p><p>60 belas moças, que pareciam formar o harém dos três principais</p><p>inquisidores. Essa descoberta, que escancarou a vileza dos inquisidores,</p><p>assustou muito o arcebispo, que desejou que o sr. de Legal enviasse as</p><p>mulheres ao seu palácio, para que ele cuidasse delas. Ao mesmo tempo,</p><p>publicou uma censura eclesiástica contra todos os que ridicularizassem ou</p><p>culpassem o santo escritório da Inquisição.</p><p>O comandante francês enviou uma mensagem ao arcebispo dizendo que</p><p>os prisioneiros haviam fugido ou sido tão bem escondidos por seus amigos,</p><p>ou até por seus próprios o�ciais, que lhe era impossível enviá-los de volta; e,</p><p>portanto, havendo cometido tais atos atrozes, a Inquisição deveria agora</p><p>tolerar a sua exposição.</p><p>Alguns poderão sugerir que é estranho cabeças coroadas e nobres</p><p>eminentes não terem tentado aniquilar o poder da Inquisição e reduzir a</p><p>autoridade daqueles tiranos eclesiásticos, de cujas presas impiedosas nem</p><p>suas famílias, nem eles mesmos, estavam seguros.</p><p>Porém, por mais surpreendente que seja, nesse caso a superstição sempre</p><p>superou o bom-senso e o hábito agiu contra a razão. Certo príncipe</p><p>pretendeu, de fato, abolir a Inquisição, mas perdeu a vida antes de tornar-se</p><p>rei e, consequentemente, antes de ter o poder para fazê-lo, pois a mera</p><p>insinuação do seu desígnio provocou a sua destruição.</p><p>Esse foi o agradável príncipe Dom Carlos, �lho de Filipe II, rei da</p><p>Espanha e neto do célebre imperador Carlos V. Dom Carlos possuía todas</p><p>as boas qualidades de seu avô e nenhuma das más de seu pai. Ele era um</p><p>príncipe de grande vivacidade, cultura admirável e o caráter mais agradável.</p><p>Ele teve bom-senso su�ciente para analisar os erros do papismo e detestava</p><p>o simples nome da Inquisição. Investiu publicamente contra a instituição,</p><p>ridicularizou a falsa piedade dos inquisidores, fez tudo que pôde para expor</p><p>seus atos atrozes e até declarou que, se chegasse à coroa, aboliria a</p><p>Inquisição e exterminaria seus agentes. Essas coisas foram su�cientes para</p><p>levantar a ira dos inquisidores contra o príncipe; consequentemente, eles se</p><p>inclinaram à vingança e se determinaram a destruí-lo.</p><p>Assim, os inquisidores empregaram todos os seus agentes e emissários</p><p>para espalhar no exterior as insinuações mais astutas contra o príncipe; por</p><p>�m, suscitaram tal espírito de descontentamento entre o povo, que o rei se</p><p>viu obrigado a remover Dom Carlos do tribunal. Não contentes com isso,</p><p>perseguiram até mesmo seus amigos e forçaram o rei a banir igualmente</p><p>Dom João, duque da Áustria, seu próprio irmão e, consequentemente, tio</p><p>do príncipe, juntamente com o príncipe de Parma, sobrinho do rei e primo</p><p>do príncipe, por saberem que tanto o duque da Áustria quanto o príncipe</p><p>de Parma tinham um apego totalmente sincero e inviolável a Dom Carlos.</p><p>Retrato do príncipe Dom Carlos de Áustria, por Alonzo Sánchez Coello (–1588). Parte do</p><p>acervo do Museu de História da Arte, Viena, Áustria.</p><p>Poucos anos depois, havendo o príncipe demonstrado grande</p><p>indulgência e favor aos protestantes na Holanda, a Inquisição se voltou</p><p>fortemente contra ele, declarando que, devido às pessoas em questão serem</p><p>hereges, o próprio príncipe necessariamente o seria, uma vez que as</p><p>aprovava. Em suma, eles conquistaram tão grande ascendência sobre a</p><p>mente do rei, que era absolutamente escravo da superstição, que — é</p><p>chocante relatar — ele sacri�cou os sentimentos naturais à força do</p><p>fanatismo e, por medo de provocar a ira da Inquisição, abandonou seu</p><p>único �lho, sentenciando-o à morte.</p><p>O príncipe teve, de fato, o que se chamava indulgência: foi autorizado a</p><p>escolher o modo de sua morte. De maneira semelhante aos romanos, o</p><p>infeliz jovem herói escolheu sangria e banho quente; quando as veias de</p><p>seus braços e pernas foram abertas, ele expirou gradualmente, caindo como</p><p>mártir da malignidade dos inquisidores e do estúpido fanatismo de seu pai.</p><p>A PERSEGUIÇÃO AO DR. EGÍDIO</p><p>O Dr. Egídio foi educado na universidade de Alcalá, onde obteve vários</p><p>diplomas, e se dedicou particularmente ao estudo das Sagradas Escrituras e</p><p>do curso de teologia. Quando o professor de teologia morreu, ele foi eleito</p><p>como seu substituto e agradou tanto a todos que sua reputação de</p><p>aprendizado e piedade circulou por toda a Europa.</p><p>Egídio, porém, tinha inimigos, que apresentaram queixa contra ele aos</p><p>inquisidores, os quais lhe enviaram uma intimação e, quando ele</p><p>compareceu, o lançaram em uma masmorra. Como a maior parte dos que</p><p>pertenciam à igreja catedral de Sevilha e muitas pessoas pertencentes ao</p><p>bispado de Dorto aprovavam fortemente as doutrinas de Egídio, que</p><p>pensavam ser perfeitamente consoantes com a verdadeira religião,</p><p>peticionaram ao imperador em seu favor. Embora houvesse sido educado</p><p>como católico romano, o monarca tinha bom-senso demais para ser</p><p>fanático e, portanto, emitiu uma ordem imediata para a soltura de Egídio.</p><p>Este visitou, pouco depois, a igreja de Valladolid e fez todo o possível para</p><p>promover a causa da religião. Ao voltar para casa, logo adoeceu e morreu</p><p>em idade muito avançada.</p><p>Os inquisidores, desapontados por não conseguirem expressar seu</p><p>rancor contra ele enquanto vivia, determinaram-se (devido a todos os</p><p>pensamentos do imperador estarem absorvidos em uma expedição militar)</p><p>a vingar-se dele mesmo morto. Portanto, pouco depois de seu enterro, eles</p><p>ordenaram que seus restos mortais fossem exumados. Instaurado um</p><p>processo legal, estes foram condenados a ser queimados, ato executado</p><p>como ordenado.</p><p>A PERSEGUIÇÃO AO DR. CONSTANTINO</p><p>O Dr. Constantino, amigo íntimo do mencionado Dr. Egídio, era um</p><p>homem de habilidades naturais incomuns e profunda erudição. Além de</p><p>várias línguas modernas, ele conhecia as línguas latina, grega e hebraica;</p><p>conhecia também perfeitamente não apenas as ciências chamadas</p><p>abstrusas23, mas também as artes enquadradas na denominação de</p><p>literatura elegante.</p><p>Sua eloquência o tornava agradável e a �rmeza de suas doutrinas, um</p><p>pregador proveitoso; ele foi tão popular que sempre pregou para auditórios</p><p>lotados. Teve muitas oportunidades para galgar altos cargos na Igreja, mas</p><p>nunca tirava vantagem delas porque, sendo-lhe oferecido um benefício</p><p>eclesiástico de maior valor, ele o recusava, dizendo: “Estou satisfeito com o</p><p>que tenho”. Frequentemente pregava com tanta força contra a simonia,24</p><p>que muitos de seus superiores, não tão sensíveis no tocante ao assunto,</p><p>�caram melindrados com suas doutrinas acerca desse tema.</p><p>Havendo sido totalmente con�rmado no protestantismo pelo Dr.</p><p>Egídio, ele pregava com ousadia somente doutrinas compatíveis com a</p><p>pureza do evangelho e não contaminadas pelos erros que, várias vezes,</p><p>haviam se in�ltrado na Igreja Romana. Por essas razões, tinha muitos</p><p>inimigos, entre os católicos romanos, alguns</p><p>dos quais estavam totalmente</p><p>determinados a destruí-lo.</p><p>Um digno cavalheiro, chamado Scobaria, edi�cou uma escola para aulas</p><p>sobre teologia e nomeou o Dr. Constantino para ser encarregado do curso.</p><p>Ele assumiu a tarefa imediatamente, deu aulas, por partes, sobre Provérbios,</p><p>Eclesiastes e Cântico dos Cânticos e estava começando a expor o livro de Jó</p><p>ao ser capturado pelos inquisidores.</p><p>Levado a interrogatório, ele respondeu com tal precaução que eles não</p><p>conseguiram encontrar qualquer acusação explícita contra ele, mas</p><p>permaneceram em dúvida acerca de como proceder; foi então que</p><p>ocorreram as determinantes circunstâncias expostas a seguir.</p><p>O Dr. Constantino havia deixado aos cuidados de uma mulher, Isabella</p><p>Martin, vários livros muito valiosos para ele, mas que ele sabia que, aos</p><p>olhos da Inquisição, eram censuráveis. Essa mulher, informada como sendo</p><p>protestante, foi detida e, após um pequeno processo, ordenaram que seus</p><p>bens fossem con�scados. Antes, porém, de os o�ciais chegarem à casa dela,</p><p>seu �lho havia retirado vários baús cheios dos artigos mais valiosos, dentre</p><p>os quais se encontravam os livros do Dr. Constantino.</p><p>Um servo traiçoeiro informou isso aos inquisidores, e um o�cial foi</p><p>enviado ao �lho para exigir os baús. O �lho, supondo que o o�cial só</p><p>houvesse ido buscar os livros de Constantino, disse: “Eu sei o que você</p><p>procura e os buscarei para você imediatamente”. Então, trouxe os livros e</p><p>documentos do Dr. Constantino, deixando o o�cial muito surpreso ao</p><p>encontrar o que não procurava. Porém, disse ao jovem que estava contente</p><p>por aqueles livros e papéis haverem aparecido, mas precisava cumprir o</p><p>propósito de sua missão, que era levar à presença dos inquisidores o rapaz e</p><p>os bens que ele roubara, o que, portanto, fez, porque o jovem sabia que</p><p>seria inútil protestar ou resistir e, por isso, submeteu-se silenciosamente ao</p><p>seu destino.</p><p>Os inquisidores, de posse dos livros e escritos de Constantino, agora</p><p>encontraram material su�ciente para criar acusações contra ele. Ao ser</p><p>levado a novo interrogatório, eles apresentaram um de seus trabalhos e</p><p>perguntaram se ele conhecia a caligra�a. Percebendo que era dele, entendeu</p><p>tudo, confessou o escrito e justi�cou a doutrina nele contida, dizendo:</p><p>“Nisso, e em todos os meus outros escritos, nunca me afastei da verdade do</p><p>evangelho e sempre mantive em vista os puros preceitos de Cristo,</p><p>conforme Ele os entregou à humanidade”.</p><p>Após permanecer na prisão durante mais de dois anos, o Dr.</p><p>Constantino foi acometido por uma disenteria que pôs �m ao seu</p><p>sofrimento neste mundo. O processo, porém, prosseguiu contra o seu</p><p>corpo, que foi queimado publicamente no auto de fé que se seguiu.</p><p>A VIDA DE WILLIAM GARDINER</p><p>William Gardiner nasceu em Bristol, recebeu uma educação razoável e, na</p><p>idade adequada, foi colocado sob os cuidados de um comerciante chamado</p><p>Paget.</p><p>Aos 26 anos, foi enviado a Lisboa por seu mestre, para atuar como</p><p>representante comercial. Ali, dedicou-se ao estudo da língua portuguesa,</p><p>realizou seus negócios com assiduidade e e�ciência e comportou-se com a</p><p>mais envolvente afabilidade para com todas as pessoas por quem tivesse o</p><p>mínimo de consideração. Ele conversava reservadamente com alguns que</p><p>ele sabia serem protestantes zelosos e, ao mesmo tempo, evitava</p><p>cautelosamente causar a mínima ofensa a qualquer católico romano; até</p><p>então, ele não havia entrado em uma igreja papista.</p><p>O �lho do rei de Portugal e a Infanta da Espanha contraíram</p><p>matrimônio. No dia do casamento, o noivo, a noiva e toda a corte foram à</p><p>igreja catedral, frequentada por multidões de pessoas de todas as classes,</p><p>dentre elas William Gardiner, que �cou em pé durante toda a cerimônia e</p><p>�cou muito chocado com todas as superstições que viu.</p><p>A adoração errônea que ele vira não saía de sua mente. E �cou infeliz</p><p>por ver um país inteiro mergulhado em tal idolatria quando a verdade do</p><p>evangelho podia ser tão facilmente obtida. Diante disso, dedicou-se ao</p><p>irre�etido, embora louvável, desígnio de encabeçar uma reforma em</p><p>Portugal ou perecer na tentativa e determinou-se a sacri�car sua prudência</p><p>por seu zelo, embora tenha se tornado um mártir na ocasião.</p><p>Para esse �m, ele resolveu todos os seus assuntos mundanos, pagou suas</p><p>dívidas, encerrou seus registros e consignou suas mercadorias. No domingo</p><p>seguinte, foi novamente à igreja catedral com um Novo Testamento na mão</p><p>e se colocou perto do altar.</p><p>O rei e a corte logo apareceram, e um cardeal iniciou a missa. Na parte</p><p>da cerimônia em que o povo adora a hóstia, Gardiner não aguentou mais e,</p><p>saltando em direção ao cardeal, arrancou dele a hóstia e a pisoteou. Esse ato</p><p>surpreendeu toda a congregação; certa pessoa, puxando um punhal, feriu</p><p>Gardiner no ombro e, repetindo o golpe, o teria matado se o rei não lhe</p><p>houvesse apelado a desistir.</p><p>Gardiner foi levado diante do rei; o monarca lhe perguntou de que</p><p>nacionalidade ele era, ao que ele respondeu: “Sou inglês de nascimento,</p><p>protestante de religião e comerciante por ocupação. O que �z foi não por</p><p>desprezo à vossa real pessoa, Deus me livre disso, mas por honesta</p><p>indignação de ver as ridículas, supersticiosas e desagradáveis idolatrias</p><p>praticadas aqui”.</p><p>O rei, pensando que Gardiner havia sido estimulado por outra pessoa a</p><p>agir daquela maneira, perguntou quem o instigava, ao que este respondeu:</p><p>“Somente minha própria consciência. Eu não arriscaria o que �z por</p><p>qualquer homem vivo; devo isso e todos os outros serviços a Deus”.</p><p>Gardiner foi enviado à prisão, e uma ordem geral foi emitida para</p><p>prender todos os ingleses presentes em Lisboa. Essa ordem foi quase</p><p>totalmente executada (alguns escaparam), e muitas pessoas inocentes foram</p><p>torturadas para confessar se sabiam algo acerca do assunto. Uma pessoa, em</p><p>particular, que residia na mesma casa de Gardiner foi tratada com uma</p><p>barbárie ímpar para confessar algo que poderia lançar uma luz sobre o caso.</p><p>O próprio Gardiner foi, depois, atormentado da maneira mais</p><p>excruciante, mas, em meio a todos os seus tormentos, gloriou-se na ação.</p><p>Condenado à morte, uma grande fogueira foi acesa perto de uma armação</p><p>de madeira; Gardiner foi içado para a armação por meio de polias e, depois,</p><p>baixado perto do fogo, mas não tão perto a ponto de tocá-lo. Eles o</p><p>queimaram, ou melhor, assaram lentamente. Contudo, ele suportou seus</p><p>sofrimentos pacientemente e, com alegria, entregou sua alma ao Senhor.</p><p>Deve-se observar que algumas das fagulhas lançadas da fogueira (que</p><p>consumiu Gardiner) em direção ao porto queimaram um dos navios de</p><p>guerra do rei e causaram outros danos consideráveis. Logo após a morte de</p><p>Gardiner, todos os ingleses que haviam sido detidos naquela ocasião foram</p><p>dispensados, exceto a pessoa que residia na mesma casa com ele, que</p><p>permaneceu detida por dois anos até conseguir sua liberdade.</p><p>UM RELATO DA VIDA E DOS SOFRIMENTOS DO SR. WILLIAM LITHGOW,</p><p>UM ESCOCÊS</p><p>Esse cavalheiro era descendente de uma boa família e, dotado de uma</p><p>propensão natural para viagens. Quando muito jovem, percorreu as ilhas do</p><p>norte e do oeste; depois, visitou a França, a Alemanha, a Suíça e a Espanha.</p><p>Ele partiu para suas viagens no mês de março de 1609 e, primeiramente, foi</p><p>a Paris, onde �cou durante algum tempo. Depois, prosseguiu suas viagens</p><p>pela Alemanha e outras partes e, �nalmente, chegou a Málaga, na Espanha,</p><p>a sede de todos os seus infortúnios.</p><p>Durante sua residência ali, ele comprou com o capitão de um navio</p><p>francês sua passagem para Alexandria, mas foi impedido pelas</p><p>circunstâncias descritas a seguir. Na noite de 17 de outubro de 1620, a frota</p><p>inglesa, naquela época em uma incursão contra os corsários argelinos,</p><p>ancorou diante de Málaga, o que colocou as pessoas da cidade na maior</p><p>consternação por imaginarem serem turcos. Pela manhã, porém, o erro foi</p><p>descoberto e o governador de Málaga, percebendo a cruz da Inglaterra em</p><p>suas insígnias, embarcou no navio de Sir Robert Mansel, que comandava a</p><p>expedição, e retornou depois de algum tempo, pondo �m ao medo da</p><p>população local.</p><p>No dia seguinte, muitas pessoas a bordo da frota desembarcaram.</p><p>Dentre eles,</p><p>pelo secretário de Estado, o grande Cecil, Sua</p><p>Majestade lhe concedeu ser o prebendeiro de Shipton, na catedral de</p><p>Salisbury. De certo modo, isso lhe foi imposto, pois com di�culdade foi</p><p>persuadido a aceitar.</p><p>Em seu reassentamento na Inglaterra, dedicou-se a revisar e ampliar seu</p><p>admirável livro Martirologia. Com prodigiosas di�culdades e estudo</p><p>constante, ele terminou essa obra célebre em onze anos. Para maior</p><p>exatidão, ele escreveu à mão todas as linhas desse vasto livro e transcreveu</p><p>sozinho todos os registros e documentos. Porém, em consequência desse</p><p>trabalho excessivo, não deixando parte alguma de seu tempo sem estudo,</p><p>nem se permitindo o repouso ou a recreação que a natureza exigia, sua</p><p>saúde �cou tão debilitada e sua aparência tão des�gurada, que os amigos e</p><p>conhecidos que só conversavam com ele ocasionalmente mal conseguiam</p><p>reconhecê-lo.</p><p>Contudo, embora �casse mais exausto a cada dia, ele prosseguia em seus</p><p>estudos mais rapidamente do que nunca e não se deixava persuadir a</p><p>diminuir seus esforços costumeiros. Prevendo quão prejudicial à causa dos</p><p>papistas seria o relato de Foxe acerca dos erros e crueldades deles, estes</p><p>recorreram a todos os artifícios para diminuir a reputação de sua obra;</p><p>porém, a malícia deles serviu de sinal, tanto para o próprio Foxe quanto à</p><p>Igreja do Senhor como um todo, pois acabou tornando seu livro mais</p><p>intrinsecamente valioso ao induzi-lo a pesar, com a mais escrupulosa</p><p>atenção, a certeza dos fatos por ele registrados e a validade das fontes legais</p><p>das quais ele extraíra suas informações.</p><p>Porém, embora estivesse incansavelmente empenhado na promoção da</p><p>causa da verdade, não negligenciou os outros deveres de sua posição; ele era</p><p>caridoso, humano e atento às necessidades, tanto espirituais quanto</p><p>temporais, de seus próximos. Com o intuito de ser mais extensamente útil,</p><p>embora não tivesse desejo algum de cultivar para si a intimidade com os</p><p>ricos e os grandes, ele não recusou a amizade oferecida por pessoas de um</p><p>escalão mais elevado e nunca deixou de empregar a sua in�uência junto a</p><p>eles em favor dos pobres e necessitados. Em consequência de sua</p><p>reconhecida probidade e caridade, era frequentemente presenteado, por</p><p>pessoas ricas, com quantidades de dinheiro que ele aceitava e distribuía</p><p>entre os angustiados. Ocasionalmente, também comparecia à mesa de seus</p><p>amigos, não tanto por prazer, mas por civilidade e para convencê-los de que</p><p>sua ausência não era ocasionada por medo de ser exposto às tentações do</p><p>apetite. Em suma, seu caráter como homem e como cristão era</p><p>irrepreensível.</p><p>Embora a lembrança recente das perseguições sob a sanguinária rainha</p><p>Mary houvesse dado amargor à sua escrita, é singular notar que,</p><p>pessoalmente, ele era o mais conciliador dos homens e, embora repudiasse</p><p>sinceramente a Igreja Romana em que nasceu, foi um dos primeiros a</p><p>esforçar-se para buscar a concórdia dos irmãos protestantes. De fato, ele era</p><p>um verdadeiro apóstolo da tolerância. Quando, em 1563, a praga ou peste</p><p>eclodiu na Inglaterra e muitos abandonaram seus trabalhos, Foxe</p><p>permaneceu em seu posto, ajudando os que não tinham amigos e atuando</p><p>como distribuidor das esmolas dos ricos. Dizia-se que ele jamais recusaria</p><p>ajuda a quem a pedisse em nome de Cristo. Tolerante e generoso, ele</p><p>exerceu sua in�uência junto à rainha Elizabeth para con�rmar a intenção</p><p>dela de não manter a prática cruel de mandar matar quem tivesse</p><p>convicções religiosas con�itantes. A rainha o respeitava e se referia a ele</p><p>como “Nosso Pai Foxe”.</p><p>Foxe se alegrou com os frutos de sua obra quando ainda vivo. Ela passou</p><p>por quatro grandes edições antes de ele falecer, e os bispos ordenaram que</p><p>ela fosse colocada em todas as catedrais da Inglaterra, onde frequentemente</p><p>era acorrentada a um púlpito — como ocorria com a Bíblia naqueles</p><p>tempos — para que as pessoas tivessem acesso a elas.</p><p>Por �m, após servir durante longo tempo à Igreja e ao mundo por meio</p><p>de seu ministério, por sua escrita e pelo brilho imaculado de uma vida</p><p>benevolente, útil e santa, entregou mansamente sua alma a Cristo no dia 18</p><p>de abril de 1587, aos 70 anos. Ele foi sepultado na capela-mor de St. Giles,</p><p>em Cripplegate, de cuja paróquia, durante algum tempo, ele havia sido</p><p>vigário, no início do reinado de Elizabeth.</p><p>Capítulo 1</p><p>História dos mártires cristãos até as</p><p>primeiras perseguições gerais sob o</p><p>governo de Nero</p><p>No evangelho de Mateus, Cristo, o nosso Salvador, ouvindo a con�ssão</p><p>de Simão Pedro, que, antes de todos os outros, reconheceu abertamente que</p><p>Ele era o Filho de Deus, e percebendo naquilo a mão secreta de Seu Pai,</p><p>chamou-o (como alusão ao seu nome) uma pedra sobre a qual Ele edi�caria</p><p>a Sua Igreja de maneira tão sólida que as portas do inferno não</p><p>prevaleceriam contra ela. Nessas palavras, três coisas devem ser observadas:</p><p>primeiro, Cristo terá uma Igreja neste mundo. Segundo, essa Igreja será</p><p>fortemente atacada, não somente pelo mundo, mas também pelas forças e</p><p>poderes extremos de todo o inferno. E terceiro, a despeito do extremo</p><p>empenho do diabo e de toda a sua malignidade, essa mesma Igreja</p><p>continuará a existir.</p><p>Vemos essas palavras de Cristo con�rmarem-se maravilhosamente, de tal</p><p>modo que todo o curso da Igreja até hoje parece ser nada mais do que uma</p><p>con�rmação dessa referida profecia. Primeiro, Cristo ter estabelecido uma</p><p>Igreja não necessita de declaração. Segundo, quanto poder de príncipes,</p><p>reis, monarcas, governadores e governantes deste mundo, com seus súditos,</p><p>pública e privadamente, com toda sua força e astúcia, inclinaram-se contra</p><p>essa Igreja! E, terceiro, como a referida Igreja, a despeito de tudo isso, ainda</p><p>resistiu e se manteve! É maravilhoso observar as tormentas e tempestades</p><p>pelas quais ela passou, para cuja declaração mais evidente abordei esses</p><p>fatos, com o intuito primeiro de que as maravilhosas obras de Deus em Sua</p><p>Igreja possam aparecer para Sua glória; e também de que a continuidade e</p><p>os procedimentos da Igreja, sendo anunciados de tempos em tempos,</p><p>possam redundar em mais conhecimento e experiência, para benefício do</p><p>leitor e edi�cação da fé cristã.</p><p>Como não nos cabe ampliar a história do nosso Salvador, quer antes ou</p><p>depois da Sua cruci�cação, só consideraremos necessário lembrar os nossos</p><p>leitores do desconforto dos judeus por Sua subsequente ressurreição.</p><p>Embora um apóstolo o houvesse traído, embora outro o houvesse negado</p><p>sob a solene sanção de um juramento e embora os demais o houvessem</p><p>abandonado, talvez podendo-se excetuar “o discípulo que era conhecido do</p><p>sumo sacerdote” (João 18:16), a história de Sua ressurreição deu uma nova</p><p>direção ao coração de todos eles e, após a ação do Espírito Santo, transmitiu</p><p>nova con�ança à mente deles. Os poderes com que foram revestidos os</p><p>encorajavam a proclamar o nome de Jesus, para confusão dos governantes</p><p>judeus e espanto dos prosélitos gentios.</p><p>1. ESTÊVÃO</p><p>Na sequência, Estêvão foi o próximo a sofrer. Sua morte foi ocasionada pela</p><p>�delidade com a qual pregava o evangelho aos traidores e assassinos de</p><p>Cristo. Eles atingiram tal grau de loucura que o expulsaram da cidade e o</p><p>apedrejaram até a morte. Em geral, supõe-se que seu sofrimento tenha</p><p>ocorrido na Páscoa que se seguiu à da cruci�cação do nosso Senhor e à</p><p>época de Sua ascensão, na primavera seguinte.</p><p>Como consequência, uma grande perseguição irrompeu contra todos os</p><p>que professavam crer em Cristo como o Messias ou como profeta. Lucas</p><p>relata que imediatamente “levantou-se grande perseguição contra a igreja</p><p>em Jerusalém; e todos, exceto os apóstolos, foram dispersos pelas regiões da</p><p>Judeia e Samaria” (Atos 8:1).</p><p>Cerca de 2.000 cristãos, com Nicanor, um dos sete diáconos, sofreram</p><p>martírio durante a “tribulação que sobreveio a Estêvão” (Atos 11:19).</p><p>2. TIAGO, O GRANDE</p><p>Na história dos Atos dos Apóstolos, o próximo mártir que encontramos,</p><p>conforme Lucas, foi Tiago, �lho de Zebedeu, irmão mais velho de João e</p><p>parente do nosso Senhor, visto que sua mãe, Salomé, era prima em primeiro</p><p>grau de Maria [mãe de Jesus]. Esse segundo martírio ocorreu</p><p>várias bem conhecidas pelo sr. Lithgow, que, após</p><p>cumprimentos recíprocos, passaram alguns dias juntos em festividades e nas</p><p>diversões da cidade. Então, convidaram o sr. Lithgow para ir a bordo e</p><p>prestar suas homenagens ao almirante. Ele aceitou o convite, foi</p><p>gentilmente recebido pelo o�cial e permaneceu até o dia seguinte, quando a</p><p>frota partiu. O almirante teria, de bom grado, levado o sr. Lithgow consigo</p><p>para Argel; este, porém, havendo contratado sua passagem para Alexandria,</p><p>e sua bagagem etc. estando na cidade, não pôde aceitar a oferta.</p><p>Assim que chegou à terra �rme, o sr. Lithgow seguiu em direção ao seu</p><p>alojamento por um caminho particular (porque embarcaria na mesma noite</p><p>para Alexandria) quando, ao passar por uma rua estreita e desabitada, foi</p><p>repentinamente cercado por nove sargentos, ou o�ciais, que jogaram uma</p><p>capa preta sobre ele e o levaram à força à casa do governador. Após algum</p><p>tempo, o governador apareceu quando Lithgow implorou sinceramente que</p><p>pudesse ser informado da causa de um tratamento tão violento. O</p><p>governador respondeu apenas balançando a cabeça e ordenou que o</p><p>prisioneiro fosse vigiado atentamente até que ele (o governador) voltasse de</p><p>suas devoções, instruindo, ao mesmo tempo, que o capitão da cidade, o</p><p>prefeito-mor e o tabelião da cidade fossem convocados a comparecer em</p><p>seu interrogatório e que tudo aquilo fosse feito com o máximo sigilo, para</p><p>impedir que a informação chegasse aos ouvidos dos comerciantes ingleses</p><p>que lá residiam.</p><p>Essas ordens foram cumpridas rigorosamente e, ao retornar, o</p><p>governador e os o�ciais se sentaram, e o sr. Lithgow foi levado diante deles</p><p>para interrogatório. O governador começou fazendo várias perguntas, a</p><p>saber, de que país ele era, para onde seguia e quanto tempo fazia que estava</p><p>na Espanha. Após responder a essas e outras perguntas, o prisioneiro foi</p><p>conduzido a um cubículo onde, após pouco tempo, foi visitado pelo</p><p>capitão da cidade, que perguntou se ele já havia estado em Sevilha ou se</p><p>tinha vindo de lá recentemente; e, dando tapinhas em suas bochechas com</p><p>ar de amizade, conjurou-o a dizer a verdade: “Porque”, disse ele, “seu</p><p>próprio semblante mostra que há alguma coisa oculta em sua mente, que a</p><p>prudência deve orientá-lo a divulgar”. Vendo-se, porém, incapaz de extrair</p><p>qualquer coisa do prisioneiro, deixou-o e relatou o mesmo ao governador e</p><p>aos outros o�ciais. Com isso, o sr. Lithgow foi novamente levado à presença</p><p>deles, uma acusação geral foi feita contra ele e foi obrigado a jurar que daria</p><p>respostas verdadeiras às perguntas que lhe fossem feitas.</p><p>O governador passou a investigar a índole do comandante inglês e a</p><p>opinião do prisioneiro acerca dos motivos que o impediram de aceitar um</p><p>convite do governador para desembarcar. De semelhante modo, exigiu os</p><p>nomes dos capitães ingleses da esquadra e que conhecimento ele tinha do</p><p>embarque, ou da preparação para ela, antes de sua partida da Inglaterra. As</p><p>respostas dadas às várias perguntas feitas foram registradas por escrito pelo</p><p>tabelião, mas o grupo pareceu surpreso quando ele negou qualquer</p><p>conhecimento acerca do equipamento da frota — particularmente o</p><p>governador, que disse que ele havia mentido, que ele era um traidor e</p><p>espião, vindo diretamente da Inglaterra para favorecer e ajudar os projetos</p><p>arquitetados contra a Espanha e que estava em Sevilha havia nove meses</p><p>com o objetivo de obter informações acerca da época em que a marinha</p><p>espanhola deveria chegar das Índias. Eles esbravejaram contra a</p><p>familiaridade dele com os o�ciais da frota e com muitos outros cavalheiros</p><p>ingleses, entre os quais, disseram eles, haviam ocorrido cortesias incomuns,</p><p>mas todos esses comportamentos haviam sido cuidadosamente percebidos.</p><p>Além disso, para resumir tudo e colocar a verdade acima de qualquer</p><p>dúvida, eles disseram que Lithgow viera de um conselho de guerra,</p><p>realizado naquela manhã a bordo do navio do almirante, com o intuito de</p><p>pôr em ação as ordens a ele atribuídas. Eles o repreenderam por haver</p><p>ajudado no incêndio da ilha de St. omas, nas Índias Ocidentais.</p><p>“Portanto”, disseram eles, “não se deve acreditar no que esses luteranos e</p><p>�lhos do diabo dizem ou juram”.</p><p>A tortura de William Lithgow nas masmorras da Inquisição em Málaga em 1620,</p><p>xilogravura por W. Raddon e depois Craig.</p><p>Em vão, o sr. Lithgow se esforçou por evitar todas as acusações feitas</p><p>contra ele e obter o crédito de seus juízes preconceituosos. Pediu permissão</p><p>para mandar buscar a bolsa que continha os seus papéis e poderia servir</p><p>para demonstrar a sua inocência. Eles atenderam a esse pedido, pensando</p><p>que descobririam algumas coisas que não sabiam. A bolsa foi trazida e, ao</p><p>ser aberta, foi encontrada, entre outras coisas, uma licença assinada pelo rei</p><p>James I estabelecendo a intenção do portador de viajar para o Egito, a qual</p><p>foi tratada pelos arrogantes espanhóis com grande desprezo. Os outros</p><p>documentos consistiam em passaportes e testemunhos de pessoas</p><p>importantes. Todas essas credenciais, porém, pareciam mais con�rmar do</p><p>que reduzir as suspeitas daqueles juízes preconceituosos que, após</p><p>apreenderem todos os documentos do prisioneiro, ordenaram que ele se</p><p>retirasse novamente.</p><p>Enquanto isso, foi realizada uma consulta para estabelecer o local onde o</p><p>prisioneiro deveria ser con�nado. O prefeito, ou juiz principal, foi favorável</p><p>a colocá-lo na prisão da cidade; isso, porém, foi objetado, principalmente</p><p>pelo corregedor, que disse em espanhol: “Para evitar que o conhecimento</p><p>do seu con�namento chegue aos seus compatriotas, eu me ocuparei</p><p>pessoalmente do assunto e serei responsável pelas consequências”. Ficou,</p><p>assim, acordado que ele deveria ser con�nado na casa do governador, sob o</p><p>maior sigilo.</p><p>Resolvido esse assunto, um dos sargentos foi até o sr. Lithgow e pediu</p><p>seu dinheiro, com liberdade para revistá-lo. Por ser inútil resistir, o</p><p>prisioneiro obedeceu silenciosamente. Então, o sargento (após esvaziar 11</p><p>ducados25 de seus bolsos) o deixou somente de camisa e, vasculhando as</p><p>calças, encontrou, presas à cintura, duas bolsas de lona contendo 137 peças</p><p>de ouro. O sargento levou imediatamente o dinheiro ao corregedor, que,</p><p>após contar tudo, ordenou que ele vestisse o prisioneiro e o tranca�asse até</p><p>após a ceia.</p><p>Por volta da meia-noite, o sargento e dois escravos turcos libertaram o</p><p>sr. Lithgow de seu con�namento, mas para levá-lo a um ainda mais</p><p>horrível. Eles o conduziram por várias passagens até uma câmara em uma</p><p>parte remota do palácio, voltada para o jardim, onde o puseram a ferros e</p><p>afastaram suas pernas com uma barra de ferro de mais de um metro de</p><p>comprimento, tão pesada que ele não conseguia �car de pé, nem sentar,</p><p>sendo obrigado a �car continuamente deitado de costas. Eles o deixaram</p><p>nessa condição durante algum tempo, até que retornaram com uma</p><p>quantidade de alimentos, consistindo em meio quilo de carne de carneiro</p><p>cozida e um pão, juntamente com uma pequena quantidade de vinho.</p><p>Aquela foi não apenas a primeira, e sim a melhor e a última refeição do</p><p>gênero durante seu con�namento naquele lugar. Após entregar aquelas</p><p>provisões, o sargento trancou a porta e deixou o sr. Lithgow a sós.</p><p>No dia seguinte, ele foi visitado pelo governador, que lhe prometeu a</p><p>liberdade, com muitas outras vantagens, se confessasse ser um espião;</p><p>porém, ao responder que era totalmente inocente, o governador saiu irado,</p><p>dizendo: “Ele não me verá mais enquanto não for obrigado a confessar por</p><p>meio de tormentos adicionais”. Assim, ordenou ao carcereiro, a cujos</p><p>cuidados ele havia sido entregue, que não permitisse ninguém ter acesso ou</p><p>comunicação com ele, que seu sustento não excedesse a 85 gramas de pão</p><p>mofado e meio litro de água a cada dois dias e que ele não tivesse cama,</p><p>travesseiro ou cobertor. “Bloqueie”, disse o governador, “a janela desse</p><p>cômodo com cal e pedra, feche os buracos da porta com barreiras duplas;</p><p>que ele nada tenha de semelhante a conforto”. Essas e várias ordens de</p><p>severidade equivalente foram dadas para impossibilitar que a sua condição</p><p>fosse conhecida pelos ingleses.</p><p>Naquele estado desgraçado e melancólico,</p><p>o pobre Lithgow continuou</p><p>sem ver pessoa alguma durante vários dias, tempo em que o governador</p><p>recebeu de Madri uma resposta a uma carta que ele havia escrito, referente</p><p>ao prisioneiro. Em conformidade com as instruções que lhe foram dadas,</p><p>começou a pôr em prática as crueldades inventadas, que foram aceleradas</p><p>visto que as festas do Natal se aproximavam. Já era o quadragésimo sétimo</p><p>dia desde a prisão de Lithgow.</p><p>Por volta das duas horas da manhã, sem dormir há duas noites, ele</p><p>ouviu o ruído de uma carruagem na rua e, algum tempo depois, a abertura</p><p>das portas da prisão; fome, dor e re�exões melancólicas o haviam impedido</p><p>de ter qualquer repouso.</p><p>Pouco depois de as portas da prisão serem abertas, os nove sargentos que</p><p>o haviam prendido inicialmente entraram no local onde ele estava e, sem</p><p>dizer qualquer palavra, conduziram-no a ferros pela casa até a rua, onde</p><p>uma carruagem aguardava. Eles o deitaram no fundo dela, de costas,</p><p>incapaz de sentar-se. Dois dos sargentos seguiram com ele e os demais</p><p>caminharam ao lado da carruagem, todos no mais profundo silêncio. Eles o</p><p>levaram a uma prensa de uvas a cerca de cinco quilômetros da cidade, para</p><p>onde um pelourinho já havia sido transportado secretamente, e ali eles o</p><p>tranca�aram naquela noite.</p><p>Ao amanhecer do dia seguinte, chegaram o governador e o prefeito, para</p><p>cuja presença o sr. Lithgow foi imediatamente levado para outro</p><p>interrogatório. O prisioneiro desejou ter um intérprete, o que era permitido</p><p>a estrangeiros pelas leis daquele país, mas isso lhe foi negado; também não</p><p>lhe permitiram que apelasse a Madri, o tribunal superior do judiciário.</p><p>Após longo interrogatório, que durou da manhã até a noite, transpareceu</p><p>em todas as suas respostas uma conformidade tão exata com o que ele havia</p><p>dito antes, que eles declararam que ele as havia aprendido de cor, por não</p><p>haver a menor divergência. Eles, porém, o pressionaram novamente a</p><p>revelar tudo, isto é, autoacusar-se de crimes jamais cometidos, com o</p><p>governador acrescentando: “Você ainda está sob o meu poder; eu posso</p><p>libertá-lo se você obedecer — caso contrário, deverei entregá-lo ao</p><p>prefeito”. Devido ao sr. Lithgow ainda persistir em sua inocência, o</p><p>governador ordenou que o tabelião elaborasse um mandado para entregá-lo</p><p>ao prefeito, para ser torturado.</p><p>Em consequência disso, ele foi conduzido pelos sargentos até o �nal de</p><p>uma galeria de pedra, onde o pelourinho havia sido colocado. O carrasco</p><p>arrancou imediatamente os seus grilhões, o que lhe causou grandes dores.</p><p>Os ferrolhos estavam tão ajustados que a marreta arrancou quase um</p><p>centímetro e meio de seu calcanhar ao forçar a saída do ferrolho; a angústia</p><p>daquilo, juntamente com seu estado de fraqueza (ele estava sem sustento</p><p>algum havia três dias), levaram-no a gemer amargamente. Sobre isso, o</p><p>impiedoso prefeito disse: “Vilão, traidor, isso é apenas um presságio do que</p><p>você suportará”.</p><p>Quando os ferros foram removidos, ele caiu de joelhos, proferindo uma</p><p>breve oração: que Deus se agradasse em permitir que ele fosse �rme e</p><p>sofresse corajosamente a dura provação que teria de enfrentar. O prefeito e</p><p>o tabelião se instalaram em cadeiras. O sr. Lithgow foi despido e preso no</p><p>pelourinho. Aqueles cavalheiros estavam ali para testemunhar e anotar as</p><p>con�ssões e as torturas sofridas pelo delinquente.</p><p>É impossível descrever todas as diversas torturas que lhe foram</p><p>in�igidas. Basta dizer que �cou no pelourinho durante mais de cinco horas,</p><p>durante as quais sofreu mais de 60 diferentes tipos de torturas da natureza</p><p>mais infernal. Se eles tivessem continuado durante mais alguns minutos,</p><p>inevitavelmente ele teria perecido.</p><p>Estando os cruéis perseguidores satisfeitos naquele momento, o</p><p>prisioneiro foi retirado do pelourinho, os grilhões foram novamente</p><p>colocados, e ele foi conduzido à sua antiga masmorra, não havendo</p><p>recebido outro alimento além de um pouco de vinho quente, que não lhe</p><p>foi dado por qualquer princípio de caridade ou compaixão, e sim para</p><p>impedir sua morte e conservá-lo para futuras punições.</p><p>Como con�rmação disso, foram dadas ordens para que uma carruagem</p><p>passasse pela prisão todas as madrugadas, para que o barulho produzido por</p><p>ela pudesse causar novo terror e alarme ao infeliz prisioneiro e privá-lo de</p><p>toda possibilidade de obter o mínimo repouso.</p><p>Ele continuou nessa situação horrível, quase morrendo de fome pela</p><p>falta das necessidades comuns para preservar a sua miserável existência, até</p><p>o dia de Natal, quando recebeu algum alívio de Mariane, serviçal da esposa</p><p>do governador. Obtendo permissão para visitá-lo, essa mulher levou</p><p>consigo alguns mantimentos, que consistiam em mel, açúcar, uvas passas e</p><p>outros itens, e �cou tão abalada ao ver a situação dele, que chorou</p><p>amargamente e, ao partir, expressou a maior consternação por não poder</p><p>prestar-lhe mais assistência.</p><p>O pobre sr. Lithgow foi mantido naquela prisão repugnante até quase</p><p>ser devorado por vermes. Eles rastejavam por sua barba, lábios, sobrancelhas</p><p>etc., de modo que ele mal conseguia abrir os olhos, e sua morti�cação foi</p><p>ampliada por não poder usar as mãos ou as pernas para se defender, por</p><p>estar tão miseravelmente mutilado pelas torturas. O governador foi tão</p><p>cruel que até ordenou que os vermes fossem varridos para cima dele duas</p><p>vezes a cada oito dias. Ele, porém, foi um pouco mitigado dessa parte de</p><p>sua punição devido à humanidade de um escravo turco que o assistiu, o</p><p>qual, quando conseguia fazê-lo com segurança, eliminava os vermes e lhe</p><p>levava todo alimento que conseguia.</p><p>Desse escravo, o sr. Lithgow acabou recebendo informações que lhe</p><p>deram poucas esperanças de ser liberto algum dia; pelo contrário, ele</p><p>deveria terminar sua vida sob novas torturas. O teor dessa informação era</p><p>que um padre do seminário inglês e um tanoeiro escocês haviam trabalhado</p><p>durante algum tempo para o governador, traduzindo do idioma inglês para</p><p>o espanhol todos os seus livros e observações, e que, na casa do governador,</p><p>era comum dizer que o sr. Lithgow era um arqui-herege. Essa informação o</p><p>alarmou bastante e ele começou, com razão, a temer que eles logo o</p><p>exterminariam, principalmente por não conseguirem, por tortura ou</p><p>qualquer outro meio, fazê-lo contradizer o que havia dito o tempo todo nos</p><p>diferentes interrogatórios.</p><p>Dois dias depois de ter recebido essas informações, o governador, um</p><p>inquisidor e um sacerdote canônico, acompanhados por dois jesuítas,</p><p>entraram em sua masmorra e, sentados, após várias perguntas inúteis, o</p><p>inquisidor perguntou ao sr. Lithgow se ele era católico romano e reconhecia</p><p>a supremacia do papa. Ele respondeu que nem uma coisa, nem outra,</p><p>acrescentando que estava surpreso por aquilo lhe ser perguntado, uma vez</p><p>que os artigos de paz entre a Inglaterra e a Espanha estipulavam</p><p>expressamente que nenhum dos súditos ingleses seria sujeitado à Inquisição</p><p>ou, de qualquer maneira, molestado por ela devido à divergência religiosa</p><p>etc. Na amargura de sua alma, ele fez uso de algumas expressões calorosas,</p><p>inadequadas às suas circunstâncias: “Vocês quase me mataram”, disse, “por</p><p>falsa traição e, agora, pretendem tornar-me um mártir por minha religião”.</p><p>Também censurou o governador pela má retribuição ao rei da Inglaterra (de</p><p>quem ele era súdito) pela principesca humanidade com que os espanhóis</p><p>foram tratados em 1588, quando sua armada naufragou na costa escocesa e</p><p>milhares de espanhóis encontraram alívio, que, de outro modo, teriam</p><p>morrido miseravelmente.</p><p>O governador admitiu ser verdade o que o sr. Lithgow disse, mas</p><p>respondeu com um ar altivo que o rei, que então governava somente a</p><p>Escócia, fora movido mais por medo do que por amor e, portanto, não</p><p>merecia qualquer agradecimento. Um dos jesuítas disse que não havia fé a</p><p>ser mantida com hereges. O inquisidor, levantando-se, dirigiu-se ao sr.</p><p>Lithgow com as seguintes palavras: “Você foi considerado espião, acusado</p><p>de traição e torturado, como reconhecemos, inocentemente (é o que parece</p><p>pelo relato recentemente recebido de Madri acerca das intenções dos</p><p>ingleses); contudo, foi o poder divino que trouxe esses julgamentos</p><p>sobre</p><p>você, por ridicularizar presunçosamente o bendito milagre de Loreto e, em</p><p>seus escritos, expressar-se irreverentemente a sua santidade, o grande agente</p><p>e vigário de Cristo na Terra. Portanto, você caiu justamente em nossas mãos</p><p>por sua especial designação: seus livros e documentos são milagrosamente</p><p>traduzidos por auxílio da Providência, in�uenciando seus próprios</p><p>compatriotas”.</p><p>Terminada essa falácia, eles deram ao prisioneiro oito dias para</p><p>considerar e decidir se ele se converteria à religião deles; o inquisidor lhe</p><p>disse que, durante esse período, ele, juntamente com outras ordens</p><p>religiosas, compareceria para ajudá-lo da maneira que ele desejasse. Um dos</p><p>jesuítas disse (primeiramente fazendo o sinal da cruz sobre o peito): “Meu</p><p>�lho, veja, você merece ser queimado vivo; mas, pela graça de nossa senhora</p><p>de Loreto, contra quem você blasfemou, nós salvaremos a sua alma e o seu</p><p>corpo”.</p><p>Pela manhã, o inquisidor retornou com outros três eclesiásticos. O</p><p>primeiro perguntou ao prisioneiro que di�culdades havia em sua</p><p>consciência que retardavam a sua conversão, ao que ele respondeu que “não</p><p>havia dúvida alguma em sua mente, estando con�ante nas promessas de</p><p>Cristo e crendo com segurança em Sua vontade revelada, signi�cada nos</p><p>evangelhos, conforme professado na Igreja Católica reformada, sendo</p><p>con�rmado pela graça e tendo, por isso, infalível garantia da fé cristã”. A</p><p>essas palavras, o inquisidor respondeu: “Você não é cristão, e sim um</p><p>tremendo herege, não convertido e membro da perdição”. O prisioneiro lhe</p><p>disse, então, que não era consistente com a natureza e a essência da religião</p><p>e da caridade convencer por humilhantes discursos, torturas e tormentos, e</p><p>sim por argumentos advindos das Escrituras, e que, com ele, todos os</p><p>outros métodos seriam totalmente ine�cazes.</p><p>O inquisidor �cou tão enfurecido com as respostas do prisioneiro, que o</p><p>golpeou no rosto, usou muitos discursos abusivos e tentou esfaqueá-lo, o</p><p>que certamente teria feito se não fosse impedido pelos jesuítas. A partir</p><p>daquele momento, nunca mais visitou o prisioneiro.</p><p>No dia seguinte, os dois jesuítas voltaram e, com ar muito severo e</p><p>arrogante, o superior lhe perguntou qual decisão havia tomado, ao que o sr.</p><p>Lithgow respondeu que já estava decidido, a menos que o superior</p><p>conseguisse apresentar motivos substanciais para fazê-lo mudar de opinião.</p><p>Após uma pedante exibição de seus sete sacramentos, a intercessão dos</p><p>santos, a transubstanciação etc., o superior se vangloriou grandemente de</p><p>sua Igreja, sua antiguidade, universalidade e uniformidade; todas as quais o</p><p>sr. Lithgow negou, dizendo: “Porque a minha pro�ssão de fé existe desde os</p><p>primeiros dias dos apóstolos, e Cristo sempre teve Sua própria Igreja (ainda</p><p>que obscura) no maior momento das suas trevas”.</p><p>Vendo que seus argumentos não haviam surtido o efeito desejado, que</p><p>tormentos não conseguiam abalar a constância do sr. Lithgow, nem mesmo</p><p>o medo da sentença cruel que ele tinha motivos para esperar ser</p><p>pronunciada e executada sobre ele, os jesuítas o deixaram após fortes</p><p>ameaças. Oito dias depois, o último da Inquisição que realizariam, quando</p><p>a sentença seria pronunciada, eles voltaram novamente; porém, bastante</p><p>alterados tanto em palavras quanto em comportamento, após repetir boa</p><p>parte do mesmo tipo de argumentos anteriores, com aparentes lágrimas nos</p><p>olhos �ngiram sentir pena, de coração, por ele ser obrigado a sofrer uma</p><p>morte terrível, mas, acima de tudo, pela perda de sua alma mais preciosa; e,</p><p>caindo de joelhos, clamaram: “Converta-se, converta-se, ó querido irmão,</p><p>por nossa bendita senhora, converta-se!” —, ao que o prisioneiro</p><p>respondeu: “Não temo a morte, nem o fogo, estando preparado para os</p><p>dois”.</p><p>O primeiro efeito sentido pelo sr. Lithgow da determinação daquele</p><p>tribunal sangrento foi a sentença para ser, naquela noite, torturado de 11</p><p>diferentes maneiras e, se não morresse na aplicação delas (o que seria</p><p>razoavelmente esperado dada a condição mutilada e desarticulada em que</p><p>ele se encontrava), depois dos santos dias da Páscoa ser levado a Granada e</p><p>queimado até virar cinzas. A primeira parte desta sentença foi executada</p><p>com grande barbárie naquela noite; e aprouve a Deus dar-lhe força no</p><p>corpo e na mente para permanecer �rme na verdade e sobreviver aos</p><p>terríveis castigos in�igidos a ele. Após aqueles bárbaros se saciarem naquele</p><p>momento, aplicando ao infeliz prisioneiro as mais diferentes crueldades,</p><p>colocaram-lhe novamente os grilhões e o levaram para a sua antiga</p><p>masmorra.</p><p>Na manhã seguinte, ele recebeu um pouco de conforto do escravo turco</p><p>mencionado anteriormente, que lhe trouxe secretamente, na manga da</p><p>camisa, algumas passas e �gos, que ele lambeu da melhor maneira que suas</p><p>forças permitiram. Foi a ele que o sr. Lithgow atribuiu sua sobrevivência</p><p>durante tanto tempo em uma situação tão miserável, pois esse escravo</p><p>encontrou meios de lhe entregar algumas daquelas frutas duas vezes por</p><p>semana. É muito extraordinário, e digno de nota, que esse pobre escravo,</p><p>criado desde a infância segundo as máximas de seu profeta e seus pais, com</p><p>o maior desprezo pelos cristãos, ter sido tão afetado pela miserável situação</p><p>do sr. Lithgow a ponto de �car doente e continuar assim durante mais de</p><p>40 dias. Nesse período, o sr. Lithgow foi assistido por uma escrava negra,</p><p>que encontrou meios de fornecer-lhe alimentos em maior quantidade do</p><p>que o turco, ambientada à casa e à família. Todos os dias, ela lhe levava</p><p>alguns mantimentos e um pouco de vinho em uma garrafa.</p><p>Já havia se passado tanto tempo e a horrível situação era tão</p><p>verdadeiramente repugnante que o sr. Lithgow ansiava pelo dia que,</p><p>chegando sua vida ao �m, também acabariam os seus tormentos. Porém,</p><p>pela interposição da Providência, suas expectativas melancólicas foram</p><p>felizmente abortadas e sua libertação, obtida nas circunstâncias descritas a</p><p>seguir.</p><p>Ocorreu que um �no cavalheiro espanhol foi de Granada para Málaga.</p><p>O governador o convidou a encontrar-se com ele e lhe contou o que havia</p><p>acontecido ao sr. Lithgow desde a sua detenção como espião descrevendo os</p><p>vários sofrimentos por ele suportados. De semelhante modo, disse que,</p><p>após saber-se que o prisioneiro era inocente, �cou muito preocupado. Por</p><p>ser assim, ele o haveria libertado de boa vontade, restituído seu dinheiro e</p><p>seus documentos e feito alguma expiação pelos ferimentos recebidos.</p><p>Porém, após veri�carem seus escritos, vários foram considerados muito</p><p>blasfemos, re�etindo muito acerca da religião deles, de modo que,</p><p>recusando-se a abjurar aquelas opiniões heréticas, Lithgow havia sido</p><p>entregue à Inquisição, por quem foi �nalmente condenado.</p><p>Enquanto o governador contava essa trágica história, um jovem</p><p>�amengo (servo do cavalheiro espanhol) que servia à mesa foi tomado de</p><p>assombro e compaixão devido aos sofrimentos in�igidos ao estrangeiro. Ao</p><p>voltar para o alojamento de seu senhor, começou a revolver em sua mente o</p><p>que ouvira, o que lhe deixou tão impressionado que não conseguia</p><p>descansar em sua cama. Em seus breves cochilos, sua imaginação mostrava-</p><p>lhe a pessoa descrita, no pelourinho e queimando na fogueira. Ele passou a</p><p>noite nessa ansiedade; quando a manhã chegou, sem revelar suas intenções</p><p>a pessoa alguma, entrou na cidade e perguntou por um comerciante inglês.</p><p>Indicaram-lhe a casa de um certo sr. Wild, a quem ele relatou tudo que</p><p>ouvira na noite anterior, na conversa entre seu senhor e o governador, mas</p><p>não sabia dizer o nome do prisioneiro. O sr. Wild, porém, conjeturou ser o</p><p>sr. Lithgow, lembrando-se da circunstância de ser um viajante e de tê-lo</p><p>conhecido de passagem.</p><p>Quando o servo �amengo partiu, o sr. Wild enviou imediatamente aos</p><p>outros comerciantes ingleses com quem se relacionava todos os detalhes</p><p>referentes ao seu infeliz compatriota. Após uma breve consulta, foi</p><p>acordado que uma informação acerca de todo o caso deveria ser enviada,</p><p>por via expressa, a Sir Walter Aston, embaixador inglês junto ao rei da</p><p>Espanha, que estava em Madri. Isso foi feito e o embaixador, havendo</p><p>apresentado um memorial ao rei e ao conselho</p><p>da Espanha, obteve uma</p><p>ordem de soltura do sr. Lithgow e sua entrega ao comerciante inglês. Essa</p><p>ordem foi dirigida ao governador de Málaga e recebida com grande aversão</p><p>e surpresa por toda a assembleia da sangrenta Inquisição.</p><p>O sr. Lithgow foi libertado de seu con�namento na véspera do domingo</p><p>de Páscoa, quando foi carregado de sua masmorra nas costas do escravo que</p><p>o atendeu, para a casa do senhor Bosbich, onde todos os confortos</p><p>adequados foram fornecidos a ele. Felizmente aconteceu que naquele</p><p>momento havia uma esquadra de navios ingleses vindo naquela direção,</p><p>comandado por Sir Richard Hawkins, que, informado dos sofrimentos</p><p>passados e da situação atual do sr. Lithgow, chegou no dia seguinte na</p><p>praia, e, com proteção adequada, o comandante o recebeu do comerciante.</p><p>Assim, o sr. Lithgow foi imediatamente transportado em cobertores e</p><p>levado a bordo do Vanguard. Três dias depois, ele foi removido para outro</p><p>navio, por orientação do general Sir Robert Mansel, que ordenou que ele</p><p>tivesse os devidos cuidados. O responsável o presenteou com roupas e todas</p><p>as provisões necessárias, além das quais lhe deram 200 reais em prata; e Sir</p><p>Richard Hawkins enviou-lhe duas pistolas duplas. Antes de partir da costa</p><p>espanhola, Sir Richard Hawkins exigiu a entrega de seus documentos,</p><p>dinheiro, livros etc., mas não conseguiu obter uma resposta satisfatória</p><p>nesse sentido.</p><p>Não podemos deixar de fazer aqui uma pausa para re�etir sobre quão</p><p>manifestamente a Providência interferiu em favor desse pobre homem</p><p>quando ele estava à beira da destruição, visto que, devido a sua sentença, da</p><p>qual não havia apelo, ele seria levado a Granada e queimado até virar cinzas</p><p>poucos dias depois, e sobre a forma como um pobre servo comum, que</p><p>sequer o conhecia, nem tinha interesse em sua preservação, se arriscaria ao</p><p>desagrado de seu senhor, e a própria vida, para revelar algo de natureza tão</p><p>importante e perigosa a um cavalheiro desconhecido, de cujo sigilo</p><p>dependia a existência desse servo. Frequentemente, a Providência interfere</p><p>por tais meios secundários em favor dos virtuosos e oprimidos. Esse é um</p><p>exemplo dos mais distintos a respeito disso.</p><p>Após 12 dias de percurso, o navio levantou âncora e partiu,</p><p>aproximadamente dois meses depois, chegou a salvo a Deptford. Na manhã</p><p>seguinte, o sr. Lithgow foi carregado em um colchão de penas até</p><p>eobalds, em Hertfordshire, onde estavam o rei e a família real.</p><p>Coincidentemente, sua majestade estava caçando naquele dia, mas, ao</p><p>retornar à noite, o sr. Lithgow lhe foi apresentado e relatou os detalhes de</p><p>seus sofrimentos e de sua feliz libertação. O rei �cou tão abalado com a</p><p>narrativa, que expressou a mais profunda preocupação e deu ordens para</p><p>que o sr. Lithgow fosse enviado a Bath e suas necessidades, adequadamente</p><p>supridas por sua real generosidade. Por esse meio, sob a mão de Deus, após</p><p>algum tempo o sr. Lithgow foi restaurado da situação mais desgraçada para,</p><p>em parte, grande saúde e força. Porém, o braço esquerdo perdeu a</p><p>mobilidade, e vários ossos menores foram tão esmagados e quebrados, que</p><p>�caram inutilizados para sempre.</p><p>Apesar de todos os esforços empenhados para que lhe houvesse</p><p>restituição, o sr. Lithgow nunca conseguiu obter qualquer parte de seu</p><p>dinheiro ou de seus bens, embora sua majestade e os ministros de Estado</p><p>tivessem se envolvido em benefício dele.</p><p>De fato, Gondamore, o embaixador espanhol, prometeu que todos os</p><p>seus bens seriam restituídos, com a adição de 1.000 libras inglesas, como</p><p>expiação parcial pelas torturas sofridas, devendo a última ser paga pelo</p><p>governador de Málaga. Essas obrigações, porém, não passaram de promessas</p><p>e, embora o rei fosse uma espécie de garantia para o bom cumprimento</p><p>delas, o astuto espanhol encontrou meios de iludi-lo. Ele tinha, de fato,</p><p>uma in�uência demasiadamente grande no conselho inglês durante o</p><p>período daquele pací�co reinado durante o qual a Inglaterra estava</p><p>oprimida a uma servil submissão à maioria dos estados e reis da Europa.</p><p>A HISTÓRIA DE GALILEU</p><p>Os mais eminentes cientistas e �lósofos da época não escaparam aos olhares</p><p>atentos daquele cruel despotismo. Galileu, o principal astrônomo e</p><p>matemático de seu tempo, foi o primeiro a usar o telescópio com sucesso na</p><p>resolução dos movimentos dos corpos celestes. Ele descobriu que o Sol é o</p><p>centro de movimento em torno do qual orbitam a Terra e diversos planetas.</p><p>Por fazer essa grande descoberta, Galileu foi levado perante a Inquisição e,</p><p>durante algum tempo, correu grande risco de ser morto.</p><p>Galileu diante do Santo O�cio, por Joseph-Nicolas Robert-Fleury (1797–1890). Parte do</p><p>acervo do Museu do Louvre, Paris, França.</p><p>Após uma longa e amarga revisão dos escritos de Galileu, na qual muitas</p><p>de suas descobertas mais importantes foram condenadas como erros, a</p><p>acusação dos inquisidores declarou: “Você, Galileu, por conta das coisas</p><p>que escreveu e confessou, sujeitou-se a uma forte suspeita de heresia neste</p><p>Santo Ofício, acreditando e garantindo ser verdadeira uma doutrina falsa e</p><p>contrária à divina e Sagradas Escrituras — a saber, que o Sol é o centro da</p><p>órbita da Terra e não se move do leste para o oeste; e que a Terra se move e</p><p>não é o centro do mundo”.</p><p>Para salvar sua vida, Galileu admitiu que estava errado ao pensar que a</p><p>Terra girava ao redor do Sol e jurou: “Daqui em diante, nunca mais direi</p><p>ou a�rmarei, quer por palavra ou por escrito, qualquer coisa que dê ocasião</p><p>a semelhante suposição”. Porém, diz-se que, imediatamente após fazer esse</p><p>juramento forçado, ele sussurrou a um amigo que estava perto: “A Terra se</p><p>move, e tudo o mais”.</p><p>RESUMO DA INQUISIÇÃO</p><p>Das multidões que pereceram pela Inquisição no mundo todo, nenhum</p><p>registro autêntico, até o momento, pode ser descoberto. Porém, onde quer</p><p>que o papismo tivesse poder, havia o tribunal. Ele tinha sido implantado até</p><p>mesmo no Oriente, e a Inquisição Portuguesa de Goa causou, em poucos</p><p>anos, agonia a muitos. A América do Sul foi dividida em províncias da</p><p>Inquisição e, com uma horripilante imitação dos crimes do Estado-mãe, as</p><p>chegadas de vice-reis e as outras celebrações populares eram consideradas</p><p>imperfeitas sem um ato de fé. Os Países Baixos foram um cenário de</p><p>morticínio desde o momento do decreto que implantou a Inquisição ali. Na</p><p>Espanha, o cálculo é mais viável. Cada um dos 17 tribunais existentes</p><p>durante um longo período queimou anualmente, em média, 10 miseráveis</p><p>sofredores!</p><p>Devemos nos lembrar de que esse número ocorreu em um país onde a</p><p>perseguição havia abolido, durante séculos, todas as diferenças religiosas e a</p><p>di�culdade não era encontrar o pelourinho, e sim a oferenda. Contudo, até</p><p>mesmo na Espanha, assim destituída de toda heresia, a Inquisição ainda</p><p>conseguiu engordar suas listas de assassinatos para 32 mil! O número de</p><p>pessoas queimadas à guisa de exemplo, ou condenadas a penitências,</p><p>punições geralmente equivalentes a exílio, con�sco e manchas de sangue</p><p>para todo tipo de ruína além da mera perda de uma vida sem valor,</p><p>totalizou 309 mil. Porém, as multidões que pereceram em masmorras de</p><p>tortura, por con�namento e por coração partido, os milhões de vidas</p><p>dependentes que �caram totalmente desamparadas ou foram levadas</p><p>prematuramente à sepultura pela morte das vítimas não foram registradas</p><p>estão gravadas somente diante daquele que jurou: “Se alguém leva para</p><p>cativeiro, para cativeiro vai. Se alguém matar à espada, necessário é que seja</p><p>morto à espada” (Apocalipse 13:10).</p><p>Assim foi a Inquisição, declarada pelo Espírito de Deus como sendo, ao</p><p>mesmo tempo, o rebento e a imagem do papado. Para sentir a força da</p><p>ascendência, precisamos observar o tempo. No século 13, o papado estava</p><p>no auge do domínio sobre os mortais; era independente de todos os reinos;</p><p>governava com um grau de in�uência nunca antes ou depois detido por um</p><p>cetro humano; foi reconhecido como soberano sobre corpo e alma; para</p><p>todas as intenções terrenas, seu poder era incomensurável para o bem ou</p><p>para o mal. O papado poderia ter difundido conhecimento, paz, liberdade e</p><p>cristianismo até os con�ns da Europa ou do mundo. Porém, sua natureza</p><p>era hostil; seu mais completo triunfo só revelava seu mais pleno mal, e, para</p><p>vergonha da razão humana e terror e sofrimento da virtude humana, no</p><p>momento de sua consumada pompa, Roma fervilhava com o monstruoso e</p><p>horrível nascimento da INQUISIÇÃO!</p><p>19 Esse gorro era chamado de coroça. As de cor amarela eram des�nadas aos</p><p>reconciliados com a Igreja católica por terem reconhecido sua heresia e se</p><p>arrependido, sendo livres da fogueira.</p><p>20 O real era a moeda espanhola vigente no século 17.</p><p>21 Moeda de ouro usada na França a par�r do século 13. Seu nome original francês écu</p><p>vem do la�m scutum, que quer dizer escudo. A cunha da moeda incluía um escudo</p><p>com um brasão e seu centro.</p><p>22 Do la�m, plastrum, achatado encurtado. Nome de uma moeda de prata europeia</p><p>medieval.</p><p>23 Ou ocultas, obscuras.</p><p>24 Compra ou venda ilícita de coisas espirituais (como indulgências e sacramentos) ou</p><p>temporais ligadas às espirituais (como os bene�cios eclesiás�cos).</p><p>25 Moeda de ouro ou prata que era corrente em vários países europeus e usada para</p><p>transações internacionais.</p><p>Capítulo 6</p><p>Um relato das perseguições na Itália</p><p>sob o papado</p><p>Iniciaremos agora um relato das perseguições na Itália, um país que foi, e</p><p>ainda é:</p><p>1. O centro do papismo;</p><p>2. a sede do pontí�ce e</p><p>3. a origem dos diversos erros que se difundiram por outros países,</p><p>iludiram a mente de milhares e espalharam as nuvens de superstição e</p><p>fanatismo sobre o entendimento humano.</p><p>No decorrer da nossa narrativa, incluiremos as perseguições mais</p><p>notáveis ocorridas e as crueldades praticadas:</p><p>1. Pelo poder imediato do papa;</p><p>2. por meio do poder da Inquisição e</p><p>3. pelo fanatismo dos príncipes italianos.</p><p>As primeiras perseguições sob o papado começaram na Itália no século</p><p>12, na época em que o papa era Adriano IV, um inglês, sendo ocasionadas</p><p>pelas seguintes circunstâncias:</p><p>Um homem instruído e excelente orador de Brescia, chamado Arnold,</p><p>foi a Roma e pregou com ousadia contra as corrupções e inovações que</p><p>haviam se in�ltrado na Igreja. Seus discursos eram tão claros e consistentes</p><p>e exalavam um espírito de piedade tão puro, que os senadores e muitas</p><p>pessoas aprovavam fortemente e admiravam suas doutrinas.</p><p>Adriano �cou tão irritado que ordenou a Arnold que deixasse a cidade</p><p>imediatamente, como herege. Arnold, porém, não obedeceu, porque os</p><p>senadores e algumas das célebres personalidades o apoiaram e resistiram à</p><p>autoridade do papa.</p><p>Casamento do Imperador Frederico Barbarossa a Beatriz da Borgonha em 1156, por</p><p>Giovanni Ba�sta Tiepolo (1696–1770). Parte do acervo da Residência de Wutzburgo,</p><p>Alemanha.</p><p>Então, Adriano colocou a cidade de Roma sob interdição, o que causou</p><p>a interposição de todo o corpo do clero, e, por �m, persuadiu os senadores</p><p>e o povo a desistir de seus argumentos e a fazer com que Arnold fosse</p><p>banido. Feito esse acordo, Arnold recebeu a sentença de exílio e se retirou</p><p>para a Alemanha, onde continuou a pregar contra o papa e a expor os</p><p>graves erros da Igreja Romana.</p><p>Por esse motivo, Adriano teve sede do sangue de Arnold e fez várias</p><p>tentativas para tê-lo em suas mãos. Arnold, porém, evitou durante muito</p><p>tempo todas as armadilhas elaboradas para ele. Por �m, Frederico</p><p>Barbarossa, chegando à posição de imperador, solicitou que o próprio papa</p><p>o coroasse. Adriano concordou e, ao mesmo tempo, pediu um favor ao</p><p>imperador: colocar Arnold em suas mãos. O imperador entregou</p><p>prontamente o desventurado pregador, que logo se tornou mártir pela</p><p>vingança de Adriano, sendo enforcado e seu corpo queimado até virar</p><p>cinzas, em Apúlia. Vários de seus antigos amigos e companheiros tiveram o</p><p>mesmo destino.</p><p>Encenas, um espanhol, foi enviado a Roma para ser educado na fé</p><p>católica romana; porém, tendo conversado com alguns dos reformados e</p><p>lido vários tratados que eles colocaram em suas mãos, tornou-se</p><p>protestante. Quando, por �m, isso se tornou conhecido, alguém do seu</p><p>convívio fez uma denúncia contra ele. Assim, ele foi queimado por ordem</p><p>do papa e de um conclave de cardeais. Praticamente na mesma época, o</p><p>irmão de Encenas tinha sido detido por possuir um Novo Testamento na</p><p>língua espanhola. Porém, antes da data marcada para sua execução,</p><p>encontrou um meio de fugir da prisão e retirou-se para a Alemanha.</p><p>Fanino, um laico instruído, leu livros controversos e adotou a religião</p><p>reformada. Após uma queixa contra ele ser levada ao papa, ele foi detido e</p><p>lançado na prisão. Sua esposa, seus �lhos, parentes e amigos o visitaram em</p><p>seu con�namento e o convenceram a renunciar à sua fé a �m de obter sua</p><p>libertação. Porém, tão logo se viu livre do con�namento, sua mente se</p><p>sentiu fortemente acorrentada: o peso de uma consciência culpada. Seus</p><p>horrores lhe foram insuportáveis até voltar atrás em sua apostasia e se</p><p>declarar totalmente convencido dos erros da Igreja Romana. Para</p><p>compensar sua fraqueza, ele então se esforçou ao máximo, abertamente e</p><p>com empenho, para converter outras pessoas ao protestantismo, obtendo</p><p>bastante sucesso nesse empreendimento. Esse procedimento ocasionou sua</p><p>segunda prisão, mas lhe ofereceram a vida se ele se retratasse novamente.</p><p>Ele rejeitou essa proposta com desdém, dizendo que desprezava a vida em</p><p>tais termos. Ao ser perguntado por que persistiria obstinadamente em suas</p><p>opiniões, deixando angustiados sua esposa e seus �lhos, ele respondeu:</p><p>“Não os deixarei desamparados; recomendei-os aos cuidados de um</p><p>excelente administrador”. Um pouco surpresa, a pessoa perguntou: “Que</p><p>administrador?” — ao que Fanino respondeu: “Jesus Cristo é o</p><p>administrador que mencionei e penso que não poderia entregá-los aos</p><p>cuidados de alguém melhor”. No dia da execução, ele parecia</p><p>extraordinariamente alegre, e um observador disse: “É estranho você parecer</p><p>tão alegre em tal circunstância quando o próprio Jesus Cristo, pouco antes</p><p>de Sua morte, estava tão agoniado que suou sangue e água” — ao que</p><p>Fanino replicou: “Cristo sofreu todos os tipos de dores e con�itos, com o</p><p>inferno e a morte, por nós; e assim, por Seus sofrimentos, libertou do medo</p><p>dessas coisas todos aqueles que realmente creem nele”. Então, foi</p><p>estrangulado e seu corpo foi queimado até virar cinzas, na sequência elas</p><p>foram espalhadas pelo vento.</p><p>Domínico, um soldado instruído, após ler vários escritos controversos se</p><p>tornou um protestante zeloso e, retirando-se para Piacenza, pregou o</p><p>evangelho com a máxima pureza para uma congregação muito considerável.</p><p>Certo dia, ao �nal de seu sermão, ele disse: “Se a congregação comparecer</p><p>amanhã, descreverei o anticristo e o pintarei com suas cores apropriadas”.</p><p>Um grande número de pessoas compareceu no dia seguinte, mas,</p><p>quando Domínico estava começando seu sermão, um magistrado civil foi</p><p>até o púlpito e o levou sob custódia. Ele se submeteu prontamente, mas, ao</p><p>acompanhar o magistrado, disse: “Fico pensando por que o diabo me</p><p>deixou em paz por tanto tempo”. Durante o interrogatório, perguntaram-</p><p>lhe: “Você renunciará às suas doutrinas?”, ao que ele respondeu: “Minhas</p><p>doutrinas? Eu não mantenho qualquer doutrina que seja minha. O que eu</p><p>prego são as doutrinas de Cristo. Por elas darei o meu sangue e até me</p><p>considero feliz por sofrer pela causa do meu Redentor”. Todos os métodos</p><p>foram adotados para fazê-lo repudiar sua fé e abraçar os erros da Igreja</p><p>Romana; porém, quando as persuasões e ameaças se mostraram ine�cazes,</p><p>ele foi condenado à morte e enforcado no mercado.</p><p>Galeácio, um cavalheiro protestante que residia perto do castelo de</p><p>Santo Ângelo, foi detido por causa de sua fé. Após grandes esforços de seus</p><p>amigos, ele se retratou e adotou várias das doutrinas supersticiosas</p><p>propagadas pela Igreja Romana. Porém, ao tomar consciência de seu erro,</p><p>renunciou publicamente à sua retratação. Sendo detido por isso, foi</p><p>condenado a ser queimado e, em conformidade com a ordem, foi</p><p>acorrentado a uma estaca, onde foi deixado durante várias horas até o fogo</p><p>ser posto na lenha, para que sua esposa, seus parentes e amigos que o</p><p>cercavam pudessem induzi-lo a desistir de suas convicções. Galeácio,</p><p>porém, manteve �rmemente sua decisão e pediu ao carrasco que pusesse</p><p>fogo na madeira que o queimaria. Por �m, isso foi feito e, pouco depois,</p><p>Galeácio foi consumido pelas chamas, que subiram com incrível rapidez e,</p><p>em poucos minutos, o privaram dos sentidos.</p><p>Logo após a morte desse cavalheiro, um grande número de protestantes</p><p>foi morto em diversas partes da Itália, devido à sua fé, dando em seus</p><p>martírios uma prova segura de sua sinceridade.</p><p>UM RELATO DAS PERSEGUIÇÕES NA CALÁBRIA</p><p>No século 14, muitos dos valdenses de Pragela e Dauphiny emigraram para</p><p>a Calábria e, por permissão dos nobres daquele país, assentaram-se em</p><p>algumas terras não cultivadas; em pouco tempo, por sua grande diligência</p><p>no cultivo, �zeram aparecer todas as belezas da verdura e fertilidade em</p><p>vários pontos outrora desertos e áridos.</p><p>Os senhores da Calábria �caram muito satisfeitos com seus novos</p><p>súditos e inquilinos, que eram honestos, calmos e trabalhadores. Porém, os</p><p>sacerdotes do país �zeram várias queixas contra eles; por não poderem</p><p>acusá-los de maus procedimentos, fundamentaram suas acusações naquilo</p><p>que eles não haviam feito e os acusaram:</p><p>De não serem católicos romanos;</p><p>de não fazerem nenhum de seus �lhos sacerdote;</p><p>de não fazerem nenhuma de suas �lhas freira;</p><p>de não irem à missa;</p><p>de não darem velas aos seus sacerdotes como oferenda;</p><p>de não fazerem peregrinações e</p><p>de não se curvarem a imagens.</p><p>Os senhores da Calábria, porém, acalmaram os sacerdotes, dizendo-lhes</p><p>que aquelas pessoas eram extremamente inofensivas; que elas não</p><p>ofenderam os católicos romanos e pagavam alegremente os dízimos aos</p><p>sacerdotes, cujas receitas haviam aumentado consideravelmente com a</p><p>entrada delas no país, e, consequentemente, deviam ser as últimas pessoas</p><p>de quem se deveria reclamar.</p><p>Depois disso, as coisas continuaram toleravelmente bem ao longo de</p><p>alguns anos, durante os quais os valdenses se organizaram em duas cidades</p><p>corporativas, anexando várias aldeias à sua jurisdição. Por �m, mandaram</p><p>buscar dois clérigos em Genebra, para cada um pregar em uma das cidades,</p><p>porque decidiram professar publicamente a sua fé. Isso foi informado ao</p><p>papa Pio IV, que decidiu exterminá-los da Calábria.</p><p>Para isso, enviou o cardeal Alexandrino, homem de temperamento</p><p>muito violento e um fanático furioso, juntamente com dois monges à</p><p>Calábria, onde deveriam atuar como inquisidores. Essas pessoas autorizadas</p><p>chegaram a São Xisto, uma das cidades construídas pelos valdenses; tendo</p><p>reunido as pessoas da cidade, disseram-lhes que não sofreriam se aceitassem</p><p>pregadores designados pelo papa, mas, se os rejeitassem, seriam privadas de</p><p>suas propriedades e de sua vida. E, para que as intenções delas pudessem ser</p><p>conhecidas, a missa seria rezada publicamente naquela tarde, sendo todas as</p><p>pessoas ordenadas a comparecer.</p><p>Em vez de assistir à missa, o povo de São Xisto fugiu para a �oresta com</p><p>suas famílias, decepcionando o cardeal e seus coadjutores. O cardeal seguiu</p><p>para La Garde, a outra cidade pertencente aos valdenses, onde, para não se</p><p>repetirem os acontecimentos de São Xisto, ordenou que os portões fossem</p><p>trancados e todas as avenidas, vigiadas. As mesmas propostas foram, então,</p><p>feitas aos habitantes de La Garde, como já haviam sido aos de São Xisto,</p><p>mas com um artifício adicional: o cardeal lhes assegurou de que os</p><p>habitantes de São Xisto aceitaram imediatamente suas propostas e</p><p>concordado que o papa lhes designasse pregadores. Esse engano foi bem-</p><p>sucedido porque, pensando ser verdade o que o cardeal lhes dissera, o povo</p><p>de La Garde disse que seguiria exatamente o exemplo de seus irmãos de São</p><p>Xisto.</p><p>Conseguindo seu objetivo de iludir o povo de uma cidade, o cardeal</p><p>mandou buscar tropas de soldados para matar as pessoas da outra.</p><p>Consequentemente, enviou os soldados à �oresta para caçar os habitantes</p><p>de São Xisto como animais selvagens, dando-lhes ordens estritas de não</p><p>pouparem idade nem sexo, matando todos que se aproximassem. As tropas</p><p>entraram na �oresta e muitas pessoas foram vítimas de sua ferocidade antes</p><p>de os valdenses serem devidamente informados de seu intento. Por �m,</p><p>porém, decidiram render suas vidas pelo maior preço possível; assim</p><p>ocorreram vários con�itos, nos quais os valdenses semiarmados realizaram</p><p>prodígios de bravura e muitos, dos dois lados, foram mortos. A maior parte</p><p>das tropas foi morta nos diferentes embates e o restante foi obrigado a</p><p>recuar, o que enfureceu o cardeal a ponto de escrever ao vice-rei de Nápoles</p><p>em busca de reforços.</p><p>O vice-rei ordenou imediatamente a proclamação, em todos os</p><p>territórios napolitanos, de que todos os fora-da-lei, desertores e outros</p><p>proscritos deveriam ser perdoados de seus respectivos crimes, com a</p><p>condição de fazerem uma campanha contra os habitantes de São Xisto e</p><p>continuarem armados até todas as pessoas de lá serem exterminadas.</p><p>Diante dessa proclamação, muitas pessoas de sinas desesperadas se</p><p>apresentaram e, sendo agrupadas em pequenas companhias, foram enviadas</p><p>para vasculhar a �oresta e matar todos da religião reformada que</p><p>conseguissem encontrar. O próprio vice-rei também se juntou ao cardeal à</p><p>frente de um corpo de forças regulares e, em conjunto, �zeram todo o</p><p>possível para acossar as pobres pessoas que estavam na �oresta. Pegaram</p><p>alguns e os penduraram nas árvores, cortaram galhos e os queimaram; ou os</p><p>dilaceraram e deixaram seus corpos para serem devorados por animais</p><p>selvagens ou aves de rapina. Em muitos, atiraram a distância, mas a maior</p><p>parte caçou por esporte. Alguns se esconderam em cavernas, mas a fome os</p><p>eliminou em sua fuga; assim, todas aquelas pobres pessoas pereceram, por</p><p>vários meios, para saciar a fanática maldade de seus impiedosos</p><p>perseguidores.</p><p>Os habitantes de São Xisto não foram exterminados de imediato,</p><p>enquanto os de La Garde recebiam a atenção do cardeal e do vice-rei. A</p><p>estes foi-lhes oferecido que, se eles abraçassem a crença católica romana, eles</p><p>e suas famílias não seriam feridos, suas casas e propriedades seriam</p><p>restauradas e ninguém teria permissão de incomodá-los. Porém, se, pelo</p><p>contrário, eles rejeitassem essa misericórdia (como foi chamada), aplicariam</p><p>as medidas mais extremas e as mortes mais cruéis seriam as consequências</p><p>certas da recusa deles.</p><p>Não obstante as promessas de um lado e as ameaças do outro, aquelas</p><p>pessoas dignas foram unânimes em recusar renunciar à sua religião ou em</p><p>abraçar os erros do papismo. Isso exasperou tanto o cardeal e o vice-rei, que</p><p>estes ordenaram que 30 delas fossem colocadas imediatamente no</p><p>pelourinho, para provocar terror nas demais.</p><p>As pessoas colocadas no pelourinho foram tratadas com tanta severidade</p><p>que várias morreram sob as torturas. Um tal de Charlin, em particular, foi</p><p>tão cruelmente abusado que sua barriga estourou, as entranhas lhe saíram e</p><p>ele expirou em extrema agonia. Essas barbáries, porém, não serviram aos</p><p>propósitos a que se destinavam, pois as pessoas que permaneceram vivas</p><p>após o pelourinho, e as que não foram colocadas nele, permaneceram</p><p>igualmente constantes em sua fé e declararam ousadamente que nenhuma</p><p>tortura do corpo ou terror da mente jamais os induziria a renunciar ao seu</p><p>Deus ou a adorar imagens.</p><p>Massacre de idosos, mulheres e crianças.</p><p>Então, por ordem do cardeal, várias foram totalmente despidas e</p><p>chicoteadas até a morte com varas de ferro. Algumas foram cortadas em</p><p>pedaços com grandes facas, outras foram jogadas do topo de uma grande</p><p>torre, e muitas foram cobertas com breu e queimadas vivas.</p><p>Um dos monges que atendiam ao cardeal, tendo naturalmente uma</p><p>disposição selvagem e cruel, solicitou a permissão de derramar um pouco</p><p>do sangue daquelas pobres pessoas com suas próprias mãos. Quando seu</p><p>pedido foi atendido, o bárbaro pegou uma faca grande e a�ada e cortou a</p><p>garganta de 80 homens, mulheres e crianças, com tão pouco remorso</p><p>quanto um açougueiro teria por matar tal número de cordeiros.</p><p>Foi, então, ordenado que todos aqueles corpos fossem esquartejados e</p><p>seus pedaços, colocados em estacas e, depois, �xados em diferentes partes</p><p>do país em um raio de aproximadamente 48 quilômetros.</p><p>Os quatro principais homens de La Garde foram enforcados,</p><p>e o clérigo</p><p>foi jogado do topo da torre de sua igreja. Ele �cou terrivelmente mutilado,</p><p>mas não morreu com a queda; o vice-rei, que passava, disse: “O cão ainda</p><p>está vivo? Peguem-no e entreguem-no aos porcos”. Por mais brutal que</p><p>possa parecer, essa sentença foi executada.</p><p>Sessenta mulheres foram torturadas com tanta violência que as cordas</p><p>atravessaram seus braços e pernas até próximo do osso; elas foram</p><p>reenviadas à prisão e, quando suas feridas apodreceram, morreram da</p><p>maneira mais sofrida. Muitos outros foram mortos por diversos meios</p><p>cruéis. Se algum católico romano mais compassivo que os demais</p><p>intercedesse por qualquer um dos reformados, era imediatamente preso e</p><p>tinha o mesmo destino de um defensor dos hereges.</p><p>Sendo o vice-rei obrigado a marchar de volta a Nápoles devido a alguns</p><p>assuntos que exigiam sua presença no momento, e o cardeal, convocado a ir</p><p>a Roma, o marquês de Butane recebeu ordem de dar o golpe �nal no que</p><p>haviam começado. Ele �nalmente o fez, agindo com um rigor tão bárbaro</p><p>que não restou viva uma única pessoa da religião reformada em toda a</p><p>Calábria.</p><p>Assim, inúmeras pessoas inocentes e inofensivas foram privadas de seus</p><p>bens, despojadas de suas propriedades, expulsas de suas casas e, �nalmente,</p><p>assassinadas por diversos meios, somente porque não sacri�cariam sua</p><p>consciência às superstições alheias, não adotariam doutrinas idólatras que</p><p>detestavam e não aceitariam mestres em quem não poderiam acreditar.</p><p>Há três tipos de tirania: a que escraviza a pessoa, a que toma a</p><p>propriedade e a que prescreve e decreta à mente. Os dois primeiros tipos,</p><p>podem ser denominados de tirania civil e foram praticados em todos os</p><p>tempos por soberanos arbitrários, que se deleitaram em atormentar as</p><p>pessoas e roubar as propriedades de seus infelizes súditos. Porém, o terceiro</p><p>tipo, prescrever e decretar à mente, pode ser denominado tirania</p><p>eclesiástica. Esse é o pior tipo de tirania, porque inclui os outros dois tipos:</p><p>os clérigos romanos não apenas torturam o corpo e tomam os bens daqueles</p><p>a quem perseguem, mas tiram a vida, atormentam a mente e, se possível,</p><p>tiranizam a alma das infelizes vítimas.</p><p>RELATO DAS PERSEGUIÇÕES NOS VALES DO PIEMONTE</p><p>Para evitar as perseguições a que eram continuamente submetidos na</p><p>França, muitos dos valdenses foram e se estabeleceram nos vales do</p><p>Piemonte, onde prosperaram extremamente e se desenvolveram muito</p><p>durante um tempo considerável.</p><p>Embora seu comportamento fosse inofensivo, suas conversas fossem</p><p>inocentes e eles pagassem o dízimo aos clérigos romanos, estes não se</p><p>contentaram e desejaram perturbá-los um pouco. Por isso, queixaram-se ao</p><p>arcebispo de Turim a�rmando que os valdenses dos vales do Piemonte eram</p><p>hereges, pelas seguintes razões:</p><p>1. Não criam nas doutrinas da Igreja Romana.</p><p>2. Não faziam ofertas, nem orações pelos mortos.</p><p>3. Não frequentavam a missa.</p><p>4. Não se confessavam para receber absolvição.</p><p>5. Não criam no purgatório, nem pagavam para tirar de lá as almas de</p><p>seus amigos.</p><p>Com base nessas acusações, o arcebispo ordenou o início de uma</p><p>perseguição e muitos foram mártires da ira supersticiosa de padres e</p><p>monges.</p><p>Em Turim, um dos reformados teve suas entranhas arrancadas e</p><p>colocadas em uma bacia diante de seus olhos, onde permaneceram à sua</p><p>vista até ele expirar. Em Revel, Catelin Girard, colocado na estaca, desejou</p><p>que o carrasco lhe desse uma pedra, o que foi recusado, pensando que o</p><p>condenado pretendia jogá-la em alguém. Girard, porém, assegurou-lhe não</p><p>ser essa a sua intenção; o carrasco acedeu, e Girard, olhando seriamente</p><p>para a pedra, disse: “Quando um homem tiver o poder de comer e digerir</p><p>essa sólida pedra, a religião pela qual eu estou prestes a sofrer terá �m; antes</p><p>disso, não”. Então, jogou a pedra ao chão e se submeteu alegremente às</p><p>chamas. Muitos outros reformados foram oprimidos ou mortos por</p><p>diversos meios até a paciência dos valdenses se esgotar. Então, eles</p><p>recorreram às armas em sua própria defesa e constituíram formações</p><p>militares regulares.</p><p>Exasperado com isso, o bispo de Turim arranjou vários soldados e os</p><p>enviou contra eles; porém, na maioria das escaramuças e confrontos, os</p><p>valdenses obtiveram sucesso, em parte devido ao fato de estarem mais</p><p>familiarizados às passagens dos vales do Piemonte do que seus adversários e,</p><p>em parte, devido ao desespero com que lutavam. Pois bem sabiam que, se</p><p>fossem capturados, não os considerariam prisioneiros de guerra, e sim</p><p>seriam torturados até a morte como hereges.</p><p>Por �m, Filipe VII, duque de Savoy e senhor supremo do Piemonte,</p><p>decidiu interpor sua autoridade e parar aquelas guerras sangrentas que tanto</p><p>perturbavam seus domínios. Ele não estava disposto a desagradar o papa,</p><p>nem a afrontar o arcebispo de Turim. Contudo, enviou mensagens aos dois,</p><p>indicando que não poderia mais ver mansamente seus domínios invadidos</p><p>por tropas orientadas por sacerdotes em vez de o�ciais e comandadas por</p><p>prelados em vez de generais; nem permitiria que seu país fosse despovoado</p><p>sem ele sequer ter sido consultado na ocasião.</p><p>Piemonte, norte da Itália, Europa.</p><p>Diante da intrepidez do duque, os sacerdotes �zeram todo o possível</p><p>para semear preconceito contra os valdenses em sua mente, mas o duque</p><p>lhes disse que, embora não estivesse familiarizado com os princípios</p><p>religiosos daquelas pessoas, sempre as vira calmas, �éis e obedientes;</p><p>portanto, determinou que não deveriam mais ser perseguidas.</p><p>Então, os sacerdotes recorreram às mais palpáveis e absurdas falsidades.</p><p>Asseguraram ao duque que ele estava enganado quanto aos valdenses, que</p><p>eram um grupo de pessoas perversas e altamente viciadas em intemperança,</p><p>impureza, blasfêmia, adultério, incesto e muitos outros crimes abomináveis</p><p>e que tinham até natureza de monstros, porque seus �lhos nasciam com</p><p>garganta negra, quatro �leiras de dentes e corpo peludo.</p><p>O duque não era tão desprovido de bom-senso a ponto de dar crédito</p><p>ao que os sacerdotes disseram, embora a�rmassem da maneira mais solene a</p><p>veracidade de suas colocações. Ele, porém, enviou aos vales piemonteses 12</p><p>cavalheiros muito instruídos e sensatos, para examinarem o verdadeiro</p><p>caráter dos habitantes.</p><p>Após viajarem por todas as suas cidades e vilarejos e conversarem com</p><p>valdenses de todas as classes sociais, esses cavalheiros retornaram ao duque e</p><p>lhe apresentaram o relato mais favorável acerca daquelas pessoas, a�rmando,</p><p>diante dos sacerdotes que as difamavam, que elas eram inofensivas,</p><p>inocentes, leais, amigáveis, trabalhadoras e piedosas, que detestavam os</p><p>crimes pelos quais foram acusadas e que se, por depravação, um indivíduo</p><p>cometesse algum daqueles crimes, seria, pelas leis deles, punido da maneira</p><p>mais exemplar. “No tocante às crianças”, disseram os cavalheiros, “os</p><p>sacerdotes haviam contado as mais grosseiras e ridículas falsidades, porque</p><p>não nascem com garganta negra, dentes na boca ou pelos no corpo, sendo</p><p>as melhores crianças que podem ser vistas. E, para convencer vossa alteza do</p><p>que dissemos”, continuou um dos cavalheiros, “trouxemos 12 dos</p><p>principais habitantes do sexo masculino, que vieram pedir perdão, em</p><p>nome dos demais, por haverem pegado em armas sem a vossa permissão,</p><p>ainda que em sua própria defesa e para preservar a vida de seus impiedosos</p><p>inimigos. Trouxemos também várias mulheres, com �lhos de diversas</p><p>idades, para que vossa alteza possa ter a oportunidade de examiná-las</p><p>pessoalmente o quanto for do vosso agrado”.</p><p>Após ouvir as explicações dos 12 delegados, conversar com as mulheres e</p><p>examinar as crianças, o duque os dispensou gentilmente. Então, ordenou</p><p>aos sacerdotes, que haviam tentado enganá-lo, que deixassem a corte</p><p>imediatamente e deu ordens estritas para que a perseguição cessasse em</p><p>todos os seus domínios.</p><p>Os valdenses desfrutaram de paz durante muitos anos, até Filipe, o</p><p>sétimo duque de Savoy, morrer e ser sucedido por um papista fanático.</p><p>Aproximadamente na mesma época, alguns dos principais valdenses</p><p>propuseram que seus clérigos pregassem em público, para que todos</p><p>pudessem conhecer a pureza de suas doutrinas, porque, até então, só</p><p>haviam</p><p>pregado reservadamente e para as congregações que eles sabiam</p><p>consistir unicamente de pessoas da religião reformada.</p><p>Ao saber disso, o novo duque �cou muito exasperado e enviou</p><p>quantidade considerável de tropas para os vales, jurando que, se as pessoas</p><p>não mudassem de religião, mandaria esfolá-las vivas. O comandante das</p><p>tropas logo descobriu a impraticabilidade de vencê-las com o número de</p><p>homens que tinha consigo. Assim, enviou ao duque que a ideia de subjugar</p><p>os valdenses com uma força tão pequena era ridícula; que aquelas pessoas</p><p>estavam mais familiarizadas com o país do que qualquer outra sob o seu</p><p>comando, que elas haviam defendido todas as passagens, estavam bem</p><p>armadas e decididas a defender-se; e, no tocante a esfolá-las vivas, disse que</p><p>a pele de cada uma daquelas pessoas lhe custaria a vida de uma dúzia de</p><p>seus súditos.</p><p>Aterrorizado com aquelas informações, o duque retirou as tropas,</p><p>decidindo agir não por força, mas por estratagema. Assim, ordenou o</p><p>pagamento de recompensas pela captura de qualquer valdense que pudesse</p><p>ser encontrado fora de seus locais de segurança. E estes, quando capturados,</p><p>eram esfolados vivos ou queimados.</p><p>Até então, os valdenses tinham apenas o Novo Testamento e alguns</p><p>livros do Antigo traduzidos para a sua língua; porém, decidiram passar a ter</p><p>todos os escritos sagrados em seu próprio idioma. Para isso, contrataram o</p><p>dono de uma grá�ca suíça para lhes fornecer uma edição completa do</p><p>Antigo e do Novo Testamentos na língua valdense, o que ele fez pela</p><p>recompensa de 1.500 coroas de ouro pagas por aqueles devotos.</p><p>Ascendendo ao ponti�cado, o papa Paulo III, papista fanático, solicitou</p><p>imediatamente ao parlamento de Turim que perseguisse os valdenses como</p><p>os mais perniciosos de todos os hereges.</p><p>Papa Paulo III, por Ticiano (1490–1576). Parte do acervo do Museu de Capodimonte,</p><p>Nápoles, Itália.</p><p>O parlamento concordou prontamente. Vários valdenses foram</p><p>subitamente detidos e queimados por sua ordem. Dentre eles estava</p><p>Bartholomew Hector, um livreiro e papeleiro de Turim, criado como</p><p>católico romano, mas, após ler alguns tratados escritos por clérigos</p><p>reformados, �cou totalmente convencido dos erros da Igreja Romana; ainda</p><p>assim, durante algum tempo, sua mente �cou vacilante e ele mal sabia qual</p><p>crença professar. Por �m, porém, abraçou totalmente a religião reformada e</p><p>foi preso, como já mencionamos, e queimado por ordem do parlamento de</p><p>Turim. Uma assembleia foi, então, realizada na qual foi acordado enviar</p><p>representantes aos vales do Piemonte com as seguintes proposições:</p><p>1. Se os valdenses se achegassem ao seio da Igreja Romana e adotassem a</p><p>religião católica, desfrutariam de suas casas, propriedades e terras e</p><p>viveriam com suas famílias, sem qualquer infortúnio.</p><p>2. Para provar sua obediência, eles deveriam enviar 12 de seus líderes,</p><p>com todos os seus ministros e professores, a Turim, para serem</p><p>tratados com austeridade.</p><p>3. O papa, o rei da França e o duque de Savoy aprovaram e autorizaram</p><p>a ação do parlamento de Turim nessa ocasião.</p><p>4. Se os valdenses dos vales do Piemonte se recusassem a aceitar essas</p><p>proposições, seriam perseguidos, e sua morte, certa.</p><p>Para cada uma dessas proposições, os valdenses deram nobremente uma</p><p>resposta, conforme segue, respectivamente:</p><p>1. Nenhuma consideração os faria renunciar à sua religião.</p><p>2. Eles nunca consentiriam em entregar seus melhores e mais respeitáveis</p><p>amigos à custódia e ao critério dos seus piores e mais inveterados</p><p>inimigos.</p><p>3. Eles davam mais valor à aprovação do Rei dos reis, que reina no Céu,</p><p>do que a qualquer autoridade temporal.</p><p>4. Suas almas eram mais preciosas que seus corpos.</p><p>Essas respostas contundentes e intrépidas exasperaram enormemente o</p><p>parlamento de Turim. Eles continuaram, com mais avidez do que nunca, a</p><p>sequestrar os valdenses que agiam sem a devida precaução e certamente</p><p>sofriam as mortes mais cruéis. Infelizmente, dentre eles, apossaram-se de</p><p>Jeffery Varnagle, ministro de Angrogne, a quem entregaram às chamas</p><p>como herege.</p><p>Então, solicitaram ao rei da França uma considerável quantidade de</p><p>tropas, com a �nalidade de exterminar totalmente os reformados dos vales</p><p>do Piemonte. Porém, quando as tropas estavam prestes a marchar, os</p><p>príncipes protestantes da Alemanha se interpuseram e ameaçaram enviar</p><p>tropas para ajudar os valdenses, se estes fossem atacados. O rei da França,</p><p>não querendo entrar em guerra, conteve as tropas e avisou ao parlamento</p><p>de Turim que, no momento, não dispunha de forças militares para atuar no</p><p>Piemonte. Os membros do parlamento �caram muito irritados por seus</p><p>intentos serem frustrados, assim a perseguição cessou gradualmente, visto</p><p>que podiam matar os reformados somente quando os pegavam por acaso e</p><p>os valdenses se tornavam mais cautelosos a cada dia; então a crueldade</p><p>direcionada a eles foi obrigada a diminuir, por falta de pessoas sobre quem</p><p>exercê-la.</p><p>Após desfrutarem de alguns anos de tranquilidade, os valdenses foram</p><p>novamente perturbados pelos seguintes meios: o representante papal foi a</p><p>Turim falar com o duque de Savoy a negócios e disse-lhe que estava</p><p>surpreso por ele ainda não ter erradicado totalmente os valdenses dos vales</p><p>do Piemonte, nem tê-los obrigado a abraçar a Igreja Romana. Não podia</p><p>deixar de ver tal conduta com descon�ança e que, realmente, o considerava</p><p>um apoiador daqueles hereges, por isso, consequentemente, relataria o caso</p><p>a sua santidade, o papa.</p><p>Atormentado por essa argumentação e não querendo ser mal entendido</p><p>pelo papa, o duque decidiu agir com a maior severidade, com o intuito de</p><p>demonstrar seu zelo e, por meio de crueldade posterior, fazer as pazes pela</p><p>negligência passada. Assim, emitiu ordens expressas para que todos os</p><p>valdenses comparecessem à missa regularmente, sob pena de morte. Como</p><p>eles se recusaram absolutamente a fazê-lo, o duque entrou nos vales</p><p>piemonteses com um formidável número de tropas e iniciou a mais furiosa</p><p>perseguição, na qual muitíssimos foram enforcados, afogados, dilacerados,</p><p>abertos, amarrados a árvores e perfurados com forcados, lançados de</p><p>precipícios, queimados, esfaqueados, torturados até a morte, cruci�cados de</p><p>cabeça para baixo, a�igidos por cães etc.</p><p>Os que fugiram tiveram seus bens saqueados e suas casas totalmente</p><p>queimadas. As tropas eram particularmente cruéis quando capturavam um</p><p>ministro ou um professor, a quem submetiam a torturas muito requintadas,</p><p>quase impossíveis de conceber. Se alguém que eles detivessem parecesse</p><p>vacilar em sua fé, não era morto, e sim enviado às galés, para ser convertido</p><p>por força dos sofrimentos.</p><p>Naquela ocasião, os perseguidores mais cruéis que serviam ao duque</p><p>eram três: 1. omas Incomel, um apóstata — criado na religião</p><p>reformada, renunciou à sua fé, abraçou os erros do papismo e tornou-se</p><p>monge; era um grande libertino, dado a crimes não naturais e sordidamente</p><p>ansioso pela pilhagem dos valdenses. 2. Corbis, um homem de natureza</p><p>muito feroz e cruel, cuja ocupação era interrogar os prisioneiros. 3. O</p><p>procurador, que era muito ávido pela execução dos valdenses, pois toda</p><p>execução signi�cava dinheiro em seu bolso.</p><p>Essas três pessoas eram impiedosas no mais alto grau e, onde quer que</p><p>fossem, certamente correria sangue de inocentes. Contando-se somente as</p><p>crueldades exercidas pelo duque, por essas três pessoas e pelo exército em</p><p>suas diferentes campanhas, muitas barbaridades locais foram cometidas. Em</p><p>Pignerol, uma cidade nos vales, havia um mosteiro cujos monges,</p><p>descobrindo que podiam prejudicar os reformados impunemente,</p><p>começaram a saquear as casas e derrubar as igrejas dos valdenses. Não</p><p>encontrando oposição, eles detiveram as pessoas daqueles desventurados</p><p>povoados, assassinando os homens, con�nando as mulheres e colocando os</p><p>�lhos em creches católicas romanas.</p><p>De semelhante modo, os habitantes católicos romanos do vale de São</p><p>Martinho �zeram todo o possível para atormentar os vizinhos valdenses:</p><p>destruíram suas igrejas, queimaram suas casas, apoderaram-se de suas</p><p>propriedades, roubaram seu gado, tomaram suas terras para uso próprio,</p><p>entregaram seus</p><p>ministros às chamas e levaram os valdenses para a �oresta,</p><p>onde nada tinham para subsistência além de frutos silvestres, raízes, cascas</p><p>de árvores etc.</p><p>Alguns ru�ões católicos romanos, havendo detido um pastor quando ele</p><p>estava indo pregar, decidiram levá-lo a um local conveniente e queimá-lo.</p><p>Quando seus paroquianos tomaram conhecimento disso, os homens se</p><p>armaram, perseguiram os ru�ões e pareciam determinados a resgatar seu</p><p>pastor. Os ru�ões, ao perceber isso, esfaquearam o pobre cavalheiro e,</p><p>deixando-o encharcado de sangue, fugiram precipitadamente. Os</p><p>paroquianos, atônitos, �zeram todo o possível para salvá-lo, mas foi em vão,</p><p>porque a arma havia atingido partes vitais, e o ministro expirou enquanto o</p><p>carregavam para casa.</p><p>Már�r sendo preparado para ser queimado vivo na fogueira.</p><p>Os monges de Pignerol, fortemente inclinados a capturar o pastor de</p><p>uma cidade dos vales chamada Saint Germain, contrataram um bando de</p><p>ru�ões com o objetivo de detê-lo. Aqueles sujeitos eram liderados por uma</p><p>pessoa traiçoeira, que anteriormente fora servo do clérigo. Ele conhecia</p><p>perfeitamente um caminho secreto para a casa, pelo qual poderia conduzi-</p><p>los sem alarmar a vizinhança. O guia bateu à porta e, ao perguntarem quem</p><p>era, respondeu seu próprio nome. Não esperando ser ferido por uma pessoa</p><p>a quem �zera muitos favores, o clérigo abriu imediatamente a porta. Ao</p><p>perceber os ru�ões, recuou e fugiu para uma porta dos fundos; porém, eles</p><p>entraram correndo, seguiram-no e o agarraram. Após assassinarem toda a</p><p>sua família, eles o �zeram seguir em direção a Pignerol, fustigando-o ao</p><p>longo de todo o caminho com piques, lanças, espadas etc. Ele foi mantido</p><p>na prisão durante um tempo considerável e, depois, preso à estaca para ser</p><p>queimado. Duas mulheres valdenses que haviam renunciado à sua religião</p><p>para salvar a vida receberam ordens de levar a lenha para a fogueira, a �m</p><p>de queimá-lo, e, quando a colocaram ali, foram obrigadas a dizer: “Tome</p><p>isso, herege perverso, como recompensa pelas doutrinas perniciosas que</p><p>você nos ensinou”. As duas repetiram essas palavras para ele, ao que ele</p><p>respondeu calmamente: “Eu as ensinei bem, mas, desde então, vocês</p><p>aprenderam mal”. A lenha foi então acesa, e ele foi rapidamente consumido</p><p>invocando o nome do Senhor enquanto sua voz permitiu.</p><p>Devido às tropas de ru�ões, pertencentes aos monges, terem feito</p><p>grandes estragos na cidade de Saint Germain, assassinando e saqueando</p><p>muitos dos habitantes, os reformados de Lucerna e Angrogne enviaram</p><p>alguns grupos de homens armados para ajudarem seus irmãos de Saint</p><p>Germain. Essas corporações de homens armados atacavam os ru�ões</p><p>frequentemente e, na maioria das vezes, derrotavam-nos totalmente. Isso</p><p>aterrorizou os monges a ponto de deixarem o mosteiro de Pignerol durante</p><p>algum tempo, até conseguirem reunir um conjunto de tropas regulares para</p><p>protegê-los.</p><p>O duque, não se considerando tão bem-sucedido quanto, a princípio,</p><p>imaginara ser, aumentou muito suas forças, ordenou que os bandos de</p><p>ru�ões, pertencentes aos monges, juntassem-se a ele e ordenou uma soltura</p><p>geral da prisão, desde que as pessoas libertadas portassem armas e se</p><p>transformassem em pequenas companhias para ajudar no extermínio dos</p><p>valdenses.</p><p>Informados desses acontecimentos, os valdenses garantiram o máximo</p><p>possível de seus bens e abandonaram os vales, retirando-se para as rochas e</p><p>cavernas entre os Alpes. Entenda-se que os vales do Piemonte estão situados</p><p>no sopé daquelas prodigiosas montanhas denominadas Alpes.</p><p>Então, o exército começou a saquear e queimar todas as cidades e aldeias</p><p>aonde chegasse, mas as tropas não conseguiram forçar as passagens para os</p><p>Alpes, defendidas corajosamente pelos valdenses, que sempre repeliram seus</p><p>inimigos. Porém, se alguém caísse nas mãos das tropas, com certeza seria</p><p>tratado com a mais bárbara severidade.</p><p>Um soldado que pegou um dos valdenses arrancou a orelha direita deste</p><p>com uma mordida e declarou: “Levarei comigo para o meu país essa parte</p><p>desse herege perverso e a preservarei como uma raridade”. Então, esfaqueou</p><p>o homem e o jogou em uma vala.</p><p>Um grupo das tropas encontrou um homem venerável, com mais de</p><p>100 anos de idade, juntamente com sua neta, uma donzela com</p><p>aproximadamente 18 anos, em uma caverna. Eles trucidaram o pobre idoso</p><p>da maneira mais desumana e depois tentaram violentar a garota, que correu</p><p>e fugiu deles. Durante a perseguição, ela se jogou de um precipício e</p><p>pereceu.</p><p>Para conseguirem repelir a força pela força com mais e�cácia, os</p><p>valdenses se associaram às potências protestantes da Alemanha e com os</p><p>reformados de Dauphiny e Pragela. Estes deveriam fornecer companhias de</p><p>tropas. Assim reforçados, os valdenses decidiram abandonar as montanhas</p><p>dos Alpes (onde logo teriam perecido, porque o inverno estava chegando) e</p><p>forçar o exército do duque a sair de seus vales nativos.</p><p>Agora, o duque de Savoy estava cansado da guerra. Ela lhe custara</p><p>grande fadiga e ansiedade, um grande número de homens e uma soma</p><p>muito considerável de dinheiro. Ela fora muito mais tediosa e sangrenta do</p><p>que ele esperava, além de mais cara do que, a princípio, ele poderia ter</p><p>imaginado, pois pensou que a pilhagem compensaria as despesas da</p><p>expedição. Entretanto, estava enganado, visto que o representante papal, os</p><p>bispos, os monges e outros eclesiásticos, que compuseram o exército e</p><p>incentivaram a guerra, inventaram várias desculpas para �car com a maior</p><p>parte da riqueza tomada. Por essas razões e a morte de sua duquesa, da qual</p><p>ele acabara de ser informado, e temendo que os valdenses, pelos tratados</p><p>que haviam �rmado, se tornassem mais poderosos do que nunca, ele</p><p>decidiu voltar a Turim com seu exército e fazer as pazes com os valdenses.</p><p>Ele cumpriu sua decisão, embora muito contrariamente à vontade dos</p><p>eclesiásticos, que foram os que mais ganharam e se agradaram com a</p><p>vingança. Antes de as cláusulas da paz serem rati�cadas, o próprio duque</p><p>morreu, pouco depois de retornar a Turim. Contudo, em seu leito de</p><p>morte, ordenou estritamente ao �lho que cumprisse a sua decisão e fosse o</p><p>mais favorável possível aos valdenses.</p><p>Seu �lho Carlos Emanuel o sucedeu no governo de Savoy e con�rmou</p><p>totalmente a paz com os valdenses nos termos das últimas injunções de seu</p><p>pai, embora os eclesiásticos houvessem feito todo o possível para convencê-</p><p>lo do contrário.</p><p>UM RELATO DAS PERSEGUIÇÕES EM VENEZA</p><p>Enquanto o Estado de Veneza esteve livre de inquisidores, um grande</p><p>número de protestantes �xou sua residência lá, e muitas conversões</p><p>aconteceram devido à pureza das doutrinas que eles professavam e pela</p><p>inofensividade de suas palavras.</p><p>Em 1542, informado do grande avanço do protestantismo, o papa</p><p>enviou a Veneza inquisidores para conduzir uma investigação acerca do</p><p>assunto e deter os que considerassem ofensivos. Começou, então, uma</p><p>severa perseguição, e muitas pessoas dignas foram martirizadas por servir a</p><p>Deus com pureza e escarnecer das armadilhas da idolatria.</p><p>Os protestantes foram privados da vida de diversas maneiras. No</p><p>entanto, um método especí�co, engendrado na ocasião, será descrito a</p><p>seguir: assim que a sentença era proferida, o prisioneiro era acorrentado a</p><p>uma enorme pedra. Na sequência, era deitado sobre uma prancha com o</p><p>rosto voltado para cima e levado por dois barcos a remo até certa distância</p><p>no mar. Então, os barcos se afastavam e o condenado afundava devido ao</p><p>peso da pedra.</p><p>Se alguém negava a jurisdição dos inquisidores em Veneza, era enviado a</p><p>Roma, onde, sendo propositalmente colocado em uma prisão úmida e</p><p>nunca convocado para uma audiência, sua carne apodrecia e ele morria em</p><p>meio ao sofrimento.</p><p>Um cidadão de Veneza, Anthony Ricetti, foi preso como protestante e</p><p>condenado ao afogamento da maneira descrita anteriormente. Alguns dias</p><p>antes do momento marcado para a sua execução, seu �lho foi vê-lo e lhe</p><p>implorou que se retratasse, para que sua vida fosse salva e ele mesmo não</p><p>�casse órfão de pai. A isso, o pai respondeu: “Um bom cristão é obrigado a</p><p>abandonar não apenas bens e �lhos, mas a própria vida, para a glória de seu</p><p>Redentor.</p><p>Portanto, estou decidido a sacri�car tudo que há neste mundo</p><p>transitório pela causa da salvação em um mundo que permanecerá por toda</p><p>eternidade”.</p><p>Os senhores de Veneza também lhe enviaram a notícia de que, se ele</p><p>abraçasse a religião católica romana, não apenas poupariam sua vida, como</p><p>também resgatariam um patrimônio considerável que ele hipotecara e o</p><p>devolveriam a ele gratuitamente. No entanto, ele terminantemente se</p><p>recusou a concordar com isso, respondendo aos nobres que ele valorizava</p><p>sua alma acima de qualquer outra consideração. Ricetti, ao ser informado</p><p>de que um companheiro de prisão chamado Francis Sega havia se retratado,</p><p>respondeu: “Se ele abandonou a Deus, tenho pena dele, mas continuarei</p><p>�rme em meu dever”. Após todos os esforços para convencê-lo a renunciar</p><p>à sua fé terem se mostrado ine�cazes, ele foi executado em conformidade</p><p>com sua sentença, morrendo alegremente e recomendando sua alma</p><p>fervorosamente ao Todo-poderoso.</p><p>O que Ricetti ouvira acerca da apostasia de Francis Sega era</p><p>absolutamente falso. Ele nunca se propusera a retratar-se, persistindo</p><p>�rmemente em sua fé. Por isso, ele foi executado alguns dias depois de</p><p>Ricetti e da mesma maneira.</p><p>Francis Spinola, um cavalheiro protestante de grande cultura, preso por</p><p>ordem dos inquisidores, foi levado perante o tribunal deles. Um tratado</p><p>sobre a Ceia do Senhor foi então colocado em suas mãos e lhe perguntaram</p><p>se conhecia o autor, ao que ele respondeu: “Confesso ser o autor e, ao</p><p>mesmo tempo, a�rmo solenemente não haver nele uma única linha não</p><p>legitimada pelas Sagradas Escrituras e não consonante com elas”. Com essa</p><p>con�ssão, ele foi aprisionado em uma masmorra durante vários dias.</p><p>Levado a um segundo interrogatório, ele acusou o delegado do papa e os</p><p>inquisidores de serem bárbaros impiedosos e, em seguida, apresentou as</p><p>superstições e idolatrias praticadas pela Igreja Romana sob uma luz tão</p><p>brilhante que, incapazes de refutar seus argumentos, eles o enviaram de</p><p>volta à masmorra, para fazê-lo se arrepender do que havia dito.</p><p>Em seu terceiro interrogatório, eles lhe perguntaram se ele se retrataria</p><p>de seu erro, ao que ele respondeu que as doutrinas que ele sustentava não</p><p>eram errôneas, sendo puramente as mesmas que Cristo e Seus apóstolos</p><p>ensinaram e nos sido transmitidas nos escritos sagrados. Os inquisidores o</p><p>sentenciaram a ser afogado, o que foi executado da maneira já descrita. Ele</p><p>enfrentou a morte com a máxima serenidade, parecendo desejar a extinção</p><p>e declarando que o prolongamento de sua vida apenas retardara a</p><p>verdadeira felicidade que só se poderia esperar no mundo porvir.</p><p>UM RELATO SOBRE VÁRIOS NOTÁVEIS INDIVÍDUOS MARTIRIZADOS</p><p>EM DIFERENTES PARTES DA ITÁLIA POR CAUSA DA RELIGIÃO DELES</p><p>Giovanni Mollio nasceu em Roma, de pais respeitáveis. Aos 12 anos,</p><p>colocaram-no no mosteiro dos Frades Cinzentos, onde ele fez um progresso</p><p>tão rápido nas artes, nas ciências e nos idiomas que, aos 18 anos, foi</p><p>autorizado a ser ordenado sacerdote.</p><p>Foi, então, enviado a Ferrara, onde, após continuar seus estudos durante</p><p>mais seis anos, tornou-se o responsável pela teologia na universidade</p><p>daquela cidade. Ele agora usava, com infelicidade, seus grandes talentos</p><p>para disfarçar as verdades do evangelho e encobrir o erro da Igreja Romana.</p><p>Depois de alguns anos de residência em Ferrara, mudou-se para a</p><p>universidade de Bolonha, onde se tornou professor. Após ler alguns tratados</p><p>escritos por ministros da religião reformada, tornou-se totalmente</p><p>consciente dos erros do papismo e logo se tornou um protestante zeloso em</p><p>seu coração.</p><p>Assim, determinou-se a expor, em conformidade com a pureza do</p><p>evangelho, a epístola do apóstolo Paulo aos Romanos, em um programa</p><p>regular de sermões. A quantidade de pessoas que assistiam continuamente à</p><p>sua pregação era surpreendente, mas, quando os sacerdotes descobriram o</p><p>teor de suas doutrinas, despacharam um relatório explicando o caso a</p><p>Roma. Então, o papa enviou a Bolonha um monge, chamado Cornélio,</p><p>para expor a mesma epístola, em conformidade com os dogmas da Igreja</p><p>Romana. As pessoas, porém, encontraram tanta disparidade entre os dois</p><p>pregadores que o público de Mollio aumentou, e Cornélio foi forçado a</p><p>pregar para bancos vazios.</p><p>Cornélio escreveu um relato de seu insucesso ao papa, que enviou</p><p>imediatamente uma ordem de prisão contra Mollio, o qual foi</p><p>consequentemente detido e mantido em con�namento. O bispo de</p><p>Bolonha enviou-lhe a notícia de que ele deveria retratar-se ou ser</p><p>queimado, mas ele apelou a Roma e foi transferido para lá.</p><p>Em Roma, ele implorou por um julgamento público, mas o papa o</p><p>negou em absoluto e ordenou que ele �zesse, por escrito, um relato de suas</p><p>opiniões, ao que ele atendeu, contendo os seguintes tópicos: pecado</p><p>original; livre-arbítrio; a infalibilidade da Igreja Romana; a infalibilidade do</p><p>papa; justi�cação pela fé; purgatório; transubstanciação; missa; con�ssão</p><p>auricular; orações pelos mortos; a hóstia; orações a santos; participação em</p><p>peregrinações; extrema unção; realização de cultos em língua desconhecida</p><p>etc.</p><p>Tudo isso ele corroborou com a autoridade das Escrituras. Nessa</p><p>ocasião, por razões políticas, o papa o poupou temporariamente; porém,</p><p>logo depois mandou detê-lo e matá-lo. Ele foi enforcado e, em seguida, seu</p><p>corpo queimado até virar cinzas, em 1553.</p><p>No ano seguinte, Francis Gamba, um lombardo de credo protestante,</p><p>foi detido e condenado à morte pelo senado de Milão. No local da</p><p>execução, um monge lhe apresentou uma cruz, e ele disse: “Minha mente</p><p>está tão cheia dos verdadeiros méritos e da bondade de Cristo, que não</p><p>quero que um pedaço de madeira sem sentido me lembre dele”. Por essa</p><p>expressão, sua língua foi perfurada e, depois, ele foi queimado.</p><p>Em 1555, Algério, estudante da Universidade de Pádua e homem de</p><p>grande conhecimento, adotou a religião reformada e fez todo o possível</p><p>para converter outras pessoas. Por esses atos, foi acusado de heresia ao papa</p><p>e, sendo detido, foi levado à prisão de Veneza.</p><p>Ao ser informado do grande conhecimento e das surpreendentes</p><p>habilidades naturais de Algério, o papa pensou ser de extrema serventia à</p><p>Igreja Romana se pudesse induzi-lo a abandonar a causa protestante. Assim,</p><p>ordenou que o enviassem a Roma e tentou convencê-lo por meio das mais</p><p>profanas promessas. Porém, diante da ine�cácia de seus esforços, ordenou</p><p>que ele fosse queimado, sentença obedientemente cumprida.</p><p>Em 1559, João Aloísio, enviado de Genebra para pregar na Calábria, foi</p><p>ali detido como protestante, levado a Roma e queimado por ordem do</p><p>papa; e, pela mesma razão, James Bovelius foi queimado em Messina.</p><p>Em 1560, o Papa Pio IV ordenou que todos os protestantes fossem</p><p>severamente perseguidos nos estados italianos. Um grande número de</p><p>pessoas de todas as idades, independentemente de sexo e condição, sofreu</p><p>martírio. Em uma carta dirigida a um nobre senhor, um católico romano</p><p>erudito e compassivo mencionou as crueldades praticadas nessa ocasião:</p><p>“Não posso, meu senhor, deixar de revelar meus sentimentos quanto à</p><p>perseguição que ocorre agora; penso ser cruel e desnecessária. Tremo diante</p><p>da forma que matam, por se assemelhar mais ao abate de bezerros e ovelhas</p><p>do que à execução de seres humanos. Relatarei a Vossa Senhoria uma cena</p><p>terrível, da qual fui testemunha ocular. Setenta protestantes foram presos</p><p>juntos em uma masmorra imunda. O carrasco entrou no meio deles,</p><p>escolheu um qualquer e o vendou, levou-o a um local aberto diante da</p><p>prisão e cortou-lhe a garganta com a maior calma. Então, ensanguentado</p><p>como estava, voltou calmamente à prisão e, com a faca na mão, escolheu</p><p>outro e o assassinou da mesma maneira; e isso, meu senhor, ele repetiu até</p><p>matar todos eles. Deixo à discrição de Vossa Senhoria julgar minha</p><p>comoção quanto àquela ocasião. Agora, minhas lágrimas lavam o papel em</p><p>que lhe escrevo este relato. Outra coisa que preciso mencionar: a paciência</p><p>com que eles enfrentaram a morte — pareciam tomados de toda resignação</p><p>e piedade, orando fervorosamente a Deus e aceitando alegremente seu</p><p>destino. Não consigo re�etir, sem tremer, sobre a</p><p>apenas 10</p><p>anos após a morte de Estêvão, pois, assim que Herodes Agripa foi nomeado</p><p>governador da Judeia, com o intuito de agradar ao povo, ele levantou uma</p><p>forte perseguição contra os cristãos e, determinado a dar um golpe e�caz,</p><p>atacou seus líderes. O relato apresentado por um primevo e eminente</p><p>escritor, Clemente de Alexandria, não deve ser negligenciado. Ele conta</p><p>que, quando Tiago foi levado ao lugar do martírio, diante da extraordinária</p><p>coragem e destemor do apóstolo, seu acusador se arrependeu de sua</p><p>conduta e caiu aos seus pés para pedir perdão, professando-se cristão e</p><p>decidindo que Tiago não deveria receber sozinho a coroa do martírio. Por</p><p>isso, os dois foram decapitados ao mesmo tempo. Assim, o primeiro mártir</p><p>apostólico recebeu com alegria e determinação o cálice que ele havia dito ao</p><p>nosso Salvador que estava pronto para beber. Timão e Pármenas sofreram</p><p>martírio na mesma época; o primeiro, em Filipos; o outro, na Macedônia.</p><p>Esses eventos ocorreram no ano 44 d.C.</p><p>O mar�rio de São Estevão, por Annibale Carracci (1560–1609). Parte do acervo do</p><p>Museu do Louvre, em Paris, França.</p><p>3. FILIPE</p><p>Nasceu em Betsaida, na Galileia, e foi o primeiro a ser chamado de</p><p>“discípulo”. Trabalhou diligentemente na Ásia Superior e sofreu martírio</p><p>em Heliópolis, na Frígia. Ele foi açoitado, lançado na prisão e, depois,</p><p>cruci�cado no ano 54 d.C.</p><p>4. MATEUS</p><p>Cobrador de impostos, nasceu em Nazaré. Escreveu seu evangelho em</p><p>hebraico que, depois, foi traduzido para o grego por Tiago, o menor. O</p><p>cenário de suas obras foi Pártia e Etiópia. Nesse último país, ele sofreu</p><p>martírio, sendo morto com uma alabarda1 na cidade de Nadabah, no ano</p><p>60 d.C.</p><p>5. TIAGO, O MENOR</p><p>Alguns supõem que ele teria sido irmão do nosso Senhor por parte de uma</p><p>ex-esposa de José. Isso é muito duvidoso e apoia demasiadamente a</p><p>superstição católica de que Maria nunca teve outros �lhos além do nosso</p><p>Salvador. Tiago foi eleito supervisor das igrejas de Jerusalém e foi o autor da</p><p>epístola atribuída a Tiago no cânone sagrado. Aos 94 anos, ele foi</p><p>espancado e apedrejado pelos judeus e, por �m, seu crânio esmagado com</p><p>uma clava de assentador.</p><p>6. MATIAS</p><p>Ele é um dos quais menos se sabe em comparação com a maioria dos outros</p><p>discípulos. Matias foi eleito para ocupar o lugar vago de Judas. Ele foi</p><p>apedrejado em Jerusalém e, depois, decapitado.</p><p>A crucificação de Santo André, por Fran Francken II (1581–1642). Parte do acervo do</p><p>Museu de Arte de Los Angeles County, EUA.</p><p>7. ANDRÉ</p><p>Era o irmão de Pedro. Pregou o evangelho a muitas nações da Ásia, mas, ao</p><p>chegar a Edessa, foi preso e cruci�cado. As duas extremidades da cruz</p><p>estavam �xadas transversalmente no chão, decorrendo disso o termo Cruz</p><p>de Santo André.</p><p>8. MARCOS</p><p>Seus pais eram judeus da tribo de Levi. Supõe-se que ele tenha sido</p><p>convertido ao cristianismo pela in�uência de Pedro, a quem serviu como</p><p>amanuense e sob cuja supervisão escreveu seu evangelho em grego. Ele foi</p><p>esquartejado pelo povo durante a grande celebração a Serápis, ídolo de</p><p>Alexandria. As impiedosas mãos dos alexandrinos puseram �m à vida de</p><p>Marcos.</p><p>9. PEDRO</p><p>Dentre muitos outros santos, o bendito apóstolo Pedro foi condenado à</p><p>morte e cruci�cado, como alguns registros, em Roma, embora outros, e não</p><p>sem motivo, duvidem disso.</p><p>Crucificação de São Pedro, por Luca Giordano (1634–1705). Parte do acervo de</p><p>Accademia, em Veneza, Itália.</p><p>Hegésipo a�rma que Nero procurava acusações contra Pedro para matá-</p><p>lo e, ao perceberem isso, as pessoas imploraram veementemente a Pedro que</p><p>fugisse da cidade. Devido à longa importunação deles, Pedro se convenceu</p><p>e preparou-se para se evadir. Porém, chegando ao portão, viu o Senhor</p><p>Cristo vir ao seu encontro, a quem ele, adorando, disse: “Senhor, para onde</p><p>vais?”, ao que Ele respondeu: “Voltei para ser cruci�cado”. Com isso, Pedro,</p><p>percebendo que seu sofrimento devia ser entendido, retornou à cidade.</p><p>Jerônimo diz que Pedro exigiu ser cruci�cado com a cabeça para baixo e os</p><p>pés para cima, por ser, segundo ele, indigno de ser cruci�cado da mesma</p><p>forma e maneira como o Senhor fora.</p><p>10. PAULO</p><p>Após seu grande trabalho e seus indescritíveis esforços na promoção do</p><p>evangelho de Cristo, o apóstolo Paulo, antes chamado Saulo, também</p><p>sofreu nessa primeira perseguição sob o governo de Nero.</p><p>Abdias declara que Nero enviou dois de seus escudeiros, Ferega e</p><p>Partêmio, para transmitir a Paulo a sua sentença de morte.</p><p>Aproximando-se de Paulo, que instruía o povo, desejaram que ele orasse</p><p>por eles para que cressem [em Jesus]. O apóstolo lhes disse que, pouco</p><p>depois, haveriam de crer e ser batizados no Seu sepulcro. Feito isso, os</p><p>soldados vieram e o levaram para fora da cidade até o local da execução,</p><p>onde ele, após orar, entregou o pescoço à espada.</p><p>A Conversão de São Paulo a Caminho de Damasco, por Jose Ferraz de Almeida Júnior</p><p>(1850–1899). Parte do acervo do Museu Paulista da USP, São Paulo.</p><p>11. JUDAS</p><p>Ele era irmão de Tiago, comumente chamado Tadeu. Foi cruci�cado em</p><p>Edessa, no ano 72 d.C.</p><p>12. BARTOLOMEU</p><p>Pregou em vários países e traduziu o evangelho de Mateus para o idioma</p><p>indiano, propagando-o nesse país. Por �m, foi cruelmente espancado e,</p><p>depois, cruci�cado pelos intolerantes idólatras.</p><p>13. TOMÉ</p><p>Chamado Dídimo, pregou o evangelho na Pártia e na Índia, onde suscitou</p><p>a fúria dos sacerdotes pagãos; foi martirizado sendo atravessado por uma</p><p>lança.</p><p>14. LUCAS</p><p>Autor do evangelho que recebe o seu nome, viajou com Paulo por vários</p><p>países e, segundo se supõe, foi enforcado em uma oliveira pelos sacerdotes</p><p>idólatras da Grécia.</p><p>15. SIMÃO</p><p>Apelidado Zelote, pregou o evangelho na Mauritânia, África, e até mesmo</p><p>na Grã-Bretanha, onde foi cruci�cado no ano 74 d.C.</p><p>16. JOÃO</p><p>O “discípulo amado” era irmão de Tiago, o grande. As igrejas de Esmirna,</p><p>Pérgamo, Sardes, Filadél�a, Laodiceia e Tiatira foram fundadas por ele. De</p><p>Éfeso, ele recebeu ordem de ser enviado a Roma, e a�rma-se que ali ele foi</p><p>lançado em um caldeirão de óleo fervente. Ele escapou por milagre, sem</p><p>ferimentos. Depois, Domiciano o baniu para a ilha de Patmos, onde ele</p><p>escreveu o livro de Apocalipse. Nerva, o sucessor de Domiciano, lembrou-se</p><p>dele. João foi o único apóstolo a escapar de uma morte violenta.</p><p>17. BARNABÉ</p><p>Natural de Chipre, mas de ascendência judaica. Sua morte deve ter</p><p>ocorrido por volta do ano 73 d.C.</p><p>A despeito de todas as perseguições contínuas e punições horríveis, a</p><p>Igreja crescia diariamente, profundamente enraizada na doutrina dos</p><p>apóstolos e de homens apostólicos, sendo abundantemente regada com o</p><p>sangue dos santos.</p><p>Incêndio em Roma, por Hubert Robert (1733–1808). Parte do acervo do Museu</p><p>Hermitage, em São Petersburgo, Rússia.</p><p>1 Arma an�ga composta por uma longa haste, rematada por uma peça pon�aguda, de</p><p>ferro, que é atravessada por uma lâmina em forma de meia-lua, com um gancho ou</p><p>esporão no outro lado.</p><p>Capítulo 2</p><p>As dez primeiras perseguições</p><p>A PRIMEIRA PERSEGUIÇÃO, SOB O GOVERNO DE NERO, 67 D.C.</p><p>A primeira perseguição à Igreja ocorreu no ano 67, sob o comando de</p><p>Nero, o sexto imperador de Roma. Esse monarca reinou durante cinco anos</p><p>com um desempenho tolerável, no entanto, depois deu lugar à maior</p><p>extravagância de temperamento e às mais extremas barbáries. Dentre outros</p><p>caprichos diabólicos2, ele ordenou que a cidade de Roma fosse incendiada,</p><p>e essa ordem foi executada por seus o�ciais, guardas e servos. Enquanto a</p><p>cidade imperial ardia em chamas, ele subiu à torre de Mecenas, tocou sua</p><p>lira, cantou a canção da queima de Troia e declarou abertamente que</p><p>“desejava a ruína de tudo antes de sua morte”. Além do nobre</p><p>conglomerado chamado Circo, muitos outros palácios e casas foram</p><p>consumidos pelo fogo e milhares de pessoas pereceram nas chamas, foram</p><p>as�xiadas pela fumaça ou enterradas sob as ruínas.</p><p>Essa terrível con�agração durou nove dias. Ao descobrir que sua</p><p>conduta fora muito condenada e um forte ódio fora lançado sobre ele, Nero</p><p>determinou-se a culpar os cristãos, enquanto eximia-se de toda</p><p>responsabilidade, assim teve mais oportunidades de fartar sua vista com</p><p>novas crueldades. Essa foi a ocasião da</p><p>maneira como o carrasco</p><p>segurava a faca ensanguentada entre os dentes; que �gura terrível ele</p><p>parecia, todo coberto de sangue e com que despreocupação ele cumpria a</p><p>sua bárbara função.”</p><p>Certo dia, um jovem inglês, que estava em Roma, passava por uma</p><p>igreja quando a procissão da hóstia estava saindo. Um bispo carregava a</p><p>hóstia e, ao percebê-lo, o jovem a arrebatou do bispo, jogou-a no chão e a</p><p>pisoteou, gritando: “Vós, idólatras desgraçados, que negligenciais o</p><p>verdadeiro Deus para adorardes um bocado de pão”. Esse ato provocou</p><p>tanto as pessoas, que elas o teriam despedaçado no local, mas os sacerdotes</p><p>as convenceram a deixá-lo ser submetido à sentença do papa.</p><p>Quando o caso foi apresentado ao papa, este �cou tão fortemente</p><p>exasperado que ordenou que o prisioneiro fosse queimado imediatamente.</p><p>Porém, um cardeal o dissuadiu dessa precipitada sentença, dizendo que era</p><p>melhor puni-lo lentamente e torturá-lo, para que eles pudessem descobrir</p><p>se ele havia sido instigado por alguém em particular a cometer um ato tão</p><p>atroz.</p><p>Isso foi aprovado e o jovem foi torturado com a mais exemplar</p><p>severidade. Não obstante, eles conseguiram obter dele somente estas</p><p>palavras: “Foi da vontade de Deus eu fazer o que �z”.</p><p>Então, o papa sentenciou:</p><p>1. Que ele fosse levado pelo carrasco, de tórax nu, pelas ruas de Roma;</p><p>2. que ele usasse na cabeça a imagem do diabo;</p><p>3. que seu calção fosse pintado com a representação de chamas;</p><p>4. que sua mão direita fosse decepada e</p><p>5. que, após ser levado assim em procissão, fosse queimado.</p><p>Quando ele ouviu essa sentença ser pronunciada, implorou a Deus que</p><p>lhe desse força e bravura para enfrentá-la. Ao passar pelas ruas, foi muito</p><p>escarnecido pelo povo, a quem ele disse algumas coisas severas acerca da</p><p>superstição romana. Porém, um cardeal que participava da procissão,</p><p>ouvindo-o, ordenou que o prisioneiro fosse amordaçado.</p><p>Ao chegar à porta da igreja, onde ele pisoteara a hóstia, o carrasco lhe</p><p>decepou a mão direita e a colocou em um poste. Então, dois</p><p>atormentadores, com tochas �amejantes, chamuscaram e queimaram sua</p><p>carne ao longo do resto do caminho. No local da execução, ele beijou as</p><p>correntes que o prendiam à estaca. Um monge lhe apresentou a �gura de</p><p>um santo, que ele afastou com um golpe; o jovem foi então acorrentado à</p><p>estaca, a lenha foi acesa e, em pouco tempo, ele foi queimado até virar</p><p>cinzas.</p><p>Pouco tempo depois da última execução mencionada, um venerável</p><p>idoso, que há muito era prisioneiro da Inquisição, foi condenado a ser</p><p>queimado e, assim, foi levado para execução. Ao ser preso à estaca, um</p><p>sacerdote segurou um cruci�xo à sua frente ao que ele disse: “Se você não</p><p>tirar esse ídolo da minha vista, me obrigará a cuspir nele”. O sacerdote o</p><p>repreendeu por isso com grande severidade, mas ele pediu que o sacerdote</p><p>se lembrasse do primeiro e segundo mandamentos e se abstivesse de</p><p>idolatria, como o próprio Deus havia ordenado. Então, foi amordaçado</p><p>para não falar mais e, sendo acesa a lenha, sofreu martírio nas chamas.</p><p>UM RELATO DAS PERSEGUIÇÕES NO MARQUESADO DE SALUCES</p><p>Em 1561, o Marquesado de Saluces, no lado sul dos vales do Piemonte, era</p><p>habitado principalmente por protestantes, quando seu proprietário, o</p><p>marquês, iniciou uma perseguição contra eles por instigação do papa. Ele</p><p>começou banindo os pastores e, se algum deles se recusasse a deixar seu</p><p>rebanho, certamente seria preso e torturado severamente; entretanto, não</p><p>chegou ao ponto de mandar matar alguém.</p><p>Pouco depois, o marquesado se tornou propriedade do duque de Savoy,</p><p>que enviou cartas circulares a todas as cidades e vilas, dizendo esperar que o</p><p>povo se sujeitasse a ir à missa. Ao receberem essa carta, os habitantes de</p><p>Saluces responderam com uma epístola geral.</p><p>Após ler a carta, o duque não interrompeu os protestantes durante</p><p>algum tempo; �nalmente, porém, ordenou-lhes que se sujeitassem a ir à</p><p>missa ou deixassem seus domínios no prazo de 15 dias. Após esse decreto</p><p>inesperado, os protestantes enviaram um representante ao duque para obter</p><p>a revogação ou, pelo menos, a moderação dessa resolução. Porém, seus</p><p>protestos foram em vão e eles foram esclarecidos de que o decreto era</p><p>absoluto.</p><p>Mar�rio em Saluces, figura ilustra�va de O livro dos már�res, edição de 1851.</p><p>Alguns foram su�cientemente fracos e foram à missa para evitar o</p><p>banimento e preservar suas propriedades, outros se mudaram com todos os</p><p>seus bens para diferentes países, e muitos negligenciaram tanto o prazo, que</p><p>foram obrigados a abandonar tudo que possuíam e deixar o marquesado às</p><p>pressas. Aqueles que, infelizmente, �caram para trás foram detidos,</p><p>saqueados e mortos.</p><p>UM RELATO SOBRE AS PERSEGUIÇÕES NOS VALES DO PIEMONTE NO</p><p>SÉCULO 17</p><p>O papa Clemente VIII enviou missionários aos vales do Piemonte, para</p><p>persuadir os protestantes a renunciarem à sua religião. Esses missionários</p><p>erigiram mosteiros em várias partes dos vales e se tornaram extremamente</p><p>incômodos aos reformados, visto que os mosteiros apareceram não apenas</p><p>como fortalezas para inibi-los, mas também como santuários para onde</p><p>todos os que causassem algum dano aos reformados pudessem fugir.</p><p>Os protestantes peticionaram ao duque de Savoy contra aqueles</p><p>missionários, cuja insolência e maus costumes se tornaram intoleráveis.</p><p>Porém, em vez de obterem qualquer reparação, o interesse dos missionários</p><p>prevaleceu a ponto de o duque publicar um decreto, no qual declarava que</p><p>uma única testemunha seria su�ciente em um tribunal contra um</p><p>protestante e que qualquer testemunha que condenasse um protestante por</p><p>qualquer tipo de crime teria direito a cem coroas.</p><p>É fácil imaginar que, após a publicação de um decreto dessa natureza,</p><p>muitos protestantes caíram como mártires por conta de perjúrio e avareza,</p><p>uma vez que vários papistas vilões jurariam qualquer coisa contra os</p><p>protestantes visando a recompensa e depois, correriam para os seus próprios</p><p>sacerdotes a �m de obter absolvição de seus falsos juramentos. Se algum</p><p>católico romano com mais consciência do que os demais culpasse esses</p><p>sujeitos por seus crimes atrozes, corria o risco de ser delatado e punido</p><p>como benfeitor dos hereges.</p><p>Os missionários �zeram todo o possível para pôr as mãos nos livros dos</p><p>protestantes, a �m de queimá-los. Assim, com os protestantes se esforçando</p><p>ao máximo para esconder seus livros, os missionários escreveram ao duque</p><p>de Savoy, que, pelo hediondo crime de não entregarem suas Bíblias, livros</p><p>de oração e tratados religiosos, enviou várias tropas para se aquartelarem ali.</p><p>Esses militares da elite �zeram grandes estragos nas casas dos protestantes e</p><p>destruíram tal quantidade de provisões que muitas famílias �caram</p><p>arruinadas.</p><p>Para incentivar, tanto quanto possível, a apostasia dos protestantes, o</p><p>duque de Savoy publicou um édito em que dizia: “Para encorajar os hereges</p><p>a se tornarem católicos, é nossa vontade e prazer, e por meio desta</p><p>ordenamos expressamente que todos os que abraçarem a santa fé católica</p><p>romana gozarão de isenção de todo e qualquer imposto durante cinco anos</p><p>a partir do dia de sua conversão”. O duque de Savoy estabeleceu também</p><p>um tribunal, denominado “conselho para extirpação dos hereges”. Esse</p><p>tribunal deveria iniciar investigações acerca dos antigos privilégios das</p><p>igrejas protestantes e dos decretos que, de tempos em tempos, haviam sido</p><p>feitos em favor dos reformados. Porém, a investigação dessas coisas foi</p><p>realizada com a mais manifesta parcialidade. Privilégios antigos eram</p><p>desvirtuados e so�smas eram usados para perverter o signi�cado de tudo</p><p>que tendesse a favorecer os protestantes.</p><p>Como se essas severidades não fossem su�cientes, o duque publicou,</p><p>pouco depois, outro édito, no qual ordenava estritamente que nenhum</p><p>protestante atuasse como professor ou tutor, em público ou em particular,</p><p>ou se atrevesse a ensinar arte, ciência ou idioma, direta ou indiretamente, a</p><p>pessoas de qualquer crença.</p><p>Esse édito foi imediatamente seguido por outro, que decretava que</p><p>nenhum protestante deveria ocupar posição de benefício, con�ança ou</p><p>honra. E, para encerrar, o certo sinal de uma perseguição vindoura</p><p>foi</p><p>revelado em um decreto �nal, pelo qual foi positivamente ordenado que</p><p>todos os protestantes participassem diligentemente da missa.</p><p>A publicação de um édito contendo tal prescrição pode ser comparada</p><p>ao desenrolar de uma bandeira sangrenta, porque assassinato e rapina</p><p>certamente viriam. Um dos primeiros a atrair a atenção dos papistas foi o sr.</p><p>Sebastian Basan, um protestante zeloso que foi detido pelos missionários,</p><p>con�nado, atormentado durante 15 meses e, depois, queimado.</p><p>Antes da perseguição, os missionários empregavam raptores para</p><p>sequestrar os �lhos dos protestantes, a �m de que pudessem ser</p><p>secretamente criados como católicos romanos; agora, porém, levavam as</p><p>crianças à força e, se encontrassem resistência, matavam os pais.</p><p>Para dar maior vigor à perseguição, o duque de Savoy convocou uma</p><p>assembleia geral da nobreza católica romana e da classe abastada quando</p><p>um édito solene foi publicado contra os reformados. Este continha muitos</p><p>tópicos e incluía várias razões para extirpar os protestantes, dentre as quais</p><p>as seguintes:</p><p>1. Pela preservação da autoridade papal.</p><p>2. Para que a vida da igreja possa estar sob um único modo de governo.</p><p>3. Para criar união entre todas as partes.</p><p>4. Em honra de todos os santos e das cerimônias da Igreja Romana.</p><p>Esse severo édito foi seguido por uma ordem extremamente cruel,</p><p>publicada em 25 de janeiro de 1655 sob a sanção do duque, por Andrew</p><p>Gastaldo, doutor em leis civis. Essa ordem estabelecia “que todo chefe de</p><p>família e seus familiares da religião reformada, independentemente de</p><p>classe, grau ou condição, ninguém, excetuado habitante e dono de</p><p>propriedades em Lucerna, San Giovanni, Bibiana, Campiglione, San</p><p>Secondo, Lucernetta, La Torre, Fenile e Bricherassio, deveria, no prazo de</p><p>três dias após a publicação, retirar-se e partir, e ser retirado dos locais</p><p>mencionados, e mudar-se para os lugares e limites permitidos por sua alteza</p><p>durante o tempo que a ela aprouvesse, particularmente Bobbio, Angrogne,</p><p>Vilario, Rorata e o condado de Bonetti.</p><p>E tudo isso deverá ser feito sob pena de morte e con�sco de casas e bens,</p><p>a menos que, dentro do tempo estipulado, se tornassem católicos romanos”.</p><p>Uma retirada a essa velocidade, no meio do inverno, pode ser concebida</p><p>como uma tarefa não agradável, especialmente em um país quase cercado</p><p>por montanhas. A ordem repentina afetou a todos, e aquilo que</p><p>di�cilmente seriam notado em outra época aparecia, agora, sob a luz mais</p><p>visível. Mulheres com �lhos, ou mulheres recém-acamadas, não eram</p><p>merecedoras de piedade nessa ordem de remoção repentina, porque todas</p><p>estavam incluídas em tal decreto. Infelizmente, aconteceu de o inverno ser</p><p>notavelmente severo e rigoroso nessa ocasião.</p><p>Os papistas, porém, expulsaram as pessoas de suas habitações no</p><p>momento determinado, sem sequer lhes permitirem ter roupas su�cientes</p><p>para cobrir-se, e muitas pereceram nas montanhas devido à severidade do</p><p>clima ou por falta de comida. Algumas, porém, que �caram para trás após a</p><p>publicação do decreto, receberam o tratamento mais severo, sendo</p><p>assassinadas pelos habitantes papistas ou mortas a tiros pelas tropas</p><p>aquarteladas nos vales. Uma descrição especí�ca dessas crueldades é feita em</p><p>uma carta escrita por um protestante que estava no local e, felizmente,</p><p>fugiu da carni�cina. “O exército”, diz ele, “uma vez posicionado, tornou-se</p><p>muito numeroso pelo acréscimo de muitos habitantes papistas da região,</p><p>que, descobrindo que éramos as presas focadas pelos saqueadores, caíram</p><p>sobre nós com fúria impetuosa. Além das tropas do duque de Savoy e dos</p><p>habitantes papistas, havia vários regimentos de ajudantes franceses, algumas</p><p>companhias pertencentes às brigadas irlandesas e vários grupos formados</p><p>por fora-da-lei, contrabandistas e prisioneiros, aos quais havia sido</p><p>prometido perdão e liberdade neste mundo, e absolvição no próximo, por</p><p>ajudarem a exterminar os protestantes do Piemonte.</p><p>“Essa multidão armada, incentivada pelos bispos e monges católicos</p><p>romanos, caiu sobre os protestantes da maneira mais furiosa. Agora, nada</p><p>mais se via além da face do horror e do desespero, sangue manchando o</p><p>chão das casas, cadáveres espalhados pelas ruas, gemidos e gritos vindos de</p><p>todas as partes. Alguns se armaram e se envolveram em escaramuças com as</p><p>tropas, e muitos, com suas famílias, fugiram para as montanhas. Em certa</p><p>aldeia, eles atormentaram cruelmente 150 mulheres e crianças após os</p><p>homens haverem fugido, decapitando as mulheres e esmagando a cabeça</p><p>das crianças. Nas cidades de Vilario e Bobbio, a maioria dos que se</p><p>recusaram a ir à missa, acima de 15 anos, foi cruci�cada de cabeça para</p><p>baixo, e a maioria das pessoas abaixo dessa idade foi estrangulada.”</p><p>Sarah Ratignole des Vignes, uma mulher de 60 anos, foi detida por</p><p>alguns soldados, que lhe ordenaram fazer uma oração a alguns santos, o que</p><p>ela recusou. Eles lhe en�aram uma foice na barriga, rasgaram-na e, depois,</p><p>decapitaram-na.</p><p>Martha Constantine, uma bela jovem, foi tratada com grande</p><p>indecência e crueldade por vários soldados, que primeiramente a</p><p>estupraram e, depois, mataram-na lhe cortando os seios. Eles os fritaram e</p><p>puseram diante de alguns de seus camaradas, que os comeram sem saber o</p><p>que eram. Quando terminaram de comer, os outros lhes disseram o que</p><p>havia sido sua refeição; em consequência disso, iniciou-se uma briga,</p><p>espadas foram desembainhadas e ocorreu uma batalha. Vários foram mortos</p><p>na luta, a maior parte dos quais estivera envolvida no horrível massacre da</p><p>mulher e enganara tão desumanamente seus companheiros.</p><p>Alguns dos soldados detiveram um homem de rassiniere e, com as</p><p>pontas das espadas, atravessaram suas orelhas e seus pés. Então, arrancaram-</p><p>lhe as unhas dos dedos das mãos e dos pés com pinças em brasa,</p><p>amarraram-no ao rabo de um burro e o arrastaram pelas ruas. Finalmente,</p><p>amarraram uma corda em torno de sua cabeça e a torceram com um pedaço</p><p>de pau, de maneira tão violenta que a arrancaram do corpo.</p><p>Peter Symonds, um protestante de aproximadamente 80 anos, foi</p><p>amarrado pelo pescoço e calcanhares e, depois, jogado de um precipício. Na</p><p>queda, o galho de uma árvore enroscou as cordas que o prendiam e o</p><p>suspenderam no ar, de modo que ele de�nhou ao longo de vários dias e,</p><p>por �m, miseravelmente morreu de fome.</p><p>Esay Garcino, recusando-se a renunciar à sua religião, foi cortado em</p><p>pequenos pedaços, e os soldados, ridicularizando, disseram que o haviam</p><p>picado. Uma mulher chamada Armand foi esquartejada e, depois, as partes</p><p>foram penduradas em uma cerca viva; duas idosas foram rasgadas e deixadas</p><p>nos campos sobre a neve, onde pereceram, e uma mulher muito idosa, que</p><p>era deformada, teve o nariz e as mãos decepados e foi abandonada dessa</p><p>maneira para sangrar até a morte.</p><p>Um grande número de homens, mulheres e crianças foi arremessado das</p><p>rochas e despedaçado. Magdalen Bertino, uma mulher protestante de La</p><p>Torre, foi completamente despida e sua cabeça foi amarrada entre as pernas.</p><p>Ela foi arremessada de um dos precipícios, e Mary Raymondet, da mesma</p><p>cidade, teve a carne cortada dos ossos até morrer.</p><p>Magdalen Pilot, de Vilario, foi cortada em pedaços na caverna de</p><p>Castolus; Ann Charboniere teve uma ponta de uma estaca en�ada</p><p>verticalmente no corpo; o outro lado foi �xado no chão e ela foi deixada</p><p>assim para perecer. Jacob Perrin, o ancião, da igreja de Vilario, e David, seu</p><p>irmão, foram esfolados vivos.</p><p>Giovanni Andrea Michialm, habitante de La Torre, foi preso com</p><p>quatro de seus �lhos; três deles foram cortados em pedaços diante dele, com</p><p>os soldados perguntando, ao matar cada �lho, se ele renunciaria à sua</p><p>religião. Ele se recusava constantemente. Um dos soldados pegou o último,</p><p>o mais novo, pelas pernas e fez a mesma pergunta ao pai, que respondeu</p><p>como antes; então, o bruto desumano esmagou a cabeça desse �lho. O pai,</p><p>porém, no mesmo instante correu deles e fugiu. Os soldados dispararam</p><p>contra ele, mas erraram e, por sua rapidez, ele escapou e se escondeu nos</p><p>Alpes.</p><p>OUTRAS PERSEGUIÇÕES NOS VALES DO PIEMONTE, NO SÉCULO 17</p><p>Por se recusar a tornar-se papista, Giovanni Pelanchion</p><p>foi amarrado por</p><p>uma perna ao rabo de uma mula e arrastado pelas ruas de Lucerna, em</p><p>meio às aclamações de uma multidão desumana, que não parava de</p><p>apedrejá-lo e gritar: “Ele está possuído pelo diabo, para que nem o</p><p>apedrejamento nem o arrastamento pelas ruas o matem, pois o diabo o</p><p>mantém vivo”. Então, levaram-no até o rio, decapitaram-no e deixaram a</p><p>cabeça e o corpo desenterrados, na margem do rio.</p><p>Magdalen, �lha de Peter Fontaine, uma linda criança de 10 anos, foi</p><p>violentada e assassinada pelos soldados. Outra menina da mesma idade foi</p><p>assada viva em Villa Nova, e uma pobre mulher, ouvindo dizer que os</p><p>soldados estavam vindo em direção à sua casa, pegou o berço em que seu</p><p>�lho bebê estava dormindo e fugiu em direção à �oresta. Os soldados,</p><p>porém, a viram e a perseguiram; quando ela aliviou o peso largando o berço</p><p>e a criança, os soldados mataram o bebê. Continuando a perseguição,</p><p>encontraram a mãe em uma caverna, onde primeiramente a estupraram e,</p><p>depois, cortaram-na em pedaços.</p><p>Jacob Michelino, presbítero da igreja de Bobbio, e vários outros</p><p>protestantes foram pendurados com ganchos presos à barriga e deixados</p><p>para expirar nas torturas mais excruciantes.</p><p>Giovanni Rostagnal, um venerável protestante com mais de 80 anos,</p><p>teve o nariz e as orelhas decepados e cortadas fatias das partes carnudas do</p><p>corpo. Ele sangrou até a morte.</p><p>Sete pessoas — Daniel Seleagio e sua esposa, João Durant, Ludovico</p><p>Durant, Bartolomeu Durant, Daniel Revel e Paul Reynaud — tiveram suas</p><p>bocas enchidas com pólvora, que foi acesa, explodindo suas cabeças.</p><p>Por recusar-se a mudar de religião, Jacob Birone, um professor de</p><p>Rorata, foi totalmente despido e, após ser exposto com muita indecência,</p><p>teve as unhas dos dedos dos pés e das mãos arrancadas com pinças em</p><p>brasa, e suas mãos foram furadas com a ponta de uma adaga. Depois, uma</p><p>corda foi amarrada em sua cintura e ele foi conduzido pelas ruas com um</p><p>soldado a cada lado. A cada esquina, o soldado da direita lhe fazia um corte</p><p>na carne e o soldado da esquerda o atingia com um golpe, ambos dizendo</p><p>ao mesmo tempo: “Você irá à missa? Você irá à missa?”. Ele continuava</p><p>respondendo negativamente a essas perguntas e, sendo �nalmente levado</p><p>até a ponte, foi decapitado nas balaustradas. Sua cabeça e seu corpo foram</p><p>jogados no rio.</p><p>Paul Garnier, um protestante muito piedoso, teve seus olhos arrancados,</p><p>foi esfolado vivo e seu corpo foi dividido em quatro partes, que foram</p><p>colocadas em quatro das principais casas de Lucerna. Ele suportou todos os</p><p>seus sofrimentos com a mais exemplar paciência, louvou a Deus enquanto</p><p>conseguia falar e demonstrou claramente que uma boa consciência pode</p><p>inspirar con�ança e resignação.</p><p>Daniel Cardon, de Rocappiata, sendo detido por alguns soldados, foi</p><p>decapitado por eles, que fritaram seu cérebro e o comeram. Duas pobres</p><p>cegas, de San Giovanni, foram queimadas vivas, e uma viúva de La Torre e</p><p>sua �lha foram levadas ao rio e mortas por apedrejamento.</p><p>Ao tentar fugir de alguns soldados, Paul Giles levou um tiro no pescoço;</p><p>depois, fenderam seu nariz, cortaram seu queixo, esfaquearam-no e deram</p><p>sua carcaça aos cães.</p><p>Alguns dos soldados irlandeses aprisionaram 11 homens de Garcigliana,</p><p>acenderam uma fornalha em brasa e os forçaram a empurrar um ao outro</p><p>para dentro até o último homem, a quem eles mesmos empurraram.</p><p>Michael Gonet, um homem de 90 anos, foi queimado até a morte;</p><p>Baptista Oudri, outro idoso, foi esfaqueado, e Bartholomew Frasche teve</p><p>buracos feitos em seus calcanhares, através dos quais foram colocadas</p><p>cordas; depois, foi arrastado por eles até a prisão, onde seus ferimentos</p><p>necrosaram, levando-o à morte.</p><p>Magdalene de la Piere foi perseguida por alguns soldados e, capturada,</p><p>foi jogada de um precipício, e seu corpo �cou em pedaços. Margaret</p><p>Revella e Mary Pravillerin, duas mulheres muito idosas, foram queimadas</p><p>vivas, e Michael Bellino, juntamente com Ann Bochardno, foram</p><p>decapitados.</p><p>O �lho e a �lha de um conselheiro de Giovanni foram rolados juntos do</p><p>topo de uma colina íngreme e pereceram em um poço profundo no sopé da</p><p>mesma. A família de um comerciante, a saber: ele mesmo, sua esposa e um</p><p>bebê nos braços dela, foram lançados de uma rocha e se despedaçaram.</p><p>Joseph Chairet e Paul Carniero foram esfolados vivos.</p><p>Ao ser perguntado se renunciaria à sua religião e se tornaria católico</p><p>romano, Cipriano Bustia respondeu: “Pre�ro renunciar à vida ou tornar-me</p><p>um cão”. Ao que um sacerdote declarou: “Por essa expressão, você</p><p>renunciará à vida e será dado aos cães”. Consequentemente, eles o</p><p>arrastaram para a prisão, onde ele passou um tempo considerável sem</p><p>comida, até �car faminto. Depois disso, jogaram seu cadáver na rua diante</p><p>da prisão e ele foi devorado por cães da maneira mais chocante.</p><p>Margaret Saretta foi morta por apedrejamento e, depois, lançada no rio.</p><p>A cabeça de Antonio Bartina foi esfacelada, e Joseph Pont foi cortado ao</p><p>meio.</p><p>Daniel Maria e toda a sua família, doentes de febre, tiveram sua casa</p><p>invadida por vários ru�ões papistas, que disseram ser médicos habilidosos</p><p>que lhes dariam alívio, o que de fato �zeram golpeando a cabeça da família</p><p>inteira.</p><p>Três �lhos pequenos de um protestante chamado Peter Fine foram</p><p>cobertos com neve e morreram as�xiados. Judith, uma viúva idosa, foi</p><p>decapitada; uma bela jovem foi despida e teve uma estaca en�ada em seu</p><p>corpo, pelo que expirou.</p><p>Lucy, a esposa de Peter Besson, em estado avançado de gravidez, morava</p><p>em uma das aldeias dos vales piemonteses e decidiu, se possível, fugir de</p><p>cenas tão terríveis que a cercavam por todos os lados; assim, pegou os dois</p><p>�lhos pequenos, um em cada mão, e partiu em direção aos Alpes. Porém,</p><p>no terceiro dia de jornada, ela entrou em trabalho de parto entre as</p><p>montanhas e teve um bebê, que morreu em decorrência da extrema</p><p>inclemência do clima, assim como as outras duas crianças. Essa mulher</p><p>encontrou todos os três �lhos mortos, e ela mesma foi encontrada</p><p>expirando pela pessoa a quem relatou esses detalhes.</p><p>Francis Gros, �lho de um clérigo, teve sua carne lentamente cortada do</p><p>corpo em pedaços pequenos e colocada em um prato diante dele. Dois de</p><p>seus �lhos foram picados diante de seus olhos, e sua esposa foi amarrada a</p><p>um poste para assistir a todas essas crueldades praticadas contra o marido e</p><p>os �lhos. Por �m, cansados de praticar suas atrocidades, os atormentadores</p><p>decapitaram o marido e a esposa, depois lançaram aos cães a carne de toda a</p><p>família.</p><p>O sr. omas Margher fugiu para uma caverna, os soldados fecharam a</p><p>entrada e ele morreu de fome. Judith Revelin e sete �lhos foram</p><p>barbaramente assassinados em suas camas, e uma viúva de quase 80 anos foi</p><p>cortada em pedaços por soldados.</p><p>Jacob Roseno recebeu ordem para orar aos santos, mas se recusou em</p><p>absoluto. Assim alguns dos soldados o espancaram violentamente para fazê-</p><p>lo obedecer. Então, como ele ainda se recusava, vários dos soldados</p><p>dispararam contra ele, encravando muitas balas em seu corpo. Quando ele</p><p>estava quase expirando, eles gritaram: “Você invocará os santos? Você orará</p><p>aos santos?”. Ao que ele respondeu: “Não! Não! Não!”. Então, um dos</p><p>soldados, com uma espada larga, dividiu sua cabeça em pedaços, pondo �m</p><p>aos seus sofrimentos neste mundo, pelo que, sem dúvida, ele será</p><p>gloriosamente recompensado no vindouro.</p><p>Um soldado tentou violentar uma jovem chamada Susanna Gacquin,</p><p>que resistiu fortemente e, na luta, empurrou-o de um precipício; ele foi</p><p>dilacerado na queda. Seus camaradas, em vez de admirar a virtude da jovem</p><p>e aplaudi-la por defender tão nobremente sua castidade, caíram sobre ela</p><p>com suas espadas e a cortaram em pedaços.</p><p>Giovanni Pulhus, um pobre camponês de La Torre, detido pelos</p><p>soldados como protestante, foi condenado pelo marquês de Pianesta a ser</p><p>executado em um local próximo ao convento. Ao chegar à forca, vários</p><p>monges compareceram e �zeram todo o possível para convencê-lo a renegar</p><p>à sua religião. Porém, ele lhes disse que nunca abraçaria a idolatria e que</p><p>estava feliz por ser considerado digno de sofrer pelo nome de Cristo. Então,</p><p>eles o �zeram pensar no que</p><p>sua esposa e seus �lhos, que dependiam de seu</p><p>trabalho, sofreriam após sua morte, ao que ele respondeu: “Eu gostaria que,</p><p>assim como eu, minha esposa e meus �lhos considerassem suas almas mais</p><p>do que seus corpos e o mundo vindouro acima deste; e, quanto à angústia</p><p>em que poderei deixá-los, Deus é misericordioso e proverá para eles</p><p>enquanto forem dignos da Sua proteção”. Diante da in�exibilidade daquele</p><p>pobre homem, os monges esbravejaram: “Calem-no! Calem-no!”, o que o</p><p>carrasco fez quase imediatamente. O seu corpo, posteriormente cortado em</p><p>pedaços, foi lançado no rio.</p><p>Paul Clement, ancião da igreja de Rossana, foi detido pelos monges de</p><p>um mosteiro vizinho e levado para o mercado daquela cidade, onde alguns</p><p>protestantes haviam acabado de ser executados pelos soldados. Mostraram-</p><p>lhe os cadáveres, para que a visão o intimidasse. Observando os corpos, em</p><p>condições chocantes, ele calmamente disse: “Vocês podem matar o corpo,</p><p>mas não podem causar danos à alma de um verdadeiro crente. Entretanto,</p><p>quanto aos terríveis espetáculos que me mostraram aqui, podem estar certos</p><p>de que a vingança de Deus alcançará os assassinos daquelas pobres pessoas e</p><p>os castigará pelo sangue inocente que derramaram”. Os monges �caram tão</p><p>exasperados com essa resposta, que ordenaram que ele fosse enforcado</p><p>imediatamente. Enquanto ele estava pendurado, os soldados se divertiam, a</p><p>certa distância, atirando no corpo como se fosse um alvo.</p><p>Daniel Rambaut, de Vilario, pai de uma família numerosa, foi detido e,</p><p>com vários outros, levado à prisão de Paesana. Ali, foi visitado por vários</p><p>sacerdotes, que, com contínuas importunações, �zeram todo o possível para</p><p>convencê-lo a renunciar à religião protestante e tornar-se papista. Ele se</p><p>recusou peremptoriamente e, diante da determinação dele, os sacerdotes</p><p>�ngiram ter dó de sua numerosa família e lhe disseram que ele ainda</p><p>poderia preservar sua vida se concordasse em crer no seguinte:</p><p>1. A real presença da hóstia;</p><p>2. transubstanciação;</p><p>3. purgatório;</p><p>4. a infalibilidade do papa;</p><p>5. as missas rezadas pelos mortos libertarão almas do purgatório e</p><p>6. orar aos santos obterá a remissão de pecados.</p><p>O sr. Rambaut respondeu aos padres que nem sua religião, nem seu</p><p>entendimento, nem sua consciência permitiriam que ele endossasse</p><p>qualquer um dos itens, pelas seguintes razões:</p><p>1. Crer na presença real na hóstia é uma chocante união de blasfêmia e</p><p>idolatria;</p><p>2. crer que as palavras de consagração realizam o que os papistas</p><p>denominam transubstanciação, convertendo a hóstia e o vinho no</p><p>corpo e no sangue reais e idênticos de Cristo, que foi cruci�cado e</p><p>depois subiu ao Céu, é um absurdo demasiadamente grosseiro para ser</p><p>crido até por uma criança que não atingiu a mínima razão, e que nada,</p><p>além da mais cega superstição, poderia fazer com que os católicos</p><p>romanos con�assem em algo tão absolutamente ridículo;</p><p>3. a doutrina do purgatório era mais inconsistente e absurda que um</p><p>conto de fadas;</p><p>4. o papa ser infalível era impossível, pois reivindicava arrogantemente</p><p>algo que pertence somente a Deus, que é perfeito;</p><p>5. rezar missas pelos mortos era ridículo, e seu único propósito era</p><p>manter a crença na fábula do purgatório, uma vez que o destino de</p><p>todos é de�nitivamente decidido quando a alma sai do corpo e</p><p>6. orar aos santos pela remissão de pecados é deturpar a adoração, uma</p><p>vez que os próprios santos têm em Cristo um intercessor. Portanto,</p><p>como somente Deus pode perdoar os nossos erros, devemos buscar</p><p>unicamente nele o perdão.</p><p>Os sacerdotes �caram tão ofendidos com as respostas do sr. Rambaut</p><p>aos itens que eles desejavam que ele endossasse, que decidiram abalar sua</p><p>resolução pelo método mais cruel imaginável: ordenaram que uma</p><p>articulação de seu dedo fosse decepada todos os dias, até não lhe restarem</p><p>dedos. Procederam da mesma maneira com os dedos dos pés, depois, todos</p><p>os dias, deceparam alternadamente uma mão e um pé. Porém, vendo que</p><p>ele suportava seus sofrimentos com a mais admirável paciência, crescia</p><p>tanto em �rmeza quanto em resignação e mantinha sua fé com �rme</p><p>resolução e inabalável constância, eles o apunhalaram no coração e, depois,</p><p>entregaram seu corpo para ser devorado pelos cães.</p><p>Pedro Gabriola, um cavalheiro protestante de considerável eminência,</p><p>foi detido por uma tropa de soldados e se recusou a renunciar à sua religião.</p><p>Eles ataram inúmeros saquinhos com pólvora em seu corpo e, em seguida,</p><p>ateando fogo neles, explodiram-no.</p><p>Antonio, �lho de Samuel Catieris, um pobre rapaz surdo e</p><p>extremamente inofensivo, foi cortado em pedaços por um grupo das tropas.</p><p>Logo depois, os mesmos ru�ões entraram na casa de Peter Moniriat e</p><p>cortaram as pernas de toda a família, deixando-os sangrar até a morte, por</p><p>não serem capazes de ajudar a si mesmos ou um ao outro.</p><p>Daniel Benech foi detido, teve o nariz fendido e as orelhas cortadas fora;</p><p>depois, foi dividido em quartos, sendo cada quarto pendurado em uma</p><p>árvore. Maria Monino teve a mandíbula fraturada e foi deixada em angústia</p><p>até morrer de inanição.</p><p>Maria Pelanchion, uma viúva bonita da cidade de Vilario, foi detida por</p><p>um grupo das brigadas irlandesas, que a espancaram cruelmente e a</p><p>violentaram, arrastaram-na para uma ponte alta que atravessava o rio e a</p><p>despiram da maneira mais indecente, penduraram-na pelas pernas na</p><p>ponte, com a cabeça voltada para a água. Depois, os soldados, entrando em</p><p>barcos, atiraram nela até sua morte.</p><p>Maria Nigrino e sua �lha, que era mentalmente incapaz, foram cortadas</p><p>em pedaços na �oresta e seus corpos foram deixados para serem devorados</p><p>por animais selvagens. Susanna Bales, uma viúva de Vilario, foi emparedada</p><p>até morrer de fome. Susanna Calvio fugiu de alguns soldados e se escondeu</p><p>em um celeiro, eles atearam fogo na palha e a queimaram.</p><p>Paul Armand foi cortado em pedaços; uma criança chamada Daniel</p><p>Bertino foi queimada; Daniel Michialino teve a língua arrancada e foi</p><p>deixado para perecer nesse estado, e Andreo Bertino, um homem muito</p><p>idoso, que era coxo, foi mutilado da maneira mais chocante e, �nalmente,</p><p>teve a barriga rasgada e as entranhas, carregadas na ponta de uma alabarda.</p><p>Constância Bellione, uma senhora protestante, foi detida por causa de</p><p>sua fé. Um sacerdote lhe perguntou se ela renunciaria ao diabo e iria à</p><p>missa, ao que ela respondeu: “Fui criada em uma religião pela qual sempre</p><p>fui ensinada a renunciar ao diabo, mas, se eu cumprir o seu desejo e for à</p><p>missa, certamente o encontrarei lá em diversos formatos”. O sacerdote �cou</p><p>muito irritado com a resposta e lhe disse para retratar-se, caso contrário</p><p>sofreria cruelmente. A senhora, porém, respondeu corajosamente que não</p><p>dava valor a qualquer sofrimento que ele lhe pudesse in�igir e, apesar de</p><p>todos os tormentos que ele pudesse inventar, ela manteria a consciência</p><p>pura e a fé, inviolada. Então, o sacerdote ordenou que fatias da carne dela</p><p>fossem cortadas de várias partes do corpo, crueldade que ela suportou com</p><p>a mais singular paciência, dizendo apenas ao sacerdote: “Que tormentos</p><p>horríveis e duradouros você sofrerá no inferno pelas insigni�cantes e</p><p>temporárias dores que eu agora suporto!”. Exasperado com essa expressão e</p><p>disposto a cessar sua fala, o sacerdote ordenou que uma �leira de</p><p>mosqueteiros se pusesse em formação e disparasse contra ela. Com isso, ela</p><p>foi logo executada e selou seu martírio com seu sangue.</p><p>Valdenses afogados em Veneza, figura ilustra�va de O livro dos Már�res, edição de</p><p>1907.</p><p>Uma jovem chamada Judith Mandon, por recusar-se a mudar de religião</p><p>e abraçar o papismo, foi presa a uma estaca e bastões foram jogados contra</p><p>ela a distância, exatamente como naquele costume bárbaro anteriormente</p><p>praticado na terça-feira de carnaval: esquivar-se das pedras, como era</p><p>denominado. Por esse procedimento desumano, os membros da pobre</p><p>criatura foram espancados e mutilados de uma maneira terrível, e sua</p><p>cabeça foi �nalmente destruída por um dos bastões.</p><p>David Paglia e Paolo Genre, tentando fugir para os Alpes, cada qual</p><p>com seu �lho, foram perseguidos e alcançados pelos soldados em uma</p><p>grande planície. Ali, eles</p><p>os caçavam por diversão, aguilhoando-os com suas</p><p>espadas e os fazendo correr até caírem de fadiga. Quando se deram conta de</p><p>que os fugitivos estavam bastante exaustos e que não conseguiriam mais</p><p>proporcionar aquele esporte bárbaro correndo, os soldados os cortaram em</p><p>pedaços e deixaram seus corpos mutilados no local.</p><p>Miguel Greve, um jovem de Bobbio, foi detido na cidade de La Torre,</p><p>levado à ponte e jogado no rio. Sendo ótimo nadador, nadou rio abaixo,</p><p>pensando escapar, mas os soldados e a turba seguiram pelas duas margens</p><p>do rio e o apedrejaram continuamente até ele ser atingido em uma das</p><p>têmporas e perder os sentidos, consequentemente ele afundou e se afogou.</p><p>David Armand recebeu ordem de deitar a cabeça em um bloco e um</p><p>soldado, com um grande martelo, despedaçou sua cabeça. David Baridona,</p><p>detido em Vilario, foi levado a La Torre, onde, recusando-se a renunciar à</p><p>sua religião, foi atormentado por meio de fósforos de enxofre amarrados</p><p>entre os dedos das mãos e dos pés e, depois, acendidos. Em seguida, teve</p><p>sua carne arrancada com pinças em brasa até ele expirar. Giovanni Barolina</p><p>e sua esposa foram jogados em uma poça de água estagnada e obrigados,</p><p>por meio de forcados e pedras, a �car com a cabeça submersa até</p><p>sufocarem.</p><p>Vários soldados foram à casa de Giuseppe Garniero e, antes de entrarem,</p><p>dispararam contra a janela para avisar que se aproximavam. Uma bala de</p><p>mosquete entrou em um dos seios da Sra. Garniero enquanto ela</p><p>amamentava o bebê no outro. Ao descobrir suas intenções, ela implorou</p><p>que poupassem a vida da criança. Eles prometeram fazê-lo e o enviaram</p><p>imediatamente a uma enfermeira católica romana. Então, pegaram o</p><p>marido e o enforcaram em sua própria porta. Após darem um tiro na</p><p>cabeça da esposa, deixaram seu corpo esvaindo-se em sangue e o marido</p><p>pendurado na forca.</p><p>Isaías Mondon, um idoso protestante piedoso, fugiu dos perseguidores</p><p>impiedosos para uma fenda em uma rocha, onde sofreu as mais terríveis</p><p>di�culdades, porque, no meio do inverno, foi forçado a deitar-se sobre um</p><p>monte sem qualquer cobertura; seu alimento eram as raízes que ele</p><p>conseguia encontrar perto de sua miserável habitação, e a única maneira de</p><p>conseguir bebida era pôr neve na boca até derreter. Porém, alguns dos cruéis</p><p>soldados o encontraram ali e, após espancá-lo sem piedade, levaram-no a</p><p>Lucerna, aguilhoando-o com as pontas de suas espadas. Extremamente</p><p>enfraquecido por seu modo de vida e exausto pelos golpes que havia</p><p>recebido, ele caiu na estrada. Eles o espancaram novamente para fazê-lo</p><p>prosseguir. Ele implorou de joelhos que o livrassem de seu sofrimento,</p><p>matando-o. Finalmente, eles concordaram em fazê-lo e um deles,</p><p>aproximando-se, atirou na cabeça dele com uma pistola, dizendo: “Pronto,</p><p>herege, receba o que pediu”.</p><p>Maria Revol, uma digna protestante, foi baleada pelas costas enquanto</p><p>caminhava pela rua. Devido ao ferimento, ela caiu, mas, recuperando forças</p><p>su�cientes, ajoelhou-se e, erguendo as mãos para o Céu, orou com o</p><p>máximo de fervor ao Todo-poderoso. Então, vários soldados, que estavam</p><p>por perto, dispararam uma saraivada de tiros, muitos dos quais foram fatais,</p><p>dando um �m instantâneo aos sofrimentos dela.</p><p>Vários homens, mulheres e crianças se esconderam em uma grande</p><p>caverna, onde permaneceram em segurança durante algumas semanas.</p><p>Habitualmente, dois homens saíam quando necessário e, furtivamente,</p><p>buscavam provisões. Entretanto, certo dia, eles foram vistos. Com isso, a</p><p>caverna foi descoberta e, pouco depois, uma tropa de católicos romanos</p><p>apareceu diante dela. Os papistas que se reuniram naquela ocasião eram</p><p>vizinhos e conhecidos íntimos dos protestantes que estavam na caverna, e</p><p>alguns eram até mesmo seus parentes. Os protestantes saíram e</p><p>imploraram-lhes, pelos laços de hospitalidade, pelos laços de sangue e como</p><p>velhos conhecidos e vizinhos, que não os matassem. Porém, a superstição</p><p>supera todo sentimento de natureza e humanidade, de modo que os</p><p>papistas, cegados pelo fanatismo, disseram que não podiam demonstrar</p><p>misericórdia pelos hereges e, portanto, ordenaram que se preparassem para</p><p>morrer.</p><p>Ao ouvir isso, e conhecendo a fatal obstinação dos católicos romanos,</p><p>todos os protestantes caíram prostrados, ergueram as mãos e o coração ao</p><p>Céu, oraram com grande sinceridade e fervor e, em seguida, curvando-se,</p><p>deitaram o rosto junto ao chão e esperaram pacientemente por seu destino,</p><p>que logo foi decidido, pois os papistas caíram sobre eles com fúria</p><p>incessante e, após cortá-los em pedaços, deixaram os corpos e membros</p><p>mutilados na caverna.</p><p>Giovanni Salvagiot, passando por uma igreja católica romana sem tirar o</p><p>chapéu, foi seguido por alguns membros da congregação, que se lançaram</p><p>sobre ele e o mataram. Jacob Barrel e sua esposa foram feitos prisioneiros</p><p>pelo conde de San Secondo, um dos o�ciais do duque de Savoy. Ele os</p><p>entregou aos soldados, que extirparam os seios da mulher e o nariz do</p><p>homem e depois atiraram na cabeça deles.</p><p>Antonio Guigo, protestante vacilante, foi a Periero com a intenção de</p><p>renunciar à sua religião e abraçar o papismo. Ele comunicou essa intenção a</p><p>alguns sacerdotes, que o elogiaram muito, sendo marcado um dia para a sua</p><p>retratação pública. Nesse ínterim, Antonio se conscientizou totalmente de</p><p>sua perfídia, e sua consciência o atormentou tanto, noite e dia, que ele</p><p>decidiu não se retratar, e sim fugir. Ele o fez, mas, logo deram por sua falta</p><p>e o perseguiram, e ele foi detido. No caminho, os soldados �zeram todo o</p><p>possível para fazê-lo voltar ao seu plano de retratação; porém, vendo que</p><p>seus esforços eram ine�cazes, espancaram-no violentamente na estrada. Ao</p><p>se aproximar de um precipício, ele aproveitou a oportunidade para pular e</p><p>�cou dilacerado.</p><p>Em Bobbio, um cavalheiro protestante de considerável fortuna, sendo</p><p>provocado todas as noites pela insolência de um sacerdote, retrucou com</p><p>grande severidade. Dentre outras coisas, disse que o papa era o anticristo, a</p><p>missa era idolatria, o purgatório era uma farsa e a absolvição era uma</p><p>trapaça. Para se vingar, o sacerdote contratou cinco terríveis ru�ões que, na</p><p>mesma noite, invadiram a casa do cavalheiro e o atacaram de maneira</p><p>violenta. O cavalheiro �cou terrivelmente assustado, caiu de joelhos e</p><p>implorou por misericórdia, mas os cruéis ru�ões o eliminaram sem a</p><p>mínima hesitação.</p><p>UMA NARRATIVA DA GUERRA PIEMONTESA</p><p>Os já mencionados massacres e assassinatos cometidos nos vales do</p><p>Piemonte quase deixaram despovoados a maioria das cidades e dos vilarejos.</p><p>Somente um lugar não fora atacado, devido à di�culdade de chegar até ele:</p><p>a pequena comunidade de Roras, situada sobre uma rocha.</p><p>À medida que a obra de sangue se afrouxava em outros lugares, o conde</p><p>de Christople, um dos o�ciais do duque de Savoy, decidiu que, se possível,</p><p>se tornaria senhor de Roras e, com esse objetivo, destacou 300 homens para</p><p>surpreendê-la em segredo.</p><p>Os habitantes de Roras, porém, foram informados da aproximação</p><p>dessas tropas. Então, o capitão Josué Gianavel, um corajoso o�cial</p><p>protestante, colocou-se à frente de um pequeno corpo de cidadãos e</p><p>montou uma emboscada para atacar o inimigo em um pequeno</p><p>des�ladeiro.</p><p>Quando as tropas apareceram e já haviam entrado no des�ladeiro, que</p><p>era o único lugar pelo qual a cidade poderia ser abordada, os protestantes</p><p>mantiveram um fogo estratégico e bem direcionado contra eles, ainda se</p><p>mantendo escondidos do inimigo atrás dos arbustos. Um grande número</p><p>dos soldados foi morto; os demais, sob fogo contínuo e não vendo alguém</p><p>em quem atirar, consideraram adequado recuar.</p><p>Os membros daquela pequena comunidade enviaram um memorial ao</p><p>marquês de Pianessa, um dos o�ciais generais do duque, declarando que</p><p>“lamentavam necessitar pegar em armas em qualquer ocasião. Porém, a</p><p>abordagem secreta de um corpo de tropas, sem qualquer motivo</p><p>estabelecido ou prévio aviso do objetivo de sua vinda, os alarmara muito; e</p><p>que, por ser costume deles nunca permitir que militar algum entrasse em</p><p>sua pequena comunidade, eles repeliram força por força e o fariam</p><p>novamente. Entretanto, em todos os outros aspectos, professavam</p><p>ser</p><p>súditos respeitosos, obedientes e leais ao seu soberano, o duque de Savoy”.</p><p>Para ter a melhor oportunidade de enganar e surpreender os protestantes</p><p>de Roras, o marquês de Pianessa lhes enviou uma resposta dizendo-lhes que</p><p>“estava perfeitamente satisfeito com o comportamento deles, porque</p><p>tinham agido corretamente e até prestado um serviço ao seu país. Pois os</p><p>homens que haviam tentado passar pelo des�ladeiro não eram suas tropas,</p><p>nem enviados por ele, e sim um bando de ladrões desesperados que durante</p><p>algum tempo havia infestado aquela região e sido um terror para o país</p><p>vizinho”. Para disfarçar melhor a sua traição, publicou então um decreto</p><p>ambíguo, aparentemente favorável aos habitantes.</p><p>Contudo, no mesmo dia após essa proclamação plausível e conduta</p><p>ilusória, o marquês enviou 500 homens para se apossarem de Roras,</p><p>enquanto o povo, pensava ele, tinha se acalmado e sentia-se em perfeita</p><p>segurança por seu comportamento ilusório.</p><p>O capitão Gianavel, porém, não se deixaria enganar tão facilmente. Por</p><p>isso, preparou uma emboscada para aquele corpo de tropas, como havia</p><p>feito para o primeiro, e os obrigou a retroceder com perdas muito mais</p><p>consideráveis.</p><p>Embora frustrado nessas duas tentativas, o marquês de Pianessa se</p><p>determinou a fazer uma terceira incursão, que deveria ser ainda mais</p><p>formidável, mas, primeiramente, publicou de maneira imprudente outra</p><p>declaração que negava qualquer conhecimento da segunda tentativa.</p><p>Pouco depois, foram enviados 700 homens escolhidos à expedição, que,</p><p>a despeito do fogo dos protestantes, forçaram o des�ladeiro, entraram em</p><p>Roras e começaram a assassinar todas as pessoas que encontravam, sem</p><p>distinção de idade ou sexo. Encabeçando uma pequena tropa, apesar de ter</p><p>perdido no des�ladeiro, o capitão protestante Gianavel decidiu conter a</p><p>passagem deles por um des�ladeiro forti�cado que levava à parte mais rica e</p><p>melhor da cidade. Ele obteve sucesso mantendo fogo contínuo e por todos</p><p>os seus homens serem exímios atiradores. O comandante católico romano</p><p>�cou muito surpreso com essa oposição, pois imaginava ter superado todas</p><p>as di�culdades. Empenhou-se, porém, para forçar a passagem, mas, incapaz</p><p>de colocar na frente mais de 12 homens por vez e com os protestantes</p><p>protegidos por um peitoril, �cou perplexo com a quantidade de homens</p><p>que se opunha a ele.</p><p>Enfurecido com a perda de tantos soldados e temendo uma desgraça se</p><p>persistisse em tentar o que parecia tão impraticável, ele considerou mais</p><p>sábio recuar. Não desejando, porém, retirar seus homens pelo des�ladeiro</p><p>pelo qual entraram, devido à di�culdade e ao perigo da empreitada, ele</p><p>decidiu recuar em direção a Vilario, por outro des�ladeiro chamado</p><p>Piampra, o qual, apesar do difícil acesso, era fácil de descer. Porém,</p><p>decepcionou-se, pois o capitão Gianavel havia colocado seu pequeno bando</p><p>ali, irritando muito as tropas enquanto passavam e até mesmo os</p><p>importunando na retaguarda até elas entrarem em campo aberto.</p><p>O marquês de Pianessa, vendo que todas as suas tentativas foram</p><p>frustradas e que todo artifício que ele usara havia sido apenas um sinal de</p><p>alarme para os habitantes de Roras, decidiu agir abertamente e, assim,</p><p>proclamou que amplas recompensas seriam dadas a quem quisesse pegar em</p><p>armas contra os obstinados hereges de Roras, como ele os chamava, e que</p><p>qualquer o�cial que os exterminasse seria principescamente recompensado.</p><p>Isso levou o capitão Mario, católico romano fanático e violento ru�ão, a</p><p>engajar-se na empreitada. Assim, ele obteve licença para criar um regimento</p><p>a partir de seis cidades: Lucerna, Borges, Famolas, Bobbio, Begnal e Cavos.</p><p>Havendo completado seu regimento, que consistia em mil homens, ele</p><p>estabeleceu seu plano de não passar pelos des�ladeiros, e sim tentar alcançar</p><p>o cume de um rochedo, de onde imaginava poder injetar suas tropas na</p><p>cidade sem muita di�culdade ou oposição.</p><p>Os protestantes �zeram com que as tropas católicas romanas chegassem</p><p>quase ao cume do rochedo, sem oferecer oposição ou sequer aparecer à</p><p>vista. Porém, quando elas haviam quase chegado ao topo, atacaram-nas</p><p>furiosamente, uma parte mantendo um fogo bem direcionado e constante,</p><p>e a outra rolando pedras enormes.</p><p>Isso interrompeu o avanço dos soldados papistas: muitos foram mortos</p><p>pelos mosqueteiros e muitos outros pelas pedras, que os derrubaram pelos</p><p>precipícios. Vários foram sacri�cados por sua pressa, pois, ao tentarem um</p><p>recuo precipitado, caíram e foram despedaçados. O próprio capitão Mario</p><p>escapou por pouco, tendo caído de um lugar escarpado para um rio que</p><p>banhava o sopé da rocha. Ele foi encontrado inconsciente, mas depois se</p><p>recuperou, embora tenha sofrido pelas contusões durante longo tempo. Por</p><p>�m, sua saúde declinou em Lucerna, onde morreu.</p><p>Outro corpo de tropas foi chamado do campo de Vilario, para fazer</p><p>uma tentativa contra Roras; mas este também foi derrotado por meio das</p><p>lutas dos protestantes em emboscadas e obrigado a recuar novamente para o</p><p>campo de Vilario.</p><p>Após cada uma dessas vitórias, o capitão Gianavel dirigia a seus homens</p><p>um discurso adequado, fazendo-os ajoelhar-se e dar graças ao Todo-</p><p>poderoso por Sua proteção providencial, e, habitualmente, concluía com o</p><p>Salmo 11, no qual o autor deposita sua con�ança em Deus.</p><p>O marquês de Pianessa �cou muito enfurecido por ser tão derrotado</p><p>pelos poucos habitantes de Roras. Então, decidiu tentar expulsá-los de uma</p><p>maneira que di�cilmente poderia fracassar.</p><p>Com essa visão, ordenou que todas as milícias católicas romanas do</p><p>Piemonte fossem convocadas e instruídas. Quando essas ordens foram</p><p>cumpridas, ele juntou às milícias 8 mil soldados regulares e, dividindo o</p><p>todo em três regimentos distintos, planejou a realização de três ataques</p><p>formidáveis in�igidos ao mesmo tempo, a menos que o povo de Roras, a</p><p>quem ele enviou um relato de seus grandes preparativos, aceitassem as</p><p>seguintes condições:</p><p>1. Pedir perdão por pegar em armas; 2. pagar as despesas de todas as</p><p>expedições enviadas contra eles; 3. reconhecer a infalibilidade do papa; 4. ir</p><p>à missa; 5. orar aos santos; 6. usar barba; 7. entregar seus pastores; 8.</p><p>entregar seus professores; 9. confessar-se; 10. pagar valores para a liberação</p><p>de almas do purgatório; 11. como regra, entregar o capitão Gianavel e 12.</p><p>como norma, entregar os presbíteros da igreja.</p><p>Ao tomar conhecimento dessas condições, os habitantes de Roras</p><p>�caram honestamente indignados e responderam ao marquês que não as</p><p>cumpririam antes de sofrer as três coisas mais desagradáveis à humanidade:</p><p>1. Suas propriedades serem apreendidas; 2. suas casas serem queimadas e</p><p>3. eles mesmos serem assassinados.</p><p>Exasperado com essa mensagem, o marquês lhes enviou essa epístola</p><p>lacônica:</p><p>Aos hereges obstinados que habitam em Roras,</p><p>Vocês terão seu pedido atendido, porque as tropas enviadas contra vocês</p><p>têm ordens rigorosas de saquear, queimar e matar. —PIANESSA</p><p>Os três exércitos foram, então, acionados, e os ataques foram ordenados</p><p>da seguinte maneira: o primeiro, pelas rochas de Vilario; o segundo, pelo</p><p>passe de Bagnol e o terceiro, pelo des�ladeiro de Lucerna.</p><p>As tropas forçaram seu caminho pela superioridade numérica e, havendo</p><p>conquistado os rochedos e des�ladeiros, começaram a fazer as mais</p><p>horríveis depredações e as maiores crueldades. Os homens, eles enforcaram,</p><p>queimaram, torturaram até a morte ou cortaram em pedaços; as mulheres,</p><p>rasgaram, cruci�caram, afogaram ou jogaram dos precipícios, e as crianças,</p><p>lançavam sobre lanças, picavam, cortavam a garganta ou esfacelavam a</p><p>cabeça. Cento e vinte e seis pessoas sofreram dessa maneira no primeiro dia</p><p>da conquista da cidade.</p><p>Em conformidade com as ordens do marquês de Pianessa, eles também</p><p>saquearam as propriedades e queimaram as casas do povo. Vários</p><p>protestantes, porém, fugiram conduzidos pelo capitão Gianavel, cuja esposa</p><p>e �lhos foram, infelizmente, feitos prisioneiros e enviados a Turim sob forte</p><p>vigilância.</p><p>O marquês de Pianessa escreveu uma carta ao capitão Gianavel e</p><p>libertou um prisioneiro protestante para que a levasse. Nela, ele dizia que,</p><p>se o capitão abraçasse</p><p>a religião católica romana, seria indenizado por todas</p><p>as suas perdas desde o início da guerra: sua esposa e seus �lhos seriam</p><p>imediatamente libertos e ele mesmo seria promovido com honra no</p><p>exército do duque de Savoy. Porém, recusando-se a concordar com as</p><p>propostas feitas, sua esposa e seus �lhos seriam mortos e haveria uma</p><p>recompensa tão grande para que o entregasse vivo ou morto, que até alguns</p><p>de seus amigos mais próximos �cariam tentados a traí-lo pela grandeza da</p><p>quantia.</p><p>A essa epístola, o bravo Gianavel enviou a seguinte resposta:</p><p>Meu senhor marquês,</p><p>Não há tormento tão grande ou morte tão cruel que me faça preferir abjurar</p><p>a minha religião. Assim, as promessas perdem seus efeitos e as ameaças</p><p>apenas me fortalecem na minha fé.</p><p>No tocante a minha esposa e meus �lhos, meu senhor, nada me pode ser</p><p>mais a�itivo do que pensar em seu con�namento, ou ser mais terrível à</p><p>minha imaginação do que sofrerem uma morte violenta e cruel. Sinto</p><p>profundamente todos os ternos sentimentos de marido e pai. Meu coração</p><p>está repleto de todos os sentimentos da humanidade. Eu sofreria qualquer</p><p>tormento para resgatá-los do perigo; morreria para preservá-los.</p><p>Porém, havendo dito isso, senhor, garanto-lhe que a compra da vida deles</p><p>não pode ser o preço da minha salvação. O senhor os tem em seu poder, é</p><p>verdade, mas meu consolo é que o seu poder é apenas uma autoridade</p><p>temporária sobre os corpos deles: pode destruir a parte mortal, mas suas</p><p>almas imortais estão fora do seu alcance e viverão, de agora em diante, para</p><p>testemunhar contra o senhor por suas crueldades. Portanto, eu os recomendo,</p><p>e a mim mesmo, a Deus e oro para que o seu coração seja transformado. —</p><p>JOSUÉ GIANAVEL</p><p>Massacre dos valdenses em Merindol, por Gustave Dore (1832–86).</p><p>Após escrever essa carta, esse bravo o�cial protestante se retirou para os</p><p>Alpes com seus seguidores e, juntando-se a ele um grande número de</p><p>outros protestantes fugitivos, incomodou o inimigo com contínuas</p><p>escaramuças.</p><p>Certo dia, deparando-se com um regimento de tropas papistas perto de</p><p>Bibiana, embora numericamente inferiorizado, atacou-as com grande fúria</p><p>e as derrotou sem perder um único homem, embora no combate ele mesmo</p><p>houvesse sido atingido na perna por um tiro disparado por um soldado</p><p>escondido atrás de uma árvore. Gianavel, porém, percebendo de onde o tiro</p><p>viera, apontou a arma para o local e eliminou a pessoa que o tinha ferido.</p><p>Ouvindo dizer que certo capitão Jahier havia reunido um considerável</p><p>grupo de protestantes, o capitão Gianavel lhe escreveu uma carta, propondo</p><p>unirem suas forças. O capitão Jahier concordou imediatamente com a</p><p>proposta e marchou diretamente para encontrar Gianavel.</p><p>Feita essa aliança, foi proposto atacar Garcigliana, uma cidade habitada</p><p>por católicos romanos. O ataque foi feito com grande disposição, mas,</p><p>havendo chegado recentemente à cidade um reforço de cavalaria e</p><p>infantaria, fato que os protestantes desconheciam, eles foram repelidos.</p><p>Ainda assim, �zeram uma retirada magistral e perderam somente um</p><p>homem na ação.</p><p>A tentativa seguinte das forças protestantes foi contra San Secondo. Eles</p><p>a atacaram com grande vigor, mas encontraram forte resistência das tropas</p><p>católicas romanas, que forti�caram as ruas e se plantaram nas casas, de onde</p><p>disparavam balas de mosquete em grande quantidade. Os protestantes,</p><p>porém, avançaram cobertos com um grande número de tábuas, que alguns</p><p>seguravam sobre a cabeça para se proteger dos tiros do inimigo vindos das</p><p>casas, enquanto outros mantinham um fogo bem direcionado, de modo</p><p>que as casas e os entrincheiramentos foram logo invadidos e a cidade</p><p>tomada.</p><p>Na cidade, eles encontraram uma quantidade prodigiosa de pilhagem,</p><p>que havia sido tomada dos protestantes em diversos momentos e em</p><p>diferentes lugares e armazenada em armazéns, igrejas, moradias etc. Eles</p><p>removeram tudo para um local seguro, para ser distribuído, com a máxima</p><p>justiça possível, aos sofredores.</p><p>Esse ataque bem-sucedido foi feito com tanta habilidade e</p><p>determinação, que custou muito pouco à parte vencedora. Os protestantes</p><p>tiveram apenas 17 baixas e 26 feridos, enquanto os papistas sofreram uma</p><p>perda de nada menos que 450 mortos e 511 feridos.</p><p>Cinco o�ciais protestantes — Gianavel, Jahier, Laurentio, Genolet e</p><p>Benet — armaram um plano para surpreender Biqueras. Para isso,</p><p>marcharam em cinco grupos que, de comum acordo, fariam o ataque ao</p><p>mesmo tempo. Os capitães Jahier e Laurentio passaram por dois</p><p>des�ladeiros na �oresta e chegaram ao local em segurança, ocultos, mas os</p><p>três outros grupos �zeram suas abordagens mediante um campo aberto e,</p><p>consequentemente, �caram mais expostos a ataques.</p><p>Ao receber o alarme, os católicos romanos enviaram um grande número</p><p>de tropas de Cavors, Bibiana, Feline, Campiglione e alguns outros lugares</p><p>vizinhos para libertar Biqueras. Quando essas se uniram, decidiram atacar</p><p>os três grupos protestantes que estavam marchando em campo aberto.</p><p>Percebendo a intenção do inimigo e não estando muito distantes um do</p><p>outro, os o�ciais protestantes uniram forças muito rapidamente e se</p><p>formaram em ordem de batalha.</p><p>Enquanto isso, os capitães Jahier e Laurentio haviam atacado a cidade</p><p>de Biqueras e queimado todas as casas da periferia, para fazer suas</p><p>abordagens com maior facilidade. Porém, sem o apoio esperado dos outros</p><p>três capitães protestantes, enviaram um mensageiro, montando um cavalo</p><p>veloz, em direção ao campo aberto para perguntar o porquê.</p><p>O mensageiro retornou logo e informou que os três capitães</p><p>protestantes não conseguiriam apoiar suas ações por terem sido atacados</p><p>por uma força muito superior na planície e mal conseguiam sustentar-se</p><p>nesse con�ito desigual.</p><p>Ao receberem essa informação, os capitães Jahier e Laurentio decidiram</p><p>interromper o ataque a Biqueras e ir, com a máxima rapidez possível, apoiar</p><p>seus amigos na planície. Essa iniciativa provou ser a ação mais essencial,</p><p>pois, assim que chegaram ao local, onde os dois exércitos estavam se</p><p>enfrentando, as tropas papistas começavam a prevalecer e estavam a ponto</p><p>de �anquear a ala esquerda, comandada pelo capitão Gianavel. A chegada</p><p>daquelas tropas provocou um desequilíbrio em favor dos protestantes, e as</p><p>forças papistas, embora lutassem com a mais obstinada intrepidez, foram</p><p>totalmente derrotadas. Muitos foram mortos e feridos, de ambos os lados, e</p><p>as bagagens, suprimentos militares etc. tomados pelos protestantes foram</p><p>muito consideráveis.</p><p>Sendo informado de que 300 homens do inimigo transportariam em</p><p>comboio uma grande quantidade de suprimentos, provisões etc. de La</p><p>Torre até o castelo de Mirabac, o capitão Gianavel decidiu atacá-los no</p><p>caminho. Assim, iniciou o ataque em Malbec, embora com uma força</p><p>muito inadequada. A disputa foi longa e sangrenta, mas os protestantes</p><p>acabaram sendo obrigados a ceder diante da superioridade numérica do</p><p>inimigo e a recuar, o que �zeram com grande ordem e poucas baixas.</p><p>O capitão Gianavel avançou para um ponto de vantagem, situado perto</p><p>da cidade de Vilario, e em seguida enviou as seguintes informações e</p><p>comandos aos habitantes:</p><p>1. Ele atacaria a cidade dentro de 24 horas;</p><p>2. no tocante aos católicos romanos que portassem armas, pertencentes</p><p>ou não ao exército, ele agiria segundo a lei da retaliação e os mataria</p><p>pelas numerosas depredações e os muitos assassinatos cruéis que</p><p>haviam cometido;</p><p>3. todas as mulheres e crianças, de qualquer religião, estariam seguras;</p><p>4. ele ordenava que todos os protestantes saíssem da cidade e se</p><p>juntassem a ele;</p><p>5. todos os apóstatas que, por fraqueza, haviam abjurado sua religião,</p><p>seriam considerados inimigos, a menos que renunciassem à sua</p><p>abjuração e</p><p>6. todos os que retornassem ao seu dever para com Deus e para com eles</p><p>mesmos seriam recebidos como amigos.</p><p>Os protestantes em geral deixaram a cidade imediatamente e se</p><p>juntaram ao capitão Gianavel com grande satisfação, e os poucos que, por</p><p>fraqueza ou medo, haviam renegado sua fé, retrataram sua abjuração e</p><p>foram recebidos no seio da Igreja. Devido o marquês de Pianessa ter</p><p>removido o exército e acampado</p><p>em uma parte bastante diferente do país,</p><p>os católicos romanos de Vilario pensaram ser insensato tentar defender o</p><p>local com a pequena força da qual dispunham. Por isso, fugiram com a</p><p>maior precipitação, deixando a cidade e a maior parte de suas propriedades</p><p>a critério dos protestantes.</p><p>Após convocar um conselho de guerra, os comandantes protestantes</p><p>resolveram fazer uma investida contra a cidade de La Torre. Ao serem</p><p>informados desse plano, os papistas destacaram algumas tropas para</p><p>defender um des�ladeiro através do qual os protestantes precisariam fazer</p><p>sua abordagem. Porém, foram derrotados, obrigados a abandonar o</p><p>des�ladeiro e forçados a recuar para La Torre.</p><p>Os protestantes prosseguiram em sua marcha e, ao se aproximarem, as</p><p>tropas de La Torre �zeram um ataque furioso, mas foram repelidas com</p><p>grandes baixas e obrigadas a procurar abrigo na cidade. Agora, o governador</p><p>só pensava em defender o local, que os protestantes começaram a atacar em</p><p>formação. Porém, após muitas tentativas corajosas e ataques violentos, os</p><p>comandantes protestantes, por várias razões, decidiram abandonar tal</p><p>empreendimento, particularmente porque consideraram o local</p><p>demasiadamente fortalecido diante do débil número com que contavam e</p><p>também pelo fato de o canhão que portavam não ser adequado à tarefa de</p><p>derrubar as muralhas de La Torre.</p><p>Tomada essa resolução, os comandantes protestantes iniciaram uma</p><p>retirada magistral e a conduziram com tanta ordem que o inimigo não quis</p><p>persegui-los, nem molestou sua retaguarda, o que poderiam ter feito</p><p>quando passassem pelos des�ladeiros.</p><p>No dia seguinte, eles se reuniram, contaram o exército e contabilizaram</p><p>um total de 495 homens. Então, �zeram um conselho de guerra e</p><p>planejaram uma investida mais fácil: um ataque à comunidade de Crusol,</p><p>lugar habitado por vários católicos romanos dos mais fanáticos, que haviam</p><p>exercido, durante as perseguições, as mais inéditas crueldades contra os</p><p>protestantes.</p><p>Ouvindo falar do plano, o povo de Crusol fugiu para uma fortaleza</p><p>vizinha, situada em uma rocha onde os protestantes não poderiam alcançá-</p><p>los, pois bastariam alguns homens para torná-la inacessível a um numeroso</p><p>exército. Assim, cuidaram de proteger sua gente, mas não se apressaram em</p><p>assegurar suas propriedades, cuja maior parte havia, de fato, sido saqueada</p><p>dos protestantes e agora, felizmente, estavam novamente em posse dos</p><p>devidos proprietários. Elas consistiam em muitos artigos ricos e valiosos, e</p><p>algo que, na época, era muito mais valioso: uma grande quantidade de</p><p>suprimentos militares.</p><p>Um dia depois de os protestantes desaparecerem com sua pilhagem,</p><p>chegaram 800 soldados para ajudar o povo de Crusol, enviados de Lucerna,</p><p>Biqueras, Cavors etc. Porém, vendo que haviam chegado tarde demais e que</p><p>uma perseguição seria inútil, os soldados começaram a saquear as aldeias</p><p>vizinhas para não voltarem de mãos vazias, embora o que tomaram fosse de</p><p>seus amigos. Após coletar um saque satisfatório, eles começaram a dividi-lo,</p><p>mas, discordando quanto às diferentes partes, saíram das palavras para os</p><p>socos, �zeram muita bagunça e, depois, saquearam uns aos outros.</p><p>No mesmo dia em que os protestantes foram tão bem-sucedidos em</p><p>Crusol, alguns papistas marcharam com o propósito de saquear e queimar a</p><p>pequena vila protestante de Rocappiatta, mas, pelo caminho, encontraram</p><p>as forças protestantes pertencentes aos capitães Jahier e Laurentio, dispostos</p><p>na colina de Angrogne. Então, teve início um engajamento trivial: no</p><p>primeiro ataque, os católicos romanos recuaram em grande confusão e</p><p>foram perseguidos, havendo muita matança. Após o término da</p><p>perseguição, algumas tropas papistas isoladas encontraram um pobre</p><p>camponês protestante, amarraram uma corda em sua cabeça e a apertaram</p><p>até o crânio ser totalmente esmagado.</p><p>Os capitães Gianavel e Jahier arquitetaram um plano para atacar</p><p>Lucerna, mas, como o capitão Jahier não reuniu suas forças no momento</p><p>indicado, o capitão Gianavel decidiu tentar o empreendimento por si</p><p>mesmo.</p><p>Assim sendo, em uma marcha forçada, seguiu em direção àquele lugar</p><p>durante toda a noite e chegou próximo ao local ao amanhecer. Sua primeira</p><p>precaução foi cortar os canos que levavam água para a cidade e, depois,</p><p>destruir a ponte, única via de entrada das provisões vindas do campo.</p><p>Então, atacou o local e se apoderou rapidamente de dois dos postos</p><p>avançados. Porém, ao descobrir que não conseguiria o domínio do lugar,</p><p>recuou prudentemente com pouquíssimas perdas, culpando, porém, o</p><p>capitão Jahier pelo fracasso de tal empreitada.</p><p>Informados de que o capitão Gianavel estava em Angrogne somente</p><p>com sua própria companhia, os papistas decidiram, se possível, surpreendê-</p><p>lo. Com esse intuito, um grande número de tropas foi destacado de La</p><p>Torre e de outros lugares. Uma parte subiu ao topo de uma montanha, em</p><p>cujo sopé ele estava posicionado, e a outra pretendia apossar-se do portão</p><p>de São Bartolomeu.</p><p>Os papistas pensaram que, seguramente, capturariam o capitão Gianavel</p><p>e todos os seus homens, por serem apenas 300, e sua própria força ser de</p><p>2.500 soldados. Seu intento, porém, foi providencialmente frustrado,</p><p>porque um dos soldados papistas tocou uma trombeta imprudentemente</p><p>antes de ser dado o sinal de ataque. Com o alarme, o capitão Gianavel</p><p>colocou sua pequena companhia tão vantajosamente no portão de São</p><p>Bartolomeu e no des�ladeiro pelo qual o inimigo seria obrigado a descer</p><p>das montanhas, que as tropas católicas romanas fracassaram nos dois</p><p>ataques e foram repelidas com baixas muito consideráveis.</p><p>Pouco depois, o capitão Jahier chegou a Angrogne e uniu suas forças às</p><p>do capitão Gianavel, dando explicações su�cientes para o perdão de sua</p><p>falha mencionada anteriormente. Então, o capitão Jahier fez várias</p><p>incursões secretas com grande sucesso, sempre escolhendo os soldados mais</p><p>ativos pertencentes a Gianavel e a ele mesmo. Certa feita, colocou-se à</p><p>frente de 44 homens para uma expedição. Ao entrar em uma planície</p><p>próxima a Ossac, foi repentinamente cercado por um grande corpo de</p><p>cavalaria. Embora oprimidos pelas probabilidades, o capitão Jahier e seus</p><p>homens lutaram desesperadamente e mataram o comandante-superior, três</p><p>capitães e 57 soldados do inimigo. Entretanto, com a morte do próprio</p><p>capitão Jahier e de 35 de seus homens, os demais se renderam. Um dos</p><p>soldados cortou a cabeça do capitão Jahier e, levando-a para Turim,</p><p>apresentou-a ao duque de Savoy, que o recompensou com 600 ducados.</p><p>A morte desse cavalheiro foi uma signi�cativa perda para os</p><p>protestantes, pois ele era um verdadeiro amigo e companheiro da Igreja</p><p>reformada. Era destemido, e nenhuma di�culdade o impedia de encarregar-</p><p>se de uma empreitada, nem os perigos o aterrorizavam em sua execução.</p><p>Era piedoso sem hipocrisia e humano sem fraqueza; ousado em campo,</p><p>manso na vida domiciliar, com gênio perspicaz, espírito ativo e resoluto em</p><p>todos os seus empreendimentos.</p><p>Para aumentar a a�ição dos protestantes, o capitão Gianavel foi, pouco</p><p>depois, ferido de tal maneira que foi obrigado a �car acamado. Eles, porém,</p><p>reuniram nova coragem a despeito dos infortúnios e, determinados a não se</p><p>abater, atacaram um regimento de tropas papistas com grande intrepidez.</p><p>Os protestantes estavam em grande desvantagem numérica, mas lutaram</p><p>com mais resolução do que os papistas e, �nalmente, derrotaram-nos com</p><p>um considerável massacre. Durante a ação, um sargento chamado Michael</p><p>Bertino foi morto. Então, seu �lho, que estava logo atrás dele, apressou-se</p><p>para assumir seu lugar e disse: “Perdi meu pai, mas coragem, companheiros</p><p>soldados, Deus é Pai de todos nós”.</p><p>De semelhante modo, várias escaramuças ocorreram entre as tropas de</p><p>La Torre e Tagliaretto e as forças protestantes, em geral terminando em</p><p>favor das últimas. Andrion, um cavalheiro protestante, reuniu um</p><p>regimento de cavalaria e assumiu o comando. O sr. João Leger convenceu</p><p>um grande número de protestantes a formarem companhias voluntárias, e</p><p>Michelin, um excelente o�cial, instituiu vários grupos de tropas modestas.</p><p>Todos estes, reunidos ao que restara das tropas</p><p>veteranas de protestantes</p><p>(porque muitos haviam sido perdidos nas diversas batalhas, escaramuças,</p><p>cercos etc.), formaram um exército respeitável, que os o�ciais consideraram</p><p>adequado acampar perto de San Giovanni.</p><p>Os comandantes católicos romanos, alarmados com a aparência</p><p>formidável e o aumento da força das tropas protestantes, decidiram, se</p><p>possível, desalojá-los de seu acampamento. Com esse objetivo, reuniram</p><p>uma grande força, consistindo na parte principal das guarnições das cidades</p><p>católicas romanas, o alistamento das brigadas irlandesas, um grande</p><p>número de regulares enviados pelo marquês de Pianessa, as tropas auxiliares</p><p>e as companhias independentes.</p><p>Havendo se agrupado, eles acamparam perto dos protestantes e</p><p>passaram vários dias convocando conselhos de guerra e discutindo sobre o</p><p>modo mais adequado de proceder. Alguns foram favoráveis a saquear o país,</p><p>para forçar os protestantes a saírem de seu acampamento. Outros, a esperar</p><p>pacientemente até serem atacados, e uma terceira parte, por atacar o</p><p>acampamento protestante e tentar dominar tudo que havia nele.</p><p>Este último plano prevaleceu, sendo a manhã seguinte a escolhida para</p><p>executarem a decisão que fora tomada. As tropas católicas romanas foram</p><p>separadas em quatro divisões, três das quais deveriam atacar em lugares</p><p>diferentes. A quarta deveria permanecer como força reserva a �m de agir</p><p>conforme a ocasião exigisse. Antes do ataque, um dos o�ciais católicos</p><p>romanos discursou aos seus homens: “Companheiros soldados, agora vocês</p><p>entrarão em uma grande ação, que lhes trará fama e riqueza. Os motivos de</p><p>vocês agirem com a alma são, igualmente, da maior importância, a saber: a</p><p>honra de demonstrar sua lealdade ao seu soberano, o prazer de derramar</p><p>sangue herege e a perspectiva de saquear o acampamento protestante.</p><p>Então, meus bravos companheiros, lancem-se sobre eles, não deem trégua,</p><p>matem a todos que encontrarem e peguem tudo o que estiver ao alcance de</p><p>vocês”.</p><p>Após esse desumano discurso, o engajamento começou, e o</p><p>acampamento protestante foi atacado em três lugares com fúria</p><p>inconcebível. A luta foi mantida com grande obstinação e perseverança</p><p>pelos dois lados, continuando sem intervalo durante quatro horas, pois as</p><p>várias companhias de ambos os lados se revezavam para descanso e, dessa</p><p>maneira, asseguraram o fogo contínuo durante toda a ação.</p><p>Durante o enfrentamento dos exércitos principais, um destacamento da</p><p>guarnição de reserva foi enviado para atacar o posto de Castelas; se os</p><p>papistas tivessem conseguido, isso lhes daria o comando dos vales de Perosa,</p><p>São Martinho e Lucerna. Porém, foram repelidos e, com grandes baixas,</p><p>obrigados a retornar ao posto de reserva, de onde haviam sido destacados.</p><p>Pouco depois do retorno desse destacamento, as tropas católicas</p><p>romanas, fortemente pressionadas na batalha principal, pediram que a</p><p>companhia de reserva viesse em seu apoio. Esta marchou imediatamente em</p><p>seu auxílio e, durante um tempo maior, trouxe certo equilíbrio ao combate,</p><p>porém, por �m, o valor dos protestantes prevaleceu e os papistas foram</p><p>totalmente derrotados, com mais de 300 homens mortos e muitos outros</p><p>feridos.</p><p>Quando o prefeito de Lucerna, papista de fato, mas não fanático, viu o</p><p>grande número de homens feridos levados àquela cidade, exclamou: “Ah!</p><p>Eu pensava que os lobos costumavam devorar os hereges, mas agora vejo os</p><p>hereges comerem os lobos”. Essa expressão foi reportada ao sr. Marolles,</p><p>comandante-superior católico romano em Lucerna, que enviou uma carta</p><p>muito séria e ameaçadora ao prefeito. Este �cou tão apavorado que o medo</p><p>o deixou com febre e ele morreu após alguns dias.</p><p>Essa grande batalha foi travada pouco antes do início da colheita,</p><p>quando os papistas, exasperados com sua desgraça e decididos a qualquer</p><p>tipo de vingança, espalharam-se à noite, em grupos, pelos melhores campos</p><p>de milho dos protestantes e lhes atearam fogo em diversos lugares. Alguns</p><p>desses grupos vagantes, porém, sofreram por sua conduta, porque os</p><p>protestantes, alarmados à noite pelas chamas no milharal, perseguiram os</p><p>fugitivos no início da manhã e, alcançando muitos deles, mataram-nos. De</p><p>semelhante modo, em retaliação, o capitão protestante Bellin saiu com um</p><p>pequeno regimento de tropas e incendiou os subúrbios de La Torre,</p><p>retirando-se em seguida com pouquíssimas baixas.</p><p>Poucos dias depois, com uma companhia de tropas muito mais forte, o</p><p>capitão Bellin atacou a própria cidade de La Torre. Abriu uma brecha na</p><p>muralha do convento para seus homens entrarem, conduziu a guarnição</p><p>para a cidadela e queimou tanto a cidade quanto o convento. Depois disso,</p><p>�zeram uma retirada regular, por não poderem destruir a cidadela por falta</p><p>de canhão.</p><p>UM RELATO DAS PERSEGUIÇÕES INFLIGIDAS A MIGUEL DE MOLINOS,</p><p>UM NATIVO DA ESPANHA</p><p>Quando jovem, Miguel de Molinos, um espanhol de uma família rica e</p><p>honrada, foi ordenado sacerdote, mas não quis aceitar a nomeação na</p><p>Igreja. Ele possuía grandes habilidades naturais, que dedicava ao serviço de</p><p>seus semelhantes, sem almejar remuneração para si mesmo. Sua vida era</p><p>piedosa e constante, e ele não exercia as austeridades comuns entre as</p><p>ordens religiosas da Igreja Romana.</p><p>Tendo a mentalidade contemplativa, ele seguiu a trilha dos teólogos</p><p>místicos, e tendo adquirido grande reputação na Espanha e desejoso de</p><p>propagar seu modo sublime de devoção, deixou seu próprio país,</p><p>estabelecendo-se em Roma. Ali, logo se uniu a alguns dos mais ilustres</p><p>dentre os literatos, os quais aprovavam tanto suas máximas religiosas, que</p><p>concordaram em ajudá-lo a propagá-las. Assim, em pouco tempo, ele</p><p>obteve um grande número de seguidores, que, devido ao modo sublime de</p><p>sua religião, foram distinguidos pelo nome de quietistas.</p><p>Em 1675, Molinos publicou um livro intitulado Il Guida Spirituale</p><p>(Guia Espiritual), ao qual foram anexadas cartas de recomendação de</p><p>diversas grandes personalidades. Uma delas foi escrita pelo arcebispo de</p><p>Reggio, outra pelo general dos franciscanos, e uma terceira pelo padre</p><p>Martin de Esparsa, um jesuíta, professor de teologia em Salamanca e em</p><p>Roma.</p><p>Tão logo foi publicado, o livro foi amplamente lido e muito estimado,</p><p>tanto na Itália quanto na Espanha, e isso elevou tanto a reputação do autor,</p><p>que as personalidades mais respeitáveis almejavam conhecê-lo. Cartas lhe</p><p>foram escritas por inúmeras pessoas e, desse modo, estabeleceu-se uma</p><p>correspondência entre ele e os que aprovavam seu método em diferentes</p><p>partes da Europa. Tanto em Roma quanto em Nápoles, alguns sacerdotes</p><p>seculares se declararam francamente favoráveis e o consultavam, como uma</p><p>espécie de oráculo, em muitas ocasiões. Porém, quem se apegou a ele com a</p><p>maior sinceridade foram alguns dos patriarcas do Oratório; em particular,</p><p>três dos mais eminentes: Caloredi, Ciceri e Petrucci. Muitos dos cardeais</p><p>também cortejavam ser seus conhecidos e se sentiam felizes por serem</p><p>contados entre os seus amigos. O mais distinguido deles foi o cardeal</p><p>d’Estrees, homem de grande cultura, o qual aprovou tanto as máximas de</p><p>Molinos, que estabeleceu uma estreita ligação com ele. Eles conversavam</p><p>pessoalmente todos os dias e, não obstante a descon�ança que um espanhol</p><p>tem naturalmente de um francês, Molinos, que era sincero em seus</p><p>princípios, abriu-se sem reservas para o cardeal, sendo por esse meio</p><p>estabelecida uma correspondência entre Molinos e algumas pessoas distintas</p><p>da França.</p><p>Miguel de Molinos, 1687, por Johann Hainzelman. Parte do acervo da Biblioteca</p><p>Nacional da Espanha.</p><p>Enquanto Molinos trabalhava para propagar seu modo religioso, o padre</p><p>Petrucci escreveu vários tratados referentes à vida contemplativa. Porém,</p><p>misturou nelas muitas regras para as devoções da Igreja Romana, mitigando</p><p>a censura que poderia ter, de outra maneira, sofrido. Eles foram escritos</p><p>principalmente para uso das freiras e, portanto, o sentido era expresso no</p><p>estilo mais simples e familiar.</p><p>Agora, Molinos adquirira tal reputação, que os jesuítas e dominicanos</p><p>começaram a �car muito alarmados e determinados a interromper o avanço</p><p>de tal método. Para isso, era necessário condenar</p><p>o autor e, como a heresia é</p><p>uma imputação que causa o impacto mais forte em Roma, Molinos e seus</p><p>seguidores foram considerados hereges. Livros também foram escritos por</p><p>alguns dos jesuítas contra Molinos e seu sistema. Contudo, todos</p><p>receberam respostas consideráveis de Molinos.</p><p>Essas disputas ocasionaram tanta perturbação em Roma, que o caso</p><p>todo despertou a atenção da Inquisição. Molinos e seu livro, e o padre</p><p>Petrucci, com seus tratados e cartas, foram submetidos a exame severo. Os</p><p>jesuítas foram considerados os acusadores. De fato, um dos membros da</p><p>organização aprovara o livro de Molinos, mas os demais cuidaram de que</p><p>ele não fosse visto novamente em Roma. Durante o interrogatório, Molinos</p><p>e Petrucci se saíram tão bem que seus livros foram novamente aprovados, e</p><p>as respostas escritas pelos jesuítas, censuradas como escandalosas.</p><p>A conduta de Petrucci nessa ocasião foi tão aprovada, que não apenas</p><p>aumentou a con�abilidade da causa, mas também sua própria remuneração,</p><p>visto que, pouco depois, ele foi nomeado bispo de Jesis, o que foi uma nova</p><p>declaração feita pelo papa em favor deles. Seus livros agora eram mais</p><p>estimados do que nunca, o método deles era mais seguido e tal novidade,</p><p>com a nova aprovação concedida após uma acusação tão vigorosa pelos</p><p>jesuítas, contribuiu para aumentar a credibilidade e aumentar o número de</p><p>apoiadores.</p><p>O comportamento do padre Petrucci em sua nova dignidade contribuiu</p><p>grandemente para elevar a sua reputação, de modo que seus inimigos não</p><p>estavam dispostos a perturbá-lo mais, e, de fato, houve menos ocasião de</p><p>censura aos seus escritos do que aos de Molinos. Algumas passagens na</p><p>literatura de Molinos não foram expressas com tanta cautela, deixando</p><p>espaço para exceções. Por outro lado, Petrucci se explicava tão amplamente</p><p>que removia com facilidade as objeções feitas a algumas partes de seus</p><p>escritos.</p><p>A grande reputação adquirida por Molinos e Petrucci ocasionou o</p><p>crescimento diário dos quietistas. Todos os que eram considerados</p><p>sinceramente devotos, ou pelo menos in�uenciados por esse conceito, eram</p><p>contados como tais. Embora se observasse que essas pessoas se tornaram</p><p>mais rigorosas em sua vida e devoção mental, parecia haver menos zelo em</p><p>toda a sua conduta quanto a questões relacionadas às cerimônias da Igreja.</p><p>Elas não eram tão assíduas na missa, nem tão fervorosas em vindicar que</p><p>missas fossem rezadas por seus amigos, nem eram vistas tão frequentemente</p><p>em con�ssões ou procissões.</p><p>Embora a nova aprovação concedida pela Inquisição ao livro de Molinos</p><p>tivesse restringido os procedimentos de seus inimigos, eles ainda eram</p><p>inveterados contra ele no íntimo e estavam determinados a, se possível,</p><p>arruiná-lo. Insinuaram que ele era mal-intencionado e, no espírito, inimigo</p><p>da religião cristã, pois, sob o pretexto de elevar os homens a um sublime</p><p>esforço de devoção, ele pretendia apagar da mente das pessoas a percepção</p><p>dos mistérios do cristianismo. E, por ser espanhol, declararam que ele era</p><p>descendente de uma raça judaica ou maometana e poderia ter, em seu</p><p>sangue ou em sua educação primária, algumas sementes dessas religiões</p><p>que, desde então, ele cultivava com arte e zelo. Esta última calúnia</p><p>conquistou pouca credibilidade em Roma, embora tenha sido dito que fora</p><p>ordenado a averiguação dos registros do local onde Molinos foi batizado.</p><p>Vendo-se atacado com grande vigor e a mais implacável maldade,</p><p>Molinos tomou todas as precauções necessárias para impedir que essas</p><p>acusações recebessem crédito. Ele escreveu um tratado, intitulado</p><p>Comunhão frequente e diária, que foi igualmente aprovado por alguns dos</p><p>membros mais eruditos do clero romano. Ele foi impresso com seu Guia</p><p>Espiritual no ano de 1675. Já no prefácio, ele declarou não o ter escrito com</p><p>objetivo algum de se envolver em assuntos controversos, e sim que lhe havia</p><p>sido sinceramente solicitado por muitas pessoas piedosas.</p><p>Fracassando em suas tentativas de esmagar o poder de Molinos em</p><p>Roma, os jesuítas representaram o caso junto à corte da França. Pouco</p><p>tempo depois, foram tão bem-sucedidos que uma ordem foi enviada ao</p><p>cardeal d’Estrees ordenando que ele processasse Molinos com todo o rigor</p><p>possível. Embora tão fortemente apegado a Molinos, o cardeal decidiu</p><p>sacri�car tudo que é sagrado na amizade à vontade de seu superior.</p><p>Descobrindo, porém, não haver motivo su�ciente para acusá-lo, decidiu-se</p><p>suprir essa lacuna por conta própria. Assim, dirigiu-se aos inquisidores e os</p><p>informou de vários detalhes, referentes não apenas a Molinos, mas também</p><p>a Petrucci, os quais, juntamente com vários de seus amigos, foram</p><p>submetidos à Inquisição.</p><p>Quando foram levados à presença dos inquisidores (no início de 1684),</p><p>Petrucci respondeu às perguntas que lhe foram feitas com tanto juízo e</p><p>temperança, que logo foi dispensado. Embora o interrogatório de Molinos</p><p>tenha sido muito mais longo, era de se esperar que ele também fosse</p><p>dispensado, mas isso não ocorreu. Apesar de os inquisidores não terem</p><p>qualquer acusação justa contra ele, esforçaram-se ao máximo para</p><p>considerá-lo culpado de heresia. Primeiro, objetaram a ele manter</p><p>correspondência com diferentes partes da Europa, mas disso ele foi</p><p>absolvido, pois o assunto dessa correspondência não pôde ser criminalizado.</p><p>Então, voltaram a atenção para alguns documentos suspeitos encontrados</p><p>em seu quarto, mas Molinos explicou tão claramente o signi�cado deles,</p><p>que nada neles pôde ser usado para prejudicá-lo. Por �m, após mostrar a</p><p>ordem enviada pelo rei da França para processar Molinos, o cardeal</p><p>d’Estrees disse ter provas contra ele mais do que o necessário para convencê-</p><p>los de que ele era culpado de heresia. Para isso, distorceu o signi�cado de</p><p>algumas passagens dos livros e documentos de Molinos e relatou muitas</p><p>circunstâncias falsas e agravantes referentes ao prisioneiro. Ele admitiu ter</p><p>convivido com ele sob aparência de amizade, mas que isso fora apenas para</p><p>descobrir seus princípios e intenções, os quais ele considerava de má</p><p>natureza e, provavelmente, teriam consequências perigosas. Contudo, para</p><p>fazer uma descoberta completa, consentira em várias coisas que, em seu</p><p>íntimo, detestava. Assim, por esses meios, ele desvendou os segredos de</p><p>Molinos, mas decidiu não dar atenção até aparecer a oportunidade</p><p>adequada para aniquilá-lo e os seus seguidores.</p><p>Em consequência das provas de d’Estree, Molinos �cou rigorosamente</p><p>em con�namento pela Inquisição, onde �cou durante algum tempo,</p><p>período em que tudo se acalmou, e seus seguidores prosseguiram seu</p><p>método sem interrupção. Porém, de repente, os jesuítas decidiram extirpá-</p><p>los e a tempestade eclodiu com a mais arraigada veemência.</p><p>O conde Vespiniani e sua esposa, Dom Paulo Paulo Rocchi, confessor</p><p>do príncipe de Borgo, e parte de sua família, juntamente com vários outros</p><p>(ao todo, 70 pessoas) foram levados à Inquisição; muitos deles eram</p><p>altamente estimados por sua erudição e piedade. A acusação feita contra o</p><p>clérigo foi não dizer o breviário, e os demais foram acusados de participar</p><p>da eucaristia sem antes fazer a con�ssão. Em resumo, foi dito que eles</p><p>negligenciavam toda a aparência exterior da religião e se entregavam</p><p>inteiramente à solitude e à oração interior.</p><p>A condessa Vespiniani se comportou de maneira muito particular</p><p>quando interrogada pelos inquisidores. Ela disse nunca haver revelado seu</p><p>método de devoção a mortal algum exceto seu confessor, sendo impossível</p><p>que eles conhecessem aquele segredo sem que ele o houvesse revelado.</p><p>Portanto, deveria deixar de praticar a con�ssão se os sacerdotes faziam uso</p><p>dela para revelar os pensamentos mais secretos que lhes eram con�ados e</p><p>que, no futuro, só se confessaria a Deus.</p><p>Com esse discurso intrépido e a grande agitação causada pelo</p><p>posicionamento da condessa, os inquisidores consideraram mais prudente</p><p>dispensar tanto ela quanto seu marido, para que o povo não �casse</p><p>in�amado e o que ela dissera diminuísse a credibilidade da con�ssão.</p><p>Assim, os dois foram dispensados, mas obrigados a comparecer sempre que</p><p>fossem convocados.</p><p>Além dos já mencionados, tal era o costume</p><p>primeira perseguição, e as</p><p>atrocidades in�igidas aos cristãos foram tais que chegaram a despertar a</p><p>comiseração dos próprios romanos.</p><p>Nero atingiu o ápice da crueldade e engendrou, para os cristãos, todos</p><p>os tipos de martírios que a mais infernal imaginação seria capaz de projetar.</p><p>Em particular, ele ordenou que alguns deles fossem costurados em peles de</p><p>animais selvagens e, depois, torturados por cães até a morte e que outros</p><p>fossem trajados com vestes enrijecidas com cera, �xados em estacas em seus</p><p>jardins e incendiados, a �m de iluminar esses espaços.</p><p>Essa perseguição foi generalizada por todo o Império Romano, mas</p><p>aumentou o espírito do cristianismo, em vez de diminuí-lo. Em meio a ela,</p><p>os apóstolos Paulo e Pedro foram martirizados.</p><p>Junto ao nome deles podem ser acrescentados os de Erasto, mordomo</p><p>de Corinto; Aristarco, o macedônio; Tró�mo, um efésio convertido por</p><p>Paulo e seu colaborador; José, comumente chamado Barsabás, e Ananias,</p><p>bispo de Damasco — todos faziam parte dos Setenta.</p><p>Busto do imperador Domiciano (51–96 d.C.), exposto no Museu do Louvre, em Paris,</p><p>França.</p><p>A SEGUNDA PERSEGUIÇÃO, SOB O GOVERNO DE DOMICIANO, 81 D.C.</p><p>O imperador Domiciano, naturalmente inclinado à crueldade, matou</p><p>primeiramente seu irmão e, depois, instaurou a segunda perseguição contra</p><p>os cristãos. Em sua fúria, mandou matar alguns senadores romanos; alguns</p><p>por maldade, outros para con�scar suas propriedades. Em seguida, ordenou</p><p>que toda a linhagem de Davi fosse morta.</p><p>Dentre os numerosos mártires que sofreram durante essa perseguição</p><p>estavam Simeão, bispo de Jerusalém, que foi cruci�cado, e o apóstolo João,</p><p>que foi fervido em óleo e, depois, banido para Patmos. Flávia, �lha de um</p><p>senador romano, foi igualmente banida para Ponto, e a seguinte lei foi</p><p>promulgada: “Que nenhum cristão levado ao tribunal seja isento de</p><p>punição se não renunciar à sua religião”.</p><p>Durante esse reinado, inúmeras histórias foram forjadas a �m de</p><p>prejudicar os cristãos. O furor dos pagãos era tal que, se a fome, pestilência</p><p>ou terremoto a�igisse qualquer uma das províncias romanas, sua causa era</p><p>atribuída aos cristãos. Essas perseguições in�igidas aos cristãos aumentaram</p><p>o número de informantes e muitos, para auferirem ganhos, levantaram falso</p><p>testemunho contra inocentes, ceifando-lhes a vida.</p><p>Outra di�culdade era que, quando qualquer cristão era levado perante</p><p>os magistrados, propunha-se a ele um juramento de teste; se ele se recusasse</p><p>a fazê-lo, era sentenciado à morte, e, se confessasse ser cristão, a sentença</p><p>permanecia a mesma.</p><p>Seguem-se os nomes dos mais notáveis dentre os numerosos mártires</p><p>que sofreram durante essa perseguição.</p><p>Dionísio, o Areopagita, era ateniense de nascimento e estudara toda a</p><p>literatura útil e ornamental da Grécia. Depois, viajou para o Egito a �m de</p><p>estudar astronomia e fez observações muito particulares acerca do grande e</p><p>sobrenatural eclipse que aconteceu por ocasião da cruci�cação do nosso</p><p>Salvador. A santidade de seu discurso e a pureza de suas maneiras o</p><p>recomendavam tão fortemente aos cristãos em geral, que ele foi nomeado</p><p>bispo de Atenas.</p><p>Nicodemos, um cristão benevolente de alguma distinção, sofreu em</p><p>Roma durante a fúria da perseguição de Domiciano.</p><p>Protásio e Gervásio foram martirizados em Milão.</p><p>Timóteo, o célebre discípulo do apóstolo Paulo e bispo de Éfeso, liderou</p><p>zelosamente a Igreja nesse local até o ano 97 d.C.</p><p>Nesse período, quando os pagãos estavam prestes a celebrar um</p><p>banquete chamado Catagogio, Timóteo, encontrando o cortejo, reprovou-</p><p>os severamente por sua ridícula idolatria. Por essa causa, as pessoas �caram</p><p>tão exasperadas que caíram sobre ele com bastões e o espancaram de</p><p>maneira tão terrível que, dois dias depois, ele morreu em decorrência das</p><p>lesões.</p><p>A TERCEIRA PERSEGUIÇÃO, SOB O GOVERNO DE TRAJANO, 108 D.C.</p><p>Na terceira perseguição, Plínio Segundo3, um homem erudito e famoso,</p><p>vendo o lamentável massacre de cristãos e tomado por piedade deles,</p><p>escreveu a Trajano, certi�cando-o de que diariamente milhares deles eram</p><p>mortos, dos quais nenhum havia contrariado as leis romanas para ser digno</p><p>de tal perseguição. “Todo o relato que eles deram de seu crime ou erro</p><p>(como quer que seja chamado) equivaleu apenas a isto, a saber: que eles</p><p>tinham o costume de encontrar-se em determinado dia, antes do</p><p>amanhecer, repetir juntos uma forma especí�ca de oração a Cristo como</p><p>Deus e se comprometer a uma obrigação — não, de fato, de cometer</p><p>maldade; pelo contrário — de nunca cometer furto, roubo ou adultério,</p><p>nunca falsi�car sua palavra, nunca fraudar qualquer homem. Após isso, era</p><p>seu costume separar-se e reunir-se novamente para participar de uma</p><p>inofensiva refeição comunitária”.</p><p>Nessa perseguição, sofreu o bendito mártir Inácio, mantido em famosa</p><p>reverência entre muitos. Esse Inácio foi nomeado para o bispado de</p><p>Antioquia em sucessão a Pedro. Alguns dizem que ele, sendo enviado da</p><p>Síria para Roma visto que professava Cristo, foi entregue aos animais</p><p>selvagens para ser devorado. Dizem também que, ao atravessar a Ásia sob a</p><p>mais estrita custódia de seus guardiões, ele fortaleceu e con�rmou as igrejas</p><p>em todas as cidades por onde passava, tanto com suas exortações quanto</p><p>com a pregação da Palavra de Deus. Consequentemente, chegando a</p><p>Esmirna, escreveu à Igreja de Roma, exortando seus membros a não</p><p>providenciarem sua libertação do martírio, para que não o privassem</p><p>daquilo que ele mais ansiava e desejava. “Agora começo a ser discípulo. Não</p><p>me preocupo com coisa alguma, visível ou invisível, para poder apenas</p><p>ganhar a Cristo. Que fogo e cruz, companhia de animais selvagens, quebra</p><p>de ossos e dilaceração de membros, o triturar de todo o corpo e toda a</p><p>malignidade do diabo caiam sobre mim; que assim seja para que eu possa</p><p>ganhar a Cristo Jesus!”. Mesmo quando foi condenado a ser lançado às</p><p>feras, tal era seu desejo ardente de sofrer que ele disse ao ouvir os leões</p><p>rugindo: “Eu sou o trigo de Cristo! Serei triturado pelos dentes de animais</p><p>selvagens para que possa ser encontrado pão puro”.</p><p>Trajano foi sucedido por Adriano, que continuou essa terceira</p><p>perseguição com a mesma severidade que seu antecessor.</p><p>Inácio de An�oquia, possivelmente obra de Cesare Francazano (1605–51). Acervo da</p><p>Galeria Borghese, em Roma, Itália.</p><p>Por volta dessa época, foram martirizados Alexandre, bispo de Roma,</p><p>com seus dois diáconos; também Quirino e Hernes, com suas famílias;</p><p>Zenão, um nobre romano, e cerca de dez mil outros cristãos.</p><p>No monte Ararate, muitos foram cruci�cados, coroados com espinhos e</p><p>traspassados por lanças nos �ancos, imitando a paixão de Cristo. Eustáquio,</p><p>um bravo e bem-sucedido comandante romano, recebeu ordens do</p><p>imperador para participar de um sacrifício idólatra a �m de comemorar</p><p>algumas de suas próprias vitórias; porém, sua fé (sendo ele cristão em seu</p><p>coração) era muito maior do que sua vaidade e ele, nobremente, recusou.</p><p>Enfurecido com a negativa, o ingrato imperador se esqueceu do serviço</p><p>daquele hábil comandante e ordenou que ele e toda a sua família fossem</p><p>martirizados.</p><p>No martírio de Faustino e Jovita, irmãos e cidadãos de Brescia, seus</p><p>tormentos foram tantos e sua paciência tão grande, que Calocério, um</p><p>pagão, ao vê-los, admirou-se e exclamou, em uma espécie de êxtase:</p><p>“Grande é o Deus dos cristãos!” — por isso, ele foi preso e sofreu igual</p><p>destino.</p><p>Muitos outros rigores e crueldades semelhantes foram exercidos contra</p><p>os cristãos, até Quadrado, bispo de Atenas, apresentar ao imperador, que ali</p><p>estava, uma versada defesa em favor deles, e Aristides, um �lósofo da</p><p>mesma cidade, escrever uma elegante carta. Isso fez Adriano relaxar suas</p><p>severidades e ceder em favor dos cristãos.</p><p>Adriano faleceu em 138 d.C. e foi sucedido por Antonino Pio, um dos</p><p>monarcas mais amáveis que já reinara, o qual suspendeu as perseguições</p><p>contra os cristãos.</p><p>A QUARTA PERSEGUIÇÃO, SOB O GOVERNO DE MARCO AURÉLIO</p><p>ANTONINO, 162 D.C.</p><p>Marco Aurélio subiu ao poder no ano 161 de nosso Senhor. Era um</p><p>homem de natureza mais austera e severa. Embora no estudo da �loso�a e</p><p>no governo civil não tenha</p><p>dos jesuítas contra os</p><p>quietistas, que, no espaço de um mês, mais de 200 pessoas foram levadas à</p><p>Inquisição. E esse método de devoção que antes fora considerado, na Itália,</p><p>o mais elevado a que os mortais podiam aspirar era considerado herético, e</p><p>seus principais promotores foram con�nados em uma tenebrosa masmorra.</p><p>Para, se possível, extirpar o quietismo, os inquisidores enviaram uma</p><p>carta circular ao ministro-chefe, cardeal Cibo, para distribuí-la por toda a</p><p>Itália. Ela era endereçada a todos os prelados e lhes informava que,</p><p>considerando-se que muitas escolas e fraternidades haviam sido</p><p>estabelecidas em várias partes da Itália, nas quais algumas pessoas, sob o</p><p>pretexto de levar as outras aos caminhos do Espírito e à oração da quietude,</p><p>instilaram nelas muitas heresias abomináveis. Sendo assim, a ordem estrita</p><p>era de dissolver todas aquelas sociedades e obrigar cada guia espiritual a</p><p>seguir os caminhos conhecidos e, em particular, cuidar para que nenhum</p><p>deles liderasse conventos. De semelhante modo, foram dadas ordens para</p><p>proceder no caminho da justiça contra todos os que fossem considerados</p><p>culpados desses erros abomináveis.</p><p>Mosteiro e Castelo de Bormida, Piemonte, Norte da Itália.</p><p>Depois disso, em uma investigação rigorosa em todos os conventos de</p><p>Roma, descobriu-se que a maioria de seus diretores e confessores estava</p><p>envolvida com esse novo método. Veri�cou-se que os carmelitas, as freiras</p><p>da Conceição e as de vários outros conventos haviam se entregado</p><p>totalmente à oração e à contemplação, e que, em vez do terço e das outras</p><p>devoções a santos ou imagens, �cavam sozinhas e, frequentemente, em</p><p>oração interior. Quando lhes perguntaram por que haviam deixado de lado</p><p>o uso do terço e de suas formas antigas, a resposta foi que seus diretores as</p><p>haviam aconselhado a fazê-lo. Informada disso, a Inquisição enviou ordens</p><p>para que todos os livros escritos na mesma corrente de pensamento de</p><p>Molinos e Petrucci fossem tirados delas e que elas fossem obrigadas a voltar</p><p>à sua forma original de devoção.</p><p>A carta circular enviada ao cardeal Cibo surtiu pouco efeito, pois a</p><p>maioria dos bispos italianos era inclinada ao método de Molinos. Pretendia-</p><p>se que essa e todas as outras ordens dos inquisidores fossem mantidas em</p><p>segredo. Contudo, a despeito de todos os cuidados, cópias dela foram</p><p>impressas e distribuídas na maioria das principais cidades da Itália. Isso</p><p>causou grande inquietação aos inquisidores, que usavam todos os meios</p><p>possíveis para ocultar do conhecimento do mundo os seus procedimentos.</p><p>Eles culparam o cardeal e o acusaram de ser o causador desse distúrbio. Ele,</p><p>porém, replicou e seu secretário atribuiu a responsabilidade aos dois.</p><p>Durante esses acontecimentos, Molinos sofreu grandes indignidades dos</p><p>o�ciais da Inquisição. Nesse tempo, o único conforto que recebia era a</p><p>visita esporádica do padre Petrucci. Embora houvesse usufruído da mais</p><p>alta reputação em Roma durante alguns anos, Molinos agora era tão</p><p>desprezado quanto admirado, sendo geralmente considerado um dos piores</p><p>hereges. A maior parte dos seus seguidores, que tinham sido levados à</p><p>Inquisição, abjuraram seu modo e foram dispensados. Entretanto, um</p><p>destino mais severo aguardava Molinos, seu líder.</p><p>Após passar um tempo considerável na prisão, ele foi levado novamente</p><p>perante os inquisidores para responder a uma série de artigos exibidos</p><p>contra ele a partir de seus escritos. Assim que apareceu no tribunal, seu</p><p>corpo foi acorrentado e uma vela foi colocada em sua mão. Então, dois</p><p>frades leram em voz alta os artigos da acusação. Molinos respondeu a cada</p><p>um com grande �rmeza e resolução, e, apesar de seus argumentos</p><p>derrotarem totalmente a força de todos contrários, ele foi considerado</p><p>culpado de heresia e condenado à prisão perpétua.</p><p>Ao sair do tribunal, foi atendido por um sacerdote que lhe havia</p><p>prestado o maior respeito. Quando chegou à prisão, adentrou com grande</p><p>serenidade à cela designada ao seu con�namento e, ao despedir-se do</p><p>sacerdote, dirigiu-se a ele desta forma: “Adeus, padre, nos encontraremos</p><p>novamente no Dia do Juízo e, então, aparecerá de que lado está a verdade,</p><p>quer seja do meu ou do seu”.</p><p>Durante seu con�namento, ele foi torturado várias vezes da maneira</p><p>mais cruel, até que, �nalmente, a severidade das punições derrotou as suas</p><p>forças e encerrou a sua existência. A morte de Molinos causou tanto</p><p>impacto em seus seguidores, que a maior parte deles logo abjurou seu</p><p>método e, pela assiduidade dos jesuítas, o quietismo foi totalmente</p><p>extirpado em todo o país.</p><p>Capítulo 7</p><p>Um relato sobre a vida e as</p><p>perseguições sofridas por John Wycliffe</p><p>Não será inconveniente dedicar algumas páginas desta obra a um breve</p><p>detalhe da vida de alguns dos primeiros homens que deram um passo à</p><p>frente — independentemente do poder intolerante que se opunha a toda</p><p>Reforma — para, com seu sangue, estancar o tempo da corrupção papal e</p><p>selar as puras doutrinas do evangelho. Quanto a isso, a Grã-Bretanha tem a</p><p>honra de se colocar à frente e ser a primeira a manter a liberdade na</p><p>controvérsia religiosa que assombrou a Europa, demonstrando que a</p><p>liberdade política e a liberdade religiosa contribuíram igualmente para o</p><p>crescimento dessa bene�ciada ilha. Dentre essas notáveis primeiras pessoas</p><p>estava John Wycliffe.</p><p>Esse célebre reformador, denominado “Estrela da Manhã da Reforma”,</p><p>nasceu por volta do ano 1324, durante o reinado de Eduardo II. Não há</p><p>um relato con�ável quanto a sua genealogia. Seus pais o designaram para a</p><p>Igreja e o enviaram ao Queen’s College, em Oxford, fundado naquela época</p><p>por Robert Eagles�eld, confessor da rainha Filipa. Porém, não vendo</p><p>vantagem alguma das que esperava em estudar nessa casa recém-</p><p>estabelecida, mudou-se para o Merton College, considerado uma das</p><p>comunidades mais instruídas da Europa.</p><p>O primeiro fato que o trouxe ao conhecimento público foi sua defesa da</p><p>universidade contra os frades mendicantes que naquela época, desde seu</p><p>assentamento em Oxford em 1230, eram vizinhos que perturbavam a</p><p>universidade. Contendas eram continuamente fomentadas. Os frades</p><p>apelavam ao papa, e os estudiosos, ao poder civil. Algumas vezes, prevalecia</p><p>uma das partes, ora uma ora a outra. Os frades se agarraram ferrenhamente</p><p>na ideia de que Cristo era um mendigo comum, que Seus discípulos</p><p>também eram pedintes e que mendigar fora instituído pelo evangelho. Eles</p><p>insistiam nessa doutrina no púlpito e onde quer que tivessem acesso.</p><p>John Wycliffe, por Thomas Kirkby ( 1775–1847). Parte do acervo do Balliol College,</p><p>Universidade de Oxford, Inglaterra.</p><p>Wycliffe, há tempos, desprezava aqueles frades religiosos pela vida</p><p>preguiçosa que levavam e agora tinha uma oportunidade razoável para</p><p>expô-los. Ele publicou um tratado contra a mendicância dos capazes, na</p><p>qual atacou os frades e provou que eles eram não somente uma censura à</p><p>religião, mas também à sociedade humana. A universidade começou a</p><p>considerá-lo um dos seus primeiros defensores e, pouco tempo depois, ele</p><p>foi promovido à direção do Balliol College.</p><p>Por essa ocasião, o arcebispo Islip fundou o Canterbury Hall, em</p><p>Oxford, onde estabeleceu um diretor e 11 estudiosos. Wycliffe foi eleito</p><p>diretor pelo arcebispo, mas, após a morte deste, foi substituído pelo</p><p>sucessor, Stephen Langham, bispo de Ely. Por haver certo grau de</p><p>escancarada injustiça no caso, Wycliffe apelou ao papa, que lhe foi contrário</p><p>pela seguinte razão: Eduardo III, então rei da Inglaterra, tinha retirado o</p><p>tributo que, desde o tempo do rei João, era pago ao papa. O papa ameaçou,</p><p>e Eduardo reuniu um parlamento. O parlamento decidiu que o rei João</p><p>havia feito algo ilegal e contrário aos direitos da nação e aconselhou o rei a</p><p>não se submeter a tal exigência, quaisquer que fossem as consequências.</p><p>O clero começou a escrever em favor do papa. Um monge erudito</p><p>publicou um tratado intenso e plausível, que encontrou muitos apoiadores.</p><p>Irritado por ver uma causa tão prejudicial ser tão bem defendida, Wycliffe</p><p>se opôs ao monge de maneira tão magistral que não poderia mais �car</p><p>sido menos louvável, para com os cristãos foi</p><p>mordaz e feroz. Ele promoveu a quarta perseguição.</p><p>As crueldades usadas nessa perseguição eram tais que muitos dentre os</p><p>espectadores estremeciam de horror ao vê-las e �cavam atônitos com a</p><p>intrepidez dos sofredores. Alguns dos mártires eram obrigados a passar, com</p><p>os pés já feridos, sobre as pontas de espinhos, cravos, conchas a�adas etc.;</p><p>outros eram açoitados até seus tendões e veias �carem expostos e, após</p><p>sofrerem as mais excruciantes torturas imaginadas, eram aniquilados pelas</p><p>mortes mais terríveis.</p><p>O jovem Germânico, um verdadeiro cristão, ao ser lançado aos animais</p><p>selvagens devido à sua fé, comportou-se com coragem tão surpreendente</p><p>que vários pagãos se converteram à fé que inspirava tanta �rmeza.</p><p>Policarpo, o venerável bispo de Esmirna, ao ouvir que estava sendo</p><p>procurado, escapou, mas foi descoberto por uma criança. Após oferecer um</p><p>banquete aos guardas que o prenderam, ele desejou �car uma hora em</p><p>oração. Isso lhe foi permitido, e ele orou com tanto fervor que seus</p><p>guardiões se arrependeram de terem sido agentes de sua prisão. Foi, porém,</p><p>levado à presença do procônsul, condenado e queimado na praça do</p><p>mercado.</p><p>Então, o procônsul o exortou, dizendo: “Blasfema, e eu te libertarei;</p><p>difama a Cristo”.</p><p>Policarpo respondeu: “Durante 86 anos eu o servi, e Ele nunca me foi</p><p>injusto; como então devo blasfemar contra o meu Rei, que me salvou?”. Ao</p><p>acenderem a fogueira à qual ele estava apenas amarrado, mas não pregado</p><p>como era costumeiro, por haver garantido que permaneceria imóvel, as</p><p>chamas cercavam seu corpo como um arco, sem tocá-lo. Ao ver isso, o</p><p>carrasco recebeu ordem de perfurá-lo com uma espada — então, saiu uma</p><p>quantidade tão grande de sangue que extinguiu o fogo. Porém, por</p><p>instigação dos inimigos do evangelho, especialmente judeus, ordenou-se</p><p>que seu corpo fosse consumido na pilha. O pedido de seus amigos, que</p><p>desejavam dar-lhe um enterro cristão, foi rejeitado. Não obstante, eles</p><p>recolheram seus ossos e o máximo possível de seus restos mortais, fazendo</p><p>com que fossem decentemente sepultados.</p><p>Metrodoro, um ministro que pregava com ousadia, e Piônio, que fazia</p><p>excelentes apologias à fé cristã, também foram queimados. Carpo e Papilo,</p><p>dois cristãos valorosos, e Agatônica, uma mulher piedosa, sofreram martírio</p><p>em Pergamópolis, na Ásia.</p><p>Felicidade, uma ilustre dama romana, de família considerável e dona das</p><p>mais brilhantes virtudes, era uma cristã devota. Ela teve sete �lhos, aos</p><p>quais educou com a mais exemplar piedade.</p><p>Januário, o mais velho, foi açoitado e pressionado até a morte sob pesos;</p><p>Félix e Filipe, os dois seguintes, tiveram suas cabeças destruídas a pauladas;</p><p>Silvano, o quarto, foi assassinado sendo lançado de um precipício, e os três</p><p>�lhos mais novos — Alexandre, Vital e Marcial — foram decapitados. A</p><p>mãe foi decapitada com a mesma espada usada nos três.</p><p>Justino, o célebre �lósofo, caiu como mártir nessa perseguição. Ele era</p><p>natural de Neápolis, na Samaria, e nasceu em 103 d.C. Justino era grande</p><p>amante da verdade e um estudioso universal, investigou a �loso�a estoica e</p><p>peripatética e tentou a pitagórica; porém, repugnado pelo comportamento</p><p>de seus mestres, ele se aplicou à platônica, na qual sentia grande deleite. Por</p><p>volta do ano 133, aos 30 anos, converteu-se ao cristianismo e então</p><p>percebeu, pela primeira vez, a verdadeira natureza da verdade.</p><p>Ele escreveu uma elegante epístola aos gentios e empregou os seus</p><p>talentos para convencer os judeus acerca da verdade das cerimônias cristãs.</p><p>Passou muito tempo viajando até estabelecer-se em Roma e �xar sua</p><p>habitação na Colina Viminal. Manteve uma escola pública e ensinou a</p><p>muitos que, depois, tornaram-se grandes homens. Escreveu um tratado para</p><p>confundir todos os tipos de heresias.</p><p>Quando os pagãos começaram a tratar os cristãos com grande</p><p>severidade, Justino escreveu sua primeira defesa em prol desses. Essa peça</p><p>demonstra grande erudição e genialidade e ocasionou a publicação, pelo</p><p>imperador, de um edito em favor dos cristãos.</p><p>São Jus�no, o Már�r, por Teófanes, o cretense (1490–1559). Monastério Stavronikita,</p><p>em Monte Atos, Grécia.</p><p>Pouco tempo depois, participou de frequentes debates com Crescente,</p><p>uma pessoa de vida e conversa imorais, mas um célebre �lósofo cínico, e os</p><p>argumentos de Justino pareceram tão poderosos, embora repugnantes ao</p><p>cínico, que este resolveu, na sequência, destruí-lo.</p><p>A segunda defesa de Justino, acerca de certas severidades, deu a</p><p>Crescente, o cínico, uma oportunidade para despertar no imperador um</p><p>antagonismo ao seu escritor. Devido a isso, Justino e seis de seus</p><p>companheiros foram presos e ordenados a sacri�car aos ídolos pagãos.</p><p>Como eles se recusaram, foram condenados a ser açoitados e, depois,</p><p>decapitados. Essa sentença foi executada com toda a severidade imaginável.</p><p>Muitos foram decapitados por se recusarem a sacri�car à imagem de</p><p>Júpiter; em particular, Concordo, um diácono da cidade de Spolito.</p><p>Nesse ínterim, algumas agitadas nações do Norte se levantaram em</p><p>armas contra Roma, e o imperador marchou para enfrentá-las. Porém, ao</p><p>ser atraído para uma emboscada, amargou a perda de todo o seu exército.</p><p>Envoltos por montanhas, cercados por inimigos e perecendo de sede,</p><p>invocaram em vão as divindades pagãs. Então, os homens pertencentes à</p><p>legião militante, ou trovejante, todos eles cristãos, receberam ordem de</p><p>clamar ao seu Deus por socorro. Imediatamente, uma libertação milagrosa</p><p>ocorreu; caiu chuva copiosa que, captada pelos homens que encheram seus</p><p>diques, proporcionou-lhes alívio repentino e surpreendente. Parece que a</p><p>tempestade que surgiu milagrosamente diante dos inimigos os intimidou de</p><p>tal forma que parte deles desertou do exército romano, e os demais foram</p><p>derrotados, e as províncias revoltosas se recuperaram totalmente.</p><p>Essa situação amenizou a perseguição durante algum tempo, pelo menos</p><p>nas regiões sob supervisão direta do imperador. Porém, descobrimos que,</p><p>logo depois, ela ganhou grande vulto na França, particularmente em Lyon,</p><p>onde as torturas às quais muitos cristãos foram submetidos quase superam a</p><p>capacidade de descrição.</p><p>Os principais desses mártires foram Vécio Ágato, um jovem; Blandina,</p><p>uma senhora cristã de constituição fraca; Santo, um diácono de Viena —</p><p>placas de latão incandescentes foram colocadas sobre as partes mais</p><p>delicadas de seu corpo —; Bíblia, uma mulher frágil, antes apóstata; Átalo,</p><p>de Pérgamo, e Potino, o venerável bispo de Lyon, que tinha 90 anos.</p><p>Blandina, no dia em que ela e os outros três campeões foram levados ao</p><p>an�teatro, foi suspensa em um pedaço de madeira �xado no chão e exposta</p><p>como alimento para os animais selvagens. Nesse momento, com suas</p><p>orações sinceras, ela encorajou outros. Porém, nenhum dos animais</p><p>selvagens a tocava, de modo que ela foi devolvida à prisão. Quando foi</p><p>novamente apresentada pela terceira e última vez, estava acompanhada por</p><p>Pôntico, um jovem de 15 anos, e a constância da fé deles enfureceu tanto a</p><p>multidão que nem o fato de ela ser mulher, nem a juventude dele foram</p><p>respeitados, sendo expostos a todo tipo de punições e torturas. Fortalecido</p><p>por Blandina, o jovem perseverou até a morte, e ela, após suportar todos os</p><p>tormentos até então mencionados, foi �nalmente morta por espada.</p><p>Nas ocasiões em que eram martirizados, os cristãos eram adornados e</p><p>coroados com guirlandas de �ores; por isso, no Céu, receberam eternas</p><p>coroas de glória.</p><p>Tem sido dito que a vida dos primeiros cristãos consistia em</p><p>“perseguição acima do solo e oração abaixo do solo”. A vida deles é</p><p>expressada pelo Coliseu e pelas catacumbas.</p><p>Catacumba de São Sebas�ão, que fica no subsolo da Via Ápia, em Roma, Itália.</p><p>Sob Roma estão as escavações que denominamos catacumbas, que eram,</p><p>ao mesmo tempo, templos e túmulos. A Igreja Primitiva em Roma poderia</p><p>muito bem ser chamada Igreja das Catacumbas. Há cerca de sessenta</p><p>catacumbas perto de Roma, nas quais cerca de mil quilômetros de galerias</p><p>foram rastreados, e essas não são todas. Essas galerias medem</p><p>aproximadamente dois metros e meio de altura</p><p>por um metro a um metro e</p><p>meio de largura, contendo em cada lado várias �leiras de recessos</p><p>horizontais longos e baixos, um acima do outro, como os beliches de um</p><p>navio. Neles eram colocados os cadáveres e a frente era fechada com uma</p><p>única chapa de mármore ou vários grandes ladrilhos assentados com</p><p>argamassa. Nessas chapas ou ladrilhos estão gravados ou pintados epitá�os</p><p>ou símbolos. Pagãos e cristãos sepultavam seus mortos nessas catacumbas.</p><p>Quando as sepulturas cristãs são abertas, os próprios esqueletos contam</p><p>a terrível história deles. Cabeças são encontradas separadas do corpo,</p><p>costelas e escápulas estão quebradas, ossos estão frequentemente calcinados</p><p>por fogo. Porém, a despeito da horrível história de perseguição que</p><p>podemos ler aqui, as inscrições transmitem paz, alegria e triunfo. Eis</p><p>algumas:</p><p>“Aqui jaz Márcia, para repousar em um sonho de paz.”</p><p>“Lourenço para seu �lho mais querido, levado pelos anjos.”</p><p>“Vitorioso em paz e em Cristo.”</p><p>“Sendo chamado, ele foi em paz.”</p><p>Ao ler essas inscrições, lembre-se da história que os esqueletos contam</p><p>sobre perseguição, tortura e fogo.</p><p>Contudo, a plena força desses epitá�os é vista quando os contrastamos</p><p>com os epitá�os pagãos, como estes:</p><p>“Viva para o presente, pois não temos certeza de nada mais.”</p><p>“Levanto minhas mãos contra os deuses que me levaram embora aos</p><p>vinte anos, embora eu não tenha feito mal algum.”</p><p>“Eu não era. Agora, não sou. Nada sei sobre isso e não é da minha</p><p>conta.”</p><p>“Viajante, não me amaldiçoe ao passar, porque estou na escuridão e não</p><p>posso responder.”</p><p>Os símbolos cristãos mais frequentes nas paredes das catacumbas são: o</p><p>bom pastor com o cordeiro no ombro, um navio com velas enfunadas,</p><p>harpas, âncoras, coroas, parreiras e, acima de tudo, peixes.</p><p>A QUINTA PERSEGUIÇÃO, INICIADA POR SEVERO, 192 D.C.</p><p>Sendo ele recuperado de uma grave crise de enfermidade por meio de um</p><p>cristão, Severo se tornou um grande favorecedor dos cristãos em geral;</p><p>porém, prevalecendo o preconceito e a fúria da multidão ignorante, leis</p><p>obsoletas foram executadas contra os cristãos. Em 192 d.C., o avanço do</p><p>cristianismo alarmou os pagãos, que reavivaram a rançosa calúnia de</p><p>atribuir aos cristãos infortúnios acidentais.</p><p>Contudo, embora a maldade persecutória se acendesse, o evangelho</p><p>brilhava com uma clareza resplandecente e, �rme como uma rocha</p><p>inexpugnável, resistia com sucesso aos ataques de seus violentos inimigos.</p><p>Tertuliano, que viveu nessa época, nos informa que, se os cristãos</p><p>tivessem se retirado coletivamente dos territórios romanos, o império teria</p><p>sido consideravelmente despovoado.</p><p>Vítor, bispo de Roma, sofreu martírio no primeiro ano do terceiro</p><p>século, em 201 d.C. Leônido, pai do célebre Orígenes, foi decapitado por</p><p>ser cristão. Muitos dos ouvintes de Orígenes também sofreram martírio;</p><p>particularmente dois irmãos, chamados Plutarco e Sereno; um outro</p><p>Sereno, Heron e Heráclides foram decapitados. Rais teve piche fervente</p><p>derramado sobre sua cabeça e, depois, foi queimada; o mesmo ocorreu a</p><p>Marcela, sua mãe.</p><p>Potainiena, irmã de Rais, foi executada da mesma maneira, mas</p><p>Basílides, um o�cial pertencente ao exército e ordenado a comparecer à sua</p><p>execução, foi convertido por ela. Sendo Basílides obrigado, como o�cial, a</p><p>prestar um certo juramento, recusou-se, dizendo que, por ser cristão, não</p><p>podia jurar pelos ídolos romanos. Tomadas de surpresa, as pessoas não</p><p>conseguiram, a princípio, acreditar no que ouviram; porém, assim que ele</p><p>con�rmou suas palavras, foi arrastado para a presença do juiz, levado para a</p><p>prisão e, logo depois, decapitado.</p><p>Irineu, bispo de Lyon, nasceu na Grécia e recebeu uma educação</p><p>re�nada e cristã. Geralmente, supõe-se que o relato das perseguições em</p><p>Lyon tenha sido escrito por ele mesmo. Ele sucedeu o mártir Potino como</p><p>bispo de Lyon e dirigiu sua diocese com grande propriedade; era um zeloso</p><p>opositor de heresias em geral e, por volta do ano 187 d.C., escreveu um</p><p>célebre tratado contra a heresia. Vítor, o bispo de Roma, querendo impor a</p><p>guarda da Páscoa ali, em detrimento de outros lugares, provocou alguns</p><p>distúrbios entre os cristãos. Em particular, Irineu escreveu-lhe uma epístola</p><p>sinódica em nome das igrejas gaulesas. Esse zelo em favor do cristianismo o</p><p>destacou como um elemento de ressentimento para o imperador e, no ano</p><p>202 d.C., foi decapitado.</p><p>Com as perseguições agora se estendendo à África, muitos foram</p><p>martirizados naquela parte do globo; mencionaremos as mais singulares.</p><p>Perpétua, uma senhora casada, com aproximadamente 22 anos. Os que</p><p>sofreram com ela foram Felicidade, uma senhora casada, grávida na época</p><p>em que foi presa, Revocatus, catecúmeno de Cartago, e um escravo. Os</p><p>nomes dos outros prisioneiros, destinados a sofrer nessa ocasião, eram</p><p>Saturnino, Secúndulo e Satur. No dia marcado para sua execução, eles</p><p>foram levados ao an�teatro. Satur, Saturnino e Revocatus foram ordenados</p><p>a passar por um corredor polonês formado pelos caçadores, que cuidavam</p><p>dos animais selvagens.</p><p>Eles correram entre as duas �leiras dos caçadores e foram severamente</p><p>açoitados enquanto passavam. Felicidade e Perpétua foram despidas para</p><p>serem atiradas a um touro louco, que fez seu primeiro ataque contra a</p><p>jovem Perpétua, aturdindo-a; depois, disparou contra Felicidade e a chifrou</p><p>terrivelmente. Como não as matou, o carrasco o fez com uma espada.</p><p>Revocatus e Satur foram destroçados por animais selvagens, Saturnino foi</p><p>decapitado, e Secúndulo morreu na prisão. Essas execuções ocorreram no</p><p>oitavo dia de março do ano 205.</p><p>Esperato e outros doze foram igualmente decapitados, tal como</p><p>Andocles, na França. Asclepíades, bispo de Antioquia, sofreu muitas</p><p>torturas, mas sua vida foi poupada.</p><p>Cecília, uma jovem de boa família em Roma, era casada com um</p><p>cavalheiro chamado Valeriano. Ela converteu o marido e o irmão, que</p><p>foram decapitados, e o máximo, ou o�cial, que os levou à execução, sendo</p><p>convertido por eles, sofreu o mesmo destino. Em 222 d.C., essa senhora foi</p><p>colocada nua em um banho escaldante e, permanecendo ali por um tempo</p><p>considerável, sua cabeça foi decepada com uma espada.</p><p>Calisto, bispo de Roma, foi martirizado em 224 d.C., mas a maneira</p><p>como morreu não está registrada; e Urbano, bispo de Roma, teve o mesmo</p><p>destino em 232 d.C.</p><p>A SEXTA PERSEGUIÇÃO, SOB O GOVERNO DE MAXIMINO, 235 D.C.</p><p>No ano 235 d.C., Maximino era o imperador. Na Capadócia, o presidente</p><p>Seremiano fez tudo que pôde para exterminar os cristãos daquela província.</p><p>As principais pessoas que pereceram sob esse reinado foram Ponciano,</p><p>bispo de Roma; Antero, um grego, seu sucessor, que ofendeu o governo</p><p>compilando os atos dos mártires Pamáquio e Quirito, senadores romanos,</p><p>com todas as suas famílias e muitos outros cristãos; Simplício, senador;</p><p>Calepódio, um ministro cristão, jogado no rio Tibre; Martina, uma virgem</p><p>nobre e bonita, e Hipólito, um prelado cristão, amarrado a um cavalo</p><p>selvagem e arrastado até a morte.</p><p>Durante essa perseguição, in�igida por Maximino, inúmeros cristãos</p><p>foram mortos sem julgamento e enterrados indiscriminadamente em</p><p>montões, às vezes até 50 ou 60 eram lançados juntos em uma mesma cova,</p><p>sem a menor decência.</p><p>O tirano Maximino morreu em 238 d.C. e foi sucedido por Górdio,</p><p>durante cujo reinado — e o de seu sucessor, Filipe — a Igreja esteve livre de</p><p>perseguições por mais de dez anos. Entretanto, em 249 d.C., uma violenta</p><p>perseguição eclodiu em Alexandria, por instigação de um sacerdote pagão,</p><p>sem o conhecimento do imperador.</p><p>A SÉTIMA PERSEGUIÇÃO, SOB O GOVERNO DE DÉCIO, 249 D.C.</p><p>Em parte, essa perseguição foi ocasionada devido ao ódio que Décio sentia</p><p>por seu antecessor, Filipe, que era considerado cristão, e em parte por seu</p><p>ciúme em relação ao incrível aumento do cristianismo, pois os templos</p><p>pagãos começaram a ser abandonados, e as igrejas cristãs a se aglomerar.</p><p>Essas razões estimularam Décio a tentar extirpar, a todo custo, o nome</p><p>de cristão. Nessa época, foi lamentável para o evangelho que muitos erros</p><p>tivessem se instaurado no interior da Igreja: os cristãos estavam em</p><p>desacordo; o interesse próprio dividiu aqueles</p><p>que o amor social deveria ter</p><p>unido, e a virulência do orgulho ocasionou uma variedade de facções.</p><p>Nessa ocasião, os pagãos em geral eram ambiciosos por fazer cumprir os</p><p>decretos imperiais e consideravam o assassinato de um cristão um mérito</p><p>para si mesmos. Sendo assim, a quantidade de mártires é incontável, mas</p><p>abordaremos os principais.</p><p>Fabiano, bispo de Roma, foi a primeira pessoa eminente que sentiu o</p><p>rigor dessa perseguição. Devido à sua integridade, o falecido imperador</p><p>Filipe entregara seu tesouro aos cuidados desse bom homem. Décio, porém,</p><p>não encontrando o tanto que sua avareza o �zera imaginar, determinou-se a</p><p>vingar-se no bom prelado. Consequentemente Fabiano foi aprisionado e,</p><p>em 20 de janeiro de 250 d.C., decapitado.</p><p>Juliano, nativo da Cilícia, como nos relata Crisóstomo, foi preso por ser</p><p>cristão. Ele foi colocado em uma bolsa de couro, juntamente com várias</p><p>serpentes e escorpiões, e, nessa situação, lançado ao mar.</p><p>Pedro, um jovem amável pelas qualidades superiores de seu corpo e sua</p><p>mente, foi decapitado por recusar-se a oferecer sacrifícios a Vênus. Ele disse:</p><p>“Estou surpreso por alguém dever sacri�car a uma mulher infame, cujas</p><p>devassidões até seus próprios historiadores registram e cuja vida consistia</p><p>em atos que as suas leis puniriam. Não, eu oferecerei ao verdadeiro Deus o</p><p>sacrifício aceitável de louvores e orações”. Ao ouvir isso, Optimus, o</p><p>procônsul da Ásia, ordenou que o prisioneiro fosse esticado sobre uma roda</p><p>pela qual todos os seus ossos fossem quebrados; em seguida, foi enviado</p><p>para ser decapitado.</p><p>Nicômaco, levado perante o procônsul como cristão, recebeu ordem de</p><p>sacri�car aos ídolos pagãos. Ele respondeu: “Não posso prestar a demônios</p><p>esse respeito que é devido somente ao Todo-poderoso”. Esse discurso</p><p>enfureceu tanto o procônsul, que Nicômaco foi posto sob tortura. Após</p><p>suportar os tormentos durante algum tempo, retratou-se; porém, mal havia</p><p>dado essa prova de sua fragilidade, caiu em enorme agonia, foi ao chão e</p><p>expirou imediatamente.</p><p>Denisa, uma jovem de apenas 16 anos, que contemplou esse terrível</p><p>julgamento, exclamou repentinamente: “Ó infeliz desgraçado, por que você</p><p>compraria a tranquilidade de um momento à custa de uma eternidade</p><p>miserável?”. Optimus, ouvindo isso, a chamou, e Denisa, declarando-se</p><p>cristã, foi decapitada por ordem dele logo depois. André e Paulo, dois</p><p>companheiros de Nicômaco, o mártir, em 251 d.C., sofreram martírio por</p><p>apedrejamento e expiraram clamando por seu bendito Redentor.</p><p>Alexandre e Epímaco, de Alexandria, foram detidos por serem cristãos e,</p><p>confessando a acusação, foram espancados com bastões, dilacerados com</p><p>ganchos e, �nalmente, queimados na fogueira, e um fragmento preservado</p><p>por Eusébio nos informa que quatro mulheres mártires sofreram no mesmo</p><p>dia e local, mas não da mesma maneira: foram decapitadas.</p><p>Luciano e Marciano, dois pagãos perversos, embora hábeis magos,</p><p>convertendo-se ao cristianismo, viviam como eremitas e subsistiam apenas</p><p>com pão e água, para reparar os erros do passado. Depois de algum tempo</p><p>passado dessa maneira, tornaram-se pregadores zelosos e conduziram</p><p>muitos à conversão. Porém, devido à perseguição muito forte naquele</p><p>momento, eles foram presos e levados diante de Sabino, governador da</p><p>Bitínia. Ao serem questionados sobre a autoridade com a qual se puseram a</p><p>pregar, Luciano respondeu: “As leis da caridade e da humanidade</p><p>obrigavam todos os homens a se esforçarem pela conversão de seus</p><p>próximos e a fazer tudo que estivesse ao seu alcance para resgatá-los das</p><p>armadilhas da diabo”.</p><p>Tendo Luciano respondido dessa maneira, Marciano complementou: “A</p><p>conversão deles foi pela mesma graça concedida ao apóstolo Paulo, que, de</p><p>zeloso perseguidor da Igreja, tornou-se pregador do evangelho”.</p><p>O procônsul, percebendo que não conseguiria convencê-los a</p><p>renunciarem à fé, os condenou a serem queimados vivos, sentença</p><p>executada em seguida.</p><p>Trifo e Respício, dois homens eminentes, foram capturados como</p><p>cristãos e aprisionados em Nice. Seus pés foram perfurados com cravos. Eles</p><p>foram arrastados pelas ruas, açoitados, dilacerados com ganchos de ferro,</p><p>queimados com tochas acesas e, �nalmente, decapitados no dia 1.º de</p><p>fevereiro de 251 d.C.</p><p>Santa Ágata, por Fancisco Zurbarán (1598–1664). Parte do acervo do Museu Fabre,</p><p>Montpellier, França.</p><p>Ágata, uma dama siciliana, não era mais notável por seus dotes pessoais</p><p>e adquiridos do que por sua piedade. Sua beleza era tanta que Quintiano,</p><p>governador da Sicília, apaixonou-se por ela e fez muitas tentativas de</p><p>desvirginá-la, porém sem sucesso. Com o intuito de satisfazer suas paixões</p><p>com a maior comodidade, colocou essa virtuosa senhora nas mãos de</p><p>Afrodica, uma mulher muito infame e licenciosa. Essa miserável tentou</p><p>todos os artifícios para convencê-la à desejada prostituição, mas todos os</p><p>seus esforços foram em vão, porque a castidade de Ágata era inexpugnável,</p><p>e ela sabia muito bem que só a virtude podia obter a verdadeira felicidade.</p><p>Afrodica comunicou a ine�cácia de seus esforços a Quintiano, que,</p><p>enfurecido por ver frustrados seus planos, transformou sua luxúria em</p><p>ressentimento. Quando Ágata confessou ser cristã, ele decidiu satisfazer sua</p><p>vingança, já que não conseguiria satisfazer sua paixão.</p><p>Em cumprimento a ordens dele, ela foi açoitada, queimada com ferros</p><p>em brasa e dilacerada com ganchos a�ados. Tendo suportado esses</p><p>tormentos com admirável coragem, ela foi deitada nua em brasas</p><p>misturadas com vidro e, depois, levada de volta à prisão. Ali, ela expirou em</p><p>5 de fevereiro do ano 251 d.C.</p><p>Cirilo, bispo de Gortina, foi preso por ordem de Lúcio, o governador</p><p>daquele lugar, que, porém, o exortou a obedecer à ordem imperial, realizar</p><p>os sacrifícios e salvar sua venerável pessoa da morte, pois tinha 84 anos. O</p><p>bom prelado respondeu que, por haver ensinado durante longo tempo</p><p>outras pessoas a salvarem suas almas, agora só pensaria na sua própria</p><p>salvação. O digno prelado ouviu sua in�amada sentença sem se abalar,</p><p>caminhou alegremente para o local de execução e sofreu seu martírio com</p><p>grande força de espírito.</p><p>Em nenhum outro lugar, a perseguição se tornou tão violenta como na</p><p>ilha de Creta. Por conta do governador ser extremamente ativo na execução</p><p>dos decretos imperiais, nesse local verteu-se muito sangue piedoso.</p><p>Bábilas, um cristão de educação liberal, tornou-se bispo de Antioquia no</p><p>ano 237 d.C., devido à morte de Zebino. Ele agiu com zelo inimitável e</p><p>liderou a Igreja com admirável prudência durante os tempos mais</p><p>tempestuosos.</p><p>O primeiro infortúnio ocorrido a Antioquia durante o bispado de</p><p>Bábilas foi o cerco de Sapor, rei da Pérsia. Este, tendo invadido toda a Síria,</p><p>tomou e saqueou essa cidade dentre outras e tratou os cristãos com maior</p><p>rigor do que os demais habitantes; porém, logo Sapor foi totalmente</p><p>derrotado por Górdio.</p><p>Após a morte de Górdio, durante o reinado de Décio, esse imperador</p><p>foi a Antioquia. Desejoso de visitar uma reunião de cristãos, Bábilas se opôs</p><p>a ele e recusou-se absolutamente a deixá-lo entrar. O imperador dissimulou</p><p>sua raiva naquele momento; porém, na sequência mandou chamar esse</p><p>bispo, reprovou-o rispidamente por sua insolência e, então, ordenou-lhe</p><p>que sacri�casse às divindades pagãs como uma expiação por sua ofensa.</p><p>Como Bábilas recusou-se a isso, foi levado à prisão, fortemente</p><p>acorrentado, tratado com grande severidade e, depois, decapitado,</p><p>juntamente com três jovens que haviam sido seus alunos. Isso ocorreu no</p><p>ano 251 d.C.</p><p>Nessa mesma época, Alexandre, bispo de Jerusalém, foi lançado na</p><p>prisão devido à sua religião e ali morreu devido à severidade de seu</p><p>con�namento.</p><p>Juliano, um idoso, coxo devido à gota, e Crônio, outro cristão, foram</p><p>amarrados ao dorso de camelos, fortemente açoitados e, depois, lançados ao</p><p>fogo e consumidos por ele. Também 40 virgens, em Antioquia, após serem</p><p>aprisionadas e açoitadas, foram queimadas.</p><p>No ano 251 de nosso Senhor, tendo erigido um templo pagão em Éfeso,</p><p>o imperador Décio ordenou que todos os que estavam naquela cidade</p><p>sacri�cassem aos ídolos. Essa ordem foi nobremente</p><p>recusada por sete de</p><p>seus próprios soldados, a saber: Maximiano, Marciano, João, Malco,</p><p>Dionísio, Seraion e Constantino. Desejando convencer esses soldados, por</p><p>meio de seus apelos e sua clemência, a renunciarem à fé, o imperador deu-</p><p>lhes um considerável intervalo até que ele retornasse de uma expedição.</p><p>Durante a ausência do imperador, eles fugiram e se esconderam em uma</p><p>caverna. Por ocasião do seu retorno, o imperador foi informado disso e</p><p>mandou lacrar a entrada da caverna, e esses soldados morreram de fome.</p><p>Teodora, uma bela jovem de Antioquia, ao recusar-se a sacri�car aos</p><p>ídolos romanos, foi condenada aos prostíbulos, para que sua virtude</p><p>pudesse ser sacri�cada à brutalidade da luxúria.</p><p>Dídimo, um cristão, disfarçou-se com a farda de um soldado romano,</p><p>foi até o prostíbulo, informou a Teodora quem ele era e a aconselhou a</p><p>fugir trajando a farda. Feito isso e sendo encontrado um homem no bordel</p><p>em vez de uma bela dama, Dídimo foi levado à presença do cônsul4, a</p><p>quem confessou a verdade. Logo, por ser cristão, a sentença de morte foi</p><p>imediatamente pronunciada contra ele. Ao saber que seu libertador</p><p>provavelmente sofreria, Teodora se apresentou ao juiz, jogou-se aos pés dele</p><p>e implorou que a sentença recaísse sobre ela como culpada. Porém, surdo</p><p>aos gritos dos inocentes e insensível aos apelos da justiça, o in�exível juiz</p><p>condenou os dois. Consequentemente, eles foram executados, sendo</p><p>primeiramente decapitados e, depois, queimados.</p><p>Segundiano, acusado de ser cristão, foi levado à prisão por alguns</p><p>soldados. No caminho, Veriano e Marcelino perguntaram: “Para onde vocês</p><p>estão levando esse inocente?”. Esse interrogatório ocasionou a detenção dos</p><p>dois, e os três, após torturados, foram enforcados e decapitados.</p><p>Orígenes, o célebre presbítero e catequista de Alexandria, aos 64 anos,</p><p>foi detido, lançado em uma prisão repugnante, agrilhoado, seus pés foram</p><p>presos em um tronco de madeira e as pernas estendidas ao máximo durante</p><p>vários dias sucessivos. Ele foi ameaçado com fogo e atormentado por todos</p><p>os meios [de tortura] prolongados que as imaginações mais infernais</p><p>poderiam sugerir. Durante essa cruel protelação, o imperador Décio</p><p>morreu. Galo, que o sucedeu, estava travando uma guerra com os godos;</p><p>assim, os cristãos encontraram um período de trégua. Nesse ínterim,</p><p>Orígenes teve sua pena relaxada e, retirando-se para Tiro, ali permaneceu</p><p>até sua morte, aos 69 anos.</p><p>Após o imperador Galo ter concluído as suas guerras, eclodiu uma praga</p><p>no império: o imperador ordenou sacrifícios às divindades pagãs, e as</p><p>perseguições se espalharam desde o interior até as partes extremas do</p><p>império. Muitos foram martirizados pela impetuosidade da multidão e pelo</p><p>preconceito dos magistrados; dentre eles estavam Cornélio, o bispo cristão</p><p>de Roma, e Lúcio, seu sucessor, no ano 253 d.C.</p><p>A maioria dos erros que se in�ltraram na Igreja naquele tempo decorreu</p><p>de alguns sobreporem a razão humana à revelação; porém, com a falácia de</p><p>tais argumentos sendo provada pelos religiosos mais capazes, as opiniões</p><p>que os contrapositores tinham levantado desapareceram como as estrelas</p><p>diante do Sol.</p><p>A OITAVA PERSEGUIÇÃO, SOB O GOVERNO DE VALERIANO, 257 D.C.</p><p>A perseguição in�igida por Valeriano, começou no mês de abril de 257</p><p>d.C., e teve a duração de três anos e seis meses. Os mártires que caíram</p><p>nessa perseguição foram inúmeros, e suas torturas e mortes foram</p><p>igualmente variadas e dolorosas. Os mártires mais eminentes dessa época</p><p>estão relatados a seguir, independentemente de classe, sexo ou idade.</p><p>Ru�na e Segunda eram duas belas e talentosas damas, �lhas de Astério,</p><p>um cavalheiro de destaque em Roma.</p><p>Ru�na, a mais velha, foi prometida em casamento a Armentário, um</p><p>jovem nobre; Segunda, a mais nova, a Verinus, pessoa de posição e</p><p>opulência. No momento em que a perseguição começou, esses dois</p><p>pretendentes eram cristãos; porém, quando se viram em perigo, eles</p><p>renunciaram a fé cristã para salvar suas fortunas. Eles se esforçaram muito</p><p>para convencer as damas a fazerem o mesmo, mas, frustrados em seus</p><p>intentos, esses amantes foram su�cientemente sórdidos para denunciá-las.</p><p>Sendo detidas como cristãs, foram levadas a Júnio Donato, governador de</p><p>Roma, onde, em 257 d.C., tiveram seu martírio selado com sangue.</p><p>Estêvão, bispo de Roma, foi decapitado no mesmo ano e, nessa época,</p><p>Saturnino, o piedoso bispo ortodoxo de Toulouse, recusando-se a sacri�car</p><p>a ídolos, foi tratado com as piores bárbaras indignidades imagináveis e</p><p>preso pelos pés à cauda de um touro. Uma vez dado o sinal, o animal</p><p>enfurecido foi induzido a descer as escadarias do templo. [Os golpes</p><p>partiram-lhe o crânio] esparramando assim o cérebro desse honrado mártir.</p><p>Sexto sucedeu Estêvão como bispo de Roma. Imagina-se que ele fosse</p><p>grego por nascimento ou por linhagem. Durante algum tempo, serviu na</p><p>qualidade de diácono sob a liderança de Estêvão. Sua grande �delidade,</p><p>sabedoria singular e coragem incomum o distinguiram em muitas ocasiões,</p><p>e o bem-sucedido desfecho de uma controvérsia com alguns hereges é</p><p>geralmente atribuído à sua piedade e prudência. No ano 258 d.C.,</p><p>Marciano, que detinha a administração do governo romano, executou a</p><p>ordem do imperador Valeriano de matar todo o clero cristão de Roma.</p><p>Assim, o bispo e seis de seus diáconos foram martirizados nesse ano.</p><p>Aproximemo-nos do fogo do martirizado Lourenço, para desse modo</p><p>aquecer o nosso coração gélido. O impiedoso tirano, considerando-o não</p><p>somente o ministro dos sacramentos, mas também o distribuidor das</p><p>riquezas da Igreja, prometeu a si mesmo matar dois coelhos com uma</p><p>cajadada só detendo uma única alma. Primeiramente, com o ancinho da</p><p>avareza, raspar para si o tesouro dos pobres cristãos; depois, com o forcado</p><p>ardente da tirania, abalá-los e perturbá-los para que, exaustos,</p><p>abandonassem a sua pro�ssão de fé.</p><p>Com rosto furioso e semblante cruel, o lobo ganancioso perguntou</p><p>onde Lourenço havia guardado o dinheiro da Igreja. Suplicando por três</p><p>dias de prorrogação, Lourenço prometeu declarar onde o tesouro poderia</p><p>ser encontrado. Enquanto isso, fez um bom número de pobres cristãos se</p><p>congregarem. Então, ao chegar o dia de sua resposta, o perseguidor lhe</p><p>cobrou estritamente o cumprimento de sua promessa. E, estendendo os</p><p>braços sobre os pobres, o valente Lourenço disse: “Eis aqui o precioso</p><p>tesouro da Igreja. Estes são realmente os tesouros nos quais reina a fé em</p><p>Cristo, em quem Jesus Cristo tem Sua morada. Quais outras joias preciosas</p><p>Cristo poderia ter do que aqueles em quem Ele prometeu habitar? Porque</p><p>assim está escrito: ‘…tive fome, e me destes de comer; tive sede, e me destes</p><p>de beber; era forasteiro, e me hospedastes’.5 E ainda: ‘…sempre que o</p><p>�zestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o �zestes’.6 Que maior</p><p>riqueza o nosso Senhor Cristo possui, senão os pobres em quem Ele ama ser</p><p>visto?”.</p><p>Mar�rio das santas Rufina e Segunda, por Pier Francesco Mazzucchelli (1573–1626),</p><p>Giulio Cesare Procaccini (1574–1625) e Giovanni Ba�sta Crespi (1573–1632). Parte da</p><p>Pinacoteca de Brera, em Milão, Itália.</p><p>Ó, que língua será capaz de expressar a fúria e a loucura do coração de</p><p>um tirano! Agora, ele pisoteava, olhava, esbravejava, comportava-se como</p><p>alguém fora de si: seus olhos fulguravam como fogo, sua boca se deformava</p><p>como um javali, seus dentes se arreganhavam como um cão do inferno.</p><p>Agora, ele não poderia ser chamado de homem razoável, e sim de leão</p><p>rugindo.</p><p>“Acendam o fogo!”, gritou ele, “Não poupem madeira. Esse vilão iludiu</p><p>o imperador? Levem-no daqui, levem-no daqui, chicoteiem-no com açoites,</p><p>batam-lhe com varas, esmurrem-no, golpeiem sua cabeça com bastões.</p><p>Graceja o traidor com o imperador? Belisquem-no com pinças de fogo,</p><p>cinjam-no com pratos ardentes, tragam as correntes mais fortes, os garfos</p><p>para fogueira e a cama de ferro e lancem-na ao fogo. Amarrem as mãos e os</p><p>pés rebeldes e, quando a cama estiver incandescente, assem-no, grelhem-no,</p><p>sacudam-no, virem-no, ó atormentadores. Com a dor do nosso grande</p><p>desagrado, cumpra cada homem o seu papel.”</p><p>Tão logo essas palavras</p>