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<p>Coleção Pensamento Criminológico Dario Melossi e Massimo Pavarini Cárcere e fábrica As origens do sistema penitenciário (séculos XVI-XIX) - Tradução Sérgio Lamarão Instituto Carioca de Criminologia Editora Revan</p><p>COLEÇÃO Pensamento Criminológico Sumário Direção Prof. Dr. Nilo Batista 2006 Instituto Carioca de Criminologia Prefácio à edição brasileira 5 Rua Senador Dantas, 75 Cob. 02 Centro Apresentação 11 Rio de Janeiro RJ - Brasil CEP 20031-204 Introdução 19 Tel.: (5521) 2221-1663 Primeira parte Dario Melossi Fax.: (5521) 2224-3265 A gênese da instituição carcerária moderna na Europa 29 I. A criação da instituição carcerária moderna na Inglaterra Edição e distribuição e na Europa continental entre a segunda metade do século XVI Editora Revan S.A. e a primeira metade do século XIX 31 Rua Paulo de Frontin, 163 1. "Bridewells" e "workhouses" na Inglaterra elisabetana 33 Rio de Janeiro RJ 20260-010 2. A Rasp-huis de e a manufatura 39 tel. (21) 2502-7495 3. Gênese e desenvolvimento da instituição carcerária fax (21) 2273-6873 nos outros países da Europa 48 editora@revan.com.br www.revan.com.br 4. Acontecimentos posteriores da instituição na experiência inglesa 60 Projeto gráfico 5. A construção da moderna práxis carcerária Luiz Fernando Gerhardt na Europa continental entre o Iluminismo Revisão e a primeira metade do século XIX 79 Sylvia Moretzsohn II.A gênese da instituição carcerária na Itália 101 Diagramação Nascimento Melossi, Dario e Pavarini, Massimo. 1. Os séculos XVI e XVII 103 Cárcere e fábrica As origens do sistema penitenci- 2. O Século XVIII 109 ário (séculos XVI-XIX) Dario Melossi e Massimo Pavarini. - Rio de Janeiro: Revan: ICC, 2006. 3. Do período napoleônico à situação pré-Unificação 127 (Pensamento criminológico; V. 11). edição, agosto Segunda parte Massimo Pavarini de 2010, reimpressão, setembro de 2014. A invenção penitenciária: 272 p. A experiência dos Estados Unidos Inclui bibliografia na primeira metade do século XIX 149 ISBN 85-7106-335-4 I. A era jacksoniana: desenvolvimento econômico, marginalidade 1. Direito penal e política do controle social 151</p><p>1. Propriedade imobiliária e instituição familiar na origem do controle social no período colonial 153 2. O quadro estrutural: de uma sociedade agrícola Prefácio à edição brasileira a uma economia industrial 166 a. O período pós revolucionário: processos de acumulação e economia mercantil 166 livro Cárcere e fabrica as origens do sistema penitenciário (séculos b. A decolagem industrial (1820-1860) 172 XIX), de Dario Melossi e Massimo Pavarini composto de dois ensaios 3. Processos desagregadores e a nova política do controle social: individuais independentes, mas com pressupostos metodológicos e objetivos a hipótese institucional 177 comuns, apresentados ao público brasileiro na excelente tradução 4. O nascimento da de Sérgio Lamarão, historiador do Centro de Pesquisa e Documentação de de Walnut Street Jail à Auburn Prison 184 História do Brasil (Cpdoc), da Fundação Getúlio Vargas, Rio 5. As formas da exploração de Janeiro retoma uma linha de pesquisa aberta por Rusche e Kirchheimer e a política do trabalho carcerário 192 em Punishment and Social Structure (1939), que demonstrou a relação mercado de trabalho/prisão e propôs a tese de que cada sistema de produção descobre II. A penitenciária como modelo da sociedade ideal 209 o sistema de punição que corresponde às suas relações produtivas. Em 1. O cárcere como "fábrica de homens" 211 Criminologia, essa linha de pesquisa é crítica porque insere as questões do 2. A dupla identidade: "criminoso-internado" crime e do controle social na estrutura econômica e no sistema de poder político e "não 212 e jurídico das sociedades pensadas com as categorias teóricas 3. "The Penitentiary System": desenvolvidas pela tradição marxista, fundadas no conceito de modo de produção o novo modelo de poder disciplinar 217 da vida social, que exprime a integração das forças produtivas materiais em 4. produto da máquina penitenciária: o proletário determinadas relações de produção históricas, nas quais se manifesta a luta de 231 classes da formação social capitalista. Apêndice 1 Nessa perspectiva, o ensaio de Dario Melossi (Cárcere e trabalho na A subordinação do ser institucionalizado Europa e na Itália, no período de formação do modo de produção capitalista) (pesquisa na penitenciária de Filadélfia, outubro de 1831) 237 define a relação capital/trabalho assalariado como a clave para compreender Apêndice 2 a instituição carcerária, elegendo a formação do proletariado o aspecto subordinado das relações de produção capitalistas como objeto do interesse A soberania administrativa em regime de "silent system" cientifico da pesquisa: expropriados dos meios de produção e expulsos do (conversas com G. Barrett, Smith e E. Lynds) 249 campo o violento processo de acumulação primitiva do capital nos séculos III. Conclusões XV e XVI os camponeses se concentram nas cidades, onde a insuficiente Razão contratual e necessidade disciplinar absorção de mão-de-obra pela manufatura e a inadaptação à disciplina do trabalho assalariado originam a formação de massas de desocupados urbanos. nas origens da pena privativa da liberdade 259 estudo mostra a população de mendigos, vagabundos, ladrões e outros dos centros urbanos então conhecidos como as classes perigosas produtos necessários de determinações estruturais, mas interpretados como expressão individual de atitudes defeituosas, tangidos para as workhouses uma invenção do século XVI para resolver problemas 5</p><p>de exclusão social da gênese do capitalismo. A transformação do castelo de que situa o nascimento da moderna penitenciária na transição da prisão de Bridewell (Londres) em casa de trabalho forçado de camponeses Walnut Street, em Filadélfia (1790) para a prisão de Auburn, em Nova York expropriados, com a finalidade de disciplina para o trabalho assalariado na (1819), origem dos modelos de penitenciária de Filadélfia e de Auburn, manufatura, é emblemática da política de controle das massas marginalizadas concebidos como instituições de controle social da sociedade capitalista do mercado de trabalho, sem função na reprodução do capital mas obrigadas mais desenvolvida da era moderna. a aceitar empregos por salários miseráveis para evitar a internação nas o texto situa a gênese do modelo de Filadélfia na decadência das work- workhouses. No início do século XVII, a estrutura celular do aparelho houses americanas, igualmente dedicadas à reclusão de pequenos delin- carcerário de Rasp-huis seria o modelo de disciplina da força quentes, vagabundos, devedores e pobres em geral afinal, também nos de trabalho ociosa formada por camponeses expropriados dos meios de United States of America ser pobre é crime, como disse Disraeli sobre a subsistência material, em toda Europa continental: raspar troncos de pau- Inglaterra: a crise das workhouses americanas seria desencadeada pela brasil para produzir tintura com o pó da serradura nossa involuntária produção manufatureira, que reduziu as casas de trabalho a instituições de contribuição para o sistema penal moderno além de disciplina para o terror, com trabalho manual repetitivo e sem função de adestramento da trabalho assalariado, cumpriria funções de prevenção especial e geral, segundo força de trabalho encarcerada. princípio de menor elegibilidade, pelo qual a eficácia da prisão pressupõe A pesquisa de Pavarini demonstra que o modelo de Filadélfia, criado condições carcerárias piores do que as condições do trabalho livre outra descoberta de Rusche e Kirchheimer. pela inspiração religiosa Quaker, com celas de isolamento em forma panótica para oração, arrependimento e trabalho individual em manufaturas, é a solução Definir a disciplina da força de trabalho pela instituição carcerária, primeiro para a crise da política de controle: os reduzidos custos administrativos da para a manufatura, depois para a fábrica, reforçando o trabalho da família, vigilância carcerária explicam sua rápida difusão nos EUA. Mas novas da escola e de outras instituições sociais, é um dos grandes méritos do texto transformações estruturais da sociedade americana produzem nova crise: a de Melossi. Na sociedade de produção de mercadorias, a reprodução ampliada natureza antieconômica do trabalho individual isolado e a impossibilidade do do capital pela expropriação de mais-valia da trabalho a energia trabalho coletivo em condições de isolamento celular colocam o modelo de produtiva capaz de produzir valor superior ao seu valor de troca (salário), Filadélfia na contramão das mudanças do mercado de trabalho e a solução como ensina Marx -, pressupõe o controle da classe na fábrica, da crise aparece no modelo de Auburn, mais tarde conhecido como o sistema instituição fundamental da estrutura social, a coação das necessidades penal americano, caracterizado pelo trabalho comum durante o dia, sob a econômicas submete a força de trabalho à autoridade do capitalista; fora da lei do silêncio. fábrica, os trabalhadores marginalizados do mercado de trabalho e do processo A da dependência do sistema punitivo em face dos processos eco- de consumo a chamada superpopulação relativa, sem utilidade direta na reprodução do capital, mas necessária para manter os salários em níveis nômicos do mercado de trabalho reaparece nos parâmetros de execução adequados para valorização do capital -, são controlados pelo cárcere, que penal do modelo de Auburn, orientados menos para a correção pessoal e realiza o papel de instituição auxiliar da fábrica. Assim, a disciplina como mais para o trabalho produtivo; assim como a manufatura produz o confinamento solitário do modelo de Filadélfia, a indústria engendra o política de coerção para produzir sujeitos dóceis e úteis, na formulação de Foucault, descobre suas determinações materiais na relação capital/trabalho trabalho coletivo do modelo de Auburn, com o silent system para isolar e controlar abrindo novas possibilidades de exploração do trabalho carcerário assalariado, porque existe como adestramento da força de trabalho para reproduzir o capital, processo definido por Dario Melossi como fenômeno por empresários privados. Mas o conluio do capital com a prisão para explorar de economia política e não simples investimento do corpo por relações de o trabalho do preso também entra em crise, como mostra Pavarini: por um poder, na linguagem de Foucault. lado, a exploração destruidora da força de trabalho, o emprego do preso como força de trabalho escravo na agricultura sulista, a brutalidade dos A segunda parte do livro é o ensaio de Massimo Pavaríni ("A invenção castigos corporais por razões de ritmo de trabalho e o compromisso entre penitenciária: a experiência dos EUA na primeira metade do século XIX"), empresários e juízes de transformar penas curtas em penas longas de prisão 6 7</p><p>para maior extração de mais-valia; por outro lado, a luta de sindicatos e esqueceram o fracasso histórico da exploração lucrativa do trabalho carcerário organizações operárias contra os custos inferiores e maior competitividade iniciaram novo programa de prisões/empresas: a indústria do encarceramento do trabalho carcerário (salários menores, ausência de tributos etc.) e as privado cresceu de 3.100 presos em 1987 para 276.000 presos em 2001, dificuldades de industrialização do aparelho carcerário em época de renovação sob o sistema de full-scale management, de gestão total do estabelecimento tecnológica acelerada tudo isso contribui para decretar o fim da prisão pela empresa privada, segundo Wacquant, em A ascensão como empresa produtiva nos Estados Unidos da América, já no começo do do Estado penal nos EUA. século XX. Afinal, na definição de Pavarini, a penitenciária não é uma célula Em poucas palavras, a relação evoluiu para a simbiose produtiva, mas uma fábrica de homens para transformar criminosos em que fundiu essas instituições em uma unidade arquitetônica proletários, ou uma máquina de mutação antropológica de sujeitos reais, punitiva/produtiva, com a fábrica construída como cárcere, ou o cárcere agressivos e violentos, em sujeitos ideais, disciplinados e mecânicos, segundo erigido em forma de fábrica, a realização definitiva do ideal de exploração do Foucault. A tese do criminoso encarcerado como não-proprietário encarcerado trabalho pelo capital, na perspectiva da intuição de Pavarini: os detidos devem ilumina a tarefa do cárcere na sociedade burguesa, instituição coercitiva para ser trabalhadores; os trabalhadores devem ser transformar o criminoso não-proprietário no proletário não-perigoso, um sujeito de necessidades reais adaptado à disciplina do trabalho assalariado. Curitiba, dezembro de Entre os aspectos comuns dos ensaios de Melossi e de Pavarini aparece a valorização do conceito de Pasukanis (A teoria geral do direito e marxismo, 1929) da pena como retribuição equivalente da sociedade capitalista, no Prof. Dr. Juarez Cirino dos Santos sentido de troca jurídica que realiza o princípio da igualdade do Direito, Professor de Direito Penal da Universidade Federal do Paraná correspondente à troca de força de trabalho por salário no mercado de trabalho, Presidente do Instituto de Criminologia e Política Criminal (Curitiba, PR) que exprime a redução de toda riqueza social ao trabalho abstrato medido pelo tempo, o critério geral do valor na economia e no Direito. Assim, a pena como retribuição equivalente representaria o momento jurídico da igualdade formal, que oculta a submissão total da instituição carcerária, como aparelho disciplinar exaustivo para produzir sujeitos dóceis e úteis, que configura o cárcere como de proletários; por outro lado, o salário como retribuição equivalente do trabalho, na relação jurídica entre sujeitos "livres" e "iguais" no mercado, oculta a dependência substancial e a desigualdade real do processo de produção, em que a expropriação de mais-valia significa retribuição desigual e a subordinação do trabalhador ao capitalista significa dependência real, determinada pela coação das necessidades econômicas, que configuram a fábrica como cárcere do operário. Todavia, o último capítulo da história da relação ainda está para ser escrito. A política americana de criminalização da pobreza, promovida pelo desmonte do Estado social e sua substituição pelo Estado penal iniciada por Reagan e continuada por Bush (agora com apoio do exterminador do futuro Schwarzenegger, governador da Califórnia) quintuplicou a população carcerária daquele país em vinte anos: de 500 mil presos em 1980 para 2,5 milhões em Governo e eleitorado americanos 8 9</p><p>Apresentação Para o estudioso italiano que quer se aprofundar na pesquisa histórica sobre as origens das instituições penitenciárias, este é um momento certamente muito interessante. Em novembro de 1976, foi finalmente publicado na Itália o texto de Foucault Vigiar e punir. E hoje aparecem reunidos organicamente num volume dois ensaios importantes de Dario Melossi e Massimo Pavarini, um dedicado às relações entre cárcere e trabalho na Europa e na Itália, entre o século XVI e a primeira metade do século XIX, e o outro às experiências penitenciárias dos Estados Unidos da América, na primeira metade do século XIX. o interesse, evidentemente, não é apenas histórico. Revisitar as origens do sistema penitenciário na Europa e nos Estados Unidos significa, na realidade, buscar as razões de fundo que explicam a crise do sistema carcerário nos dias de hoje e colocar-se o problema da homogeneidade entre as instituições carcerárias e os modelos econômicos e políticos da nossa sociedade. Não se pretende dizer com isso que a pesquisa histórica deva ter ou tenha sempre como finalidade uma melhor compreensão do presente. Porém, tantos os ensaios de Melossi e de Pavarini quanto, embora de uma maneira diversa, a obra de Foucault, servem a essa finalidade, pois o método que utilizam fornece modelos de investigação suscetíveis de serem aplicados, em seus pressupostos de ordem geral, também a sociedades e períodos históricos diversos daqueles examinados. A reflexão sobre o presente é, pois, uma obrigatória, o que atribui a essas pesquisas uma indiscutível atualidade. o dado comum que se faz presente tanto na obra de Foucault quanto na extensa e em muitos aspectos original sistematização que Melossi e Pavarini fizeram de um material bibliográfico pouco conhecido ou até mesmo desconhecido na Itália é a inversão de um certo modo de considerar o cárcere como uma instituição isolada e separada do contexto social. É bem verdade que o cárcere e as demais instituições de confinamento são locais fechados e por isso mesmo fisicamente isolados e separados da sociedade livre, porém essa separação é mais aparente que real, uma vez que o cárcere não faz mais do que propor ou levar ao paroxismo modelos de organização social ou econômicos que se deseja impor ou que já existem na sociedade. 11</p><p>Foucault, de um lado, e Melossi e Pavarini, do outro, seguem posturas e contribuição de grande valia, que estimula a análise das relações entre o cárcere métodos ideológicos muito diferentes para chegar a uma mesma conclusão, e as diferentes situações socioeconômicas, bem como do papel que a instituição que pode ser considerada, desde já, como ponto de partida da atual pesquisa desempenha atualmente. histórica sobre as instituições penitenciárias. Para Foucault, o cárcere é o Esse método de trabalho emerge com clareza desde as primeiras páginas emblema do modelo de organização do poder disciplinar exercitado no do texto de Melossi, "Cárcere e trabalho na Europa e na Itália no período da contexto social de quem detém o próprio poder, um modelo que assume formação do modo de produção capitalista". Os bridewells e workhouses na aspectos quase metafísicos e que perde, exatamente devido à sua generalização Inglaterra elisabetana, da mesma forma que os rasp-huis de Amsterdam, são e abstração, uma dimensão histórica precisa. É bem verdade que Foucault enfocados e examinados à luz de precisas exigências econômicas e de examina o nascimento da instituição carcerária e de outras instituições de mercado, numa visão que, ao menos no que concerne à bibliografia carcerária confinamento a ela afins na França, no período compreendido entre o final italiana, é completamente nova. do século XVIII e os primeiros anos do século XIX. Porém, o alcance que ele atribui à descoberta do modelo de organização penitenciária é tamanho As origens do internamento compulsório na Inglaterra na segunda metade do século XVI, para recolher ociosos, vagabundos, ladrões e autores de delitos que faz dele um esquema universal, que parece destinado a reproduzir-se sem modificações, malgrado as mudanças ocorridas na sociedade francesa de menor importância, e submetê-los ao trabalho obrigatório e a uma rígida disciplina, e a difusão, tendo como referência o primeiro experimento feito no dos primeiros anos dos Oitocentos até os dias de hoje. castelo de Bridewell, de casas de correção em diversas partes da Inglaterra, são Em outras palavras, parece que a Foucault interessa mais a descoberta deste relacionadas às hipóteses avançadas por Marx sobre a necessidade de enfrentar, modelo de controle disciplinar e dos seus mecanismos abstratos de com instrumentos repressivos, as grandes massas de ex-trabalhadores agrícolas funcionamento do que as modalidades concretas de gestão do sistema penitenciário e de desenraizados que, em consequência da crise irreversível do sistema feudal, e dos outros instrumentos análogos de controle social (escola, hospital, hospício, afluem para a cidade e não podem ser absorvidas pela nascente manufatura quartel, fábrica etc.) no período histórico considerado. Por conta disso, não é com a mesma rapidez com que abandonam os campos. Mas na realidade, nesta de todo injustificado perguntar se os organogramas de controle disciplinar primeira fase a segregação não se deve tanto a exigências de destruição ou de colocados em prática pela sociedade burguesa funcionaram efetivamente e que eliminação física, mas sim à utilização de força de trabalho e, mais ainda, à exigências concretas de poder, e não apenas de uma organização social abstrata, necessidade de se adestrar para o trabalho manufatureiro os ex-camponeses corresponderam a eles. Cabe perguntar, enfim, se foram alcançados os resultados que se recusam a se submeter aos novos mecanismos de produção. que se propunha obter. Este processo é seguido, de maneira mais analítica, nas casas de trabalho Bem diferente é o método seguido por Melossi e Pavarini na individualização holandesas da primeira metade dos Seiscentos. Da organização dessas casas de das conexões entre cárcere e organização econômica e política da sociedade. trabalho emerge, de forma particularmente evidente, que o seu propósito era o Aqui, a preocupação de situar o cárcere num contexto histórico preciso constitui aprendizado forçado da disciplina da fábrica. Demonstra-se, com toda a o fio condutor da pesquisa; ao mesmo tempo, os autores procuram objetividade, que esta finalidade sobre o controle do mercado de constantemente comparar os esquemas teórico-interpretativos que propõem trabalho, não fosse por outro motivo senão pela importância relativamente limitada para explicar primeiro a gênese e depois o desenvolvimento dos distintos sistemas que essas instituições tiveram naquele período histórico. penitenciários e a incidência concreta que as instituições penitenciárias têm na A precisão é importante porque, quando se cede a uma excessiva organização econômica e social que estão analisando. supervalorização e generalização do fenômeno, corre-se o risco, uma vez Veremos como tampouco este método está isento de um certo encontrada uma fórmula interpretativa, de se estender o seu alcance até aplicá- mecanicismo, especialmente em relação àqueles períodos históricos e àquelas la mecanicamente a situações em que o cárcere, ou casa de trabalho ou o que realidades nacionais, entre as quais a Itália, em que as hipóteses de trabalho quer que seja, tenha uma dimensão tão reduzida a ponto de não ser possível e as tentativas de explicação propostas para outras situações encontram menor atribuir-lhe nenhuma função real de controle social ou alguma incidência sobre correspondência na realidade concreta. De todo modo, trata-se de uma mercado de oferta e demanda de trabalho. 12 13</p><p>Devemos ser ainda mais cautelosos quando nos deparamos com De fato, é nesse período que deixam de ser praticadas no cárcere formas de afirmações do tipo "o segredo das workhouses ou das rasp-huis (...) consiste trabalho produtivo e competitivo, passando a prevalecer um sistema intimidatório em representar, em termos ideais, a concepção burguesa da vida e da e terrorista de gestão, destinado a perpetuar-se no decorrer do século XIX e sociedade, em preparar os homens, em particular os pobres, os proletários, mesmo posteriormente. Aqui, a correlação entre os sistemas de organização a aceitar uma ordem e uma disciplina que os tornem dóceis instrumentos da carcerária e as exigências do avanço industrial e do controle terrorista sobre o exploração", ou quando se afirma tout court é esta a conclusão a que proletariado tem um fundamento indiscutível e se baseia em situações de fato, chegam Rusche e Kirchheimer que "a primeira forma de prisão moderna tais como o notável desenvolvimento quantitativo da instituição carcerária e as está (...) estreitamente ligada às casas de correção-manufaturas". Proceder condições de vida das prisões, descritas por reformadores do século desse modo significa atribuir à nascente burguesia manufatureira e à sua XVIII, em primeiro lugar por Howard. organização social uma importância e uma capacidade que, na realidade, A tentação de resolver, de acordo com estes esquemas interpretativos, também permanecem confinadas a experiências certamente emblemáticas, mas de as situações em que estão ausentes os pressupostos econômicos e produtivos circunscrito alcance quantitativo e territorial. para ligar o cárcere às linhas de desenvolvimento da economia capitalista torna A relação entre o cárcere e o mercado de trabalho, entre confinamento e menos convincente a investigação da realidade E isso ocorre não tanto adestramento à disciplina da fábrica não pode, após os resultados da pesquisa porque na segunda parte do ensaio Melossi se proponha a aplicar estas concepções de Melossi e Pavarini, ser colocada em questão, mas ao lado desta lógica às primeiras experiências italianas dos séculos XVI e XVII, mas sim porque, na economicista existem provavelmente outras, que não constituem simplesmente ausência dos pressupostos econômicos e sociais que tornam plausível a coberturas ideológicas ou justificativas moralistas. A chave para uma reconstrução explicação do cárcere em função das exigências do mercado de trabalho e do da função global desenvolvida pelas instituições segregacionistas no longo período modo de produção capitalista, não são buscadas outras tentativas de explicação. da sua gestação, que se estende do século XVI ao século XVIII, deve ser Tem-se, assim, a necessidade de se fazer referências genéricas a exigências de buscada numa abordagem que também leve em conta outros componentes, ordem e controle social, as quais por isso mesmo são reavaliadas, posto que, certamente contraditórios e menos racionais, que encontramos nas atuais ainda que seja de forma extremamente reduzida e com uma incidência quantitativa instituições penitenciárias e que abarcam uma vasta esfera de motivações, às mínima, as experiências de confinamento também existem na Itália. vezes abertamente mistificadoras, mas às vezes reais, que vão desde as exigências Essas limitações estão em parte presentes também nas investigações sobre de defesa social até o mito da recuperação e da reeducação do desviante, desde os períodos posteriores, do Setecentos até as experiências dos estados que o castigo punitivo como um fim em si mesmo até os modelos utópicos de precederam à unificação italiana. É necessário, porém, ter-se consciência da perfeitos microcosmos disciplinares. enorme dificuldade de padronizar um material tão fragmentado, por causa das É certo, porém, que a análise interpretativa que destaca as relações entre o diversas experiências políticas e dos diferentes níveis de desenvolvimento nascimento das instituições segregacionistas, a difusão da pena detentiva e o econômico dos vários estados e regiões italianas e da carência de qualquer modo de produção capitalista contribui de maneira determinante para a tentativa de sistematização e de avaliação crítica. Diante desse quadro, deve-se, compreensão do fenômeno e para o desmantelamento de mitos e lugares comuns em primeiro lugar, recorrendo às poucas fontes existentes, completar as sobre a imutabilidade do cárcere ao longo dos séculos. Nesse sentido, é informações necessárias para fazer a descrição da situação das instituições particularmente convincente a relação de interdependência entre as condições penitenciárias e de confinamento do mercado de trabalho, sempre em mutação, a brusca queda da curva de Malgrado estas dificuldades, na parte final do ensaio emergem algumas linhas incremento demográfico, a introdução das máquinas e a passagem do sistema seguras de interpretação, com base nas quais pode-se chegar à conclusão de manufatureiro para o sistema fabril propriamente dito, de um lado, e a súbita e que na Itália nunca existiu a fase histórica em que a instituição penitenciária sensível deterioração das condições de vida no interior do cárcere, do outro, a funcionou como adestramento para a fábrica ou como controle do mercado da partir da segunda metade dos Setecentos na Inglaterra e nos outros países força de trabalho. Na Itália, o cárcere, nascido mais tarde do que em outros europeus de industrialização mais rápida. países devido ao atraso com que se iniciou o desenvolvimento das manufaturas 14 15</p><p>e por conseguinte das fábricas, imediatamente adequou-se à função repressiva a experiência dos Estados Unidos da América na primeira metade e terrorista que foi atribuída, no início do século XIX, ao internamento nas do XIX". Esses resultados são mais seguros porque a história nações européias mais Saltou-se assim a passagem, ou a ilusão, carcerária dos Estados Unidos pode contar não apenas com uma vasta se se preferir, de utilizar a instituição no quadro das exigências produtivas da elaboração crítica, totalmente inexistente para a situação italiana, mas também nascente economia capitalista. com um desenvolvimento lógico e com uma articulação dos sistemas Esta hipótese, que poderia ser uma convincente explicação do crônico atraso penitenciários que permitem colocar em evidência indiscutíveis conexões do cárcere na Itália, desde as suas origens até os nossos dias, apóia-se sobre entre o cárcere e o desenvolvimento econômico da América do século XIX. algumas considerações sem dúvida importantes, tais como a permanência de As conexões entre as formas de controle social e o tipo de economia agrário- relações pré-capitalistas no Mezzogiorno, e a função assumida pelo proletariado familiar do período colonial, entre as primeiras experiências de internamento do meridional de exército industrial de reserva da economia do norte do país e dos período pós-revolucionário e o seu progressivo aperfeiçoamento em função das países estrangeiros mais avançados mediante o recurso maciço ao fenômeno exigências produtivas do avanço industrial, estão amplamente documentadas e migratório. As funções de regulador do mercado e de adestramento para o constituem um esquema exemplar de subordinação da ideologia punitiva e trabalho produtivo que, pelo menos em certos períodos históricos e em nível às leis do mercado de trabalho. mais emblemático que real, o cárcere desempenhou em países que possuíam Assim, não é por acaso que foi nos Estados Unidos, em fins do século uma estrutura econômica mais homogênea, teriam sido assumidas na Itália por XVIII e no começo do século seguinte, que se inventaram e experimentaram, outros instrumentos de controle, entre os quais, em primeiro lugar, a migração numa rápida sucessão histórica, os dois sistemas penitenciários clássicos de interna e a emigração. Quando, na segunda metade do século XIX, algumas Filadélfia e de Auburn, nos quais o trabalho se reveste, respectivamente, de regiões italianas alcançaram os níveis de produção de outros países europeus, o uma mera função punitiva ou é organizado segundo padrões produtivos e cárcere se adequará, em toda a nação, ao modelo de instrumento terrorista de competitivos. Tampouco é por acaso que, enquanto nos Estados Unidos os controle social, sem que seja possível destacar nenhuma diferença de gestão dois sistemas entram efetivamente em funcionamento e são aplicados até as entre as zonas industrializadas do norte e as mais atrasadas do sul, já unificadas suas últimas (basta pensar na intervenção direta da indústria pela mesma administração centralizada das instituições penitenciárias. privada na organização e na gestão do trabalho carcerário no esquema do Conviria antes perguntar se esta tentativa de sistematização da origem e contract system), na Europa, como bem destaca Melossi, o debate sobre os do constante atraso do sistema carcerário italiano teve também lugar em méritos e os defeitos dos dois sistemas tem lugar num terreno predominan- outros países da bacia do Mediterrâneo, nos quais registrou-se um atraso no temente ideológico e moralista. Na verdade, na Europa da primeira metade desenvolvimento econômico similar ao da Itália, como Espanha, Grécia ou do século XIX, não estavam presentes os pressupostos econômicos e de Turquia. Se essas analogias ocorreram, elas poderiam reforçar a hipótese de mercado para qualquer utilização ou instrumentalização produtiva do trabalho uma linha de desenvolvimento do cárcere característica de países econômica carcerário. e politicamente subdesenvolvidos (o discurso vale, obviamente, para as Todavia, também nos Estados Unidos, como documenta o próprio Pavarini, primeiras décadas do século XIX) e induzir a um aprofundamento, em arelação direta entre cárcere e trabalho produtivo teve uma incidência quantitativa perspectiva comparada, da investigação sobre a situação italiana, até agora e temporal muito limitada, pelo que, mais do que falar do cárcere como fábrica muito incipiente se confrontada com o nível sensivelmente mais avançado de mercadorias, dever-se-ia falar do cárcere como produtor de homens, no das pesquisas conduzidas em países em que o cárcere desenvolveu funções sentido da transformação do criminoso rebelde em sujeito disciplinado e adestrado econômicas e sociais que não têm correspondência ou comparação (ou se ao trabalho fabril. tiver é muito tênue), com a realidade italiana. Esta conclusão leva Pavarini a traçar, na segunda parte do seu trabalho, Essas conclusões problemáticas referidas aos acontecimentos históricos dedicada à penitenciária como modelo de sociedade ideal, uma comparação das instituições carcerárias italianas encontram uma confirmação indireta articulada entre cárcere e fábrica, entre detento e trabalhador, entre contrato nos resultados a que Massimo Pavarini chega no seu ensaio "A invenção de trabalho e pena retributiva, entre subordinação no trabalho e subordinação 16 17</p><p>do preso, entre organização coativa carcerária e organização coativa eco- nômica do trabalho. A tese é indubitavelmente sugestiva, mas nos parece pecar por um certo dogmatismo e por uma tendência à generalização abstratizante que constitui o Introdução limite da obra de Foucault. Se este tipo de comparação entre cárcere e fábrica pode ter fundamento para o período histórico examinado, isto é, para os anos de formação do modo de produção capitalista, que conclusões poderemos tirar 1. início do interesse pela história da instituição carcerária coincide, dela para fundamentar a tese no momento histórico atual, e em especial na para nós, com a explosão, no final dos anos 1960, da gravíssima crise na realidade italiana? qual a instituição se encontrava (e se encontra até hoje). Como sempre acontece Assistimos há mais de meio século e sobretudo naqueles países em que o nos momentos de crise, fomos levados a nos colocar algumas perguntas que modelo alcançou aplicações mais amplas e mais concretas a diziam respeito à natureza mais profunda, à essência mesma do fenômeno um constante processo de transformação da sanção detentiva em outros carcerário. Surpreendeu-nos então constatar, e essa constatação incluía instrumentos de controle em liberdade do transgressor e do E também o modo de pensar que até então nos movia, que, para além das certamente não se pode afirmar, como faz Foucault, que se trata simplesmente diferentes posturas de cunho reformista ou mesmo subversivo do de um estreitamento e de uma atomização dos conteúdos da pena carcerária, ninguém colocara com bastante clareza um problema que nos que continuaria assim a manter intacto o seu papel e a sua função de instrumento parecia cada vez mais crucial: por que o cárcere? Por que motivo, em todas totalizante de poder disciplinar. Em outros países, como a Itália, o cárcere, as sociedades industrialmente desenvolvidas, essa instituição cumpre, de modo devido às suas conhecidas deficiências organizativas, nunca foi um modelo de predominante, a função punitiva, a ponto de cárcere e pena serem considerados controle disciplinar e muito menos de adestramento ao trabalho produtivo, mas comumente quase que a crítica prática da instituição, sim constituiu um modelo de mau governo e de anarquia, entendido aqui em que nesses anos se manifestava radicalmente com motins, fazendo emergir termos de gestão e administração. cada vez mais seu caráter irracional, sugeria a necessidade de inventar os A estrutura do trabalho fabril certamente sofreu algumas modificações no instrumentos da crítica teórica. Esses instrumentos deveriam ser capazes de curso dos últimos 150 anos e, embora o princípio da exploração da força de responder à pergunta, simples e ingênua, que a crise profunda de um trabalho ainda continue de pé, a condição do trabalhador subordinado não pode fenômeno social sempre coloca com relação ao dito a quem serve ser comparado àquele existente no período do avanço industrial. Enfim, nos e para que serve? Diante desse fenômeno, qual deve ser a postura de quem, países socialistas, o problema da repressão penal e da organização penitenciária em seu trabalho intelectual, se interessa pela classe operária e utiliza a análise seguiu e segue esquemas que em parte são calcados nos do mundo ocidental. marxista?Também nos parecia que o projeto de reforma penitenciária que Estes dados, sumária e desordenadamente oferecidos aqui à atenção do leitor, depois de ter sido proposto há décadas, era retomado naquelas dias agitados exigem uma sistematização teórica e uma tentativa de conciliação com a hipótese no Parlamento, sob o peso dos motins e do temor que estes provocavam na totalizante do modelo carcerário do século XIX. opinião pública estava muito longe, se não nas fórmulas legislativas, pelo menos na colocação teórica do debate, de responder de modo minimamente Trata-se de uma verificação que se torna urgente, se é certo que, como adequado à radicalidade com que o problema era colocado. Essa radicalidade, dizíamos no início, a reflexão teórica sobre uma matéria como a das instituições vale dizer, era mais estrutural do que política, e estava intimamente conectada penitenciárias deve ter como objeto uma maior compreensão dos processos em com a própria razão de ser da resumo, era justo perguntar por curso no momento histórico atual. Trata-se de uma verificação que, esperamos, que e de acordo com que critérios políticos, racionais, econômicos (aqueles os autores deste livro possam, em breve, cumprir. Guido Neppi Modona Sobre a recente produção italiana sobre o cárcere, ver G. Mosconi, "Il carcere nella recente pubblicistica italiana", in La questione criminale, 1976, pp. 2-3. 19 18</p><p>que são usados ou que se espera sejam usados para qualquer outro problema espacialmente nosso objeto de maneira bastante precisa: a sua área temporal social), o indivíduo que comete um crime deve cumprir a pena no (ainda e espacial coincidia com a da formação de uma determinada estrutura social que esta pergunta, formulada várias vezes, faça surgir muitas interrogações incidia nela). Tratava-se de um aspecto particular da estrutura global. Este sobre os conceitos de "delito" e "pena"; mais adiante, veremos por que é mais aspecto particular, expresso em termos definidores, é o objeto que vem produtiva uma análise da "pena concreta", do cárcere). Assim, tornava-se essencial ilustrado neste texto. Mas para isso é necessário fazer previamente uma colocar como objeto precípuo da própria pesquisa a origem da instituição (afinal dupla advertência: sobre o que precedeu e o que sucedeu tal objeto. de contas, ela devia ter uma origem! Fazer por si só a pergunta já destruía a 2. Num sistema de produção pré-capitalista, o cárcere como pena não concepção sagrada de que o cárcere sempre existiu, objeto dado in rerum natura). existe. Essa afirmação é historicamente verificável, advertindo-se que a E isso não acontecia por um amor visceral ao historicismo (do qual, na nossa realidade feudal não ignora propriamente o cárcere como instituição, mas cultura, é difícil nos livrar), mas porque, na medida em que colocávamos o sim a pena do internamento como privação da liberdade. problema histórico da gênese, aparecia cada vez mais em primeiro plano o aspecto Pode-se dizer que a sociedade feudal conhecia o cárcere preventivo e o estrutural: a investigação histórica, retirando, camada por camada, as incrustações cárcere por dívidas, mas não se pode afirmar que a simples privação da que as diversas ideologias jurídica, penalística e filosófica haviam depositado liberdade, prolongada por um determinado período de tempo e não sobre a estrutura da instituição, revelava seu reticulado interno, sua Bau marxista. acompanhada por nenhum outro sofrimento, fosse conhecida e portanto Demo-nos conta, então, que nem de longe éramos os primeiros a trilhar prevista como pena autônoma e ordinária. este caminho. Estávamos seguindo, sobretudo, as pegadas de dois autores Esta tese, que tende a sublinhar a natureza essencialmente processual do da Escola de Frankfurt dos anos 1930: George Rusche e Otto cárcere medieval, é acolhida quase unanimemente pela ciência histórico-penal. No interior do nosso texto esclarecemos nossa posição com relação ao trabalho Mesmo aqueles que não aceitam esta interpretação, como são obrigados de Rusche e Kirchheimer e de Michel na nossa opinião os pontos a reconhecer que as primeiras hipóteses historicamente aceitáveis de pena mais altos da investigação teórica sobre a instituição carcerária. carcerária devem ser localizadas no final do século XIV, na Inglaterra, num A perspectiva desta maiêutica inicial foi, por conseguinte, colocar o momento em que o sistema socioeconômico feudal já dava mostras de problema da construção de uma teoria materialista (no sentido marxista) do profunda desagregação. fenômeno social chamado cárcere, ou melhor, de estender os critérios e as Sem querer enfrentar dada a natureza introdutória destas páginas o suposições de base da teoria marxista da sociedade à compreensão deste debate historiográfico em torno da natureza de algumas penas atípicas (cárcere pro-correctione, cárcere para prostitutas e sodomitas etc.), pode-se propor Chegamos assim a estabelecer uma conexão entre o surgimento do modo uma hipótese teórica capaz de justificar, ainda que apenas em termos gerais, de produção capitalista e a origem da instituição carcerária moderna. Este é o a ausência da pena carcerária na sociedade feudal. objeto dos dois ensaios que se seguem. Essa conexão definia temporal e Uma abordagem correta do tema aponta como momento nodal a definição do papel da categoria ético-jurídica do talião na concepção punitiva feudal. 2 G. Rusche & O. Kirchheimer, Punishment and social structure (1939), Nova Pode ser que, na origem, a natureza de equivalência, própria deste conceito, 1968. (N. do T.: edição brasileira Punição e estrutura social, Rio de não tenha sido mais do que a sublimação da vingança, e que tenha se baseado Janeiro, Freitas Bastos/ICC, 2004, ed., tradução e apresentação de Gislene acima de tudo num desejo de equilíbrio em favor de quem tivesse sido vítima Neder). do delito cometido. Michel Foucault, Surveiller et punir. Naissance de la prison. Paris, 1975 (N. do edição brasileira Vigiar e punir: nascimento da prisão. Vozes, delito, para citar a conhecida tese de Pasukanis, pode ser 2002, ed., tradução de Raquel Ramalhete). considerado como uma variação particular da troca, no qual a relação 4 Sobre a metodologia de aproximação ao problema, ver D. Melossi, "Crimonologia de troca, como a relação por contrato, se instaura post factum, isto e marxismo: alle origini della questione penale nella società de 'Il in La questione criminale, 1976, 2, p. 319. B.Pugh, Imprisonment in Medioeval England, Cambridge, 1970. 20 21</p><p>é, em seguimento a uma ação arbitrária de uma das partes (...) a concretamente ameaçados pelo ato ilícito cometido, mas sim para evitar pena, portanto, atua como equivalente que equilibra o dano sofrido possíveis porém não previsíveis e por isso socialmente fora de controle pela efeitos negativos que pudessem ter estimulado o crime cometido. Daí derivava A passagem da vingança privada à pena como retribuição, isto é, a a necessidade de reprimir o transgressor, porque só deste modo se poderia passagem de um fenômeno quase "biológico" a categoria jurídica impõe, evitar uma calamidade futura capaz de colocar em perigo a organização social. como pressuposto necessário, o domínio cultural do conceito de equivalente, É por causa desse temor de uma ameaça futura que o castigo deveria ser medido como troca de valores. espetacular, cruel, capaz de provocar nos espectadores uma inibição total de A pena medieval certamente conserva esta natureza de equivalente, mesmo imitá-lo. quando o conceito de retribuição não é mais diretamente conectado ao dano Se a justiça divina deveria ser o modelo com o qual se mediam as sanções, sofrido pela vítima do delito, mas sim com a ofensa a Deus. Por isso, a pena se o sofrimento era socialmente considerado como um meio eficaz de expiação adquire cada vez mais o sentido de expiatio, de castigo divino. e de catarse espiritual como ensinava a religião, não havia mais nenhum Essa natureza um tanto híbrida retributio e expiatio da sanção penal limite à execução da pena. De fato, esta se expressava na imposição de na época feudal não pode, por definição, encontrar no cárcere, ou seja, na sofrimentos tais que pudessem de algum modo antecipar e igualar os horrores privação de um quantum de liberdade, sua própria execução. da pena Nessa perspectiva, o cárcere como pena não se mostrava Com efeito, no que concerne à natureza de equivalente, como um meio idôneo para tal objetivo. Para que pudesse aflorar a idéia da possibilidade de expiar o delito Há, ademais, uma hipótese em certos aspectos, alternativa ao sistema com um quantum de liberdade abstratamente predeterminado, era punitivo feudal na qual está claramente presente uma experiência necessário que todas as formas da riqueza fossem reduzidas à forma penitenciária. Referimo-nos ao direito penal mais simples e abstrata do trabalho humano medido no A afirmação não é contraditória com o caráter teocrático do estado feudal. Por conseguinte, na presença de um sistema socioeconômico como o Com efeito, é certo que, embora não completamente, em certos setores feudal, no qual ainda não se historicizara completamente a idéia do "trabalho particulares e em alguns períodos determinados, o sistema penal canônico humano medido no tempo" (leia-se, trabalho assalariado), a pena-retribuição, conheceu formas originais e autônomas, que não eram encontradas em ne- como troca medida pelo valor, não estava em condições de encontrar na nhuma experiência de tipo laico. Estes momentos e estes setores específicos privação do tempo o equivalente do delito. equivalente do dano produzido são de difícil individualização por causa do estado de profunda compene- pelo delito se realizava, ao contrário, na privação daqueles bens socialmente tração do poder eclesiástico na organização política A importância considerados como valores: a vida, a integridade física, o dinheiro, a perda do pensamento jurídico canônico no sistema punitivo medieval variou de de status. intensidade em função do grau de concorrência exercitado pelo poder eclesiástico em relação ao poder laico. Pelo lado da natureza da (vingança, castigo divino), a pena só podia esgotar-se numa finalidade meramente satisfatória. A Igreja implementou as primeiras e embrionárias formas de sanção em Através da pena se operava, assim, a perda do medo coletivo do contágio, relação aos clérigos que, desta ou daquela maneira, haviam cometido alguma falta. Na verdade, é muito problemático chamar-se essas faltas de delitos. provocado originariamente pela violação do preceito. Nesse sentido, o juízo Tratava-se, provavelmente, de infrações religiosas que, porém, provocavam sobre o crime e o criminoso não se fazia tanto para defender os interesses um reflexo mais ou menos direto sobre as autoridades eclesiásticas, ou que despertavam um certo alarme social na comunidade religiosa. Essa natureza necessariamente híbrida, ao menos num primeiro momento, explica satis- E. B.Pasukanis, La teoria generale del diritto e il marxismo, Bari, 1975, pp. 177- 178 (N. do T.: edição brasileira A teoria geral do direito e o marxismo. Rio de fatoriamente porque essas ações desviantes condicionaram o poder eclesiás- Janeiro, Renovar, 1989). tico a ter uma reação de natureza ainda religiosa-sacramental. Compreende- se também por que esta reação se inspirava no rito da confissão e da penitência, 7 Ibidem, p. 189. 22 23</p><p>acompanhado, porém que é próprio da índole particular destes de um quantum de tempo necessário à purificação segundo os critérios comportamentos desviantes - de um elemento posterior, ou seja, a forma próprios do sacramento da penitência; portanto, não era tanto a privação da pública. Nascia assim a sanção de cumprir a penitência numa cela, até o liberdade em si que constituía a pena, mas sim a ocasião, a oportunidade momento em que o culpado se arrependesse (usque ad correctionem). para que, no isolamento da vida social, pudesse ser alcançado aquilo que era Essa natureza terapêutica da pena eclesiástica foi depois englobada e mesmo ideal da pena: o arrependimento. Essa finalidade devia ser entendida desnaturalizada pelo caráter vingativo da pena, já sentida socialmente como como correção, ou possibilidade de correção, diante de Deus, e não como satisfactio; esta nova finalidade, este tempo forçado usque ad correctionem, regeneração ética e social do condenado-pecador. Nesse sentido, a pena não acentuou necessariamente a natureza pública da pena. Esta sai então do foro podia ser mais do que retributiva, fundada por isso na gravidade do delito e interno para assumir as roupagens de instituição social e, por conseguinte, a não na periculosidade do réu. sua execução será tornada pública, se tornará algo exemplar, com o intuito A natureza essencialmente penitencial do cárcere canônico refletia-se de intimidar e prevenir. Todavia, alguma coisa da finalidade original, seja claramente na possibilidade de ser utilizado diretamente com fins políticos. A mesmo em termos de valor, sobreviveu. A penitência, quando se transformou sua existência, ao contrário, teve sempre um sentido religioso, compreensível em sanção penal propriamente dita, manteve em parte sua finalidade unicamente no interior de um rígido sistema de valores, teleologicamente correcional; esta se transformou, de fato, em reclusão num mosteiro por um orientado para a afirmação absoluta e intransigente da presença de Deus na tempo determinado. A separação absoluta do mundo externo, o contato mais vida social, portanto, uma finalidade essencialmente ideológica. estreito com o culto e a vida religiosa dava ao condenado a oportunidade, 3. A segunda advertência a ser feita é, ao contrário, para depois do texto. através da meditação, de expiar a própria culpa. Não é uma conclusão, mas antes a premissa para uma outra pesquisa, que regime penitenciário canônico conheceu formas diversas. Além de diz respeito à crise da instituição e não à sua origem. Ela tem a ver mais com diferenciar-se pelo fato de que a pena podia ser cumprida mediante a simples a desagregação da estrutura carcerária do que com a construção dessa reclusão no mosteiro, mas também pela reclusão na cela ou mesmo na prisão estrutura, que é o objeto do trabalho que se segue. episcopal, ele se caracterizou pela diversidade de modalidades de execução: à Este trabalho se desenvolve a partir do ponto de vista do capitalismo privação da liberdade se acrescentaram sofrimentos de ordem física, outras competitivo do final do século XIX e do início do século XX (e se detém vezes o isolamento celular (cella, carcer, ergastulum) e sobretudo a obrigação exatamente aí). No período que se estende das últimas décadas dos Oitocentos do silêncio. Os atributos aqui sublinhados, próprios da execução penitenciária até a primeira metade dos Novecentos, assistimos progressivamente, em canônica, têm origem no modo de organização da práxis conventual, toda a área capitalista, a profundas mudanças do quadro especialmente em suas formas de misticismo mais acentuado. influxo que de Essas mudanças dizem respeito a elementos fundamentais da nossa a organização religiosa de tipo conventual exerceu sobre arealidade carcerária situação atual: a composição do capital, a organização do trabalho, o foi de um tipo particular; a projeção no terreno público institucional do rito surgimento de um movimento operário organizado, a composição das classes, sacramental original da penitência encontrou sua real inspiração na alternativa o papel do Estado, a relação global Estado-sociedade civil. religioso-monacal de tipo oriental, de natureza contemplativa e ascética. A circulação e o consumo caem sob o domínio direto do capital: as decisões que deve ser sublinhado, o elemento fundamental para avaliação, é que o sobre os preços, a organização do mercado, mediante um consenso, tornam- regime penitenciário canônico ignorou completamente o trabalho carcerário se uma coisa única. Não apenas se potencializam os instrumentos tradicionais como forma possível de execução da pena. de controle social, aquelas "áreas da esfera de produção" fora da fábrica, A circunstância da ausência da experiência do trabalho carcerário na que existem desde os primórdios do capitalismo, como também criam-se execução penal canônica pode esclarecer o significado que a organização eclesiástica veio a atribuir à privação da liberdade por um período determinado de tempo. Parece-nos, de fato, que a pena do cárcere da forma como teve As observações que se seguem são mais amplamente desenvolvidas em D. lugar na experiência ao tempo de internamento o significado Melossi, "Istituzioni di controllo sociale e organizzazione capitalistica del lavoro: alcune ipotesi di ricerca", in La questione criminale, 1976, 2-3. 24 25</p><p>novos instrumentos. O novo critério que rege é o da capilaridade, da extensão e de réus (sobretudo nos momentos de crise política). Os períodos em que e da invasão do controle. Os indivíduos não são mais encarcerados, eles se tende a esvaziar os cárceres e a introduzir regimes mais benignos e de continuam lá onde normalmente estão reclusos: fora da fábrica, no território. readaptação social de forma cada vez mais compulsiva, aos A estrutura da propaganda e dos mass media, uma nova e mais eficiente rede períodos em que o puxar das rédeas e o regime duro tornam-se novamente policial e de assistência social são os portadores do controle social "necessários" (típico, deste ponto de vista, é a história da reforma carcerária neocapitalista. Deve-se controlar a cidade, a área urbana, este é o motivo de na Inglaterra, desde o final da Segunda Guerra Mundial até a década de fundo que faz nascer, nos anos 1920, a moderna sociologia dos "desvios" no melting pot americano. Tudo isso se torna particularmente evidente, porém, com a crise dos Se o modo de produção capitalista e a instituição carcerária (assim como anos 1960, com a crise atual. Desta vez, o problema carcerário explode não outras instituições subalternas) surgiram ao mesmo tempo numa relação por si só, mas sobretudo na Itália, concomitantemente com um nível altíssimo determinada que é objeto do presente trabalho, as modificações tão profundas de lutas operárias e, contemporaneamente com uma crise social profunda, que ocorreram ao nível estrutural não podem, por outro lado, deixar de ter que investe contra uma série de outras instituições (escola, hospitais provocado alterações igualmente radicais naquelas instituições e no conjunto quartéis e a própria estrutura familiar burguesa). Não podemos dos processos de controle social e de reprodução da força de trabalho. As nos deter neste ponto, o que exigiria uma discussão geral que vai muito além relações entre controle social primário e controle social secundário, assim do objeto específico que abordamos. Basta observar que dado que todo o como a própria gestão das diversas formas de controle, foram também sistema de controle se sobre relações de produção (historicamente abaladas. determinadas), e dado que é neste nível, nos anos 1960, que o equilíbrio se Rusche e Kirchheimer nos mostram como desde o final do século XIX rompeu nas fábricas será só a partir da tentativa de restabelecer o poder até por volta dos anos 1940 a população carcerária diminui sensivelmente na nas relações de produção que o capital jogará as cartas de um novo tipo de na França, na Alemanha. Na Itália acontece basicamente o controle social e se colocará em condições de enfrentar radicalmente, do seu mesmo desde 1880 até a década de 1970, com uma (ligeira) exceção no ponto de vista, a questão Assim, um elemento fundamental para a período fascista. A diminuição da população nas prisões é acompanhada pela pesquisa hoje e é a respeito deste ponto que importa concluir é exatamente adoção cada vez mais ampla (fora da Itália) de medidas penais de controle tentar individualizar, com base na nova composição da relação capital-trabalho em liberdade, como a probation, extensamente praticada nos Estados Unidos. que da crise (e naturalmente a primeira tarefa é justamente mostrar a É o surgimento de um profundo mal-estar, cujos sintomas já se percebiam crise), qual é o movimento do controle social. Será que nos encontramos no final do período da nossa O sistema carcerário oscila cada vez diante da tentativa de reconstruir uma nova correspondência entre produção mais entre a perspectiva da transformação em organismo efetivamente e controle, tão limpidamente representada, no capitalismo clássico, pelo produtivo, com base no modelo da fábrica externa o que significa, porém, modelo do Panopticum de Bentham? no regime moderno de produção, mover-se rumo a uma abolição do cárcere É somente a partir de uma efetiva clareza de análise que se tornará possível, enquanto tal e a de caracterizar-se como mero instrumento de terror, inútil para movimento operário, projetar uma linha própria de intervenção no para qualquer finalidade ressocializante. cárcere mas, sobretudo, e mais em geral, no problema do controle social Assim, durante todo o século XX, variando de acordo com as situações que não seja cegamente subalterna, mas que se enquadre no interior de um projeto social abrangente. político-econômicas particulares, as perspectivas de reforma assumem um andamento tipicamente "a fórceps", no sentido da progressiva diminuição (para cada réu e no conjunto da população) das penas carcerárias, por um lado, e, por outro, do aumento da repressão para certas categorias de delitos Ver R. Kinsey, "Risocializzazione e controllo nelle carceri inglesi", in La questione 9 Ver, mais adiante, p. 71. criminale, 1976, 2-3. 26 27</p><p>Primeira parte Dario Melossi A gênese da instituição carcerária moderna na Europa</p><p>I A criação da instituição carcerária moderna na Inglaterra e na Europa continental entre a segunda metade do século XVI e a primeira metade do século XIX</p><p>1. "Bridewells" e "workhouses" na Inglaterra elisabetana processo que cria a relação capitalista não pode (...) ser outro senão o processo de separação do trabalhador da propriedade das próprias condições de trabalho, processo que, por um lado, transforma em capital os meios sociais de subsistência e de produção, e que, por outro, transforma os produtores diretos em operários assalariados. Por conseguinte, a chamada acumulação primitiva outra coisa não é senão o processo histórico de separação do produtor dos meios de produção. Ela aparece como "primitiva" porque constitui a pré-história do capital e do modo de produção que lhe é correspondente. A estrutura econômica da sociedade capitalista é derivada da estrutura econômica da sociedade feudal. A dissolução desta libertou os elementos daquela Esta famosa passagem marxista, na qual se descreve o significado essencial da "chamada acumulação primitiva", representa a chave para ler os aconte- cimentos históricos que constituem o objeto desta investigação. O próprio processo de separação do produtor dos meios de produção encontra-se na base do duplo fenômeno da transformação dos meios de produção em capital, por um lado, e da transformação do produtor direto, ligado à terra, em operário livre, do outro. O processo se manifesta fenomenologicamente na dissolução econômica, política, social, ideológica e dos costumes do mundo feudal. Não interessa aqui o primeiro aspecto da questão: a criação do capital. Na realidade, o horizonte mais amplo da pesquisa é constituído pelo segundo: a formação do "O licenciamento das manumissões feudais, a dissolução dos mosteiros, os cercamentos das terras para a criação de ovelhas e as mudanças nos métodos de cultivo (...) cada um desses fatores Karl Marx, Il Capitale, Roma, 1970, I, 3, pp. 172-173 [N. do T.: edição brasileira 0 capital: critica da economia politica. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1970-71, 74. 6v.]. Vale a pena, porém, examinar todo o capítulo XXIV do Livro I. 2 Ver Maurice Dobb, Problemi di storia del capitalismo, Roma, 1972 [N. do T.: edição brasileira A evolução do capitalismo. Rio de Janeiro, LTC Editora, 1987, ed., tradução de Manuel do Rego Braga], em particular os capítulos centrais "O nascimento do capital industrial", "A acumulação capitalista e o mercantilismo" e, especialmente, "A formação do proletariado". 33</p><p>desempenhou o seu na grande expulsão das terras que se verificou na Inglaterra nos séculos XV e XVI. Porém, a ineficiência própria ao modo de requer muitos braços (...) E quando, andando de lá pra cá, eles produção feudal era, acima de tudo, a base, segundo a tese clássica de Dobb4, gastaram rapidamente tudo o que tinham, que outra coisa lhes resta da carga cada vez mais pesada de trabalho que incidia sobre as massas fazer senão roubar, e ser enforcados, entende-se, ou in mendigando por esses mundos de Deus? camponesas, as quais só podiam livrar-se dela através da vagabundagem pelos campos ou da fuga para as cidades. É a mesma rudeza que as relações Marx descreve com clareza a maneira pela qual, num primeiro momento, sociais assumem no modo de produção feudal - com o aprofundamento da o poder estatal reagiu a este fenômeno social de proporções inéditas: luta de classe nos campos, que encontra sua expressão primeira na fuga de Não era possível que os homens expulsos da terra pela dissolução uma situação doravante insustentável que determina o seu dos laços feudais e pela expropriação violenta e intermitente se tornas- Os campos, mas sobretudo as cidades, que já representavam, com sem fora da lei, fossem absorvidos pela manufatura no seu nascedouro desenvolvimento da atividade econômica e, em particular, do comércio, um com a mesma rapidez com a qual aquele proletariado era posto no pólo de atração notável, começaram a povoar-se com milhares de mundo. Por outro lado, tão pouco aqueles homens, lançados subita- trabalhadores expropriados, convertidos em mendigos, vagabundos, às vezes mente para fora da órbita habitual de suas vidas, podiam adaptar-se, bandidos, porém, em geral, numa multidão de desempregados. de maneira tão repentina, à disciplina da nova situação. Eles se transformaram, por isso, em massa, em mendigos, bandidos, Mais do que qualquer outro fenômeno, a impiedosa ferocidade de classe vagabundos, em parte por inclinação, mas na maior parte dos casos com a qual o capital, com a rapina, incrementa a si mesmo, penetrando nos premidos pelas Foi por isso que, no final do século campos, expulsando de lá as primeiras levas do futuro proletariado industrial XV e durante todo o século XVI, proliferou por toda a Europa Oci- das cidades, faz-se presente nas enclosures of commons (cercamentos das dental uma legislação sanguinária contra a vagabundagem. Os pais terras comunais), cuja sanção legislativa ocorrida no século XVIII Marx da atual classe operária foram punidos, num primeiro tempo, pela definirá como "decretos de expropriação do Já em 1516, Thomas transformação forçada em vagabundos e miseráveis. A legislação os Morus, em Utopia, descrevia lucidamente o fenômeno: tratou como voluntários e partiu do pressuposto que As ovelhas (...) costumavam ser mansas e comiam pouco, mas dependia da boa vontade deles continuar a trabalhar sob as velhas agora, segundo comentam, tornaram-se tão vorazes e indomáveis a condições não mais existentes ponto de comer até os homens (...) Com efeito, nos locais onde Na as páginas de Marx oferecem vários exemplos da legislação nasce uma mais fina e, por isso, mais apreciada, os nobres e os terrorista que, nos séculos XIV, XV e XVI, vai-se desenvolvendo contra os senhores (...) rodearam toda a terra com cercas para usá-la como da vagabundagem, da mendicância e - ainda que de forma se- pastagens, e não deixaram nada para o cultivo (...) E assim, de um cundária da criminalidade, em relação aos quais as estruturas tradicionais modo ou de outro, têm que abandonar a terra aqueles pobres medievais, baseadas na caridade privada e religiosa, são impotentes. Ademais, desgraçados, homens, mulheres, maridos, esposas, viúvas, a secularização dos bens eclesiásticos que se seguiu à Reforma, quer na pais de família ricos em filhos, mas não em bens, porque a agricultura Europa continental quer na Inglaterra, teve o duplo efeito de contribuir para 3 Maurice Dobb, op. cit., p. 263 (cf. Karl Marx, Il Capitale, cit., I, 3, pp. 174 ss.). a expulsão dos camponeses dos terrenos de propriedade da Igreja e para deixar sem sustento algum aqueles que viviam da caridade dos mosteiros e 4 A propósito dos termos do debate sobre a crise do modo de produção feudal, cf. a introdução de R. Zanghieri ao trabalho de Maurice Dobb, na tradução italiana, e das ordens religiosas. Por esse motivo, à medida que o processo de prole- tarização avançava, as medidas terroristas tinham cada vez menos a bibliografia aí citada. 5 Ver Maurice Dobb, op. cit., pp. 6 Karl Marx, Il Capitale, cit., I, 3, p. 183. Sobre os enclosures, ver G. E. Mingay, Thomas Morus, Utopia la migliore forma di Repubblica, Bari, 1971 N. do T.: Enclosure and the Small Farmer in the Age of the Industrial Revolution, Londres, edição brasileira A utopia. São Paulo, Abril Cultural, 1972], pp. 42-43. Marx, Il Capitale, cit., I, 3, pp. 1968, ampla bibliografia aí citada. Ver Thomas Morus, op. cit., p. 52. 34 35</p><p>por outro lado, o desenvolvimento econômico e em particular o da manufatura localidade, ao passo que aos "rogues and vagabonds" seria oferecido requeria cada vez mais força de trabalho dos campos. Todavia, visto que a esse último objetivo era destinado apenas o No início do século XVI, Thomas Morus indicava a única solução lógica, dinheiro que sobrava do relief para os a segunda finalidade acabou defendendo a necessidade de ocupar utilmente "esta turba de não sendo alcançada e os desempregados continuaram sendo objeto de Um estatuto de 1530 obriga o registro dos vagabundos, introduzindo uma primeira distinção entre aqueles que estavam incapacitados para o trabalho Quatro anos depois, no entanto, o problema foi enfrentado através da (impotent), a quem era autorizado mendigar, e os demais, que não podiam extensão a todo o país das casas de correção que deviam fornecer trabalho receber nenhum tipo de caridade, sob pena de serem açoitados até aos desempregados, ou obrigar a trabalhar quem se recusasse a O açoite, o desterro e a execução capital foram os principais instrumentos da Tratava-se de instituições que, calcadas no modelo da primitiva Bridewell, política social inglesa até a metade do século, quando os tempos se mostraram atendiam a uma população bastante filhos de pobres "com a maduros, evidentemente, para uma experiência que sé revelaria intenção de que a juventude se acostume a ser educada para o trabalho", Por solicitação de alguns expoentes do clero inglês, alarmados com as desempregados em busca de trabalho e aquelas categorias que, como já foi proporções alcançadas pela mendicância em Londres, o rei autorizou o uso visto, povoaram as primeiras bridewells, ou seja, petty offenders, vagabundos, do castelo de Bridewell para acolher os vagabundos, os ociosos, os ladrões prostitutas e pobres rebeldes que não queriam A e os autores de delitos de menor O objetivo da instituição, que diferenciação de tratamento, se havia alguma, era interna à instituição, através era dirigida com mão de ferro, era reformar os internos através do trabalho das diversas gradações da rudeza do trabalho. A recusa ao trabalho parece obrigatório e da disciplina. Além disso, ela deveria desencorajar outras pessoas ter sido o único ato ao qual se atribuía uma verdadeira intenção criminosa, a seguirem o caminho da vagabundagem e do ócio, e assegurar o próprio uma vez que na lei de 1601 considerada equivocadamente como o estatuto auto-sustento através do a sua principal meta. O trabalho que ali principal da Old Poor Law, quando de fato ela não fez mais do que completar se fazia era, em grande parte, no ramo têxtil, como o exigia a época. A a legislação anterior era facultado ao juiz enviar para a prisão comum experiência deve ter sido coroada de sucesso, pois, em pouco tempo, houses (common gaol) os ociosos capazes de of correction, chamadas indistintamente de bridewells, surgiram em diversas Convém, porém, esclarecer o real significado da "recusa ao trabalho" no partes da Inglaterra. século XVI. Uma série de estatutos promulgados entre os séculos XIV e Todavia, foi apenas com as diversas disposições da Poor Law da rainha XVI estabelecia uma taxa máxima de salário acima da qual não era lícito ir (o Elisabeth, em vigor de forma praticamente inalterada até 1834, que foi dada que implicava sanção penal); não era possível nenhuma contratação de trabalho, uma primeira orientação, unívoca e geral, ao problema. Com uma lei de muito menos coletiva; e até se chegou a determinar que o trabalhador aceitasse 1572, organizou-se um sistema geral de relief. (subsídio), que tinha de como um base a paróquia, pelo qual os habitantes desta, mediante o pagamento 14 imposto para os pobres, deviam manter "the impotent Poor" que vivam na Ver F. M. Eden, The State of the Poor, Londres, 1928, p. 16; G. Rusche e O. Kirchheimer, Punishment and Social Structure, Nova 1968, p. 41 [N. do T.: edição brasileira: Punição e estrutura social, Rio de Janeiro, Revan/ICC, 2004, 10 Ibidem, pp. 45 ed., tradução e apresentação de Gislene Neder]; F. Piven e R. A. Cloward, op. cit., 11 Ver F. Piven e R. A. Cloward, Regulating the Poor, Londres, 1972, p. 15. pp. 15-16; Max Grünhut, op. cit., p. 16; der Slice, op. cit., p. 55. 12 Ver A. Van der Slice, "Elisabethan Houses of Correction", in Journal of American Ver M. Eden, op. cit., p. 16. Institute of Criminal Law and Criminology, XXVII (1936-1937), p. 44; A. J. 16 Ver A. Van der Slide, op. cit., p.54. Copeland, "Bridwell Royal Hospital", in Past &Present, 1888; Max Grünhut, 17 Ver F.M. Eden, op. cit., p. 17; Webb, op. cit., p. 13: G. Rusche e O. Kirchheimer, Penal Reform, Oxford, 1948, p. 15; S & B. Webb, English Prisons under Local op. cit., p. 51; A. Van der Slice, op. cit., p. 55; Max Grünhut, op. cit., p. 16. Government, Londres, 1963, p. 12. 18 Ver F. M. Eden, op. cit., p. 17. 13 Ver Max Grünhut, op. cit., pp. 15-16, e A. Van der Slice, op. cit., p. 51. 19 Ibidem, p. 19. 36 37</p><p>a primeira oferta de trabalho que lhe Ou seja, o trabalhador era como o da manufatura, que lhe é absolutamente Como observam obrigado a aceitar qualquer trabalho, nas condições estabelecidas por quem F. F. Piven e R. A. Cloward: lhe fazia a oferta. trabalho forçado nas houses of correction ou workhouses Acostumados a trabalhar no ritmo solar e das estações, por mais que era direcionado, portanto, para dobrar a resistência da força de trabalho e esta disciplina possa ser severa, eles resistem à disciplina da fábrica fazê-la aceitar as condições que permitissem o máximo grau de extração de e da máquina, que, se não é mais dura, aparece como tal porque é mais-valia. estranha. O processo de adaptação humana a estas transformações É interessante considerar, a esse respeito, a hipótese avançada por G. Rusche econômicas compreendeu, em geral, longos períodos de desemprego e O. Kirchheimer, segundo a qual a introdução do trabalho forçado na segunda de massa, mal estar e desorganização metade do século XVI e sobretudo, como se verá, na primeira metade do século Voltarei mais adiante a esta problemática, que é fundamental para a XVII, na Europa continental, corresponde ao declínio que caracteriza compreensão da função que, historicamente, o trabalho forçado desempenhou a população européia após o século XVII, e que deve ter contribuído em muito nas instituições segregadoras, tais como as houses of correction do período para aumentar a "rigidez" da força de Se, como sustenta esta hipótese, elisabetano. Basta por ora observar como este tipo de instituição foi o primeiro no período entre o século XV e a primeira metade do XVI a repressão sanguinária exemplo, e muito significativo, de detenção laica sem a finalidade de custódia e sem do desemprego em massa corresponde a uma situação de que se pode observar na história do cárcere e que os traços que a caracterizam, grande oferta de trabalho no mercado, à medida em que nos aproximamos do no que diz respeito às classes a quem foi destinada, sua função social e a século XVII a oferta diminui e o capital nascente vai necessitar da intervenção organização interna já são, grosso modo, aquelas do clássico modelo car- do Estado para continuar a lhe garantir os lucros altíssimos que a chamada cerário do século XIX. "revolução dos preços" do século XVI lhe Se isso for verdade, 2. A Rasp-huis de e a manufatura é necessário considerar também que, como observava Marx no trecho citado, a oferta e a demanda de trabalho não caminham no mesmo ritmo, sobretudo É na Holanda da primeira metade do século que a nova instituição neste período "primitivo" do capitalismo, e é só mais lentamente que se da casa de trabalho atinge, no período das origens do capitalismo, a sua consegue prover uma massa de capitais suficiente para valorizar toda a força forma mais desenvolvida. A criação desta nova e original modalidade de de trabalho que havia sido liberada. segregação punitiva responde mais a uma exigência conexa ao desenvol- Por conseguinte, na segunda metade do século XVI, não obstante a oferta vimento geral da sociedade capitalista do que à genialidade individual de algum de trabalho continue a crescer, esse crescimento é insuficiente para atender, reformador como frequentemente uma história jurídica entendida como na medida das necessidades, a demanda que o rico e borrascoso período história das idéias ou "história do espírito" tenta convencer-nos. Isso fica elisabetano produz. Para que este novo proletariado não se aproveite da si- evidente no fato de que, ao que parece, nenhuma influência direta foi passada tuação, recorre-se, pois, ao trabalho forçado, que assume, desde o início, a das experiências inglesas anteriores (bridewells) para as holandesas do século função de regulação frente ao preço do trabalho no mercado livre. Não se A criação holandesa do Tuchthuis corresponde ao mais alto grau de deve esquecer igualmente, como lembra Marx, que este proletariado, de cons- desenvolvimento atingido pelo capitalismo neste período. tituição extremamente recente, reluta bastante a entrar num mundo do trabalho Na Holanda da transição do século XVI para o século XVII, dois fatores se somam para estimular o uso do trabalho forçado, que se tornará modelo 20 Ver F. Piven e R.A. Cloward, op. cit., p. 37. Sobre o mesmo tema, cf. também Karl Marx, Il Capitale, cit., I, 3, pp. 197-201, e Maurice Dobb, op. cit. Piven e R. A. Cloward, op. cit. 6. 21 Sobre o problema demográfico, ver o ensaio de A. A. Bellettini, "La popolazione Karl Marx define a Holanda como "a nação capitalista modelo do século XVII". italiana dall'inizio della era volgare ai giorni nostri. Valutazioni e tendenze", in Ver Il Capitale, cit., I, 3, p. 211. Storia d'Italia, vol. V, 1, Turim, 1973, p. 489. ensaio relaciona o comportamento 25 Ver T. Sellin, Pioneering in Penology, Filadélfia, 1944, p. 20; Max Grünhut, demográfico italiano ao da Europa em geral. op. cit., p. 17; R. von Hippel, "Beiträge zur Geschichte der Freiheitsstrafe". in 22 Cf. Maurice Dobb, op. cit., pp. 274 f. gesamteStrafrechtswissenschaft XVIII (1898), p. 648. 38 39</p><p>para toda a Europa reformada (protestante) da época. De um lado, a luta pela na plenitude do seu significado, que é o do controle da força de trabalho, da independência, guiada pela classe mercantil urbana e sancionada pela União educação e domesticação desta. de Utrecht de 1579, que fez com que as províncias setentrionais dos Países Como afirmava Marx num trecho já o aprendizado "da disciplina Baixos recolhessem a herança do já então secular desenvolvimento de Flandres, da nova situação" isto é, da transformação do ex-trabalhador agrícola agora empobrecido e estagnado pela repressão de Felipe (os anos que se expulso do campo em operário, com tudo aquilo que isso significa é uma seguiram foram a idade de ouro de Por outro lado, o impetuoso das finalidades fundamentais às quais, em suas origens, o capital teve que se desenvolvimento do tráfico mercantil veio a incrementar a demanda de trabalho propor. A instituição das casas de trabalho e de tantas outras organizações num mercado no qual não havia uma oferta tão grande como na Inglaterra, e similares responde, antes de tudo, a esta É evidente que esse num momento em que toda a Europa estava atravessando um grave declínio problema não está separado do problema do mercado de trabalho. Através Isso representava, para o nascente capital holandês, o perigo da institucionalização, nas casas de trabalho, de um setor, ainda que limitado, de encontrar-se diante de um alto custo do trabalho e de um proletariado que da força de trabalho, tem-se, contemporaneamente, um resultado duplo: com fosse capaz de, apesar das medidas repressivas, contratar a venda de sua relação ao trabalho livre, no sentido já enunciado, em direção ao trabalho própria força de trabalho. Esta é a situação econômica e social segundo a forçado, em geral o mais rebelde, no que tange ao aprendizado da disciplina, hipótese interpretativa de Rusche e que levou a jovem mas também porque a docilidade ou a oposição da nascente classe operária holandesa a mudar os próprios módulos punitivos, tentando desperdiçar a às condições de trabalho depende da força que tiver no mercado de trabalho. menor quota possível de força de trabalho e de controlá-la e regular a sua E evidente que, na medida em que a oferta de trabalho é escassa, aumenta utilização de acordo com as necessidades de valorização do capital. a capacidade de oposição e de resistência da classe, e sua possibilidade de É preciso esclarecer, naturalmente, que essa hipótese, baseada sobretudo luta para não se deixar abater. Isso, ainda que não expresse formas conscientes na relação entre mercado de trabalho e trabalho forçado (entendido como e organizadas de luta, tende, de qualquer modo, a colocar em perigo a ordem trabalho não-livre), não esgota toda a complexa temática da workhouse. Ela social no seu conjunto e a tornar-se uma ação objetivamente política, não é, de modo algum, como já se viu em relação à Inglaterra, o único exprimindo-se espontaneamente no delito, numa crescente agressividade, instrumento através do qual se busca manter baixos os salários e controlar a na força de trabalho, nem tampouco as casas de trabalho têm este como único Seguindo a trilha dos trabalhos de von Hippel e de Hallema, Thosten objetivo. No que diz respeito ao primeiro ponto, já vimos como na Inglaterra Sellin nos deu, em Pioneering in a mais rica e importante mas, nesse período, isso é válido num sentido mais geral as casas de reconstrução da função e da estrutura de uma casa de trabalho do século trabalho são acompanhadas de tetos salariais estabelecidos por lei, do XVII. O caráter intimamente burguês do movimento que começa a se ma- prolongamento das jornadas de trabalho, da proibição associação dos nifestar em torno da questão penal no período do Renascimento, e que tem trabalhadores e assim por Na realidade, a relativa exiguidade quantitativa que sempre caracterizou estas experiências induz a considerá-la 30 Ver nota 6. mais como uma amostra do nível geral alcançado pela luta de classes do que como um dos fatores que a impulsionam. A função da casa de trabalho é, Este aspecto é o mais destacado, particularmente por F. Piven e R. A. Cloward (op. cit., cap. I). sem dúvida, mais complexa do que simplesmente tabelar o salário livre. Ou, entendido Já citamos o trabalho de T. Sellin. Ver também R. von Hippel, op. cit., pp. 437 ao menos, pode-se dizer também que este último objetivo deve ser São numerosas também as contribuições do holandês A. Hallema sobre o tema. Citemos deste autor a obra In em om de Gevangenis, Van vroeger Dagen in 26 Ver T. Sellin, Pionnering in Penology, cit., pp. 1, 2. Nederland em Haia, 1936, pp. 174-176. As casas de trabalho 27 Cf. G. Rusche e O. Kirchheimer, op. cit., p. 42, e A. Bellettini, op. cit. holandesas são lembradas, em geral, em todas as pesquisas históricas sobre penologia. 28 Ver G. Rusche e O. Kirchheimer, op. cit., p. 42. Entre os autores italianos, ver C. Petitti di Roreto, "Della condizione attuale delle 29 Ver Karl Marx, Il Capitale, cit., I,. 3, pp. 192 SS e capítulo VIII: "A jornada de carceri e dei mezzi di migliorarla", in Opere scelte, Turim, 1969, p. 369; M. Beltrani- trabalho", ibidem, I, 1, p. 251. Scalia, Sul governo e sulla riforma delle careri in Italia, Turim, 1867, p. 393, 40 41</p><p>no humanismo inglês e sobretudo no holandês dos séculos XVI e XVII as trabalho ou casa de correção não substituiu completamente toda a gama de suas primeiras expressões, aparece claramente na tese principal de uma obra punições até então vigentes. Ela se situava numa posição intermediária entre de Coornhert sobre a vagabundagem. Este autor, escrevendo em 1567, a multa simples ou uma leve punição corporal e a deportação, o desterro e a pena de morte. O que importa é que a casa de trabalho estava destinada ao sustenta, de modo bastante próximo ao de Morus na Utopia, que se na Espanha os escravos valem de cem a duzentos florins, os homens livres "tipo criminológico" característico desse período, que nasce ao mesmo tempo holandeses, a maior parte dos quais conhecia um ofício, deviam valer mais que o capitalismo, e que tende a se desenvolver simultaneamente com ele. vivos do que mortos, e portanto o mais conveniente seria fazê-los trabalhar A instituição tinha base celular, porém em cada cela conviviam diversos quando cometessem um modo de pensar de Coornhert (e de outros detidos. trabalho era praticado na cela ou no grande pátio central, segundo reformadores que o seguiram) não ficou muito tempo sem ser colocado em a estação do ano. Tratava-se de uma aplicação do modelo produtivo então prática, uma vez que em julho de 1589 os magistrados da cidade de dominante: a manufatura. A casa de trabalho holandesa era conhecida por toda a parte pelo termo Rasp-huis, porque a atividade de trabalho fundamental decidiram instituir uma casa onde todos os vagabundos, malfeitores, e seus pares pu- que ali se desenvolvia consistia em raspar, com uma serra de várias lâminas, dessem estar presos como punição e pudessem estar ocupados no um certo tipo de madeira até transformá-la em pó, do qual os tintureiros trabalho pelo tempo que os magistrados julgassem convenientes, con- retiravam o pigmento usado para tingir os fios. Esse processo de pulverização siderado os seus delitos e da madeira podia ser feito, basicamente, de dois modos: com uma pedra de Após várias discussões, o novo estabelecimento foi inaugurado num antigo moinho, e este era o método comumente usado por quem empregava trabalho convento, em 1596. Com o trabalho dos internos, a instituição deveria reunir livre, ou, na maneira já descrita, na casa de trabalho. A duríssima madeira, importada da América do Sul, era colocada sobre um cavalete e dois traba- condições para assegurar seu próprio funcionamento, mas não haveria lucro lhadores internos a pulverizavam, manejando as duas extremidades de uma pessoal nem dos diretores, cuja nomeação seria honorífica, nem dos guardas, que receberiam um salário. Isso diferenciava a nova instituição, da mesma serra muito pesada. trabalho era considerado particularmente adequado maneira que havia ocorrido na Inglaterra, dos antigos cárceres de custódia, para os ociosos e os preguiçosos (os quais, como dessa ativi- dade, às vezes literalmente quebravam a espinha dorsal). Era esse também o nos quais a possibilidade de os guardas extorquirem continuamente dinheiro motivo com o qual se justificava a escolha do método de trabalho mais can- dos prisioneiros era uma das causas mais importantes para a terrível situação sativo. É interessante notar que aqueles que compravam o pó de madeira da dos county gaols na Idade Média tardia. A composição da população interna era bastante semelhante à encontrada na Inglaterra: jovens autores de infrações Rasp-huis reclamavam da sua má qualidade se comparada com o pó produzido no moinho. mendigos, vagabundos, ladrões, admitidos na casa de trabalho por meio de um mandado judicial ou administrativo. As sentenças eram em fato é que foi assegurado à casa de trabalho de o monopólio geral breves e por um período determinado, que podia ser modificado segundo deste tipo de trabalho, e em diversas ocasiões ocorreram embates legais o comportamento do detido. entre a municipalidade desta cidade e as de outras nas quais se tentava implantar Naturalmente, e isso valia também para a Inglaterra e para o desenvolvi- um sistema de trabalho mais moderno. Este sistema, ligado à concessão de mento posterior que terá em toda a Europa, durante muito tempo a casa de privilégios e monopólios, é típico da concepção mercantilista, de uma época em que a debilidade do capital nascente requeria uma intervenção ativa por parte do Estado para A mesma iniciativa pública com relação à 33 Ver T. Sellin, Pioneering in Penology, cit., pp. 23-24. Todas as informações que gestão do problema do pauperismo através da política da assistência e das se seguem sobre a Rasp-huis são retiradas da pesquisa de T. Sellin. casas de trabalho é parte integrante dessa visão particular das relações 34 Ibidem, p. 26. Mas o que interessa aqui é examinar a relação particular que se 35 No momento em que a casa foi inaugurada, calculava-se que a população de Amsterdã chegasse a 100.000 habitantes, dos quais 3.500 eram jovens delinquentes 36 Ver Maurice Dobb, op. cit., pp. 213 (ibidem, p. 41). 43 42</p><p>instaura entre a escolha da técnica produtiva e a função e o objetivo da casa capitalistas excluídos do privilégio. A escolha do processo produtivo mais de correção. Isso enquanto se manifesta, como se vê, desde o início, a rude e cansativo depende, portanto, da possibilidade de obter altos lucros problemática da relação, em termos econômicos, entre trabalho livre e trabalho sem grandes investimentos de capital numa situação na qual o clássico mo- forçado, problema que se mostrará cada vez mais evidente, à medida que, nopólio do mercantilismo protege da concorrência externa. Essa escolha com o desenvolvimento do capital, crescerá a sua parte fixa. tem, porém, uma outra função, que está escondida nas meias-verdades Durante o período que poderíamos chamar de "estudos preparatórios", enunciadas pelos ideólogos da época acerca do caráter punitivo do trabalho que antecedeu a abertura da instituição, o doutor Sebastian Egbertszoon, pesado e da "pouca inteligência" da força de trabalho que povoava a Rasp- cujas propostas foram as aceitas pela administração de havia cri- huis. A manufatura recrutava sua força de trabalho essencialmente em dois ticado alguns pontos do programa do utopista Spiegel, em relação particular- grupos sociais que tinham sido arruinados pelo desenvolvimento do mente à questão do trabalho. Para Egbertszoon, os prisioneiros só seriam capitalismo, dois tipos de pequenos produtores: os ex-artesãos e os ex-cam- eficientemente empregados se lhes fosse confiado um único ofício, porque poneses. Eram basicamente estes últimos menos acostumados a trabalhar muitos deles tinham uma inteligência limitada e aprender um ofício compor- numa situação que era muito mais parecida, obviamente, com a do artesão tava tempo e dinheiro. Além disso, a indústria praticada no estabelecimento do que com a do camponês que povoavam as casas de correção. Ademais, deveria garantir o mínimo de inversão de capital e o máximo de lucro. o a manufatura havia desenvolvido, como afirma Marx, pagamento, por sua vez, não deveria ser fixado da mesma maneira para uma classe de trabalhadores que a indústria artesanal excluía por todos, mas sim deixado a critério dos diretores, que deveriam regulá-lo de completo, os chamados operários não qualificados. É certo que a acordo com o "comportamento" dos É significativo que já na manufatura desenvolve até o virtuosismo, às expensas da capacidade forma da manufatura na qual, não existindo ou quase não existindo máquinas, conjunta de trabalho, a especialização tornada totalmente unilateral, o investimento de capitais limita-se, mais do que em qualquer outra coisa, ao mas começa também a fazer da ausência de todo e qualquer aprimora- consumo de matéria-prima o trabalho forçado se caracterize pela baixa mento uma especialização inversão de capital, pela produção escassa e de baixa qualidade, enquanto a Estes "operários não qualificados" são justamente aqueles que trabalham manutenção dos lucros é assegurada pela excepcional compressão dos sa- em aspectos da produção como os que estamos examinando aqui, aqueles lários. É o próprio caráter protegido deste tipo de indústria que lhe permite que constituem, em geral, as primeiras operações do processo produtivo. sobreviver no mercado livre. Os contrastes com quem tentava introduzir o Esses operários representam, porém, na produção manufatureira, uma minoria, trabalho no moinho são, nesse sentido, evidentes. Estes tendiam a responder ao passo que aqueles que conservam habilidade artesanal dispõem de uma à situação de escassez de força de trabalho, à qual em grande parte a casa de capacidade de resistência e de insubordinação no confronto com a produção trabalho devia a sua existência, com a introdução das máquinas nesse caso capitalista manufatureira que as máquinas ainda não podem Assim, uma das máquinas mais antigas, o isto é, com a intensificação do fica claro o motivo pelo qual, quando se trata de colocar o problema da processo de extração da gestão de um setor da força de trabalho que é necessário disciplinar e inserir A contenção da luta de classes através dos laços forçados da segregação compulsoriamente no mundo da manufatura, tende-se a escolher aquele pro- institucional manifesta-se assim, desde o início, como um freio para o próprio cesso produtivo que tornava o operário mais dócil e menos munido de um desenvolvimento do capital e opõe ao princípio do trabalho na casa de correção saber e de uma habilidade próprios que lhe fornecessem meios de resistência. não apenas por motivos óbvios os operários livres, mas também setores Em todo caso, portanto, quer se tratasse de força de trabalho proveniente do campo, quer de origem urbano-artesã, a monótona e pesadíssima prática 37 Ver T. Sellin, Pioneering in Penology, cit., pp. 29-30. 38 Ver Karl Marx, Il Capitale, cit., I, 2, p. 43. 40 Karl Marx, Il Capitale, cit., I, 2, p. 49. 39 Para uma discussão teórica deste ponto, ver Maurice Dobb, op. cit., pp. 316 41 Ibidem, pp. 68-69. e pp. 322 45 44</p><p>do rasping respondia melhor do qualquer outra ao que já então aparece como trabalho ou no cárcere. O regime interno da casa de trabalho tende, assim, a função fundamental da instituição correcional, ou seja, o aprendizado da da absoluta proeminência conferida ao trabalho, a acentuar o papel disciplina capitalista de produção. Como também observa as pro- dessa Weltanschauung burguesa que proletariado livre nunca aceitará posições que estavam contidas no programa elaborado originalmente por completamente. A importância que se confere à ordem e à limpeza, ao vestuário Spiegel no sentido de um adestramento e de uma preparação profissional a uniforme, à comida e ao ambiente saudáveis (o que certamente não diz respeito ser ministrada aos internos foram completamente rechaçadas. Sublinhava- àquilo que se relaciona ao processo de trabalho), a proibição de blasfemar e se, ao contrário, que o objetivo da instituição era preparar os seus hóspedes do uso do jargão popular e obsceno, de ler livros ou cartas ou de cantar para levar depois "uma vida de laboriosa objetivo a ser baladas que não fossem aqueles ordenadas pelos diretores (num país e num alcançado através do comportamento regrado e da submissão à autoridade. século em que as baladas são manifestação da luta pela liberdade de Esse comportamento devia manifestar-se sobretudo na atividade de trabalho; pensamento!), a proibição de jogar, de usar apelidos, tudo isso constituía não é por acaso que a infração mais grave ao regulamento da casa, a única uma tentativa de representar, concretamente, na casa de trabalho, o novo que merecia não uma sanção interna ou um simples prolongamento da pena, estilo de vida há pouco descoberto, para despedaçar uma cultura popular mas sim o envio do infrator de novo perante o tribunal, era negar-se a trabalhar subterrânea que lhe é radicalmente oposta, que é contemporaneamente uma pela terceira vez. encruzilhada das velhas formas de vida camponesa recém-abandonada com Isso estava ligado a uma visão ascética da vida, típica do calvinismo da as formas novas de resistência que o ataque incessante do capital impõe ao jovem república holandesa44, destinada, na função que desempenhava na socie- proletariado. dade em seu conjunto, a reforçar o dogma do trabalho e, portanto, a submissão Se não se compreende o estreito nexo que liga o operário primeiro na ideológica, dentro da manufatura, mas que na casa de correção tinha como manufatura e depois na fábrica ao conjunto das relações sociais externas, objetivo próprio, antes de mais nada, a aceitação da ideologia, da Weltan- se não se compreende o cuidado com o qual, numa época ainda embrionária schauung burguesa-calvinista, e só num segundo momento a exploração e a do seu desenvolvimento, o capital procura, a todos os níveis, construir seu extração da mais-valia. Parece, assim, que já desde estas primeiras experiências próprio proletariado e garantir para si as condições ótimas para a extração da ficam patentes a ineficiência e o atraso da forma em que se dá a exploração no mais-valia, não será possível perceber como uma série de elementos e fatos interior da casa de trabalho. Esse atraso que só pode subsistir enquanto a sociais, longe de serem insignificantes, revela ao contrário uma direção e um violência do Estado permitir um regime salarial extraordinariamente baixo se sentido que os ligam, neste período, ao processo da manufatura. Marx des- comparado com o que vigora do lado de significa uma disfuncionalidade creve bem o significado geral desta relação, quando define a situação do da casa de trabalho com respeito ao sistema em seu conjunto, porque na verdade operário manufatureiro: ela não é efetivamente um lugar de produção, mas sim onde se aprende (...) a manufatura revoluciona este modo de trabalhar de cima abaixo, a disciplina da produção. Nesse sentido, os baixos salários são muito úteis e o prende à raiz da força de trabalho individual. Mutila o trabalhador, porque tornam o processo de trabalho particularmente opressivo e preparam o converte-o numa aberração ao estimular sua habilidade parcializada, trabalhador para a obediência fora da instituição. como numa estufa, sufocando nele um sem número de impulsos e A particular dureza das condições de trabalho no interior da casa de de disposições produtivas, do mesmo modo que nos países do Prata correção tem, pois, um outro efeito sobre o lado de fora, aquele que os se sacrifica um animal inteiro para retirar-lhe o couro ou a gordura juristas chamarão de "prevenção geral", isto é, uma função intimidadora para Assegurar a supressão de um sem número de impulsos e de disposições com o operário livre, já que é preferível aceitar as condições impostas ao produtivas para valorizar apenas aquela parte infinitesimal do indivíduo que é trabalho e, de forma mais geral, à existência, do que acabar na casa de ao processo de trabalho capitalista é a função confiada pelos bons burgueses calvinistas do século XVII à casa de trabalho. Essa função será mais tarde 42 Pioneering in Penology, cit., p. 59. atribuída à instituição carcerária. O lugar onde o empobrecimento conjunto do 43 Ibidem, p. 63. 44 Sobre este ponto, ver infra o terceiro item desta parte. 45 Karl Marx, Il Capitale, cit., I, 2, pp. 60-61. 46 47</p><p>indivíduo tem lugar é a manufatura e a fábrica, mas a preparação, o adestramento, de "uma classe despossuída, sem terra, formada por vagabundos que é garantido por uma estreita rede de instituições subalternas à fábrica, cujas brigavam entre si, desesperadamente, por e de um já vasto estrato características modernas fundamentais estão sendo construídas exatamente neste de trabalhadores proletários excluídos das corporações, como, por exemplo, momento: a família mononuclear, a escola, o o hospital, mais tarde o os "Ciompi" quartel, o manicômio. Elas garantirão a produção, a educação e a reprodução No século XVI, na França, em Flandres, na Alemanha, a queda dos salários da força de trabalho de que o capital Frente a isso, se erguerá a reais, correspondente à chamada "revolução dos preços", foi acompanhada resistência, inicialmente espontânea, inconsciente, criminosa, e depois cada por uma grande abundância de força de A "repressão da vez mais organizada, consciente, política, que o proletariado saberá opor, vagabundagem" é acompanhada por uma repressão complementar, e igualmente na fábrica e no interior de todas as diversas instituições mencionadas. desumana, das massas ocupadas. A associação, a greve, abandono do posto Uma vez que a nova sociedade nasceu e que foram colocados os novos de trabalho eram punidos de forma extremamente severa; fazia-se largo uso da termos da luta de classe, capital e trabalho, da evolução desta relação dependerá pena da galera, multiplicavam-se as casas de correção. Em Paris, onde havia a evolução geral da sociedade. Algumas das últimas observações de Sellin sido criado um verdadeiro royaume des truands [reino de bandidos], os sobre a Rasp-huis holandesa parecem apontar nessa direção, quando se vagabundos chegavam a representar um terço do total da população. referem aos castigos coletivos impostos àqueles que se recusam a Diante dessa situação, uma das reações imediatas é a substituição do velho É interessante notar como desde os primeiros anos de vida da casa até a sistema de caridade privada e religiosa por uma assistência pública, coordenada segunda metade do século XVIII o número de lâminas da serra para pulverizar pelo Estado. Este é um dos êxitos socialmente mais relevantes do processo de a madeira progressivamente se reduz de 12 para 8, 6 e 5. Reduz-se, conco confisco dos bens eclesiásticos que acompanha a Reforma. O próprio Lutero, mitantemente, a quantidade de pó que deve ser produzida semanalmente por na sua Carta à nobreza cristã, faz-se intérprete e difusor das novas idéias sobre cada interno: de 300 para 200 libras. Naturalmente, isso devia estar ligado à a caridade, afirmando claramente que a mendicância deve ser abolida e cada obsolescência de um método produtivo que já era atrasado nos seus pri- paróquia deve prover aos seus próprios Ele mesmo elaborou um mórdios, e ao desenvolvimento mais geral que a instituição experimentou detalhado esquema de assistência que, mais tarde, foi estendido por Carlos V a nos séculos seguintes. Porém, a oposição que teve lugar no interior da Rasp- todo o Medidas para retirar a assistência aos pobres das mãos privadas huis, e à qual Sellin (que não está particularmente interessado em reconstruir não foram tomadas apenas nos países protestantes, mas também em países este aspecto do problema) também acena, desempenhou um papel nada des- católicos, como a França, onde o desenvolvimento de uma burguesia comercial prezível nesse processo. e do Estado nacional colocava o mesmo problema e a mesma solução. É típico 3. Gênese e desenvolvimento da instituição carcerária caso da cidade de Lyon, centro de comércio e de tráfico, que dobrou sua nos outros países da Europa Consideremos agora a situação mais geral. Antes do que na Inglaterra, 49 Ibidem. algumas formas de produção capitalista se desenvolveram em certas regiões 50 Ibidem, p. 193. Sobre os "Ciompi", ver V. Rutenberg, Popolo e moviomenti da Itália, Alemanha, Holanda e, embora mais tarde, da Não é o caso popolari nell'Italia del '300 e '400, Bolonha, 1971, pp. 157-329. de se examinar aqui mediante quais complexos acontecimentos históricos SI Ver Maurice Dobb, op. cit., pp. 273 SS e bibliografia aí citada. precoce desenvolvimento dessas regiões tornou-se. mais tarde, muito inferior 52 Mencionado por G. Rusche e O. Kirchheimer, op. cit., p. 36; F. Piven e R. A. ao inglês, ou, como no caso italiano, até mesmo involutivo. que importa é Cloward, op. cit., p. 9; Max Grünhut, op. cit., p. 14. apontar como, a esse primeiro desenvolvimento, corresponde o surgimento 53 In F. Piven e R. A. Cloward, op. cit., p. 9. 54 Ibidem, p. 11. Sobre o caso de Lyon, ver também: Gutton, La Société et les pauvres. L' exemple de la généralité de Lyon, 1534-1789, Paris, 1971; N. 46 Sobre esse assunto, ver mais adiante o item 4 desta parte. Davis, "Poor Relief, Humanism and Heresy: The case of Lyon", in Studies in 47 Ver T. Sellin, Pioneering in Penology, cit., p. 68. Medieval and Renaissance History, 1968, p. 217; R. Gascon, "Immigration et croissance 48 Ver Maurice Dobb, op. cit., p. 187ss. au XVIe siècle: l'exemple de Lyon (1529-1563)", in Annales, 1980, p. 48 49</p><p>população na primeira metade do século Após as contínuas agitações de economia urbana, o trabalhador "fora da lei" experimentou a situação pobres, artesãos e jornaleiros miseráveis terem posto em perigo a ordem social excepcional de ser "livre", "sem vínculos", como observa Marx. Tratava- da cidade nos anos de 1529, 1530 e 1531, decidiu-se criar uma política de se, é certo, de uma liberdade fictícia de morrer de fome e que, assistência orgânica e centralizada. Dois anos depois, o sistema foi estendido, temente, era resolvida pelas autoridades com drásticas medidas terroristas. por um decreto de Francisco I, a todas as paróquias da França. Concomitan- Todavia, vai-se desenvolvendo neste período uma relação social na qual era temente, criou-se a figura francesa da workhouse, o Hôpital, no qual, porém, colocada para o trabalhador uma série de alternativas, alternativas muitas vezes dramáticas, desesperadas, completamente inexistentes na estrutura continuava prevalecendo o princípio do internamento simples, em detrimento social anterior. do internamento com trabalho, típico nas instituições dos países Não é por acaso que este é o momento da vagabundagem, do banditismo, Por outro lado, só na segunda metade do século seguinte, com um notável atraso em relação à Inglaterra e aos países protestantes, e com os limites que se do roubo nos campos, das revoltas camponesas e, nas cidades, dos primórdios verão, o internamento foi generalizado na França. Isso deve ter dependido, de um confronto de classe. Embora a violência ainda exerça um papel deter- minante na gestão, por parte do poder das classes subal- seguramente, mais do que da influência religiosa, do desenvolvimento capitalista ternas, o mundo a ser construído deverá lançar mão, de forma cada vez mais mais avançado de outras regiões, como Flandres, os Países Baixos, o norte da Alemanha, onde as casas de trabalho e de correção se multiplicaram bem excepcional, desse recurso. Essa "liberdade" do trabalhador será expressa pelo direito do Iluminismo no conceito de Mesmo quando, como a crítica É verdade também que, seja movimento reformador, seja o novo modo de marxista deixará claro, esta aparente liberdade não seja outra senão a sanção de entender a pobreza, encontram nestas sociedades dinâmicas e em transformação uma força diferente, não mais jurídico-militar, não mais política, e sim a própria razão de ser e o seu próprio alimento. As religiões protestantes e em econômica, a diferença na organização de uma sociedade em que o aluguel particular o calvinismo forneceram sem dúvida, muito mais do que a religião da força de trabalho disponível deve passar através do instrumento impessoal católica, uma visão abrangente do mundo e da vida baseada na ética do trabalho, ainda que terrivelmente concreto do mercado, que permite o controle e a a religião do capital, que animará por si mesma as primeiras instituições subordinação pessoal e perpétua do explorado ao seu explorador é inegavelmente grande e comporta uma série de problemas completamente novos. Na passagem da sociedade camponesa medieval para a sociedade burguesa- Esta é a base estrutural sobre a qual repousa todo o movimento da dialética industrial, o trabalhador não está mais sujeito a um vínculo direto e imediato com o senhor, vínculo esse jurídica e militarmente garantido e justificado, ao entre o princípio de liberdade e o princípio de autoridade que se inicia com a sociedade burguesa e que encontra na Reforma seu momento primeiro e nível ideológico, por uma visão teocrática abrangente da vida. Ele deve ser fundamental. A autoridade no sistema medieval constitui o tecido conectivo das conduzido, doravante, por uma força muito mais indireta, a da coação econômica. relações sociais de uma comunidade camponesa indiferenciada que encontra, Porém, só quando o capitalismo alcançar seu completo desenvolvimento, na co-penetração hierárquica existente entre as ordens religiosa, política e com a garantia da sua hegemonia material e ideológica sobre toda a sociedade, econômica, a sua própria estrutura, coesa e abrangente. Com a problemática e é que a força da necessidade se tornará uma forma realmente eficiente de dialética libertação das massas camponesas e sua transformação em proletariado, regulação social. No longo período de transição que agora examinamos, no tal ordenamento hierárquico desaparece e princípio de autoridade, que se decorrer do qual subsiste uma co-penetração de economia camponesa e torna a base mesma do processo de produção capitalista dentro da se reduz e se refugia em algumas zonas da vida social externa. É na medida em 55 Sobre esse tema específico, ver G. Rusche e O. Kirchheimer, op. cit., 33-52. que o princípio de autoridade progride e dirige a organização da exploração Sobre a questão em termos mais gerais, ver J. B. Kraus, Scholastik, Puritanismus na fábrica que, lado de fora, avança a luta pelo liberalismo e pela democracia und Kapitalismus, Munique, 1931; P. C. Gordon Walker, "Capitalism and the (pelo menos enquanto valerem os cânones do capitalismo "clássico" do século reformation", in Economic History Review, VIII (1937), p. 18, e naturalmente Max XIX). Isso representa o começo de uma profunda contradição entre o mundo Weber, L'etica protestante e lo spirito del capitalismo, Florença, 1965 (N. do T.: da fábrica e o mundo exterior, contradição que não por acaso se tornará um edição brasileira: A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo, dos principais terrenos de luta do proletariado organizado. Martin Claret, 2003, tradução de Pietro Nassetti). 51 50</p><p>Além disso, a autoridade na fábrica é uma autoridade muda e impessoal, lados de tudo, separados entre eles, que lhes fosse retirada a espada, e que que perdeu aquele rico caráter ideológico que mundo religioso medieval fossem jogados no A luta pela liberdade de consciência e de religião, possuía. Por isso, ela deve ser necessariamente acompanhada por um controle a leitura "pessoal" dos textos sagrados, a relação direta entre o homem e a externo da força de trabalho, qual começa a ser aplicado exatamente neste divindade, o desprezo das obras e do mundo diante da fé são transformações período e que se desenvolve em diversos níveis. Trata-se de constituir, no profundas do indivíduo que tendem a interiorizar a autoridade e a violência, a trabalhador, uma tendência natural e espontânea a se submeter à disciplina substituir, ao menos na maior parte dos casos, as correntes bem visíveis do da fábrica, reservando o uso da força apenas para uma minoria de servo da gleba pelas correntes psicológicas do homem pio. Tal controle, e aqui se revela a importância da reforma religiosa e a sua Contemporânea e funcionalmente a esse processo, confere-se uma enor- conexão com as primeiras formas de internamento, move-se de acordo me importância aos instrumentos "educativos". In primis à família. É notável com duas linhas diretrizes: a interioridade do indivíduo (e da família) e a como neste período, e sob o efeito das doutrinas protestantes, a forma da instituição Marx, num escrito de juventude, expressou muito clássica família patriarcal burguesa assume um vigor novo e singular. É bem tudo isso em poucas linhas: neste momento que o pai se torna uma figura social e de controle de grande Lutero, na verdade, venceu a servidão pela devoção, porque a autoridade, a quem os poderes públicos delegam a regulação da educação substituiu pela servidão à convicção. Ele despedaçou a fé na autorida- dos filhos e do controle da de, restaurando a autoridade da fé. Ele libertou o homem da religiosi- Não acaso nesse período a socialização dos jovens foi um dos primeiros dade exterior, fazendo da religiosidade a interioridade do homem. objetivos das casas de trabalho e das demais instituições examinadas. O caso Ele desvinculou o corpo das correntes, acorrentando o coração (...) que deu origem à famosa Rasp-huis de Amsterdã foi exatamente o de um jovem Não se trata mais da luta do laico contra o padre, ou seja, qualquer e foi a preocupação com a juvenil a causa última que levou à coisa de externo, mas sim contra o seu próprio padre interior, contra construção da referida instituição. Casas de correção para jovens, precisamente a sua natureza "correcionais", surgiram por toda a parte simultaneamente com as casas para À fragmentação da coletividade camponesa e ao isolamento de cada pobres. Muitas vezes havia nas casas de trabalho comuns seções para jovens, operário em relação a cada capitalista corresponde agora a luta contra a mesmo de boas famílias, que eram mandados para lá por vontade Igreja Católica e as suas formas comunitárias "externas" e privadas de fé E isso era assim, obviamente, porque se tinha perfeita consciência do fato interior, a substituição desta relação pela solidão dos homens entre si e diante de que a nova ordem de idéias, esta "espiritualidade" nova de ordem e de de Deus. Quando Lutero narra a atividade divina, ele está falando na realidade repressão, experiência sem paralelo nos séculos anteriores (ao menos ao do capital: "De fato, Deus dispôs que os inferiores, os súditos, fossem iso- nível das massas), devia ser ensinada e inculcada desde a infância, mais particularmente na infância. Para Lutero e para Calvino, "Deus, pai e senhor" 56 Ver mais adiante, item 4. A influência do metodismo na Grä-Bretanha, durante a Revolução Industrial, se desenvolverá nesse mesmo sentido. Para esse assunto, Martin Lutero, Scritti politici. Turim, 1949, p. 566. ver E.P.Thompson, The Making of the English Working Class, Penguin Books. pp. 385 SS (N. do T.: edição brasileira: A formação da classe operária inglesa. Rio 59 Esta posição é expressa por Herbert Marcuse no seu ensaio L'autorità e la de Janeiro, Paz e Terra, 1987, tradução de Denise Bottmann). Não é por acaso que famiglia (Turim, 1970, pp. 46 ss.) (primeira tradução italiana da parte redigida por Karl Marx se referirá ao "sistema metodista do cárcere celular" em La sacra famiglia Marcuse da pesquisa publicada em 1936 pelo Instituto de Ciências Sociais de (Roma, 1969, p. 42) (N. do T.: edição brasileira A sagrada família. São Paulo, Frankfurt sobre autoridade e família; a obra completa encontra-se traduzida em Boitempo, tradução de Marcelo Backes), ainda que esse sistema, originalmente, Studi sull'autorità e la famiglia, Turim, 1974). Basta apenas lembrar o fato de que seja, como se verá, mais quaker do que metodista. Sobre esse assunto, ver Dario é esta a estrutura familiar que estará na base da teoria freudiana, de uma teoria que Melossi, "Criminologia e marxismo: alle origini della questione penale nella società surge eminentemente como consciência burguesa da crise, neste século, desta forma determinada de Ver, mais adiante, nota 134. de 'Il in La questione criminale, 1975, 2, p. 319. 60 Sobre este assunto, ver adiante, parte II, item 2. Marx, "Critica della filosofia del diritto de Hegel. Introduzione", in Scritti Ver Herbert Marcuse, op. cit., pp. 46 politici giovanili, Turim, 1950, p. 404. 52 53</p><p>era a tríade Porém, ao lado da família, outras instituições vão se a eticidade e todos podem se tornar sacerdotes da nova Assim, formando. A primeira de todas, nessa época, foram as casas de trabalho e de aquilo que era experiência própria apenas à organização eclesiástica torna-se correção, que apresentavam a ambivalência de serem lugares de produção experiência comum a todos. O isolamento, que é antes de tudo isolamento da propriamente ditos, de um lado, e instrumentos educativos de tipo "paterno", velha comunidade camponesa, da propriedade dos próprios instrumentos de do outro. Veremos como, pouco a pouco, o segundo aspecto prevaleceu. A produção, já é em Lutero um dos valores máximos da nova sociedade. ambiguidade, contudo, permaneceu. Se o cárcere é o modelo da sociedade, e aqui se trata ainda de uma metáfora, A Reforma também mudou completamente o modo de entender a pobreza, poucos anos depois será a concepção protestante e sobretudo calvinista da que deixou de possuir a "positividade mística" do cristianismo medieval para sociedade a modelar a forma do futuro cárcere moderno na casa de trabalho. tornar-se o indicador da maldição divina. Com a Reforma, "pobreza significa Dois séculos mais tarde, numa época e numa região plena de promessas para o punição", observa e é compreensível que seja excluído e punido desenvolvimento do capitalismo e do seu espírito as ex-colônias inglesas da pelos homens quem é excluído da predileção divina e punido por sua América do Norte nos primeiros anos do século XIX, os colonos quakers da Isso é tão mais verdadeiro se ele, o pobre, não pode ou não quer participar Pensilvânia traduzirão rigorosamente as palavras de Lutero no seu cárcere celular, das obras terrenas destinadas a uma maior glorificação de Obras que a forma finalmente descoberta da punição burguesa. Porém, já desde o início, o não têm nenhum valor em si mesmas. A total desvalorização do mundo da segredo da workhouse ou da rasp-huis reside na interpretação, em termos expressa a irracionalidade de uma sociedade no qual a produção tem da concepção burguesa da vida e da sociedade, na preparação dos homens em como fim a acumulação e não o uso e o consumo dos bens particular, os pobres, os proletários a aceitar uma disciplina que os transforme Mas exatamente por isso, pela absoluta indiferença da atividade terrena com em dóceis instrumentos da exploração. Os pobres, os jovens, as mulheres respeito ao único fim que tenha um valor, a obtenção do estado de graça, a prostitutas enchem, no século XVII, as casas de correção. São eles as categorias comunhão com Deus, o homem é livre para atuar e viver no mundo com o sociais que devem ser educadas ou reeducadas na laboriosa vida burguesa, nos objetivo de aumentar a glória de Deus e com ele o signo de sua eterna saúde. bons costumes. Eles não devem aprender, mas sim ser convencidos. Desde o Não há nenhuma justificativa racional para se respeitar a ordem e o trabalho: início, é indispensável ao sistema capitalista substituir a velha ideologia religiosa a ideologia protestante tem a visão pessimista de um mundo submerso no por novos valores, por novos instrumentos de submissão. A espada não pode pecado, absurda epifania divina na qual os homens cantam louvores a Deus ser usada contra as multidões e o temor de que uma nova solidariedade, uma trabalhando, acumulando e alguns poupando. nova comunhão surja para romper com o isolamento das classes subalternas é Lutero representa a situação humana como um cárcere, o qual ele concebe já, desde o início, uma realidade concreta. a partir do que tem diante de si, ou seja, provavelmente um cárcere canônico, Depois de ter proclamado a vontade divina do isolamento humano, Lutero já que ele fora monge e fala de isolamento. Ademais, uma yez suprimidos os acrescenta: "Porém, quando se sublevam, quando se unem aos outros, quando sacerdotes, Lutero chega à "natureza sacerdotal" de todos. A religião substitui se enfurecem e sacam a espada, aos olhos de Deus eles são merecedores de condenação e de Aqui, Lutero não apenas define a prática penal 62 Michel Foucault, Storia della follia, Milão, 1963 (N. do T.: edição brasileira real do seu tempo (se o "cárcere" é para todos, é justo que o pobre, exatamente História da loucura. São Paulo: Perspectiva, 1987). pelo fato de ser pobre, acabe no cárcere; e se se rebela, que o enforquem, o 63 Cf. Max Weber, op. cit., pp. 259 e Herbert Marcuse, op. cit., pp. 27-31. que efetivamente acontecia), como também toma posição contra aquele 64 Como Karl Marx vai esclarecer esplendidamente, esta desvalorização do significado movimento que as suas próprias palavras ajudaram a fazer nascer a revolta das obras enquanto tais em relação ao seu valor para a divindade, como signo, dos camponeses. Revolta que aparece, nas palavras do seu líder Thomas corresponde perfeitamente à situação das obras numa sociedade na qual elas não como a rebelião dos expropriados contra o processo multiforme são mais produzidas imediatamente para o consumo (como na sociedade camponesa), mas sim para mercado, para a troca (aí reside a diferença entre valor de uso e valor de troca): a obra não vale por aquilo que ela é, mas por aquilo que pode representar 65 "An ideal house of terror", ver adiante item 4, nota 105. (para a religião do capital, não há grande diferença entre acumulação e graça). 66 Martin Lutero, op. cit., p. 566 (o itálico é meu). 54 55</p><p>acima descrito e que foi definido por Marx como "acumulação pancada e do trabalho, pode ter ainda alguma possibilidade de sucesso (vai Com a revolta coletiva, a rebelião assume um significado político, que vai depender da demanda existente de força de trabalho num determinado bem além da resposta imediata do furto ou mesmo do banditismo, e é muito momento), porém, se a rebelião se dirige ainda que sob formas mistificadas, mais perigoso. A consciência, nas palavras de Müntzer, é não claras contra as próprias relações sociais, contra a autoridade, é Referindo-se a Lutero, ele afirma: evidente que não há nada a fazer. Quem se revoltou contra a própria disciplina, (...) no livro do comércio diz-se continuamente que os príncipes e não contra alguma aplicação particular dela, não é passível de correção: merece a morte. devem poder andar tranquilamente entre os ladrões e os bandidos. Mas não se diz qual é a origem de todos os furtos e da rapina (...) Os o exemplo da casa de trabalho de foi seguido em muitas outras piores usurários, ladrões e bandidos são os nossos príncipes, que se cidades européias, especialmente de língua Também aqui a expansão apoderam de tudo o que existe. Os peixes da água, os do da experiência advém, não por acaso, daquelas regiões onde já havia um ar, tudo deve ser deles (Isaías V). E depois têm a coragem de ensinar grande desenvolvimento de tipo mercantil-capitalista, ou seja, nas cidades da aos pobres o mandamento de Deus não roubar -, enquanto eles Liga Hanseática (as Zuchthäuse), em Lubeck e Bremen (1613), Hamburgo mesmos não obedecem a este mandamento. Devastam tudo, despoiam (1622), Dantzig (1630). Uma outra região na qual a casa de trabalho se e sangram o pobre camponês, o artesão e todos os seres vivos difundiu bastante poucos anos após a experiência holandesa foi a Suíça, em Esta rebelião é para Lutero a coisa mais grave. Citando Lutero, Marcuse Berna (1614), na Basiléia (1616) e em Freiburg (1617). Diferentemente da relação entre as casas de correção inglesas e a de entre as quais afirma: pode-se apenas avançar uma influência indireta, a rasp-huis holandesa foi bandido e o assassino não ofendem ao chefe, que pode puni-los e, visitada muitas vezes por enviados das diversas cidades onde seriam portanto, abre a possibilidade do castigo, mas a sedição "ataca o implantadas instituições Também deste ponto de vista é inegável próprio castigo" e, por conseguinte, ataca não apenas uma certa que o mesmo tecido conectivo econômico e religioso, em especial calvinista, parte da ordem vigente, mas sim esta ordem em si mesma, que se que ligava estas diversas regiões, exerceu um peso notável no favorecimento baseia essencialmente na possibilidade do seu poder punitivo, no da expansão da experiência. reconhecimento da sua Todas essas instituições apresentavam características semelhantes. Ao longo de todo o período das monarquias absolutas, aumentaram Hospedavam em geral mendigos, ociosos e vagabundos, prostitutas, ladrões, continuamente os crimina lesae maiestatis, que comportavam, geralmente, petty offenders, jovens criminosos ou que deviam corrigir-se, loucos. Também a pena capital; para estes, não havia nenhuma possibilidade de "correção" aqui o trabalho consistia, principalmente para os homens, em raspar a madeira Enquanto a rebelião se expressa numa simples inadaptação, mesmo que para a tintura; para as mulheres, em geral prostitutas ou vagabundas, em grave, às relações sociais dominantes, a domesticação, alcançada na base da tecer. A razão imediata do sucesso da instituição foi sobretudo a sua capa- cidade de assegurar lucros que, para a casa de por exemplo, protegida pelo monopólio, eram descritos como excepcionais. Em geral, a 67 Em Herbert Marcuse, op. cit., p. 35 (3). É como os estratos sociais finalidade da instituição era dupla: por um lado, havia uma tentativa puramente indicados por como vítimas dos príncipes predadores sejam "o pobre disciplinar e é este, como já foi sublinhado, o elemento que dará continuidade camponês, o artesão", isto é, exatamente aqueles que primeiro sofreram de forma à instituição; por outro lado, a escassez de mão-de-obra na primeira metade mais dura o peso da expropriação, e depois o da transformação em proletariado. do século XVII levava a enfatizar a necessidade de fornecer aos internos Sobre a revolta dos camponeses na Alemanha, ver o clássico de Friedrich Engels, La guerra dei contadini in Germania, Roma, 1949 (N. do T.: edição brasileira: As guerras camponesas na Alemanha. São Paulo: Grijalbo, 1977). 69 Cf. Rusche e O. Kirchheimer, op. cit., p. 42, em particular nota 84; Max Grünhut, 68 Herbert Marcuse, op. cit., p. 36. Este autor faz referência a Lutero, op. cit., pp. op. cit., pp. 18 Ver sobretudo a cuidadosa reconstrução das experiências 522-524. Esta concepção estará presente, em essência, na base da teoria penal hanseáticas em von Hippel, op. cit., pp. 429 SS. 70 Ver R. von Hippel, op. cit., p. 648. hegeliana. 57 56</p><p>uma preparação profissional (motivo pelo qual as municipalidades que dirigiam língua alemã. O hospital de Paris, resultado da reunião de diversas instituições as casas muitas vezes tiveram de entrar em choque com as corporações já existentes, apresenta uma característica muito mais pronunciada de assistência à pobreza, que na capital francesa atingia números impressio- Cada vez mais, no curso do desenvolvimento da instituição, foram nela nantes, do que o aspecto corretivo e produtivo, presente nas workhouses e internados condenados por delitos mais graves e a penas mais longas; assim, nas Zuchthaus. Viúvas e órfãos são abrigados em grande número nos hospitais. progressivamente os outros tipos de punição foram sendo substituídos, em A população é vasta e Muito embora aqui também se insista grande parte, pelo cárcere. Por muito tempo, entretanto, não foi feita nenhuma fortemente na importância do trabalho, dez anos após a sua inauguração o classificação rígida ou separação das diversas categorias humanas e jurídicas hospital de Paris já apresenta pesados prejuízos dos internados. Como observam Rusche e Kirchheimer, pode-se supor uma Rusche e Kirchheimer insistem na tese de que a diferença religiosa não certa distinção entre as Zuchthaus, entendidas como o cárcere propriamente tinha nenhuma relevância prática na difusão da instituição. No entanto, os dito, e as Arbeithaus, destinadas aos vagabundos, aos pobres e aos prisioneiros dados apresentados por esses mesmos autores revelam como a situação para ali levados por razões policiais, mas seriam diferenças formais que nunca econômica na qual se inseria a experiência francesa era diferente da holandesa encontraram respaldo na ou da Liga Hanseática. E é sobre a base desta que tanto a casa de trabalho Os séculos XVII e XVIII foram criando, pouco a pouco, a instituição como, em especial, a nova visão de vida própria do capitalismo espera afirmar- que primeiro o Iluminismo e depois os reformadores do século XIX se. Para os outros países católicos, isso será ainda mais A despeito completariam, dando-lhe a forma final do cárcere. Assim, "a forma originária de a instituição dos hospitais ter sido sobretudo uma iniciativa régia, é como do cárcere moderno era solidamente ligada (...) às casas de correção resultado da enérgica ação dos padres Chauraud, Dunod e Guevarre No início, a experiência das casas de trabalho foi patrimônio que os hospitais foram levados para toda a protestante, e, acima de tudo, calvinista. É significativo que um livrinho Em um opúsculo escrito em 1693, Guevarre justifica, de modo claro e holandês de 1612, em polêmica com as posições católicas, ridicularize a ingênuo, a oportunidade do internamento para todos os pobres, fossem eles crença nos milagres dos santos, confrontando-os com aqueles praticados "bons" ou "maus", segundo a teoria então vigente em todas as casas de por São Raspador, Santa Pena e São Trabalho, os três santos que efetivamente, trabalho, protestantes e católicas: os pobres bons agradecerão ao internamento na casa de correção de conseguem o milagre, de acordo com o que os assiste e lhes oferece a possibilidade de trabalho; os pobres maus polemista protestante, de corrigir vagabundos e serão justamente privados da liberdade e punidos com o trabalho. Guevarre Todavia, a experiência do internamento logo se generaliza mesmo nos resolve assim, salomonicamente, a contradição que então não era sentida países católicos, sobretudo na França. Viu-se como foi criado um hôpital já como tal entre casa de trabalho para pobres e casa de correção para vaga- na primeira metade do século XVI, em Lyon, mas esse caso permaneceu um bundos e criminosos, instituições que, na prática, eram a mesma coisa, uma vez tanto isolado. É somente em 1656 que se funda em Paris o Hôpital général, que o real delito era, no fundo, a pobreza, e a finalidade da instituição era o instituição que será estendida para todo o reino através de um édito de Mas não é apenas o atraso com qual a instituição é criada que marca uma certa diferença entre a situação francesa e as áreas mais desenvolvidas de 76 Ver G. Rusche e O. Kirchheimer, op. cit., p. 43; Michel Foucault, Storia della follia, cit., pp. 126 SS. 77 Ver G. Rusche e O. Kirchheimer, op. cit., p. 48. 71 Ver G. Rusche e O. Kirchheimer, op. cit., p. 44. 78 Ver item 5 e parte II desta pesquisa sobre a G. Rusche e O. Kirchheimer 72 Ibidem, p. 63. concluem que o "fato de ambas as doutrinas religiosas, a velha e a nova, 73 Ibidem, p. 65. colaborarem para o desenvolvimento da nova instituição leva a pensar que as 74 Ibidem, p. 51, inclusive nota 139. Em von Hippel, op. cit., é reproduzido um posições puramente ideológicas representaram motivações secundárias em relação trecho da versão alemã do libelo. às econômicas como forças causadoras de toda esta mudança" (op. cit., p. 52). 75 Ver Michel Michel Foucault, Storia della follia, cit., p. 82. 79 Ibidem, p. 43; Michel Foucault, Storia della follia, cit., p. 85 e pp. 95 SS 58 59</p><p>aprendizado de uma disciplina, visto como punição. Como observa Foucault: À medida que a produção capitalista avança, desenvolve-se uma classe O internamento é assim justificado duplamente, num equívoco indisso- operária que por educação, tradição e hábito reconhece como naturais ciável, a título de benefício e a título de punição. É ao mesmo tempo e óbvias as exigências daquele modo de produção. A organização do recompensa e castigo, dependendo do valor moral daqueles a quem se processo de produção capitalista desenvolvido quebra toda e qualquer impõe. Até o final da época clássica, o uso do internamento será pri- resistência; a constante produção de uma superpopulação relativa sioneiro deste equívoco; terá a estranha reversibilidade que a faz mudar mantém a lei da oferta e da procura de trabalho, e portanto o salário de significado de acordo com mérito daquele ao qual se aplica dentro de trilhos que convêm às necessidades de valorização do capital; a coerção silenciosa das relações econômicas coloca o selo Neste período, na passagem do século XVII para o século XVIII, uma da dominação do capitalista sobre o operário. Continua-se a usar, é grande sensibilidade invade o mundo católico no que concerne aos problemas do objeto concreto da pena. Num texto do final dos Seiscentos, publicado bem verdade, a força extra-econômica, imediata, mas apenas excepcionalmente. Para o curso usual das coisas, é possível confiar postumamente em 1724, o padre beneditino francês Jean Mabillon, o operário às "leis naturais da produção", isto é, à sua dependência reconsiderando a experiência punitiva de tipo carcerário que fazia parte do do capital, que nasce das mesmas condições da produção, e que é próprio direito penal canônico, formula uma série de considerações que garantida e perpetuada por essas antecipam, em várias décadas, algumas das assertivas típicas do Iluminismo sobre a questão penal. A proporcionalidade da pena ao delito cometido e à Não se poderia expressar de maneira mais clara e sintética o desen- força física e espiritual do réu e o problema da reintegração na comunidade volvimento particular da relação de classe, entre o século XVIII e a primeira encontram em Mabillon um dos seus primeiros metade do século XIX. É com base nela que devem ser compreendidos os acontecimentos que tiveram lugar na casa de correção na Inglaterra, naquela 4. Acontecimentos posteriores da instituição situação-modelo das origens do capital, que Marx privilegia em suas análises. na experiência inglesa Durante todo o século XVII e boa parte do século XVIII, um dos problemas A casa de trabalho é uma das manifestações típicas do modo pelo qual os mais graves enfrentados pelo capital foi o da escassez de força de trabalho, com Estados das jovens monarquias nacionais, na época do mercantilismo, apóiam o perigo continuamente subjacente do possível aumento do nível de o desenvolvimento de um capital ainda incerto, inseguro, que necessitava de problema não se apresenta, contudo, com a mesma gravidade dos primeiros proteção e de privilégios. O nascente modo de produção capitalista tem anos do século XVII, quer porque já estava começando a ocorrer um certo necessidade "do poder do Estado, violência concentrada e organizada da incremento demográfico, quer porque o processo de expulsão e de expropriação não apenas em relação ao proletariado, "para 'regular' o salário dos estratos camponeses estava em pleno Não obstante, é significativa (...) para prolongar a jornada de trabalho e para manter, o próprio operário a insistência com que se pede o uso de trabalho modo de produção num grau normal de mas também nas relações entre Estado capitalista necessita de um longo período de tempo para terminar de destruir e Estado e, de modo ainda mais evidente, em relação às Todavia, aquela capacidade residual de resistência do proletariado, que tinha origem no velho modo de produção. 80 Michel Foucault, Storia della follia, cit., pp. 98-99. Quanto mais avança a expropriação, menor é a possibilidade de defesa para 81 Ver G. Rusche e O. Kirchheimer, op cit., pp. 69 Jean Marbillon, "Reflexion quem é expropriado. É apenas com a extensão do mercado que a economia sur les prisons des ordres religieux", in Ouvrages Posthumes de D. Jean Mabillon camponesa de subsistência é gradativamente Não causa surpresa, et de D. Thierri Paris, 1724, pp. 321-335, publicado em inglês em T. Sellin, "Dom Jean Mabillon A Prison Reformer of the Seventeenth Century", in Journal of American Institute of Criminal Law and Criminology, XVII (1926-27), pp. 196 ss. pp. 581-602. 86 Ver Maurice Dobb, op.cit., pp. 268 SS. 82 Karl Marx, Il Capitale, cit., I, 3, p. 196. 87 83 Ibidem, p. 219 e cap. XXV, pp. 225 88 Ibidem, p. 264. 84 Ibidem, p. 210. 61 60</p><p>portanto, que a lei dos pobres baixada pela rainha Elisabeth tenha sido alvo de acordo com a Old Poor Law, em número muito menor do que o daquelas tantas acusações. Na verdade, críticas e ataques são dirigidos continuadamente efetivamente contra o sistema elisabetano de relief até que, em 1834, imediatamente após a Como afirma um texto da época, mesmo aqueles condenados ao açoite e assunção formal do poder por parte da burguesia, a nova Poor Law não acolherá ao desterro, por serem considerados vagabundos e ociosos, maldiziam as solicitações tantas e tantas vezes A Old Poor Law como é abertamente os magistrados por não serem capazes de garantir-lhes normalmente chamado o conjunto de disposições examinadas e promulgadas E tudo isso acontecia num período marcado por uma relativa escassez de entre 1572 e 1601 havia transformado sistema da caridade privada em força de trabalho. É muito difícil distinguir o desenvolvimento da casa de caridade pública e tinha também imposto a obrigação, para as comunidades correção propriamente dita do da workhouse para pobres ou poorhouse. Como locais, de fornecer trabalho aos pobres em condições de trabalhar. Entretanto, o já se esclareceu anteriormente, por outro lado essa distinção não estava lado assistencial prevalecia na prática sobre o lado do trabalho e na opinião incluída na Old Poor Law, que só afirmava que a casa de correção a ser unânime de seus críticos a lei tendia a reduzir a quantidade de força de trabalho construída em cada paróquia devia se destinar a desempregados, vagabundos, disponível e, por isso, mantinha os salários acima do nível que teria sido possível ladrões etc. Por um certo lapso de tempo, o sistema funcionou, mas pouco sem o relief system. a pouco foi se deteriorando. O trabalho nas casas de correção começou a rarear e recomeçou-se a punir os vagabundos com o açoite e com o ferro em Esta vergonha dos altos salários pagos aos artesãos deve-se, na Ingla- brasa, preferencialmente ao internamento. No entanto, a prática da casa de terra, ao ócio de um número muito grande de pessoas que pertencem a correção fez com que cada vez mais comumente a punição fosse do tipo essas condições sociais. Por isso, os industriosos e os que têm vontade detentivo e esta absorveu, pouco a pouco, a antiga gaol, a prisão de custódia. de trabalhar se fazem pagar com aquilo que julgam merecer. Mas se os pobres forem encaminhados ao trabalho, esses homens serão obrigados Ainda que formalmente a diferença entre gaol e bridewell tenha sido a abaixar as suas tarifas eliminada apenas em 1865, com o Prison Act, em 1720 já era possível condenar os responsáveis por delitos menores a qualquer uma das duas Um coro unânime de vozes se levanta para decantar os efeitos benéficos instituições, com base em critérios totalmente discricionários. Desde então, de uma utilização mais ampla e tendencialmente exclusiva das workhouses frequentemente, a instituição penal, a bridewell, confundia-se com a casa de Um primeiro resultado é alcançado com o Workhouse ou General Act de trabalho para os pobres, dividida apenas formalmente por ela como uma das 1722-1723, com o qual se permitiu a um grupo de paróquias a construção de suas seções, ou Havia, sem dúvida, e como já foi visto, uma casas de trabalho para nelas alojar todos aqueles que requeressem algum tipo contínua pressão para "pôr os pobres para trabalhar" e foram feitas tentativas de Como observa Marshall, as disposições da Old Poor Law nessa direção com muita em todo esse período; concomitan- eram, em grande parte, impotentes diante de um desemprego cujas origens temente, a cada vez maior afinidade da casa de correção com o velho cárcere eram não havia capitais suficientes para dar trabalho a todos os de custódia faz a instituição penal, ao menos na Inglaterra, retornar ao período pobres e as casas de correção que deveriam ter sido construídas eram, de da Idade Média tardia, no que diz respeito ao regime interno96. trabalho desapareceu completamente da prisão, voltou-se à prática 89 Citado em T. E. Gregory, "The Economics of Employment in England, 1669- 1713", in Economica, 1921, 1, p. 44. Para uma resenha das posições sobre este funesta do lucro privado do guarda, desapareceu todo e qualquer tipo de tema, ver R. Bendix, Work and Authority in Industry, Nova Iorque-Londres, 1956, classificação e de diferenciação, por mais grosseira que pudesse ter sido pp. 60 é interessante o texto de D. Defoe, "Giving Alms No Charity", in A Select Collection of Scarce and Valuable Economic Tracts, Londres, 1859, p. 40; o volume de Bendix é bastante interessante para toda a política social inglesa dos 93 Ver F. M. Eden, op. cit., pp. 25, 34-35. séculos XVI ao XIX (primeira parte, cap. II). 94 Ibidem, p. 27. 90 Ver F. M. Eden, op. cit., pp. 25 SS. 95 Ver S. e B. Webb, op. cit., pp. 15-17; L. W. W. Fox, The Modern English Prison, 1934, p. Max Grünhut, op. cit., p. 17. 91 Ver J. D. Marshall, The Old Poor Law 1795-1834, Londres, 1968, p. 14. 96 Sobre o que se segue, ver S. e B. Webb, op. cit., pp. 18 92 Ibidem, p. 15. 63 62</p><p>praticada antes. As seções femininas do cárcere se transformaram em bordéis e eficiente do que o do Ancien Régime. Desde o início, o liberalismo significa regidos pelos carcereiros. Foi essa situação que provocou a intervenção e os que o capitalismo é livre do Estado, que o Estado é coisa sua como afirmará escritos dos reformadores da segunda metade do século XVIII, situação algumas décadas depois o jovem Marx99 e deve, portanto, prestar seus serviços sinistramente representada pelo flagelo da gaol fever, que matava quase a a Monsieur le Capital. Este fato aparecerá com bastante clareza em toda a quinta parte dos presos anualmente, não poupando às vezes nem mesmo questão da assistência e do cárcere. "O delito, as revoltas, os incêndios dolosos" juízes, guardas, testemunhas e todo o aparato que de um modo ou de outro são a resposta necessária e espontânea da parcela mais pobre do proletariado a tinha relação com o cárcere. A tendência histórica que não muda ao contrário, uma situação diante da qual ainda não aprendeu a reagir através da luta de classe é consolidada e afirmada nesse período é a substituição das velhas penas Ao grande incremento do pauperismo, que corresponde, entre corporais e de morte pela detenção. Uma detenção, todavia, cada vez mais outros, a um aumento do preço do trigo, responde-se, num primeiro momento, inútil e dolorosa para os internos. com os instrumentos renovados da Old Poor Law. Entre 1760 e 1818 os impostos A raiz dessa progressiva decadência deve ser buscada nas grandes para os pobres aumentam seis vezes; a assistência deve ser financiada mediante transformações ocorridas na segunda metade do século XVIII. Uma excep- a criação de mais pauperismo. cional aceleração do ritmo do desenvolvimento econômico, o fenômeno da Uma série de instrumentos já praticados anteriormente a deterrent work- Revolução rompe com todos os tradicionais equilíbrios sociais house, o roundsman system, a allowance in aid of é introduzida de precedentes. Uma repentina inclinação da curva do crescimento demográfico, forma mais ampla. Com a nova situação e particularmente com o custo juntamente com a introdução das máquinas e a passagem do sistema crescente do relief system elisabetano, as críticas que pontualmente eram manufatureiro para o sistema de propriamente dito, servem para assinalar dirigidas contra este nos séculos precedentes chegam agora ao extremo. É contemporaneamente a idade de ouro do jovem capitalismo, acompanhado pelo sobretudo a allowance in aid of wages, ou Speenhamland system uma período mais escuro da história do proletariado. A incrível aceleração da contribuição em dinheiro dada aos mais pobres de acordo com o preço cor- penetração do capital no campo e, concomitantemente, a expulsão da classe rente do pão (na realidade uma maneira de evitar a instauração do salário camponesa, em especial através dos bills for inclosures of commons, as leis mínimo) que suscita, depois de 1815, as críticas mais ferozes. À crítica para o cercamento das terras contribui para levar ao mercado de tradicional e recorrente de que essas formas de assistência incentivavam o ócio trabalho uma oferta de mão-de-obra sem precedentes. Um novo período de e a recusa ao trabalho e mantinham elevados os salários, sobrepunha-se agora a grande compressão dos salários se estende na Inglaterra de 1760 a visão malthusiana da população, aspecto extremo do liberalismo econômico: o aproximadamente 1815. relief permitia a sobrevivência e a reprodução de uma população que se Os fenômenos do urbanismo, do pauperismo e da "criminalidade" crescem multiplicava, inútil e mesmo danosa para o desenvolvimento econômico. Foi numa intensidade até então desconhecida. A "silenciosa coação das relações essa, em essência, a visão do problema manifesta pela Comissão de Inves- sociais" substitui a violência do regulamento. Ingressa-se na era do liberalismo, tigação de 1832-1834, de cujos trabalhos a nova Poor quando o capital, agora capaz de caminhar sobre suas próprias pernas, proclama- Convencidos, como Malthus e os outros partidários da livre con- se orgulhosamente seguro de si mesmo e, auto-suficiente, zomba do sistema de corrência, de que a melhor coisa a fazer era deixar a cada um o cuidado privilégios, desigual e autoritário, que nos séculos anteriores o havia alimentado. Ver Karl Marx, "Dibattiti sulla legge contro i furti di legna", in Scritti politici É um lapso que dura pouco. Logo a "violência imediata, extra-econômica" giovanili, cit., p. 213. deverá ser invocada contra as primeiras tentativas de organização do proletariado. 100 Ver F. Piven e R. A. Cloward, op. cit., p. 29. op. cit., pp. 59 Os acontecimentos revolucionários na França são bastante claros a esse 101 Sobre todos esses instrumentos, ver J. D. Marshall, op. cit. respeito e o novo Estado napoleônico mostra-se muito mais forte, centralizador 102 Sobre a elaboração da nova lei para os pobres, ver ibidem, p. 17; F. Piven e R. A. Cloward, op. cit., pp. 33-34; G. Rusche e O. Kirchheimer, op. cit., p. 94; Friedrich Engels, La situazione della classe operaia in Inghilterra, Roma, 1972, pp. 310 97 Ver Maurice Dobb, op. cit., pp. 296 [N. do T.: edição portuguesa A situação da classe operária na Inglaterra. Lisboa, 98 Ver supra nota 6. Presença, 1975]. 64 65</p><p>de si mesmo, que se colocasse em prática, coerentemente, o laissez- que comporta, o trabalhador é levado a evitar, custe o que custar, a cair nas faire, eles teriam preferido abolir, sem dúvida alguma, as leis sobre os pobres. Porém, como não tinham nem a coragem nem a autoridade garras da instituição. Pretende-se garantir dessa vez um controle do proletariado para isso, propuseram uma lei sobre os pobres a mais malthusiana que não está privado no período em que a lei é aprovada, após a experiência possível, que é ainda mais bárbara do que o laissez-faire, uma vez que da Revolução Francesa e das primeiras lutas operárias inglesas de um conteúdo imediatamente político. intervém ativamente, onde este é apenas passivo Qual foi a solução proposta e adotada por Nicholls e outros reformadores? Sir George Nicholls, o principal artífice da nova Poor Law, vê o pobre Já em 1770, ainda que este modo de conceber a workhouse fosse anterior, a como "um jacobino em potencial", "pronto para atentar contra a propriedade ideal workhouse era definida como house of terror, casa do A solução do seu vizinho mais Engels descreve com muita pertinência a vida plenamente acolhida pela burguesia inglesa, pouquíssimo tempo depois da na casa de trabalho, que em tudo e por tudo é semelhante a uma prisão, tanto sua ascensão definitiva ao poder político, foi a deterrent workhouse, a casa que o povo a rebatizou de poor-law-bastiles, as Bastilhas da lei sobre os de trabalho terrorista, que significava a substituição de qualquer forma de assis- O regulamento interno da casa, além de garantir um standard de tência fora das casas de trabalho (outdoor relief) pelo internamento e o trabalho vida que é, às vezes, inferior ao do impõe uma série de limitações à forçado no seu interior. Qual era a finalidade desta medida e em que sentido a liberdade pessoal, que é típica do ademais, e esse aspecto é workhouse era definida, pelos próprios reformadores, como deterrent? As particularmente significativo, o trabalho ali desenvolvido é, em geral, inútil, condições de vida e trabalho na casa eram tais que ninguém, a não ser premido insignificante, pensado muito mais em função das exigências da disciplina e por uma extrema necessidade, aceitaria internar-se nela. As palavras dos da domesticação do que em termos de rendimento Em resumo, próprios comissários são extremamente reveladoras a esse respeito: como Disraeli chegou a dizer, a reforma de 1834 "anuncia ao mundo que na Inglaterra a pobreza é um Numa casa desse tipo, ninguém entrará voluntariamente; o trabalho, o isolamento e a disciplina atemorizarão o indolente e o malvado, e Detive-me tão longamente na questão da assistência não apenas porque o nada, senão a extrema necessidade, induzirá alguém a aceitar aqueles início da instituição carcerária moderna está estreitamente ligado a ela ou melhor, confortos que deverão ser obtidos ao preço da da própria com ela se confunde mas sobretudo porque, ainda no período da Revolução liberdade de contratar-se por si mesmo, e do sacrifício da gratificação Industrial, essa relação permanece de maneira clara, a despeito da diferenciação e das práticas habituais das instituições e da extensão distinta da utilização de ambas. Em todo o período anterior, observou-se uma aparente contradição no desenvolvimento de uma O objetivo da casa de trabalho era, uma vez mais, forçar o pobre a se política de assistência cada vez mais contestada em nome da introdução das oferecer a qualquer um que se dispusesse a dar-lhe trabalho, nas condições que Para isso, era necessário que a vida na casa de trabalho ofere- casas de trabalho, juntamente com a retirada do trabalho dos cárceres que decaíam cesse, sob qualquer aspecto, a começar, obviamente pelo padrão de vida, profundamente, decadência que, ao menos no que concerne às casas de correção, se manifestava na crescente degradação das condições de vida do interno. Mas menos do que o trabalhador livre do mais baixo estrato social pudesse a contradição é apenas aparente, e o destino das duas instituições, cárceres e O internamento na casa de trabalho atua sobre o mercado, mas nesse caso, ao contrário do que acontecia anteriormente, quando um setor da produção casas de trabalho, não só coincide como registra, no período da Revolução Industrial, uma mudança profunda que afeta a ambas. funcionava a um custo muito baixo devido ao custo da força de trabalho ser forçosamente comprimido, agora, devido ao caráter declaradamente terrorista 108 Em J. D. Marshall, op. cit., p. 30. Sobre a relação entre o que hoje chamamos de 103 Friedrich Engels, La situazione della classe operaia in Inghilterra, cit., p. 312. "criminalidade política" e "criminalidade comum" e que, nesse tempo, eram formas 104 Ver Karl Marx, Il Capitale, cit., I, 1, p. 301. diversas, primitivas e pouco diferenciadas de luta de classe, na da 105 F. Piven e R. A. Cloward, op. cit., pp. 33-34. Revolução Industrial ver as belas páginas de E.P.Thompson, op. cit., pp. 61 SS. 109 Ver Friedrich Engels, La situazione della classe operaia in Inghilterra, cit., p. 312. 106 Ibidem. 110 Ibidem, p. 313. 107 Ibidem, p. 35. Este princípio se chamava less eligibility. III Citado em F. Piven e R. A. Cloward, op. cit., p. 35. 66 67</p><p>As principais características das casas de trabalho, impostas pela nova atitude filantrópica com relação ao problema da criminalidade e do Poor Law de 1834, são também comuns à evolução carcerária deste que anteriormente havia sido a postura do movimento iluminista, baseada na Com o crescente pauperismo da era da Revolução Industrial, crescem defesa das garantias individuais quanto da reforma do O principal igualmente o delito e a rebelião. grito "pão e sangue" serpenteia pelos representante dessa corrente na Inglaterra foi J. distritos industriais ingleses em espectro jacobino tira o sono não Essa reação, contudo, não levará a um retorno a formas punitivas pré- apenas da aristocracia continental, mas também da burguesia carcerárias, mas sim a um endurecimento e a uma intensificação da função Entretanto, nesse primeiro período, é a reação individual do delito e da punitiva do próprio cárcere. Por outro lado, ao prescindir da racionalização e violência a única arma com as quais as massas empobrecidas conseguem da introdução de uma maior decência e dignidade que o movimento iluminista exprimir sua Não é de se estranhar, portanto, que no clima de impôs à reforma carcerária, esse processo estabelece uma continuidade com restauração pós-napoleônico, vozes se levantem para pedir a volta do antigo a situação dominante no século XVIII. A razão de fundo pode ser encontrada, método de tratar a o açoite, a forca e por aí vai. Um dos leit- como já foi visto, no aumento excepcional da oferta de trabalho que tornava motiv dos ataques reacionários à Revolução Francesa é, entre outros, sua completamente obsoleta a velha fórmula do trabalho carcerário, em benefício do aspecto intimidatório e terrorista da casa de trabalho e, mais ainda, do carcere. Não é que não se trabalhasse mais no cárcere; o trabalho no cárcere 112 Ver G. Rusche e O. Kirchheimer, op. cit., pp. 95 não era descartado a priori, mas o que emergia no primeiro plano era o 113 Ver ibidem, pp. 96-97, os dados sobre o rápido aumento dos índices de caráter punitivo, disciplinador, do trabalho, mais do que a sua imediata va- criminalidade na Inglaterra, sobretudo de 1810 em diante. No excelente ensaio do jovem Engels sobre os anos 1844-1845, já citado, os temas do pauperismo, do lorização E isso acontecia porque, com a introdução das máqui- alcoolismo, da prostituição, do delito não retornam continuamente à cena por nas, o nível de emprego de capitais em qualquer trabalho produtivo aumentara Isso tinha suas raízes na situação real que Engels tinha diante de si, na qual uma de tal forma que o trabalho no cárcere, como informava um relato da época, prática criminal de massa era uma forma de luta de classe. Isso é não podia mais ser promovido, a não ser na perspectiva de grandes sinteticamente expresso por ele quando afirma: "E quem, entre estes A abundância da força de trabalho livre era tamanha que o trabalho forçado tem bastante coragem e paixão para rebelar-se abertamente contra a sociedade, e já não era mais necessário para exercer a função de regulador dos salários para responder com a guerra aberta contra a burguesia, que conduz contra ele uma externos, o que havia ocorrido na era mercantilista. Não havia mais razão para guerra oculta, esse alguém rouba, saqueia e mata" (p. 124). se preocupar com a concorrência que o trabalho no cárcere poderia fazer ao Engels ilustra, mais adiante, as fases através das quais o proletariado inglês passa do trabalho livre e, por esse motivo, os protestos que a classe operária promovia delito à revolta e ao ludismo, e finalmente à luta política, mediante a conquista do contra ele perderam De outra parte, o caráter intimidatório e o trabalho direito de associação (pp. 244-245). É oportuno fazer notar, en passant, como os famosos juízos de Karl Marx sobre o subproletariado que ensejaram uma famosa inútil são características das workhouses para pobres, lá onde o trabalho deveria querela político-filológica (ver a esse respeito, os números de 16 e 23 de janeiro e de ser o seu único fim. Vale a pena conhecer a dimensão do fenômeno do 6 de fevereiro de 1972 do jornal Il Manifesto) sempre se situam, como os de Engels pauperismo e das poorhouses com relação à dimensão do fenômeno carcerário. que estamos examinando agora, num determinado contexto político-social do qual Segundo a estimativa do casal Webb, a percentagem da população inglesa retiram sua validade. A tarefa do movimento socialista do século XIX foi exatamente assistida nas paróquias (ou seja, com base no sistema da Old Poor Law) em transformar, bem ou mal, os comportamentos criminosos numa prática política de massa, enquanto o comportamento criminoso continua sendo a característica de um setor do proletariado, o subproletariado, muitas vezes usado com finalidades anti- operárias. É claro, portanto, que nessa perspectiva política, Marx e Engels se lancem, 114 Ver Howard, Prisons and Lazarettos, I: The State of the Prisons in England num segundo momento, contra o elemento lumpen. Convém igualmente sublinhar and Wales, Montclair, 1973 (reimpressão da edição de 1792), cf. particularmente que a questão do subproletariado, como questão de análise de classe, não guarda a terceira seção: "Proposed Improvements in the Structure and Management of relação alguma com a da violência e da ilegalidade como formas de luta política, p. 19. conceitos que se tornam absurdos se não forem esclarecidos. Sobre esses temas, cf. G. Rusche e O. Kirchheimer, op. cit., p. 110. Ibidem, p. 111. Michel Foucault, Surveiller et punir, cit., pp. 261 68 69</p><p>1820 girava em torno de 12% 113% do Em 1845, num total de 1.470.970 princípio formal sobre o qual se baseava o Panopticon consistia na pessoas assistidas, estimava-se que, de acordo com o que determinava a nova combinação de dois recipientes cilíndricos coaxiais, de vários planos, Poor Law, estivessem internados nas workhouses 215.325 cidadãos com funções opostas e complementares: as coroas circulares, em Se considerarmos que no levantamento feito em 1782 J. Howard registrara um correspondência com os planos do cilindro externo, estavam divididas total de 4.439 detidos nas prisões inglesas (dos quais a metade estava presa por meio de sete radiais em unidades celulares completamente abertas por e que ainda em 1860 foram contabilizados 8.899 e para o vão central e iluminadas pelo perímetro externo; esta parte era supondo que na situação social dos anos 1820-1840 o número possa ter sido reservada aos indivíduos que deveriam ser controlados. No cilindro sensivelmente mais elevado, damo-nos conta, imediatamente, da enorme coaxial interno, oculto por finas paredes opacas, dispostas ao longo de desproporção entre a magnitude do problema social, que é assinalada pela toda a extensão do perímetro, encontravam-se os locais destinados aos cifra correspondente aos pobres, e a que poderia ser definida como emergência carcereiros muito poucos, se forem necessários os quais, sem criminal desta Pode-se compreender então a exiguidade absoluta possibilidade de serem vistos, poderiam exercer um controle constante do problema carcerário em termos de economia social, bem como o empenho e inquisitivo sobre qualquer ponto do cilindro externo, através de espias com que se enfrentava a questão do pauperismo. Por outro lado, porém, percebe- colocadas nas paredes: nada podia fugir do seu se bem o significado simbólico e ideológico que se tendia a conferir ao A vida na "célula elementar" correspondia à introdução, no primeiro projeto Nas propostas de um dos representantes máximos da burguesia inglesa de Bentham, datado de 1787, do princípio do isolamento absoluto continuado. em ascensão, Jeremy Bentham, o cárcere se apresenta já numa fase interme- No Poscript escrito quatro anos depois, as celas foram ampliadas e o número diária em que a vocação produtivista e ressocializante própria das primeiras de detidos previstos para cada uma passou para elemento central experiências e depois retomada pelo Iluminismo começa a se sobrepor ao do projeto era, sem dúvida, o "princípio de inspeção", isto é, a possibilidade objetivo intimidatório e de puro controle. problema carcerário é submetido de, com poucos homens, manter sob constante vigilância ou de fazer crer neste período, como em toda fase de transição, a contínuas solicitações que se estava sob contínua vigilância todos os indivíduos encerrados na políticas, e se trocam teorias, proposições e soluções que têm a ver com o instituição. Se estes dois elementos o do isolamento continuado (que depois alinhamento dos intelectuais ora com uma, ora com outra posição. Pa- desaparece) e o da inspeção-aproximam o Panopticon das modernas peniten- nopticon de é uma tentativa ingênua e nunca concretizada de coor- ciárias de isolamento celular surgidas nos Estados a postura de denar um exasperante sistema punitivo e de controle com a eficiência Bentham pode ser caracterizada pela importância que atribui à produtividade produtiva, tentativa que já revela a decidida tendência dos anos seguintes de da privilegiar o primeiro aspecto. Panopticon é, ao mesmo tempo, uma idéia Bentham é a esse respeito rigorosamente liberal: "Eu faria tudo por arquitetônica e a materialização da ideologia que a sustenta: diz ele, excluindo qualquer concepção punitiva do trabalho. Este deveria ser administrado segundo critérios puramente capitalistas: "Devo 117 Em J. D. Marshall, op. cit., p. 33. texto fundamental sobre esta problemática no período da Revolução Industrial para a história inglesa é a obra de S. e B. confessar que não conheço prova mais clara ou segura de reeducação do Webb, English Poor Law History, volumes VII, VIII e IX da sua English Local que a melhoria da quantidade e do valor do trabalho [dos A Government, Londres, 1929. 118 Ver F. Piven e R. A. Cloward, op. cit., p. 35. 123 Ver V. Comoli Mandracci, Il per la società del Sette-Ottocento, Turim, 119 Ver J. Howard, op. cit., p. 492. 1974, pp. 36-37. Ver também R. Evans, "Panopticon", in Controspazio, II, 10, pp. 4- 120 Dados retirados do Prison Report, do Home Office daquele ano. 121 Isso nos faz levar em conta, também, como, passando de uma determinada situação 124 Ver "Poscript", in Jeremy Bentham, op. cit., pp. 67 125 Cf. o ensaio de Massimo Pavarini neste volume. social para outra, os mesmos resultados podem ser alcançados com outros meios, 126 Ver Jeremy Bentham, op. cit., pp. 47 SS. por exemplo, com outras instituições segregadoras, com a deportação etc. 127 p. 47. 122 Ver Jeremy Bentham, "Panopticon", in The Works of Jeremy Bentham, vol. IV, 128 Ibidem, p. 50. Nova 1962, p. 37. 70 71</p><p>da pena é constituída, também no que diz respeito à relação de incorrigíveis, vigiar os loucos, corrigir os viciados, isolar os suspeitos, trabalho, pela privação da liberdade, entendida sobretudo como privação da para trabalhar os ociosos, socorrer quem necessita de ajuda, curar liberdade de poder contratar-se: o detido está sujeito a um monopólio da os doentes, instruir em qualquer ramo de atividade quem quiser aprender oferta de trabalho, condição que torna a utilização da força de trabalho ou mesmo guiar a nova geração na estrada da educação. Em uma carcerária conveniente para o contratante. palavra, quer seja aplicada com o objetivo da prisão perpétua como A privação de liberdade, que constitui a sua pena, impedindo-lhe de substitutivo da pena de morte, ou da prisão de custódia, antes do levar o próprio trabalho a um outro mercado, torna-o sujeito a um processo, ou da penitenciária, ou da casa de correção, da casa de monopólio; o fornecedor de trabalho, o seu patrão, como qualquer trabalho, da manufatura, do manicômio, do hospital, da outro monopolista, retira o máximo que pode do seu trabalho Depois, Bentham dedica-se com especial atenção a tratar da aplicação Porém, o princípio do isolamento punitivo, de um lado, e o da pena como do seu projeto ao modelo penitenciário, visto que, neste caso, "os privação da liberdade, do outro, que ainda convivem no esquema de Bentham, objetivos da custódia, do isolamento, da solidão, do trabalho forçado e vão se tornar cada vez mais contraditórios entre si. O projeto arquitetônico da instrução são buscados ao mesmo Pode-se dizer, de maneira benthamiano adapta-se aos objetivos de controle, custódia e intimidação que ele bem sintética, que as funções específicas das diferentes instituições mesmo realça, mas não à introdução do trabalho produtivo no cárcere num segregadoras criadas pela sociedade burguesa pouco antes, no momento em que as máquinas, de forma cada vez mais maciça, estão presentes momento em que Bentham escreve essas páginas foram unificadas, no ciclo produtivo e este é, cada vez mais, organizado segundo o princípio da num esforço unitário e essencial: o controle do proletariado nascente. cooperação entre os trabalhadores. Talvez seja um indício o fato de que, poucos Essas instituições se caracterizam por estar destinadas, pelo Estado da anos depois, Bentham tenha previsto a ampliação da sua unidade celular para sociedade burguesa, à gestão dos diversos momentos da formação, produção quatro pessoas. Mas o ceito é que o projeto benthamiano nunca foi completamente e reprodução do proletariado de fábrica. Elas representam um dos instru- aplicado na prática, muito embora, nos primeiros anos do século XIX, nos mentos essenciais da política social do Estado, política que tem como meta quais ainda prevalecem as instâncias reformadoras, sua proposta de utilização garantir ao capital uma força de trabalho que por atitudes morais, saúde produtiva da instituição carcerária tenha tido uma boa acolhida. física, capacidade intelectual, conformidade às regras, hábito à disciplina e Há ainda um outro elemento a destacar no projeto de Bentham, talvez o à obediência etc. possa facilmente se adaptar ao regime de vida na fábrica mais significativo da época e da sua ideologia. O mesmo frontispício do em seu conjunto e produzir, assim, a quota máxima de mais-valia passível volume onde o projeto do Panopticon é exposto traz o seguinte título: de ser extraída em determinadas Porém, a característica que prevalece sobre qualquer outra é o inspection principle, o princípio da "PANOPTICON", or the inspection-house: containing the idea of a inspeção, que constitui a garantia da disciplina. new principle of construction applicable to any sort of establishment, Panopticon, a capacidade de controlar os subordinados em qualquer in which persons of any description are to be kept under inspection; momento e em qualquer lugar da instituição é, utilizando uma forma grosseira and in particular to penitentiary-houses, prisons, houses of industry, (mas as teorias burguesas deste período são grosseiras, isto é, simples, work-houses, poor-houses, manufactories, mad-houses, lazarettos, claras e [quase] sem contrastes), uma extensão do olho do patrão. Isso é verdadeiro, literalmente falando, se levarmos em consideração o que era a hospitals, and schools. organização do trabalho na fábrica neste período, sobre a qual Bentham Nas primeiras linhas da obra, repete-se que esta idéia é aplicável, baseia a sua utopia do controle para todas as diferentes instituições sem a qualquer estabelecimento no qual (...) se pretende segregadoras. Uma organização do trabalho em que não se podia assegurar manter muitas pessoas sob controle. Não importa o quão diferentes e mesmo opostos possam ser os objetivos: quer se trate de punir os 130 Ibidem, p. 40. 129 Ibidem, p. 54. 131 Ibidem. 73 72</p><p>a pelo automatismo do processo de produção, mas sim pela dos equivalentes: a força de trabalho é efetivamente "paga pelo seu valor"137 força e pela autoridade física do capitalista que, produzindo com máquinas Não se registra, nesse momento do processo, nenhum tipo de que pertencem à pré-história do que é hoje a técnica industrial, coordena Até aqui, a ficção jurídica do contrato, a ficção das pessoas que livremente com o seu olho, a sua voz, o seu comando (ou o do capataz) o bom andamento dispõem de suas próprias mercadorias para trocá-las reciprocamente por valores iguais, não existe. enigma surge, porém, do fato de que, no final, do processo produtivo. É útil, a esse respeito, retornar à história da origem do capitalismo, desde embora tendo pago por seu justo preço o que está comprando, o capitalista a acumulação primitiva até a análise da essência do capital em seu modelo tem um valor maior do que no princípio, ele possui o que pagou mais a mais clássico do século XIX, ou seja, desde o capítulo IV até o capítulo V do valia. O enigma deve residir portanto na natureza particular da mercadoria primeiro livro de Capital. Aqui Marx nos explica o que poderíamos chamar que ele comprou, na mercadoria força de valor de uso dessa de eixo de sua teoria, a produção da mais-valia, ou, em outras palavras, o mercadoria não pertence mais, obviamente, ao seu vendedor, ao trabalhador, processo de valorização do Imediatamente antes, no final do ca- mas sim ao capitalista que a comprou. E a natureza particular dessa pítulo IV, Marx convida o leitor a acompanhar a análise que faz da troca mercadoria é tal que o consumo de seu valor de uso produz extraordinária de equivalentes entre capital e trabalho que tem a propriedade Isso, porém, só é verdadeiro se o uso dessa força de trabalho é efeti- de criar valor, mais além da esfera da circulação, no "secreto laboratório da vamente capaz de produzir, na jornada de trabalho, um valor maior do que É aqui que se revela "o mistério da produção da aquele que o capitalista antecipou. E para que isso aconteça, vai depender da Abandonando essa "esfera", vejamos agora como Marx a descreve: quantidade de tempo durante a qual a força de trabalho é usada pelo capitalista, A esfera da circulação, ou seja, da troca de mercadorias, dentro de e também da capacidade do capitalista de obter da força de trabalho um cujos limites se efetuam a compra e a venda da força de trabalho, era, rendimento médio horário que não frustre as suas expectativas, ou seja, da na realidade, um verdadeiro Éden dos direitos inatos do homem. 136 Ali capacidade de usar a força de trabalho segundo os seus planos, segundo a imperam somente Liberdade, Igualdade, Propriedade e Bentham sua vontade (como é, por outro lado, seu direito contratual; porém, da mesma A frase de Marx não tem apenas uma intenção irônica. Ele já explicara maneira que a mercadoria força de trabalho tem a característica peculiar de antes como a venda da força de trabalho respeita o princípio geral da troca produzir valor, também tem uma estranha propriedade, que é contraditória em relação à anterior: a tendência a subtrair-se ao próprio consumo). Se isso é verdade, portanto, e se é verdade que a extração da mais-valia é 132 Sobre o conceito de cooperação, cf. Karl Marx, Il Capitale, cit., I, 2, pp. 18 133 Ver ibidem, I, 1, pp. 204 SS. As teses que se seguem são mais amplamente desen- questão de vida ou de morte para o capital, aqui se decide a sua própria existência; então, de fato, apresenta-se como questão de vida ou de morte volvidas em Dario Melossi, "Criminologia e Karl Marxismo: alle origini della ques- tione penale nella società de 'Il in La questione criminale, I (1975), e, do para o capitalista a sua autoridade no processo de produção, a sua autori- mesmo autor, "Istituzioni di controllo sociale e organizzazione capitalistica del la- dade na que se identifica com o poder do capitalista de dispor, voro: alcuni ipotesi di ricerca", in La questione criminale, II (1976), 2/3. Neste último como qualquer outro comprador, da mercadoria que ele ensaio, procura-se sobretudo ler o processo aqui descrito do ponto de vista da crise 137 Ibidem, p. 184. das instituições segregadoras (assim, na nota 60, fazia-se alusão à crise da família 138 mononuclear; o mesmo se pode dizer da crise atual da instituição carcerária e assim 139 por diante), isto é, do ponto de vista das transformações que o controle social sofreu com o desenvolvimento neocapitalista. É oportuno sublinhar como todo o discurso do 140 No capítulo sobre a cooperação, Marx esclarece perfeitamente como o princípio desenvolvido nesta obra tem como ponto de chegada o momento de maturidade de autoridade é incorporado ao próprio processo capitalista de produção: "Com a sistema carcerário e, portanto, o capitalismo "clássico" do século passado. É deste cooperação de muitos operários assalariados, o comando do capital se converte ponto de vista (que é o mesmo do Livro Primeiro de Il Capitale) que se fala num requisito para a execução do processo de trabalho em si, isto é, numa condição 134 Karl Marx, Il Capitale, cit., I, 1, p. 193. real da produção. Ora, as ordens do capitalista no campo da produção tornam-se tão indispensáveis quanto as ordens do general no campo de batalha" (Il Capitale, cit., 135 Ibidem. pp. 27-28); ver também as páginas seguintes e as pp. 56 ss). 136 Ibidem. 75 74</p><p>A história da relação entre capital e trabalho, a história tout court, que é a o corpo (na arte militar, na escola, nas oficinas etc.). Em Foucault, enfim, por história da luta de torna-se então a história das relações capitalistas sua postura as bases desta relação correm novamente o risco no interior da fábrica, da autoridade do capital na fábrica e, corresponden- de perder-se na indeterminação de uma estrutura de signos e relações, temente, da disciplina do trabalhador e de tudo que serve para criar, manter brilhantemente ligados entre si, mas cuja razão de existência nos escapa. O fato ou subverter essa autoridade. É justamente o caráter irredutível (de classe) é que "a economia política do corpo" que nos é apresentada é "a economia dessa mercadoria em particular que faz com que ela não possa ser dada política" tout court e ela já está encerrada no conceito de força de como alimento ao capital imediatamente, sem uma série de tratamentos com- Basta recordar as já citadas páginas de Marx sobre a manufatura, ou, talvez, plementares que precedem, acompanham e sucedem a sua utilização no pro- antes ainda, as páginas dos Manuscritos de cesso de produção. Esta é a tarefa específica das instituições segregadoras Esta construção burguesa do corpo na escola, no quartel, no cárcere, na inventadas pela burguesia capitalista e citadas por Bentham, instituições que, família, permanece totalmente incompreensível a menos que seja um inefável no sentido que estamos explicando, podem ser definidas como subalternas à momento da história do espírito -, se não for considerada como parte da fábrica. Elas estão no mundo da produção da mesma maneira que a igualdade organização do trabalho capitalista (e neste momento da história do capitalismo) política e civil se reporta à esfera da circulação, como observa Marx na frase que necessita estruturar o corpo como máquina no interior da máquina produtiva citada. A esfera da circulação, da troca entre equivalentes, é o reino da liberdade e da igualdade, o reino da Declaração de direitos; a esfera da produção é em seu conjunto. Em outras palavras, a dita construção burguesa do corpo, para ser entendida, deve-se atentar para o fato de que a organização do trabalho reino da exploração, da acumulação e, por conseguinte, da autoridade, da não assume o corpo como algo estranho, mas sim o incorpora, nos músculos fábrica, e das outras instituições segregadoras. e na cabeça, reorganizando ao mesmo tempo o processo produtivo e essa parte É a partir desse ponto que podem ser compreendidos os conteúdos daquela fundamental do mesmo que é constituída pelo corpo-força de trabalho. A máquina religião do que é a ideologia dominante nesses anos, sobretudo no constitui, em suma, nestes anos, uma invenção abrangente, que encerra uma interior das instituições segregadoras. Um grande mérito do texto de Michel parte morta, inorgânica, fixa, e uma outra, viva, orgânica, Falando-se é ter destrinchado as relações entre técnicas e ideologias, mostrando de forma muito genérica, pode-se dizer que as ciências físicas e as morais (e como a ideologia (obediência e disciplina) não determina a razão prática, a depois também as sociais), as ciências da natureza e as do espírito, entram moral, e sim como esta é produzida por técnicas particulares do controle sobre numa relação biunívoca com as técnicas de formação, de exploração, de "ree- ducação", do capital fixo (as "máquinas" propriamente ditas) e da força de trabalho (o corpo, o homem, o espírito etc.). 141 Ver Karl Marx e Friedrich Engels, Il manifesto del Partito Comunista, Turim, A história das instituições segregadoras e da ideologia que as preside é re- 1948, p. 94 [N. do T.: edição brasileira: manifesto do Partido Comunista. Vozes, ed., 1989, tradução de Marco Aurélio Nogueira e Leandro Konder). construída a partir desta necessidade fundamental de valorização do capital. Por isso, seu caráter subalterno em relação à fábrica, que não é mais do que a 142 Ver supra, item 3. 143 Surveiller et punir, já citado. Tivemos a oportunidade de conhecer o texto de extensão da organização do trabalho capitalista fora da é a hegemonia Michel Foucault quando esta pesquisa já estava concluída. Esse trabalho é muito que o capital exerce sobre o conjunto das relações sociais. Uma hegemonia que mais um brilhante discurso do sr. Michel Foucault sobre o cárcere (ou melhor, que não deve ser entendida como extensão analógica da fábrica sobre o exterior, tem o cárcere como pretexto) do que uma história da instituição, para a qual é pouco útil, e se não fosse por outros motivos, o seria pelo extremo francocentrismo (qualquer curva, qualquer acontecimento, é cadenciado na história francesa, 144 Ver V. Cotesta, "Michel Foucault: dall'archeologia del sapere alla genealogia que, se não prejudica em muito o discurso do filósofo, é porém bastante desviante, del potere", in La questione criminale, II (1976)2/3. como creio ter demonstrado, para a investigação histórica). Mas, repito, me parece 145 Sobre a alienação do homem em relação ao seu próprio corpo (p. 200), sobre a que os objetivos de Michel Foucault (e isso é o que mais nos interessa no seu redução do homem a operário (pp. 209 ss.), sobre toda a temática dos sentidos trabalho) são outros que não "históricos". Para uma discussão sobre este texto, e das necessidades (pp. ver Karl Marx, Manoscritti economico- cf. o número 2/3 de La questione criminale, II (1976). filosofici di 1844, in Opere filosofiche giovanili. 76 77</p><p>embora pareça assim num primeiro nível de análise, mas que forma um continuum mais numerosas as invocações pelo retorno ao bom tempo antigo, ao que invade cada momento da vida individual, apoderando-se e remodelando (ou terrorismo e ao método criando) as instituições sociais no interior das quais tem lugar o processo de formação. É no cárcere, como observa Foucault, retomando que A contradição entre burguesia e proletariado, que surgira havia séculos, se cria o laboratório experimental deste projeto abrangente; a "máquina embora permanecendo secundária à contradição entre aristocracia e burguesia, tem a missão de produzir um tipo humano que constitui a articulação fundamental desponta agora com toda força na cena principal. Essa postura reacionária da máquina produtiva. Repetindo uma vez mais: não se trata de instituições que sobre os temas da criminalidade coincide com a discussão, que ganha toda a servem para a organização do trabalho capitalista, mas sim desta mesma Europa, proveniente dos Estados Unidos, sobre os dois sistemas: o separado, organização que, a partir da família, da escola, do hospital, do cárcere etc., de Filadélfia; e o silencioso, de O primeiro sistema, que, numa organiza uma componente essencial de si mesma, aquela parte do capital da situação social tivera pouco sucesso na América, foi recebido de qual só é possível extrair mais-valia. As práticas formativas das instituições, as modo cada vez mais favorável no continente europeu, porque correspondia ideologias, as teorias que as regem, só são compreensíveis a partir desta ne- perfeitamente à exigência de um cárcere punitivo e de terror, que não recorria cessidade essencial do capital de reproduzir a si mesmo, passando através dos a um trabalho em formação na Europa e em especial na Inglaterra. O vários momentos do social, produzindo, portanto, através da sua própria re- trabalho, no sistema do isolamento celular, é um trabalho que conservou o aspecto repetitivo, fatigante, em uma palavra, ainda punitivo do produção, uma sociedade nova. trabalho externo, mas que é completamente A tread-wheel ou o crank A contradição que estava na base das hipóteses de Bentham torna-se cada eram instrumentos simples, que podiam ser instalados numa cela e cujo vez mais evidente na primeira década do século XIX e, depois, após a Restauração. significado real, embora sendo na aparência instrumentos de trabalho, era o A impossibilidade de acoplar o princípio da reforma social e da intimidação com tormento, a tortura. Entre 1840 e 1865 triunfa na Inglaterra o princípio o da eficiência produtiva e da reforma por meio do trabalho se manifestou terrorista e, com ele, do confinamento e do trabalho claramente na recusa, operada pelos reformadores dos primeiros anos do Oitocentos, de acolher a idéia do isolamento continuado. A orientação reformadora 5. A construção da moderna práxis carcerária fundamental de J. Howard prevalece na lei de 1810 e depois no Peel's Gaol Act na Europa continental entre o Iluminismo de A idéia de classificação por grupos, da divisão entre os sexos, do e a primeira metade do século XIX isolamento celular noturno e da comunhão diurna no trabalho, a abolição do John Howard, nomeado xerife de Bedford em 1773, interessou-se algo lucro privado do carcereiro, das punições corporais e dos piores abusos do nada comum para a época pelas condições da prisão localizada em seu século anterior, todas elas foram realizações do empenho com o qual os Por conta disso, dedicou o restante da sua vida ao problema da pensadores da era do Iluminismo, de Howard e Bentham a Sir Samuel Romilly reforma carcerária. Ele realizou diversas viagens ao longo das décadas de e a Miss Elizabeth Fry, lutaram pela reforma carcerária. Esse movimento reformador esbarrou sempre numa reação em sentido repressivo, cujas bases 1770 e 1780, na Inglaterra e no continente. relato dessas viagens nos fornece a mais ampla visão panorâmica de como a situação das prisões estava localizavam-se na situação econômica e social particular criada pela Revolução Industrial. medo do jacobinismo, o aumento extremo do pauperismo e da evoluindo na segunda metade do século Se a situação inglesa era a criminalidade que acompanhavam o imenso exército industrial de reserva e 148 Ver G. Rusche e O. Kirchheimer, op. cit., pp. 95 SS. nível de vida extremamente baixo do proletariado, o surgimento de formas 149 Ver item 5, na criminosas caracterizadas por um conteúdo que, se ainda não era político, já 150 Ver mais adiante, nesta obra, o ensaio de Massimo Pavarini. é, porém, seguramente, de classe, tudo isso faz com que sejam cada vez Cf. W. Fox, op. cit., pp. 14 G. Rusche e O. Kirchheimer, op. cit., pp. 132 146 Ver Michel Foucault, Surveiller et punir, cit., pp. 197 SS. Também Bentham, 152 título completo do primeiro volume da obra de John Howard, já citada, é The como já vimos, op. cit., p. 40. state of the prisons in England and Wales, with preliminary observations, and 147 W. Fox, op. cit., pp.6-7; G. C. Marino, La formazione dello spirito borghese in an account of some foreign prisons and hospitals, resumo das prisões e hospitais Italia, Florença, 1974, pp. 353-355. estrangeiros, que é desenvolvido na seção IV, p. 78 79</p><p>de uma grave decadência da instituição, como foi descrito anteriormente, Rasp e Spin-huis, com uma presença criminal mais nítida do que no século nas regiões em que as casas de correção haviam encontrado um clima ade- XVII, sendo reguladas de acordo com uma organização interna bastante quado para seu crescimento, os países de língua alemã, as coisas caminhavam semelhante à primitiva. O trabalho mais praticado consiste em raspar a madeira de maneira bastante diversa. para obter as tintas. Todavia, como advertia os encargos do trabalho Durante os séculos XVII e XVIII, as casas de trabalho e de correção diário são reduzidos em cerca de um terço se comparados ao tempo original; foram se difundindo por países até agora não mencionados aqui, mas par- no tempo que sobra, os presos fazem pequenos trabalhos de artesanato para ticularmente na Alemanha. Essa difusão que coincide muitas vezes com o vender aos visitantes, algo que se tornaria comum com a diminuição do despertar econômico, político e cultural mais geral da idade do Iluminismo trabalho produtivo nos cárceres. (de fato, diversas instituições visitadas por Howard eram de construção Por volta do final do século XVIII, existem cerca de 60 casas de trabalho bastante recente) corresponde sobretudo a um declínio do uso das velhas em toda a Howard visitou muitas em Osnabrück, formas punitivas, consubstanciadas na pena capital ou em punições corporais. Bremen, Hannover, Brunswick e Hamburgo. Ele encontrou as prisons Por conseguinte, as teses de Rusche e Kirchheimer acerca de uma suposta propriamente ditas, usadas para a detenção de devedores e para a custódia à decadência generalizada da instituição carcerária neste período devem ser espera do processo ou da pena capital, num estado lastimável: velhas, anti- consideradas com uma certa atenção Antes de tudo, convém deixar higiênicas, muitas vezes com calabouços subterrâneos secretos, cheias de claro que estes autores entendem por decadência não uma diminuição do uso instrumentos de tortura, porém com pouquíssima população, algumas in- da pena de detenção, nem a difusão, portanto, das instituições concebidas clusive vazias. Já as casas de correção ou casas de trabalho reúnem muito com esse objetivo as casas de correção, contrapostas às velhas prisões de mais gente. Nelas, em geral, os homens raspam a madeira, como no modelo custódia, que Howard encontra sistematicamente semidesertas mas sim holandês, enquanto as mulheres, os velhos e os jovens fiam e tecem. Réus uma deterioração do regime interno do cárcere, no qual são abandonadas as de crimes menores encontram-se encerrados junto com mendigos, vaga- finalidades econômicas e, por isso, indiretamente, ressocializantes, sendo bundos ou simples pobres. Muitas vezes a distinção é marcada mediante a perseguidos, ao contrário, objetivos punitivos e terroristas. para as duas categorias, de manter relações uma com a outra, de Eles colocam em destaque as sociais da Revolução In- comerciar etc. Especialmente em Hamburgo, cidade com muito tráfico e bastante dustrial, que, criando pouco a pouco em toda Europa um enorme exército de desenvolvida, a casa de trabalho é florescente. Exatamente nos anos da última reserva de desempregados, torna o trabalho forçado (sub-remunerado) nos visita de Howard, as autoridades de Hamburgo elaboraram um plano de trabalho cárceres obsoleto e inútil e explicita cada vez mais a exigência de intimidação para os numerosos pobres da cidade, que tinha por base a internação nas casas e controle político-social. Se esse processo está conectado, como eles de trabalho. Inicialmente, o efeito foi muito positivo, tendo sido proclamado, mesmos afirmam, com a Revolução Industrial, então não é de se surpreender com orgulho, o desaparecimento da mendicância nas ruas da cidade. Porém, que ele se verifique principalmente na Inglaterra e que, numa situação mais apenas dez anos depois, em 1801, o déficit da administração era gravíssimo. O atrasada como a Howard não encontre senão indícios esporádicos de surgimento das máquinas de fiar havia reduzido em muito a possibilidade de se deterioração da instituição. Não é de se surpreender também que o processo continuar produzindo com os velhos sistemas a um custo Neste só se torne realmente comum sob o influxo do progresso industrial inglês, caso, efetivamente, a veloz propagação dos resultados, in primis, daquela tec- por um lado, e da revolução política francesa, por outro, nos primeiros anos nologia da Revolução Industrial inglesa, fez-se sentir também na exploração do do século XIX e sobretudo depois da Restauração. trabalho forçado na Inclusive, antes mesmo que se produzissem As prisões holandesas, para as quais Howard tece louvores mais do que para quaisquer têm ainda como regra geral de organização a dos 155 Ver T. Sellin, Pioneering in Penology, cit., p. 59. 156 Ver Max Grünhut, op. cit., pp. 19 153 Ver G. Rusche e O. Kirchheimer, op. cit., pp. 84 157 Ver J. Howard, op. cit., pp. 66 154 Ver J. Howard, op. cit., pp. 44 158 Ver G. Rusche e O. Kirchheimer, op. cit., p. 80 81</p><p>mudanças mais amplas no mercado de trabalho a introdução das máquinas A alimentação também piorou e os pequenos lucros que os presos podiam ampliava o exército de desocupados foi a importação das máquinas inglesas ter se reduziram a pouco ou a nada. As "poucas, mas interessadas, pessoas" e das idéias revolucionárias francesas que provocou o retorno aos métodos eram provavelmente produtores que competiam com a produção da instituição. Com efeito, é sob essa forma que se manifesta, na maior parte das vezes, o terroristas de gestão das prisões que vão caracterizar boa parte do século ataque ao trabalho Enquanto a indústria, no período do mercan- Howard visitou outras casas de trabalho em Copenhague, em Estocolmo tilismo, necessitou do sistema de privilégios e dos monopólios para desen- (fundada em 1750), em São Petersburgo (em construção), na (onde, volver-se, as autoridades puderam facilmente levar a melhor diante dos pro- porém, não havia trabalho), em Berlim (fundada em 1758), em Spandau, em testos e queixas dos concorrentes da instituição, como aconteceu na Holanda, Viena, na Suíça, em Munique, em Nuremberg (as casas e suíças que no início do século XVII. Porém, na medida em que a nova doutrina do visitou eram bem antigas). Existiam também muitas casas de correção no laissez-faire se desenvolve e se impõe, começa a hostilizar com sucesso Flandres austríaco (Bélgica). A mais conhecida de todas era a de Gant, La aquelas empresas que sobrevivem fora da lei do livre mercado, utilizando, Maison de Force, inteiramente reconstruída em 1775, sob o governo da por exemplo, o trabalho forçado. O trabalho no cárcere tende, assim, a desa- imperatriz Maria Teresa, segundo modelo de uma velha casa de parecer ou a se tornar um trabalho completamente improdutivo, com finali- Deve ter sido grande a influência da Maison de Force. Trata-se de um dos dades puramente disciplinares e terroristas. Além disso, pode cobrir tais ataques primeiros grandes estabelecimentos carcerários construídos na forma de com belas motivações de cunho social, pois na grave situação de desemprego estrela octogonal e baseados na separação celular (noturna) dos criminosos da qual se aproveita e na qual prospera, pode-se facilmente acusar o trabalho (o estabelecimento era dividido por sessões, correspondendo cada uma delas no cárcere de estar prejudicando os trabalhadores livres desempregados. E, a uma classificação específica: as mulheres e os vagabundos, por exemplo, de fato, as primeiras organizações do movimento operário integrarão esta- não tinham celas separadas, mas os criminosos sim). O trabalho, em manu- hostilidade ao seu patrimônio. faturas têxteis, era realizado em grandes ambientes comuns. O entusiasmo A relevância da instituição em e na praticamente de Howard pela ordem, a moderação e a salubridade da casa diminuiu bastante, nenhuma. Na França, desde o início, o internamento era visto mais como por ocasião de sua última visita, em 1783: instrumento de supressão da mendicância do que de trabalho para os de- Encontrei aqui uma grande mudança, e para pior: a útil e florescente Na França, pesa muito o atraso no desenvolvimento econômico do manufatura, arruinada; e as máquinas e os utensílios, todos vendidos Ancien Régime, durante o qual, e apesar de todos os esforços, de acordo em consequência da exagerada atenção do imperador às demandas com o Comitê sobre a Mendicância da Assembléia Constituinte francesa, a de umas quantas pessoas interessadas. O que devia ter sido o critério- guia de todas essas casas foi exatamente perdido aqui principal causa do péssimo funcionamento dos hospitais era o ócio que neles Howard encontra nos vários estabelecimentos que compõem o Hôpital Général de Paris milhares de reclusos de toda espécie: devedores, criminosos (condenados e à espera de julgamento), pobres, prostitutas, loucos, 159 Ver J. Howard, op. cit., pp. 145 onde também é reproduzida a planta da casa pessoas afetadas por doenças venéreas etc. As revoltas são contínuas, o de força: Max Grünhut, op. cit., p. 33; L. Stroobant, Le Rasphuis de Gand. "Recherches sur la répression du vagbondage et sur le système pénitentiaire recurso à tortura, muitas pessoas morrem por congelamento nos établi en Flandre au XVIIe et au XVIIIe siècle", in Annales de la Soc. d'Histoire et invernos rigorosos. O trabalho é quase A análise das prisões d'Archéologie de Gand, III (1900), pp. 191-307. Foi por iniciativa do conde 161 Ibidem, p. 150. Hippolyte Vilain que o novo edifício pôde ser construído. Ele expôs o seu progra- 162 Ibidem, p. 153. Sobre a Itália, cf. parte II. ma em um ensaio, também citado por J. Howard: Mémoire sur les moyens de 163 Ver Michel Foucault, Storia della follia, cit., pp. 109 corriger les malfaiteurs et les fainéants a leur propre avantage et de les rendre 164 Ibidem, p. 110. G. Rusche e O. Kirchheimer, op. cit., p. 91. utiles à l'Etat, Gand, 1775. cárcere de Gand foi considerado, em geral, como uma das etapas fundamentais para a definição do modelo carcerário moderno e é men- 165 Ver J. Howard, op. cit., pp. 165 Para uma análise das diversas tipologias cionado em praticamente todas as resenhas históricas sobre a matéria. humanas encerradas nos "hospitais" parisienses, ver Michel Foucault, Storia della follia, cit., pp. 126-127. 160 J. Howard, op. cit., p. 148. 83 82</p><p>de Paris é encerrada com a descrição da Bastilha, a prisão de Estado para os Ao descrever as condições de vida nas poorhouses determinadas pela criminosos políticos. Howard faz essa descrição seguramente de segunda nova lei sobre os pobres, Marx observa como as rações alimentares dos mão, uma vez que ele foi grosseiramente impedido de visitar a Bastilha pobres internos eram piores do que as dos Isso ocorre porque, enquanto na Inglaterra, em 1834, a nova instituição das casas de trabalho É importante considerar, na narrativa de Howard, como, em geral, há para pobres é uma iniciativa criada em conformidade com a situação e os uma correspondência não casual entre trabalho no cárcere e as condições de objetivos que a burguesia se fixa naquele momento, o cárcere que, cada vida dos detidos. É falso estabelecer uma correspondência direta entre trabalho vez menos povoado, tem uma eficácia social muito menor ressente-se e comportamento socializante, de um lado, e não-trabalho e comportamento ainda do movimento reformador do século anterior, daquilo que, da Restau- terrorista, de-outro, visto que desde o surgimento da instituição os dois com- ração em diante, será depreciativamente definido como filantropia iluminista. portamentos sempre coexistiram, o que fica bem evidenciado na concepção Poucos anos depois, tanto na Inglaterra como no resto da Europa, a instituição do caráter punitivo do trabalho no cárcere algo que, segundo a ética capi- sofrerá uma brusca mudança de direção, batendo-se contra o princípio do talista, também é válido para o "trabalho livre"; porém, as condições materiais trabalho produtivo e adotando-se com ferocidade o princípio da intimidação. de vida no interior do cárcere -condições higiênicas, possibilidade de comu- No clima de intenso debate ideológico da segunda metade do século nicação e de solidariedade entre os detidos, alimentação, possibilidade de XVIII, desenvolve-se na França a discussão sobre o pauperismo, o delito dispor de uma pequena soma de dinheiro pessoal etc. são diferentes se e os seus remédios. Em 1977, a Gazette de Berne organiza um concurso essas condições são organizadas em torno da hipótese de um trabalho pro- para "um plano completo e detalhado de legislação criminal". Dele parti- dutivo ou não. E isso se dá simplesmente pela razão óbvia de que a admi- cipa o médico Jean-Paul Marat, o futuro chefe revolucionário, com um nistração do cárcere tem diante de si uma dupla necessidade: uma exploração plan de législation criminelle, que será publicado em 1780, em organizada da maneira mais racional possível, e a reprodução, dia após dia, Na primeira parte, Dos princípios fundamentais de uma boa legis- da força de trabalho (essa questão vai além da mera subsistência física). lação, depois de enfocar a ordem social e as leis, Marat trata Da obrigação Isso determina uma situação na qual o teor de vida do detido é sempre de submeter-se às Seguiremos de perto a sua argumentação para inferior ao mínimo do trabalhador livre ocupado (de acordo com o dito prin- melhor compreender a consciência e a sensibilidade que esta época tinha a cípio da less eligibility), mas pode ser superior ao do trabalhador desempre- respeito dos problemas tratados até aqui. Marat baseia todo o seu raciocínio gado e pode, paradoxalmente, significar uma "melhoria", seja em termos de na obrigação de submeter-se às leis, na análise da situação material, concreta, condições de vida, seja em termos de consciência, para o subproletário. Isso a que essas leis se referem. Após observar como "as riquezas devem ser, em explica porque, num regime de desemprego elevado, a situação institucional pouco tempo, acumuladas no seio de um restrito número de famílias", com interna do cárcere se torna mais e se retorna ao método duro, o que a conseqüente formação de "uma multidão de pessoas indigentes que deixarão tende a acontecer em toda a Europa na primeira metade do século XIX. os seus descendentes na ele prossegue: Pode-se observar, em geral, ao menos para o período aqui examinado, que a Numa terra coberta de propriedades de outros e onde não é possível força de trabalho e as condições de vida e de trabalho dos prisioneiros tendem apropriar-se de nada, eles estão condenados a morrer de fome. Ora, a seguir, num grau mais baixo, as da massa proletária no seu conjunto. Se pertencendo à sociedade apenas pela via das desvantagens que esta isso não acontece, o cárcere corre o risco de perder, para a classe dominante, comporta, seriam eles obrigados a respeitar suas leis? Certamente todo o seu poder de intimidação. Não tem sido raro, em época de grandes transformações sociais e de intenso pauperismo, que os estratos mais 167 Ver Karl Marx, Il Capitale, cit., I, 3, p. 133. deserdados ganhem força na luta pelo fato de que as condições de vida na 168 Ver Jean-Paul Marat, Disegno di legislazione criminale, Milão, 1971. Para prisão ainda são preferíveis àquelas que têm de suportar do lado de fora. todas as informações posteriores sobre esta obra, remeto ao prefácio de M. A. Cattaneo e à douta introdução de M. A. Aimo. 169 Ibidem, pp. 71 166 Ver J. Howard, op. cit., p. 174. 170 p. 72. 84 85</p><p>não. Se a sociedade os abandona, eles regressam à sociedade natural choupana de camponês; arrancado do arado pela cruel doença que me e, quando reivindicam com a força aqueles direitos aos quais renun- consome, tornei-me um fardo para o patrão a quem servia. Por isso, ciaram com o único intuito de garantir maiores vantagens, qualquer não me restou outro recurso para me sustentar senão o de mendigar autoridade que se lhes oponha é tirânica e o juiz que os condena à meu pão, mas até este triste recurso acabou me faltando (...) Desesperado morte não passa de um assassino infame. Se é verdade que a socie- pelas suas negativas, privado de tudo e impelido pela fome, aproveitei dade, para conservar-se, deve obrigar a respeitar a ordem estabele- da escuridão da noite para arrancar de um transeunte aquela miséria de cida, é igualmente verdade que está na obrigação de pô-los a salvo esmola que a dureza do seu coração me havia recusado. E porque fiz das tentações que nascem do estado de A sociedade uso dos direitos naturais vocês me mandam para o deve, portanto, assegurar-se dos meios de sustento adequados e da Qual é a pergunta Marat. Autoriza o roubo e a anarquia? possibilidade de vestir-se convenientemente, garantindo, além disso, Certamente que não! a proteção do modo mais adequado, o socorro no momento em que aparece a enfermidade e o cuidado na Eles não podem, de O mal é conhecido, mas o que se fez para remediá-lo? Os mendigos fato, renunciar aos seus direitos naturais a não ser quando a sociedade são tratados como vagabundos e mandados para a prisão. Esta não é a lhes tiver organizado um modo de vida preferível ao estado de natu- boa política. Não discutirei se o governo tem ou não tem o direito de reza. Por conseguinte, a sociedade não tem o direito de punir aqueles privá-los desta maneira da liberdade, mas o que posso dizer é que estas que violam as suas leis se não cumpriu com suas obrigações para casas de detenção onde eles são encerrados só podem ser mantidas às com todos os membros que a expensas do público, e a preguiça que elas alimentam, ao invés de remediar a pobreza individual, aumenta a pobreza coletiva. Qual é então Depois, Marat passa a examinar estes princípios no que concerne a um o remédio? Ei-lo. Não manter os pobres no ócio, ocupá-los, oferecer- delito em particular: o roubo. Mas "qualquer roubo pressupõe o direito de lhes a possibilidade de satisfazer as suas necessidades por intermédio assim, depois de refutar as várias teorias correntes sobre a de seu É necessário ensinar-lhes algum ofício, é necessário origem de tal direito, dá a palavra "a um desventurado que poderia se dirigir que eles vivam como homens livres. Isso implica a abertura de muitas aos juízes" dessa maneira: oficinas públicas onde os pobres sejam acolhidos Sou culpado? Ignoro. Mas o que eu não ignoro é que não fiz nada Esses problemas, nos anos de profunda crise econômica que precedem a que não tenha devido fazer. Encarregar-se da própria sobrevivência grande revolução, estavam à vista de qualquer Nas cidades e nos é o primeiro dos deveres do homem e vocês mesmos não conhecem campos, um numeroso "exército de reserva" de desocupados era obrigado, nenhum dever que esteja por cima deste: quem rouba para viver, já que para não morrer de fome, a mendigar, vagar, roubar, e, nos casos mais não pode agir de outra maneira, não faz mais do que lançar mão dos desesperados, a converter-se em No campo, a dos seus direitos. Vocês me acusam de ter perturbado a ordem da Porém, como querem que eu me importe com essa suposta ordem que sempre me causou tanto mal!? Que vocês preguem a submissão às 173 Ibidem, pp. 174-175. leis, vocês a quem esta submissão assegura o domínio sobre tantos 174 Ibidem, p. 78. infelizes, é coisa que em nada me surpreende (...) Era preciso que 175 Cf. Georges La grande paura del 1789, Turim, 1953, primeira parte vocês trabalhassem de verdade. É necessário que isso seja dito. Mas (N. do T.: edição brasileira grande medo de 1789. Rio de Janeiro: Campus, 1979). A bibliografia em língua francesa sobre estes temas é muito rica. Limito-me será que eu tenho a possibilidade de fazê-lo? Reduzido à indigência aqui a recomendar as seguintes obras: C. Paultre, De la répression de la mendicité pelas injustiças de um vizinho poderoso, em vão procurei refúgio na et du vagabondage en France sous l'Ancien Regime, Paris, 1906; L. Lallemand, Historie de la charité, tomo IV, Les temps modernes, Paris, 1910 e 1912; Crimes et em France sous l'Ancien Regime, XVIIe-XVIIIe siécles (volume 171 Ibidem, pp. 72-73. (coletivo), Paris, Cahiers des Annales, 33, 1971; A. Vexliard, Introduction à la 172 Ibidem, p. 73. sociologie du vagabondage, Paris, 1956. 86 87</p><p>miseráveis contra os procedimentos que Marx definiu como "acumulação mas também não foi a causa menos importante do "grande medo" que primitiva" ganhava força. Os direitos coletivos, que sempre foram de grande invadiu a França na iminência da revolução de 1789. ajuda para os camponeses pobres, foram sendo aviltados enormemente, na Como resultado da intensa atividade reformadora da segunda metade do segunda metade do século XVIII, pelos grandes proprietários e arrendatários, século XVIII, o Código Penal revolucionário de 25 de setembro de 1791 apoiados pelo estabeleceu, ao mesmo tempo, a introdução do princípio da legalidade nos por toda a parte, no final do Antigo Regime, encontra-se gente delitos e nas penas e a supremacia da pena detentiva sobre qualquer outra procurando desesperadamente por terra; os miseráveis invadem os forma punitiva. Contemporaneamente, insistia-se na necessidade de fazer terrenos comunais e pululam nos bosques, nas charnecas, nas com que os hospitais e as prisões fossem lugares nos quais a defesa social margens dos pântanos; protestam contra os privilegiados e os tivesse o trabalho efetivamente como O princípio que postula que a burgueses que empreendem a exploração das terras que lhes definição do delito e da pena por ele previsto deixe de ficar ao arbítrio do juiz pertenciam através de encarregados ou chefes de quadrilhas; exigem e passe a ser codificado, de forma taxativa, por lei, e a exigência de uma a venda e até mesmo a distribuição dos domínios do rei e às vezes justa proporção entre a sanção e a gravidade do fato cometido, exprimem um dos bens do clero; um violento movimento se manifesta contra as aspecto não secundário da luta que uma burguesia já desenvolvida e segura grandes manufaturas, cujo desmembramento teria dado ocupação a de si empreende contra a antiga forma mas representam também numerosas a formalização da práxis, por quase dois séculos enraizada, de tratar a questão Por isso, "pelo menos um décimo da população rural mendigava durante penal. Como observa com agudez o soviético B. Pasukanis, em 1924: o ano Com as pequenas comunidades locais não eram A privação da liberdade por um arco de tempo estabelecido preven- hostis a esses vagabundos. Em alguns "cadernos de queixas", protesta-se tivamente nas sentenças do tribunal representa a forma característica contra o seu internamento nas casas de detenção, provavelmente com argu- através da qual o direito penal moderno, isto é, o direito penal burguês- mentos parecidos com os de Marat. Esses desocupados, mendigos, vaga- capitalista, coloca em prática o princípio da retribuição equivalente. bundos, que invadiam campos e cidades, se organizavam em grupos; na Trata-se de um meio profundamente ligado, embora inconscien- medida em que o grupo crescia, aumentava a miséria e, com o maior número temente, à idéia do homem abstrato e do trabalho humano abstrato e a miséria, crescia o desespero: a mendicância se transformava em banditis- medido pelo tempo (...) Para que se levasse adiante a idéia da possi- mo. Quem não atendia aos pedidos de esmola corria o risco de ter seus bilidade de expiar o delito com um quantum de liberdade, determi- campos de cultivo arrasados, o gado mutilado, a casa incendiada, quando nado de modo abstrato, era necessário que todas as formas da riqueza não era ameaçado com o chumbo dos Por outro lado, "quando social fossem reconduzidas à forma mais simples e abstrata do tra- os hospícios de mendigos ficavam muito cheios, as portas eram balho humano medido pelo tempo (...) capitalismo industrial, a o que fazia com que todo mundo se desse conta da inutilidade daquelas Declaração dos Direitos do Homem e do cidadão, a economia po- instituições, arrancando protestos sobre a contaminação que se produzia entre lítica ricardiana e o sistema de reclusão por tempo determinado se os pobres e os verdadeiros criminosos. afirma que esta não foi a configuram como fenômenos de uma mesma época Em Hegel, autor que representa o grau máximo de consciência desen- volvido pela burguesia do período "clássico", o princípio de proporcionalidade 176 Ver Georges Lefebvre, op. cit., pp. 13-14. 177 Ibidem, p. 11. 178 Ibidem, p. 17. 179 Ibidem, pp. 20 tema do banditismo na Itália, neste período, será tratado de Cf. G. Rusche e O. Kirchheimer, op. cit., pp. 81-82; Michel Michel Foucault, Storia della follia, cit., p. 110. forma mais detalhada no segundo item da segunda parte. 180 Georges Lefebvre, op. cit., p. 25. 182 E. B. Pasukanis, La teoria generale del diritto e il marxismo, Bari, 1975, p. 189. 88 89</p><p>da pena assume este E é nas casas de trabalho, portanto, na que a conexão entre a reforma penal e as casas de trabalho aparece clara e concreta das autoridades públicas e dos mercadores que as adminis- evidente. Nas obras dedicadas ao direito, que sustentam a validade destes travam que nasce a recusa do uso da pena de morte e das punições corporais, princípios, também se vê claramente a conexão entre pobreza e desemprego, a idéia de que a um determinado delito deva corresponder um quantum de e entre pobreza e as amplas e numerosas formas de pena, de que a situação no interior do cárcere deva ser mais o Por outro lado, a formalização da potestade punitiva inerente aos princípios da burguesia do século XVIII acrescentará a esta práxis revolucionários não faz mais do que levar às suas consequências mais rigorosas já existente a luta pelo princípio de legalidade e de taxatividade. Cabe observar o conceito expresso por Hegel e Pasukanis: o conceito de trabalho representa que esses princípios que não correspondiam nem derivavam da luta entre a ligação necessária entre o conteúdo da instituição e a sua forma legal. a burguesia e o proletariado, mas sim da luta da burguesia contra o Estado cálculo, a medida de pena em termos de valor-trabalho por unidade de tempo, absoluto se converterão, cada vez mais, numa arma nas mãos desse mesmo só se torna possível quando a pena é preenchida com esse significado, quando proletariado. O grande pensamento iluminista da segunda metade do século se trabalha ou quando se adestra para o trabalho (trabalho assalariado, trabalho XVIII expressará e retomará esse desenvolvimento, e já não se trata mais capitalista). Isso é verdade mesmo se não se trabalha no cárcere: o tempo (o apenas de uma enunciação dos princípios que exatamente nesse momento, tempo medido, escandido, regulado) é uma das grandes descobertas deste em muitos Estados da Europa, desenvolvem e difundem o modelo da casa de período também em outras instituições subalternas, como a Ainda correção. E, sem dúvida, não é somente aos políticos e reformadores sociais que no tempo transcorrido no cárcere não se reproduza o valor do bem prejudicado com o delito o qual, como observa Hegel, encontra-se na base da igualdade estabelecida pela lei de talião a natureza propedêutica, subal- 183 No parágrafo 101 da sua Filosofia del diritto, Hegel afirma, a propósito da lei terna, da instituição faz com que, para este fim, baste a experiência do tempo do talião: "Esta identidade, que fundamenta o conceito, não é a igualdade na escandido, do tempo medido, a forma ideológica vazia, que nunca é apenas natureza específica da violação, mas sim com o que é em si, segundo o valor da idéia, mas que morde na carne e na cabeça do indivíduo que se deve reformar, mesma". E depois: estruturando-o com parâmetros utilizáveis pelo processo de exploração. "O valor, enquanto igualdade interna das coisas, que, em sua existência específica são completamente distintas, é uma determinação que se apresenta já o conteúdo da pena (a "execução") está, desse modo, ligado à sua forma nos contratos e também na ação civil contra o delito, e cuja representação é jurídica, do mesmo modo que na fábrica a autoridade assegura que a elevada à universalidade, superando a natureza imediata da coisa" (Georg exploração possa assumir o aspecto de contrato. E não é, de fato, o valor Hegel, Lineamenti di filosofia del diritto, Bari, 1954, p. 98-99). que determina, segundo Hegel, tanto a igualdade da troca contratual quanto a jovem Marx desenvolve este conceito em seu texto sobre a lei contra dos dois termos da lei de Uma vez mais, não se trata de analogia, roubo de lenha. Ver Dibattiti sulla legge contro i furti di legna, in Karl Marx, mas sim da expressão dos dois momentos reciprocamente essenciais da Scritti politici giovanili, cit., pp. 183-184. propósito desta pesquisa exclui estrutura capitalista: circulação e produção. Ou seja, uma vez mais o reino do qualquer discussão sobre teorias penais. Todavia, convém observar a íntima con- direito (a circulação dos bens), que sobretudo no campo penal representa o tradição que permeia a doutrina hegeliana da retribuição. Ela é, de um lado, uma grande orgulho da burguesia revolucionária, está intrinsecamente conectado tradução filosófica do endurecimento da burguesia quando chega ao poder, no que à relação de exploração, i. e., à autoridade e à violência que reinam na pro- diz respeito à questão criminal: sua negação do utilitarismo iluminista deriva, antes de tudo, da necessidade de afirmar o valor geral e universal da ordem e do respeito à dução (na fábrica, no cárcere). Tais conquistas burguesas são, por lei. Porém, ao mesmo tempo, e nas palavras do próprio Hegel, ela é o reconhecimento conseguinte, muito mais destinadas a consolidar a hegemonia da própria do criminoso como "ser racional" (ver parágrafo 100 da Filosofia del diritto). Não é por acaso que Marx concebe a sua visão pessoal da questão penal discutindo a 184 Ver as brilhantes páginas de Michel Foucault, Surveiller et punir, cit., pp. 158 teoria hegeliana. Ver Karl Marx e Friedrich Engels, La sacra famiglia, cit., pp. 233-234 sobre o novo modo de administrar o tempo "par découpe segmentaire, par e Karl Marx, Capital Punishment, in Selected Writings in Sociology and Social sériation, par synthèse et totalisation". Sobre o discurso, num sentido mais Philosophy, Penguin Books, 1963, pp. 233-234. Sobre a função da teoria hegeliana, geral, ver pp. 222 ver G. Rusche e O. Kirchheimer, op: cit., p. 101. 185 Ver supra nota 184. 90 91</p><p>classe sobre o conjunto da estrutura social - e, portanto, objetivamente, banditismo, a formas primitivas de luta de classe, como os incêndios nos contra o proletariado enquanto tal do que a lutar contra um Estado absoluto, campos, a revolta contra as máquinas e assim por o qual, por sua vez, na medida em que torna seus esses princípios, encontra- se cada vez mais em mãos burguesas. Trata-se, portanto, de conquistas Diante deste fenômeno por eles mesmo criados, o capital e as forças genuinamente burguesa-revolucionárias, no sentido de que revolucionam a políticas que o representam não precisam responder mais com uma força de trabalho forçada, que reduza os salários dos trabalhadores livres e que, ao velha gestão da questão punitiva, adotando os novos critérios das relações mesmo tempo, seja adestrada e recuperada para o trabalho na A capitalistas de produção. instituição carcerária permanece assim como uma aquisição definitiva e cada Com efeito, enquanto a burguesia revolucionária encontrava no cum- vez mais dominante na prática punitiva burguesa, muito embora a sua função primento da pena de detenção com trabalho uma espécie de concretização ao menos na Europa e até o momento em que esta situação perdurar, i. e., material da sua concepção da vida baseada no valor-trabalho medido pelo depois da metade do século XIX adquira um tom cada vez mais terrorista e de tempo, as massas populares a ela subordinadas e também, às vezes, prota- mero controle social: o princípio da disciplina tout court prevalece sobre o da gonistas da Grande Revolução que sacudiu a Europa, consideravam a estrutura disciplina produtiva da A marca reacionária da Restauração que carcerária de uma forma totalmente diferente. A destruição da Bastilha não corresponde nos países mais avançados à formação de uma frente na qual a foi um fato isolado. É certo que se tratava de uma prisão especial, uma burguesia, já vitoriosa, acolhe os restos teóricos e práticos do velho absolutismo fortaleza para os presos políticos, porém não deixa de ser irônico perceber se por um lado expressa ainda uma resistência anti-liberal, anti-burguesa, por que, como já vimos, as Workhouses inglesas em 1834 tenham sido imedia- outro caracteriza-se cada vez mais por uma postura anti-proletária. tamente rebatizadas pelas massas populares como as bastilhas da lei sobre A emergência de um incipiente potencial político das classes subalternas os pobres. Desde então, o ataque às prisões e a libertação dos detidos tornaram- impede, a partir da Restauração, que a questão criminal e a carcerária em se uma constante em qualquer sublevação ou insurreição popular. Esses assaltos voltados em geral para a libertação dos "políticos" ou chefes particular sejam desligadas dos conflitos de classe mais gerais. que até aquele momento fora uma relação inconsciente entre as novas classes do populares, bandidos importantes etc., pessoas de um ou de outro modo ligadas regime capitalista na sua gênese torna-se cada vez mais uma relação cons- aos sentimentos das massas abriam as celas, sem falsos moralismos e guiados por um agudo instinto de classe, também de vagabundos ciente, uma hostilidade política. O aumento das é o que impulsiona vários governos europeus, nas primeiras décadas do século XIX, etc. A lição foi aprendida desde o início de modo tão claro que já Bentham, a ocupar-se cada vez mais intensamente da questão da reforma carcerária, em seu projeto do Panopticon, recomenda que as paredes externas do cárcere enviando observadores para outros países, sobretudo para os Estados Uni- fossem suficientemente fortes para resistir aos ataques populares, mas não a As primeiras pesquisas estatísticas sobre a criminalidade, que não por ponto de poder resistir a tiros de canhão. bom filantropo inglês oferecia as acaso nascem neste período, mostram, sobretudo na Inglaterra e na França, oportunas indicações da arte militar contra um inimigo comum, que se um rápido aumento dos delitos contra a Já com a codificação encontrava fora e dentro do cárcere. napoleônica de 1810 começa um lento mas contínuo movimento da práxis e Nas regiões menos desenvolvidas da Europa, ainda que com alguns anos de atraso, na medida em que aumenta enormemente o exército industrial de reserva, aumenta o pauperismo e a criminalidade. Ademais, depois da revolução e da experiência jacobina, num momento em que a organização da classe 186 A expressão encontra-se em C.I. Petitti di Roreto, op. cit., p. 372. operária ensaia seus primeiros passos, é privilegiado o terreno da criminalidade, 187 Provavelmente o relatório mais famoso foi o elaborado por G. de Beaumont e A. da solução pessoal violenta, é nele que tem lugar o confronto de classe. o de Tocqueville, On the Penitentiary System in the United States and Its Appli- grande número de desempregados, a desorganização das massas e a miséria cation in France, Southern Illinois Press, 1964. No livro de C. I. Petitti, já citado, extrema fazem deste período aquele no qual o salário real desceu aos níveis estes relatórios encontram-se amplamente documentados (ver pp. 372, 373). Ver mais baixos, desde o início do desenvolvimento capitalista. Na realidade, também o ensaio de Massimo Pavarini incluído neste livro. tudo induz à mendicância, ao roubo, e em alguns casos à violência e ao 188 Ver G. Rusche e O. Kirchheimer, op. cit., pp. 96-97. 92 93</p><p>da doutrina penal em direção a uma maior severidade, acompanhada da crítica vagabundo etc. da tentativa de sobreviver cometendo delitos, mendigando ou da filantropia coisas do gênero. código penal francês prevê, em essência, o uso de três tipos de sanções: Porém, dado que o que está em jogo para o desocupado, para o pobre destas a pena de morte, os trabalhos forçados e a casa de correção. A pena de primeiras décadas do século XIX, é exatamente a sobrevivência, a possibilidade morte não é, de modo algum, uma medida excepcional, como tendia a ser de matar a fome de si mesmo e da sua família, e não a aceitação ou a recusa de configurada na legislação revolucionária precedente, mas se aplica a quase ser contratado em condições de exploração, o efeito intimidador torna-se todas as classes de delitos contra a segurança do Estado, falsificação de extremamente difícil de ser alcançado, já que basta que o cárcere assegure o moeda, roubo qualificado, incêndio doloso, golpeando assim, de um lado, mínimo vital para que a situação de detenção se torne melhor do que viver em todo tipo de subversão que tenha uma repercussão político-militar imediata liberdade. Multiplicam-se assim, neste período, os protestos contra a obra e, por outro, os dois delitos típicos das classes subalternas das cidades e do reformadora do final do século XVIII, meritória sim, sob certos aspectos, mas campo. Para os delitos menos graves destas mesmas classes como a que tinha melhorado excessivamente as condições de vida no cárcere, dando vagabundagem e a mendicância, a rebelião não configurada como um delito mais atenção como se dizia ao aspecto material da detenção em detrimento contra a segurança do Estado, os delitos de greve e de associação etc. era do Afirma-se que não é possível que um preso possa gozar de um previsto o uso da casa de correção, de uma pena breve, centrada sobretudo teor de vida igual ao de qualquer "artesão" sem considerar que o padrão na obrigação ao trabalho, formalizando assim uma práxis a que, como já se de vida deste último é, muitas vezes neste período, inferior ao nível mínimo de viu, se recorria desde a fundação das primeiras casas de trabalho ou de subsistência. Acontece assim que nos cárceres os presos começam a ficar correção. Também em outros códigos, como o da Baviera de 1813, obra de doentes e também a morrer por inanição; a política malthusiana tende a colocar Anselm Feuerbach, o refinamento da técnica jurídica e a aceitação cada vez em prática sua própria teoria de extermínio do mais completa dos direitos civis fundamentais em matéria penal caminharam É nesse clima que a atenção dos reformadores se volta então para as juntos com o reforço e o endurecimento da experiências americanas. Nos Estados Unidos, desde o final do século anterior, Como já foi visto anteriormente, um dos objetivos principais que deviam havia ganho forma, no estado quaker da Pensilvânia, um tipo de instituição ser alcançados com o trabalho forçado foi, desde o início da experiência carcerária, a do regime de isolamento celular contínuo, dia e noite, típico da carcerária, um efeito nivelador que empurrasse para baixo os salários externos. concepção calvinista baseada numa ética do trabalho completamente espiritual Esse efeito, todavia, só era atingido parcialmente através do simples (exatamente o que se estava buscando na Europa!) e que não concedia nada mecanismo econômico, ou seja, da disponibilidade de força de trabalho não- ao trabalho produtivo. Ao contrário, o trabalho era a base do sistema silencioso livre em certos ramos da produção pelo menos devido ao número exíguo de Auburn, que previa o isolamento noturno e a reunião diurna, em silêncio, de trabalhadores deste tipo mas que era provocado, mais do que por para o Este último sistema logo prevaleceu na o que qualquer outro motivo, pela imagem terrorista do cárcere como destino indica a existência de grande necessidade de mão-de-obra, ao contrário da obrigatório para quem se recusava a trabalhar ou a trabalhar em condições Europa, nos novos e prósperos estados particularmente duras. De acordo com o chamado princípio da less eligibility, Nesse momento, no Velho Continente, a discussão sobre a reforma pe- um trabalho livre externo era sempre preferível ao cárcere. No período em nitenciária fundiu-se com a discussão sobre os dois sistemas, que se tornaram, exame, caracterizado pelo desemprego e pelo pauperismo crescentes, o único depois, mais de dois, devido às várias possibilidades de cruzamento que efeito intimidador possível, para quem não tinha nenhuma possibilidade de encontrar trabalho, é de tipo político, no sentido de afastar o desocupado, o 191 Ver C. I. Petitti de Roreto, op. cit., pp. 374-375 e 469. 192 Ver G. Rusche e O. Kirchheimer, op. cit., pp. 106-107. 193 Ver os dados mencionados ibidem, p. 109. 189 Ibidem, pp. 98-99. Essa crítica se tornará, mais tarde, no século XIX, um lugar 194 Ver ibidem, cap. VIII, p. 127; o capítulo III do já mencionado trabalho de Petitti comum quando se fala da política social do século XVIII. se dedica à comparação entre os diversos sistemas e traz uma vasta bibliografia. 190 Ibidem, pp. 99-100. 195 Ver G. Rusche e O. Kirchheimer, op. cit., p. 130. 94 95</p><p>geraram novas soluções. Participavam dessas discussões homens que, embora difícil de ser posto em prática e de permitir o uso excessivo da violência por portadores de uma ideologia já diferente, continuavam na sua atividade a parte dos guardas, na tentativa de fazer os réus respeitarem as regras. tradição dos philosophes iluministas. Cultores das mais variadas ciências o completo desinteresse da cultura européia em relação ao problema do humanas, eles eram frequentemente autores de ensaios, relatórios, diários de trabalho no cárcere se manifesta no fato de que a diferença fundamental viagem, projetos de reforma sobre os mais diversos temas entre si, porém entre os dois sistemas o de ser possível, num deles, a realização de um todos eles, em essência, relacionados à organização global, nas suas mil verdadeiro processo de trabalho produtivo, e no outro não passava facetas, da nascente civilização burguesa e, em particular, do seu normalmente despercebida, ou pelo menos não era percebida como a diferença Muitas vezes comprometidos pessoalmente em atividades legislativas ou essencial. Ao contrário, para o Tesouro dos diversos Estados europeus, era administrativas, seu interesse pelo problema penitenciário, como se começava muito mais importante o fato de que o sistema filadelfiano exigia a construção então a chamar, nunca era casual, mas sim, sempre, muito consciente das de celas individuais, o que significava grandes despesas. Foi por este motivo possibilidades práticas, concretas, de realização. Carlo Ilarione Petitti di Roreto, que muitos países favoráveis a esse modelo não levaram adiante na prática. típico exemplo piemontês deste tipo de homens, oferece-nos, na sua obra de sistema do isolamento contínuo foi o que acabou por prevalecer em 1840 Della condizione attuale delle carceri e dei mezzi di um diversos congressos penitenciários internacionais, a começar pelo de confronto sobre o estágio em que se encontrava a reforma naqueles Frankfurt, realizado em 1847. Isso aconteceu pelas razões enunciadas no anos, nos diversos países europeus, e, correspondentemente, sobre a situação início, isto é, pelo desinteresse de sociedades inundadas de mão-de-obra da discussão pelo trabalho forçado, possível no sistema de Auburn, e a preferência, ainda Ambas posições partiam do pressuposto da necessidade de evitar a que não admitida abertamente, pela atitude terrorista que, de fato, a escolha corrupção do contato entre as várias categorias de detidos, corrupção que, do sistema filadelfiano expressava, com o horror que poderia produzir no dizia-se, estava na base do fenômeno então indicado como o mais preocupante réu em potencial a perspectiva de passar em solidão contínua muitas vezes da questão penal, i.e., o aumento da reincidência. Se, por um lado, os par- acompanhada de algum "trabalho" inútil e repetitivo, que era na realidade tidários do sistema de Auburn, que eram a denunciavam o notável tortura física cinco, dez ou vinte anos de pena. As complexas razões que aumento dos casos de loucura e suicídio observado nas penitenciárias temos tentado explicar são a causa da grave deterioração das condições de administradas segundo o modelo filadelfiano do isolamento contínuo, os vida no cárcere, acompanhada do uso cada vez mais limitado do defensores deste último faziam suas as teorias dos quakers sobre a grande Um outro obstáculo estava ligado a considerações de ordem Na eficácia moral da meditação e do conforto que pessoas de sentimentos época em que nasce a fábrica moderna, com as suas caras e volumosas comprovadamente sãos podiam dar aos réus, algo previsto até nos sistemas maquinarias, com o desenvolvimento de uma organização mais estruturada mais Além disso, acusavam o sistema do silêncio de ser muito do trabalho, somente uma política que tendesse com extrema determinação a transformar o cárcere em fábrica, investindo capital e por aí em diante, 196 Ver supra nota 33. poderia garantir a eficiência do trabalho no cárcere. 197 Ver C. I. Petitti de Roretto, op. cit., pp. 374 Por outro lado, não eram apenas os titubeios reacionários contra o regime 198 Petitti enumera, entre os defensores deste sistema, "os senhores Lucas, de vida no interior do cárcere que desencorajavam essa opção. As próprias Mittermayer, Béranger, madame Fry, Aubanel, Leone Faucher e Grellet Wammy" massas populares tinham bastante consciência da ameaça da concorrência 450), além dele mesmo. que o trabalho no cárcere representava para o trabalho livre, especialmente 199 Defendem a segregação contínua "Moreau-Cristophe, Aylies, Demetz, Blouet, Julius, Craword, Russel e Ducpectiaux" 452). Os nomes citados nota e na externo. Para homem, para quem o mundo sensível torna-se uma simples idéia, anterior estão entre os maiores seja ao nível teórico, seja ao nível as simples idéias se transformam, em oposição, em seres sensíveis. As quimeras prático,das políticas sociais européias na primeira metade do século XIX. A conexão do seu cérebro assumem forma Dentro do seu espírito, cria-se um mundo entre confinamento, concepção penitencial ou espiritual, como se dizia, da pena e de fantasmas sensíveis. É este o mistério de todas as visões religiosas; da loucura, é assim sintetizada pelo Karl Marx de La sacra famiglia: "(...) descreve é esta, ao mesmo tempo, a forma universal da loucura" (op. cit., p. 239). com exatidão a situação em que o homem é lançado no isolamento do mundo 97 96</p><p>numa conjuntura de desemprego elevado. movimento operário tornou-se fim de que se acabasse com a concorrência do trabalho forçado em relação assim, por longos anos, um dos principais ao trabalho dos ao trabalho livre, procurando assimilar a exploração de que é objeto o primeiro Nos Estados Unidos, por exemplo, talvez o único país que tenha tido expe- ao nível de exploração do segundo, vai exatamente na direção indicada pelo riências significativas de trabalho carcerário, o contínuo deste, desde proletariado parisiense. A fugaz alusão de Marx permaneceu por longos anos finais do século XIX até 1940, foi obra sobretudo da hostilidade de um um fato isolado na política que o movimento operário teria desenvolvido movimento operário forte e organizado. sobre a questão carcerária. Em todo caso, trata-se de uma história que começa Isso também ocorreu numa situação mais próxima daquela que está se onde esta termina. Por volta da metade do século XIX, em todos os países examinando, a da revolução parisiense de 1848. Uma das primeiras vitórias burgueses a instituição carcerária se alinha, já madura e pronta a cumprir das massas populares foi a abolição do trabalho no cárcere, imediatamente com seus compromissos, entre os vários momentos da organização social restabelecido depois da derrota Todavia, me parece interessante capitalista. A história posterior da instituição que, deste momento de sublinhar que a reivindicação fundamental da Comuna de Paris foi a maturidade em diante, é mais do que qualquer outra coisa, a história da sua consecução da palavra de ordem do "direito ao trabalho", por conta da qual crise, assim como a história do movimento operário organizado já faz parte foram abertos os ateliers nacionais, segundo a proposta de Considérant e de uma sociedade distinta. Fourier. Ainda que para a consciência da época os dois problemas provavelmente não estivessem ligados, parece-me que há uma exata correspondência do ponto de vista do proletariado entre a luta pelo direito de que todos tenham trabalho e a luta contra o trabalho carcerário. proletariado parisiense fazia praticamente sua a política social mercantilista de dois séculos antes, mas eliminando, obviamente, a função de freio que a empresa pública constituída pela casa de correção exercia sobre o trabalho livre. Essa tendência será confirmada na posição que muitos anos mais tarde Marx assumirá a respeito de uma reivindicação do programa de Gotha do Partido Social Democrático A indicação dada por Marx de lutar a 200 Ver G. Rusche e Kirchheimer, op. cit., pp. 94-95. 201 Marx comenta: "Kleinliche Forderung in einem allgemeinen Arbeiterprogramm. Jedenfalls musste man klar aussprechen, dass man aus Konkurrenzneid die gemeinen Verbrecher nicht wie Vieh behandelt wissen und ihnen namentlich ihr einziges Besserungsmittel, produktive Arbeit, nicht abschneiden will. Das war doch das Gerinste, was man von Sozialisten erwarten durfte" (Karl Marx, Kritik des Gothaer Programms, in MEW, Band 19, Berlim, 1962). As traduções são muitas vezes um tanto ambíguas. significado, de qualquer modo, é mais ou menos o seguinte: "Mesquinha reivindicação, num programa geral operário. Em todo caso, era preci- so dizer claramente: de um lado, que não se quer, por medo da concorrência, que os comuns sejam tratados como animais; do outro, que não se deveprivá-los do único meio para corrigir-se: o trabalho produtivo. Era o menos que se podia esperar de socialistas". Incluímos o trecho em alemão devido à ambiguidade das traduções existentes. Por outro lado, para as posições do movimento operário francês no princípio do século XIX, ver Michel Foucault, Surveiller et punir, cit., pp. 291 SS. 98 99</p>

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