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<p>Alessandra Arce I O Trabalho com crianças deaté três anos Alínea CD</p><p>Em continuidade às discussões iniciadas em Ensinando aos Pequenos de Zero a Três Anos edição, 2012), a presente obra vai além, discute 0 conteúdo que deve ser posto no trabalho pedagógico com esta faixa etária. Seu ponto principal é a defesa de que 0 trabalho intencional, direcionado e planejado por parte do professor é fundamental para estimular 0 desenvolvimento nas salas de educação infantil, em especial, nas creches. As O Trabalho crianças pequeninas devem ter seus horizontes ampliados pelo professor, não somente os Pedagógico horizontes intelectuais, mas, também, os com Crianças de até Três Anos emocionais e corporais. Para isso, 0 professor deve se munir de conhecimentos teóricos e metodológicos que possibilitem a compreensão de como a ação e 0 ensino intencionais são Alessandra Arce I org. decisivos para um trabalho pedagógico de qualidade. Com variadas sugestões de conteúdo e de procedimentos que facilitarão, sobremaneira, a tarefa de educar as crianças, desde a mais tenra idade, a obra é uma inequívoca contribuição aos docentes que atuam na Educação Infantil e vem, também, enriquecer 0 debate do trabalho intencional, em especial, com os pequenos. 0 editor Alínea EDITORA</p><p>Alínea EDITORA DIRETOR GERAL Wilon Mazalla Jr. COORDENAÇÃO EDITORIAL Sumário Willian F. Mighton COORDENAÇÃO DE REVISÃO E COPYDESK Catarina C. Costa REVISÃO DE TEXTOS Bruna Gonçalves Prefácio 5 EDITORAÇÃO ELETRÔNICA Fabio Diego da Silva Introdução 9 Patrícia Lagoeiro Tatiane de Lima Capítulo 01 CAPA A Arte de Contar Histórias na Sala de Aula: Paloma Leslie do didatismo ao encantamento 13 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Belissa do Pinho Jambersi (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) O Trabalho pedagógico com crianças de até três anos / Capítulo 02 Alessandra Arce, org.. -- Campinas, SP : Editora Ensino da Linguagem Escrita na Creche: Alínea, 2014. algumas reflexões sobre a mediação docente 37 Vários autores. Bibliografia. Ana Carolina Perrusi Brandão e Ester Calland de Sousa Rosa 1. Aprendizagem 2. Maternal (Educação infantil) 3. Pedagogia 4. Prática de ensino 5. Sala de aula Capítulo 03 Direção I. Arce, Alessandra. A Linguagem Matemática e a Criança Pequena 59 13-13613 CDD-371.3 Maria do Carmo de Sousa Índices para catálogo sistemático: Capítulo 04 1. Maternal : Prática pedagógica : Educação 371.3 Ensinar Ciência aos Pequeninos: ampliação dos horizontes da criança ISBN 978-85-7516-680-2 na descoberta de si e do mundo 81 Todos os direitos Debora A. S. M. da Silva e Alessandra Arce Editora Alínea Capítulo 05 Rua Tiradentes, 1053 - Guanabara - Campinas-SP Motricidade Infantil dos Zero aos Três Anos: CEP 13023-191 - PABX: (19) 3232.9340 e 3232.0047 fundamentos para uma orientação pedagógica 105 Paula H. Lobo da Costa e Juliana Cesana Impresso no Brasil</p><p>Capítulo 06 Musicaliza: música no cotidiano escolar na Prefácio ducação infantil para crianças pequenas 123 Ilza Zenker Leme Joly e Maria Carolina Leme Joly Capítulo 07 revenção da Violência Contra Crianças Pequenas: Na apresentação deste livro, Alessandra Arce se reporta à sua atuação dos profissionais da educação 143 coletânea anterior, publicada em 2009 e organizada com Lígia Márcia Rachel de Faria Brino Martins, Ensinando aos pequenos de zero a três anos. Esta nova cole- tânea, por sua vez, dá sequência à problemática levantada naquele obre as Autoras 165 De fato, enquanto a referida publicação, defendia não apenas a possibilidade, mas a necessidade do ensino às crianças na faixa etária correspondente às creches, esta nova obra dá um passo à frente tratando do próprio conteúdo, isto é, do currículo que deve ser posto em movi- mento no trabalho pedagógico com as crianças de zero a três anos de idade. No prefácio redigido para a coletânea de 2009, trazia-se à baila o significado etimológico da palavra "ensinar", derivação do verbo latino insignare que significa, literalmente, "marcar com um sinal" tendo, pois, sentido de "assinalar" e "dar a conhecer". Dando sequência a tal análise etimológica, observa-se que a deno- minação "ensino" deriva do latim insigno (eu ensino) tendo, pois, em sua raiz, a palavra "signo", que expressa a característica essencial do ser humano. Com efeito, o homem distingue-se dos outros animais pelo trabalho, atividade especificamente humana pela qual o objetivo que é antecipado mentalmente se realiza praticamente. Nesse caso, antecipar mentalmente significa 'idear', formular em ideia aquilo que vai ser reali- zado. Isso quer dizer que o homem representa, em pensamento, os fenô- menos do mundo em que vive, ou seja, ele serve-se de signos para mediar sua própria relação com a realidade. Entendemos, então, porque Ernst Cassirer definiu o homem como um "animal simbólico". E o signo por excelência, o signo dos signos, é a própria linguagem. Pela linguagem, o homem exterioriza, servindo-se de sinais sono- ros, o pensamento, tornando possível a comunicação entre as pessoas.</p><p>6 Prefácio Prefácio 7 Um salto importante no desenvolvimento histórico da humanidade foi, os seguintes componentes: leitura e escrita da língua materna; noções assim, o surgimento da escrita, isto é, o registro da fala, o signo sonoro, elementares de matemática; ciências da natureza e da sociedade (história por meio de signos visuais. Esse passo reveste-se de grande importân- e geografia); e educação física e educação artística. cia, porque objetiva a linguagem em suportes materiais que podem ser Começando pela fascinante atividade de contar histórias, os capí- transmitidos com grande amplitude no espaço e no tempo, estendendo-se tulos centrais deste livro contemplam, praticamente, todos os compo- a indivíduos e a povos das mais distintas regiões, e passando de geração nentes do currículo clássico da escola elementar, tratando da linguagem em geração. Foi tão fundamental esse salto que os historiadores o situam escrita (Capítulo 2); da linguagem matemática (Capítulo 3); do ensino como o acontecimento que marcou a passagem da Pré-história à História. de ciências (Capítulo 4); da educação física pela via da motricidade A invenção da escrita se liga diretamente ao surgimento da ciên- infantil (Capítulo 5); e da educação artística pela via da musicalização cia, pois esta é um tipo de conhecimento que, supondo comprovação por (Capítulo 6). Demonstrando, ainda, sensibilidade para com as condições diferentes investigadores, implica, necessariamente, registros escritos. em que opera a instituição escolar no contexto atual marcado pela crise Podemos, assim, concluir que o ingresso da humanidade na fase da sociedade do capital com todas as mazelas daí decorrentes, o último propriamente histórica trouxe consigo a exigência de apropriação, pelas capítulo aborda o problema da violência contra a criança, certamente a novas gerações, do substrato mais significativo do acervo de conheci- mais impactante das mazelas geradas nos estertores da sociedade atual, mentos acumulados ao longo do tempo. Ta situação, obviamente, pressu- Esta obra traz uma contribuição inestimável ao pessoal docente o domínio da linguagem escrita. Considerando-se que tal modalidade que atua nas escolas de educação infantil, pois contém variadas sugestões de linguagem não é espontânea e "natural", mas formal e codificada, ela de conteúdo e de procedimentos que facilitarão, sobremaneira, a tarefa requer, para sua assimilação, procedimentos também formais, sistemá- de familiarizar as crianças, desde a mais tenra idade, com as produções ticos e codificados, viabilizados pela forma escolar de educação. Sabe- mais significativas da história humana. Este é, de fato, o caminho mais -se, com efeito, que, para aprender a falar, não se necessita de escolas. adequado para se produzir, em cada indivíduo, a humanidade que é feita, Estas são, entretanto, extremamente necessárias para se aprender a ler e histórica e coletivamente, pelo conjunto dos homens, como preconiza a a escrever. Em última instância é, portanto, a existência da linguagem Pedagogia É, igualmente, a forma mais apropriada de escrita que justifica a existência da escola. se produzir, nas crianças, o desenvolvimento das funções psicológicas Dessa forma, após mostrar na coletânea de 2009 a necessidade de superiores como preconiza a Psicologia que as escolas de educação infantil, desde o nível das creches, cuidem do À vista do exposto, recomenda-se, vivamente, a leitura e o estudo ensino, isto é, do processo de apropriação dos signos na sua forma mais sistemático deste livro. desenvolvida, que é a expressão escrita -, esta nova coletânea aborda, agora, os principais aspectos em que se desdobra o conteúdo a ser traba- Dermeval Saviani lhado na educação escolar, desde sua fase inicial, que abriga as crianças na idade de zero a três anos, contemplando-se, dessa forma, o currículo da escola básica. Com efeito, o núcleo fundamental que veio a se impor nesta área, ainda que com variações na apresentação, na forma de tratamen- to e na denominação, manteve-se como permanente, constituindo, por assim dizer, o currículo clássico dos sistemas de ensino e comportando</p><p>Introdução Ser assim é uma delícia Desse jeito como eu sou De outro jeito dá preguiça Sou assim pronto e acabou A de costume Como bem e não regulo Mas tem sempre alguns legumes Que eu não sei como eu engulo Brincadeira, choradeira, Pra quem vive uma vida Mentirinha, falsidade, Pra quem vive só pela metade Quando alguém me desaponto Paro tudo e dou um tempo Dali a pouco eu me dou conto Que ninguém é cem por cento Seja um príncipe ou um Seja um bicho ou uma pessoo Até mesmo um Tem alguma coisa (Sandra Peres/Luiz Tatit - Palavra Cantada - CD Pé com Pé Em 2009, em conjunto com Ligia M. Martins, lançou-se o livro Ensinando aos pequenos de zero a três cujo objetivo principal 1. Arce, Alessandra; Martins, Ligia M. (Orgs.). Ensinando aos pequenos de zero a trê anos. 2. ed. Campinas: Alínea, 2012.</p><p>Introdução 11 10 Introdução evidenciar o ensino como necessário ao se pensar no trabalho com crianças O capítulo que abre o livro de Belissa Jambersi A Arte de Contar Histórias na Sala de Aula: do didatismo ao encantamento, instiga-nos pequeninas. Ideia provocativa, mas cujo principal intuito era o de provocar o debate! Para tanto, esta primeira obra procurou trabalhar, principalmen- a pensar o contar histórias para crianças pequenas não só como uma te, o desenvolvimento da criança e quais seriam as possibilidades de ensi- ferramenta pedagógica, mas como algo que possibilite o desenvolver do ná-la, respeitando-se sua faixa etária e, em especial, seu desenvolvimento. prazer de ouvir histórias, o prazer pela arte, como um fórum privilegiado Ao mesmo tempo, procuramos trabalhar com a desconstrução da ideia de conhecimento e preservação da cultura brasileira. de que ensinar é algo maléfico. Destacamos, ainda, a importância vital Já o capítulo, ensino da Linguagem Escrita na Creche: algu- do papel do adulto para que a criança venha a desenvolver-se de forma mas reflexões sobre a mediação docente, escrito por Ana Carolina P. integral, destacando as contribuições da Psicologia Histórico-cultural e da Brandão e Ester C. de Souza Rosa, trabalha uma temática polêmica, por Pedagogia Histórico-crítica para a área de Educação Infantil. vezes, banida das discussões na Educação Infantil: alfabetização e letra- Esta segunda obra, no entanto, dá continuidade ao debate da mento. As autoras, assim, nos ajudam a compreender as possibilidades Educação Infantil, objetivando-se a ampliação do leque de possibilida- do ensino da linguagem escrita para tal faixa etária ao mesmo tempo em des e de caminhos para o trabalho pedagógico. Para isso, procuramos que expõem como se trabalhar pedagogicamente. compor o livro com pesquisadores de diversas áreas do conhecimento Em, A Linguagem Matemática e a Criança Pequena, Maria do que têm trabalhado, frequentemente, com crianças menores de três anos. Carmo de Souza instiga-nos a pensar como através cotidiano das crian- Esses autores escreveram seus respectivos capítulos apresentando seus ças pequenas podemos envolvê-las no mundo da matemática. A autora dá fundamentos, e pistas didático-metodológicas para o trabalho exemplos de possíveis trabalhos e caminhos metodológicos para permitir em sala de aula. essa razão, intitulamos esta obra como O Trabalho a essas crianças compreender, conhecer o mundo e, ao mesmo tempo, Pedagógico com Crianças de até Três Anos. apreender a linguagem matemática. O ponto principal que une os autores desta obra é a defesa de Débora A. S. M. da Silva e Alessandra Arce, no capítulo Ensinar que o trabalho intencional, direcionado e planejado por parte do profes- Ciência aos Pequeninos: a ampliação dos horizontes da criança na sor é fundamental para produzir desenvolvimento nas salas de educação descoberta de si e do mundo, presenteiam-nos com a importância que infantil, em especial, nas creches. A ideia que nos envolve é a de que as ensino de ciências possui para o desenvolvimento integral da criança. crianças pequeninas devem ter seus horizontes ampliados pelo profes- As autoras, ainda, apresentam materiais e apontam caminhos didático- sor, significando não somente os horizontes intelectuais, mas também os -metodológicos para o trabalho com os pequeninos. emocionais e corporais. Para isso, o professor deve munir-se de conhe- O capítulo Motricidade Infantil dos Zero aos Três Anos: funda- cimentos teóricos e metodológicos que possibilitem a compreensão de mentos para uma orientação pedagógica, escrito por Paula H. L. Da como a ação intencional e o ensino são decisivos para um trabalho peda- Costa e Juliana Cesana, apresenta-nos o porquê do trabalho com motri- cidade ser fundamental para o desenvolvimento de crianças pequenas e, gógico de qualidade. Não nos arvoramos a emitir palavras finais, mas nos permitimos ainda, como podemos realizá-lo. As autoras ainda trazem alertas para os descortinar diferentes matizes que devem constituir o trabalho pedagógi- resultados ruins advindos da ausência deste trabalho. A dimensão corpo- com os pequeninos. Queremos possibilitar a nossas crianças o desen- ral, aqui, mostra-se destacada como necessária e imprescindível a ser volvimento integral desde bebês e, para isso, pensamos este livro como intencionalmente trabalhada pelo professor de Educação Infantil. uma ferramenta teórica, didática e metodológica, a instigar e a inspirar o Ilza Z. Leme Joly e Maria Carolina Leme Joly, entretanto, no trabalho de futuros e atuais professores. capítulo Musicaliza: a música no cotidiano escolar na educação infantil</p><p>12 Introdução para crianças pequenas, discutem a importância do ensino da música desde a mais tenra idade, apontando as contribuições deste para o desen- volvimento das crianças. Em tal capítulo, o leitor encontrará uma série 01 de atividades musicais para serem realizadas com o apoio do CD que acompanha este livro. Este CD intitula-se Musicaliza e reúne uma cole- tânea de músicas da cultura popular brasileira. São 51 faixas, sendo que, A Arte de Contar Histórias na Sala de Aula a partir da faixa 43 até a 51, apresentam-se gravações de sons variados (como sons da cidade, orquestra afinando, chuva etc.). A produção musi- do didatismo ao encantamento cal do material é de Glauber Santiago e a coordenação pedagógica de Ilza Joly. Este material foi gravado nos Estúdios da Universidade Federal de Belissa do Pinho Jambersi São Carlos UFSCar. Constitui-se, portanto, em material didático para a utilização pelo professor, juntamente com as sugestões elencadas no decorrer do capítulo. O capítulo escrito por Rachel Brino, por sua vez, Prevenção da Violência Contra Crianças Pequenas: a atuação dos profissionais da educação, encerra o livro discutindo a violência contra a criança, como esta se caracteriza e como ocorre. Mas a autora vai além, apontando caminhos para a prevenção e com a intenção de auxiliar o professor na "Bem-aventurados os contadores de histórias percepção de situações de risco. Procura-se, assim, desvelar-se essa difi- infantis, pois eles alegram, educam e distraem cil temática que aflige o cotidiano, destacando-se o papel do docente as crianças, e são por elas estimados, queridos e como importante para prevenir e proteger nossas crianças da violência. sempre relembrados" (Malba Tahan, 1966). Esperamos que tal obra mantenha acesa a chama do debate iniciado em 2009, trazendo novas nuances a este, mas, principalmente, contribuindo para que caminhemos no atendimento às crianças peque- nas, direcionando-as a um trabalho pedagógico que possibilite, de fato, o Introdução desenvolvimento integral dos pequeninos. O ato de contar histórias é tão antigo quanto o próprio surgimento A organizadora do homem. Pois era por meio das histórias que os povos mais primitivos passavam seus valores, ensinamentos, costumes e sabedorias. O homem, no passado, organizava-se em círculos para aprender e para ensinar, contando histórias que vinham da dos povos e de suas experiências diárias. Os povos pertencentes às culturas tradicionais souberam com maestria, no entanto, dar um toque de encantamento aos mistérios da vida para explicar os caminhos e os descaminhos percor- ridos e, também, para se descobrir enquanto essência humana poética</p><p>14 A Arte de Contar Histórias na Sala de Aula 15 Belissa do Pinho Jambersi e estética, portadora de palavras e ensinamentos. Nesse movimento, as ficou, por algum tempo, adormecida e quase esquecida nas sociedades histórias foram passando de geração em geração, mantendo viva a iden- modernas, sendo, às vezes, relembrada em um ou outro canto distante tidade de um povo. dos grandes centros urbanos. Moldando-se de uma época para outra, as histórias eternizavam- As tecnologias e os novos recursos advindos com a modernização -se na alma de quem as contava e de quem as escutava, mas sem, contu- dos centros urbanos, somado a outros fatores impulsionaram novas práti- do, perder sua essência e sua identidade, porque o respeito pela palavra cas, culturais e sociais, que marginalizaram o ofício do contador de histó- falada dentro das culturas orais tem um significado e uma importância rias e de outros tipos de manifestações típicas das culturas orais como os milenar maior do que qualquer outro objeto material das sociedades folguedos populares. O surgimento da televisão, por exemplo, substituiu o modernas. prazer em ouvir uma história falada pela emoção de ver os artistas em cena. A figura do contador de histórias tradicional, portanto, acompa- O poema a seguir, de Mario Quintana, pode ilustrar, perfeitamente, nha o próprio desenvolvimento do homem e da sociedade. desaparecimento das práticas culturais advindas do universo folclórico: Antigamente, aprendia-se a ser um contador de histórias pela Havia um tempo de cadeira na calçada. e pela experiência de ser um ouvinte da palavra falada. Em Era um tempo em que havia mais estrelas. um tempo marcado por zonas rurais com a nascente formação do cená- Tempo em que as crianças brincavam sob a clarabóia da lua, rio urbano, o contador de histórias garantia os ensinamentos e levava o e o cachorro da casa era um grande personagem. entretenimento às comunidades. O ato de ouvir histórias era um hábi- E também relógio da parede! to comum na vida dessas pessoas que, ansiosamente, ouviam histórias Ele não media o tempo simplesmente: ele meditava tempo. de seus familiares e conhecidos estabelecendo, assim, uma relação de (Mário Quintana) cumplicidade entre o narrador e o ouvinte aprendendo, a partir daí, a arte Gradativamente, o hábito de ouvir histórias deixou de ser uma de narrar e de encantar. prática cultural comum presente no cotidiano das pessoas de todas as Para Lima (2005 apud Rocha 2010): idades, cujo encantamento de unir as pessoas em uma experiência singu- contador comparece aos terreiros e salas, acontece esponta- lar, passou a ter endereço e hora marcada, com as escolas e bibliotecas, neamente na oportunidade hospitaleira dos arranjos e pernoi- nas quais os professores e bibliotecários assumiam a tarefa de contar tes. É pretexto nas reuniões em noites de sexta-feira da paixão histórias como atividade educativa complementar para a formação cultu- enquanto se espera a hora do galo. Estaria presente ao ritmo das ral e leitora das crianças (Rocha, 2010). debulhas. É ponto e contraponto nas conversas em noite com cadeiras nas calçadas. Pode ir à roça animar o trabalho nas eiras Frutos do pensamento da época, as histórias entraram nas grades e nos leitos. Acompanha o viajante nos caminhos e travessias. escolares como maneira de melhorar o processo de ensino e aprendiza- Insinua-se nos lugares do acalanto e é palavra tecida e rendada gem, por isso, as histórias estavam associadas aos costumes morais e no colo das rendida ao convite, ao pedido e à cumplicidade que se esperavam na formação de uma criança. dos netos (p. 61). Com o movimento escolanovista, na década de 1930, entretanto, as histórias passam a ser utilizadas como uma maneira de entreter as Entretanto, a figura do contador de histórias, entendido como crianças. aquela pessoa, na maior parte das vezes analfabeta e que tem a capaci- Influenciados por Froebel e Pestalozzi, os professores reformis- dade nata de guardar na memória a ancestralidade dos povos e repassá- viram que as histórias, além de entreter e ensinar as crianças, pode- -las adiante, pura e simplesmente pelo valor que possui a palavra falada,</p><p>16 Belissa do Pinho Jambersi A Arte de Contar Histórias na Sala de Aula 17 riam auxiliá-las no desenvolvimento de outras atividades (Magalhães, [...] a década de 70 do século XX as grandes cidades assistiram 2010). ao movimento de retorno e de valorização da arte de contar Paralelamente a essas ideias, houve uma tendência de pedagogi- histórias. Neste novo contexto a arte da narrativa é ressignifica- zar as histórias, transformando-as em exigências utilitárias. da, ultrapassando os muros das escolas e os espaços das biblio- tecas. Aparece cada vez mais em centros culturais, hospitais, O mecânico e excessivo uso das histórias para ensinar e fixar empresas e em outros lugares (p. 103). conteúdos e valores morais e cívicos subtrai toda a magia e encantamento existente na experiência da escuta de uma história. Ao mesmo tempo em que esse "boom" de contadores de histórias As histórias, sejam elas infantis ou não, existem para serem senti- fez renascer a figura do contador de histórias ele também trouxe novas das e vivenciadas nas experiências e nos valores que cada pessoa possui. perspectivas de trabalho e pesquisa para este ofício milenar, ressignifi- As histórias despertam uma experiência de significação única, pois ouvir cando sua prática dentro das sociedades como ressaltou uma história hoje não terá, talvez, a mesma experiência que ouvir uma Sisto (2005): história amanhã. Não faz sentido querer sufocar as histórias em pacotes fechados de conteúdos, já que não é possível mensurar as dimensões dos Em vez de virado fumaça no tempo contador de histórias se sentimentos que uma história em si desperta. multiplicou. Hoje assistimos ao nascimento de muitos grupos uma novidade para um ofício que foi quase sempre individual. Do Machado (2004) ressalta: ofício a oficina muitas instituições têm investido na formação de Do ponto de vista pedagógico, no trabalho com crianças, acre- contadores de Histórias como garantia de permanência e trans- dito que importante não é queren saber qual o efeito que os formação da cidadania. [...] A Atividade que parecia ser destinada contos tradicionais exercem sobre cada criança, ou mesmo a professores e bibliotecários conquistou outros adeptos atores, "querer produzir um tal efeito" e sim entender que para cada mímicos, músicos, poetas [...] (p. 74). uma delas aquela história traz a oportunidade de suas imagens internas em uma forma que faz sentido para ela naquele O contar histórias que, antes, era um ofício pautado na arte da momento. É como se ela pudesse pelo reino das possi- oralidade, profissionalizou-se na contemporaneidade. Se, por um lado, bilidades de significa, reinventando para si mesma a sua história esse frisson trouxe de volta a figura do contador de histórias, fazendo-o naquele momento [...]. ser relembrado em diversos setores sociais, por outro, surgiram tendên- Se os contos forem ponto de partida para a aprendizagem cias profissionais que, com novas técnicas, fizeram da arte de contar e dos conteúdos escolares se forem -, é importante que não encantar uma prática cênica apoiada em linguagens que, muitas vezes, sejam reduzidos a meras estratégias didáticas. É fundamental descaracterizam o ato de contar histórias. que movimento de parta da busca da significa- ção do conto para o estudo da gramática e não contrário Quando se utilizam muitas técnicas cênicas em um ofício pautado (p. 28-29). na oralidade, a essência do contar histórias se perde no tempo porque a mensagem da história fica fragmentada frente ao cenário, figurino, ilumi- Ao longo das décadas, o contar histórias ficou associado ao cará- nação, entre outros elementos do mundo moderno, que, por sinal, fazem- ter pedagógico dos bibliotecários e-dos professores. Contudo, na déca- se cada vez mais presentes na arte de contar histórias. da de 1970, essa atividade passou a se expandir por diversos setores da Fantoches, objetos, músicas e outros recursos devem ser somente sociedade moderna. um apoio na narrativa, porque a preocupação essencial deve ser a história. Para Rocha (2010),</p><p>18 Belissa do Pinho Jambersi A Arte de Contar Histórias na Sala de Aula 19 É preciso ter em mente que o contar histórias é uma arte e, por de compreensão do rei. Nesse caso, foco é a história, não a isso, merece ser preservada e respeitada como tal em todas as épocas. pessoa do narrador. Servir fielmente à história é ter a possi- Existem, por exemplo, tanto nas capitais quanto no interior, trabalhos bilidade de deixar-se levar por ela, permitindo que a história guie a voz, o gesto, o olhar, a cadência da narração (Machado, de contadores contemporâneos com muita qualidade. Contudo, as trans- 2004, p. 70). formações do mundo moderno tendem a descaracterizar esse ofício com linguagens que não lhe são próprias. Atualmente, o contar histórias é muito requisitado. Escolas, Duque (2006), pesquisador da arte de contar histórias e organi- hospitais, projetos culturais de incentivo a leitura, programações cultu- zador de um dos eventos mais antigos de narradores orais da América rais e bibliotecas incluem, cada vez mais, os contadores contemporâneos Latina, em um artigo publicado para uma coluna de cultura em um site de em suas agendas, em que cada qual desenvolve sua atividade de acordo notícias gerais, ressalta que, na contemporaneidade, a figura do contador com sua perspectiva de trabalho. de histórias se converteu em um comediante dos tempos modernos, cuja Assim, é preciso nos perguntarmos o que cada linha de traba- preocupação maior não está na palavra e no seu valor social, mas sim nos lho pretende com a arte de contar histórias, mas, independentemente da apetrechos e recursos visuais utilizados durante a narrativa. Para esse linha, a preocupação deve sempre ser com a história e a sua essência. pesquisador: Na psicologia, as histórias são utilizadas, por vezes, para melho- rar as condutas do comportamento humano ou para ensinar os pacien- La narración oral, pues, se está convirtiendo (si es que ya esto no há sucedido) en una especialidad más de läs artes escénicas, tes a lidarem melhor com suas emoções. Em hospitais, por sua vez, as como um sucedâneo del teatro.debido a que läs complicadas histórias podem acalentar os pacientes. Os artistas, por exemplo, podem estructuras de escenografia y número de personajes de este contar histórias como parte de um mundo cênico, mas, e o professor de estorban la existência y la movilidad em um mundo cada dia más Educação Infantil? Qual seria o seu papel na arte de contar histórias? sintético, estrecho y comprimido. La preparación intencionada Considerando-se as imagens prontas e sem sentido que, diaria- Del texto y de la estructura escénica hacen que el narrador oral, mente, chegam ao repertório cultural e social das crianças, adicionadas que históricamente estuvo al mismo nível Del auditório, suba al escenario y comience a imponer la misma distancia que debió às transformações sofridas no ofício do contador de histórias ao longo imponer el teatro em su debido momento para convertise em algo dos séculos, os professores têm o importante papel de resgatar a figura creible. [...] (Duque, 2006, p. 5). tradicional do contador de histórias, ressignificando-a na modernidade e mantendo viva a essência da palavra. Machado (2004), professora da Escola de Comunicações e Artes O professor, antes de contar uma história, precisa entender, de São Paulo (ECA) e pesquisadora dos contos de tradição oral, na primeiro, o que é uma narrativa, qual o seu propósito, função e estrutura. mesma linha de pensamento de Duque, ressalta a diferença existente Sem esses elementos, o ato de contar histórias fica vazio, despro- entre dois tipos de contadores: vido de sentidos, e converte-se em uma atividade mecânica. Conta-se a história apenas por contar, desconhece-se sua arte e seus fundamentos Um contador de histórias tipo showman, quer dizer, focali- estéticos e humanos. zado na intenção de chamar a atenção para sua habilidade de contar, captura a audiência a ponte de hipnotizá-la. As pessoas O contar histórias, como ressaltou Machado (2004), é uma expe- ficam impressionadas com seu poder e ficam presas nele, não riência de relacionamento humano que tem qualidade única, insubsti- na história. Ou, como no caso do poeta persa, a intenção de tuível. servir fielmente às palavras do poema produziu a experiência</p><p>20 A Arte de Contar Histórias na Sala de Aula 21 Belissa do Pinho Jambersi Nesse sentido, o presente capítulo tem por objetivo mostrar a impor- Para Machado (2004), os recursos internos partem das imagens tância das histórias para o imaginário infantil e como o trabalho docente que as pessoas diariamente criam e recriam a partir da interação com pode contribuir para ampliar o repertório cultural e intelectual das crianças. outras pessoas, lugares, animais, objetos, entre outros. Já os recursos externos relacionam-se ao momento de preparação e estudo de uma história. O encontro e equilíbrio entre esses dois recursos possibilitam, Os fundamentos estéticos do contador de histórias contador, a capacidade de traduzir, em imagens, as palavras. Quem conta tem que estar disposto a criar uma cumplicidade A arte de contar histórias é uma experiência múltipla de signifi- entre história e ouvinte, oferecendo espaços para ouvinte se cação e sentidos tanto para o narrador quanto para o ouvinte. Ao contar envolver e criar [cujos] espaços dentro de uma narrativa podem uma história, o narrador está acima de tudo, contando uma constelação ser construídos pelas pausas, silêncio, ações, gestos e expressões de imagens seguidas de ritmos e movimentos que despertam sensações de forma harmônica (Sisto, 2005, p. 85). diferentes para cada pessoa naquele momento. Uma pessoa se torna contadora de histórias não pelo domínio de A oralidade, como ressalta Santos (2010), técnicas e instrumentos, mas, sim, pela capacidade que desenvolve, ao longo da sua experiência, de saber ouvir e escutar, de sentir e de ver da mesma forma que vai tecendo um emaranhado dentro de coisas ao seu redor, porque dom de contar histórias é, na verdade, um exer- palavras, ideias e fatos, cria um emaranhado dentro do coração de quem ouve, tornando-o cúmplice de quem conta, vivendo constante, um aprimoramento contínuo de possibilidades internas de ver por um momento que seja, a experiência de várias gerações que mundo de outras formas (Machado, 2004, p. 73). estão contidas em uma história (p. 112). Logo, o contar histórias é um processo estético de ensino e apren- dizagem do ser humano, cuja experiência estética da educação nasce do As histórias, sobretudo as da tradição oral, refletem as condu- encontro e das possibilidades de aprendizagens que se estabelecem com tas morais e os valores humanos e, ao serem narradas, o contador e o os objetos presentes na vivência de cada um. Por menor que possa pare- seu público fazem relações com suas próprias experiências e valores, cer, o contato com um objeto sempre será dotado de um significado, com identificando-se com a ação dos personagens e sentindo, em cada movi- valores diferentes, que podem variar segundo a nossa vivência, porque mento da história, sensações diferentes; medo, alegria, dúvidas, porque somos seres singulares humanizados no coletivo. cada narrativa tem um caminho próprio que produz efeitos em diferentes Um contador de histórias jamais para de aprender, pois, por mais níveis de apreensão: podem intrigar, fazer pensar, provocar riso, susto (Machado, que ele tenha o domínio da oralidade, ele sempre aprenderá algo novo ao 2004, p. 50). contar uma história, ainda que já a tenha contado várias vezes. E, cada Nesse sentido, o contar histórias tem uma ligação importante com vez que contar a mesma história, ele irá se surpreender. o exercício da imaginação e da potência criadora do homem. Diferentemente do lator, o contador não necessita de palcos, ele Para que as palavras deixem de ser apenas uma sequência de se iguala ao seu público. Olhando os gestos e a expressão corporal de letras é preciso estudar, além disso, o ritmo, o movimento e a cadência de cada pessoa, o contador desenvolve uma experiência singular de escuta uma história, cabendo ao contador externalizar esses recursos para que o interna e externa. ouvinte esteja em sintonia com as imagens narradas. Para Sisto (2005), Contador tem um olhar diagnóstico que é múlti- Essas imagens não nascem do "acaso", mas, sim, do conjunto de plo: olha para público; 2) olha para dentro dele mesmo; 3) olha para as experiência dos recursos internos e externos do contador de histórias. imagens mentais da história que ele está contando (p. 46).</p><p>A Arte de Contar Histórias na Sala de Aula 23 22 Belissa do Pinho Jambersi A partir da expressão corporal do seu público, o contador sabe a internos de cada contador de histórias. Assim, as histórias são contadas hora de parar e a de continuar. Sabe a hora de enfatizar, sabe a hora de de forma mais espontânea e natural porque conto deixa de ser apenas provocar uma pausa, mas, por outro lado, sabe a sintonia entre o domínio interessante, engraçado, ou que que seja, para transformar-se também das expressões faciais e corporais somadas à suavidade das narrativas num meio de com sabedoria, charme, humor e sutileza as próprias que imprimem sentido ás palavras e desvelam para o ouvinte as emoções por experiências de vida (Matos, 2009, p. 10). trás do texto (Matos, 2009, p. 28). Para Perissê (2009), o conhecimento humano terá sempre um Claro que há um conjunto de dicas explicitando o que se deve ou componente estético, porque este diz respeito às nossas interpretações não fazer no momento de narrar. Cabe ressaltar, porém, que tais dicas só sobre as diferentes maneiras de olharmos para a realidade, na qual esta- fazem sentido se forem uma consequência do processo de estudo e apren- mos inseridos. dizagem dos contos. Para contar, é preciso, antes, conhecer o movimento Por outro lado, o objeto de pesquisa do contador de histórias e a dinâmica de uma história. consiste, também, na busca para se ampliar o repertório cultural e Dentro da arte de contar histórias, não é recomendável seguir um artístico. A troca de informações com outros contadores de histórias pacote de técnicas e regras que podem ou não ser utilizadas em uma a observação atenta e crítica ao trabalho de grupos e companhias de história para obter Técnicas e regras, nesse caso, são muito artifi- contadores de histórias, contribuem para enriquecer a formação estética ciais, prendem-se na aparência e, tampouco, conseguem imprimir a viva- do artista: cidade do olhar e a espontaneidade da narrativa. contador se enriquece a partir da apreciação de outros conta- Antes de querer obter êxito de uma narrativa, o professor e/ou dores de histórias, ou seja, utiliza imagens de outros contadores outra pessoa que se dedique a contar histórias, deve, antes de mais nada, que lhe são fontes de inspiração. Através dessa observação, asso- educar o seu olhar para a aprendizagem estética e humanizadora das ciada a princípios estéticos, éticos, históricos, desenvolve sua histórias, e encontrar, dentro de si mesmo, a dinâmica da história para capacidade critica em relação à qualidade da narração (Rocha, que essa possa ser externalizada com vivacidade. 2010, p. 148). Conhecer os personagens, como eles dialogam com a narrativa, imaginar os lugares pelos quais transitam, quais objetos podem ser asso- Elucidados os fundamentos estéticos que formam o contador de ciados a esses enfim, supor situações de da histó- história, cabe, agora, destacar algumas dicas que podem auxiliar profes- ria em diferentes espaços, e se perguntar o motivo da escolha por aquela sores e outras pessoas que se dediquem a contar histórias para crianças da história, constituem objetos de pesquisa do contador de histórias. Educação Infantil. Porém, tais dicas, como mencionado anteriormente, Machado (2004) e Matos (2009) dissertam sobre a importância de devem acompanhar um contexto, fazendo parte da experiência estética se dividir um conto em oito partes. A divisão é feita seguindo a mudança da pessoa que se forma uma contadora de histórias. de ação dentro do enredo, ou seja, no momento em que a narrativa muda de clima. Em seguida, é necessário um título para cada uma das partes e a ideia de ações e adjetivos que substituam tais títulos. Deve-se desenhar corpo, o olhar e a voz do contador de histórias cada uma das partes nomeadas, procurando enfatizar, assim, o título e os adjetivos escolhidos. Enganam-se aqueles que pensam que o êxito de uma narrativa Ao fazer esse exercício, as imagens, o ritmo e a cadência das está no registro feito após a escuta de uma história para apurar o entendi- histórias estarão sendo interiormente organizadas nos recursos externos mento do aluno sobre o que foi O êxito de uma história encontra-</p><p>24 Belissa do Pinho Jambersi A Arte de Contar Histórias na Sala de Aula 25 -se no momento da narrativa e depende do equilíbrio entre o que é falado com o ritmo da narrativa, sem dúvida, dando mais vida ao texto falado, e o que é expresso em movimentos e em gestos. porque a será vista como um prolongamento do corpo. Durante uma narrativa, o corpo, o olhar e a estão em sinto- Nesse sentido, a do contador de histórias deve despertar a nia e equilíbrio. As expressões corporais acompanham a descrição da emoção nos ouvintes. Com ela é possível tocar, tatear, abraçar e sentir narrativa, o corpo sente a plateia e o olhar capta a imagem e a transforma (Sisto, 2005). em realidade, trazendo possibilidades infinitas de interpretação para o Avançar nas palavras, gaguejar, desculpar-se por uma palavra que imaginário coletivo. foi pronunciada errada, detalhar demais a história ou, até mesmo, contar O maior instrumento de trabalho que um contador de histórias final antes de concluí-la, são cuidados que devemos ter durante a narra- pode ter é o olhar. O olhar deve ter a emoção e a vivacidade de quem tiva para que a história não se fragmente. realmente esteve no local da história e está contando somente o que viu e É importante que o contador desenvolva a percepção de sentir ouviu, já as interpretações, estas cabem aos ouvintes. 0 silêncio do seu corpo e da sua respiração. A respiração é uma conse- É "um jogo de cintura" que se adquire na experiência. O contador quência da voz. O nervosismo e a insegurança, por exemplo, podem desenvolve, ao longo da sua prática, uma flexibilidade e espontaneidade transparecer durante a narrativa, quebrando o fluxo da história. Por isso, com o olhar e com o corpo, assim, este sempre tem o corpo e o olhar é recomendável que se conte uma história quando houver familiaridade e aberto para receber novas informações. segurança, assim, o texto tem mais chances de transcorrer de forma livre Não há necessidade, por exemplo, de decorar o texto do início ao de transmitir mais emoção. fim. Basta recontá-lo usando suas próprias palavras, sem perder, assim, Sendo assim, não há uma fórmula que oriente o contador a seguir a essência da narrativa. uma receita para alcançar o equilíbrio e o êxito de uma história. Cada O contador, por sua vez, tem a flexibilidade de caminhar entre contador desenvolve a percepção de encontrar, dentro de si, o equilíbrio o seu público, olhando-o nos olhos porque, afinal, seu lugar é junto ao necessário para o caminhar da narrativa. Claro que tal equilíbrio, além povo. de ser resultado de um processo de estudo e de aprendizagem da arte de Outro ponto importante é que o contador não pode ter a expec- contar histórias, depende também de um conjunto de fatores que servem tativa de "silêncio absoluto", ou querer, antes de mais nada, "contar a como alertas para o contador de histórias, como: a distribuição do olhar, história até o fim" do modo como a preparou (Machado, 2004). presença do corpo enquanto linguagem, a postura, evitar estereótipos, Imprevistos são inevitáveis e cabe reverter, assim, os comentários entre outros. e/ou situações a favor da história. Nesses casos, as expressões faciais e A seguir, um resumo de alguns dos cuidados, apresentados por corporais do contador devem ser rápidas e precisas, sem perder a suavi- Sisto (2005, p. 122 e 124), que um contador de histórias deve ter. dade do olhar e da fala. É importante ter a consciência de que cada fala remete a uma ação e, por conseguinte, a uma imagem. Brutalidade demais e delicadeza demais entre as ações dispersam os ouvintes. Merece cuidado, também, a do contador de histórias. Não é preciso fazer uma específica para cada personagem pensando que isso garantirá a audiência, às vezes, tal ação cria uma poluição auditiva. Basta apenas conhecer a história e entonar a de acordo com o movimento e</p><p>26 Belissa do Pinho Jambersi A Arte de Contar Histórias na Sala de Aula 27 Qual história contar? Cada contador desenvolve um estilo pessoal de contar histórias. Há quem se interesse mais pelos contos de tradição oral, há quem se interesse mais pelos contos literários. Para definir um estilo, é necessária a busca por informações, tais como experimentar a leitura de histórias diferentes. Ouvir muitas histó- rias. Assistir a peças de teatro e a companhias de contadores de histórias. Enfim, sentir qual estilo é mais agradável. Se optar-se por contos de tradição oral, é importante manter viva tradição da história, porque tais contos resistiram ao tempo, por essa razão, deve-se tomar cuidado para não se descaracterizar a sabedoria dos povos primitivos. Entretanto, ao escolher contos literários é necessário buscar por autores competentes, que desenvolvem um trabalho sério e de qualidade com público infantil. Contos populares e contos literários são diferentes por questões de estrutura textual e de Em um conto de tradição oral, por exemplo, está a sabedoria de um povo. Geralmente, este começa com um personagem central, na maior parte das vezes humilde, que sai em busca de um objetivo, encon- trando seres fantásticos pelo caminho e que, durante a narrativa, torna-se um herói pelos seus feitos, tendendo a um final feliz. Já os contos literários imprimem o estilo particular de um escri- for e trazem a sua própria visão de mundo. Geralmente, os personagens desses contos já nascem heróis. Para Mattos (2009), o conto popular tem na sua base de comunicação percepção auditiva da mensagem, enquanto o literário, enraizando-se na escrita, tem na sua base de comunicação a percepção visual da mensagem. Não cabe comparar um conto em detrimento do outro. O impor- é saber selecionar histórias de qualidade, adequadas à faixa etária, que alimentem a imaginação e contribuam para o crescimento cognitivo intelectual das crianças. Além disso, independente da escolha do tipo de história, popular ou literária, é recomendável sempre mostrar o livro à para que desperte nela a busca por estilos literários.</p><p>28 Belissa do Pinho Jambersi A Arte de Contar Histórias na Sala de Aula 29 A seguir, sugestões de histórias para se trabalhar na Educação Ao se ouvir uma história contada oralmente, o ouvinte é convida- Infantil, de acordo com a faixa etária. do a sentir as imagens narradas pela do contador. tais imagens preenchem o corpo do ouvinte, envolvendo, por completo, sua Divisão de histórias por faixa etária e instruções percepção auditiva. Até dois anos As histórias devem ter estruturas simples e ser contadas com Na leitura de um texto escrito, a interação do ouvinte é mais limi- frases curtas e bem articuladas; Recomendável contar histórias de bichos, brinquedos e objetos tada, porque o olhar do contador não desempenha a mesma função que na humanizados; história falada. O olhar do contador em um texto escrito está, assim, mais Histórias de crianças; Contos de fadas com enredos simples e reduzidos; direcionado à leitura do que ao ouvinte. Mesmo que este tenha o cuidado de Aguçar a imaginação e a percepção sensitiva da criança com livros de imagens próximas ao seu cotidiano. Pode-se fazer, manusear o livro e de mostrar as imagens de forma a garantir a visibilidade por exemplo, um livro de imagens só de animais domésticos, dos ouvintes, os gestos, ainda, são limitados porque a está no livro e animais aquáticos, objetos domésticos dentre outros, aproxi- mando a criança o máximo possível da sua vivência afetiva e de no texto. Ou seja, é uma forma mais intimista de se relacionar com a história. seu cotidiano; Nesse sentido, Matos (2009, p. 7) ressalta que, na oralidade, há Ensinar a criança o manuseio do livro; Explorar a sonoridade das poesias, parlendas e cantigas; uma interação coletiva imediata com o ouvinte, enquanto que, na leitura, Explorar a sensibilidade dos livros de tecido, textura; associa-se a ideia do indivíduo em sua introspecção e reflexão analítica. Recomendável fazer a leitura de livros sem texto para a criança, manuseando delicadamente livro; Sendo, portanto, duas linguagens diferentes que provocam sensa- Esses tipos de leitura além de ser recomendável para essa e despertam experiências distintas. faixa etária permitem a criança e ao professor a experiência do olhar e de interpretar o mundo e os personagens conforme No trabalho com crianças é importante saber mesclar essas duas seus sentimentos. Ocorre uma troca de olhar entre autor o leitor, cujas interpretações das imagens que se fundem em um formas de linguagens e mostrar diferentes possibilidades de trabalho mundo paralelo. entre a leitura de um texto escrito e a leitura da palavra falada, com a Dos dois aos Contos de fadas com enredos um pouco mais elaborados; finalidade de se aguçarem os sentidos e se contribuir para a formação do quatro anos Contos de animais; Contos rítmicos; repertório cultural e intelectual dos alunos. Contos acumulativos; Na Educação Infantil, por exemplo, o contato com livros sem Lendas e mitos folclóricos; Aguçar a imaginação das crianças com livros sem textos; textos, para crianças de zero a dois anos, é de extrema importância, pois Explorar a sonoridade das poesias, parlendas e cantigas. é necessário que leiam as imagens, façam associações ao mundo a sua Dos quatro aos Contos de fadas, contos de animais, contos de sabedoria com cinco anos enredo estruturado; volta, aprendam a manusear o livro e a ter contato com a cultura literária. Contos acumulativos; com crianças maiores, a leitura de um texto escrito, além de contri- Lendas e mitos folclóricos; Explorar a riqueza de detalhes das poesias; buir para os fatores já mencionados, aguça-lhes, também, a curiosidade, Explorar a sonoridade das poesias, parlendas e cantigas. preparando-as para uma cultura de leitura e escrita das histórias e possi- bilitando-lhes, por fim, vivências diferentes. Ler ou contar uma história? adicionais Para Matos (2009), a leitura de um texto escrito trabalha com a percepção visual da história. Já a palavra oral envolve a percepção audi- Antes de contar uma história é recomendável preparar o tiva, proporcionando a experiência do encontro e da unidade. ambiente. O silêncio é conquistado durante a narrativa, por</p><p>30 Belissa do Pinho Jambersi A Arte de Contar Histórias na Sala de Aula 31 isso, antes de iniciar uma história, envolva o ouvinte com uma Sugestões para as aulas cantiga, um poema, uma parlenda, um trava-língua, ou outros. Gradativamente, o ouvinte vai se acalmar e se preparar para a) Contos populares para crianças: receber uma história; CASCUDO, L. da C. Contos tradicionais do Brasil. Rio de Mantenha o fluxo da narrativa. Evite interrupções. Intervenha Janeiro: Edições de Ouro, 1967. com um olhar doce e convidativo, nunca exponha ou constran- DOLORES, C. Lendas brasileiras coleção de 27 contos para ja um aluno durante a narrativa. Se, por algum motivo, o aluno crianças. Rio de Janeiro: Sá Editora. estiver irrequieto, introduza-o, silenciosamente, na narrati- PERRAULT, C. Contos de Perrault. Belo Horizonte: Itatiaia, va, por meio de um gesto ou de um olhar. Chamar a atenção, 1985. nesses casos, só vai deixá-lo mais irritado. STASCH, K. E. Conte outra vez: Contos Rítmicos. Vol. 1 e 2. Ao contar uma história, disponha os alunos em semicírculos. Botucatu: Editora Fernando Bilah: 2007. O ambiente fica mais aconchegante do que as cadeiras enfilei- radas umas atrás das outras; b) Contos literários para crianças: A duração da história varia de acordo a faixa etária. As rias podem durar dois, dez ou quinze minutos, é algo que BITTENCOURT, L. Cobra apaixonada. Rio de Janeiro: Escrita depende do momento e do público; Fina, 2011. Convém repetir uma mesma história durante alguns dias e de vez em BUENO, R. Pra lá e pra São Paulo: Editora Brasil, 2010. quando voltar a fazê-lo. As crianças exigem por uma forte razão; BREMMAN, I. que cabe num livro. São Paulo: Difusão da primeira vez, desconhecendo o que irá suceder, a expectativa é Cultural, 2006. muito forte. Nas seguintes, conhecendo o enredo, já identificadas CASCUDO, L. da C. Literatura oral no São Paulo: com algum personagem, apreciam melhor a trama, podem antecipar Itaitiaia, 1898. as emoções e torná-las mais ricas, mais duradouras (Coelho, 1994, FURNARI, E. Trucks. São Paulo: Ática, 1992. p. 55); Ritinha Bonitinha. São Paulo: Formato, 1990. (Coleção Termine a história de forma espontânea e divertida, com o As meninas) auxílio de algumas expressões populares como: "quem conta A bruxinha e o Godofredo. São Paulo: Editora Global, um conto, aumenta um ponto"; "entrou por uma porta saiu por 1994. outra, quem quiser que conte outra"; "entrou por uma porta GALDINO, J. Peralta. São Paulo: Nova América, 2010. saiu por um pé de pato, El-Rei meu senhor mandou que vos LINS, G. São Paulo: Globo Livros, 2008. contasse mais quatro" e; assim por diante. Se o uso dessas MELLO, R. A flor do lado de lá. São Paulo: Editora Global, expressões se tornar um hábito durante a atividade de contar 1999. histórias, a criança, ao findar uma história, provavelmen- MOREIRA, M. Bééé. Belo Horizonte: Editorial Abacate, 2009. te participará desse momento com entusiasmo, criando-se, SHERRY, K. Sou a maior coisa que há no mar. Rio de Janeiro: assim, uma relação de cumplicidade. Rocco, 2010. VILLELA, B. A galinha do vizinho bota amarelinho. São Paulo: Educacional, 2010.</p><p>32 Belissa do Pinho Jambersi A Arte de Contar Histórias na Sala de Aula 33 Considerações finais de teatro/dança/música, sem observar, sem se envolver com as pessoas sem, sobretudo, apreciar histórias. Se tais medidas forem tomadas, os A atividade de contar histórias para crianças da Educação Infantil professores conseguirão despertar nos alunos o interesse pela leitura. tende a ser vista como uma atividade inferior frente a crianças de idades Nesse sentido, é preciso que a atividade de contar histórias seja maiores, porque se julga que crianças de zero a três anos não tenham, vista como um trajeto pessoal de aprendizagem, não apenas como uma ainda, a capacidade de compreender os elementos de uma narrativa. técnica fechada em si mesma. Como resultado, as histórias são infantilizadas. Conta-se uma "histori- É necessário que o professor se pergunte: o que a história tem a me nha" de qualquer jeito para se dizer que contou "alguma coisa". e o que eu tenho a oferecer à história? O que é uma história? O Sisto (2005) ressalta que, além da tendência preconceituosa e que é narrar? O que é escutar? Isso já é um exercício de aprendizagem que reducionista das escolas em considerar a história infantil como "uma coloca o professor ou qualquer outra pessoa que queira contar histórias historinha", é comum, também, a tendência, nos professores de Educação em contato com suas potências criativas e estéticas (Machado, 2004). Infantil, de considerar a plateia infantil "demais" fazendo uso abusivo Independentemente da faixa etária e do nível de ensino, o professor dos diminutivos: que queira contar histórias para seus alunos deve fazer isso por prazer e era uma vez uma meninha bonitinha de vestidinho amarelo que não por obrigação e/ou apenas para fixar conteúdos. Se as histórias ficarem morava em uma casinha pequeninha, [para autor], isso não presas a uma rotina impositiva, o encanto e o prazer de ouvi-las se perdem. aproxima o contador da sua plateia nem é garantia que se esta- Não há necessidade em se determinar uma hora do dia para contar beleça uma relação afetiva. Isso sem contar no processo falacio- histórias. Pode-se iniciar a aula com uma ou pode-se contar uma história de apequenar mundo para aproximá-lo da criança, numa em um momento de euforia. linguagem (p. 30). Enfim, as histórias existem para serem contadas independente dos No trabalho com crianças pequenas, sobretudo de zero a três anos, horários e da rotina, como ressaltou Coelho (1994): é recomendável, sim, adaptar-se a linguagem e o tempo da narrativa para Há quem conte histórias para enfatizar mensagens, transmitir melhor compreensão dos ouvintes, o que não significa, necessariamente, conhecimentos, disciplinar, até fazer uma espécie de chantagem infantilizar a história. "ficarem quietinhos, conto uma história", "se isso", "se aqui- Contos de fadas, por exemplo, podem ser contados para crianças lo" quando inverso é que funciona. A história aquieta, sere- de um ano e meio, sem descaracterizar personagens e enredo. Livros na, prende a atenção, informa, socializa, educa. Quanto menor de imagens podem ser manuseados, cantigas podem ser relembradas, a preocupação em alcançar tais objetivos explicitamente, maion parlendas podem ser musicalizadas, porque afinal, a atividade de contar será a influência do contador de histórias. compromisso do histórias não está dissociada das brincadeiras populares e do exercício da narrador é com a história, enquanto fonte de satisfação de neces- sidades básicas das crianças. Se elas as escutam desde pequeninas, imaginação de cada um. provavelmente gostarão de livros, vindo a descobrir neles histórias Existem várias possibilidades de trabalho com as histórias na como aquelas que lhe eram contadas (p. 12, grifo nosso). educação infantil que permitem, ao professor, contribuir com qualidade para o desenvolvimento cognitivo da criança. Cabe a ele ter disposição Outro ponto importante, é que é inviável fazer deduções acerca do para aprender essas possibilidades. futuro das crianças. Por exemplo, se a criança A ouviu muito mais histó- Dificilmente um professor se tornará um bom contador de histórias do que a criança B, a criança A se tornará uma escritora e a criança B se não buscar referências de livros, de companhia de contadores de histórias não: não há como deduzir tal coisa. Devemos evitar esses pensamentos.</p><p>34 Belissa do Pinho Jambersi A Arte de Contar Histórias na Sala de Aula 35 O foco de preocupação não está em se tentar deduzir o destino PERISSÉ, G. Estética e educação. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009. profissional da criança, mas, sim, de lhe proporcionar um repertório SANTOS, R. Ao pé do fogo... conversas sobre oralidades. In: A arte de contar histórias: abordagens poética, literária e perfomática. São Paulo: Ícone 2010. cultural para que essa adquira, desde pequena, a capacidade crítica de SISTO, C. Textos e pretextos sobre a arte de Contar Curitiba: Positivo, apreciar trabalhos artísticos e culturais para saber discernir o que é bom 2005. e o que não é para sua formação cultural. TAHAN, M. A arte de ler e ouvir Histórias. Rio de Janeiro: Conquista, 1966. É importante compreender que o ouvido e a escuta da criança são educados a partir do que lhes é mostrado, porque o desenvolvimento infantil e, logo, a aprendizagem, é mediada pelo adulto e do que este apresenta a criança. Se apresentarmos às crianças imagens prontas, histó- rias mecânicas e sem sentido ou, então, se não mostrarmos variedades de trabalhos artísticos e culturais, provavelmente, o repertório cultural delas será limitado e reduzido. Encontra-se, aí, a necessidade de se desenvolverem trabalhos culturais e artísticos com qualidade na Educação Infantil e oferecer para a criança um amplo leque cultural para que ela possa se decidir entre o que gosta e o que não gosta, ampliando, assim, seu próprio repertório cultural. Tal qual encontraram Um dia eu encontrei Assim me contaram Assim vos (quadra popular). Referências COELHO, B. Contar Histórias uma arte sem idade. São Paulo: Ática, 1994. DUQUE, G. J. Adonde irás, narracion oral?, 2006. Disponível em: <www. Acesso em: 30 jan. 2013. MACHADO, R. Acordais fundamentos da arte de contar histórias. São Paulo: DCL, 2004. ROCHA, V. M. Aprender pela arte a arte de narrar: formação estética e artística dos contadores de histórias. Tese (Doutorado) Universidade do Estado de São Paulo Escola de Comunicação e Arte de São Paulo, São Paulo, 2010 I. "Era uma vez" um breve histórico das histórias para crianças. In: TIERNO, G. (Org.). A arte de contar histórias: abordagem poética, literária e performática. São Paulo: 2010. MATOS, G. do contador de histórias. São Paulo: Martins Fontes, 2009.</p><p>02 Ensino da Linguagem Escrita na Creche Algumas reflexões sobre a mediação docente Ana Carolina Perrusi Brandão e Ester Calland de Sousa Rosa Pretende-se discutir, neste capítulo, questões relacionadas ao trabalho pedagógico voltado para a aprendizagem da linguagem escrita de crianças menores de três anos. Como sabemos, falar de ensino no segmento da Educação Infantil em especial, de ensino da leitura e escrita é um tema que mobiliza pontos de vista muito distintos, tanto de pesquisadores na área, quanto de educadores de crianças pequenas. Buscamos, portanto, explicitar, aqui, diferentes posições teóri- cas e práticas pedagógicas a elas articuladas, com vistas a contribuir para a reflexão sobre o que pode significar ensinar a ler e a escrever creches. Nessa direção, partimos, inicialmente, da constatação de que desde muito pequenas, demonstram interesse pela linguagem escrita. Em seguida, examinamos o que tem sido proposto em termos de orientações aos professores para transformar tal interesse em apren- dizagens, no contexto da Educação Infantil. Para tanto, recorremos à análise do que tem sido recomendado em alguns documentos oficiais recentes para o ensino da leitura e da escrita a crianças com até três anos. Finalmente, considerando-se a concepção de ensino da linguagem escri- la por nós defendida, refletimos sobre as possibilidades pedagógicas de</p><p>38 Ana Carolina Perrusi Brandão e Ester Calland de Sousa Rosa Ensino da Linguagem Escrita na Creche 39 iniciação de crianças na faixa etária de zero a três anos no mundo da Com 1 ano e 4 meses, Lia produzia, pela primeira vez, alguns sons ao escrita, dando um destaque especial ao papel da leitura de livros de lite- olhar para um texto escrito e estes eram interpretados e explicitados pelo ratura infantil para os pequenos. adulto como leitura Oh! Cê tá lendo!; A Lia tá lendo; Que que cê tá lendo aí? (p. 93). Na interação com a criança, portanto, fica evidente que o adulto funcionava como um co-construtor desse interesse (p. 93). As crianças pequenas e Mayrink-Sabinson (1998) também registra os primeiros usos que seu/nosso interesse pela escrita criança faz da escrita a partir de 1 ano e 10 meses, quando brinca de telefone, olha uma agenda e diz, enquanto disca: sete, nove, sete, nove Crianças, ainda que muito pequenas, demonstram, frequente- 94). Ou quando, aos 2 anos e 5 meses, na tentativa de ajudar a mãe que mente, interesse pela escrita. Quem convive com elas pode facilmente havia anunciado sua intenção de ligar para a avó da criança, corre para perceber que tal curiosidade traduz-se, muitas vezes, em gestos como o pegar a mesma agenda, folheia-a, aponta para uma escrita e diz, como se manuseio de livros e revistas, apontar com o dedinho para as páginas, estivesse lendo: Vovó Dazinha. Aqui. Achei. Vovó Dazinha (p. 94). além da emissão de vocalizações enquanto folheiam materiais escritos e Com 1 ano e 8 meses, o pai de Lia, pela primeira vez, orienta a da atenção à leitura em alta realizada pelos adultos. atenção da filha para as letras, apontando a letra A numa plaqueta em Também no campo da pesquisa, diversos estudos têm confirma- que estava escrito o nome da mãe: LAURA. Durante os três dias seguin- do que as crianças são capazes de participar, ativamente, de eventos de les, segundo relata a autora, o pai mostraria um livro do ABC com letras leitura e de escrita muito cedo. A pesquisa de Mayrink-Sabinson (1998), grandes e coloridas e desenhos correspondentes a cada letra. O livro por exemplo, relata o processo de aquisição da escrita percorrido por seria abandonado por Lia mais tarde e, só aos 2 anos e 7 meses, ela reto- Lia, filha da pesquisadora, desde um ano até completar 7 anos e 3 meses, mará interesse pelo jogo de reconhecimento das letras estabelecido quando concluiu a, então, série, e foi considerada alfabetizada. pai. Neste período, passará, então, a adotar o modo de apresenta- Partindo da perspectiva de que a interação dos sujeitos com a das letras proposto por ele (o B de o L de...), construindo a ideia escrita é mediada por um interlocutor e sua linguagem, a autora registrou de que as letras tem proprietários. Mais adiante, os adultos passariam em um diário, cuidadosamente, os encontros de Lia com a escrita. Na questionar essa noção e Lia, aos 3 anos, começaria a fazer algumas verdade, tais encontros eram frequentes, já que Lia vivia num ambien- admitindo, por exemplo, que o L é de Lia e, também, de te cercado de livros e material escrito, bem como de pessoas que liam, Laura (sua mãe). escreviam e falavam a respeito da escrita. Naquele contexto, conforme A autora continua, ainda, relatando outros episódios em que a salienta Mayrink-Sabinson (1998), o processo de constituição de conhe- tenta traçar as letras de nomes significativos, pedindo para que cimentos sobre a escrita, no caso de Lia, ocorreu em paralelo com a sua mãe escrevesse palavras que lhe interessam ou tentando escrever, do aquisição da linguagem oral. próprio punho, palavras e textos, reafirmando, portanto, seu grande inte- Assim, ainda com 1 ano e 12 dias, a mãe observou, pela primeira pela escrita. A autora, contudo, não deixa de ressaltar o papel do vez, Lia passar o dedinho indicador sobre as letras grandes e coloridas de adulto letrado durante todo o percurso de Lia na construção dos conheci- uma embalagem. Segundo afirma-se no texto, nesta e nas muitas ocasiões mentos acerca da escrita. Assim, o estudo de Mayrink-Sabinson (1998) em que isso passaria a ocorrer, a mãe repetiria o gesto da filha lendo, em as conclusões de Neves e Monteiro (2013) quando estas alta, o que estava escrito. Dessa forma, segunda a autora, o adulto se afirmam que: o leitor/escritor (e sua condição letrada) se constitui a partir de empenha, junto à criança, na constituição de um interesse pela escrita (p. 92). práticas de letramento que compõem seu universo cultural (p. 116).</p><p>40 Ana Carolina Perrusi Brandão e Ester Calland de Sousa Rosa Ensino da Linguagem Escrita na Creche 41 Tal afirmação de Neves e Monteiro (2013), também advém da da creche buscar explicar os motivos de suas ações, dando maior sentido análise da interação de uma criança com a linguagem escrita no contexto às práticas letradas vivenciadas com as crianças ou que são, por elas, familiar, com base na observação de dois episódios ocorridos com uma observadas. mesma menina, aos 2 anos e depois aos 2 anos e 11 meses. No estudo, as A possibilidade de estabelecer vínculos entre os usos da leitura autoras analisam, inicialmente, um episódio em que, durante um almoço escrita no ambiente doméstico e entre aqueles que ocorrem nos espa- de família, na casa da avó, a criança brinca de casinha. Em certo ponto, institucionalizados de Educação Infantil, foi o objeto de pesquisa ela interrompe a brincadeira e observa a mãe atendendo o celular e regis- realizada por Kenner (2000), quando acompanhou crianças bilíngues na trando alguma informação numa caderneta. Imediatamente, imita sua faixa dos 3 anos de idade. O argumento central defendido pela autora é mãe ao telefone levando um pedacinho de brinquedo ao ouvido e pegan- de que as crianças bilíngues, desde muito cedo, além de observarem do, também, um papel e um lápis, fazendo movimentos como se esti- os usos que seus familiares fazem da língua escrita à semelhança do vesse escrevendo. Com base nessa observação e numa conversa com a que também foi constatado nas pesquisas já citadas - percebem que há criança conduzida por uma das pesquisadoras, Neves e Monteiro (2013) diferenças entre as línguas às quais estão expostas, inclusive, no que se argumentam que, a princípio, a criança parece imitar o comportamento refere aos sinais utilizados para escrever, sua distribuição espacial na do adulto. Assim, a menina diz que está notando no papel porque tem e a direção da escrita. Um dos participantes da pesquisa, Billy, que notar (querendo dizer "anotar"), incorporando um comportamento na época, 3 anos e 5 meses e era filho de mãe tailandesa e pai letrado dos adultos com os quais convive, ainda que não compreenda, britânico. Billy tinha um livro que apresentava as letras do alfabeto exatamente, seu sentido. Onze meses mais tarde, porém, tal noção se em tailandês. Sua mãe emprestou o livro à creche que ele frequentava modifica. numa conversa com a pesquisadora, Billy disse que sua mãe escre- Ao participar de uma conversa com adultos, uma prima diz à do jeito que estava escrito no livro. Sua mãe informou, ainda, que menina para não se esquecer da data de seu aniversário. Neste momento, ele se sentava junto dela, enquanto escrevia cartas para a família que a mãe interfere e sugere que elas a anotem na agenda. A menina diz, morava na Tailândia. Nessas ocasiões, ele dizia: "escreva aí, eu, Billy, então: Onde está minha agenda? Preciso de uma caneta. Neste ponto, começa Elizabeth", indicando que ele e a irmã também deviam ser incluídos a escrever na agenda e diz: É aniversário da Júlia. Eu vou escrever. Ao ser carta. Ao mesmo tempo, ele escrevia em outra folha de papel, regis- solicitada a justificar sua ação ela completa: para não (p. 123). trando vários símbolos curvados (à semelhança dos signos tailandeses), Tal mudança não ocorre por acaso ou é fruto da maturação. As parecendo a escrita da mãe. Outra criança, Meera, de 3 anos e 10 autoras destacam que, ao utilizar a leitura e a escrita nas situações do meses, filha de pais indianos que falavam com ela em gujarati, também dia a dia, os adultos não costumam explicitar os motivos de suas ações. linha uma ampla convivência com materiais escritos em duas línguas. Assim, é grande o esforço da criança para que consiga desvendar e compre- Como os pais eram comerciantes de produtos indianos, ela convivia ender que está implícito nos comportamentos dos adultos os sentidos guar- diversos rótulos e folhetos em sua língua materna. Frequentemente, dados pelo conhecimento compartilhado (p. 121). brincava com a irmã de preencher formulários com pedidos de compras No contexto escolar, a atuação do adulto deve, no entanto, "ganhar de anotar pedidos feitos pelo telefone. Na brincadeira, o tracejado de status de mediação pedagógica" tal como também salientam as autoras. suas anotações se assemelhava, em termos de distribuição na página, Isto significa planejar, intencionalmente, eventos de letramento e explici- direção da escrita e de desenho das letras, ao alfabeto como é grafado tar os sentidos implícitos envolvidos nas práticas de leitura e escrita das escrita gujarati. quais as crianças participam. Assim, entendemos que cabe às professoras</p><p>42 Ana Carolina Perrusi Brandão e Ester Calland de Sousa Rosa Ensino da Linguagem Escrita na Creche 43 Como vimos até aqui, o interesse das crianças pela escrita pode Temos enfatizado, ainda, que crianças pequenas podem aprender alguns ser despertado muito cedo quando ela convive com livros e leitores que princípios do nosso sistema de sem que isso signifique obrigá- fazem uso da escrita em diferentes espaços sociais, para atender a dife- las a fazer repetidas atividades mecânicas com lápis e papel envolvendo rentes finalidades. Este, porém, não é um cenário sempre presente nas escrita de vogais, consoantes, sílabas e palavras (ver Brandão, 2009, casas de todas as crianças ou, pelo menos, frequente nas escolas, seja Brandão; Leal, 2010). na Educação Infantil ou nos anos seguintes do Ensino Fundamental. Ou seja, por vezes, o ensino da leitura e da escrita ocorre completamente afastado dos atos reais em que precisamos ler determinados textos ou Ler e escrever na creche: o que ensinar às crianças? escrever para um certo destinatário com vistas a atender um desejo ou intenção que vá além de responder ao pedido da professora. Como constatado na prática, convivemos com diferentes pontos A esse respeito, Corsino (2011), ao analisar entrevistas acerca de vista sobre o que e como ensinar a leitura e a escrita já nos primei- das visões sobre o letramento expressas por professoras que atuavam na anos de vida. Essas divergências podem ser identificadas, inclusive, equipe central de Educação Infantil da Secretaria de Educação do Rio de em documentos oficiais recentes que oferecem distintas orientações aos Janeiro, alerta que: professores sobre o que deve ser esse ensino para crianças menores de seis anos. Alguns professores acreditam ser possível inserir as crianças no Nesta seção, partimos do estudo de Brandão e Leal (2013) em mundo letrado sem os textos fazerem parte de práticas sociais que foram analisadas Propostas Curriculares para a Educação Infantil e sem fazerem sentido para os sujeitos. Será que assim esta- mos buscando caminhos para letrar alfabetizando ou de capitais do país, com o foco nas recomendações apresentadas pelos letrando? (p. 255). documentos para o trabalho pedagógico com a leitura e a escrita. Nas propostas examinadas, as autoras identificaram duas grandes orientações Como temos argumentado (ver Brandão; Rosa, 2010) a resposta distintas neste campo, a saber: aquelas que orientam que é no contato com é, evidentemente, NÃO. Portanto, assim como Corsino (2011), entende- textos, sem intervenções mais sistemáticas de ensino da base alfabética, que as mos que: tornam-se usuárias da escrita (abordagem mais centrada nas teorias do letramento) e um segundo bloco que recomenda que é preciso alfabetizar É fundamental que os textos escritos façam sentido para as crian- ças e que ler e escrever sejam relevantes e necessários para as suas letrando (ou seja, ao mesmo tempo ter contato com os textos e com um trabalho vidas, ou seja, é no interior das práticas sociais de leitura e de escri- sistemático de apropriação do Sistema de Escrita Alfabética SEA). Por fim, em ta que os textos vão ganhando sentido para as crianças (p. 246) Além disso, em conjunto com outros autores, temos deixado claro, processos específicos, ainda que não isolados um do outro. Assim, ideal seria alfa- que já na Educação Infantil, é importante introduzir as crianças ao siste- betizar letrando, ou seja: ensinar a ler e escrever no contexto das práticas sociais da ma de escrita alfabética e algumas de suas convenções, ao mesmo tempo leitura e da escrita, de modo que o indivíduo se tornasse, ao mesmo tempo, alfabetizado letrado" (Soares, 1998, p. 47). em que participam de práticas sociais mediadas pela escrita (ver Soares, Tais como: "Escreve-se com letras que não podem ser inventadas, que têm um reper- 2009; Brandão; Rosa, 2010; Baptista, 2011; Neves; Monteiro, tório finito e que são diferentes de números e de outros símbolos; [...] A ordem das letras no interior da palavra não pode ser mudada; Uma letra pode se repetir no interior 1. Vale salientar que, embora alguns autores tenham optado por não separar os conceitos de uma palavra e em diferentes palavras, ao mesmo tempo em que distintas palavras de letramento e alfabetização, assim como Soares (1998), entendemos tratarem-se de compartilham as mesmas letras [...]" (Morais, 2012, p. 51).</p><p>44 Ana Carolina Perrusi Brandão e Ester Calland de Sousa Rosa Ensino da Linguagem Escrita na Creche 45 apenas um dos documentos analisados, a perspectiva defendida voltava- Imitar comportamentos de escritor em suas brincadeiras -se na direção de alfabetizar as crianças de métodos sintéticos (p. 152). licas: assinar documentos, anotar recados, fazer listas de compras Tendo como referência essas categorias, optamos por exami- etc.; nar alguns dos documentos indicados por Brandão e Leal (2013), que Experimentar escrever à sua maneira diferentes defendem a perspectiva de alfabetizar letrando, desde a Educação textuais, tais como um bilhete ou um cartão de aniversário; Infantil. Vale salientar que, considerando-se o foco desse texto, concen- Reconhecer e experimentar escrever o seu nome, identificando tramo-nos para essa análise, nas orientações dadas para o segmento de diferentes situações do cotidiano em que a escrita do próprio zero a 3 anos. nome se faz necessária; Examinando, então, as Propostas de Natal (2008), Belo Horizonte Perceber diferença entre letras e outros modos de representação; (2009) e São Paulo (2007), observamos uma grande aproximação entre Reconhecer as letras do próprio nome e outras em diferentes os documentos no campo da linguagem escrita. Vejamos uma síntese do textos; que foi encontrado nos referidos documentos quanto às capacidades a Nomear as letras iniciais do próprio nome; serem desenvolvidas do berçário até os três anos de no que se Reconhecer a semelhança gráfica entre a inicial de seu nome e refere ao ensino da linguagem escrita: as demais iniciais dos colegas que também possuem a mesma Observar e manusear diversos suportes de leitura; letra; Ouvir histórias; Participar de situações de atenção aos aspectos sonoros da Envolver-se em perguntas feitas pelo professor a respeito do linguagem, como ritmo e rimas, em parlendas, quadrinhas, texto lido; poesias e trava-línguas; Escolher livros para ler ao seu modo e apreciá-los; Aprender a reconhecer e usar rimas em suas brincadeiras, Reproduzir os comportamentos, a gestualidade e a postura que espontaneamente, bem como recitar de memória textos da professor adota quando tais como ler a partir da capa, tradição oral como parlendas e quadrinhas que são ditos ou virar as páginas do livro sucessivamente etc.; lidos pelo professor. Reconhecer textos recorrentes no cotidiano tais como convi- tes para festas de aniversário, roteiro para atividades do dia, Como é possível notar, as capacidades elencadas anteriormente dentre outros; incluem tanto aquelas mais voltadas para o eixo do letramento, como Reconhecer materiais escritos expostos na sala; outras mais centradas no eixo da alfabetização. Assim, pode-se afirmar Familiarizar-se com a escrita por meio da participação em que os documentos que propõem tais objetivos concordam que situações em que ela se faz necessária; [...] a criança está inserida no processo de alfabetização e letra- Participar de situações de escrita coletiva; mento muito antes de chegar à escola, praticamente desde quando nasce, porque esse é um processo social, e não é exclusividade da escola. Daí não haver motivos de se esperar momento adequado para a alfabetização. Acreditamos que o 3. Vale destacar que as capacidades indicadas nos documentos consultados e agrupadas ciclo da Educação Infantil deve assumir também esse processo, aqui também continuam a ser desenvolvidas com crianças entre 4 e 6 anos. No entanto, num trabalho planejado e sistemático com a língua escrita (Belo neste 2° ciclo da Educação Infantil, novas capacidades são, evidentemente, indicadas Horizonte, 2009, p. 128). nos documentos.</p><p>46 Ana Carolina Perrusi Brandão e Ester Calland de Sousa Rosa Ensino da Linguagem Escrita na Creche 47 Apesar de alguns documentos de redes municipais se posiciona- De fato, se é essa a compreensão que se tem sobre o processo de rem claramente a favor de uma perspectiva integradora entre as ativida- alfabetização, é justificável todo o investimento feito em atividades de des de alfabetização e de letramento das crianças já a partir das creches, discriminação perceptual, atenção e coordenação motora já que tais habi- conforme salientam Brandão e Leal (2013), o discurso oficial do MEC lidades colaboram para a fixação das associações grafofônicas. Não por não parece seguir, de forma clara, essa direção. acaso, frequentemente, ouvimos falar de crianças que já a partir de dois Como temos argumentado, promover o "convívio com diferen- anos são solicitadas a escrever amiguinhas (i.e. as vogais) bem bonito tes gêneros textuais" é apenas uma parte do que podemos fazer para o até completar uma folha inteira de um caderno de pauta ou são propostas desenvolvimento da linguagem escrita na Educação Infantil. Em outras atividades em que tenham que cobrir tracinhos para formar letras ou, palavras, também é preciso definir objetivos e atividades voltadas para o simplesmente, para formar alguma figura. Mais adiante com 4, 5 anos, eixo da alfabetização, que promovam a reflexão sobre as propriedades do além da repetição da escrita das letras, pautadas nessa mesma compreen- nosso sistema de escrita e isso, afirmamos mais uma vez, não significa, do que é ensinar a escrever, também aparecem propostas de cópia de necessariamente, encher as crianças de fichas para desenvolver a coor- família silábicas, palavras, ou, mesmo, de pequenos textos, igualmente, denação motora, a discriminação perceptual e a memorização de letras e sem qualquer sentido para as crianças. O trecho a seguir, extraído de sílabas, tal como discutiremos no tópico seguinte. (2009) ao registrar o trabalho realizado em uma instituição privada em uma cidade no interior de São Paulo, ilustra bem esse tipo de prática em um grupo de crianças na faixa dos 2 a 3 anos de idade. Vejamos a Ler e escrever na creche: o que tem sido ensinado? transcrição do que foi observado pela autora: A professora perguntou quem havia feito a tarefa de casa, Apesar do grande impacto dos estudos de Ferreiro e Teberosky que era recortar palavras com a letra M. Das seis crianças em (1979, 1986, 1993), publicados no Brasil a partir do final da década de sala, três fizeram a tarefa. A professora pegou as palavras que 1970, vemos, ainda hoje, florescer materiais didáticos e práticas que se as crianças trouxeram, leu e depois pediu que cada uma desse baseiam na noção de que o sucesso na alfabetização resultaria da simples duas palavras para amigo que não havia feito a lição. Depois, memorização de associações entre grafemas e fonemas. Assim, ignora- ela escreveu a letra M no quadro, disse como deveriam fazer: -se o que foi tão bem evidenciado pelas autoras: a criança pensa sobre "Sobe, desce, sobe, desce", deu uma folha em branco para cada a língua escrita e tem ideias próprias sobre para que servem os diversos criança, passou cola e pediu que colassem as letras que haviam trazido, ao final, passou de carteira em carteira e escreveu com escritos ao seu redor. Dessa forma, ela busca ativamente entender e apro- canetinha a letra M e pediu que as crianças copiassem a letra M priar-se de um sistema de representação e não de um código. Trata-se, no restante da folha. As crianças realizaram a atividade, então a portanto, de uma construção conceitual em que o aprendiz se empenha professora chamou uma de cada vez para a atividade em entender o que a escrita representa (ou seja, os sons das palavras), e deu um desenho de uma galinha para que cada uma colorisse bem como a lógica da relação entre a escrita e a pauta sonora (ou seja, (Silva, 2009, p. 41). uma relação alfabética e não silábica). Tudo isso é muito diferente de memorizar relações entre letras e sons que são apresentadas seguindo Como vemos, esse tipo de proposta parte da ideia de que, uma uma ordem fixa, partindo dos padrões grafofônicos tidos como mais memorizados os segmentos menores (tais como letras, fonemas ou simples até os, supostamente, mais complexos. estes serão naturalmente compreendidos pelas crianças como constituintes das palavras. Assim, facilmente elas poderão escrever e ler</p><p>48 Ana Carolina Perrusi Brandão e Ester Calland de Sousa Rosa Ensino da Linguagem Escrita na Creche 49 no futuro juntando os pedacinhos já memorizados. Em outras palavras, o professora que atuava numa creche municipal de Recife. Vejamos um princípio é que as letras, ensinadas uma de cada vez, finalmente se juntam trecho desse relato: para formar sílabas que, por sua vez, se juntam para formar palavras, que se juntam para formar frases, que se juntam para formar textos... [...] a docente espalhou as letras na mesa e incentivou as crian- ças a procurarem as letras do seu nome. No segundo dia, ela Em síntese, a sequência de atividades executada pela professo- entregou uma ficha com nome das crianças escrito em letra ra parece estar orientada por uma compreensão de escrita que pressu- de forma e pediu para que elas fossem colocando a letra corres- essencialmente, habilidades perceptomotoras desenhar as letras pondente à letra do seu nome, uma em cima da outra. No início e e de memória, algo totalmente distanciado de uma tarefa da atividade, as crianças pareciam escolher as letras de forma cognitiva mais complexa como foi revelado nas pesquisas de Ferreiro e aleatória, sem a preocupação em "formar" seus nomes. Porém, Teberosky. com a intervenção da professora, passaram a procurar as letras Podemos observar, ainda, que a professora conduz sua prática mais atentamente (p. 23). baseando-se em marcadores usuais das práticas tradicionais de orga- Como já afirmamos, este nos parece um bom exemplo de traba- nização do ensino dever de casa, correção individual das produções que pode ser realizado em creches, tendo, como o eixo da infantis, cópia sem significado para as crianças dando a impressão de alfabetização, pois propicia, como sugerem as autoras, que as crianças que essa rotina será seguida da mesma maneira para as demais letras do possam experimentar uma forma de 'escrever' sem a exigência de uma destre- alfabeto. Sua compreensão do ensino da escrita se afasta, por completo, motora ou de ter que acertar a escrita do nome logo de início 24). Outro das práticas sociais mediadas pela escrita. Isso fica evidente, inclusive, aspecto relevante neste exemplo é que as letras e seus nomes vão sendo na sequência de atividades propostas que não implica numa progressão aprendidas no contexto dos nomes das crianças e de seus colegas o que, dos conhecimentos sobre a linguagem escrita ou sua aplicação em situ- carrega em si um forte apelo motivacional para elas. Por ações de comunicação real. Além disso, vale salientar que, da mesma fim, destacamos o papel da professora que, ao intervir nas produções forma como as letras são introduzidas sem uma finalidade para além das crianças, contribuiu para que fossem se apropriando de um modo do treino motor e de identificação perceptual, a atividade com desenho de escrever que não é, necessariamente, aquele que elas seriam capazes que vem em seguida não guarda relação alguma com o trabalho que de realizar sozinhas. Nessa direção, voltando à referência a Ferreiro e vinha sendo realizado com a letra M. Por fim, também é preciso desta- Teberosky, entendemos que reconhecer a atividade de escrita em sua car que esse ensino repetitivo que, certamente, desperta pouco interesse dimensão cognitiva não pressupõe um professor que vai esperar que nas crianças pequenas, é cansativo e questionável para alunos de qual- criança descubra sozinha como o sistema de escrita funciona, mas quer idade. que, pelo contrário, contribui para o desenvolvimento da escrita quando Evidentemente, discordamos das concepções que orientam a propõe atividades ou formula perguntas que levam as crianças a pensa- prática pedagógica já exemplificada. Como vimos no item anterior, o sobre esse sistema. ensino das letras tem sido indicado entre os objetivos pedagógicos da A esse respeito, a chamada com cartões em que estão escri- creche. Porém, como escapar desse padrão? Na pesquisa realizada por los os nomes das crianças é, ao nosso ver, outra atividade interessante Simões e Santana (2009) encontramos algumas boas alternativas. Na no eixo da alfabetização. Por meio desse recurso, as crianças vão não observação de duas turmas de crianças de três anos, as autoras relatam, apenas reconhecendo seus próprios nomes, mas também os nomes dos por exemplo, atividades com o alfabeto móvel conduzidas por uma Além disso, a partir da intervenção da professora, elas também</p><p>50 Ana Carolina Perrusi Brandão e Ester Calland de Sousa Rosa Ensino da Linguagem Escrita na Creche 51 vão aprendendo os nomes das letras.4 A seguir, vemos alguns murais de chamada presentes em salas de crianças menores de três anos. ADA JOAQUIM CAMILA KLUCAS Figura 3. Como se pode ver nesta imagem, o mural está facilmente acessível às crianças. Ainda com respeito aos murais de chamada, vale destacar que a Figura 1. Mural de chamada em tecido numa sala com crianças entre 1 e 2 anos. opção por letras de imprensa maiúscula é a que, sem dúvida, julgamos Nota-se que os cartões trazem o desenho de um animal antes de cada nome para facilitar a memorização das crianças. No mural, o mesmo desenho marca o local mais correta, não apenas para as creches, mas para todo o segmento onde cada uma deve colocar o seu cartão. da Educação Infantil. Conforme salientam Albuquerque e Leite (2010) esse tipo de letra está presente no cotidiano das crianças em outdoors, placas, rótulos de produtos; são mais claramente identificadas nas CAROLINA palavras já que, diferentemente da letra cursiva, é possível distinguir, nitidamente, cada letra; além de serem mais facilmente reproduzidas AMANA pelas crianças, tendo em vista seu traçado mais simples. Ainda para as RICARDO GABRIEL referidas autoras, a opção pela letra bastão não implica banir os outros LORENA tipos de letras nas salas das creches ou Pré-escolas. Como elas ressal- LARA tam: a diversidade de formas de se grafar as letras pode ser trabalhada na GABRIELA ALICE SANTOS JULIA escola por meio da leitura e escrita de diferentes textos, em diferentes supor- tes (Albuquerque; Leite, 2010, p. 112). Assim, não cabe exigir das crian- o reconhecimento e a cópia bonita de letras cursivas maiúsculas e Figura 2. Mural de chamada numa sala de crianças entre 2 e 3 anos. Nota-se que os cartões com os nomes das crianças não utilizam mais o recurso do desenho. minúsculas. Como enfatizam as autoras: qual a necessidade que têm as crianças, nesta fase, de adquirir esse conhecimento? Para nós, não há, de fato, necessidade alguma! 4. Vale notar que, conforme discutimos no item Ler e escrever na creche: o que ensinar às crianças? (p. 43) deste capítulo, as aprendizagens que podem ser propiciadas por meio da atividade de chamada com cartões estão entre as capacidades indicadas para serem desenvolvidas na creche.</p><p>52 Ana Carolina Perrusi Brandão e Ester Calland de Sousa Rosa Ensino da Linguagem Escrita na Creche 53 A literatura infantil como via Além disso, o engajamento na roda de história pode servir como um de inserção na cultura escrita protótipo daquilo que será o leitor de literatura em etapas posteriores da vida. Pelo que foi exposto até aqui, fica evidente nossa defesa de que Assim, entendemos que o letramento literário na creche pode ser o ensino da leitura e da escrita para crianças de até três anos precisa ser propiciado na realização de rodas de histórias que atendam a diferentes orientado pela inserção progressiva em práticas sociais que envolvam finalidades: ler para transformar o livro em brinquedo, ler para conhecer textos escritos e também por momentos em que o próprio sistema de histórias, ler para se divertir com as palavras e sua forma de estruturação notação seja objeto de reflexão por parte das crianças, orientadas e apoia- no texto, ler para conversar sobre temas lidos, ler para encantar-se com das por educadores. a sonoridade ou com o significado das palavras, dentre outras possibi- No contexto da creche, argumentamos, ainda, que a leitura lidades. Ou, na expressão do poeta Manoel de Barros, ler para escovar compartilhada de histórias pode ser realizada, também, com a finalidade palavras e encontrar nelas seus múltiplos sentidos, tal como arqueólogos apontada. Aqui, vale ressaltar que não estamos propondo que a leitura de que escovam ossos em busca de vestígios do passado. textos literários seja pretexto para alfabetizar, mas que se trata de uma Outro destaque que podemos dar ao letramento literário e que produção cultural que pode favorecer a proposição de atividades pauta- pode ser propiciado na roda de histórias é a possibilidade de se consti- das pela perspectiva de se alfabetizar tuir uma comunidade interpretativa (Colomer, 2007, p. 148). Ouvir, coleti- Inicialmente, pontuamos que algumas pesquisas têm identificado vamente, textos que mobilizam efeitos estéticos e aprender a conversar ser possível inserir, na rotina de creches, a realização de rodas de história sobre eles pode marcar a trajetória desses pequenos leitores que passam Santana, 2009; Santos, 2010; Ramos, 2010) que envolvam a ter um repertório comum de autores e textos conhecidos e aprendem a leitura em alta pela professora de textos literários diversos, abran- compartilhar suas experiências enquanto leitores. gendo desde contos infantis e poemas, até textos da tradição oral como Se no eixo do letramento podemos afirmar que ler literatura inci- parlendas, quadrinhas e canções. de sobre questões básicas tais como o que e para que ler, no eixo da alfa- Se colocarmos ênfase na dimensão do letramento, a realização betização, pode favorecer a reflexão sobre como se e o que se escreve. de rodas de história pode se constituir num meio de inserção da criança Novamente recorrendo ao estudo de Simões e Santana (2009), iden- pequena na linguagem escrita, especialmente aquela reconhecida como algumas das observações das autoras que exemplificam como a literatura. Por sua vez, se entendemos que a obra de ficção se caracteriza roda de história pode, também, propiciar atividades no eixo da alfabetiza- por lidar de uma forma simbólica com o mundo, sendo marcada pela Elas constataram, por exemplo, que uma das docentes apresentava o polissemia, por lacunas e ambiguidades que propiciam efeitos estéti- livro que seria lido chamando a atenção para o que estava escrito na capa, cos, sua leitura interfere, também, na constituição do leitor. Isso porque, apontando com o dedo para o título, o nome do autor e da editora. Depois da quem literatura precisa intervir com sua imaginação e recorrer a suas leitura, a professora solicitava que algumas crianças recontassem a histó- e conhecimentos para dar vida ao mundo formulado pelo escri- ria lida. Nessas ocasiões, foi observado que as crianças tendiam a repetir tor (Zilberman, 2000, p. 98). Assim, propiciar o contato com a literatura, mediado pelo educador, pode contribuir para formar leitores que lidam O depoimento do filósofo e escritor francês Jean-Paul Sartre é muito ilustrativo dessa com textos, desde cedo, buscando seu sentido. É possível que, em um forma de apropriação dos livros por parte de crianças bem pequenas. Ele relata em seu livro As palavras (1984) que, ao ganhar de presente seu primeiro livro, As fadas, espan- primeiro momento, mais do que o sentido do texto, a principal descober- tou-se quando a mãe se ofereceu para ler o livro. Surpreso, ele perguntou: "as fadas estão ta da criança seja que o livro fala e tem um modo peculiar de dizer o que dentro?". Na sequência, ao perceber que não reconhecia a fala da mãe enquanto ela estava lendo, o autor conclui deslumbrado: "Era o livro que falava" (p. 33-35).</p><p>54 Ana Carolina Perrusi Brandão e Ester Calland de Sousa Rosa Ensino da Linguagem Escrita na Creche 55 o comportamento leitor da professora, percorrendo com o dedo as pala- Como também foi apontado entre os objetivos pedagógicos vras destacadas anteriormente por As crianças também começavam presentes nas Propostas Curriculares examinadas anteriormente, espera- a identificar na capa dos livros o nome das editoras (possivelmente com a -se que, ao final do 1° ciclo da Educação Infantil, as crianças possam ajuda dos ícones a eles associados). Nessas ocasiões, havia um destaque identificar e produzir rimas por meio das brincadeiras com parlendas e dado pela professora e compreendido pelas crianças, para a localização de quadrinhas. Mais adiante, na pré-escola, a proposta de jogos e atividades onde se no livro, colaborando para a distinção entre escrita e desenho. mais específicas voltadas para a análise fonológica contribui para que Em outra roda relatada pelas autoras, após ler uma história que tinha como elas compreendam que as palavras correspondem a uma sequência de personagem um sapo, a professora cantou com as crianças a canção segmentos sonoros, uma descoberta fundamental para a compreensão do sapo não lava pé. A canção estava escrita em um cartaz exposto na sala princípio alfabético, isto é, e a docente lia a letra passando o dedo abaixo das palavras. Em seguida, perguntou qual das crianças conseguia achar "a palavrinha sapo" no cartaz. se o sistema alfabético representa os sons da língua, é necessário Segundo as autoras: As crianças fizeram uma festa e logo encontraram a palavra que a criança torne-se capaz de voltar sua atenção não apenas que, na verdade, estava em tamanho um pouco maior, no texto 19). Ao lançar para o significado do que fala ou ouve, mas também para a cadeia sonora com que se expressa oralmente ou que recebe oralmen- esse desafio às crianças de localizar uma palavra que se repete ao longo da te de quem com ela fala; que perceba, na frase falada ou ouvida, canção, a professora leva os pequenos a prestar atenção às letras e ao modo os sons que delimitam as palavras, em cada palavra, os sons das como as palavras estão escritas. Ou seja, as crianças vão aprendendo que as sílabas que constituem cada palavra, em cada sílaba, os sons de palavras obedecem a uma sequência fixa de sinais, já que todas as palavras que são feitas (Soares, 2009). "SAPO" do texto são escritas de uma mesma forma. No nosso entendimento, tal como a professora realizou, outras Por fim, concordamos, mais uma vez, com a professora Magda atividades no eixo da alfabetização também podem envolver textos lite- Soares, quando afirma que rários da tradição oral, tais como parlendas e quadrinhas rimadas ou mesmo poemas que brincam com os sons das palavras. Esses textos com A leitura frequente de histórias para crianças é, sem dúvida, a seu ritmo, suas rimas e aliterações despertam as crianças para os sons principal e indispensável atividade de letramento na educação infantil. Se adequadamente desenvolvida, essa atividade conduz das palavras e as possíveis semelhanças sonoras entre elas. Conforme a criança, desde muito pequena, a conhecimentos e habilidades Morais (2012), crianças muito pequenas já mostram habilidades de refle- fundamentais para a sua plena inserção no mundo da escrita xão metafonológica. Ou seja, são capazes de trabalhar mentalmente as pala- (Soares, 2009). vras, observando seus 'pedaços' ou segmentos sonoros 83), tal como revela Pedro, citado por Morais (2012) que, com 1 ano e nove meses diz dian- te de um computador que pretende escrever "tu-ba-rão" e, em seguida, A linguagem escrita nas creches: "ja-bu-ti", espontaneamente pronunciando as palavras separando-as em qualquer ensino vale a pena? partes menores enquanto vai batendo nas teclas do computador. Ao longo do capítulo defendemos ser possível e importante 6. Santos (2010), examinando rodas de história conduzidas em uma creche (do berçário inserir o ensino da leitura e da escrita nas práticas pedagógicas, já a ao Grupo 3) concluiu que as crianças, desde o berçário, já manifestam comportamentos partir das creches. No entanto, não defendemos qualquer ensino, mas, leitores: prestam atenção à história, apontam para o livro, passam suas páginas, fixam seu olhar nas ilustrações, entre outros. sim, aquele que contribua, efetivamente, para a integração dos proces-</p><p>56 Ana Carolina Perrusi Brandão e Ester Calland de Sousa Rosa Ensino da Linguagem Escrita na Creche 57 SOS de alfabetização e letramento por meio de propostas significativas capazes de entender e participar da proposta. Pelo contrário, ela conduz a para as crianças. roda, garantindo o lugar do livro e da sua leitura cantada ao mesmo tempo Também argumentamos no texto a favor da concessão de um em que se coloca numa posição de quem está bastante atenta e receptiva ao lugar especial para a leitura dos diversos literários na creche, que as crianças querem comunicar, mesmo antes de saberem falar. considerando essa atividade como a principal via de acesso dos pequenos Este nos parece ser um bom ponto de partida para quem quer ao mundo da escrita. introduzir crianças pequenas no mundo das palavras faladas e escritas. Esperamos, dessa forma, ter contribuído para a reflexão das profes- soras sobre qual caminho pretendem trilhar com seu grupo de crianças, ajudando-as na definição de objetivos e possibilidades de intervenção Referências pedagógica no campo da leitura e escrita, desde o berçário até os 3 anos. Para finalizar, apresentamos o relato de uma roda de história reali- ALBUQUERQUE, E. C.; LEITE, T. M. Explorando as letras na Educação zada numa creche municipal do Recife, registrada e analisada por Ramos Infantil. In: BRANDÃO, A. C. P.; ROSA, E. C. S. (Orgs.). Ler e escrever na (2010). Nessa situação, a professora de berçário utiliza um livro de canti- Educação Infantil: discutindo práticas pedagógicas. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. gas infantis com um grupo de crianças da faixa de um ano a um ano e seis BAPTISTA, M. C. Alfabetização e letramento em classes de crianças menores meses de idade. A professora inicia com o convite: Olha só que eu trouxe de sete anos: direito da criança ou desrespeito à infância? In: A. para a atividade de hoje! [...] Um livro de músicas. [...] Eu trouxe ele para a gente PINHEIRO, A. S. (Orgs.). Nas trilhas do letramento: entre teoria, prática e cantar olhando a música escrita! (p. 88). Ela passa, então, a espalhar almo- formação docente. Campinas: Mercado de letras, 2011. fadas no chão, perto de um local na sala em que há uma placa indicativa BELO HORIZONTE (MG), Prefeitura de Belo Horizonte, Secretaria de do Canto da leitura. Várias crianças interrompem o que estavam fazen- Educação. Proposições Curriculares Educação Infantil rede municipal de Educação e Creches conveniadas com a PBH, 2009. do e se dirigem para perto da professora, embora nem todas tenham se BRANDÃO, A. C. P. A criança de 6 anos no Ensino Fundamental: de onde sentado nas almofadas. Na sequência, a docente começa a cantar A canoa veio para onde vai? Educação, direitos humanos e inclusão social: histórias, virou, aponta para um menino e introduz seu nome (Edson) na canção, ao memórias e políticas educacionais, João Pessoa, Editora Universitária da UFPB, mesmo tempo em que balança o braço, como quem está remando, imitan- 2009. do um gesto que ele estava fazendo. Em seguida, uma menina (Bianca) LEAL, T. F. Alfabetizar e letrar na Educação Infantil: o que isso olha para a professora e bate com as duas mãos nas pernas da educadora, significa? In: BRANDÃO, A. C. P.; ROSA, E. C. (Orgs.). Ler e escrever na Educação Infantil: discutindo práticas pedagógicas. Belo Horizonte: Autêntica, que neste momento olha para ela, sorri e inclui o nome da garota ao terminar o 2010. refrão com o nome de Edson. Depois, continua cantando e dá umas pancadinhas ROSA, E. C. S. (Orgs.). Ler e escrever na Educação Infantil: discutindo na própria perna, tal como fez Bianca 89). A cena segue com vários práticas pedagógicas. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. dios em que a professora interpreta gestos, vocalizações ou movimentos LEAL, Propostas curriculares para a educação infantil: orientações das crianças, reorientando sua atividade de ler e cantar as letras das canti- sobre a alfabetização e o letramento das crianças. In: NOGUEIRA, A. L. H. (Org.). gas infantis do livro com base em tais sinalizações. Ler e escrever na infância: imaginação, linguagem e práticas culturais. Campinas, SP: Leitura Crítica, 2013. O que vemos nessa cena? Uma professora que garante em sua rotina a leitura de livros de literatura e que planeja uma roda sensível às peculia- COLOMER, T. Andar entre livros: a leitura literária na escola. São Paulo: Global, 2007. ridades de uma turma de berçário. Assim, não conclui a partir da aparente CORSINO, P. Professoras de educação infantil e suas visçõe de letramento: tensões da prática. In: ROCHA, E. A. C.; KRAMER S. Educação infantil dispersão das crianças que elas não estão interessadas ou que ainda não são enfoques em diálogo. Campinas: Papirus Editora, 2011.</p><p>58 Ana Carolina Perrusi Brandão e Ester Calland de Sousa Rosa FERREIRO, E.; TEBEROSK Y, A. Psicogênese da língua escrita. Porto Alegre: Artes Médicas, 1979. FERREIRO, E. Reflexões sobre Alfabetização. São Paulo: Cortez, 1986. Com todas as letras. São Paulo: Cortez, 1993. 03 KENNER, C. Home pages. Literacy links for bilingual children. Londres: Trentham Books, 2000. A Linguagem Matemática e a MAYRINK-SABINSON, M. L. T. Reflexões sobre o processo de aquisição da escrita. In: ROJO, R. Alfabetização e perspectivas linguísiticas, Criança Pequena Campinas: Mercado das Letras, 1998. MORAIS, A. G. Sistema de escrita alfabética. São Paulo: Melhoramentos, 2012. Maria do Carmo de Sousa NATAL (RN). Prefeitura da Cidade do Natal, Secretaria Municipal de Educação. Referenciais curriculares para a Educação Infantil, 2008. NEVES, V.F.A.; MONTEIRO, S. M. Eventos de letramento na educação infantil: o interesse das crianças pela leitura e escrita. In: NOGUEIRA, A. L. H. (Org.). Ler e escrever na infância: imaginação, linguagem e práticas culturais. Campinas: Leitura Crítica, 2013. RAMOS, T. K. G. A criança em interação social no berçário da creche e suas interfaces com a organização do ambiente pedagógico. Tese (Doutorado). Ao tratarmos da construção da linguagem matemática para crian- Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2010. ças pequenas, na perspectiva histórico-cultural, temos considerado os SANTOS, R. F. Rodas de história com crianças na Creche: a construção de estudos de Davydov (1982), que se fundamentam em Kopnin (1978), comportamentos leitores. Trabalho de Conclusão de Curso. Universidade Federal sobre as formas de pensamento empírico e teórico, que tratam da relação de Pernambuco, Recife, 2010. sensorial e racional presentes no processo de aprender e ensinar, levan- SÃO PAULO (SP). Secretaria Municipal de Educação. Diretoria de Orientação do-se em conta a atividade principal das crianças: brincar. Técnica. Orientações curriculares: expectativas de aprendizagens e orientações didáticas para Educação Infantil, 2007. Aqui, a brincadeira é entendida como uma atividade profunda- mente vinculada à significação da realidade social e, portanto, contém o SARTRE, J-P. As palavras. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. principal substrato de elementos referentes. SILVA, J. C. que o cotidiano das instituições de educação infantil nos revela? O espontaneismo X o ensino. In: ARCE, A.; MARTINS, L. M. (Orgs.). Ensinando De acordo com Leontiev (2006), é por meio da brincadeira de faz aos pequenos de zero a três anos. Campinas: Alínea, 2009. de conta com os objetos que a criança constrói a consciência das ações SIMÕES, M. S.; SANTANA C. Uma análise das práticas de alfabetização humanas reais que são realizadas com os objetos referentes. A partir daí, e letramento dirigidas à crianças de 3 anos. Trabalho de Conclusão de Curso. surge o caráter representacional da brincadeira que concebemos não Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2009. apenas como assimilação passiva do meio externo, mas como constru- SOARES, M. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 1998. ção do sujeito, no caso, da criança, que o elabora, enquanto o vivencia e Alfabetização e letramento na Educação Infantil. Revista Pátio Educação intervêm nele. Infantil, ano VI, n. 20. Porto Alegre: Artmed, jul./out. 2009. Disponível em: <http:// A brincadeira sempre pressupõe a abertura para a criação infantil, a qual nunca pode ser inteiramente controlada por ninguém, seja adulto ZILBERMAN, R. Literatura infantil e aprendizagem da leitura. Educação em ou criança. Dessa forma, a ludicidade passa a fazer parte da construção Revista, Belo Horizonte, n. 31, 2000. da linguagem matemática das crianças e permite com que elas se mani-</p><p>60 Maria do Carmo de Sousa A Linguagem Matemática e a Criança Pequena 61 festem fluentemente e espontaneamente, sem o aprisionamento de pensa- Para Kopnin (1978), a passagem do nível empírico ao teórico não é mentos e ações a partir de censuras: do que é certo ou do que é errado. uma simples transferência de conhecimento da linguagem cotidiana para a Nesse sentido, o pensamento fica totalmente livre para elaborar fica, mas uma mudança de conteúdo e forma do conhecimento (p. 24). juízos (Kopnin, 1978) sobre a linguagem matemática. Os juízos repre- Concordamos com os autores e, por esse motivo, temos defendido sentam uma etapa essencial na elaboração do pensamento abstrato, que a construção da linguagem matemática de crianças, especialmente aque- dentre eles, o pensamento matemático. las na faixa etária de zero a três anos deve ter certa intencionalidade, não se Há de se considerar, ainda, que, durante as brincadeiras, as formas restringindo, apenas, ao aspecto da manipulação de objetos. Há de se criarem lógicas de pensamento, ao se manifestarem, permitem com que as crian- atividades orientadoras, na forma de brincadeiras que permitam com que ças leiam e deem contornos ao mundo em que estão inseridas, uma vez as crianças indiquem os juízos que estão construindo sobre o mundo que que o mundo não é a própria realidade. Os contornos podem ajudar as as cerca. Ao analisá-los, poderemos compreender melhor algumas de suas crianças a se apropriarem do conhecimento, incluindo-se, aí, o conheci- necessidades, bem como alguns dos motivos que as levam a querer conhecer mento matemático. determinados aspectos presentes na realidade em que estão inseridas. Davydov (1982), por sua vez, define o pensamento como uma ativi- Nessa perspectiva, partimos do pressuposto de que, através de dade espiritual muito complexa em que a formação de representações senso- brincadeiras, as crianças devem ser convidadas a se encontrarem, peda- riais gerais, diretamente entrelaçadas com a atividade prática cria as condições gogicamente, com a linguagem matemática, considerando-se que o pres- (p. 296-297) para que a atividade se desenvolva, considerando-se que o suposto básico da Educação Matemática é encontro afetivo, cultural e científi- pensamento de um homem é movimento das formas de atividade da sociedade CO entre educadores e educandos na linguagem matemática (Lima, 2001, p. 01). historicamente constituídas e apropriadas por aquele (p. 279). O pensamento Assim, ao se apresentar a linguagem matemática às crianças, há de se teórico contém a prática da cultura referente ao objeto considerar que tal linguagem está associada à linguagem afetiva, confor- Aqui, como em Kopnin (1978), o termo 'objeto' tem a conotação me mostra a figura a seguir: de ato de conhecimento e as leis dos seus movimentos. Quando Davydov (1982) analisa as práticas educativas, a partir dos Emoção pressupostos que estamos apresentando, faz críticas à Didática tradicio- Linguagem afetiva nal, uma vez que, segundo o autor, ela tem se fundamentado na Psicologia tradicional, em que se propõe desenvolver, nas crianças, o pensamento Linguagem artística teórico a partir do pensamento empírico-discursivo. Linguagem verbal Linguagem [...] não se trata do fazendo". Se for enfatizado apenas matemática caráter concreto da experiência da criança, pouco se conse- guirá em termos de desenvolvimento mental [...] aos conheci- mentos (conceitos) empíricos correspondem ações empíricas (ou formais) e aos conhecimentos (conceitos) teóricos, ações teóricas (ou substanciais), ou seja, se ensino nutre a criança somente de conhecimentos empíricos, ela só poderá realizar ações empíricas, sem influir substancialmente no seu desenvolvi- Figura 1. Expansão da linguagem humana para o universo das quantidades. mento intelectual (Libâneo, 2004, p. 27). Fonte: Adaptado de Lima (2000).</p><p>62 Maria do Carmo de Sousa A Linguagem Matemática e a Criança Pequena 63 Assim, ao se estudar, organizar e construir, juntamente com que possuem. A cada dedo levantado se pede que as crianças repitam os professores e futuros professores, brincadeiras, a partir dos pressu- nomes dos respectivos numerais. postos teóricos apresentados até aqui, estamos configurando-as como Talvez seja interessante que comecemos a pensar em apresentar e Atividades Orientadoras de Ensino, AOE, conforme apontam os estu- em construir a linguagem matemática com as crianças, a partir da orga- dos de (Moura, 2001), uma vez que priorizam domínio do conhecimento nização e da elaboração de AOE, que tenham a forma de brincadeiras e, teórico, ou seja, domínio de símbolos e instrumentos culturais disponíveis na como ponto de partida, as sensações vivenciadas por elas. sociedade, obtido pela aprendizagem de conhecimentos das diversas áreas do O senso numérico, por exemplo, indica a percepção das quantida- conhecimento (Libâneo, 2004, p. 12). des que as crianças possuem, conforme apontam os estudos de Ifrah (1998). Quando organizam e elaboram as brincadeiras, os professores Já os contornos estão presentes nos objetos culturais que podem ser criados e futuros professores são convidados a não se preocuparem apenas pelas próprias crianças, através da manipulação da argila e da sombra. com os elementos dos conceitos (Davydov, 1982), com A pesquisa de Jacomelli (2013), que estuda as manifestações a linguagem formal da Matemática, nos símbolos matemá- orais feitas por crianças a partir dos nexos conceituais do número, dentre ticos. São convidados a pensar, por sua vez, sobre os aspectos quali- eles, o senso numérico e as oficinas que temos desenvolvido no Projeto tativos do pensamento matemático, explicitados a partir de nexos Ciência Lúdica para crianças tem nos mostrado que as brincadeiras que conceituais. priorizam os nexos internos do conceito têm mobilizado muito mais as Ao elaborarem as AOE que se manifestam através das brinca- crianças, no sentido de se interessarem pela linguagem matemática, do deiras, tratamos dos nexos conceituais, de forma a considerar os aspec- que a simples memorização dos nomes de figuras geométricas, ou ainda, tos históricos, culturais e afetivos, presentes na linguagem matemática. da memorização dos numerais. Dessa forma, compactuamos com Davydov (1982) e Kopnin (1978) Ao brincar com o seu próprio senso numérico, argila e sombras, quando falam de certo movimento, de certa fluência que se apresenta as crianças ficam livres para criar linguagens próprias, porque emitem na construção do conhecimento humano. Tal movimento ou fluência juízos a partir destas linguagens sobre o que estão pensando. compõe a natureza do pensar científico e, portanto, a natureza do pensar No caso da linguagem geométrica, quando brincam com argila e matemático. Assim, rompemos com a linguagem matemática que priori- com sombras, as crianças criam composições e decomposições e nexos za o estudo dos nexos externos. conceituais internos, presentes no pensamento geométrico. Percebem Para os autores já citados, os nexos externos se limitam aos que os contornos que criam, ainda, podem ser modificados a qualquer elementos perceptíveis do conceito enquanto os internos compõem momento. Durante as brincadeiras, constatam que não há o fixo, o pronto o lógico-histórico do conceito. Os nexos externos ficam por conta da e o acabado. As formas geométricas podem ser criadas e recriadas, conti- linguagem formal. Exemplo disso são os conceitos de figura geométrica nuamente; bastando, apenas, se desmanchar a figura criada, que, aparen- e de número apresentados às crianças. Quando estas começam a falar, os temente, já estava acabada e, dar novos contornos ao barro. Enquanto adultos, por sua vez, querem que aprendam, o quanto antes, os nomes das brincam com a argila o professor pode pedir que as crianças falem sobre figuras geométricas. Dessa forma, pais e professores costumam apresen- sensações que sentem. tar-lhes, as faces dos blocos lógicos. O mesmo pode ocorrer quando convidamos as crianças a brinca- Quando a intenção dos adultos é promover ações que façam com rem com o senso numérico. que as crianças aprendam os nomes dos numerais, pais e professores Segundo Ifrah (2005), assim como alguns animais, todos nós costumam solicitar que elas levantem os dedinhos para indicar a idade nascemos com senso numérico, ou seja, sensação numérica. Tal sensa-</p><p>64 Maria do Carmo de Sousa A Linguagem Matemática e a Criança Pequena 65 ção não está atrelada ao erro ou acerto de uma quantidade, porque o Concebemos a criança como ser histórico competente que inte- número é sentido de modo um tanto qualitativo, um pouco como percebemos rage e produz cultura no meio em que se encontra. Essa defini- ção sobre a criança é resultado do consenso entre estudiosos da um cheiro, uma cor, um ruído ou a presença de um indivíduo ou de uma coisa do Educação Infantil (Bondioli e Montovani, 1989; Souza e Kramer, mundo exterior (p. 16). Assim, 1991; Myers, 1991; Campos et al., 1993; Oliveira e Rossetti, 1993; Machado, 1998; Oliveira, 2002), a qual se fundamenta em Entre seis e doze meses, bebê adquire, mais ou menos, uma certa estudos de Vygotski (Rocha et al., 2009, p. 09). capacidade de apreciação global do espaço ocupado pelas coisas ou pelas pessoas próximas. Ele assimila, então, agrupamentos relativamente restrito de seres e objetos que lhe são familiares pela natureza e pelo número. Em geral, nessa idade, ele também pode reunir num único grupo alguns objetos análogos previamen- Algumas considerações sobre te separados. E, se falta algo a um desses conjuntos familiares, o pensamento empírico e pensamento bebê logo é capaz de perceber. Entretanto, número simples- teórico na Educação Infantil mente sentido e percebido não é ainda concebido por ele de modo abstrato, e bebê nem terá a ideia de se servir de seus dez Renshaw (1999) afirma que, assim como Vygotsky, Davydov se dedos para designar um dos primeiros números (p. 19). preocupou com as mudanças subjetivas no indivíduo, produzidas pela apropria- Entre doze e dezoito meses, a criança aprende, pouco a pouco, a ção de ferramentas culturais consideradas como "meios de mediação" e fazer distinção entre um, dois e muitos objetos, e a discernir, com que têm o poder de transformar a relação do sujeito individual com mundo um só golpe de vista, a importância relativa de duas coleções social e físico Davydov (1982), por sua vez, argumentava que a ativi- reduzidas de seres ou objetos. Entretanto, sua capacidade numé- dade educacional não é dirigida principalmente à aquisição de conhecimento, rica ainda permanece no interior de limites tão estreitos que lhe mas à mudança e ao enriquecimento do indivíduo (p. 279). Dessa forma, os é impossível fazer uma diferença nítida entre os números e as dois autores convidam-nos a pensar sobre a necessidade em se criar práti- coleções das quais eles são parte (p. 19). cas pedagógicas particulares nas quais as crianças possam compreender Já as crianças maiores: o mundo à sua volta a partir de juízos. Ao tratar dos diversos tipos de generalização no ensino, Davydov Entre dois e três anos, quando a criança já adquiriu uso da fala (1982) aponta algumas rupturas existentes entre o que se ensina nas esco- e aprendeu a nomean os primeiros números, ela esbarra duran- las e a sua procedência. Há rupturas entre o pensamento teórico que se te certo tempo numa grande dificuldade de conceber e dizer quer ensinar e a sua procedência, sua gênese, sua história constituída pela número 3. Ao contar, ela começa pelo e 2, mas esquece em humanidade, formalmente, quando se ignora o lógico-histórico presente seguida terceiro número: I, 2, 4! (p. 19). na linguagem matemática. Há de se considerar, ainda, que os nexos externos e as represen- Na base do pensamento de Davydov está a ideia mestra de tações formais prontas e acabadas não deixam de ser uma linguagem de Vygotsky de que a aprendizagem e ensino são formas univer- comunicação do conceito apresentada em seu estado formal. É por esse sais de desenvolvimento mental (Libâneo, 2004, p. 14). motivo que pouca mobilidade é dada às crianças para criarem e elabora- rem juízos sobre os objetos à sua volta. Dessa forma, ao planejarmos tais Assim, quando os atuais professores e os futuros professores da brincadeiras, tendo como ponto de partida as sensações, Educação Infantil se preocupam em ensinar as crianças a memorizarem</p><p>66 Maria do Carmo de Sousa A Linguagem Matemática e a Criança Pequena 67 os numerais e os nomes das figuras geométricas, percebem as dificulda- que já possuem. As representações que fizerem, sobre os objetos que des que as crianças têm no que diz respeito à compreensão da construção pensaram, explicitam os juízos que estão construindo sobre a realidade da linguagem matemática. Constatam que as crianças não entendem o que as cercam, bem como sobre os contornos variados que podem ser conteúdo concreto da linguagem em questão: os diferentes sentidos e compostos e decompostos, a todo o momento, por elas. Ou seja, aqui, significados que podem ser atribuídos ao senso numérico que possuem, não há o pronto e o acabado. Apenas, o vir a ser. bem como, aos diferentes contornos que os objetos tridimensionais e bidimensionais, construídos com a flexibilidade da argila e da sombra, possuem. O que estamos defendendo é que, ao tratarmos da linguagem Construindo Atividades Orientadoras de Ensino (AOE) geométrica com as crianças, talvez seja interessante convidá-las a cons- de Matemática, na Educação Infantil, truírem seus próprios objetos com argila e sombra, ao invés de apresen- a partir das sensações tarmos objetos rígidos, prontos e acabados, com contornos já definidos. Além disso, ao tratarmos das quantidades, as desafiemos a usarem o Os pressupostos apresentados nas seções anteriores indicam que senso numérico que já possuem. a repetição mecânica de exercícios matemáticos, na Educação Infantil, Quando as crianças apenas manipulam objetos prontos e acaba- pode dar a impressão tanto que ensina, quanto que apren- dos, parece que têm a obrigação de explicitarem o pensamento teóri- de, que a matemática já está pronta, acabada, morta, mumificada, portan- a partir do pensamento empírico, uma vez que manipulam objetos to, imutável. É como se a matemática fosse a ciência mais perfeita, não e, imediatamente, os adultos solicitam que façam uso do pensamento passível de erros, por isso, menos humana, por ser uma das mais antigas. teórico. Ou seja, solicita-se que as crianças façam generalizações a partir As crianças, por exemplo, desde a mais tenra idade, ficam sem entender de algumas manipulações. As crianças, assim, perdem a oportunidade de que os conceitos matemáticos estão sempre sendo (re)criados, porque criarem pensamento e linguagem matemática, a partir das explicitações a linguagem está em movimento. Está sempre num vir a ser. Aqui, a orais sobre suas sensações. expressão "vir a ser" tem a conotação de fluência, de movimento no Temos esquecido de que a principal característica do pensamen- conhecimento to empírico, conforme afirma Davydov (1982), está no fato de que este Defendemos que os professores e futuros professores, ao apre- consiste no reflexo dos objetos, desde a ótica de suas manifestações e sentarem a linguagem matemática às crianças, lancem mão de AOE, as vínculos externos, exequíveis e acessíveis à percepção, contrapondo-se quais podem se materializar através de brincadeiras, uma vez que podem ao pensamento teórico que reflete os nexos internos dos objetos e as leis permitir com que os envolvidos no processo explicitem a leitura de de seu movimento, uma vez que, os nexos internos dos objetos só se mundo que fazem, de forma criativa e autônoma. realizam em movimento. Os nexos internos dos objetos representam o Há de se chamar a atenção de que a atividade será orientadora processo de suas criações. quando for capaz de definir os elementos essenciais da ação educati- É por esse motivo que, no que diz respeito à construção da lingua- va e de respeitar as diversas dinâmicas de interações que, muitas vezes, gem matemática, especialmente às relacionadas ao pensamento geomé- fogem ao controle do professor (Moura, 2001). trico e ao pensamento numérico, sugerimos que as crianças de zero a Em termos metodológicos, as AOE podem ser planejadas, orga- três anos sejam convidadas a emitirem juízos sobre as sensações que têm nizadas e elaboradas em diversos formatos como: jogos, história virtual enquanto brincam, construindo objetos tridimensionais e bidimensionais, e situações emergentes do cotidiano. Consideram-se, assim, os aspectos com argila e sombra, ou ainda, enquanto brincam com o senso numérico do lúdico e os aspectos qualitativos, presentes na linguagem matemática,</p><p>68 Maria do Carmo de Sousa A Linguagem Matemática e a Criança Pequena 69 permitindo com que as crianças elaborem juízos, a partir de suas subjeti- vidades, presentes nas brincadeiras que são propostas. Dona Bugiganga (protótipo de robô) é a personagem- -objeto do Projeto Ciência Lúdica; Assim, os pressupostos teóricos apresentados estão fundamen- Confeccionado de sucata, caixas de papelão (corpo e tando as AOE, que se manifestam, através de brincadeiras, tais quais as cabeça), espirais (cabelos), conduites (braços), copos plás- descritas a seguir. ticos (orelhas); Através do Projeto Ciência Lúdica para crianças (Leodoro; Para sua locomoção, usa-se um andador movido a pilhas AAA. A comunicação com as crianças é feita a partir de Sousa, 2007), desenvolvido em São Carlos, no período de 2009 a 2012, um aparelho "walk-talk"; começamos a elaborar oficinas com temas diversos, dentre eles: argila, Criação: Marcos Pires Leodoro. sombras, formas e som. Tais oficinas consideram a abordagem multicul- tural do conhecimento matemático que respeita a produção cultural das crianças e suas formas características de pensamento. Ao A seguir, encontram-se as configurações das oficinas de Argila criamos cenários problematizadores que privilegiam as brincadeiras e os e de Sombras, incluindo-se, aí, breves análises das ocorrências, a partir jogos, utilizando diversos objetos dentre eles, a argila e a sombra, bem da perspectiva das AOE. Cada uma delas tem, em média, trinta minutos. como brinquedos disponíveis tanto em lojas comerciais, quanto utilizados no cotidiano, como caixas, copos, palitos, papéis coloridos, Atividades orientadoras de ensino envolvendo argila sucatas etc. Ao final de cada oficina, as crianças podem produzir: instru- mentos musicais, desenhos, esculturas de argila e construções com jogos Oficina: argila. de encaixe. Objetivo: convidar as crianças a explicitarem as sensações As oficinas promovem vivências das crianças com o pensar mate- que têm enquanto manipulam a argila e constroem formas mático e, especificamente, com o pensar geométrico. Aqui, o lúdico geométricas tridimensionais. permite com que as crianças manifestem, fluentemente e espontanea- Materiais utilizados: argila; pequenas mesas giratórias; espá- mente, suas sensações, através de juízos. tulas com pontas arredondadas/pontiagudas/em forma de serra; Esse momento, o da elaboração de juízos sem preocupações com várias formas de alumínios (estrela, quadrado, círculo etc.). o certo e com o errado é essencial na elaboração do pensamento abstra- Desenvolvimento: em conversa com as crianças, Dona to, estando sempre presente durante o desenvolvimento da linguagem Bugiganga se apresenta como um ser de outro planeta. Em matemática, em todas as épocas, nas diversas civilizações. Tal desenvol- seguida, solicita a construção de objetos que as crianças imagi- vimento nos coloca diante do pensar dialeticamente. nam que existam no mumdo de Dona Bugiganga. Segundo o No caso específico das oficinas de Argila e Sombras, desen- robô, ao voltar para sua casa, pretende levar algo feito pelas volvidas no âmbito do projeto, utilizamos um robô, chamado Dona crianças que moram no planeta Terra. As crianças podem cons- Bugiganga, que transita nos cenários. Cabe a ele convidar as crianças a truir, portanto, qualquer objeto, de qualquer forma, ou seja, o brincarem e explicar o que devem fazer durante o desenvolvimento das que quiserem. Depois de ouvirem e conversarem com o robô, atividades. O robô atua como objeto-mediador, não como controlador começam a fazer as construções, ou seja, as esculturas. Após o das ações das crianças. término das obras, apresentam os objetos para todos, detalhan- do e nomeando os contornos. As crianças devem usar pensa- mento e linguagem próprios de suas culturas. Podem, ainda,</p><p>70 Maria do Carmo de Sousa A Linguagem Matemática e a Criança Pequena 71 indicar os nomes dos objetos e explicar sobre as escolhas feitas. Na fase em que as crianças se encontram, durante as oficinas, Falar, ainda, de suas sensações ao manipular o barro, a argila. elas usam os sentidos como ponto de partida para suas produções Ao presentearem o robô com os objetos construídos devem, artísticas e falam sobre suas sensações e produções. Ao construírem então, se surpreender, porque Dona Bugiganga é que os presen- e desconstruírem essas formas, são convidadas a conviver, por alguns teia, convidando-os a levarem as obras para suas casas. minutos, com a linguagem geométrica fluente e composta de nuanças, considerando-se que nuança é a fluência gradativa, é a mudança no interior da mesma qualidade, é movimento sem salto, é a variação sem transfor- mação da essência, é a mudança que não muda a determinação, é a alteração que não altera a qualidade (Lima, 2001, p. 3). Nesse caso, por mais que as crianças modelem a argila, a quali- dade do barro não se altera, o que já não ocorre com as formas, uma vez Figura 2. Esculturas de argila elaboradas pelas crianças durante o desenvolvi- mento da oficina. que os contornos são mutáveis, sofrendo nuanças. Ao analisarmos as das crianças ocorridas durante o Atividades orientadoras de ensino envolvendo sombras desenvolvimento da oficina de argila, concordamos com Lima (2008) quando este afirma que, ao falarem sobre as sensações de mexer com o Oficina: sombras. barro e com a argila, as crianças fizeram uso de todos os sentidos e da Objetivo: convidar as crianças a explicitarem as sensações manipulação artesanal e Falam do nojo, do cheiro, da cor e que têm enquanto constroem formas geométricas, através das da flexibilidade do barro ao misturá-lo com água. Falam do quanto o sombras. barro é gelado. As crianças emitem juízos sobre a linguagem geométrica Materiais utilizados: objetos diversos, lençol, lanternas, que possuem. Pudemos notar, a partir das fotos, que as crianças se utili- cabana escura, tesouras e papéis de várias texturas e espes- zam, em sua maioria, de curvas. suras. As oficinas priorizam, ainda, uma prática não simbólica na qual Desenvolvimento: inicialmente, as crianças são convidadas se pode convidar os professores e futuros professores a pensarem sobre a a brincarem com contornos formados pelo corpo, partes do seguinte questão: como e por que o homem cria formas? corpo, papéis de diversos tamanhos e texturas, os quais são Ao criar as formas, a partir da argila, as crianças colocam em movi- projetados, inicialmente, na parede. Em seguida, as sombras mento não apenas a coordenação motora, mas também os seus próprios dos objetos e das criações feitas com os papéis são colocadas pensamentos. Nesse sentido, elas criam, explicitam juízos e fazem corres- atrás do lençol para que as crianças falem sobre seus contor- pondências fundamentais para a formação da linguagem geométrica. nos e as sensações que estão sentindo. Ao mesmo tempo, brin- Primeiro, porque interpretam as imagens que projetam referentes ao mundo cam na cabana com lanternas, projetando as sombras das suas imaginário de Dona Bugiganga. Depois, porque, na tentativa de dar vida às produções ou objetos nas paredes da cabana que, proposital- suas modelam a argila a partir de diversos contornos. mente, são irregulares e ondulares.</p><p>72 Maria do Carmo de Sousa A Linguagem Matemática e a Criança Pequena 73 Se percorrermos a história do trabalho humano poderemos perce- ber que era o movimento da sombra ao ser pensado sistematicamente pelas civilizações que permitiu aos homens pensar sobre movimentos regulares e o conceito de periodicidade. Assim, ao manipularem as sombras de forma criativa, as crianças têm a oportunidade de falar, a partir de suas linguagens próprias e indi- Figura 3. Cenários problematizadores. viduais sobre: Fonte: Marcos Pires a) as possíveis transformações de aspectos que compõem a sua realidade; Quando planejamos as oficinas, preocupamos-nos com a mani- b) que somos modificadores e que somos modificados, conti- pulação e, ao mesmo tempo, com a linguagem conceitual, de forma que nuamente; esta possibilitasse a explicitação dos juízos que as crianças têm (Rocha c) que a realidade é fluente e composta por nuanças; et al., 2009). d) as possibilidades de romper com o senso de permanência. Assim, quando propomos a oficina com as sombras, do ponto de vista da matemática, provocamos a intuição e a inspiração das crianças, no senti- Ao mesmo tempo, essa manipulação permite com que as crianças do da busca pela representação das formas abstratas, presentes no cotidiano, possam realizar a composição homogênea que é a combinação de vários uma vez que, por mais que as crianças tentem, ao contrário da argila, não elementos iguais resultando em diferentes qualidades, ou seja, as crian- conseguem agarrar com as mãos as formas projetadas pelas sombras. Aqui, ças, na medida em que fazem manipulações com as sombras, vão dando as crianças têm contato com a bidimensionalidade dos objetos. Percebem sentido, através de contornos, às formas construídas (Lima, 2008). que o aspecto bidimensional dos objetos é criação humana, considerando-se que vivemos em um mundo tridimensional. A sombra esconde sempre uma das três dimensões dos objetos e, à medida que os movimentamos, novos contornos e, consequentemente, novas formas surgem. Podemos apreender e congelar aspectos dos contornos das sombras, por sua vez, a partir de registros como desenhos, fotografias e filmagens. As crianças falam sobre a sensação de tentar pegar algo que existe, mas que lhes escapa pelas mãos. Ficam curiosas e refletem sobre as sensações que têm ao verem as represen- tações de seus corpos, projetadas na parede. Ao brincar com as sombras, as crianças podem compor e decom- Figura 4. Atividade a sombra'. por formas, a partir do que Lima (2000) denomina manipulação arte- sanal criativa da sombra. As crianças podem compreender os nexos A preocupação de se partir sempre da manipulação criativa para conceituais que compõem a linguagem geométrica, como, por exemplo, se chegar à linguagem matemática nos obriga a flexibilizar, por várias a decomposição de figuras tridimensionais, em figuras bidimensionais; vezes, o rigor abstrato da lógica matemática, do pensamento ou, ainda, a relação existente entre os movimentos qualitativos, presentes Ainda, do ponto de vista de Lima (2008), podemos afirmar que, tanto na composição quanto na decomposição de figuras. durante a oficina de sombras, as crianças desenvolvem juízos relaciona-</p><p>74 Maria do Carmo de Sousa A Linguagem Matemática e a Criança Pequena 75 dos à geometria de movimento angular e temporal. Podemos nos pergun- Em termos metodológicos, a partir da perspectiva da AOE, dize- tar: qual é a importância em se convidar as crianças a vivenciarem tais mos que planejamos a oficina de sombras a partir de situações emer- atividades na Educação Infantil? gentes do cotidiano (Moura, 2001). Aqui, estamos fazendo uso de outro Ao responder essa pergunta nos utilizaremos de aspectos presen- aspecto das sensações, diferentemente daquele que se apresenta durante tes no processo lógico-histórico da linguagem matemática. a manipulação da argila. Enquanto na argila se consegue pegar o objeto Segundo Lima et al. (2008), fundamentados em Hogben (1952), com as mãos e sentir os aspectos qualitativos do barro, com a sombra para administrar os movimentos da natureza o trabalho humano preci- ocorre o contrário, apesar de ela existir, não se consegue sequer agarrá- sou apreender suas regularidades. Só um movimento regular, que possui -la com as mãos. Logo, não se consegue sentir o seu cheiro, nem o seu ciclo, pode ser previsto e administrado para produzir vida. A represen- gosto. No entanto, é a partir das sombras projetadas na parede ou no tação mais próxima do ciclo é o círculo. O movimento no ciclo e dos lençol que se consegue ter ideia do que vem a ser bidimensionalidade. ciclos é uma das formas mais compreensíveis e assimiláveis do tempo. Nesse sentido, o lúdico permite com que o foco da linguagem e, O movimento da sombra ao longo do dia é cíclico e, portanto, acessível consequentemente, da aprendizagem, esteja na possibilidade de se pensar à leitura humana. O movimento da terra no zodíaco é outro ciclo mais sobre sensações, não apenas no conteúdo em si. As situações emergentes amplo, denotativo do tempo em escala mais ampla e, também, do cotidiano que, nesse caso, estão representadas pelas sombras, quando vel à leitura humana. A sombra e o zodíaco são elementos importantes congeladas, momentaneamente, para que possam ser estudadas, através do relógio, o equipamento criado para a leitura e acompanhamento do das sensações das crianças, podem auxiliá-las a se apropriarem do pensa- tempo. O caráter cíclico e circular desses movimentos, entretanto, resulta mento abstrato e do pensamento teórico que se apresenta nos nexos inter- na figura do arco deslocamento no círculo e do movimento angular nos e externos da linguagem geométrica. que lhe corresponde. O acompanhamento dos ciclos dos movimentos Atividades Orientadoras de Ensino para a Educação Infantil, com naturais da vida impulsionou a humanidade na criação de um novo valor enfoque em situações emergentes do cotidiano, só fazem sentido se não de uso cíclico, que possibilitasse a identificação do instante do movi- estiverem totalmente dissociadas da totalidade da vida. Aqui, convida-se mento. Criou a forma de leitura do tempo num objeto dado e discreto: o a criança a prestar atenção e a pensar sobre os movimentos à sua volta. relógio. E este aparece embrionária e sugestivamente nos movimentos da Dentre os infinitos movimentos, há aqueles que podem ser denominados sombra e do zodíaco. Inicialmente relógio de sombra, depois ampulheta- de regulares e aqueles que podem ser denominados de irregulares. Alguns -movimento cíclico da areia, depois, relógio mecânico de corda e o atual desses movimentos podem ser estudados pela linguagem matemática. relógio digital. No relógio, o homem recria o ciclo natural sua repeti- Ao se estudar os movimentos da vida, a matemática elabora ção, sua continuidade para que acompanhe e leia os ciclos de todos os premissas e propicia aos homens o entendimento de algumas teorias ou movimentos naturais que lhe são conhecidos, fundamental para que os a elaboração de novas delas. O conhecimento matemático nos permite, seus aspectos úteis sejam desenvolvidos e apropriados. portanto, apreender alguns movimentos, embora não todos eles, ainda Ou seja, a partir de brincadeiras que permitam conhecer alguns que tenhamos tal pretensão a todos os movimentos do cosmos para elementos presentes nas sombras, como: flexibilidade, irregularidade, domá-los, dominá-los, controlá-los. mutabilidade e formas abstratas, convidamos as crianças a pensarem Possibilitar o entendimento do que vem a ser movimento, verdade e construírem pensamento e linguagem geométrica que se apresentam e premissa é o objetivo que se coloca quando se propõe que as situações na realidade que conhecem, uma vez que, todos os dias, percebem as emergentes do dia a dia frequentem as vivências matemáticas das crian- sombras de si próprias e dos objetos que usam para brincar. ças da Educação Infantil.</p><p>76 Maria do Carmo de Sousa A Linguagem Matemática e a Criança Pequena 77 Ao se analisar situações que emergem do cotidiano, como é o Atividades Orientadoras de Ensino caso das sombras, o estudante tem a oportunidade de solução de envolvendo senso numérico problemas significativos para ele de Moura; Moura, 1996, p. 14). Ao AOE: senso numérico. mesmo tempo, ele pode compreender melhor os aspectos lógicos, histó- Objetivo: convidar as crianças a explicitarem suas percepções ricos e culturais que fundamentam a linguagem geométrica. sobre as quantidades. As oficinas desenvolvidas, assim, consideram a proposta de Lima Materiais utilizados: cartas contendo desenhos com quanti- (2004) no que diz respeito a operacionalizar, metodologicamente, as dades variadas, folhas de sulfite, lápis de cor. vivências das crianças com a geometria espacial, a partir de dois nexos Desenvolvimento: apresentar as cartas, rapidamente, para conceituais: decomposição e as crianças, de forma que possam visualizar as quantidades em movimento. Solicitar às crianças que, após a visualiza- GEOMETRIA ção, desenhem as quantidades de objetos que conseguiram Decomposição perceber. Não se pode contar os objetos. A seguir, juntamente com as crianças, encontrar formas de conferir as quantidades apresentadas. Após a correção, as crianças deverão responder Espaço Plano Linha perguntas como: Três dimensões Duas dimensões Uma dimensão a) Quais as cartas que todos acertaram? Vamos pintá-las de azul. Composição b) Quais as cartas que a maioria acertou? Vamos pintá-las de vermelho. Figura 5. Nexos conceituais da geometria. c) Quais as cartas que poucos acertaram? Vamos pintá-las de verde. Para o autor, d) Quais as cartas que todos erraram? Vamos pintá-las de amarelo. a criação histórica da geometria aconteceu num movimento de decomposição permanente do espaço, partindo das três dimen- Diante da situação colocada, as crianças serão desafiadas a expli- passando pelas duas até criar a primeira dimensão para, ao citar os juízos sobre as quantidades percebidas, sem ter que responder a retornar, compor sucessivamente as três dimensões a partir dos seus elementos mais simples (p. 3). pergunta: quantos objetos têm em cada uma das cartas? Aqui, o importante não é a quantidade, mas sim, a qualidade É por esse motivo que, ao planejarmos as oficinas, fazemos uso presente na quantidade. É por esse motivo que as crianças constatarão de tais nexos, pois, considerando-se que, tanto na oficina de argila quanto que, a maioria delas vai pintar de azul as cartas que contêm quantidades na oficina de sombras, as crianças compõem e decompõem os objetos pequenas de objetos. tridimensionais a todo momento, fazendo uso dos sentidos ao manipular Os homens têm uma capacidade natural de percepção direta do os objetos e ao falar de suas sensações. número, ou seja, pode-se dizer que nascemos, tal qual alguns animais, com um senso numérico. Desse modo, o homem reco-</p><p>78 Maria do Carmo de Sousa A Linguagem Matemática e a Criança Pequena 79 nhece que um grupo pode ter sofrido alteração (acréscimo ou a linguagem matemática pronta e acabada, de forma mecânica, na qual retirada) através da mera observação, desde que a quantidade de crianças tenham a impressão de que essa essência é imutável. objetos do grupo não ultrapasse quatro (Ifrah, 1998 apud Jesus; Propõe-se que, durante a solução das atividades, haja interações Sousa, 2011, p. 124). entre Considera-se a matemática enquan- to importante ferramenta que fornece certa linguagem, possibilitando Há de se considerar, ainda, que para Ifrah (1998): tratamento da realidade dos sujeitos de forma mais objetiva, ao dar para eles homem foi capaz de ampliar suas tão limitadas possibilidades instrumental necessário para lidar com os movimentos, as quantidades, as da sensação numérica inventando um certo número de proce- formas e as relações entre eles (Lanner de Moura; Moura, 1996, p. 23). dimentos mentais. Procedimentos que teriam de se É importante que atuais professores e futuros professores tenham fecundos, pois iriam oferecer à espécie humana a possibilidade a oportunidade de elaborar atividades orientadoras de ensino que propi- de progredir no universo dos número (p. 24). ciem lidar com os conteúdos escolares de modo lógico e com significado (Lanner Ao propormos que as crianças nos mostrem suas percepções de de Moura; Moura, 1996, p. 23). Aqui, as crianças são convidadas a partici- quantidades, estamos convidando-as a explicitarem seus juízos, de forma par de alguns dos momentos de criação de juízos, de forma que perce- que possam compartilhá-las com seus colegas. Nesse sentido, há intera- bam que a linguagem não está isenta de dúvidas e de tensão. Durante a ção entre o conhecimento individual e de pequenos grupos para se gerar criação da linguagem matemática, assim, não há preocupações com o o conhecimento coletivo sobre controle de quantidades. Aqui, o caráter certo e o errado de forma que se aprisione o pensamento. Pelo contrá- do jogo pedagógico mantém-se. O objetivo pedagógico, assim, está rela- rio. Incentiva-se a criança a lançar mão do pensamento flexível (Sousa, cionado ao estudo da linguagem matemática que propicie a apreensão 2004), considerando-se que a linguagem matemática foi e é criada na das quantidades. interação entre pessoas, durante a busca incansável de se entender e se A partir das soluções que contém o pensar de forma flexível dos compreender o mundo que nos rodeia. sujeitos, há a intenção de se propiciar ao estudante a apreensão do pensa- mento abstrato, a partir de juízos (Kopnin, 1978). Referências DAVYDOV, V. V. Tipos de generalización en la enseñanza. impr. Ciudad de Considerações finais La Havana: Editorial Pueblo y Educación, 1982. HOGBEN, L. homem e a ciência: o desenvolvimento científico em função das A partir da perspectiva histórico-cultural, entendemos que o exigências sociais, Vol. 7. Fundo de Cultura Geral, Editora Globo, 1952. aspecto lúdico no planejamento, organização e elaboração de AOE de IFRAH, G. Os a história de uma grande invenção, São Paulo: Editora matemática, pode se manifestar através de brincadeiras propostas no Globo, 1998. contexto da Educação Infantil. Os a história de uma grande invenção, São Paulo: Editora Globo, 2005. Há, aqui, a intencionalidade de se propiciar às crianças, especial- JACOMELLI, C. V. Práticas de contagem no contexto de lendas: manifestações mente com idade entre zero e três anos, a possibilidade de se orais de crianças de cinco anos em atividades de ensino. Dissertação (Mestrado). explicitar juízos de forma que possam dar conteúdo próprio à linguagem Universidade Federal de São Carlos UFSCar, São Carlos, 2013. matemática. Convida-se a criança a pensar sobre os movimentos da vida JESUS, W. SOUSA, M. C. Reflexões sobre os nexos conceituais do número e e de como a matemática faz parte desse movimento. Não se apresenta de seu ensino na Educação Básica. Boletim GEPEM, V. XXXV, p. 115-130, 2011.</p><p>80 Maria do Carmo de Sousa KOPNIN, P. V. A dialética como lógica e teoria do conhecimento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. (Coleção Perspectivas do homem) LANNER DE MOURA, A. R.; MOURA, M. O. Escola: um espaço cultural. Série: Formação Permanente, 1996. 04 LEODORO, M. P.; SOUSA, M.C. Projeto: Ciência lúdica para crianças: oficinas e atividades de divulgação da Ciência, Matemática e Tecnologia para crianças de 3 a 6 anos, 2007. UFSCar. EDITAL MCT/CNPq no 42/2007. Ensinar Ciência aos Pequeninos LEONTIEV, A. N. Os princípios psicológicos da brincadeira escolar. In: VIGOTSKII, S.; LURIA, A. R.; LEONTIEV, A. N. Linguagem, desenvolvimento A ampliação dos horizontes da criança e aprendizagem. 10. ed. São Paulo: 2006. na descoberta de si e do mundo J. C. A didática e a aprendizagem do pensar e do aprender: a teoria histórico-cultural da atividade e a contribuição de Vasili Davydov. Revista Debora A. S. M. da Silva e Alessandra Arce Brasileira de Educação, n. 27, set./dez. 2004, p. 1-24. Disponível em: <http:// www.scielo.br/pdf/rbedu/n27/n27a01.pdf>.Acesso em: 25 fev. 2013. LIMA, L. C. encontro afetivo pedagógico do ensinar Matemática. Apostila, São Paulo, 1999. Formação da linguagem Matemática pela criança. Apostila, São Paulo, 2000. Um amigo meu que é artista assume às vezes uma atitu- encontro afetivo pedagógico do ensinar Matemática. Apostila, São de da qual eu discordo. Por exemplo ao observar uma Paulo, 2001. flor ele diz: - Vê só como é bela! e eu concordo. Mas depois acrescenta: Eu, que sou artista, consigo apre- A quantificação do espaço. Apostila, São Paulo. Versões: 2000; 2001; 2004 e 2008. ciar a beleza de uma flor, enquanto tu, que és cientista, desejas desmanchá-la toda, e isso é triste. Isto dá-me MOURA, M. O. A atividade de ensino como ação formadora. In: Ensinar a a idéia de que ele não regula bem. Em primeiro lugar, ensinar. São Paulo: Pioneira Thmson Learning, 2001. a beleza que ele vê é acessível a todos inclusive a RENSHAW, P. D. A teoria sociocultural de implicações mim, segundo creio. Embora talvez não possua seu para currículo no contexto australiano. Cadernos pedagógicos, n. 18, Secretaria requinte estético, julgo ser capaz de apreciar a beleza Municipal de Educação de Porto Alegre, 1999. de uma flor. Mas, simultaneamente, vejo na flor muito ROCHA, M. J. S.; SOUSA, M. C.; TEDESCHI, W. Reflexões de professores mais do que ele: consigo imaginar as células no seu da Educação da Infância sobre vivencias lúdicas de matemática. In: Anais do V interior, que têm igualmente a sua beleza, já que esta Congresso paulista de Educação Infantil (COPEDI). Faculdade de Educação da USP Paço das Artes. De 08 a 11/09/2009. não existe só na escala do encontramo-la também em proporções muito menores. [...]O conhe- SOUSA, M. C. ensino de álgebra numa perspectiva um cimento cientifico, junto ao entusiasmo, ao mistério e estudo das elaborações correlatas de professores do Ensino Fundamental. Tese (Doutorado em Educação). Universidade Estadual de Campinas UNICAMP, ao respeito por uma flor, torna possível toda a espécie Campinas, 2004. de perguntas interessantes. É tudo a somar, nada a subtrair (Richard 2004, p. 11). Quando o lúdico faz parte do ensino de Ermesinde Valongo, Portugal, Fórum Cultural de Ermesinde. IX Baú de Matemática, Calculus Centro de Investigação e Cultura Matemática, 2004, p. 81-87. Desde a mais tenra idade a criança, assim como os cientistas, já possui um sentimento de admiração e encantamento diante do mundo, o</p><p>82 Debora A. S. M. da Silva e Alessandra Arce Ensinar Ciência aos Pequeninos 83 qual se lança a exploração, descoberta e compreensão de seus mistérios estudos pelo professor, de modo que os estudantes possam desenvolver (Eshach, 2006). Essa predisposição, segundo Eshach (2006), tornaria as atitudes positivas em relação a este, extraindo-lhes o máximo de conteú- crianças particularmente prontas para a ciência, pois o dos e apropriando-se de habilidades que os permitam ampliar seus hori- zontes na descoberta das relações e fenômenos do mundo. A primeira prazer que possuem ao explorar a natureza, em jogar, em cole- questão colocada, reflete sobre a possibilidade de iniciarmos o trabalho cionar, em realizar observações, as faz, não somente, preparadas com os conteúdos da ciência nos primeiros anos da Educação Infantil, para as coisas que envolvem as ciências, mas também, para galga- com crianças na faixa etária de zero a três anos. Para pensarmos essa rem os primeiros degraus em direção as idéias que envolvem as ciências (p. 7). proposição, faz-se necessário, entretanto, a ponderação de outras duas questões suscitadas pela primeira. Embora o mundo da criança seja fresco, novo e repleto de mara- Por um lado, considerando-se que a apreensão dos conteúdos da vilhas e excitação, como sugere Carson (1965), esse sentimento genuíno, ciência é difícil, até mesmo, para os adultos e considerando a hipótese essa visão deslumbrada daquilo que a cerca, se veem obscurecidos e, de que os escolares na faixa etária de zero a três anos não possuiriam até mesmo, desencorajados, antes mesmo de alcançarem a maioridade. a capacidade cognitiva requerida para a compreensão e a manipulação A cada ano escolar, sua natureza curiosa e investigativa dá lugar à acei- desse corpo de conhecimentos. Afinal, não seria mais coerente e provei- tação de um mundo pronto e acabado. E, assim, as crianças ingressam toso relegarmos este ensino para anos posteriores, nos quais a criança no ensino formal com preocupações estéreis diante de coisas artificiais e tivesse uma maior maturidade intelectual? Em contrapartida, surge a alienadas de sua capacidade de pensamento e força criativa. indagação de que se, ao postergarmos a exposição da criança peque- Na adolescência, ao se aproximarem ou iniciarem seus estu- na à ciência para o momento em que consideramos que tenha adquiri- dos universitários, a compreensão da ciência lhes é posta como uma do a maturidade intelectual necessária, não estaríamos privando-a de iminente possibilidade para a construção de sua profissão ou carrei- conteúdos importantes para seu desenvolvimento cognitivo e suas futu- ra científica e para o desenvolvimento da capacidade do pensamento ras atividades escolares? racional e que permite o desvelamento e a explicação das Com o intuito de refletir sobre tais questões e de desmistificar relações, dos fatos, dos fenômenos do mundo de entorno e a tomada de crenças enraizadas no cotidiano escolar, de modo a possibilitar a supe- decisões congruentes, baseadas na análise e crítica das situações apre- ração de atitudes para com este ensino pelos professores de sentadas. No entanto, seu sentimento de encantamento e o trabalho com Educação Infantil e elucidar sobre a possibilidade da criança pequena os conteúdos da ciência não lhes foram nutridos ao longo de suas vidas compreender os conteúdos da ciência ainda nessa fase; este capítulo se escolares, tornando a compreensão destes uma tarefa, assim, íngreme e propõe, mediante a apresentação de estudos realizados na área de psico- árdua. O reflexo dessa ação revela-se nos resultados de exames nacio- logia do desenvolvimento e da educação em ciências, discutir se crianças nais, que apontam para o baixo rendimento e preparo no trato com a de zero a três anos deveriam ser expostas à Ciência; o porquê de intro- ciência da grande maioria de nossos estudantes em áreas como a Física, duzi-la nos primeiros anos da vida escolar e; de que forma o pedagogo a Matemática, a Química etc. poderia trabalhá-la nos primeiros anos da Educação Infantil. Porém, se admitirmos que o ensino de ciência traz inúmeros bene- Tal tarefa se iniciará com o exame de estudos que apontam a fícios à vida futura dos jovens, e que, no entanto, esse processo ainda importância da introdução do ensino de ciência na Educação Infantil, por encerra deficiências, faz-se necessária a revisão de algumas questões que sua possibilidade de conhecimento do mundo real e do desenvolvimento o envolvem, como o momento de sua introdução e a condução de seus das habilidades de raciocínio, dos processos de imaginação e criação da</p><p>84 Debora A. S. M. da Silva e Alessandra Arce Ensinar Ciência aos Pequeninos 85 criança. Para analisar tais asserções serão tomados, como referência, os procuram interpretar e formar um quadro da realidade, estabelecendo estudos realizados por Eshach (2006). O autor nos explica que o funda- conexões com um amplo mundo de impressões sensoriais. Mais que mento dessas proposições está no duplo aspecto que o termo "ciência" é respostas intuitivas impressões sensoriais argumenta o autor as ideias empregado, o qual serve para descrever, tanto um corpo de conhecimen- científicas, com raras não são adquiridas pela simples observa- tos relativos à variedade de conceitos nos diferentes domínios da área ção e experimentação de fenômenos. Elas, frequentemente, extrapolam conceituais e teóricos sobre átomos, força e etc. como as ativida- a experiência sensorial humana, constituindo-se em uma atividade "anti- des que dão origem a esse conhecimento - processuais/práticos. Além natural" (Wolpert, 1994). Para melhor ilustrar esse pensamento, Driver e desses, também se aplicam procedimentos que envolvem as habilidades Bell (apud Eshach, 2006) destacam a situação em que uma criança chuta de intenção experimental e avaliação de evidências, incluindo observa- suavemente um bloco, fazendo-o mover-se. A percepção proporcionada ção, investigação, experimentação, projeção de experiências, questiona- por essa experiência do "mundo real" inclui: o bloco e seu movimento, mentos de evidências, formulação de hipóteses, escolha, uso e aplicação o chão e a criança. apropriada do aparato científico e das ferramentas de análise, verifica- Porém, a explicação para tal fenômeno envolve, não somente, a ção, interpretação e representação de dados, medição e formulação de observação direta, mas, sobretudo, a compreensão de conceitos relativos teorias e modelos. à força, massa, fricção, velocidade e aceleração. Conceitos esses, que não Incorporado ao domínio de conhecimento conceitual, entretan- são imediatamente observáveis, pois não pertencem ao mundo de nossos to, está a compreensão de que os conceitos científicos são aqueles que sentidos, ou mesmo, podem ser abstraídos diretamente deles. permitem à criança interpretar e aprender sobre seu próprio mundo e as Os conceitos de Física, como força, massa, velocidade, atrito etc. relações nele estabelecidas. Ao domínio de conhecimento processual está guiam nossos olhares para o que observar e que significado atribuir posto o entendimento de que o "fazer ciência" contribui para o desenvol- aos fatos e fenômenos. Somente após a compreensão desses conceitos vimento de modos de pensar e das habilidades requeridas na primeira. é que se pode interpretar e descrever o comportamento do bloco nessas Embora tais asserções pareçam razoáveis, os estudos produzi- condições. dos por Eshach (2006) esclarecem que tais formulações são problemá- Quanto ao argumento relativo à possibilidade de o ensino de ciên- ticas, pois, apesar da ciência, em certo sentido, apresentar-se como o cia contribuir para o desenvolvimento da habilidade intelectual, Eshach conhecimento do mundo real, ela é mais do que isso. Ela expressa em (2006) explica que essa visão está associada à ideia de que o envolvimen- seu conteúdo, concepções, ideias e teorias desenvolvidas pelo homem, to de estudantes em atividades investigativas, que permitem a formula- mediante a utilização de seus processos de imaginação e que ção de hipóteses e manipulação do aparato conceitual e processual para a interpretação das evidências, proporciona o desenvolvimento de padrões 1. desenvolvimento da atividade criadora no homem, de acordo com Vigotski (1987), de pensamento investigativo e do raciocínio científico, contribuindo para representa toda a realização humana capaz de criar algo novo. Ela se baseia na função a construção de novos conhecimentos. Entretanto, a literatura científi- combinadora, que se constitui na capacidade de imaginar, reelaborar e compor novos conhecimentos, imagens, ações, formas e planejamentos, mediante a extração de ca vem sugerindo que as habilidades exigidas para a manipulação de experiências anteriores da realidade, combinando o antigo com o novo formas típicas do aprendizado investigativo não são apropriadas em uma (Vigotski, 1987). A atividade criadora não aparece repentinamente, mas se forma de modo gradual e lento, ascendendo desde as formas mais elementares às mais compli- cadas, a partir da experiência acumulada. É ela que faz com que o ser humano não se imaginação humana. Todo descobrimento, grande ou pequeno, antes de se concretizar limite a repetir o passado, mas que seja um ser projetado para o futuro, capaz de criar e (materializar-se), esteve unido à imaginação, como uma estrutura construída na mente, modificar seu presente. O autor explica que tudo o que há no mundo da cultura (ciên- mediante novas combinações e correlações, sendo, posteriormente, cristalizado em um cia, arte, técnica etc.), diferentemente do mundo da natureza, é produto da criação e da objeto real.</p><p>86 Debora A. S. M. da Silva e Alessandra Arce Ensinar Ciência aos Pequeninos 87 determinada fase do início da adolescência. Como destaca Kuhn (apud tais aspectos fizeram parte de sua formação escolar. Daí a importância Eshach, 2006), a investigação, análise e representação de um sistema da exposição de crianças, desde a mais tenra idade, em atividades rela- científico multivariado requer a capacidade de conceituação de múltiplas cionadas com a ciência. Nesse processo, o professor, além de prover-lhe variáveis para se alcançar um resultado preciso. Embora os estudantes fecundas experiências, auxiliará na formação de um abundante reserva- considerem esse modelo estimulante, as estratégias que apresentam para tório material, cada vez mais rico e elaborado. identificar, examinar e interpretar evidências de modo adequado estão Eshach (2006) explica que, mesmo antes da introdução dos longe de serem consideradas satisfatórias. De acordo com o autor, parece conceitos científicos no ensino formal, há espaço para um simples olhar existir ainda uma grande distância entre as habilidades cognitivas empe- e atenção para os fenômenos no mundo, uma vez que estes também são no raciocínio científico e a realidade apresentada pelos estudantes essenciais à Ciência. Ao apontar e questionar, mesmo sem dar explicações envolvidos nesse modelo de aprendizagem. avançadas, os professores podem ajudar as crianças a descobrirem uma Os estudos de Vigotski (2000) sobre a formação de conceitos variedade de objetos e fenômenos que, mais tarde, servirão de subsídios demonstraram que este processo é mais que a soma de certos vínculos para os futuros conceitos científicos. Em suas discussões com os estu- associativos formados pela memória, que somente podem ser realiza- dantes podem incluir simples frases, encorajando-os a pensar de maneira dos quando o próprio desenvolvimento da criança atingir seu nível mais científica, como, por exemplo: "Como nós poderíamos saber isto?" "Que elevado. De acordo com o autor, em qualquer nível de desenvolvimento hipóteses podemos levantar?", "O que você pensa que pode acontecer se psicológico, quer seja na criança ou no adolescente, o conceito é um ato [...]?" "Como nós chegamos a esta conclusão?", "Confirmamos nossas de generalização e evolui gradativamente. A essência de seu desenvolvi- hipóteses?", "Como nós podemos conferir?". O professor, como esclare- mento está na transição de uma estrutura de generalização à outra. Desse ce o autor, muitas vezes, contribui mais ao chamar a atenção da criança modo, quando uma criança é exposta a um novo conceito, seu desenvol- para um pente que inclina um fluxo de água, após ter sido esfregado no vimento está apenas começando. No início, ele é um tipo de generali- cabelo de uma pessoa, do que falando prontamente sobre eletricidade zação elementar que vai sendo substituída por generalizações cada vez estática, ou mesmo, perguntando para uma criança por que o carrossel mais elevadas à medida que a criança se desenvolve. O aprendizado de mantém-se girando depois de ter sido empurrado, do que tentando expli- conceitos, assim, não ocorre de forma pronta, em um determinado está- car o conceito de inércia. gio do processo escolar, mas são, por sua vez, organizados e reelaborados O ensino de um conceito, como sugere Eshach (2006), pode ser ao longo das experiências vivenciadas pela criança. iniciado pelo cotidiano infantil, uma vez que este, constituído tanto pelo Aprender algo novo, segundo Vigostski (1987), está relacionado mundo natural, como pelas criações humanas - com a ajuda da ciência ao material acumulado anteriormente, cuja reelaboração e reconstrução oferecem à criança infinitas possibilidades de observação, exploração ocorrem mediante novas experiências e intervenções do adulto, nesse e descoberta, como rodas de bicicleta, rádios, lentes, prismas etc., susci- caso, do professor. Se os jovens não tiveram a oportunidade de serem tando sua curiosidade e aguçando o sentimento de admiração e encanta- expostos a um abundante e rico material ao longo de sua escolarização mento do mundo ao redor. e terem seus olhares guiados pelos professores para aquilo que se deve No entanto, é preciso salientar que, apesar do cotidiano oferecer observar no processo de modo a ampliarem, reorganizarem e materiais suficientes para alimentar os interesses infantis, cada objeto reconstruírem suas experiências, é provável que, ao atingirem certa matu- cristaliza em si conceitos e técnicas que refletem a compreensão cien- ridade na adolescência, apresentem maiores dificuldades na compreen- tífica. Diferente dos conceitos espontâneos, afirma Vigotski (2000), o são de conceitos abstratos e do raciocínio científico do que aqueles que desenvolvimento dos conceitos científicos se forma, precisamente, no</p><p>88 Debora A. S. M. da Silva e Alessandra Arce Ensinar Ciência aos Pequeninos 89 processo de ensino de um determinado sistema de conhecimento cien- As investigações de Ann Marrom (apud Eshach, 2006) indicaram, tífico. Seu aprendizado requer, portanto, um processo sistemático de ainda, que crianças de um a três anos podem pensar de modo abstra- ensino, capaz de conduzir o olhar da criança para o quê observar e to sobre conceitos científicos, sendo capazes de explorar mecanismos aquilo que está por trás de cada fenômeno ou objeto, estimulando-a a simples de causalidade física e, até mesmo, argumentar sobre princí- enxergar um horizonte mais amplo. Nesse processo, o trabalho plane- pios estruturais mais complexos, como características de coisas opostas, jado e intencional do professor promove a transformação dos conhe- quando têm acesso a informações mais aprofundadas. cimentos (conceitos) elementares da criança em conhecimentos mais Os experimentos realizados por Sodian (apud Eshach, 2006) elaborados e complexos. também revelaram que crianças pequenas são capazes de levantar hipó- Portanto, embora cotidiano seja o ponto de partida, ele é, justa- teses por experimentação, argumentar, analisar dados e deduzir conclu- mente, o que o ensino de ciência deve superar. A aprendizagem da ciên- compreendendo a relação entre hipótese e evidência. Um exemplo cia baseada somente nas experiências provindas do cotidiano, no entanto, de suas intervenções é relatado por Eshach (2006), que descreve que faz com que o ensino assuma uma visão reducionista e se transforme em Sodian contou às crianças uma história sobre dois ratos, um grande e um pseudoensino (Santos, 2005). outro pequeno, que moravam em uma casa. Mostrou-lhes, em seguida, Santos (2005) explica que o cotidiano é um território particular, duas caixas, contendo em seus interiores um pedaço de queijo, e disse- subjetivo, e restringir-se a ele é -lhes que o rato que conseguisse entrar na caixa, comeria o queijo. Uma das caixas possuía uma grande abertura, larga o bastante para qualquer limitar-se ao território do eu, é direcionar a escola para satisfazer rato entrar, e a outra, uma abertura pequena que permitia somente a entra- necessidades básicas e não usá-la como instrumento de enrique- cimento e superação desse cotidiano quase sempre alienado e da de um rato pequeno. Então, Sodian indagou-lhes qual caixa deve- sincrético (p. 60). riam usar para descobrir se havia um rato pequeno ou grande na casa. As crianças reconheceram que, para determinar o tamanho do rato, era Desse modo, melhor a caixa com abertura pequena. Essa investigação, como afirma Eshach (2006), embora tenha negar a importância dos conceitos, limitar-se aos aspectos quali- sido realizada em contextos não científicos, sem que nenhum conceito tativos, negligenciando as possibilidades quantitativas da ciência é ao aluno instrumentos que custaram longos séculos de luta científico tivesse sido requerido à tarefa dada às crianças, nos indi- e sofrimento (p. 59). ca que elas são capazes de pensar abstratamente, levantar hipóteses por experimentação, argumentar, analisar dados e, até mesmo, dedu- O ensino de um conceito também pode partir do Porém, zir conclusões para comprovar evidências. Procedimentos estes essen- mais que a observação, ordenação e categorização daquilo que é, imedia- ciais ao desenvolvimento do pensamento (raciocínio) científico, que tamente, perceptível e manipulável, o professor deve estimular o pensa- se caracteriza pelo fato de ser analítico e crítico. Entretanto, Eshach mento investigativo e dedutivo da criança, iniciando o desenvolvimen- (2006) chama a atenção para o fato de que, mesmo sendo os aspec- to de ideias abstratas. Embora a criança pequena inicie seu processo de tos conceituais inseparáveis dos aspectos processuais, os conteúdos aquisição de ideias abstratas ainda com características rudimentares, de domínio científico podem escapar dos aspectos processuais. Desse estudos como o de Metz (apud Eshach, 2006), têm demonstrado que elas modo, considerar o raciocínio científico, sem se ocupar dos conteúdos podem se ocupar de investigação científica e da dedução de um novo da ciência, poderia fornecer apenas uma visão parcial e inadequada dos conhecimento a partir do embasamento de seus experimentos. processos de raciocínio científico.</p><p>90 Debora A. S. M. da Silva e Alessandra Arce Ensinar Ciência aos Pequeninos 91 O autor explica que, em muitos momentos de nossa vida coti- Um exemplo de raciocínio (pensamento) científico, mencionado diana, empregamos o raciocínio científico - como no caso da pesquisa por Eshach (2006), é o de uma investigação sobre a influência de luz em descrita anteriormente sobre a investigação do raciocínio científico em plantas, na qual a criança precisa, inicialmente, identificar as variáveis contextos não científicos observando fatos, levantando, experimentan- envolvidas - a luz, o tipo de terra, a quantidade de água, a temperatura, do e examinando hipóteses para solucionar determinadas situações que a umidade e as espécies de planta para, em seguida, ao examinar a nos são apresentadas. influência de luz, poder levantar um conjunto de observações, dentro do Porém, no pensamento científico a qual todas as variáveis são mantidas constantemente, com exceção da luz. Nesse experimento, podem verificar mudanças no crescimento, alte- observação e a experimentação só têm valor e sentido como rações de cor, movimentos induzidos pela luz (fototropismos), e assim controle de hipóteses. A observação sempre se faz por um moti- vo, precisamente para verificarmos se nossas convicções são por diante. verdadeiras ou falsas (Radice, 1968, p. 225). Observar uma série de acontecimentos, em que somente uma mudança possa acontecer, focaliza a atenção das crianças na impor- Enquanto há somente hipóteses, não há nenhuma teoria; pois hipó- tância da verificação e controle de variáveis, possibilitando a reflexão teses sozinhas não fazem teoria, uma vez que podem escapar dos aspectos sobre os problemas surgidos na elaboração e na testagem de hipóteses. do domínio distanciando-se e, mesmo, deixando de lado a ideia Nesse processo, elas podem perceber que uma hipótese pode conduzir de pensamento científico (Eshach, 2006). Como revela Radice (1968), a outras, além de terem a possibilidade de poder repetir a experiência para examinar a influência de outras variáveis. Assim, a exposição das valor educativo da observação e da experimentação científi- crianças a contextos como esses, permite que filtrem as ca não existe em si e sim no fato de propiciarem um confronto obtidas e observem a influência de uma variável isolada. Tal tipo de entre o que supomos ser verdade e aquilo que elas mostram ser realmente verdade. Este confronto marca a aferição e desen- experiência encerra, segundo Eshach (2006), a probabilidade das crian- volvimento histórico do conhecimento científico (p. 225). ças serem melhor preparadas para proceder da mesma forma em uma situação simples, nas quais não se possa controlar, ou mesmo, isolar as O que realmente importa, segundo o autor, é a passagem de uma variáveis. ideia para a outra, de uma hipótese para a outra, de uma concepção para outra A inclusão de situações que divergem do pensamento científico (Radice, 1968, p. 225). Essa passagem, entretanto, não deve ser feita metafi- também não é descartada por Eshach (2006), uma vez que essas contri- sicamente, mas mediante observação, experimentação, reflexão e repeti- buem para o desenvolvimento dos elementos do argumento científico, da observação, utilizando-se métodos e instrumentos da ciência; uma ensinando a criança a aprender a formular hipóteses de um modo sensato vez que esses nos permitem ultrapassar a aparência imediata, ver aquilo e ser crítica em relação aos fatos. Nesse caso, o professor deve ter o que os olhos não veem e descobrir a essência das coisas. Pois, como cuidado de apresentar as divergências contidas nas evidências. O apren- assinalou Marx (1968), toda ciência seria supérflua se houvesse coincidência dizado e o reconhecimento de tais divergências, como explica o autor, imediata entre a aparência e a essência das coisas (p. 939). E, no processo de não pode ser feito sem se basear em modelos de pensamento científico. desvelamento daquilo que é invisível aos olhos, os aspectos processuais O aprendizado não ocorre espontaneamente à medida que se cres- e o raciocínio científico nos prestam um grande auxílio, guiando-nos em ce, mas é adquirido mediante a condução intencional do olhar, em rela- direção à descoberta da essência de um fenômeno, de uma relação ou de ção ao exame e a verificação das hipóteses, ou seja, por meio do ensino. um fato. Dessa forma, é importante detectar casos semelhantes que divergem do</p><p>92 Debora A. S. M. da Silva e Alessandra Arce Ensinar Ciência aos Pequeninos 93 pensamento científico, pois, caso contrário, seria desnecessário desen- se professor no ensino da ciência conduz a criança a trabalhar volver o raciocínio científico na Ciência. em níveis que exijam dela trabalho de planejamento mental, As teorias superadas são, segundo Popper (apud Eshach, 2006), o trabalho com imagens, passos construídos previamente e um bom ponto de partida para o questionamento do que significa 'ser mentalmente antes do processo executivo, ele estará a contri- científico'. De acordo com ele, uma teoria só pode ser considerada cien- buin para que os processos de atenção, memória, percepção, fala, imaginação e criação sejam revolucionados no desenvolvi- tífica se for posta à prova e capaz de resistir a um contraexemplo que mento infantil (p. 70). conteste o conjunto total da teoria. Além disso, embora uma teoria cientí- fica genuína possa ser testada e refutada ela nunca é verificada incontes- Por não serem simples e diretamente observáveis e pautarem- tavelmente. Nem os testes mais rigorosos, nem o teste de tempo, podem -se no material acumulado anteriormente, a introdução dos conteúdos mostrar que-uma teoria é totalmente verídica. Uma teoria pode somente científicos domínio conceitual e processual para crianças peque- obter alta medida de confirmação e ser retida provisoriamente como a nas deve ser cuidadosamente planejada e constantemente controlada melhor teoria disponível até que seja desmentida e substituída por uma pelo professor, a fim de permitir que organizem melhor suas experi- melhor. Por esse exemplo, pode-se observar como as experiências, por ências, preparando-as para a compreensão dos futuros conceitos cien- mais positivas que sejam, são apenas tentativas. Sua importância, portan- tíficos no ensino formal, e evitando a apreensão de falsas concepções, to, está contida na demonstração das inúmeras tentativas realizadas para que influenciarão seus raciocínios, conduzindo a produção de padrões a obtenção de um conhecimento genuíno. Eshach (2006) explica que isso sistemáticos de erros (Bodner, Cho, Sanger e Greenbowe apud Eshach, é muito mais difícil de demonstrar em contextos não científicos, em que 2006). muitas hipóteses podem ser contraditas, tornando a ideia de refutação Ao introduzir conceitos científicos, o professor deve se atentar altamente problemática. para a questão dos conhecimentos prévios e da linguagem cotidiana, uma Entretanto, nem todo tipo de raciocínio científico usado pode ser vez que estes influenciarão a forma como as crianças verão o mundo. chamado de Eshach (2006) explica que, apesar da noção do Radice (1968) afirma que a tarefa da educação científica é a de uso de método científico ter sido deslocada para a noção de uma ativi- dade criativa que, não necessariamente, segue as regras, fazer passar de uma mentalidade à outra e não de passar de uma somente estando envolvido ativamente numa reflexão sobre algo obje- observação "pura" a uma experiência "pura", deixando para uma idade posterior e pretensamente mais adequada os quadros tivo, tendo seu olhar conduzido para além do perceptível e da aparência, gerais. É preciso partir da concepção de mundo que o estudante como a influência de luz em uma planta, que a pessoa pode adquirir a já possui para criar e desenvolver outra concepção do mundo, percepção do que é e de como a ciência realmente trabalha. Somente através da observação, da experimentação, da reflexão e da assim as crianças começarão a considerar uma gama de elementos no abstração (p. 224). levantamento de hipóteses, poderão analisá-los de forma crítica, refu- tar falsas concepções e criar teorias condizentes com as evidências, que medida que o professor introduz os conteúdos científicos, ele confirmam os aspectos da realidade. O questionamento do que signifi- deve procurar utilizar-se da linguagem científica, pois, como explica ca ser, ou não, científico, deve ser uma prática constante e contínua do Eshach (2006), a linguagem cotidiana, muitas vezes, é interpretada lite- professor, dos alunos e, até mesmo, das crianças pequenas. Entretanto, ralmente, ao invés de ser tomada conceitualmente, gerando concepções para isso, elas devem ser ensinadas a pensar cientificamente. Arce, Silva equivocadas para o pensamento científico. Assim, é necessário que os e Varotto (2011) asseguram que, professores prepararem-se adequadamente e se atentem para a influência</p><p>94 Debora A. S. M. da Silva e Alessandra Arce Ensinar Ciência aos Pequeninos 95 da linguagem na recepção, internalização e compreensão de conceitos de dar forma aos princípios expostos neste capítulo, serão consideradas científicos. Como esclarecem Arce, Silva e Varotto (2011), como bases metodológicas para o planejamento e implementação de aulas práticas, os seis primeiros princípios indicados por Charpak, Pierre é um erro pensar que na educação de crianças pequenas deveria & Quéré - norteadores do programa francês La Main à la Pâte, cuja se somente à linguagem cotidiana e seus conhecimen- adaptação para o ensino brasileiro foi realizado pelo programa ABC na tos prévios, evitando e preservando a introdução de conceitos e Educação Cientifica - Mão na Massa. Sua escolha reside no fato deste a linguagem científica para futuro. papel do professor e da linguagem deve ser de ampliar, e dirigir a gama de ser um projeto que toma o método de investigação científica, com base experiências da criança, e projetar novos caminhos para elabora- na experimentação, como fundamento para a exploração dos fenômenos ção e criação de novos conhecimentos e, não poupá-los e limitá- naturais. Nesse sentido, o professor poderá proceder da seguinte forma -los (p. 69). com a classe: Mesmo diante do iminente perigo da apropriação de falsas Los niños observan un objeto o un fenómeno del mundo real, concepções, Eshach (2006) defende que a educação em ciência, quan- cercano y sensible, y experimentan sobre el. 2. En el curso de sus investigaciones, los niños y do bem-planejada, pode ajudar os estudantes em suas descobertas e na razonan, exponen y discuten sus ideas y resultados, construyen sus cristalização dos conceitos científicos que permitirão desenvolver um conocimientos, ya que una actividad meramente manual no basta. olhar mais apurado do mundo e dos fenômenos naturais no futuro. Com 3. Las actividades propuestas a los alumnos por el maestro están o auxílio da educação científica, portanto, o professor deve trabalhar para organizadas en secuencias con miras a una progresión de los superar a contradição entre a linguagem cotidiana e científica, evitando aprendizajes. Reflejan programas y dejan una amaplia participación a la autonomía de los alumnos. possíveis e a apropriação de falsas concepções. 4. Um volumen mínimo de dos horas por semana esta dedicado a um Com relação à familiarização do pensamento científico em contex- mismo tema durante varias semanas. Se garantiza una continuidad tos científicos, as crianças não só aprendem a serem críticas e analíticas, de las actividades y los métodos pedagógicos sobre el conjunto de la mas também, a examinarem de forma mais fácil e clara as informações escolaridad. de que dispõem, afastando pensamentos (raciocínios) falsos, não cien- 5. Los niños llevan cada uno un cuaderno de experiencias con sus tíficos. Como revelado por Eshach (2006), desde a mais tenra idade, a propias palabras. criança busca compreender o mundo ao redor. Para que se conservem 6. El objetivo mayor es una apropiación progresiva, por los alumnos, seus interesses e admiração, os pedagogos devem nutri-la com o desejo de conceptos científicos y de técnicas operatorias, acompañada por una consolidación de la expresión escrita y oral (Charpak; Pierre; de exploração e de conhecimento do mundo entorno. Possuindo a predis- Quéré, 2006, p. 32). posição para explorar o mundo ao seu redor e sendo, desde cedo, estimu- ladas e ensinadas a pensar e a lidar com a ciência, as crianças apresenta- Ao longo da experimentação e da atividade investigativa, caberá rão, assim, atitudes positivas em seus futuros estudos no ensino formal, ao professor aprofundar e ensinar os conceitos envolvidos nos experi- além de contarem com o enriquecimento de suas experiências, a elevação mentos realizados e introduzir, pouco a pouco, o vocabulário científico, de suas motivações e interesses e a potencialização de sua capacidade de modo que as crianças ampliem suas possibilidades de fala e compre- analítica, crítica e criativa (Eshach, 2006). ensão. As formas de registros, por sua vez, terão o desenho como ferra- A partir da discussão feita até o momento, fica a pergunta: como menta inicial associada a explicação oral da atividade. À medida que ensinar ciência a crianças de zero a três anos? A fim de sistematizar e a linguagem escrita for se desenvolvendo, esta também passará a fazer</p><p>96 Debora A. S. M. da Silva e Alessandra Arce Ensinar Ciência aos Pequeninos 97 parte do registro dos experimentos, enriquecendo o universo comunica- À medida que a criança explora o mundo sensível e perceptível tivo da criança. que a cerca por meio da experimentação, habitua-se ao ato de observar, Para crianças entre zero e 18 meses, a experimentação e a parti- experimentar, pensar e questionar, chamando sua imaginação, a todo o cipação direta ocorrerá por meio de atividades que envolvam o aparato momento, a participar de suas descobertas. A curiosidade que manifes- sensorial (sentidos), pois, nesta fase, a criança ainda encontra-se centra- tam em relação ao mundo ganha densidade nas respostas trabalhadas por da no mundo do Desse modo, o professor apresentará e meio de suas ações (Charpak; Pierre; Quéré, 2006). Por isso, não basta promoverá o manuseio de objetos de diferentes texturas, a degustação de que o professor escolha experimentos de forma aleatória para preencher alimentos para o conhecimento e a percepção dos sabores (azedo, doce, tempo da criança. É preciso, sobretudo, que ele tenha intencionalidade amargo, salgado), a apresentação de cores, formas etc., identificando-os nas escolhas das atividades e o cuidado com o planejamento e desenvol- e nomeando-os sem infantilizar o vocabulário. vimento destas. Para isso, as explorações do mundo devem proceder a No trabalho com texturas (tato), por exemplo, poderá se confec- um recorte, escolhendo-se conteúdos, cujos conceitos a serem aprendi- cionar um jogo de percurso, no qual cada área conterá um tipo diferente dos deverão ser apropriados antecipadamente pelo professor, para que, de material, de modo que a criança possa manuseá-lo, experimentan- dessa forma, ele possa ensinar as crianças. É preciso que o professor do e ampliando sua percepção sensorial. Na estimulação do paladar, tenha em mente que a criança precisa experimentar para guardar, agir para que deve ser feita de acordo com a ficha de anamnese de cada criança compreender, para, aos poucos, com sua direção e estímulo, in enxergando contida na escola, o professor, ao apresentar os alimentos, nomeia seus e compreendendo mundo com sua mente, mais do que com seus sentidos sabores, texturas, formas cores A audição pode ser trabalhada com (Arce; Silva; Varotto, 2011, p. 82). músicas relacionadas ao corpo da criança, em que o professor, em frente De acordo com Eshach (2006), Charpak, Pierre e Quéré (2006), ao espelho, canta, identifica, aponta as partes mencionadas na música, professor deve, constantemente, levar a criança ao questionamento, leva a criança a sentir o seu próprio corpo, propõe jogos de e iniciando, assim, o processo investigativo. Embora existam inúmeros mímica etc. pontos de partida para essa atividade, ele pode, por exemplo, introdu- No mercado editorial, ainda, há uma infinidade de livros infantis zir experimentos para observação e investigação com crianças em torno e materiais relacionados à estimulação sensorial, que trazem cheiros de de 18 meses. Em uma aula em que observem uma lagarta no jardim, o frutas e outros alimentos para a experimentação olfativa da criança; a professor pode solicitar-lhes que descrevam as características do animal relação de objetos, alimentos e animais em função das semelhanças de ("Qual é sua cor? Como é o seu corpo?"); questionar-lhes sobre sua cores e formas; e livros para "ler/ouvir e tocar". Assim, ao mesmo tempo alimentação ("O que a lagarta está comendo?"); a forma de locomoção em que o professor conta histórias, as crianças podem tocá-los, sentindo, ("Como ela anda? Ela rasteja ou possui pernas/patas? Quantas patas observando e diferenciando uma diversidade de texturas macio, visco- têm?"); como nascem ("De ovos ou saem diretamente de dentro da barri- so, áspero, liso, rugoso cores, formas etc. Nessa atividade, o profes- ga de sua mãe? Como deve ser sua mãe? Será que é parecida com a lagar- sor deve chamar a atenção para alguns dos elementos, introduzindo seus ta? E os demais animais, será que ao nascerem todos se pareciam com respectivos nomes e características dos objetos, personagens, alimentos seus pais?"). Para a observação e acompanhamento do desenvolvimento etc.: "Esta é vermelha!"; "A pluma do patinho é macia!"; "Como da lagarta, podem construir um terrário. Para isso, pode, com a ajuda das é viscoso o mingau de Cachinhos Dourados!"; "Experimente como as crianças, pesquisarem o que é um terrário, a que tipo de observação ele cadeiras da família urso são diferentes, uma é áspera e a outra é macia.", é destinado, como pode ser construído etc. O processo de investigação por exemplo. e questionamento dos fatos e fenômenos ocorridos deve perpassar todo</p>