Prévia do material em texto
<p>AS NOVAS REGRAS DO JOGO: o sistema de arte no Brasil ZOUK</p><p>A problemática que se coloca seus privilégios, também, por meio neste livro é observar, na realidade da renovação constante dos signos empírica, a existência e funcio- de distinção, entre eles O sistema da namento do sistema da arte, iden- arte. Essa circunstância estabelece tificando as lutas no seu interior e uma necessidade de constantes reno- as relações destas com processo vações, para evitar a apropriação dos histórico em que se inserem. As códigos da elite pelo grosso da popu- mudanças que se estabeleceram no lação, que determinaria sua dessa- sistema da arte têm estreita relação cralização e a perda de seu status. com as transformações da própria A renovação permanente res- sociedade. Vale lembrar que a arte é ponde, portanto, às exigências da um segmento específico de todas as sociedade de consumo em seu cons- práticas estéticas que se realizam em tante atualizar-se, mas também às uma sociedade, uma parte adminis- necessidades de renovação para trada e controlada pelo sistema da manter a elite fora de um consumo arte. Existe um amplo conjunto de generalizado. Este processo, porém, produções visuais que estão à mar- não é uma farsa premeditada como gem das manifestações denominadas poderia parecer. Ele se realiza a par- artísticas. tir de um conjunto de referenciais A incorporação de obras e produ- dos integrantes do meio artístico, tores marginais ao sistema varia am- que agem segundo seus habitus, de- plamente ao sabor de determinantes correntes das suas posições sociais internas, mas, também, de demandas e também das posições que ocupam da sociedade. Para a compreensão do na estrutura do sistema. O proces- mundo da arte no Brasil é necessá- de construção de uma história rio considerar sua condição de região da arte é permeado pela introjeção periférica no circuito internacional e que os integrantes do sistema fazem de sua elite enquanto segmento não de seu papel. Eles acreditam, real- hegemônico da burguesia interna- mente, que a arte é produto de uma cional. No mundo moderno e con- evolução histórica da humanidade, temporâneo ocidental, observam-se sentindo-se herdeiros e responsáveis mudanças que constituem, pouco a pela continuidade dessa produção pouco, formas de renovação. Na so- especializada. Este livro procura locar em evidência as fissuras nesse ciedade de consumo, novo passou a ser a garantia de permanência e de discurso e nessa estrutura, dentro de continuidade da estrutura social ca- uma perspectiva crítica, porém nada fatalista. pitalista. A continuidade interessa aos grupos dominantes, garantindo</p><p>AS NOVAS REGRAS DO JOGO: o sistema da arte no Brasil Maria Amélia Bulhões (org.) Nei Vargas da Rosa Bettina Rupp Bruna Fetter CNPq Nacional de editora</p><p>2014 Editora Zouk Projeto gráfico e Edição: Editora Zouk Este livro segue as regras do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 2009. Por respeito a todos os profissionais que trabalharam neste livro (autores, revisores, diagramadores, editores, impressores, distribuidores e livreiros), pedimos que não seja feito xerox de nenhum trecho. A compra do exemplar, além de prestigiar estes profissionais, permite à editora manter este livro em catálogo e publicar novas obras que beneficiarão o público leitor. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Maurício Amormino Júnior, CRB6/2422) N936 As novas regras do jogo: o sistema da arte no Brasil / Maria Amélia Bulhões... [et. al]. - Porto Alegre: Zouk, 2014. 144 p. Inclui bibliografia. ISBN 978-85-80490-30-5 1. Arte - Aspectos econômicos Brasil. 2. Arte - Brasil - Comercialização. 3. Objetos de arte - Curadoria - Brasil. I. Bulhões, Maria Amélia, org. II. Rosa, Nei Vargas. III. Rupp, Bettina. IV. Fetter, Bruna. V. VI. Série. CDD-706.88 direitos dos textos reservados aos autores direitos da publicação reservados à Editora Zouk r. Garibaldi. 1329. Bom Fim. 90035.052. Porto Alegre. RS. f. 51. 3024.7554 você também pode adquirir os livros da zouk pelo www.editorazouk.com.br</p><p>Sumário Apresentação 09 o sistema da arte mais além de sua simples prática 15 Maria Amelia Bulhões o Estado e o empresariamento do sistema da arte 45 Nei Vargas da Rosa Da organização de exposições à curadoria: considerações sobre a formação da atividade no país 77 Bettina Rupp Um bom negócio: as recentes movimentações do mercado de arte contemporânea no Brasil 105 Bruna Fetter Referências 137</p><p>Sobre os autores Maria Amelia Bulhões Graduada em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Doutorado pela USP, com pós-doutorado na Universidade de Paris I, Sorbonne e na Universidad Politecnica de Valencia. Professora Titular, atuando como docente, orientadora e pesquisadora no PPG em Artes Visuais da UFRGS na linha de pesquisa Relações sistêmicas da arte, com foco em arte contemporânea e web arte. Sua produção pode ser acessada no site http://www.ufrgs.br/artereflexoes/site/ Nei Vargas da Rosa Licenciado em História pela PUCRS e Mestre em Artes Visuais, ênfase em História, Teoria e Crítica da Arte pela UFRGS, no Programa de Artes Visuais do Instituto de Artes. Recebeu Prêmio "Estudos e Pesquisas sobre arte e economia da arte no Brasil", pelo Programa Brasil Arte Contemporânea da Fundação Bienal de São Paulo. Bettina Rupp Mestre em História, Teoria e Crítica da Arte pelo PPGAV-UFRGS e doutoranda no mesmo programa. Pesquisa curadorias em arte contemporânea e práticas colaborativas. Integrante da editoria da Revista- Valise, voltada para publicações acadêmicas de pós-graduação em artes visuais e Foi docente nas seguintes faculdades: CNEC Bento Gonçalves, FACCAT e FABICO-UFRGS. Bruna Fetter Doutoranda em História, Teoria e Crítica pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais (PPGAV) da UFRGS vem desenvolvendo sua pesquisa acadêmica ao redor de questões que envolvem o sistema da arte e suas configurações Recentemente realizou a curadoria das mostras Da Matéria Sensível (MACRS, 2014) e Lugar Qualquer (Casa Triângulo, 2013); também compartilhou a curadoria da mostra Mutatis Mutandis, com Bernardo de Souza (Largo das Artes, 2013); e de Através, cuidadosamente, com Angélica de Moraes (Prêmio Funarte de Arte Contemporânea, 2012).</p><p>Apresentação o campo artístico brasileiro passou por profundas transformações ao longo do século XX, seguindo tendências globais, mas com características próprias de sua realidade econômica, política e cultural. Tais transformações adentraram o século XXI consolidando novos papéis para antigos atores, mas também promovendo a ascensão de novas figuras neste cenário. Em uma tentativa de compreender esse desenvolvimento e focando assuntos menos evidenciados nas relações estabelecidas no mundo artístico, o livro As novas regras do jogo: sistema da arte no Brasil pretende não apenas trazer questões históricas fundamentais para o entendimento da realidade atual, como também propor um debate acerca de novas estruturas emergentes. Além disso, pretende propor uma análise de como a atuação dessas estruturas afeta a rede de relações dentro do campo artístico como um todo, ou seja, de que maneira o sistema da arte vem respondendo às novas demandas conjunturais. Figuras fundamentais como marchands, curadores, produtores e colecionadores serão colocadas em diálogo com processos de institucionalização, profissionalização e internacionalização da produção local. Essas questões que se apresentam hoje são abordadas em uma perspectiva histórica, que busca compreender suas emergências como chave para debates a respeito do presente e do futuro da arte. Busca suprir uma lacuna do mercado editorial brasileiro em relação à produção de artes visuais com enfoque no seu contexto de produção, exibição e circulação, abordando desde 1960 à atualidade. A proposta deste livro é alcançar não apenas o público específico do ambiente acadêmico, mas também curiosos e interessados no meio</p><p>10 As novas regras do jogo: o sistema da arte no Brasil de arte no País, apresentando uma escrita clara e objetiva e uma crítica reflexiva dos assuntos abordados. Para tal, foge dos modelos que reúnem discursos extremamente especializados ou somente imagens acompanhadas de textos poucos analíticos. Os autores utilizam uma linguagem capaz de abordar discussões que, mesmo sendo fruto de pesquisas acadêmicas e mantendo o rigor da análise, uma abertura de leitura para um público mais amplo. A obra tem uma estrutura orgânica, decorrente da articulação de um grupo de pesquisa que vem trabalhando em torno das problemáticas da produção artística em suas articulações contextuais no Brasil, na segunda metade do no século XX e início do XXI. livro está organizado em quatro capítulos, cada um deles de autoria de um dos membros do grupo, com textos que, resultantes de dissertações de mestrado e teses de doutorado orientadas pela coordenadora do grupo, foram amplamente discutidos em conjunto por todos os autores, com vistas a criar uma articulação de conceitos e conteúdos. Nesse processo de edição conjunta, as rodadas de leituras dos capítulos uns dos outros proporcionaram tanto um amadurecimento dos textos individuais, quanto uma maior encadeamento entre os mesmos, resultando em uma construção final verdadeiramente coletiva. Para cobrir a longa duração e as complexidades deste objeto o sistema da arte no Brasil a partir dos anos 1960, cada pesquisador abordou um aspecto em particular, diretamente ligado ao seu trabalho pessoal. As bases conceituais e a emergência de alguns processos presentes nesse período estão apresentadas no capítulo I, que tem como base de sua escrita uma pesquisa mais antiga: a tese de doutorado de Maria Amelia Bulhões, a coordenadora do grupo, defendida em 1990, e nunca publicada na íntegra. Essa tese serviu como ponto de partida para o conjunto de reflexões que envolvem as novas condições do sistema da arte no País a partir dos anos 1980,</p><p>Apresentação 11 realizadas pelos demais autores. Além de uma discussão teórica sobre sistema da arte, neste capítulo são apresentadas as condições de desenvolvimento deste sistema, no Brasil, dos anos 1960 e 1970, momento em que se gestaram algumas especificidades do meio local vigentes até hoje. No capítulo II, escrito por Nei Vargas da Rosa, são apresentados os embates de forças e poderes que se desenvolvem no sistema da arte no Brasil contemporâneo para se adaptarem à política econômica que passa a vigorar na década de 1990. Para tanto, é analisada a forma como surgem e atuam os novos atores e instituições. Quais suas participações na circulação e visibilidade da produção das artes visuais e como se apoiam nos instrumentos legais propostos como forma de política pública na área cultural. No capítulo III, Bettina Rupp explora as relações entre curadoria e campo artístico. Diante do pluralismo presente na arte contemporânea, o curador se tornou um agente de extrema visibilidade, inclusive no Brasil. o capítulo aborda a atividade do curador como autor de projetos e sua capacidade em identificar tendências e temáticas emergentes, articulando conceitos críticos nas exposições e os modos como a relação do curador com os artistas e outros agentes repercute na história da arte do País. o capítulo IV, de Bruna Fetter aborda o mercado de arte no Brasil, em especial o de arte contemporânea, considerando o crescimento que vem se evidenciando. Destaca o apoio do favorável momento econômico brasileiro, a ascensão de jovens colecionadores, as novas galerias que abrem suas portas e de como as feiras de arte se consolidam no calendário internacional de eventos. Analisa, ainda, a atuação do governo nos processos de internacionalização da arte brasileira através de políticas públicas e projetos de incentivo, bem como os reflexos dessas ações para galerias, artistas e colecionadores. A problemática que se coloca neste livro é observar, na</p><p>12 As novas regras do jogo: o sistema da arte no Brasil realidade empírica, a existência e o funcionamento do sistema da arte, identificando as lutas no seu interior e as relações destas com o processo histórico em que se inserem. As mudanças que se estabeleceram no sistema da arte têm estreita relação com as transformações da própria sociedade. Vale lembrar que a arte é um segmento específico de todas as práticas estéticas que se realizam em uma sociedade, uma parte administrada e controlada pelo sistema da arte. Existe um conjunto de produções visuais que estão à margem das manifestações denominadas artísticas. A incorporação de obras e produtores marginais ao sistema varia amplamente ao sabor de determinantes internas, mas, também, de demandas da sociedade. Para a compreensão do mundo da arte no Brasil é necessário considerar sua condição de região periférica no circuito internacional e de sua elite enquanto segmento não hegemônico da burguesia internacional. No mundo moderno e contemporâneo ocidental, observam-se mudanças que constituem, pouco a pouco, formas de renovação. Na sociedade de consumo, o novo passou a ser a garantia de permanência e de continuidade da estrutura social capitalista. A continuidade interessa aos grupos dominantes, garantindo seus privilégios, também, por meio da renovação constante dos signos de distinção, entre eles o sistema da arte. Essa circunstância estabelece uma necessidade de constantes renovações, para evitar a apropriação dos códigos da elite pelo grosso da população, o que determinaria sua dessacralização e a perda de seu status. A renovação permanente responde, portanto, às exigências da sociedade de consumo em seu constante atualizar- se, mas também às necessidades de renovação para manter a elite fora de um consumo generalizado. Este processo, porém, não é uma farsa premeditada como poderia parecer. Ele se realiza a partir de um conjunto de referenciais dos integrantes do meio artístico, que agem segundo seus habitus, decorrentes das suas posições sociais</p><p>Apresentação I 13 e também das posições que ocupam na estrutura do sistema. o processo de construção de uma história da arte é permeado pela introjeção que os integrantes do sistema fazem de seu papel. Eles acreditam, realmente, que a arte é produto de uma evolução histórica da humanidade, sentindo-se herdeiros e responsáveis pela continuidade dessa produção especializada. Este livro procura colocar em evidência as fissuras nesse discurso e nessa estrutura, dentro de uma perspectiva crítica, porém nada fatalista.</p><p>sistema da arte mais além de sua simples Maria Amelia Bulhões Contribuições conceituais para o estudo do sistema da arte A maior parte dos estudos sobre artes visuais centra sua análise na figura do artista, considerado como responsável individualmente pelas características e a repercussão social de seu trabalho. Parte-se, aqui, ao contrário da ideia de que o trabalho artístico é um fenômeno puramente individual, que se possa isolar da sociedade. Para compreender as artes visuais, é preciso ir além do artista, investigando indivíduos e instituições que interagem com ele: críticos, marchands, museus, salões, galerias, revistas de arte, etc. Este conjunto de indivíduos e instituições, por sua vez, não age de forma autônoma; obras e eventos artísticos, bem como sua difusão e seu consumo, estão intimamente relacionados com as condições econômicas, sociais, políticas e culturais do meio em que atuam, isto é, com o processo histórico do qual participam de maneira específica e no qual se transformam. Para a análise dessas relações, utiliza-se o conceito sistema da arte: "conjunto de indivíduos e instituições responsáveis pela produção, difusão e consumo de objetos e eventos por eles mesmos como artísticos e responsáveis também pela definição dos padrões e limites da arte para toda uma sociedade, ao longo de 1 Esse texto foi elaborado a partir da tese de doutorado Artes Plásticas: participação e distinção Brasil anos 1960/70, defendida pela autora na USP, em 1990, que nunca foi publicada na íntegra. Para este texto alguma nomenclatura foi atualizada, mas as ideias constituem basicamente as mesmas defendidas na tese.</p><p>16 As novas regras do jogo: o sistema da arte no Brasil um período histórico". 2 Com essa definição é possível apreender a complexidade das estruturas e o dinamismo destes processos, em uma visão sincrônica das variáveis que interferem na produção e na difusão das artes visuais e do seu papel nos contextos históricos. A partir desta base conceitual, propomos uma análise do sistema da arte no Brasil, nos anos 1960 e 1970, considerando sua estrutura, seu funcionamento e as suas transformações ao longo deste período. Destacam-se suas relações com as condições econômicas, políticas e sociais do País nestas duas décadas que foram tão decisivas na estruturação das condições em que se vive hoje. Para aprofundar melhor a noção de sistema da arte, incorporam-se nele contribuições dos estudos de Pierre Bourdieu, que trabalha com o conceito de campo, definido por ele da seguinte forma: "campo é um espaço de jogo, um campo de relações objetivas entre indivíduos e instituições que competem por um mesmo objeto". Ele aplica o termo "campo" na análise de vários se- tores da atividade social, quais sejam: o religioso, político e cultural. Dentro do campo cultural, aborda mais detalhadamente o campo de produção erudita ou campo artístico. É importante destacar que ele não descreve o funcionamento dos campos, mas busca descobrir e evidenciar as forças invisíveis responsáveis por este funcionamento, levantando seus princípios básicos de existência. Para ele, o campo tem uma estrutura e regras de funcionamento que podem ser analisadas independentemente das características pessoais dos indivíduos nele atuantes, sendo fundamental o estudo do campo e não o dos indivíduos, como tradicionalmente se faz em artes visuais. Ainda que usando uma nomenclatura diferente, Bourdieu apresenta uma forma aproximada de compreender as mesmas questões abordadas sob a designação de sistema da arte. Pode-se, 2 Esta definição foi estabelecida e enunciada na tese de doutorado da autora, p. 17.</p><p>Maria Amélia Bulhões 17 assim, utilizar suas contribuições reflexivas e interpretativas nesta análise. De acordo com Pierre Bourdieu (1983, p. 165), "o sujeito da obra não é nem o artista singular, causa aparente, nem um grupo social [...], mas o campo da produção artística em seu conjunto [...]". Para compreender do que se trata campo (1983, p. 89), explica que "os campos se apresentam à apreensão sincrônica como espaços estruturados de posições (ou de postos) cujas propriedades dependem das posições nestes espaços, podendo ser analisadas independentemente das características de seus ocupantes", sendo que em cada campo há leis próprias de funcionamento que regem suas especificidades e a atuação de seus agentes. "Quanto mais uma atividade é mediada por uma rede estruturada de posições, de instituições, de atores, mais ela tende à autonomia de suas possibilidades: a consistência da mediação depende do grau de autonomia do campo" (HEINICH, 2008, p. 102). Campos podem ser formados e destituídos em diversas épocas e sociedades. Bourdieu comenta que, para entrar na disputa do "jogo", é necessário respeitar a sua estrutura e conhecer as suas regras, mesmo que o jogador não concorde com elas. É por meio daqueles que detêm o habitus3 que a disputa poderá ser exercida. Nos campos de produção de bens culturais, como no caso da arte, existe ainda o risco de se acabar com o próprio jogo, quando as transformações visam uma busca pela verdade tornando as origens, que fundamentam a estrutura do jogo, frágeis e vulneráveis, resultando em revoluções totais no campo (BOURDIEU, 1983). Para esse autor, as lutas no campo artístico se realizam em 3 De acordo com Pierre Bourdieu (1983, p. 94), habitus é o "sistema de disposições adquiridas pela aprendizagem implícita ou explícita que funciona como um sistema de esquemas geradores; é gerador de estratégias que podem ser objetivamente afins aos interesses e objetivos de seus autores sem terem sido expressamente concebidas para este fim". Em outras palavras, um conjunto de crenças, técnicas e referências que propiciam a atuação em determinado campo.</p><p>18 As novas regras do jogo: o sistema da arte no Brasil torno do controle do capital cultural. Na sociedade capitalista, existem três diferenciadas categorias de capitais: o econômico, o social e o cultural. A propriedade destes diferentes capitais é fundamental na luta pelo poder político. As diversas frações da classe dominante não detêm as mesmas proporções das diferentes espécies de capital, mas a propriedade de um determinado capital pode determinar uma disposição particular em relação ao sistema da arte. As observações de Bourdieu sobre as regras e os princípios de funcionamento dos campos permitem afirmar que, para ele, os elementos estruturadores são a luta pelo poder e a crença no universo mágico da arte. Em sua teoria, não há nenhum sistema que não funcione, pelo menos em parte, devido a crenças, sejam elas quais forem. A eficácia de seu trabalho está em desvendar as crenças que sustentam os mecanismos que fundam o mundo social e, dentro deste, o campo artístico. autor chega mesmo a afirmar que a sociologia da cultura é a sociologia da religião de nossa época. Com uma perspectiva desmascaradora e dessacralizante, o autor afirma que o que faz com que o campo funcione é a crença coletiva nos valores nele estabelecidos. que cria a magia e o valor "artístico" dos objetos é a trama de todos os agentes que participam dele e sua crença nas tradições e na estrutura já estabelecida. Os valores se estabelecem nesta rede de relações e nela se constrói também o próprio conceito de "arte", uma vez que o valor da obra e o valor da própria arte estão intimamente ligados. o poder do sistema da arte é maior na medida em que a trama que o legitima encontra-se mais oculta, tanto aos que nele estão envolvidos quanto aos que dele estão excluídos. A força do sistema está ligada a sua estrutura, a suas instituições, ao peso de sua história. A institucionalização mantém e renova os rituais, estabelecendo discriminações e hierarquizações dentro do variado universo das</p><p>Maria Amélia Bulhões 19 atividades artísticas. As estruturas de poder mascaram-se por meio da crença na magia do criador e na individualidade autônoma das produções, na sabedoria despolitizada dos críticos e na devoção abnegada dos consumidores. Pode se, ainda, afirmar que o sistema da arte surgiu como um mecanismo de dominação, na medida em que seus integrantes impuseram ao conjunto da sociedade padrões que eram de uma minoria; no caso do mundo colonial, essa imposição ocorreu por parte dos colonizadores sobre os povos colonizados. Ao apresentar os seus critérios particulares como definidores dos produtos e práticas a serem considerados artísticos, dando a estes um status superior às demais produções plásticas, designadas artesanato ou artes menores. Dessa forma, o sistema da arte impôs uma hierarquização que legitimava simbolicamente o poder político e econômico de seus integrantes. A ordem resultante da interação daqueles que tinham acesso ao sistema da arte passou a impor uma dominação simbólica sobre os demais, excluídos desta Marginalizava-se, assim, a elaboração simbólica dos extratos sociais não integrados ao sistema, estabelecendo-se mecanismos de distinção que legitimavam a dominação social preexistente, da qual o sistema era também resultante. Essa distinção passou a funcionar, desde então, como estratégia de poder político dentro da sociedade: uma estratégia que se torna mais eficiente, na medida em que é mais mascarada, aparecendo como legítima. Assim, o conceito sistema da arte e a realidade por ele explicada devem ser pensados como historicamente datados, negando, portanto, orientações que pretendem considerar a arte como um fenômeno universal e permanente. Esta afirmação não deve conduzir a uma negação da capacidade criativa humana, nem das necessidades de realização de práticas simbólicas. fenômeno da elaboração simbólica enquanto</p><p>20 As novas regras do jogo: o sistema da arte no Brasil atividade psíquica humana é universal e atemporal. No entanto, a apropriação pelas elites das mais eficientes e adequadas produções sob a designação de arte, este sim, é um processo recente na história da humanidade, que se realiza, na sociedade moderna, dentro desse conjunto de relações denominado sistema da arte. A partir dessas considerações nos propomos a observar o desenvolvimento do sistema da arte no Brasil, nos anos 1960/70, identificando suas estruturas e seus desdobramentos. Museus, escolas de arte, salões, galerias e espaços específicos de arte nos meios de comunicação de massa podem ser considerados suas principais instituições. Dentro delas, indivíduos desempenham funções que determinam sua posição e poder no sistema. Como este é um período em que o sistema moderno ainda está se consolidando, conta com poucas instituições e os indivíduos interatuam em diversas funções. Artistas, além de obviamente produzirem suas obras, são professores de artes em universidades e cursos públicos ou privados, como Carlos Fajardo e Fayga Ostrower, ou, ainda, produzem eventos, como Proposta 65, organizada por Waldemar Cordeiro e Ângelo Aquino. Críticos, como Olívio Tavares, Frederico Moraes ou Aracy Amaral, além de comentarem obras, desempenham docência de teoria e história da arte e atuam como administradores na direção de museus e outras instituições. A atividade do marchand, que é basicamente a comercialização, também se estende à organização de eventos, como ocorreu com Jean Boghici e Ceres Franco, em relação à importante mostra 65, no Museu de Arte Moderna, no Rio de Janeiro. Como se pode observar, os indivíduos que atuavam nesse circuito, faziam-no dentro de instituições que davam respaldo a suas práticas e legitimavam suas ações. Os mesmos indivíduos realizavam várias e diferenciadas atividades, o que restringia bastante as possibilidades de entrada de outros, evidenciando a</p><p>Maria Amélia Bulhões 21 pouca profissionalização desse sistema que se apresentava bastante fechado. Em torno dessa estrutura se articula tudo que pode ou aspira ser considerado arte dentro dessa sociedade, nesse momento. Os indivíduos nela inseridos são os responsáveis por um processo de legitimação que pode ser mais bem analisado utilizando a teoria da rotulação a que se refere Howard Becker (1977). o ponto central de sua teoria é a constatação de que a rotulação se organiza a partir da criação de regras por um determinado grupo. Aplicada à arte, o artista é aquele rotulado com sucesso como tal (rotulação aceita socialmente), e o comportamento artístico em uma sociedade é estabelecido por um corpo de convenções. Assim, para o funcionamento do sistema da arte é necessário que seus integrantes obtenham da sociedade o poder de rotular como arte determinadas produções e como artistas determinadas pessoas. Um processo complexo em que a aceitação dos pares é fundamental. o poder rotulador das instituições. Por outro lado, é definido pelo peso de sua história, por suas articulações com as demais instituições do sistema e pelas atividades que sedia. o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, por exemplo, além da atividade específica, de sediar mostras, manteve, durante longo período, cursos de gravura, em próprio, e outros, inclusive sob a coordenação do crítico Frederico Moraes. Museu de Arte Moderna de São Paulo foi responsável pela produção de eventos como Panorama da Arte Atual Brasileira, premiando artistas, numa espécie de seleção anual, nacional, dos melhores em cada área (pintura, desenho, gravura e escultura). Estes museus, públicos ou privados, indistintamente, se articulavam e interagiam com o circuito comercial de galerias. Uma mesma mostra, como a do grupo de artistas argentinos da Nova Figuração, foi exposta no MAM do Rio de Janeiro e na Galeria Bonino. o Museu de Arte de São Paulo</p><p>22 As novas regras do jogo: sistema da arte no Brasil promoveu, conjuntamente com a galeria Arte Aplicada, a exposição o Móvel e Objeto Inusitado. Como a arte era apresentada à população em geral via os meios de comunicação de massa, um espaço específico de divulgação das artes visuais dentro de jornais, revistas, em rádios ou TV, pode dar àquele que é seu responsável uma posição de poder dentro do sistema da arte. Assim, por exemplo, vários periodistas, jornalistas que se especializaram no tema, como Olívio Tavares, Olney Cruse, ou Harry Lauss, passaram a dispor de um poder de rotulação proporcional à penetração dos periódicos em que atuavam. Os meios de comunicação, como um todo, não fazem parte do sistema da arte, mas os espaços específicos dedicados às artes se tornam segmentos dele. Um bom exemplo disso, no período estudado, são as colunas de arte em jornais e revistas de ampla circulação destinadas ao grande público. Em geral, utilizavam uma quantidade de adjetivos superior à das demais matérias, referenciavam a presença de personalidades nos eventos e às cifras astronômicas que as peças alcançavam. Além disso, estabeleciam sempre uma relação da arte com a distinção e a sofisticação de gosto, utilizando-a, inclusive, como chamada em anúncios publicitários. A importância desses meios de comunicação estava ligada ao fato de que eles divulgavam uma imagem sofisticada e erudita da arte ao grande público, reforçando o elitismo e o signo de distinção desse sistema. As matérias sobre artes visuais ocupavam um espaço dentro das páginas de cultura, o que as colocava no espaço mágico a que se refere Pierre Bourdieu (1983).4 o papel do Estado no sistema da arte, no Brasil, é muito grande, tendo desempenhado ações mais diretas, como o mecenato, inaugurado com a vinda da família real portuguesa e a criação 4 Na página 155, Bourdieu afirma que equivalente da magia na nossa sociedade está em Elle ou Le Monde, especialmente na página literária.</p><p>Maria Amélia Bulhões 23 da Academia Real de Belas Artes, e continua com a manutenção de instituições públicas como museus e escolas de arte. Ou, ainda, ações indiretas, como políticas culturais e econômicas que favorecem o desenvolvimento de determinadas estruturas ou correntes de arte e reprimem outras. Apesar de forte essa presença, ela é pouco reconhecida pelos integrantes do sistema da arte, que defendem sua autonomia. o mecenato favoreceu a manutenção de práticas artísticas de consumo restrito e a conservação de objetos e monumentos que testemunham um passado heroico de sua elite. Estado assumiu o compromisso de manter viva a memória nacional (documentos e obras que preservam glórias e poder), utilizando-a na construção de uma identidade. Desempenha assim a tarefa de unificador simbólico (ideia de nação), que os diversos segmentos de classe dominante não conseguem realizar isoladamente, mas que é fundamental em termos de controle popular na sociedade moderna e contemporânea. Anos 1960: a emergência do mercado moderno, mobilizações e disputas simbólicas Em termos gerais, no Brasil, pode-se considerar a década de 1960 como uma importante etapa da modernização internacionalizante que se processava desde o início da década anterior. Esta modernização se expressa no sistema da arte orientado pela lógica de distinção social, integrado ao projeto desenvolvimentista, no qual segmentos da elite brasileira se empenhavam. Este projeto visava à superação da etapa de substituição de importações e a integração da economia brasileira a uma condição mais avançada do capitalismo, o monopolista. A crise deste projeto (1961-1964) foi um período de crescente mobilização, levado a cabo por setores sociais descontentes,</p><p>24 As novas regras do jogo: o sistema da arte no Brasil que propunham outras alternativas de desenvolvimento, menos atreladas ao capital internacional e mais identificadas com o modelo nacionalista e populista da era Vargas. Essa mobilização popular ativou uma dinâmica cultural mais politizada e voltada para os interesses das classes trabalhadoras. Alguns setores da intelectualidade brasileira inauguravam um novo modelo de atuação artística, comprometendo seu fazer com as lutas sociais que estavam se desenvolvendo. No âmbito de práticas artísticas, como o teatro, a música e o cinema, surgiram tendências democratizantes, alterando sua produção e suas formas de difusão. Nesse momento, as artes visuais se mantiveram, praticamente, à margem das mobilizações. o sistema seguia o seu curso de atualização formal internacionalizante, com predomínio das tendências abstracionistas, que vinham se impondo desde a década de 1950, alcançando seu apogeu com o concretismo e neoconcretismo. As renovações se desenvolviam sem maiores alterações na estrutura do sistema e, principalmente, sem que as disputas sociais, que conflitavam a sociedade, o atingisse. Pelo contrário, as artes visuais foram apresentadas como sinônimo de estabilidade e valor garantido. Nesse período, o mercado de arte apresentou um novo perfil, com a criação de galerias empresariais, demonstrando que a crise que envolvia muitos setores da sociedade brasileira não o atingia. Pode- se observar, em matérias publicadas em jornais e revistas, que as artes visuais eram vistas como um investimento seguro e em ascensão. Um espaço digno de confiança para as elites depositarem seus ganhos e auferirem um status social. A arte era vista em módulos publicitários como um signo da modernidade que as elites implantavam desde a década de 1950, com o fortalecimento de um parque industrial de bens de consumo duráveis. Desenvolvimentismo e modernidade artística foram signos dos novos tempos que essas elites se propunham construir. Os</p><p>Maria Amélia Bulhões 25 questionamentos sociais não atingiram as artes visuais, cujo público, restrito e sofisticado, permaneceu identificado com o projeto de modernização que os setores intelectuais médios questionavam. As artes visuais mantiveram, nesse momento de crise, seu espaço permanente dentro dos meios de comunicação social, sem que se percebessem questionamentos sociais mais profundos ou grandes antagonismos. Pelo contrário, uma arte mais tradicional, figurativa, de inspiração modernista, seguia ao lado da abstração que se dividia em duas vertentes: uma mais informal e intimista e outra mais geométrica e racional. Eram tendências estilísticas diferenciadas que se identificavam com visões de mundo conflitantes, mas que se harmonizavam na manutenção da lógica de distinção no sistema da arte local. A grande novidade desse período se deve à dinamização do mercado de arte, ligada ao surgimento de um novo tipo de empreendimento, que foi bastante decisivo nos rumos do sistema da arte: a galeria de arte com padrão empresarial. o surgimento desse tipo da galeria, impulsionando a realização de vernissages, como um evento cultural e social, se implementou a partir do Rio de Janeiro, no início dos anos 1960. o mercado de arte que conhecemos hoje, e que desempenha um papel fundamental na comercialização, na determinação de valores artísticos e na consolidação do trabalho de artistas vivos e atuantes, inaugurou-se dentro desse contexto, por meio da ação de alguns inovadores marchands, no Rio de Janeiro e em São Paulo. Eles instalaram galerias que dinamizaram e modificaram o panorama de um mercado em que, até então, a arte era comercializada juntamente com antiguidades e outros objetos de luxo. o casal Bonino, de marchands argentinos, criou, em 1960, no Rio de Janeiro, a Galeria Bonino, que introduziu no meio artístico local, ainda incipiente, a experiência que traziam da cosmopolita</p><p>26 As novas regras do jogo: o sistema da arte no Brasil Buenos Aires. Eles abriram suas portas com uma perspectiva de articulação com mercados externos, o que se evidenciou na exposição de inauguração: uma mostra coletiva de artistas brasileiros e argentinos, muito bem recebida pela crítica especializada e pelo público em geral. o prestígio e a influência dessa galeria foram enormes ao longo das décadas de 1960 e 1970. Em importantes eventos do meio artístico, como o "Destaque JB" seleção anual das melhores mostras feita por votação dos críticos de mais renome -, ou a Bienal Internacional de São Paulo, pode ser observada a presença permanente de suas exposições e dos seus artistas. Franco Terranova, uma das personalidades mais atuantes nessa década, adquiriu em 1954 a Petite Galerie, no Rio de Janeiro, que dinamizou o meio de arte, organizando importantes eventos, dentre os quais se pode destacar a Exposição de Caixas, mostra decisiva na consagração de uma categoria artística emergente: o objeto. Jean Boghici inaugurou em 1960, no Rio de Janeiro, a Galeria Relevo, onde desenvolveu uma ação destacada na difusão das novas tendências estéticas, principalmente pelo apoio dado aos jovens da vanguarda carioca. Ele foi o articulador da relação de artistas locais com o grupo francês Nouveau Réalisme, promovendo, inclusive, a vinda ao Brasil do crítico Pierre Restany, principal teórico desse movimento, e organizando, juntamente com Ceres Franco (marchand brasileira em Paris), a mostra Opinião 65, realizada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, marca decisiva da produção artística brasileira. São Paulo, nos anos 1960, possuía um mercado de arte menos ativo, e nele a maior atividade se dava nos leilões, nos quais se destacava, como organizador, o marchand Giuseppe Baccaro. De sua experiência com leilões, ele partiu para a inauguração de uma galeria em 1962, a Selearte, em sociedade com Biagio Motta. Entre as galerias de arte em São Paulo, no início da década, se destacavam</p><p>Maria Amélia Bulhões 27 a Atrium, sob a direção de Emi Bonfim, a Ambiente, dirigida por Radha Abramo, e a Seta, onde atuava o marchand Antonio Maluf. Franco Terranova inaugurou, em 1962, uma filial da Petite Galerie em São Paulo. Esse novo empreendimento ficou sob a direção de Raquel Babenco, que se iniciara nas artes visuais com Pietro Maria Bardi, diretor do Museu de Arte de São Paulo, muito influente naquela época. É importante destacar, aqui, o surgimento, no sistema da arte local, da figura de marchand de tableaux e sua atuação nessas galerias que se inauguravam. Eles realizavam investimentos de capital, apoiando economicamente alguns artistas nos quais apostavam, adquirindo suas obras e interferindo em suas carreiras. Essas galerias desenvolviam projetos de trabalho com críticos, museus, salões etc. voltados ao estabelecimento de estreitas relações com o campo artístico cultural. Atuavam como instância de legitimação e não apenas como revendedores ou intermediários na comercialização. Eles interferiam na determinação de padrões de arte e na criação de valor para a obra a partir de sua circulação. o trabalho desses marchands foi de certa forma desbravador, criando um novo estilo de relações no sistema da arte, mais moderno e correspondente às transformações que ocorriam na economia brasileira que se modernizava rapidamente. Observa-se que vários deles (como o casal Bonino, Franco Terranova, Jean Boghici, Giuseppe Baccaro, Pietro Maria Bardi) eram estrangeiros, o que permite duas considerações. A primeira relaciona-se com o papel que desempenharam em um momento de busca de contatos internacionais dos artistas, em que suas experiências e know-how são decisivos. A segunda diz respeito ao capital cultural e social que possuem, tanto por suas formações no exterior, em centros de maior tradição cultural, quanto pelas relações sociais que aqui se estabelecem com muitos estrangeiros ricos que vieram para o Brasil no pós-guerra, formando um núcleo</p><p>28 As novas regras do jogo: o sistema da arte no Brasil cujas ligações com as artes favorecia essas atividades. A procedência estrangeira, principalmente italiana e francesa (países de tradição no campo da arte), era um fator que contribuía na carreira desses profissionais. Outro elemento a considerar no processo de modernização do sistema da arte é sua repercussão nos meios de comunicação social, principalmente os jornais, que nesse período tinham uma atuação de destaque, com colunas de arte e publicando ainda, ocasionalmente, artigos de críticos de destaque. Mantendo colunas quase que diárias, a maioria deles possuía, pelo menos, um crítico especializado responsável por estas colunas. o Jornal do Brasil, por exemplo, tinha Harri Laus; o Globo, Vera Pacheco Jordão; a Folha de S. Paulo tinha José Geraldo Vieira e Ivo Zanini. Encontravam- se, também, em todos os jornais, artigos de especialistas como Mario Pedrosa, Aracy Amaral, Geraldo Ferraz, Clarival Valadares. o Estado de S. Paulo não contava com colunista fixo, mas apresentava regularmente artigos assinados por críticos como Aracy Amaral e Geraldo Ferraz. Nas colunas de arte dos jornais eram divulgadas as mostras e, principalmente, as Bienais e os salões. Como havia críticos especializados escrevendo, além de informar sobre os eventos de destaque, essas colunas atuavam, também, na formação do público. A criação de revistas de arte destinadas a um público mais amplo foi, também, resultante dos processos modernizantes por que passava a sociedade brasileira. Publicações específicas de artes e, mais ainda, preponderantemente ou totalmente dedicadas às artes visuais foram uma inovação introduzida nesse período. Elas fizeram parte, de forma bastante intensa, das modernizações que ocorriam no sistema da arte. Foi editada, nesse momento (1966), a primeira revista voltada totalmente às artes visuais: GAM Galeria de Arte Moderna. Publicada no Rio de Janeiro, ela apresentava uma</p><p>Maria Amélia Bulhões 29 coletânea de artigos de alto nível, de especialistas, assinados pelos intelectuais mais destacados do setor, abordando temas variados, em linguagem erudita e referenciando informações que exigiam do leitor certa bagagem cultural. A revista não tinha muitas ilustrações, mas era bastante elaborada em termos de diagramação, deixando transparecer a ideia da arte como uma atividade dinâmica e moderna, e da própria revista como um empreendimento qualificado no setor. No ano seguinte (1967), foi lançada, em São Paulo, a revista Mirante das Artes, dirigida por Pietro Maria Bardi. Ela ilustra outra orientação do sistema da arte, naquele momento, a articulação de diversas instituições. Pietro Maria Bardi era diretor do Museu de Arte de São Paulo, dono da Galeria Mirante das Artes e também diretor da revista de mesmo nome. Embora esta não fosse uma revista só de artes visuais, apresentando matérias sobre fotografia, design, moda e arquitetura em pé de igualdade com a arte moderna e acadêmica, era, dominantemente, dedicada a este segmento. Dentre as diversas instituições que constituem o corpo modernizante do sistema da arte, muitas foram criadas nas décadas de 1950 e 1960, ou, pelo menos, nestas duas décadas consolidaram seu espaço e seu papel dentro dele. o Museu de Arte Brasileira da FAAP foi inaugurado em 1961, o MAC/USP foi criado em 1963, o MAM do Rio de Janeiro inaugurou seu bloco de exposição em 1967. Foram elas as responsáveis pela difusão e a legitimação das novas tendências, articulando-se entre si, o que era necessário para fortalecer suas atuações inovadoras. Estreitas ligações e, algumas vezes, concorrência entre si caracterizaram o desempenho dessas instituições. o Estado foi determinante nesta modernização, uma vez que muitas instituições, apesar de serem aparentemente privadas (sociedades civis sem fins lucrativos), contavam com verbas públicas para o seu funcionamento. Esta foi uma das formas como o mecenato estatal das artes visuais permaneceu, embora</p><p>30 As novas regras do jogo: o sistema da arte no Brasil de forma encoberta. o gerenciamento particular, inclusive muitas vezes conduzido com mão de ferro por alguns indivíduos, como, por exemplo, Ciccilo Matarazzo na Bienal de São Paulo, Assis Chateaubriand no MASP e Terezinha Muniz Sodré no MAM/RJ, se realizava sobre verbas públicas, que eram injetadas pelo Estado para a construção e a manutenção dos prédios, a formação de acervos e a realização de eventos. Das instituições criadas e fortalecidas nesse período, somente o MAC/USP é realmente estatal, pertencendo ao governo do Estado de São Paulo, mais especificamente à Universidade de São Paulo. Esta relação íntima do Estado com as artes visuais fica bem evidente na presença permanente de autoridades públicas, tais como presidentes, em inaugurações de exposições, salões ou bienais. Jânio Quadros, governador de São Paulo, foi figura constante de mostras artísticas, assim como outros governadores, ministros etc. A inauguração da Bienal Internacional de São Paulo contou sempre com a presença do presidente da República e outras importantes autoridades. Se, por um lado, essas presenças podem evidenciar a importância e o destaque desses eventos dentro do panorama cultural, por outro, o Estado legitima sua posição supraclassista de defensor da cultura e da civilização em seus mais destacados valores. A partir do golpe de 1964, que levou os militares ao poder, uma nova dinâmica se estabeleceu dentro da sociedade brasileira: o modelo político e econômico implantado após o golpe gerou resistência dos setores sociais discordantes e disputas entre os diferentes segmentos sociais. Grupos insatisfeitos com o governo que se estava implementando, principalmente por seu caráter autoritário, tentavam reagir de diversas maneiras. Eclodiram estratégias de subversão, empreendidas contra o governo da ditadura militar. Nesse momento, a mobilização envolveu o meio</p><p>Maria Amélia Bulhões 31 artístico cultural, que estava diretamente influenciado por setores de classe média urbana e mesmo por setores da classe dominante descontentes. Havia uma perspectiva de possível mudança, e o objetivo básico de mobilização da sociedade civil era a tentativa de questionar e mesmo frear os avanços do autoritarismo. A fermentação que se pode observar de 1964 a 1969, dentro da cultura brasileira, introduziu algumas disputas também no sistema da arte, em que ocorreu uma série de manifestações de subversão que visavam ativar mobilizações sociais, favorecendo a maior participação do público nos processos de produção, circulação e consumo de arte. Essa orientação desestabilizou a tradicional função de distinção social, seguindo um padrão generalizado na cultura brasileira nesse momento. Preocupados em encontrar vias para sua insatisfação, alguns segmentos do sistema da arte questionavam o elitismo, usando como referencial as vanguardas internacionais mais críticas, como o Pop e a Nova Figuração. Alguns espaços mais institucionais se abriram a esta vanguarda, como, por exemplo, alguns salões que puderam romper com os padrões mais tradicionais. Surgiram, nesse momento, alguns salões financiados com verbas públicas ou privadas, cujo traço comum foi o caráter mais aberto e democrático, que oportunizou a alguns artistas usarem esses espaços para difundir ideias de participação e questionamento. Salões como o Salão da Bússola, o Salão da Bahia, e outros, foram espaços de exposição do que de mais novo e ousado se pensava e executava em artes visuais, em uma nova dinâmica, atraindo um público maior e mais diversificado. Com estruturas mais flexíveis, neles puderam vir à tona uma produção mais ousada, abrindo-se possibilidades de apresentação de obras que, por suas características de execução, não teriam possibilidades de serem exibidas em museus ou galerias mais tradicionais. Mesmo sendo obrigatório o uso de terno nas vernissages dos museus, alguns</p><p>32 As novas regras do o sistema da arte no Brasil deles sediaram eventos das vanguardas como, por exemplo, quando Hélio Oiticica, em 1965, apresentou seus Parangolés, vestidos por passistas da Escola de Samba Mangueira, ou Frederico Moraes, que organizou os Domingos de Criação, ambos na área externa do MAM, no Rio de Janeiro. o mercado se articulou a essas inovações, e Jean Boghici, responsável pela Galeria Relevo, foi de grande destaque, principalmente por seu apoio aos jovens da "vanguarda carioca", considerada um marco nas artes visuais desse período. Com uma produção bastante politizada, por exemplo, atuou o grupo Nova Objetividade, que incluía artistas iniciantes, como Antônio Dias, Rubens Guerschmam, Pedro Escosteguy e outros, já consagrados, como Hélio Oiticica e mesmo críticos de renome como Mário Pedrosa. Essas e muitas outras estratégias de subversão internas ao sistema, naquele momento, responderam às demandas da sociedade, sendo também ações políticas. A segunda metade da década de 1960 foi, portando, um momento fértil, em termos de mudanças, pois nele se implementaram experiências formais e práticas de ação que serão retomadas posteriormente A vanguarda representava o novo que emergia, disputando espaços e buscando outros públicos. Seu alcance, naquele momento, entretanto, ficava limitado às disputas de poder dentro do sistema da arte, que permanecia realizando exposição de abstracionistas, primitivos e modernistas. As mesmas instituições que, ocasionalmente, abriam espaço para as vanguardas, sediavam, preponderantemente, exposições mais tradicionais. Essa nova produção incorporava fatores de legitimação que vinham de correntes estabelecidas fora do País, sendo, em alguns casos, contraditórias em relação às questões locais mais específicas. Mesmo sendo questionadoras, e politicamente comprometidas, elas se encontravam dentro dos limites do sistema em um circuito</p><p>Maria Amélia Bulhões 33 restrito de circulação, ficando, em geral, secundárias na divulgação de arte nos meios de comunicação destinados ao grande público. Assim, pode-se dizer que a década de 1960 foi bastante complexa e contraditória. Caracterizada, por um lado, pela emergência de um mercado moderno de arte e pela manutenção de grande parte do sistema da arte à margem das disputas sociais e políticas que fervilhavam no País. Por outro, pela ação de segmentos de vanguarda que estabeleciam disputas dentro do sistema pautando práticas mais participativas e politizadas, com preocupação temática engajada e voltada à ampliação do acesso às obras a camadas mais amplas da população. Anos 1970: atuação repressora do Estado e o fortalecimento do mercado empresarial Os anos 1970 apresentam, como tendência geral, o aumento do volume e da dimensão empresarial do mercado de arte, afastado de preocupações democratizantes mais amplas e fortalecendo o elitismo desse tipo de produção. processo de emergência de um mercado moderno de arte no País, no entanto, se desencadeara um pouco antes, como já foi visto. Em consequência dessa dinamização da comercialização que se processava, a compra de obras de arte começou a ser olhada fundamentalmente como um investimento. Nesse clima de especulação, a aquisição de um quadro a óleo de Portinari era feita com o mesmo raciocínio despendido nas aplicações imobiliárias. Os valores da arte passaram a ser determinados pelo mercado por meio das emergentes e organizadas galerias, especializadas em exposições e leilões responsáveis por vendas em grande escala. Grupos financeiros estiveram ligados aos leilões, destacando-se o Banco Real e o Banco Nacional. valor da obra não era estabelecido pela concorrência de mercado e aceitação</p><p>34 As novas regras do jogo: o sistema da arte no Brasil do público, mas pela sua inserção no circuito de difusão que o legitimava. Consolida-se uma condição do consumo das artes visuais que sujeita o comprador e o artista às ingerências dos difusores (marchands, críticos, diretores de instituições). Diferentemente do que acontece, por exemplo, na literatura e no cinema, onde é a aceitação do público que define o sucesso de determinada obra ou artista. Durand (1989), apresenta dados que evidenciam a absorção da maioria das obras dos artistas modernistas pelo mercado local, a partir do final dos anos 1960. A produção brasileira do período modernista ficou praticamente concentrada no País, diferentemente da mexicana ou da colombiana, que foram absorvidas, em grande parte, pelo mercado norte-americano. Vale lembrar que a maioria dos trabalhos originários da América Latina, presentes nos grandes leilões da Sotheby's e Christie's, eram de artistas No Brasil, os altos valores obtidos no mercado interno podem ser considerados como um dos fatores que desestimulou sua comercialização internacional. A rentabilidade do mercado local conduziu os marchands a se voltarem predominantemente para esse público, desinteressando-se de buscar espaços no âmbito internacional. Ainda que a produção artística nacional esteja alinhada em termos estéticos e conceituais aos movimentos internacionais, a dinâmica do mercado de arte dirigiu-se basicamente para a formação dos consumidores nacionais, sem grande interesse pelas produções externas, que demandavam outro tipo de estratégias para sua inserção no meio local. Além disso, a legislação tarifária brasileira, classificando as obras de arte como produtos de luxo, taxava-as com altos impostos de importação, dificultando bastante a entrada de obras estrangeiras no País. Ao estabelecer uma legislação restritiva 5 Essa situação vai se alterar futuramente, a partir dos anos 2000, como, por exemplo, a venda do acervo de Adolpho Leirner para o Museum of Fine Arts of Houston por 15 milhões de dólares, e as obras dos Oiticica para a Tate Galery.</p><p>Maria Amélia Bulhões 35 ao ingresso de obras estrangeiras, o Brasil fechou-se para o mercado internacional. Em conjunto, essas condições desestimularam a abertura do mercado brasileiro aos artistas internacionais mais importantes. No desenvolvimento do mercado empresarial de arte na década de 1970, a Galeria Collectio merece destaque. Em sua breve trajetória (1969-73), além de destacar-se com seus leilões, teve uma das mais dinâmicas atuações na área das artes visuais, inaugurando uma forma de tratar a obra semelhante à que estava se desenvolvendo nos grandes mercados internacionais. Ela deu início a uma linha de catálogos ilustrados, luxuosos e centrados na visualização de obras, além de realizar uma de suas promoções mais importantes: a mostra, acompanhada da publicação do livro Arte Brasil Hoje - 50 Anos depois, sob a coordenação do crítico Roberto Pontual. Para o evento foi selecionado um rico acervo da arte brasileira, em grande parte adquirido pela galeria, destacando artistas e obras desde a Semana de 1922. o livro é, ainda hoje, uma importante referência para a análise da produção artística no País. A Collectio soube aproveitar o momento propício da economia nacional para envolver os capitais disponíveis em transações de obras artísticas, unindo, assim, o sistema da arte ao sistema bancário e ao mundo dos negócios. Por sua intervenção, foram abertas linhas de financiamento para aquisição de obras de arte e foi deslocada para esse mercado boa parte do capital de investidores. A derrocada da galeria esteve mais afeta aos métodos especulativos de seu proprietário, longe de expressar a recessão do mercado de arte, que, como pode observar-se, estava em crescente avanço ao longo daquela década e das seguintes. Setores do empresariado, enriquecidos no processo de modernização econômica do País, constituíam uma importante fatia do mercado de arte que se desenvolvia rapidamente. Entretanto,</p><p>36 As novas regras do jogo: sistema da arte no Brasil segmentos médios profissionalmente bem colocados (executivos, técnicos especializados e profissionais liberais) também fizeram parte do público consumidor em expansão. Para esses segmentos sociais, de poder aquisitivo mais restrito, foi oferecida uma proposta específica: a obra múltipla. Gravuras assinadas e numeradas e pequenas esculturas de bronze, terracota ou resina fizeram parte dos muitos objetos de arte oferecidos por aquele mercado a partir da segunda metade da década de 1970. Testemunhou o crescimento desse segmento a criação, em São Paulo, de inúmeras galerias, entre as quais se destacam as galerias Múltipla (1973) e Arte Aplicada (1971), voltadas basicamente para a comercialização de objetos de pequeno porte, reproduzidos em escala reduzida e com preços mais sedutores do que as obras únicas. Com orientação semelhante, mas atuando em campos mais específicos, estiveram as galerias Skultura (1975) e o Gabinete de Artes Gráficas (1974). Na dinâmica desse mercado em que a divulgação detinha um papel decisivo, a Galeria Global, criada em 1974, teve uma importante atuação. Fez parte de sua estratégia a apresentação intercalada de artistas consagrados com novos nomes por ela lançados. A galeria trabalhava de forma profissional, responsabilizando-se pelo convite-catálogo, pelo coquetel e pela divulgação, notadamente com a Rede Globo de Telecomunicações a sua disposição. Atuaram nessa galeria Franco Terranova e Raquel Babenco (que já estivera na Collectio), cujas largas experiências imprimiram ao empreendimento um perfil coerente com os novos tempos da mídia televisiva. Uma sistemática da atuação que surgiu naquele período foram os contratos de exclusividade que algumas galerias estabeleceram com determinados artistas. Inaugurada em 1974, a Galeria São Paulo foi um espaço que trabalhou nesse regime. Regina Boni apareceu pessoalmente em um anúncio publicitário,</p><p>Maria Amélia Bulhões 37 fazendo a seguinte afirmação: "Eu represento os artistas Alan Shield, Babinsky, Edo Rocha, Fajardo, Hamaguchi, José Resende, Nelson Leirner, Waltercio Caldas e Wesley Duke Lee". Esse tipo de relação direta e exclusiva entre marchand e artista expressava a importância que a comercialização passara a ter no processo de legitimação da produção artística. No que se refere às vanguardas, essa tendência foi ainda mais acentuada, devido à permanente atualização de informações necessárias à sua fruição e avaliação. Nesse caso, a orientação de um especialista era exigida e solicitada, e a identificação de determinado marchand com um artista ou grupo de artistas definia um perfil específico de recomendação. fortalecimento das instâncias de difusão que caracterizaram o período, em consonância com o panorama geral do consumo de bens evidenciou-se na criação de grande número de galerias. Entretanto, mesmo ampliando-se numericamente e se diversificando, o mercado de arte manteve-se restrito em comparação com o crescimento geral do consumo que ocorria no País naquele momento. As reproduções eram sempre em edições restritas, numeradas e assinadas, para garantir a permanência da aura de distinção, imprescindível à manutenção do sistema. o mercado se ampliava e se especializava abrangendo diferentes produções destinadas a diversos tipos de público, capazes de se tornarem consumidores. Um levantamento dos nomes citados nas muitas edições do Anuário das permite constatar essa tendência à ampliação e à diversificação da produção. Em um levantamento das galerias de arte de São Paulo, feito em 1977, constatou-se que, num total de 46 estabelecimentos, dois haviam sido fundados nos 6 A consolidação do mercado de bens culturais na década de 1970 foi pesquisada e apresentada por Renato Ortiz em seu livro A moderna tradição brasileira, São Paulo, Brasiliense, 1989. 7 Publicação que anualmente apresentava artistas que se destacavam, selecionados pelos críticos mais influentes.</p><p>38 As novas regras do jogo: o sistema da arte no Brasil anos 1950, dez nos anos 1960 e os demais nos anos 1970. No registro de comércio de São Paulo, os leilões de arte passam de três, em 1967, a 80, em 1979. valor negociado aumenta de Cr$ 1 milhão para Cr$ 40 milhões, sendo 1973 o ano mais próspero nesse período, quando o valor negociado aproximou-se de Cr$ 70 milhões (DURAND, 1990).8 Nos momentos mais fechados do autoritarismo, o sistema da arte se viu fortalecido, com forte apoio estatal, por meio da criação de salões, como os dos Transportes e o da Eletrobras, e pela concentração de renda, que abriu novas possibilidades de consumo de bens de luxo. Investir em artes plásticas como fonte de legitimação e status econômico se tornou um padrão das novas elites. No modelo econômico monopolista internacionalizante, sob a pressão de rígida censura, o mercado de artes visuais pôde alcançar um desenvolvimento significativo. Assim, à ampliação de público proposta nos anos 1960 sucedeu um mercado consumidor mais forte, embora restrito e elitizado. Na primeira metade da década de 1970, o sistema da arte retomou seu fechamento, com o apoio seguro e permanente do Estado, servindo ao mesmo tempo à consolidação da hegemonia dos segmentos de classe dominante que assumiram o poder por meio do Estado autoritário. processo de difusão tornou-se mais importante dentro do sistema da arte, fugindo praticamente das mãos do artista. As instâncias de circulação passaram a ter crescente importância. Por instâncias de circulação, entende-se o conjunto de meios de comunicação e das instituições que promovem circunstâncias capazes de fazer chegar ao consumidor os objetos e eventos 8 DURAND, José Carlos. Mercado de Arte e Campo Artístico em São Paulo (1947- 1980). Disponível em: rbcs13_06.htm. Acesso em: 6 de fevereiro de 2007. Bulhões apresenta na sua tese uma lista com nomes de galerias e o ano de seu surgimento entre as décadas de 1960 e 1970. Pode ser encontrado o número de dezessete exposições de arte em galerias e quatro em museus, que constavam na Folha de São Paulo, no ano de 1975.</p><p>Maria Amélia Bulhões 39 artísticos. o fortalecimento das instâncias de circulação pressupõe o aumento do número destas e a sua diversificação, mas se caracterizou principalmente pela importância que elas adquiriram dentro do sistema ao longo dos anos 1970. Em termos gerais, as publicações tinham uma estrutura bem mais complexa e profissional do que as da década de 1960. Utilizavam meios mais sofisticados (papel de melhor qualidade, ilustrações a cores etc.) e apresentavam mais anúncios publicitários e artigos de divulgação. Com exceção de Malasartes, pode-se dizer que se destinavam mais a formação e informação do público consumidor do que aos profissionais da área. No entanto, as revistas da década de 1970, semelhantemente às da década anterior, tiveram vidas breves: Malasartes com os três números, Vida das Artes de 1975 a 1976, Arts Hoje de 1977 a 1979 e Vogue Arte de 1977 a 1979. Apesar de terem uma apresentação bem mais luxuosa que as dos anos 1960, não conseguiram permanecer por longo tempo. Isso evidencia, por um lado, o desinteresse cultural desse público e seu restrito número, incapaz de manter essas publicações, e, por outro, o fato de que a circulação passava por diversos meios, não sendo as revistas o mais significativo. o museu e a galeria faziam a difusão de maneira mais direta, face a face. Os compradores procuravam mais o apoio direto de marchands e outros especialistas na orientação de suas aquisições do que uma formação pessoal por meio da leitura de publicações especializadas. o consumo artístico se caracteriza, assim, mais como status social do que como capital cultural. Essas publicações, por seu turno, fazem parte da dinâmica de fortalecimento das instâncias de difusão que também caracterizou este período. grande número delas e a qualidade do material utilizado (fotos coloridas, papel brilhoso e luxuosas encadernações) contrastam com o que se pode encontrar na década anterior.</p><p>40 As novas regras do jogo: sistema da arte no Brasil No período entre 1969 e 1973, mais especificamente, o Estado deteve o controle do que podia ser dito ou feito em termos gerais na sociedade brasileira, e, assim também, nas artes visuais. Foi, portanto, nesse período, com o apoio do Estado autoritário, que o sistema da arte, no Brasil, consolidou a forma elitista e aparentemente despolitizada que seguiu posteriormente. Censura e financiamento foram as estratégias utilizadas, de forma bastante encoberta, uma vez que o sistema procurou passar uma imagem, irreal naquele momento, de descompromisso e autonomia. Na medida em que o Estado autoritário se fortaleceu, através do Ato Institucional n° 5, sustou-se o processo mobilizador de resistência que se desenvolvera dentro do panorama artístico. Algumas obras foram objeto de censura, como o trabalho de Gilberto Salvador premiado no Salão de Campinas (1968), uma boca gigantesca com bandeira norte-americana que foi destruída pelos órgãos de segurança. Ou os desenhos de Farnese de Andrade, enviados para a Bienal Nacional da Bahia (1963), apreendidos por serem considerados eróticos. o mesmo também ocorreu com trabalhos da série Ligas de Wesley Duke Lee. Em 1970, a instalação realizada por Olney Kruse, no Paço das Artes em São Paulo, foi destruída por ser considerada subversiva. Obras enviadas por Pedro Escosteguy para a Bienal da Bahia voltaram todas destruídas, com sinais de machado. As vanguardas nas artes visuais, perseguindo a temática participante, que se originara no momento democratizante e politizado da realidade nacional, expunha uma liberdade criativa levada aos seus limites, que contradizia as restrições impostas pelo regime político naquele momento. Essa arte, proposta então como contracultura, experimentava intervenções as mais diversas por parte dos censores. Elas, no entanto, propunham interferências e modificações na própria obra, suas propostas de</p><p>Maria Amélia Bulhões 41 transformações simbólicas se limitavam ao espaço mantido pelas artes visuais. Enquanto a censura atuava severamente em diversos setores da sociedade, curiosamente, as vanguardas das artes visuais apresentavam uma dinâmica atuação, de certa forma confirmando a afirmação inicial sobre o elitismo do sistema da arte e seu compromisso com a legitimação da superioridade das elites. Essa vanguarda atuava, portanto, no sentido de dinamizar o meio artístico, preenchendo o vazio cultural criado pelo Estado autoritário. A vanguarda, com uma linguagem hermética, para cuja apropriação se exigia uma série de informações e uma formação que não estava ao alcance da maioria da população, foi um espaço de liberdade para setores descontentes dentro dos limites impostos pelo Estado de exceção. Retornava, assim, nos anos 1970, o elitismo do sistema da arte, questionado pelos projetos democratizantes da década de 1960. Projetos estes que envolveram tentativas de democratização, por meio da ampliação da participação do público nos processos criativos. A partir de 1975, quando os setores empresariais responsáveis pela comercialização obtiveram uma estabilidade de mercado e tenderam a assumir o controle da comercialização e legitimação, retirando das mãos do Estado um maior compromisso com a manutenção dessas práticas artísticas, ele ainda permaneceu como um grande cliente e financiador dessa produção. Seu controle em relação aos limites das ações políticas que as práticas artísticas podiam desempenhar ofereceu ao sistema um reforço externo de repressão e censura. sistema da arte, por seu turno, reforçou a separação entre "arte" e "não arte", utilizando estratégias de conservação que foram desde a desarticulação de iniciativas democratizantes como mostras em locais mais populares e outras propostas do mesmo gênero, até a implementação e o favorecimento de processos de experimentação intelectualizados e herméticos de</p><p>42 As novas regras do jogo: o sistema da arte no Brasil difícil apropriação pelo público. o sistema, assim, não aparecia como repressor ou limitador, mas antes como um espaço de liberdade. o espaço de despolitização se fez, então, não mais por uma censura direta, mas pela própria ideologia de uma arte pura e autônoma, pairando acima das condições de produção. No Brasil, nesse período, o Estado ampliou progressivamente sua ação junto ao sistema da arte, cumprindo três tarefas básicas: estancar as propostas democratizantes e participativas que se formularam na segunda metade dos anos 1960; de forma indireta, por meio do processo de concentração de renda, favorecer o fortalecimento do mercado das artes; instaurar, por meio de várias formas de apoio, o laboratório experimental de uma arte formalista e conceitual que esse mercado absorveu. Observa-se, assim, que o Estado interferiu decisivamente, de forma direta ou indireta, na adequação do sistema da arte à lógica de mercado, garantindo, dessa maneira, a manutenção do elitismo que, por sua vez, era útil à legitimação de um regime político autoritário, portanto também elitista. Na etapa seguinte, o sistema da arte evidenciava já uma estrutura compatível com o avanço das relações capitalistas monopolistas dominantes no País. Empresas privadas, por meio de seus segmentos especializados, assumiam o comando, estimulando a progressiva setorização da produção e comercialização. Galerias se especializaram em gravuras, outras em objetos ou arte conceitual e, outras, ainda, em uma produção mais acadêmica e conservadora. o setor comercial, consolidado a partir da segunda metade da década de 1970, tendeu a absorver e controlar a difusão e a produção, favorecendo a troca entre os capitais cultural, econômico e social. Nessas trocas, as galerias participavam, também, na constituição do valor simbólico das obras, estabelecendo a legitimidade dos produtos e processos artísticos por meio de suas relações com as</p><p>Maria Amélia Bulhões 43 demais instituições e atores. prestígio que determinadas galerias e marchands obtiveram com sua atuação tornava-as credenciadas como rotuladoras. Expor um artista, com a apresentação de um crítico (muitas vezes por ela contratado), divulgar o evento nos meios de comunicação e referendá-lo com sua tradição acrescentavam à obra um valor artístico que se constituía também em valor de mercado. Finalmente, cabe apontar uma consideração geral fundamental para a compreensão da arte nesse período: apesar das tentativas das modificações democratizantes em determinado momento, o sistema manteve sempre um papel elitista no conjunto das práticas artísticas no País, servindo à distinção daqueles grupos restritos que a ele podiam ter acesso. Como afirma Bourdieu (1983, p. 172), "O círculo se fechou, e nós ficamos presos dentro dele". A década de 1970 se encerra, por um lado, com a consolidação do poder das instâncias de difusão, com a separação entre o artista e o público, assim como pelo reforço do seu elitismo pelo mercado. Por outro lado, com a consciência dessa situação por parte de alguns participantes e de tentativas para a sua superação, por meio de disputas que se estabelecem dentro do sistema e nas tentativas de mudança que se sucederão. sistema da arte, mesmo mantendo sua especificidade, está relacionado com o meio social em que se encontra inserido, dele recebendo, como se viu, influências fundamentais. A manutenção do seu elitismo ou a sua maior democratização dependem, em grande parte, do próprio curso seguido pela história brasileira.</p><p>Estado e o empresariamento do sistema da Nei Vargas da Rosa As últimas décadas assistiram a uma significativa alteração no panorama institucional dos bens simbólicos no Brasil, podendo ser facilmente identificada pelo aumento de museus, centros e espaços culturais, bem como um elenco de editais para programas e projetos. o fenômeno espelha um movimento cuja origem não está centrada apenas na vontade de contribuir com o impulso intelectual e o desenvolvimento humano das comunidades em que atuam as novas instituições. Ele revela também o resultado das políticas públicas para o setor e a maneira pela qual o sistema econômico vigente assume o modus operandi da produção artística. o surgimento das leis de incentivo gerou condicionamentos que se confundem com políticas públicas originárias da postura dos últimos governos. Em síntese, pode-se dizer que a cultura como assunto de Estado passa diretamente às mãos das "empresas que definem seu apoio em função de seus interesses empresariais de comunicação e não em função da produção artística" (OLIVIERI, 2004, p. 149). É com base nessa lógica que os anos 1990 podem ser referenciados como marco histórico no crescimento da indústria cultural no País, resultado da consolidação da estrutura burocrática 1 Este texto é uma síntese de dois capítulos da dissertação Estruturas Emergentes do Sistema da Arte: instituições culturais bancárias, produtores e curadores, apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Artes Visuais, ênfase em História, Teoria e Crítica da Arte, pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais do Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em maio de 2008. Para ter acesso ao texto na íntegra, ver http://www.lume.ufrgs.br/ handle/10183/14945.</p><p>46 As novas regras do jogo: o sistema da arte no Brasil de fomento oferecida pelo aparelho estatal a que a segunda metade dessa década assistiu. As obrigações do Estado têm na Lei Federal de Incentivo à Cultura, mais conhecida como Lei Rouanet, seu principal instrumento legal, sustentado conceitual e financeiramente pelo modelo de capitalismo vigente. Desde então, tem sido importante recurso que mobiliza o empresariado a investir na área, mas em contrapartida toma para si o poder decisório, redefinindo circulação, legitimação e, por que não dizer, a valoração da produção artística e intelectual. Outra questão relevante gerada pelo novo instrumento é a forma condicionada do empresariado em investir somente mediante isenção fiscal, ou seja, projeto sem lei é projeto sem patrocínio. Além do atrelamento ao dispositivo legal, as empresas se beneficiam com as estratégias de publicidade e marketing, que divulgam os eventos a partir de discursos de democratização e acesso a bens simbólicos, conferindo distinção social ao setor empresarial. Na lógica do mercado na era neoliberal, o financiamento dos bancos públicos e privados em preservação, produção e disseminação de bens simbólicos extrapola os limites do tradicional patrocínio. Há um vertiginoso crescimento de plataformas institucionais mantidas por importantes corporações bancárias, tendência que se apresenta na passagem dos anos 1970 aos 1980, especialmente na América Latina,2 no contexto do Patrimônio Cultural. Nesse contexto, solidificam-se componentes no sistema da arte que passam a obter grande destaque ao ocupar instâncias endossadas, também, pelo instrumento público. Os produtores culturais e as instituições culturais são analisados ao 2 No texto da dissertação é apresentado um panorama de instituições culturais bancárias na América Latina, em geral vinculadas aos Bancos Centrais, que começam a surgir nesse período. 3 Os órgãos culturais articulados ao setor financeiro são denominados no texto como instituições culturais bancárias.</p><p>Nei Vargas da Rosa 47 longo do texto, assim como questões relativas às artes visuais na Lei Rouanet. Dentro do panorama institucional, o Itaú Cultural (IC),4 em São Paulo, e o Centro Cultural do Banco do Brasil, do Rio de Janeiro (CCBB-RJ), apresentam modelos que colocam o País numa situação singular no fomento da circulação artística. Essas instituições pregam a democratização do acesso aos bens culturais e potencializam a circulação de atores, novos e consagrados, no sistema da arte estruturadas em discursos e práticas que se aliam à posição defendida pelo Estado. Antes de dar continuidade, é importante frisar que o conceito de sistema da arte, já desenvolvido por Maria Amelia Bulhões no capítulo anterior, serve de pavimento ao texto. Seu caráter abrangente possibilita analisar de forma articulada os acontecimentos que concorreram para o rearranjo do sistema no País. Produtores culturais: os managers do momento A política cultural brasileira é muito recente. Começa a se consolidar efetivamente dentro de um gerenciamento burocrático há menos de duas Além disso, foram quinze ministros que passaram pelo Ministério da Cultura (MinC) até o momento, dado que pode contribuir para dificultar a consolidação de um pensamento político acerca da cultura. No contexto específico do sistema da arte, um novo ator, o produtor cultural, se instala na década de 1990 e logo passa rapidamente a ocupar relevante papel nas esferas de poder. Levantar alguns pressupostos acerca dessa constituição implica voltar aos anos 1970 e verificar o complexo processo de transformações do 4 Para melhor fluidez do texto, a partir de agora o Itaú Cultural será mencionado como IC e o Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro como CCBB-RJ. 5 Devem ser descontados dos 29 anos do MinC, completados em 2014, os dois da sua extinção no governo Collor de abril de 1990 a novembro de 1992.</p><p>48 As novas regras do jogo: o sistema da arte no Brasil período. É necessário ultrapassar as fronteiras das artes visuais e incluir, no debate, as políticas públicas para o conjunto de bens simbólicos, sejam elas respostas às demandas do setor ou resultados das influências da política econômica. Devem ser somadas, ainda, as mudanças na difusão e na legitimação da produção artística, elegendo como parâmetros de análise o comportamento do mercado de arte brasileiro, a repercussão das decisões governamentais para as artes visuais e a expansão das plataformas de visibilidade dos bens simbólicos. Acredita-se que esses fatores, articulados entre si, podem contribuir para revelar como os produtores culturais surgem e constroem suas carreiras no campo da arte. Sabe-se que seu surgimento está diretamente vinculado ao processo natural do desenvolvimento artístico, mas não é equivocado atribuir também sua origem às necessidades da própria sociedade de consumo. Ela eleva a mercadoria a imperativo categórico que rege as dinâmicas que orientam as relações sociais. Em A sociedade do espetáculo, obra emblemática de Guy Debord, ao refletir sobre o cenário de espetacularização da vida no final dos anos 1960, propõe uma teoria sobre o valor da mercadoria na sociedade de consumo. No mundo da mercadoria, a industrialização automatiza o trabalho para aumentar a produção e diminui a participação do trabalhador na escala social. Para resolver tal contradição e manter o trabalho como mercadoria e instância de sua criação, novos empregos devem ser criados. o setor de serviços responde pela distribuição e a promoção das mercadorias, que em última instância são geradas pela "própria artificialidade das necessidades relacionadas a tais mercadorias" (DEBORD, 1997, p. 32). Já Anne Cauquelin aponta que "em toda sociedade de consumo, o número de intermediários aumenta e é acompanhado da formação de um círculo de profissionais, verdadeiros managers"</p><p>Nei Vargas da Rosa 49 (CAUQUELIN, 2005, p. 55). Ao buscar nessas reflexões possibilidades de relacioná-las com o contexto da realidade brasileira, é possível encontrar a constituição oficial de um segmento de profissionais ligados à produção no emergente segmento cultural. Eles são responsáveis pela articulação da produção artística - os managers das atividades culturais dos quais alguns, no contexto atual, convertem a criação artística em mercadoria de entretenimento nos novos espaços orientados pela lógica do mercado. É integrando o setor de serviços que o profissional de produção cultural vai emergir nos anos 1970, período em que é também inserido na estrutura do sistema trabalhista em face de reivindicações de uma parte da categoria envolvida com a área. Seu enquadramento ocorre via Decreto-Lei n° 82.385, de 5 de outubro de 1978, que veio para regulamentar a Lei n° 6.533, de 24 de maio do mesmo ano, assinada pelo então presidente Ernesto Geisel, e que dispõe sobre as atribuições do Técnico em Espetáculos de Diversões. No art. 2° é considerado: Técnico em Espetáculos de Diversões, o profissional que, mesmo em caráter auxiliar, participa, individualmente ou em grupo, de atividade profissional ligada diretamente a elaboração, registro, apresentação ou conservação de programas, espetáculos e produções. Tal documento é citado por ser um instrumento legal publicado pelo Estado no sentido de regulamentar a atuação do profissional de produção. Por outro lado, é de extremo valor na reflexão por ser a origem do produtor cultural atuante na área dos espetáculos e dos eventos, na qual as exposições de arte contemporânea vão se inscrever gradativamente. Período de uma nova realidade econômica, os anos 1970 oferecem condições que impulsionam a produção artística e fazem do Decreto citado um dos sintomas da nova perspectiva para onde se</p><p>50 As novas regras do jogo: o sistema da arte no Brasil direcionará o mercado cultural brasileiro nas décadas seguintes. A partir desse momento, cada vez mais as diferentes formas da criação artística recebem visibilidade em dispositivos de ampla abrangência e circulação, como os eventos culturais de grande porte, que passam a ser rotineiros na atualidade. E o produtor cultural é uma das peças- chave na redefinição do estatuto dos bens simbólicos, cujo caráter de espetacularização vai ser logo incorporado às manifestações das artes visuais, tal como pode ser visto em megaeventos que ocupam as agendas de diferentes espaços culturais. Em relação especificamente à arte contemporânea, o produtor cultural está implicado com a valoração do objeto artístico mais como produto de evento do que de venda em ambientes comerciais, assunto debatido com mais profundidade por Bruna Fetter no último capítulo. No entanto, para entender como se dá o empresariamento das artes visuais - tal qual decorre com outras práticas artísticas e como atua o produtor enquanto agenciador de eventos, é necessário destacar a evolução do mercado de arte e sua inserção no campo de produção cultural. Possíveis campos de formação do produtor cultural Um importante estudo do desenvolvimento do sistema de arte como parte do processo de crescimento da indústria cultural no Brasil nos anos 1970 e 1980 pode ser encontrado na tese de Maria Amelia Bulhões. Sobre as questões relativas ao contexto profissional da época, vale mencionar o que a pesquisadora aponta: Ocorreu assim a profissionalização do que Howard Becker denomina "pessoal de apoio", estruturando-se as cadeias de atividades que caracterizam as ações artísticas de consumo. Em termos de música e teatro, por exemplo, aparecem empresas de produção de espetáculos, estruturadas de maneira a fazer destas artes atividades lucrativas. Todo um sistema de editoração passa a coordenar setor da literatura,</p><p>Nei Vargas da Rosa 51 definindo os rumos da produção. Todas estas empresas, estruturadas nos mais modernos métodos administrativos, criam novas condições de difusão das artes, caracterizadas pelos estreitos laços com os meios de comunicação de massas (BULHÕES, 1990, p. 88). No entanto, a mesma tensão que produziu resultados políticos parece não ter encontrado eco junto aos profissionais que trabalhavam com a produção plástica. o teor do Decreto6 fica circunscrito ao universo dos espetáculos cênicos e musicais, nada tendo a contribuir com as especificidades que condicionam a circulação das artes visuais, pontuado de antemão na própria nomenclatura da profissão no documento. Dentre alguns fatores que podem explicar uma possível falta de mobilização dos envolvidos com as artes visuais no processo de conquistas políticas, em tal medida como ocorreu em outras áreas culturais, considera-se a constituição do mercado de arte. Ainda que o último capítulo trate do tema, excluindo a necessidade de aprofundá-lo aqui, vale destacar que entre 1960 e 1970 recaíam sobre a produção artística brasileira os resultados de uma modernização, embora conservadora, da política cultural do regime militar alicerçada pelo vigoroso projeto de industrialização do País. É nesse contexto que são dadas as condições para consolidação da indústria cultural massiva, ambiente em que as artes visuais permaneceram de certa maneira menos inseridas em comparação com outras linguagens artísticas. Um fator que concorre para isso é sua difícil integração em circuitos de ampla distribuição, como a música, o cinema comercial e a produção televisiva. Outro aspecto é a profissionalização da área. Não raro a organização dos eventos das artes visuais ficava ao encargo dos próprios artistas e marchands. Na época, inexistiam ainda as figuras do curador, que Bettina Rupp apresenta no capítulo seguinte, do 6 Trata-se do Decreto-Lei n° 82.385/1978, que regulamenta a figura do produtor, mencionado anteriormente.</p><p>52 As novas regras do jogo: sistema da arte no Brasil museógrafo, do programador visual, do montador, do embalador, do transportador e mesmo do produtor cultural, entre tantos outros profissionais imprescindíveis para a realização de um evento dessa natureza atualmente. Um exemplo é a própria Bienal de São Paulo, que, por muitos anos, se utilizou de estudantes e artistas, bem como das chamadas damas voluntárias, para o desempenho dessas funções sem nenhuma espécie de remuneração. Contudo, é provável que o segmento constituído pelo comércio de arte tenha concentrado na figura dos galeristas e marchands a organização das exposições e dos leilões de arte. Ao que tudo indica, o mercado de arte foi um campo de formação para alguns produtores culturais que são atuantes no novo modelo de funcionamento do sistema. Das entrevistas realizadas, alguns produtores tiveram parte de sua experiência adquirida no interior de galerias, e hoje têm trânsito em importantes plataformas de circulação da arte, representando uma linhagem de profissionais. Uma delas, paulista radicada no Rio de Janeiro, a entrevistada tem trabalhado como crítica e curadora, podendo ser apontada aqui por produzir ela mesma seus projetos curatoriais. Na mesma cidade, Max Perlingeiro8 é outro exemplo de galerista que tem organizado exposições de artistas consagrados em sua Pinakotheke Cultural, com sedes no Rio de Janeiro, em Fortaleza e em São Paulo. Em São Paulo, Geórgia Lobacheff, durante um tempo, administrou uma carteira de clientes da Galeria Nara Roesler e também assina curadorias. Eduardo Brandão fez caminho inverso: antes de ser proprietário da Galeria Vermelho, a partir de 2002, 7 A dissertação que originou presente texto foi produzida a partir de um conjunto de entrevistas a artistas, curadores, gestores e produtores culturais, que transitam entre CCBB-RJ e IC. A fim de preservar a identidade deles, as referências ocorrerão pelas iniciais dos nomes, em geral precedidos da palavra entrevistado/a. 8 Alguns nomes completos de profissionais da área das artes visuais citados não foram entrevistados pelo pesquisador.</p><p>Nei Vargas da Rosa 53 organizou e produziu exposições no MAM-SP, no Centro Cultural Light e no Museu Metropolitana de Arte de Curitiba - Isabella Prata não esteve envolvida diretamente no comércio, mas prestou consultorias para aquisições de obras. Ela foi responsável pela vinda ao Brasil dos artistas Matthew Barney, Mapplethorpe, Man Ray, Nan Goldin, Basquiat e Mario Testino, dos quais alguns no final da década de 1980 - o que é indicativo de mais um passo do País para se inscrever no quadro de eventos internacionais. Outros tantos nomes poderiam ser trazidos se fosse intenção realizar um mapeamento minucioso de produtores originários de galerias, mas apenas quer se sugerir que a emergência desse perfil de profissionais pode ter surgido como resposta à crise que assolava o mercado de arte nos anos 1990. o período em alta do mercado vai sendo substituído pelo de eventos, mudando a circulação da produção das artes visuais no Brasil naquele momento. Contribuiu de forma determinante a entrada de Fernando Collor de Mello na Presidência do País, cujo confisco das poupanças e a extinção do MinC desarticularam o mercado de arte, setor que computava três décadas de crescimento constante. A internacionalização da arte brasileira, ainda que modesta, parece ter sido uma das saídas cujas bases iniciais mostram a inserção institucional de artistas em exposições e coleções, o intercâmbio entre museus, curadores e galeristas e a presença brasileira nos meios de comunicação e no mercado editorial. Por outro lado, deve ser considerada, para avaliar o impulso que produtores culturais receberam nos anos 1990, a crescente institucionalização da arte que exige a presença de profissionais com capital cultural suficiente para dinamizar o setor em expansão. Somente na passagem para os anos 2000 é que o mercado de arte 9 Para mais informações sobre a Galeria e a trajetória de Brandão, ver http://p.php. Acesso em: 2 de abril de 2008.</p><p>54 As novas regras do jogo: sistema da arte no Brasil interno efetivamente assiste a uma nova retomada de crescimento, impulsionado pela ampliação do panorama museológico No entanto, a presença dos produtores culturais na construção e no fortalecimento de um circuito que se conecta com diferentes pontos, tal como diz Cauquelin (2005) em seu conceito de rede, depende da análise de diversas variáveis. Panorama institucional: outra via de profissionalização A partir das trajetórias de alguns entrevistados se pode estabelecer outra perspectiva de construção do produtor em funções administrativas nas plataformas culturais, tais como museus, centros e espaços culturais de caráter público ou privado. Os profissionais que transitam entre a gestão de galerias e a administração de instituições culturais e lideram importantes eventos de artes visuais dos anos 1970 até o presente perfazem um perfil específico de produtores culturais. Nesse período, a temática em torno da cultura passa a ser abordada com "frequência pelos órgãos de divulgação e outras instituições. Até reitorias de universidades estatais promoviam encontros para discutir o assunto" (COELHO, 2006, p. 9). A criação do Ministério da Cultura (MinC) em 1985, no início do governo de José Sarney, registra a centralização dos órgãos federais da cultura existentes até aquele A Fundação Nacional 10 Pelo Decreto n° 91.144 de março de 1985, o Ministério passou a ser formado pelo: Conselho Federal de Cultura, de 21 de novembro de 1966, Conselho Nacional de Direito Autoral CNDA, de 14 de dezembro de 1973, Conselho Nacional de Cinema Concine, de 16 de março de 1976, Secretaria da Cultura, de 10 de abril de 1981, Empresa Brasileira de Filmes S/A - Embrafilme, de 12 de setembro de 1969, Fundação Nacional de Arte Funarte, de 16 de dezembro de 1975, Fundação Nacional Pró-Memoria - de 17 de dezembro de 1979, Fundação</p>