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<p>QUESTÕES ÉTNICAS E INTERÉTNICAS DAS CULTURAS AFRO-BRASILEIRA: CONSTITUIÇÃO, ESTATUTO DA IGUALDADE RACIAL E LEIS ESPARSAS</p><p>Disciplina: Antropologia</p><p>Professora: Maria Ivanilde Ferreira Nobre</p><p>Alunas: Iasmim Agra Cavalcante e Lara Regina Silva Santos</p><p>Turma: 1A 2022.2</p><p>INTRODUÇÃO</p><p>Desde que os portugueses chegaram e se estabeleceram no Brasil, sua principal força de trabalho foi negros escravizados para os mais diversos fins. Esses povos foram trazidos da África em navios negreiros e carregaram consigo sua cultura através do Atlântico para o Brasil, fixando-a e espalhando-a por todo o território. Por esse motivo, a diversidade cultural notória é um dos maiores trunfos da nação brasileira. Todavia, as diferenças culturais entre as diversas populações no Brasil só recentemente foram reconhecidas. No século XX, a composição heterogênea da população brasileira começou a ser valorizada, e a diversidade cultural foi reconhecida como uma característica positiva do país. A cultura nacional é composta por elementos com forte componente racial, alguns facilmente reconhecíveis como parte da cultura negra brasileira, como a feijoada, o candomblé e o samba, expressões que são simultaneamente símbolos da brasilidade e das raízes africanas.</p><p>A trajetória da população negra brasileira no decorrer do tempo é caracterizada por muitas lutas e conquistas, como a implementação de leis antidiscriminação e direitos individuais e coletivos. Embora na prática existam falhas na implementação dessas leis, que são extremamente importantes para a proteção dos direitos dos negros. O século XX viu várias revoluções sociais que enriqueceram a agenda para a comunidade negra, trazendo empoderamento e concessões, não apenas a intolerância ao racismo, mas a ideia de uma postura antirracista. Analisando as questões étnico-raciais e jurídicas que permeiam a sociedade brasileira percebe-se que, mesmo após 134 anos da abolição da escravatura, o Brasil segue enfrentando a marginalização do povo preto de forma generalizada, um reflexo histórico da segregação racial.</p><p>INFLUÊNCIAS DA CULTURA DE ÁFRICA NO BRASIL</p><p>Segundo Alberto da Costa e Silva, ex-diplomata e membro da Academia Brasileira de Letras,</p><p>“o processo de migração forçada de africanos foi um dos mais longos de nossa história, durou mais de 300 anos. Eles moldaram nossa maneira de viver, assim como os ameríndios. A maioria dos portugueses chegava sem mulheres. E os africanos também. Logo, parte da população brasileira foi gerada no ventre da mulher indígena”.</p><p>A contribuição da cultura africana para a formação da identidade brasileira é observada cotidianamente. São palavras como Uberaba, Ituiutaba, acarajé, músicas como samba e pagode, são instrumentos musicais como berimbau e batuque, ou religiões com deuses e orixás. O legado deixado pelos africanos é imensurável. A diversidade cultural da África refletiu-se na diversidade de escravos que pertenciam a diferentes grupos étnicos, falavam diferentes línguas e traziam consigo diferentes tradições. Entre os africanos trazidos para o Brasil estavam bantos, nagôs e jejes, cujas crenças religiosas deram origem às religiões afro-brasileiras, e os hauçás e malês, da religião islâmica, que liam em árabe.</p><p>Ainda, segundo Costa e Silva:</p><p>“Devemos aos africanos a forma de construir a casa rústica; importantes técnicas agrícolas e pecuárias; as forjas de ferro; a maneira de peneirar o ouro nos garimpos; o modo de nos comportarmos, de gostar da rua. A influência é rural e urbana. Recebemos milhares de africanos de regiões diferentes, em períodos distintos, e cada povo deixou um legado. O povo da Alta Guiné tinha a cultura do arroz, e quando foi trazido para o Maranhão, deixou lá essa marca. O forte na Costa do Benin era o inhame, o dendê e a malagueta, e como eles vieram para a Bahia, o dendê se tornou uma marca da região. Cabe destacar também que a influência foi recíproca, pois o povo africano herdou de nós a mandioca, a batata-doce, o caju e o abacaxi. Na música temos o samba, o maracatu, o frevo…”.</p><p>A capoeira, uma luta dançada, foi criada pelos escravos e era usada como forma de se libertar da força do jugo a que eram submetidos nas fazendas. Os que puderam, se refugiaram nos quilombos das florestas brasileiras, que eram comunidades onde os negros escravizados podiam viver livremente, sendo o mais famoso de todas o de Palmares. Até hoje a capoeira é praticada por muitos brasileiros como esporte. A influência da cultura africana também é evidente na Bahia, com a culinária regional, que utiliza em suas receitas o dendê, fruto da palmeira africana dendezeiro. O óleo é usado em muitos pratos de influência africana, como vatapá, caruru e acarajé.</p><p>Nesse ponto, é preciso citar Conceição Evaristo, uma das escritoras mais influentes da literatura afro-brasileira em entrevista para Bárbara Araújo Machado, em 2010:</p><p>“O dia que os críticos de literatura brasileira estiverem mais atentos para escrever a história da literatura brasileira, querendo ou não eles vão incorporar a história do grupo Quilombhoje. Tem que ser incorporada. Na área de literatura brasileira como um todo, é o único grupo que tem uma publicação ininterrupta durante 33 anos. [...] Acho que quando surgirem historiadores, críticos que tenham uma visão mais ampla da literatura, vai ser incorporada. Essa é a dívida que a literatura brasileira tem com o grupo Quilombhoje.”</p><p>É preciso levar em consideração o envolvimento negro na construção de edifícios e monumentos nas cidades. Todas as igrejas, casas, monumentos, fazendas e ruas coloniais e imperiais foram construídas com suor negro. A escravidão no Brasil deixou sua marca, e o Brasil deve sua riqueza cultural e estrutural aos negros forçados a deixar a África. Na música, a cultura africana contribuiu para os ritmos que sustentam grande parte da música popular brasileira. Gêneros musicais coloniais de influência africana, como o lundu, deram a base rítmica para do maxixe, samba, choro, bossa-nova e outros gêneros musicais contemporâneos. Há também instrumentos musicais brasileiros como o berimbau, o afoxé e o agogô, que são de origem africana. O berimbau é o instrumento usado para criar o ritmo que acompanha os passos da capoeira, uma mistura de dança e artes marciais criada pelos escravos no Brasil colonial.</p><p>EVOLUÇÃO LEGISLATIVA E MARCOS HISTÓRICOS</p><p>1630 | Data provável da formação do Quilombo dos Palmares. Palmares ocupou a maior área territorial de resistência política à escravidão, sediando uma das mais efetivas lutas de resistência popular nas Américas.</p><p>1824 | Constituição Brasileira após a independência não cita negros ou escravos. O escravo era pessoa e propriedade, por isso destituído de cidadania; consequentemente, não era brasileiro (mesmo sendo crioulo, isto é, nascido em território nacional); portanto, não tinha qualquer obrigação ou compromisso em relação à defesa do Império.</p><p>1833 | É fundado o Jornal O homem de cor, por Paula Brito, sendo o primeiro periódico brasileiro a defender os direitos dos negros escravizados.</p><p>1837 | Primeira lei da educação: proíbe negros de irem à escola. Lei nº 1, de 14 de janeiro de 1837: “São proibidos de frequentar as escolas públicas: Primeiro: pessoas que padecem de moléstias contagiosas. Segundo: os escravos e os pretos africanos, ainda que sejam livres ou libertos”.</p><p>1850 | Lei das Terra estipula que negros não podem ser proprietários. Lei nº 601 de 18 de setembro de 1850: aprovada no mesmo mês e ano da lei Eusébio de Queirós (Lei nº 581 de 4 de set de 1850), que previa o fim do tráfico negreiro. A Lei de Terras, como ficou conhecida, foi uma antecipação de grandes fazendeiros e políticos latifundiários que queriam impedir que negros pudessem ter terras.</p><p>1869 | Proibida a venda de negros escravizados por “pregão” e com exposição pública. A lei também proíbe a venda em separado de membros de uma família (casais e pais e filhos).</p><p>1871 | Lei do Ventre Livre. Lei nº 2.040 de 28 de set de 1871 – filhos de mulheres escravizadas nascidos a partir desta data ficariam livres. Estabelecendo que os filhos</p><p>dos negros escravizados do Império, a partir daquela data, seriam considerados livres, depois de completarem a maioridade.</p><p>Fim do século XIX | Elite intelectual e política brasileira influenciada por teorias pseudocientíficas de darwinismo social e eugenia; defesa de políticas de imigração europeia.</p><p>1884 | Decretada a abolição da escravatura negra nas províncias do Amazonas e do Ceará, sendo as primeiras libertações de coletivas de negros escravizados no Brasil.</p><p>1885 | Lei do Sexagenário. A lei n. 3.270, de 28 de setembro de 1885, também conhecida como Lei Saraiva-Cotegipe, concedia liberdade aos escravizados com mais de 60 anos.</p><p>1888 | Lei Áurea. Decreta (formalmente) o fim da escravização em todo o Brasil, sem prever direito à terra. Ao todo, foram 388 anos de regime escravocrata amparado legalmente pelo Estado. Mas a data é considerada pelo Movimento Negro como uma “mentira cívica”, sendo caracterizada como Dia de Reflexão e Luta contra a Discriminação.</p><p>Art. 1°: É declarada extincta desde a data desta lei a escravidão no Brazil.</p><p>1890 | Lei dos vadios e capoeiras. Os que perambulavam pelas ruas, sem trabalho ou residência comprovada, iriam pra cadeia. Código Penal – Decreto nº 847, de 11 de outubro de 1890 (atenção, 2 anos depois da abolição) – os que perambulavam pelas ruas, sem trabalho ou residência comprovada, iriam para a cadeia. Permite a prisão de pessoas que perambulavam pelas ruas sem trabalho ou residência comprovada.</p><p>Dec. 1910-1920 | Fortalecimento da imprensa negra no Brasil.</p><p>1910 | João Cândido, o Almirante Negro, lidera a Revolta da Esquadra ou da Chibata, pondo fim aos castigos físicos praticados contra os marinheiros. O uso da chibatada como forma de punição era uma característica que a Marinha brasileira. Essa forma de punição era dedicada somente aos postos mais baixos da Marinha, ocupados, em geral, por negros e mestiços.</p><p>1911 | João Baptista de Lacerda, no Congresso Universal das Raças, em Londres, defende a miscigenação como fator positivo e a tese do branqueamento da população brasileira.</p><p>1914 | Surge em Campinas a primeira organização sindical dedicada à causa dos negros, com papel expressiva e determinante de mulheres negras.</p><p>1915 | Fundação do jornal Menelick, primeiro periódico paulista voltado à difusão da cultura negra e à defesa dos interesses da população afrodescendente.</p><p>1931 | Fundação da Frente Negra Brasileira, entidade representativa dos desejos e aspirações da população negra da época. Desempenhou um lugar que o Estado não ocupou em relação aos negros (escola, saúde e assistência social). Teve atuação política marcante. Eleito o primeiro juiz negro do Supremo Tribunal Federal do Brasil: Hermenegildo Rodrigues de Barros, o criador do Tribunal Superior de Justiça Eleitoral.</p><p>1932 | Criado em São Paulo o Clube do Negro de Cultura Social. Seus dirigentes editavam o jornal O Clarim da Alvorada, um dos mais importantes na história do jornalismo racial.</p><p>1933 | Publicação do livro “Casa Grande & Senzala”, de Gilberto Freyre, principal mentor intelectual da ideologia da democracia racial no Brasil.</p><p>1934 | Conquista do direito ao voto</p><p>1934-1937 | Antonieta de Barros, primeira mulher negra a assumir um mandato político no país (Santa Catarina).</p><p>1942 | Fundação dos estudos de relações raciais no Brasil.</p><p>1944 | Abdias do Nascimento funda o Teatro Experimental do Negro, que abriu as artes cênicas brasileiras para atores e atrizes negros, e representou uma frente de luta e um polo de cultura que tinha como objetivo a libertação cultural do povo negro</p><p>1945 | 1ª Convenção Nacional do Negro Brasileiro, que reivindica que a nova Carta Magna explicitasse a origem étnica do povo brasileiro, definisse o racismo como crime de lesa-pátria e punisse a sua prática como crime, demandando, também, políticas positivas de igualdade racial (bolsas de estudo e incentivos fiscais). Surge em São Paulo a Associação do Negro Brasileiro. No Rio de Janeiro, é organizado o Comitê Democrático Afro-Brasileiro, para defender a Constituinte, a anistia e o fim da discriminação racial.</p><p>1948 | Declaração Universal dos Direitos Humanos, Artigo 2°: Todos os seres humanos podem invocar os direitos e as liberdades proclamados na presente Declaração, sem distinção alguma, nomeadamente de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião política ou outra, de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra situação.</p><p>1949-1950 | Arthur Ramos e o Projeto UNESCO: ideia da democracia racial brasileira propagandeada internacionalmente: Brasil, paraíso racial no mundo?</p><p>1950 | 1º Congresso do Negro Brasileiro: insistiu no princípio de políticas de igualdade racial e, de caráter popular, não tratou o negro como “um simples objeto de pesquisa”.</p><p>1951 | Lei Afonso Arinos, primeira lei antirracista no Brasil: atos resultantes de preconceitos de raça ou cor constituem contravenção penal, estabelece um ano de prisão ou multa.</p><p>1958 | Convenção 111 da OIT: impõe aos países membros o dever de promulgar leis para evitar a discriminação baseada em cor em matéria de emprego e ocupação.</p><p>1965 | 1ª Convenção da ONU sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial, um dos principais tratados internacionais em matéria de Direitos Humanos Reafirmou a falsa cientificidade de doutrinas de superioridade racial, condenando-as e indicando criminalização de organizações e propagandas com este fim. Também tratou da construção de mecanismos de implementação de políticas de ações afirmativas.</p><p>1968 | Lei do Boi: primeira lei de cotas no país, mas para filhos de donos de terras, que conseguiram vaga nas escolas técnicas e nas universidades.</p><p>Dec. 1970: Movimento Black Soul faz grande sucesso no Brasil.</p><p>1974 | Fundação do bloco Ilê Aiyê em Salvador e de diversos movimentos culturais e de estudo dos negros no Brasil (Cecan, IBEA, IPCN, Federação das Entidades Afro-Brasileiras do Estado de São Paulo, Semana do Negro na Arte e na Cultura, Movimento Teatral Cultural Negro, Escola de Samba Gran Quilombo, Sociedade de Intercâmbio Brasil-África).</p><p>1977-78 | Surge o Movimento Negro Unificado (MNU), que, dentre tantas ações, institui o Dia Nacional de Consciência Negra, 20 de novembro, em celebração à memória de Zumbi dos Palmares.</p><p>1979 | O quesito cor é incluído no recenseamento do IBGE por pressão de estudiosos e organizações da sociedade civil; Fundação do Olodum, bloco que cultiva a continuidade dos valores socioculturais africanos em Salvador.</p><p>Dec. 1980 | Movimento negro brasileiro promove a revalorização da África, apogeu da reafricanização do candomblé, rejeição do sincretismo religioso.</p><p>1988 | Criação da Fundação Palmares, instituição pública que promove a valorização da cultura negra no Brasil. Promulgação da Constituição Federal, conhecida como “Cidadã”, que garantiu às comunidades remanescentes de quilombos a propriedade das terras ocupadas por elas. Foram necessários 488 anos para ter uma constituição que dissesse que racismo é crime.</p><p>1989 | Lei Caó estabeleceu o racismo como crime inafiançável e imprescritível no Brasil.</p><p>Déc. 1990 | Músicas de blocos afro e a axé music emplacam no show business e caem no gosto popular.</p><p>1991 | Criação do Conen (Coordenação Nacional de Entidades Negras), articulação das novas forças do movimento negro.</p><p>1992 | Primeira comunidade quilombola é reconhecida no Brasil.</p><p>1995 | Marcha Zumbi dos Palmares e instituição do Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorização da População Negra.</p><p>2001 | Realização da conferência de Durban contra o racismo, a discriminação racial, a xenofobia e formas correlatas de intolerância, na qual o Brasil reconheceu que teria de fazer políticas de reparação e ações afirmativas. Isso deu início ao movimento para a implementação de cotas raciais nas universidades públicas.</p><p>2003 | Criação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República (SEPPIR). Lei 10.639 que estabeleceu o ensino da cultura e da história afro-brasileiras e africanas no currículo oficial da rede de ensino. A UERJ é a primeira universidade</p><p>estadual a adotar o sistema de cotas raciais.</p><p>Decreto Nº 4.887, que regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos.</p><p>2004 | A Universidade de Brasília é a primeira instituição federal de ensino público a adotar o sistema de cotas.</p><p>2008 | Através da Lei 11.645, é obrigatório o ensino da da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”.</p><p>2010 | Aprovação do Estatuto da Igualdade Racial (Lei nº 12.288), que prevê o estabelecimento de políticas públicas para a correção de desigualdades raciais e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica.</p><p>2012 | Após uma década de debates, o STF julgou a política de cotas constitucional e elas viram Lei (nº 12.711) em instituições federais. A medida determina que toda instituição pública de ensino superior reserve 50% de suas vagas para estudantes oriundos de escolas públicas, entre os quais há percentuais para os autodeclarados “pretos”, “pardos” (conforme critérios do IBGE), indígenas e pessoas com deficiência.</p><p>2014 | Lei nº 12.990 reserva para negros 20% de vagas em concursos públicos.</p><p>2015 | Marcha Internacional Contra o Genocídio do Povo Negro.</p><p>DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA</p><p>O Dia Nacional da Consciência Negra é celebrado, no Brasil, em 20 de novembro. Foi criado em 2003 como efeméride incluída no calendário escolar — até ser oficialmente instituído em âmbito nacional mediante a lei nº 12.519, de 10 de novembro de 2011. O idealizador do Dia Nacional da Consciência Negra foi o poeta, professor e pesquisador gaúcho Oliveira Silveira. Silveira foi um dos fundadores do Grupo Palmares, associação que reunia militantes e pesquisadores da cultura negra brasileira, em Porto Alegre.</p><p>A data da morte do líder Zumbi dos Palmares foi escolhida para ser de reflexões e discussões importantes sobre respeito e dignidade aos povos negros. Zumbi dos Palmares, morto em 20 de novembro de 1695, é referência para muitos. Símbolo de resistência e de luta pela libertação do povo contra o sistema escravista, ele deixou um legado importante e que serve de exemplo para a juventude. Zumbi teria liderado por anos o Quilombo dos Palmares, um complexo de quilombos na região da Serra da Barriga. Na época, a região pertencia à Capitania de Pernambuco, sendo atualmente o estado de Alagoas.</p><p>Todos os anos a Coordenação Nacional de Entidades Negras organiza no Dia da Consciência Negra a já tradicional Marcha Zumbi dos Palmares, que a cada ano enfoca temas diferentes relacionados às lutas e interesses da comunidade negra. Consciência negra é um termo que se tornou famoso na década de 1970 no Brasil devido à luta de movimentos sociais que lutavam pela igualdade racial, como o Movimento Negro Unido.</p><p>O termo é tanto uma referência, quanto uma homenagem à cultura ancestral da população de África que fora trazida à força para o Brasil e severamente escravizados por séculos. É um símbolo de luta, resistência e ressalta que a negritude não é inferior e que o negro tem seu valor e seu lugar na sociedade. Quando o preto percebe seu valor e importância, ele é empoderado. Há também um movimento causal reverso: quanto mais a pessoa preta é empoderada mais ela percebe seu valor. No entanto, essa consciência negra não é criada do nada no indivíduo. É necessário que as pessoas empoderadas mostrem aos outros que elas também podem criar essa consciência.</p><p>“O Dia da Consciência Negra transformada em feriado não é simplesmente pelo feriado em si, mas sim pela reflexão e pela reparação da dívida que o Brasil, como nação, tem com a comunidade negra. As políticas afirmativas são apenas uma breve reparação. Somos a maioria da população brasileira, mas não estamos representados nas câmaras de vereadores, nas assembleias legislativas, na câmara federal, no Senado, no Executivo, assim como nas empresas. A luta começa agora.”</p><p>- Antônio Carlos Côrtes, advogado, participante do Grupo Palmares, uma associação que realizava estudos sobre a história e a cultura negra.</p><p>CRIMINALIZAÇÃO E ENCARCERAMENTO EM MASSA DO POVO NEGRO</p><p>A marginalização e a criminalização da população negra no Brasil, permanece até os dias modernos, tendo em vista que a criminalização da pobreza e o racismo são fatores que contribuíram e contribuem para a violência, que é remetida às populações negras. Não são fontes recentes e sim uma realidade constante em um país que carrega uma herança da segregação racial, em razão dos mais de 300 anos de escravidão. Mesmo após mais de 100 anos da abolição da escravidão, o povo negro continua sendo criminalizado e marginalizado pela sociedade e pelo Estado.</p><p>A criminalização do negro é algo que sempre ocorreu, mas após o fim do Brasil Colonial, foi algo que se tornou ainda mais evidente, pois, agora, o homem negro virou um homem livre que precisava encontrar como viver em uma sociedade nova a qual foi inserido, mas, precisava se adequar já que, com essa mudança, passou a viver a beira ou total pobreza. Portanto, o povo negro se encaminhou para as periferias, as favelas, onde ficava longe das produções em massa. A partir disso, os negros passaram a ser considerados pessoas preguiçosas, que se negavam a trabalhar, tendo assim, uma visão capitalista a qual, quem não se encontra no modelo de produção não é visto de boa forma e assim, não tem direitos a reivindicar.</p><p>Já era comum encontrar nas elites brasileiras falas e ações que concluem que o negro, pobre, periférico é considerado um ser perigoso. Nos dias atuais, muito é escutado que existem pessoas que nascem para ser bandidos e acaba sendo um pensamento que vem sempre sendo reproduzido com constância. Sendo assim, as pessoas tendem a ter seus pensamentos direcionados para pensar que pessoas pobres, negras e que vivem nas periferias são pessoas que são consideradas perigosas. Buozi diz que:</p><p>"Nota-se, desta forma, como é construída a imagem do "criminoso" a partir da população pobre e periférica, sobretudo negra. Tal estereótipo é reforçado constantemente pelos meios de comunicação - cujos interesses visam à reprodução do capital - como potencial ameaça à manutenção da segurança pública, gerando na sociedade ondas de medo" (BUOZI, 2018, p.543).</p><p>A classe que domina os meios de produção é aquela com o poder de terminar o que seria certo e errado, dessa forma, naturalizar aquilo que convém como realidade. E assim, o estado encontra suas maneiras de naturalizar ou reproduzir a criminalização do negro, no Brasil, por meio jurídico, manipulando a consciência, exercendo violência contra essas classes, com discursos políticos. Bouzi descreve isso como barbárie civilizada. Santos afirma que:</p><p>"O processo de criminalização, nos componentes de produção e de aplicação de normas penais, protege seletivamente os interesses das classes dominantes, pré- seleciona os indivíduos estigmatizados distribuídos pelas classes e categorias sociais subalternas e, portanto, administra a punição pela oposição de classe do autor, a variável independente que determina a imunidade das elites de poder econômico e político e a repressão das massas miserabilização e sem poder das periferias urbanas, especialmente as camadas marginalizadas do mercado de trabalho, complementada pelas variáveis intervenientes da posição precária no mercado de trabalho e da subsocialização - fenômeno definido como administração diferencial da criminalidade." (SANTOS, 2008, p. 126).</p><p>O jovem negro e periférico tem poucas oportunidades de se inserir no modo de produção e partindo do momento que isso não ocorre, esse jovem acaba estando sujeito a diversas duras respostas do estado. Adorno (1996) diz que "... intimidação policial, às sanções punitivas e maior severidade no tratamento dispensando aquelas que se encontram sob tutela e guarda nas prisões, recaindo, preferencialmente sobre os mais jovens, os mais pobres e os mais negros". Esses jovens, acabam sendo alvo de mortes, prisões e violências não só pelo estado o qual manipula a opinião pública, mas também pelas mídias que acaba</p><p>tendo um papel de criminalizar o negro e provocar uma maior visibilidade na sociedade.</p><p>A criminalização do negro no Brasil está fortemente enraizada na criminalização da pobreza, mas visto que, a classe pobre é consideravelmente negra. Com isso, o pobre é criminalizado apenas por ser pobre, por não ter condições para se adequar à sociedade, pela falta de dinheiro, por não ter oportunidade de emprego, não ter como comprar comida. A criminalização do jovem negro vem decorrente do racismo existente nesse país, onde esses jovens, que vivem na periferia, são grandes alvos dos agentes públicos de segurança. E decorrente a isso, é mais que notório a desigualdade existente e como isso afeta a população negra e periférica, o que tem causado o encarceramento em massa. As formas que o Estado tem encontrado para criminalizar o negro é uma tentativa de inviabilizá-lo, excluindo mais ainda da sociedade.</p><p>Em São Paulo a população negra representa cerca de 30% dos habitantes. Já no sistema prisional, os negros são 54%. De acordo com o Mapa de Encarceramento de 2016, a média nacional é de 292 encarcerados a cada grupo de 100 mil negros, mas em São Paulo chega a 514 por mil. Portanto, São Paulo, é o estado que proporcionalmente mais prende negros no país. Isso não quer dizer que pessoas negras cometem mais crimes que os brancos, mas que o foco policial está voltado para a população negra e periférica e em determinados tipos de crimes, como aqueles que atentam apenas contra o capital, como o roubo e o furto. Sendo assim, é visível o racismo institucional.</p><p>Giane Silvestre, pesquisadora do Núcleo de Estudos sobre Violência e Administração de Conflitos da Universidade Federal de São Carlos mostra que 40% dos negros presos estão em situação provisória, ou seja, foram julgados pelos policiais que o prenderam, sem a menos ter passado por um juiz. Giane diz:</p><p>"Sabemos que nosso sistema de justiça trabalha de forma seletiva. podemos refletir de como funciona o policiamento a partir desses dados. Existe uma profunda desigualdade no encarceramento em massa de negros, e esse racismo está na forma como as instituições funcionam e como ela orienta os trabalhadores. Quando o policial resolve fazer uma abordagem, tem relação com o seu sistema de aprendizado".</p><p>A criminalização e o encarceramento em massa do povo negro têm relação com o genocídio dessa população, isso porque, o capitalismo se alimenta das desigualdades impostas na sociedade e o genocídio do negro na sociedade é encontrado de diversas formas.</p><p>PATRIMÔNIOS AFRO-BRASILEIROS</p><p>O conceito de patrimônio possui um complexo histórico de significação. Articula-se a seu sentido original, uma série de outros termos que, em função de contingências históricas, redefinem continuamente a compreensão das sociedades em relação a seus “bens” culturais.</p><p>Segundo a historiadora Beatriz Nascimento (1942-1995),</p><p>O negro não pode estar liberto enquanto ele não esquecer no gesto que ele não é mais um cativo. Os patrimônios negros, valorados como herança no presente, reconstroem esse gesto, para além da dor e do trauma da colonização e da escravidão, mas sem negar ou diminuir seu impacto sobre nossos corpos e vidas. Por isso, significam tanto para a discussão da consciência negra, porque reposicionam a visão sobre a identidade brasileira.</p><p>Desde a década de 1980, a pressão desses sujeitos políticos exigiu que o Estado brasileiro mudasse os valores e práticas da política de memória pública, entendendo que eles têm um papel estratégico na conquista de direitos e no combate ao racismo. Em particular, o resultado dessa pressão é a identificação de valores culturais de matrizes não hegemônicas, negras e indígenas. É uma dinâmica que acelerou inclusive a reescrita técnica de paradigmas internos de representação nacional pelos canais oficiais. Nesse sentido há uma aproximação entre as narrativas produzidas pelo Iphan e a perspectiva de reparação em relação à cultura afro-brasileira e sua influência na elaboração das diretrizes de salvaguarda desses bens culturais.</p><p>A diversificação de bens indicados para integrar o patrimônio histórico e artístico nacional pode ser interpretada, juntamente com a participação maior da sociedade nos pedidos de tombamento, como um indício de que o patrimônio estava sendo então considerado pela sociedade brasileira, mesmo que de maneira ainda bastante limitada, como campo para afirmação de novas identidades coletivas, que se valiam dos bens culturais como referências materiais e simbólicas (FONSECA, 1996, 158).</p><p>Tal processo produziu diversos patrimônios negros que hoje figuram na lista de patrimônios culturais nacionais, sejam como bens materiais ou tangíveis, tais como os Terreiros de Candomblé, templos católicos de irmandades negras e, mais recentemente, as Docas Pedro II e o Sítio Arqueológico do Cais do Valongo. Há também os que foram reconhecidos como bens imateriais ou intangíveis, como as Celebrações: Bembé do Mercado (BA), Festa do Divino Espírito Santo de Paraty (RJ), o Complexo Cultural Bumba Meu Boi (MA); os Saberes: Mestres de capoeira, Baianas de acarajé, Sistema agrícola tradicional das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira (SP); e as Formas de expressão: Samba de roda (BA), Tambor de crioula (MA), Marabaixo (AP), Carimbó (PA), Maracatu (PE), Matrizes do samba do Rio de Janeiro (RJ) e o Jongo do Sudeste, para citar alguns. No reconhecimento desses patrimônios, mobilizam-se fontes variadas, mas, sobretudo, conhecimentos e informações dos detentores desses bens culturais, seus formuladores e guardiões.</p><p>CONCLUSÃO</p><p>No ano em que o Brasil alcança a marca do bicentenário da independência nacional e vivencia as eleições mais tensas da história recente, intelectuais, jornalistas e políticos hegemônicos não conseguem identificar a conexão entre os graves problemas enfrentados pela maioria da população brasileira. Se a luta para fixar a data da reflexão e da resistência negra no calendário nacional é fruto de um processo que dura mais de 50 anos, a luta para destruir as bases dos problemas estruturais que remontam ao período colonial é ainda pior. A desigualdade na representação política é outro aspecto do racismo estrutural. É preciso desconstruir o papel de subalternidade que sempre foi atribuído à população negra e mostrar negros e negras cada vez mais empoderados na mídia para servir de inspiração para outros que ainda não foram empoderados.</p><p>Apesar da contribuição ímpar para nossa história, a população negra ainda sofre nos dias de hoje os efeitos do preconceito e da desigualdade. De acordo com informações do Relatório Anual das Desigualdades Raciais no Brasil 2009-2010, elaborado pelo Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), os negros e pardos estão mais vulneráveis em relação à segurança alimentar, possuem maior defasagem escolar e recebem menor número de aposentadorias e pensões da Previdência Social.</p><p>O ensino obrigatório da História e Cultura Afro-Brasileira nas escolas, o feriado do Dia da Consciência Negra, assim como a Lei das Cotas, são formas de valorizar e salvar as dívidas passadas que devemos aos negros por toda a opressão que sofreram e pelos anos de escravidão. A cooperação contínua entre escola, família e governo também é necessária para educar as crianças para tratarem pessoas de qualquer etnia como iguais e reeducar os brasileiros para tal mentalidade. A ênfase na valorização histórica da cultura negra para a identidade brasileira contemporânea deve ser difundida por todo o Brasil.</p><p>Ainda assim, a norma que trata do ensino da história e da cultura afro-brasileira nas escolas ainda enfrenta desafios para sua plena efetivação. Além da inclusão da história e da cultura negra nos materiais didáticos, é preciso que o ensino em sala de aula venha acompanhado de outras políticas públicas de forma a garantir a representatividade nas escolas e em todos os espaços da sociedade.</p><p>REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS</p><p>ADORNO, Sérgio. Racismo, criminalidade violenta e justiça penal: réus brancos e negros em perspectiva comparativa.</p><p>Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 18, 1996. Disponível em: <https://edisciplinas.usp.br> Acesso em: 29 out. 2022.</p><p>AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Abolicionismo e Memória das Relações Raciais. In: ESTUDOS AFRO-ASIÁTICOS, nº 26, 1994.</p><p>BUOZI, Jaqueline Garcez. A manipulação das consciências em tempos de barbárie e a criminalização da juventude negra no Brasil. Serv. Soc. Soc., São Paulo, 2018. n. 133, p. 530-546.</p><p>BRASIL. Constituição (1824). Constituição da República Federativa do Brasil: Outorgada pelo Imperador D. Pedro I, em 25.03.1824. Rio de Janeiro, RJ: 1824. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao24.htm> Acesso em: 29 de out. 2022.</p><p>BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 05 de outubro de 1988. Brasília, DF: Senado, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm> Acesso em: 29 de out. 2022.</p><p>CHARTIER, Roger. A História Cultural: Entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990.</p><p>FONSECA, Maria Cecília Londres. Da modernização à participação: a política federal de preservação nos anos 70 e 80. In: REVISTA DO PATRIMÔNIO, nº 24, Cidadania, 1996.</p><p>FREITAS, Décio. Palmares, a Guerra dos Escravos. Rio de Janeiro: Editora Graal Ltda, 1978.</p><p>OBENGA, Theofilo. Fontes e Técnicas Específicas da História da África. Lisboa: Panorama Geral da História Africana, 1974.</p><p>OLIVEIRA, Rachel. Relações Raciais: Uma Experiência de Intervenção. São Paulo: PUC/SP, 1992. Dissertação de mestrado.</p><p>SANTOS, Juarez Cirino dos. A criminologia radical. 3. ed. Curitiba: Lumen Juris, 2008.</p><p>SKIDMORE, Thomas E. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1976.</p><p>VALERY, Gabriel. Encarceramento em massa é a continuidade da segregação racial. Portal Geledés, 2017. Disponível em: https://www.geledes.org.br/encarceramento-em-massa-e-continuidade-da-segregacao-racial/?gclid=Cj0KCQjw--2aBhD5ARIsALiRlwA-4UwJI2pTEkR21lvOnVSOWV3Q-z9gy2gLsiPR-K8C6KN3Nd9aGIYaAnKnEALw_wcB. Acesso em: 29 de out. 2022.</p><p>1</p><p>2</p>