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<p>UNIVERSIDADE DO ESTADO DE MATO GROSSO - UNEMAT</p><p>CAMPUS UNIVERSITÁRIO DE TANGARÁ DA SERRA</p><p>PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM ESTUDOS</p><p>LITERÁRIOS – MESTRADO/DOUTORADO</p><p>SANDRA MARIA GONÇALVES DA SILVA</p><p>BALADA DE AMOR AO VENTO, NIKETCHE: UMA HISTÓRIA DE</p><p>POLIGAMIA E O ALEGRE CANTO DA PERDIZ: ENTRE</p><p>CONFLITOS, PERDÃO E RECONCILIAÇÃO</p><p>TANGARÁ DA SERRA/MT</p><p>2021</p><p>SANDRA MARIA GONÇALVES DA SILVA</p><p>BALADA DE AMOR AO VENTO, NIKETCHE: UMA HISTÓRIA DE</p><p>POLIGAMIA E O ALEGRE CANTO DA PERDIZ: ENTRE</p><p>CONFLITOS, PERDÃO E RECONCILIAÇÃO</p><p>Tese apresentada ao Programa de Pós-</p><p>Graduação Stricto Sensu em Estudos</p><p>Literários – Nível de Doutorado, sob</p><p>orientação da Profª Drª. Marinei</p><p>Almeida.</p><p>TANGARÁ DA SERRA/MT</p><p>2021</p><p>Tese de doutoramento submetida ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários</p><p>da Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT), como parte dos requisitos</p><p>necessários para obtenção do título de doutora em Estudos Literários.</p><p>BANCA EXAMINADORA</p><p>__________________________________________________________</p><p>Orientadora: Profª. Drª. Marinei Almeida</p><p>UNEMAT (Universidade do Estado de Mato Grosso)</p><p>UFMT (Universidade Federal de Mato Grosso)</p><p>________________________________________________________</p><p>Prof. Dr. Sávio Roberto Fonseca de Freitas</p><p>(UFPB) Universidade Federal da Paraíba</p><p>__________________________________________________________</p><p>Profª. Drª. Divanize Carbonieri</p><p>UFMT (Universidade do Federal de Mato Grosso)</p><p>____________________________________________________________</p><p>Profª. Drª. Vera Lúcia da Rocha Maquêa</p><p>UNEMAT (Universidade do Estado de Mato Grosso)</p><p>____________________________________________________________</p><p>Prof. Dr. Agnaldo Rodrigues da Silva</p><p>UNEMAT (Universidade do Estado de Mato Grosso)</p><p>SUPLENTES</p><p>_________________________________________________________</p><p>Profª Drª Soraya do Lago Albuquerque</p><p>UFMT (Universidade do Federal de Mato Grosso)</p><p>_________________________________________________________</p><p>Prof. Dr. Epaminondas de Matos Magalhães</p><p>UNEMAT (Universidade do Estado de Mato Grosso)</p><p>CIP – CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO</p><p>Ficha catalográfica elaborada pelo bibliotecário Luiz Kenji Umeno Alencar -</p><p>CRB1 2037.</p><p>S586b Silva, Sandra Maria Gonçalves da.</p><p>Balada de amor ao vento, Niketche: uma história de poligamia e O alegre</p><p>canto da perdiz: entre conflitos, perdão e reconciliação / Sandra Maria</p><p>Gonçalves da Silva. – Tangará da Serra, 2021.</p><p>151 f. ; 30 cm.</p><p>Trabalho de Conclusão de Curso (Tese/Doutorado) – Curso de Pós-</p><p>graduação Stricto Sensu (Doutorado) Estudos Literários, Faculdade de</p><p>Ciências Sociais Aplicadas e Linguagem, Câmpus de Tangará da Serra,</p><p>Universidade do Estado de Mato Grosso, 2021.</p><p>Orientadora: Dra. Marinei Almeida.</p><p>1. Literatura de Autoria Feminina. 2. Paulina Chiziane. 3. Subserviência/</p><p>Subversão Feminina. 4. Perdão/Reconciliação. I. Almeida, M., Dra. II. Título.</p><p>III. Título: entre conflitos, perdão e reconciliação.</p><p>CDU 82.091</p><p>AGRADECIMENTOS</p><p>À minha querida orientadora, Marinei Almeida, pelo voto de confiança, pela</p><p>força nos momentos em que os empecilhos pareciam maiores do que as minhas</p><p>possibilidades de lutar contra eles. Pelas orientações pontuais, descontraídas pelo</p><p>carinho dispensado a mim e o respeito com que sempre tratou o meu texto.</p><p>À Banca de Qualificação pelo olhar minucioso sobre esta tese, por terem</p><p>contribuído, significativamente, dando um direcionamento a esta pesquisa.</p><p>À professora Vera Lúcia da Rocha Maquêa pela acolhida quando cheguei ao</p><p>PPGEL, pelas aulas no mestrado que me abriram horizontes e pelas orientações</p><p>informais.</p><p>Aos professores e professoras do PPGEL, que contribuíram demasiadamente</p><p>para a bagagem intelectual adquirida nessa caminhada.</p><p>À minha amiga, irmã de alma, Claudia Carla Martins, pelas caminhadas</p><p>literárias, pelas mais que necessárias sugestões no meu texto, pelas discussões teóricas e</p><p>críticas tão prazerosas, por ter me ajudado a me reerguer quando, em alguns momentos,</p><p>as dificuldades se tonaram quase insuportáveis, por ter trilhado esse caminho e me</p><p>levado junto consigo.</p><p>Ao meu amigo, Celiomar Porfírio Ramos, um dos maiores presentes do PPGEL.</p><p>Obrigada pelas discussões literárias nos fins de semana, pelas sugestões de textos, pelo</p><p>ombro amigo, por estar presente até os últimos momentos.</p><p>À grande amiga, Rozenice Evangelista Sanches, por ter me cedido o ombro</p><p>amigo e tantas vezes me “chacoalhado” para que eu me apercebesse de que “as pedras</p><p>no caminho” precisavam ser removidas, pelas prosas literárias e pela leitura caprichosa</p><p>desta tese.</p><p>À minha irmã, Sibele Maria Gonçalves da Silva, por ter sempre acreditado em</p><p>mim e por ser essa pessoa amiga com quem posso contar, na minha família, para</p><p>falarmos sobre literatura e dividirmos as alegrias e tristezas da sala de aula.</p><p>À minha amiga-irmã, Rosimar da Silva, pela paciência à espera dos encontros</p><p>tão agradáveis, mas tantas vezes adiados.</p><p>Ao meu primo-irmão, Antônio José de Almeida Júnior, meu incentivador desde</p><p>a adolescência. Pessoa com quem tinha o prazer de estar nas férias, quando ainda muito</p><p>jovens, para partilharmos os nossos conhecimentos.</p><p>À confraria de mulheres da minha vida, meu suporte, amparo e porto seguro:</p><p>Judite, Simone, Sivoneide, Sibele, Deysianne, Dayanne, Danielly, Luzia e Maria Luíza.</p><p>Vocês renovam todos os dias as minhas forças para vencer os obstáculos que a vida me</p><p>impõe.</p><p>À Paulina Chiziane por suas “escrevivências” literárias me fazerem compreender</p><p>experiências vivenciadas na minha família que antes, para mim, eram ininteligíveis. Por</p><p>essa escrita que nos irmana e nos incentiva a lutar por um mundo mais humanizado e</p><p>menos hierárquico. Por ter contribuído para que, ao final da leitura de todos os seus</p><p>romances, eu percebesse a necessidade de ser mais engajada na luta contra a</p><p>“colonialidade do poder” (QUIJANO), a “colonialidade do ser” (MALDONADO-</p><p>TORRES) e a “colonialidade de gênero” (LUGONES). Por nos inserir nesse espaço,</p><p>por meio de suas narrativas, de mundos tão semelhantes e diferentes do nosso, nos</p><p>fazendo entender que a subalternidade da mulher e a inferiorização das pessoas negras</p><p>ultrapassam fronteiras e séculos, mas que a resistência irmanada é a melhor forma de</p><p>combate.</p><p>Às mulheres negras do meu país – cito apenas algumas que representarão todas</p><p>as que em lócus de enunciação fizeram/fazem também a resistência: Maria Firmino dos</p><p>Reis, Carolina Maria de Jesus, Lélia Gonzales, Sueli Carneiro, Conceição Evaristo,</p><p>Djamila Ribeiro, Carla Akotirene, Joice Berth, dentre tantas outras, que com a sua pena</p><p>guerrearam/guerreiam contra um sistema extremamente patriarcal, branco,</p><p>heterossexista e abriram/abrem para nós, mulheres negras, uma fissura no espaço das</p><p>letras, da literatura, sendo hoje gradativamente ampliada sem a possibilidade da volta.</p><p>À minha mãe, Judite Gonçalves da Silva, minha inspiração, pessoa com quem</p><p>aprendi muito cedo que a educação era a maior herança que poderia me deixar, por ser a</p><p>minha torcedora inveterada. Por sempre ter estado presente em minha vida escolar. Pelo</p><p>brilho nos olhos a cada sonho meu alcançado, com isso, sem perceber, me incentivava a</p><p>ir além.</p><p>Ao meu pai, Severino Felipe da Silva (in memoriam), por me fazer perceber a</p><p>importância da leitura desde cedo, por aquele abraço quando cheguei em casa dizendo</p><p>que tinha passado no vestibular. Pela torcida a cada passo dado no jogo da vida.</p><p>Aprendi, com o seu exemplo, que nunca devemos desistir dos nossos sonhos.</p><p>versão</p><p>da história que não é anunciada.</p><p>Outra “narradora de tradições”, como a intitula Santiago (2019, p. 112), é a</p><p>romancista Maria Bernadete Cipriano Roque, nasceu em Angônia, província de Tete,</p><p>Moçambique, em 20 julho de 1962. Publicou em 2008, em coautoria com o marido,</p><p>33</p><p>Carlos Roque, o romance Rainha do bem e a Escola de Iniciação – A Identidade, Vol I,</p><p>Colecção Aventuras na Tradição, editado pelo Centro de Estudos de Democracia e</p><p>Desenvolvimento (CEDE). Santiago acredita haver o volume II, mas não o encontrou. O</p><p>romance “narra processos tradicionais de iniciação de jovens e adolescentes femininas,</p><p>através da história da cerimônia de casamento, também com costumes, traços e ritos</p><p>tradicionais, da Donzela escolhida, personagem principal, a Rainha do Bem” (2019, p.</p><p>112).</p><p>Virgília Ferrão é outra romancista natural de Maputo, mencionada por Santiago</p><p>(2019, p. 196), nasceu em 3 de outubro de 1986, autora dos romances O Inspector de</p><p>Xindzimila, publicado em 2019, pela Editora Selo Jovem do Brasil e Romeu é Xincondo</p><p>e a Julieta é Machangana, em 2005, pela Imprensa Universitária de Maputo, com o</p><p>pseudônimo de Awaji Malunga.</p><p>O escritor brasileiro, Israel Neto, assim comenta o enredo do livro O Inspector</p><p>de Xindzimila:</p><p>O livro narra o retorno de Dionísio à pequena cidade de Xindzimila</p><p>para ocupar o cargo de inspetor, depois de longo tempo a estudar na</p><p>França e trabalhar na capital, ele retorna para ficar com a família e</p><p>devolver a sua terra mãe tudo que lhe foi dado, lá descobre o amor,</p><p>revê os amigos e entra numa bela de uma armadilha!13</p><p>O autor do trecho acima destaca que “o livro ainda nos apresenta alguns</p><p>costumes ancestrais do povo de Xindzimila, além de expressões e palavras das línguas</p><p>mães moçambicanas” (on-line). Fato memorável já que essa é uma das características da</p><p>literatura menor que veremos na próxima seção.</p><p>Em Romeu é Xincondo e a Julieta é Malunga, segundo o prefaciador Daniel da</p><p>Costa,</p><p>[...] a voz da reconciliação percorre toda a extensão do universo</p><p>ficcional criado por Awaji Malunga, constitui o seu pano de fundo.</p><p>Socorrendo-se criativamente da imortal lenda de Romeu e Julieta, a</p><p>autora explora velhas rivalidades étnicas e de família, revisita com</p><p>frescura os preconceitos sociais que imperam na actualidade e exerce,</p><p>com alma inquieta, a crítica dos costumes. Sobre a mentalidade</p><p>13 Israel Francisco do Nascimento Neto é escritor, educador e músico, atua e é cofundador do coletivo</p><p>Literatura Suburbana, no qual é editor da Coleção Literária Besouro. Participou de diversas antologias</p><p>literárias como Pretumel, Sobrenome Liberdade, Sarau da Brasa, Sarau Perifatividade, Gotas de Vinagre,</p><p>Sarau do Kintal, entre outros. Recebeu os prêmios Jovem Brasileiro, 2011, e Funarte Hip Hop em 2014.</p><p>Disponível em: http://israelneto.blogspot.com/2020/05/152020-o-inspetor-de-xindzimila-de.html.</p><p>11/05/2020. Acesso em: 15 out. 20.</p><p>http://israelneto.blogspot.com/2020/05/152020-o-inspetor-de-xindzimila-de.html.%2011/05/2020</p><p>http://israelneto.blogspot.com/2020/05/152020-o-inspetor-de-xindzimila-de.html.%2011/05/2020</p><p>34</p><p>mesquinha que domina o meio envolvente, Awaji Malunga levanta,</p><p>em rota de assumida colisão, a bandeira da união e do amor, com</p><p>muita fé e esperança (2005, p. 12).</p><p>De acordo com o que nos é apresentado pelo autor brasileiro Israel Neto e o</p><p>prefaciador moçambicano Daniel da Costa, inferimos que, nas narrativas de Virgília</p><p>Ferrão, a autora representa os costumes do seu povo, faz críticas a essas culturas quando</p><p>estão pautados em preconceitos sociais e denuncia os conflitos entre os nativos, porém</p><p>oportuniza refletir sobre uma possível reconciliação entre grupos étnicos rivais.</p><p>A escritora luso-moçambicana Natália Constâncio também contemplada nas</p><p>pesquisas de Ana Rita Santiago (2019, p. 213) é natural de Moçambique, mas cresceu</p><p>em Freixo de Espada-à-Cinta, em Portugal. Publicou as obras O Homem que vivia</p><p>dentro dos sonhos, em 2016, pelas Edições Colibri, com o pseudônimo, Dulcinéia; A</p><p>Súplica de D. Pedro, em 2014, bem como o livro infantil, intitulado Inês, a fada</p><p>Boneca: O Roubo das Letras e das Cores do Arco-íris, em 2015, ambos pela Chiado</p><p>Editora. “Tem publicado poemas em coletâneas de literatura portuguesa/lusófona</p><p>contemporânea”.14</p><p>E, finalmente, a escritora Paulina Chiziane15. Discorremos mais sobre essa</p><p>autora na subseção seguinte, visto que três dos seus romances são nossos objetos de</p><p>pesquisa.</p><p>Sobre os livros das escritoras moçambicanas mapeados por Ana Rita Santiago,</p><p>podemos dizer que, em sua maioria, as narrativas trazem as experiências e vivências das</p><p>mulheres em Moçambique ou fora do seu país. A pesquisadora denomina essas escritas</p><p>de mulheres moçambicanas geralmente como autobiográficas, todavia acreditamos que</p><p>podemos defini-las como “escrevivência”, por suas obras reunirem experiências da vida</p><p>dessas escritoras e do seu povo. Nossas conclusões estão pautadas nas reflexões da</p><p>escritora Conceição Evaristo, que cunhou esse termo, e afirma que “escrevivência surge</p><p>de uma prática literária cuja autoria é negra, feminina e pobre” (2020, p. 38). Essa</p><p>parece ser a realidade da maioria das escritoras moçambicanas e de diáspora</p><p>pesquisadas por Ana Rita Santiago. Para além de ser uma escrita pautada em suas</p><p>vivências, essas autoras, por meio de suas narrativas, se tornam “o agente, o sujeito da</p><p>14Encontramos essa informação no site intitulado Círculo de Escritores Moçambicanos na Diáspora.</p><p>Disponível em: http://cemd.orgfree.com/crbst_56.htm. Acesso em: 12 maio 2020.</p><p>15 A pesquisadora Ana Rita Santiago traz a escritora Paulina Chiziane na página 137 do seu livro</p><p>Cartografias em construção: algumas escritoras de Moçambique (2019). Optamos por deixá-la por último</p><p>já que é o nosso objeto de pesquisa.</p><p>http://cemd.orgfree.com/crbst_56.htm</p><p>35</p><p>ação, assume o seu fazer, o seu pensamento, a sua reflexão, não somente como um</p><p>exercício isolado, mas atravessado por grupos, por uma coletividade” (EVARISTO,</p><p>2020, p. 38).</p><p>Para Cristiane Côrtes, a ideia de juntar escrita e experiência de vida pode ser</p><p>vista em vários textos ligados à literatura contemporânea, porém é Conceição Evaristo</p><p>quem “se apropria do termo [escrevivência] para elucidar o seu fazer poético e lhe</p><p>fornece contornos conceituais” (CÔRTES, 2018, p. 52). Côrtes vê na escrevivência da</p><p>referida escritora “a criação de uma tradição que tece a dor num faz de conta</p><p>impactante, ascende os seus, joga luz onde só havia relampejos, dá voz ou inventa</p><p>formas de adentrar o silêncio daqueles que não se reconhecem na tagarelice da pós-</p><p>modernidade ainda cartesiana” (2018, p. 52). Reconhecemos atitude semelhante na</p><p>escrita de Paulina Chiziane.</p><p>No ensaio Gênero e Etnia: uma escre(vivência) de dupla face, Evaristo faz</p><p>uma explanação sobre a importância da escrita da mulher negra para, dentre outras</p><p>coisas, rasurar os vários estereótipos construídos contra essa mulher pela história oficial</p><p>brasileira e também pela literatura e elucida, de forma categórica, quão subversiva se</p><p>faz essa escrita. Como alguém que vivencia na pele essa experiência, Conceição</p><p>Evaristo preconiza:</p><p>assenhoreando-se “da pena”, objeto representativo do poder</p><p>falocêntrico branco, as escritoras negras buscam inscrever no corpus</p><p>literário brasileiro imagens de uma auto-representação. Surge a fala de</p><p>um corpo que não é apenas descrito, mas antes de tudo vivido. A</p><p>escre(vivência) das mulheres negras explicita as aventuras e as</p><p>desventuras de quem conhece uma dupla condição, que a sociedade</p><p>teima em querer inferiorizada, mulher e negra (EVARISTO, 2005, p.</p><p>204).</p><p>Consolida-se, assim, o conceito de escrevivência cujo interesse está para além</p><p>da literatura da mulher negra uma vez que abrange a escrita daqueles/as que estão à</p><p>margem da sociedade. Entendemos que</p><p>a reflexão acima cabe à escrita da mulher negra</p><p>de qualquer país assim como ao povo negro ou marginalizado, em geral, que foram</p><p>“sistematicamente esquecidos ou varridos para debaixo do tapete” (SAID, 2000, p. 28),</p><p>porém tiveram/têm a ousadia de tecer no papel as experiências de apagamento e</p><p>silenciamento por muitos séculos de história. Não à toa, a maioria dos/das escritores/as</p><p>marginalizados/as quando se propõem a manifestar a sua opinião com relação à</p><p>invisibilidade das minorias sociais o fazem a partir de sua própria vivência, como</p><p>36</p><p>observamos em Edward Said que, ao falar do compromisso do intelectual para</p><p>promover a paz e a justiça afirma:</p><p>Digo e escrevo estas coisas porque, depois de muita reflexão, são</p><p>aquilo em que acredito; e também quero persuadir outros deste ponto</p><p>de vista. Existe, por conseguinte, esta mistura bastante complicada</p><p>entre os mundos privado e público, a minha própria história, os meus</p><p>valores, escritos e posições que provêm da minha vivência, por um</p><p>lado e, por outro, a maneira como se integram no mundo social onde</p><p>as pessoas debatem e tomam decisões acerca da guerra, da liberdade e</p><p>da justiça (2000, p. 28, grifos nossos).</p><p>Percebe-se, portanto, que a escrita do povo negro se torna um ato político, de</p><p>acordo com as concepções do termo cunhado por Evaristo, pois a partir do momento</p><p>que essa experiência é posta em pauta, subverte uma “verdade” há muito tempo erigida</p><p>com o intuito de dar soberania a uma raça em detrimento da outra.</p><p>A propósito, o termo “escrevivência” tem sido explorado por vários/as</p><p>pesquisadores/as, em especial, das áreas de humanas e de linguagem. As pesquisadoras</p><p>Lissandra Vieira Soares e Paula Sandrine Machado (2017), por exemplo, veem o termo</p><p>como método de investigação, de produção de conhecimento e de posicionalidade</p><p>implicada, destacam que</p><p>escreviver significa contar histórias absolutamente particulares, mas</p><p>que remetem a outras experiências coletivizadas, uma vez que se</p><p>compreende existir um comum constituinte entre autor/a e</p><p>protagonista quer seja por características compartilhadas através de</p><p>marcadores sociais, quer seja pela experiência vivenciada, ainda que</p><p>em posições distintas (2017, p. 206).</p><p>Ademais, as escrevivências dessas escritoras permitem a transgressão do</p><p>silenciamento de povos subjugados na história e instiga mulheres e minorias sociais,</p><p>que vivem em situações semelhantes, a perceberem possibilidades de refletir, resistir,</p><p>consolidar estratégias de lutas e superar desafios por meio de vivências comuns e ações</p><p>coletivas. A escrita de Paulina Chiziane vem ao encontro do que Evaristo convencionou</p><p>denominar escrevivências, por ser uma escrita alicerçada em sua vivência e na</p><p>convivência com outras mulheres.</p><p>1.2 Paulina Chiziane: a voz que ganha protagonismo em Moçambique</p><p>A escritora Paulina Chiziane tem hoje publicadas dez obras, a saber: Balada de</p><p>amor ao vento (1990), Ventos do Apocalipse (1993), O Sétimo Juramento (2000),</p><p>37</p><p>Niketche: Uma História de Poligamia (2002), O alegre canto da perdiz (2018), As</p><p>andorinhas (2010), Na mão de Deus (2012), produzida em coautoria com a médium</p><p>natural de Maputo, Maria do Carmo, Por quem vibram os tambores do além (2013), As</p><p>cicatrizes do amor (2007), e Ngoma Yethu: o curandeirismo e Novo Testamento, obra</p><p>produzida com Mariana Martins e publicada em 2018 e O canto dos escravizados</p><p>(2018).</p><p>Por ter trabalhado pela Cruz Vermelha, no período da guerra civil16 em</p><p>Moçambique, a escritora andou por várias regiões do seu país. Esse episódio, embora</p><p>tenha deixado marcas indeléveis em sua vida, proporcionou-lhe conhecer várias</p><p>culturas, porém é a convivência, em especial, com as mulheres moçambicanas que lhe</p><p>dá inspiração para a escrita de suas obras. Quando publica Balada de amor ao vento, em</p><p>uma de suas primeiras entrevistas, afirma: “Na minha obra, ficção e realidade caminham</p><p>de mãos dadas. Escrevo a realidade do meu mundo com todos os seus prazeres, mágoas,</p><p>tristezas e frustrações” (CHIZIANE, 1998, p. 973). Sabemos que esse real não pode ser</p><p>lido de forma literal, já que a obra de arte não traz um retrato fidedigno da sociedade,</p><p>mas um recorte dessa realidade sob a perspectiva do/a escritor/a, seu ponto de vista,</p><p>neste caso, o de Paulina Chiziane que se pauta em seu contexto histórico-social para a</p><p>construção das suas “escrevivências”.</p><p>A figura feminina, principal tema de suas narrativas, leva-a a abordar assuntos</p><p>que dizem respeito à condição da mulher em Moçambique, por causa disso a autora,</p><p>muitas vezes é criticada, pois toca em temas ainda considerados tabus pela tradição. A</p><p>escrita de Chiziane torna-se assim um meio de problematizar a realidade social, por</p><p>meio da ficção, porém sente-se incompreendida pelo seu povo, como afirma em</p><p>entrevista a José Maria Remédios, em 2016:</p><p>[...] Quando escrevi Balada de Amor ao Vento, surgiram vozes a dizer</p><p>que não deveria escrever sobre mitos. Publiquei o Sétimo juramento, o</p><p>fogo foi maior. Já me chamaram romancista, disse que não era;</p><p>chamaram-me feminista, disse que não; chamaram-me espiritista,</p><p>disse que não; chamaram-me curandeirista, disse que não; quer dizer,</p><p>cada vez que faço um trabalho, há sempre uma reação. [...]</p><p>Resumindo, a nossa sociedade não sabe lidar com quem escreve de</p><p>forma diferente. Infelizmente, nos países recém-independentes, a</p><p>16 Após a independência do país, houve uma guerra civil pelo poder entre os partidos RENAMO</p><p>(Resistência Nacional Moçambicana) e FRELIMO (Frente Nacional Moçambicana) que perdurou até</p><p>1992.</p><p>38</p><p>literatura ainda não é um espaço de liberdade. No meu caso, por</p><p>exemplo, tinha que escrever de acordo com as mil autoridades que o</p><p>país tem. É a igreja, a política ou as pessoas, tenho de as escrever</p><p>bonitas porquê? Quero a liberdade de poder mostrar a sociedade o</p><p>lado positivo e negativo das coisas e não escrevo para agradar a</p><p>ninguém (CHIZIANE, 2016, n.p).</p><p>A despeito de todas as tentativas de cerceamento ao seu fazer literário, a autora</p><p>tende a quebrar as correntes que insistem em aprisioná-la. Suas narrativas se tornam</p><p>mais ousadas à medida que a escritora ganha autonomia e, como ela mesma afirma, em</p><p>entrevista a Michel Laban, sua escrita se torna um espaço de liberdade ainda que</p><p>“apenas entre quatro paredes” (1998, p. 991). Contudo, acreditamos que o conjunto da</p><p>obra da referida escritora aqui em estudo pode desempenhar “mudança de uma certa</p><p>ordem na sociedade”, (CANDIDO, 2014, p. 55), uma vez que traz à luz temáticas ainda</p><p>não resolvidas em seu país. Logo, engana-se a escritora quando afirma que a sua</p><p>liberdade se limita a “quatro paredes”, pois gradativamente se desprende das amarras do</p><p>patriarcalismo e da cultura tradicional moçambicana e, por meio de suas personagens</p><p>femininas, delineia um outro lugar para a mulher nesse contexto. Da entrevista dada a</p><p>Michel Laban até os dias atuais, Chiziane já percorreu um longo caminho e demonstra</p><p>em cada livro publicado, em cada entrevista dada o quanto tem conquistado autonomia e</p><p>liberdade.</p><p>A escritora assume, portanto, o papel de intelectual tal qual aqueles homens e</p><p>mulheres africanos/as que no século XX e XXI exerceram “influência sobre a opinião</p><p>pública em relação a fatos tais como o colonialismo, a decolonização ou os Estados e as</p><p>questões sociais emergentes no pós-independência, interpretando as realidades do</p><p>continente” (CARVALHO FILHO; NASCIMENTO, 2018, p. 28). Sílvio de A.</p><p>Carvalho Filho e Whashington Santos Nascimento enfatizam a importância desses/as</p><p>intelectuais quando no “após-independência denunciaram o autoritarismo, o</p><p>subdesenvolvimento e as relações de classe e gênero, alimentados por relações</p><p>desiguais” (2018, p. 20). As temáticas abordadas pelos pesquisadores permeiam todos</p><p>os romances da escritora, no entanto, o seu foco principal são as relações desiguais de</p><p>gênero. Já no romance</p><p>O alegre canto da perdiz (2018), para além de denunciar as</p><p>questões de gênero, a escritora demonstra por meio da narrativa, quão danosa foi a</p><p>miscigenação, “muitas vezes forçada por meio do estupro”, para a população</p><p>moçambicana, sobretudo na Zambézia.</p><p>39</p><p>Escritora engajada nas causas da mulher17, Chiziane, assim como os/as</p><p>intelectuais próprios/as dessa realidade, se apropria de teorias e metodologias ocidentais</p><p>as hibridiza com outras provenientes do continente africano, trazendo à luz uma</p><p>narrativa típica de escritores/as que se relacionam com vários grupos e que representam,</p><p>por vezes, as diversas categorias. A pesquisadora Nilma Lino Nunes, ao falar de</p><p>pesquisadores e pesquisadoras brasileiros/as que vêm de diferentes grupos sociais e</p><p>étnicos/raciais afirma que</p><p>esses/as são intelectuais, mas um outro tipo de intelectual, pois</p><p>produzem um conhecimento que tem como objetivo dar visibilidade a</p><p>subjetividades, desigualdades, silenciamentos e omissões em relação a</p><p>determinados grupos sócio-raciais e suas vivências (2009, p. 421).</p><p>Nunes acrescenta ainda que</p><p>ele não é um porta-voz, mas um sujeito que explicita o seu</p><p>pertencimento a um grupo historicamente excluído do lugar de</p><p>produtor de ciência e que carrega esse mesmo grupo na sua voz, no</p><p>seu corpo, na sua forma de ler, interpretar e produzir conhecimento</p><p>(2009, p. 431).</p><p>Entendemos que essa é a realidade da maioria dos/as intelectuais oriundas dos</p><p>países colonizados e periféricos no mundo. A escrita de Paulina Chiziane vai ao</p><p>encontro das proposições dos pesquisadores mencionados acima. É visível em seus</p><p>romances a intenção de dar visibilidade à mulher moçambicana e ao racismo enfrentado</p><p>pelos/as negros/as e mestiços/as em seu país.</p><p>As narrativas de Chiziane transitam entre a modernidade e a cultura tradicional,</p><p>o rural e o urbano. Abarcando boa parte das regiões de Moçambique, em seus romances,</p><p>a escritora faz denúncias contundentes contra o racismo, a segregação racial proveniente</p><p>do colonialismo e a condição da mulher – traços comuns dos intelectuais africanos.</p><p>Ainda assim, grande parte de suas narrativas sinalizam para uma mediação cultural a</p><p>despeito de todos os conflitos existentes em seu país.</p><p>As temáticas discutidas pela escritora, em seus romances e em seus textos de</p><p>opinião, fazem-nos inseri-la também na categoria de intelectual defendida por Edward</p><p>Said, o qual afirma: “o propósito da atividade do intelectual é promover a liberdade</p><p>humana e o conhecimento” (2000, p. 32), para isso o intelectual deve estar “ao lado dos</p><p>17 Paulina Chiziane “atualmente presta consultoria ao desenvolvimento de projetos de ajuda internacional</p><p>com foco em conflitos e defesa dos direitos das mulheres”. Disponível em:</p><p>https://www.ufrgs.br/africanas/paulina-chiziane-1955/. Acesso em: 20 abril 2021.</p><p>https://www.ufrgs.br/africanas/paulina-chiziane-1955/</p><p>40</p><p>fracos e dos que não têm representação” (2000, p. 35). Segundo o crítico, não se pode</p><p>falar de intelectual hoje de uma forma tão genérica como anteriormente, visto que houve</p><p>a descentralização da Europa e do Ocidente com o “desmantelamento dos grandes</p><p>impérios coloniais após a Segunda Guerra Mundial reduzindo assim a sua capacidade</p><p>para iluminar intelectual e politicamente as então denominadas zonas obscuras do</p><p>planeta” (2000, p. 37). Alega ainda que a aceleração das formas de viajar bem como dos</p><p>meios de comunicação “criou uma nova consciência do que veio a chamar-se de</p><p>‘diferença’ e ‘alteridade’” (2000, p. 37), portanto,</p><p>falar sobre intelectuais hoje em dia implica abordarmos</p><p>especificamente variantes nacionais, religiosas e mesmo continentais</p><p>deste tópico, parecendo cada uma das quais exigir considerações</p><p>distintas. Os intelectuais africanos ou árabes, por exemplo, inserem-se,</p><p>uns e outros, num contexto histórico muito particular, com os seus</p><p>próprios problemas, patologias, triunfos e peculiaridades (SAID,</p><p>2000, p. 37).</p><p>Retomamos as considerações de Nilma Lino Gomes que, em suas pesquisas</p><p>voltadas para os intelectuais brasileiros, observa:</p><p>O desafio desse grupo de intelectuais está na abertura do olhar da</p><p>ciência e de grupos que ocupam espaços de poder e decisão no campo</p><p>da pesquisa científica para que enxerguem a realidade social para além</p><p>do socioeconômico e compreendam o peso da cultura, das dimensões</p><p>simbólicas, da discriminação, do preconceito, da desigualdade racial,</p><p>de gênero e da orientação sexual na vida dos sujeitos sociais. Tal</p><p>desafio está, também, no entendimento de que não há como</p><p>hierarquizar desigualdades. Ou seja, toda e qualquer forma de</p><p>desigualdade precisa ser superada. Esse grupo de intelectuais desafia a</p><p>ciência a entender as imbricações das dimensões socio-econômicas,</p><p>culturais e não de hierarquizá-las (2009, p. 421).</p><p>Diante do exposto, podemos dizer que os intelectuais comprometidos com as</p><p>pautas sociais tendem a confluir em um mesmo discurso, buscando dar visibilidade a</p><p>esses que por muito tempo foram descritos pelo olhar branco europeu como o “Outro”.</p><p>Com base nas considerações de Lino (2009), destacamos ainda que esses sujeitos</p><p>produzem conhecimento de alguém que vivencia o racismo, as desigualdades raciais, de</p><p>gênero e tantas outras, em sua trajetória pessoal e coletiva.</p><p>Paulina Chiziane, como uma boa contadora de história, como ela mesma se</p><p>denomina, transita entre os intelectuais que, também, edifica a cultura moçambicana</p><p>quando aproxima os seus romances das narrativas orais, dos provérbios e das lendas</p><p>41</p><p>populares do seu país, ou seja, embora critique muitos dos costumes tradicionais,</p><p>valoriza aquilo que considera triunfo da cultura, como subjetivamente faz em Niketche,</p><p>por exemplo.</p><p>Após ter lançado, Balada de amor ao vento, ainda em entrevista a Michel</p><p>Laban (1998), diz que pretende tornar visíveis as causas da mulher moçambicana,</p><p>acentua que, até então, só quem escrevia eram os homens, que se limitavam a falar dos</p><p>colonos, de mulher pouco ou nada falavam e, quando se manifestavam sobre elas, só a</p><p>opinião deles prevalecia. Salienta ainda: “no meio em que eu vivo, existe a opinião de</p><p>que a mulher é um ser que se deve submeter aos desejos e aos princípios que o homem</p><p>determina (CHIZIANE, 1998, p. 984). Mas, “ao assenhorar-se da Pena” (EVARISTO,</p><p>2003), Paulina Chiziane rasura a sociedade patriarcal – alicerçada na tradição</p><p>moçambicana e reafirmada pela cultura colonial portuguesa – em que está inserida por</p><p>colocar em evidência histórias de mulheres que vivem em condições subalternas com</p><p>relação ao homem, e por representar, em seus romances, conflitos vivenciados no</p><p>espaço privado e na esfera pública como a convivência entre os negros, mestiços e</p><p>brancos, experienciada, após a colonização.</p><p>Segundo Chiziane, essa realidade é muito presente, principalmente, na</p><p>Zambézia, uma sociedade cindida pelos conflitos instaurados no período colonial, como</p><p>veremos no romance O alegre canto da perdiz, cuja personagem protagonista, Delfina,</p><p>tem um casal de filhos negros e outro, de mestiços. Ela discrimina os filhos negros e</p><p>trata com deferência os mestiços. Quando questionada sobre esses conflitos em seu país,</p><p>a escritora responde:</p><p>Ali [na Zambézia] foi onde eu aprendi que o mestiço ou o mulato é</p><p>um indivíduo sempre numa situação de desconforto, sempre à busca</p><p>de uma identidade. Quando está com os negros, é tratado de uma</p><p>maneira; quando está com os brancos, é tratado de outra maneira. Ele</p><p>sozinho tem de criar o seu próprio mundo. Criam-se assim grupos de</p><p>mestiços. Há casos de filhos de negras com brancos que se dissociam</p><p>da mãe negra e se juntam ao seu grupo mestiço. A maior parte dessas</p><p>pessoas mestiças nasce de uma violação ou de uma relação adúltera,</p><p>nunca de uma relação socialmente aceitável. Isso, perante os brancos,</p><p>cria uma certa discriminação, e perante os negros também. O mulato é</p><p>um indivíduo que</p><p>vive um dilema de identidade. Na Zambézia, como</p><p>são muitos, começam a criar a sua própria identidade. Mas sempre</p><p>oscila entre o preto e o branco (CHIZIANE, 2014, n/p).</p><p>A escritora se pauta em sua vivência para elaborar suas narrativas, e ao fazer</p><p>isso, coloca à luz, por meio da ficção, histórias de opressão, submissão e subjugação dos</p><p>42</p><p>que estão à margem. Aciona problemas vivenciados não apenas em Moçambique, mas</p><p>em várias partes do mundo, em especial aqueles países que foram explorados,</p><p>violentados pelos colonizadores portugueses, assim como propõe que conflitos velados</p><p>sejam trazidos à tona e debatidos para que assim possam ser resolvidos ou amenizados.</p><p>Nas “escrevivências” de Paulina Chiziane, as mulheres moçambicanas ganham</p><p>protagonismo pelas mãos da escritora que hoje, nesse país, tem o poder da escrita e de</p><p>se fazer ouvir. Não pretende trazer rupturas radicais, mas problematizar as questões de</p><p>gênero e desigualdades sociais na tentativa de tornar possível uma história em que a</p><p>mulher, dentre outras coisas, tenha mais autonomia e que seus direitos sejam, de fato,</p><p>garantidos. Suas escrevivências trazem, portanto, “um modelo de escrita sobre histórias</p><p>silenciadas, negadas e vilipendiadas” (BORGES, 2020, p. 189).</p><p>Em entrevista a Michel Laban, a escritora evidencia a dificuldade de romper</p><p>com a realidade posta. Quando é questionada sobre o fato de a personagem Sarnau</p><p>terminar com o companheiro Mwando mesmo depois de ter sido abandonada por ele</p><p>várias vezes, Chiziane pontua:</p><p>Realmente, na vida prática, todas as grandes lutadoras pela liberdade</p><p>da mulher acabam como acabou no livro. E, eu comecei a dizer: vou</p><p>escrever o ideal ou o real? E acabei no real. Mas, de facto, o meu</p><p>princípio foi esse: há muitas mulheres que quando são mais novas,</p><p>falam, gritam pela liberdade, mas o peso da própria sociedade acaba</p><p>vencendo quase sempre. Não sei se existem casos de mulheres nesta</p><p>sociedade que sustentaram os seus ideais até ao fim. A mulher que</p><p>defende esses ideais vai sendo marginalizada dentro do próprio</p><p>sistema social. Quando a mulher já é muito mais experiente, sente que</p><p>não ganha muito com a marginalidade e acaba entrando dentro do</p><p>esquema da sociedade. Foi mais ou menos por isso que eu dei aquele</p><p>fim (1998, p. 985).</p><p>Observemos que, em suas narrativas, não há uma ruptura radical à ordem</p><p>posta, porém na resposta da escritora ao entrevistador, há um tom de denúncia da</p><p>realidade social em que vivem essas mulheres. A escritora demonstra o quanto são</p><p>cerceadas quando tentam quebrar paradigmas e o quanto muitas delas desistem da luta</p><p>por serem relegadas à margem. Na contramão dessa realidade, Chiziane torna sua</p><p>literatura uma “arma para desconstruir toda a mentira histórica que vem sendo</p><p>produzida em todas as bibliotecas do mundo” (CHIZIANE, 2016, n.p) sobre parte do</p><p>continente africano.</p><p>43</p><p>Há, na escrita de Paulina Chiziane, um projeto estético/político que se propõe a</p><p>rasurar a visão estereotipada da mulher moçambicana como um ser submisso, fadado</p><p>aos serviços domésticos e a aceitação de tudo que lhe é imposto pela cultura tradicional</p><p>de seu país. Vai além, uma vez que denuncia também as condições de vida após o</p><p>processo de colonização.</p><p>A literatura de Paulina Chiziane vem ao encontro do que Deleuze e Guattari</p><p>denominam literatura menor, pois, além de ter que escrever em uma outra língua que</p><p>não é a sua de origem – uma das característica dessa literatura – a sua escrita toma um</p><p>valor coletivo, por se encarregar do papel e da função de “enunciação coletiva, e mesmo</p><p>revolucionária: é a literatura que produz uma solidariedade ativa, malgrado o</p><p>ceticismo” (DELEUZE; GUATTARI, 2017, p. 37, grifos nossos), que tem “condição de</p><p>exprimir uma outra comunidade em potencial, de forjar os meios de uma outra</p><p>consciência e de uma outra sensibilidade” (2017, p. 37).</p><p>Considerando que, para Deleuze e Guattari (2017, p. 35), a literatura menor</p><p>não é a de uma língua menor, mas antes a que uma minoria faz em língua maior e que</p><p>sua característica primeira se dá por a “língua ser afetada de um forte coeficiente de</p><p>desterritorialização”, destacamos que a escritora, assim como Kafka – a quem os</p><p>filósofos acima fazem referência para exemplificar o conceito de desterritorialização da</p><p>língua –, por ter como língua de origem o chope e o ronga, se apropria da língua, –</p><p>antes pertencente ao colonizador – desterritorializando-a, à medida que, ao narrar suas</p><p>histórias, entrelaça-as de vocábulos próprios de sua cultura de origem e, para além</p><p>disso, torna-a um veículo de denúncia das sequelas do período colonial e presentes até</p><p>os dias atuais.</p><p>A dominação colonial portuguesa deixou marcas profundas em seu povo,</p><p>inclusive quando lhes impunha uma língua, que antes não lhes pertencia. Isso fica</p><p>registrado quando a autora fala para Michel Laban (1998) sobre os conflitos vividos por</p><p>ela pelo fato de ter que falar a língua portuguesa na escola enquanto em casa falava</p><p>chope e na rua com os amigos, ronga.</p><p>Quando começo a ir para a escola, tenho o primeiro contato com o</p><p>português. O meu pai nunca permitiu que se falasse português em</p><p>casa. Não aceitava. Ele considerava que nós tínhamos obrigação de</p><p>conhecer a nossa própria língua (CHIZIANE, 1998, p. 977).</p><p>Quando é questionada sobre a resistência do pai, complementa:</p><p>44</p><p>Esta situação surge da resistência ao colonialismo porque o meu pai,</p><p>muito novo, trabalhou no xibalo [...] era o trabalho forçado a que os</p><p>moçambicanos eram submetidos.</p><p>Por outro lado, na aldeia em que ele estava, muitos dos seus amigos,</p><p>familiares, desapareceram e não se sabe se foram para São Tomé, se</p><p>foram para qualquer outra parte do mundo [...].</p><p>Então o meu pai tinha uma espécie de ódio aos portugueses, racismo,</p><p>tudo isso. Ele sofria os seus recalcamentos. Para ele, a língua</p><p>portuguesa significava o colonialismo e tudo isso. Então ele nunca</p><p>quis que falássemos a língua portuguesa em casa (1998, p. 979).</p><p>Se para o pai da escritora a resistência ao colonialismo se fez não permitindo</p><p>que a língua portuguesa adentrasse no espaço do lar, para ela, essa resistência é feita</p><p>dominando-a, apropriando-se dela, também como sua, e utilizando-a como artefato de</p><p>denúncia contra o domínio colonial português. Já que é impossibilitada de escrever em</p><p>sua língua, domina a do opressor para se fazer ouvir e assim convoca os seus para outras</p><p>formas de existência. Como assevera Sayonara Souza da Costa, “a imposição da língua</p><p>pode ser extremamente invasiva, pois pode prejudicar de maneira violenta a cultura e os</p><p>costumes de uma localidade”, contudo, “a assimilação da língua pode ser tratada por</p><p>outro aspecto, o uso da mesma para afrontar e enfrentar aquele que a impôs” (2019, p.</p><p>67). Costa observa que em Moçambique</p><p>agora a língua do opressor é utilizada para (re)contar a história, sem</p><p>medo de perseguições, do jeito que está na memória. A língua imposta</p><p>é agora um mecanismo de afirmação, a literatura é apenas um destes e</p><p>com seu poder de alcançar diversos outros lugares, fortalece ainda</p><p>mais este povo (2019, p. 67).</p><p>Registre-se ainda a impossibilidade de a língua do colonizador se manter a</p><p>mesma a partir do contato com as línguas do colonizado. Dessa forma, as línguas</p><p>portuguesas, se diversificam e se reconhecem em cada terra colonizada por Portugal,</p><p>permitindo, assim, diálogos profícuos entre elas.</p><p>As obras da escritora dão ideia de que suas narrativas levantam conflitos sobre</p><p>as duras realidades vivenciadas em Moçambique, mas geralmente afunilam para a</p><p>tentativa de resolução de tais conflitos. Isso pode ser contemplado nos seguintes</p><p>romances: Balada de amor ao vento, O alegre canto da perdiz, Niketche: uma história</p><p>de poligamia. Há um movimento de reconciliação entre as personagens que apontam</p><p>para um devir moçambicano – discutiremos melhor essa hipótese na terceira seção da</p><p>tese. A autora parece não ter a intenção</p><p>de acentuar os conflitos já existentes em seu</p><p>país, mas trazê-los para a ordem do dia para que sejam discutidos, como mencionado</p><p>45</p><p>acima. Nessa perspectiva podemos afirmar que a literatura de Paulina Chiziane “produz</p><p>sobre os indivíduos um efeito prático, modificando a sua conduta e concepção de</p><p>mundo, ou reforçando neles sentimentos de valores sociais (CANDIDO, 2014, p. 30).</p><p>Quando questionada por José Maria dos Remédios sobre o fato de suas obras</p><p>tentarem mostrar que é possível uma relação fértil entre a base do cume da pirâmide e o</p><p>poder, ela responde: “[...] há casos que encontro conflitos e ao descrever a oposição</p><p>entre as partes faço ver a quem lê que há uma necessidade de uma sociedade mais</p><p>equilibrada” (CHIZIANE, 2016, n.p). A consciência de desajuste social a leva a</p><p>escrever com o propósito de que a sua escrita avente outras possibilidades para o povo</p><p>moçambicano. Não à toa, suas narrativas se propõem a “dar voz às personagens</p><p>enfraquecidas para que o leitor desperte para a realidade da sua existência e reflita sobre</p><p>a sua condição” (CHIZIANE, 2016, n.p). A sua literatura torna-se assim</p><p>“agenciamentos coletivos de enunciação” (DELEUZE; GUATTARI, 2017, p. 38), uma</p><p>vez que parte de um caso individual para acionar vivências periféricas interseccionadas</p><p>por raça, classe e gênero.</p><p>Como um ser midiático, Chiziane tem consciência de que sua voz tem grande</p><p>alcance, talvez por isso, em suas entrevistas ou textos de opinião, sempre deixa em</p><p>evidência os conflitos vividos pelo seu povo bem como a condição da mulher em</p><p>Moçambique e no mundo. Como vemos em seu testemunho intitulado “Eu mulher...por</p><p>uma grande visão de mundo”, ao falar sobre o momento em que saiu do campo para a</p><p>cidade e foi estudar em uma escola católica:</p><p>Apesar das grandes diferenças na educação da casa e da escola,</p><p>encontrei harmonia na matéria que dizia respeito ao lugar da mulher</p><p>na vida e no mundo. A educação tradicional ensina a mulher a guardar</p><p>a casa e a guardar-se para pertencer a um só homem. A escola também</p><p>ensinava a obediência e a submissão e preparava as raparigas para</p><p>serem boas donas de casa, de acordo com o princípio cristão</p><p>(CHIZIANE, 2013, p. 201-202).</p><p>Partindo da sua experiência, Chiziane torna possível uma reflexão sobre outras</p><p>vivências que não se limitam apenas ao contexto moçambicano, mas a história de seres</p><p>humanos no mundo. Evidencia quão danosa foi a experiência da colonização em seu</p><p>país, quão necessária se faz a descolonização para que se possa acessar outros modos de</p><p>vida, e como uma sociedade pautada no binarismo sexual é prejudicial para ambos os</p><p>sexos. Neste propósito, entendemos que sua escrita, permeada de vozes silenciadas,</p><p>tende a rasurar o pretenso inabalável cânone literário uma vez que seus romances, sem</p><p>46</p><p>deixar a desejar na estética, trazem o ponto de vista da mulher sobre a mulher e sobre o</p><p>contexto colonial e pós-colonial até então narrado apenas por mãos masculinas.</p><p>Embora as escritoras moçambicanas se destaquem principalmente nos gêneros</p><p>conto e poesia, reivindicando um espaço de fala nesse país, e outras que despontam</p><p>como vimos na pesquisa de Ana Rita Santiago (2019), Paulina Chiziane se consolida</p><p>como romancista, por já ter uma produção literária considerável, sobretudo romances.</p><p>E, além de produzir textos de opinião, a escritora continua na ativa dando entrevistas.</p><p>Neste período pandêmico18 em que os eventos acadêmicos, em sua maioria, estão sendo</p><p>efetivados por meio de lives, a escritora participou de uma que ocorreu no dia vinte e</p><p>sete de março do corrente ano, no lançamento do documentário em sua homenagem,</p><p>intitulado “Paulina Chiziane: do mar que nos separa à ponte que nos une”19. Ademais,</p><p>há várias entrevistas dadas pela escritora nas redes sociais como também escritas,</p><p>publicadas em sites e revistas impressas. Essas constatações nos fazem crer que sua</p><p>presença no espaço literário moçambicano e internacional inaugura uma nova fase na</p><p>literatura moçambicana: a da mulher escritora romancista que fala da mulher, das suas</p><p>demandas, angústias, insatisfações e desejos. Faz desabrochar a escrita de outras</p><p>mulheres em seu país que como ela, sutilmente, ousam avançar para o espaço público e</p><p>abrir uma fissura nesse espaço, antes, demarcado majoritariamente por mãos</p><p>masculinas.</p><p>18 Em dezembro de 2019 a Organização Mundial de Saúde (OMS) foi alertada sobre vários casos de</p><p>pneumonia na cidade de Wuhan, província de Hubei, na República Popular da China. Foi constatado</p><p>depois de muitas pesquisas que se tratava de uma nova cepa do coronavírus batizada de COVID-19. Em</p><p>11 de março de 2020 a COVID-19 foi caracterizada pela OMS como uma pandemia, que assola o mundo</p><p>até os dias atuais. Informações adquiridas no site: https://www.paho.org/pt/covid19/historico-da-</p><p>pandemia-covid-19 com adaptações. Acesso em: 18 ago. 2021.</p><p>19 O documentário, produzido pelo diretor Renan Ramos Rocha, é sobre a produção da escritora</p><p>moçambicana e sua presença em Florianópolis (UFSC), em junho de 2019. O projeto foi idealizado pelas</p><p>professoras/pesquisadoras Eliane Debus e Maria Aparecida Rita Moreira. O lançamento do documentário</p><p>está disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Hv_1EfVCdJE&t=162s. Acesso em: 27 mar.</p><p>2020.</p><p>https://www.paho.org/pt/covid19/historico-da-pandemia-covid-19</p><p>https://www.paho.org/pt/covid19/historico-da-pandemia-covid-19</p><p>https://www.youtube.com/watch?v=Hv_1EfVCdJE&t=162s</p><p>47</p><p>2. O ENCARCERAMENTO FEMININO POR MEIO DE VÁRIOS SISTEMAS</p><p>DE PODER</p><p>[...] Sarnau, o homem é o Deus na terra, teu</p><p>marido, teu soberano, teu senhor, e tu serás a</p><p>serva obediente, escrava dócil, sua mãe, sua</p><p>rainha.</p><p>Paulina Chiziane (2016, p. 47)</p><p>Como vimos, as experiências traumatizantes por consequência do período</p><p>colonial e da luta pela independência de Moçambique se fazem presentes nas entrevistas</p><p>dadas por Paulina Chiziane, bem como em seus romances. Comumente, as</p><p>48</p><p>narradoras/protagonistas narram suas experiências, agenciam interesses comuns e</p><p>lançam o seu olhar sobre as relações entre homens e mulheres nos espaços urbanos e</p><p>rurais. A escritora parece transpor para suas personagens a própria experiência de vida.</p><p>De dona de casa, Paulina Chiziane delineia um caminho que a projeta para o cenário</p><p>público e torna audível não só a sua voz, mas a de muitas mulheres em seu país que</p><p>ainda se encontram em condições subumanas. As linhas entre realidade e ficção em seus</p><p>romances são muito tênues e as personagens femininas, tal qual a escritora, vivem na</p><p>luta para se libertar de um sistema de estrutura patriarcal e escreverem sua história.</p><p>Todavia, o cerceamento perpetrado pela cultura patriarcal é internalizado de tal</p><p>forma que, muitas vezes, são reproduzidos pelas personagens femininas como algo</p><p>natural, impossibilitando-as de fazer o enfrentamento à opressão a que são submetidas.</p><p>O matrimônio no romance é um dos modelos de representação da lógica patriarcal que</p><p>delimita os papéis sociais do homem e da mulher, ficando a cargo desta o sucesso ou</p><p>insucesso dessa investida. Na tentativa de preservar o seu status social ou a sua</p><p>dignidade como ser humano, muitas vezes, elas abrem mão da própria individualidade</p><p>para satisfazer a lógica sexista dominante.</p><p>Consideremos o fato de que, para Michel Foucault (1988), o poder usa de</p><p>várias estratégias para garantir o seu efetivo exercício. Consideremos ainda que isso</p><p>ocorre a partir de inúmeros pontos e meios desiguais e móveis, logo, para o filósofo,</p><p>não adianta buscarmos a equipe que preside sua racionalidade, nem a casta que a</p><p>governa, nem os grupos que controlam os aparelhos do Estado, pois a racionalidade do</p><p>poder encadeia-se entre si, “inovando-se e se propagando, encontrando</p><p>em outra parte</p><p>apoio e condição, esboçam finalmente dispositivos de conjunto” (FOUCAULT, 1998, p.</p><p>91). Foucault afirma ainda que “a lógica do poder surge de forma silenciosa como se</p><p>ninguém a houvesse concebido” (1998, p. 89). O poder é, portanto, uma rede de</p><p>relações de forças em que todos os indivíduos estão envolvidos sem que muitas vezes se</p><p>percebam como peça nesta engrenagem em que ora são executores ora, cumpridores.</p><p>Para Foucault, o poder não é algo que está em posição de exterioridade dos</p><p>processos econômicos, das relações de conhecimentos e relações sexuais, mas lhes são</p><p>imanentes, estes servem de suporte para que o poder seja de fato estabelecido. Sendo</p><p>assim todos os indivíduos estão entrelaçados pela rede do poder, logo</p><p>o poder deve ser analisado como algo que circula, ou melhor, como</p><p>algo que só funciona em cadeia. Nunca está localizado aqui e ali,</p><p>49</p><p>nunca está nas mãos de alguns, nunca é apropriado como uma riqueza</p><p>ou um bem. O poder funciona e se exerce em rede. Nas suas malhas os</p><p>indivíduos não só circulam, mas estão sempre em posição de exercer</p><p>este poder e de sofrer sua ação; nunca são alvo inerte ou consentido do</p><p>poder, são sempre centros de transmissão. Em outros termos, o poder</p><p>não se aplica aos indivíduos, passa por eles [...] O indivíduo é um</p><p>efeito de poder e simultaneamente, ou pelo próprio fato de ser um</p><p>efeito, é seu centro de transmissão. O poder passa através do indivíduo</p><p>que o constitui (FOUCAULT, 1998, p. 183-184).</p><p>As proposições de Foucault podem ser reiteradas com as considerações do</p><p>sociólogo francês Pierre Bourdieu quando, ao analisar a dominação simbólica</p><p>masculina, afirma: “a ordem social funciona como uma imensa máquina simbólica que</p><p>tende a ratificar a dominação masculina sobre a qual se alicerça” (2017, p. 22-24). Nos</p><p>romances aqui propostos como objeto de estudo, é visível as várias estratégias de poder</p><p>que tornam possíveis a hegemonia da autoridade patriarcal.</p><p>Dado o fato de que, para Foucault, o poder é algo que circula, que funciona em</p><p>cadeia, nesta seção, refletimos sobre os dispositivos de poder que tornam possíveis a</p><p>manutenção da cultura patriarcal, nos três romances, Balada de amor ao vento, Niketche</p><p>e O alegre canto da perdiz; quais as contribuições das personagens femininas para</p><p>respaldar o poder simbólico masculino e quais as instâncias de poder que contribuem</p><p>para tornar possível essa empreitada. Considerando que, durante séculos, as mulheres</p><p>vivem sob o jugo do patriarcado, é compreensível que, algumas personagens femininas</p><p>de Paulina Chiziane estabeleçam uma relação opressiva com as demais, visto que foram</p><p>educadas nessa estrutura social e, muitas vezes, não conseguem vislumbrar outra forma</p><p>de educação senão a que receberam de suas ancestrais. Vale salientar que, geralmente,</p><p>são as mais novas que demonstram insatisfação ao silenciamento a que são submetidas e</p><p>buscam novas estratégias de sobrevivência.</p><p>2.1 Balada de amor ao vento: a manutenção do patriarcado em rede</p><p>Balada de amor ao vento (2016) é o primeiro romance da escritora a ser</p><p>publicado. Ambientado no espaço rural, o início da narrativa se dá com a</p><p>narradora/protagonista Sarnau acessando a memória do passado para preencher a vida</p><p>presente, plena de ausências e de caos. À medida que ela descreve o espaço em que</p><p>vive, o/a leitor/a é inserido/a em um cenário revelador da condição feminina como ser</p><p>que está fadado à submissão e à invisibilidade.</p><p>50</p><p>Impedida de viver com seu amado Mwando, Sarnau faz uma trajetória de</p><p>sacrifícios para realizar-se como mulher, que satisfaça o que almeja a tradição, casa-se</p><p>com o filho do rei da aldeia, Nguila. O casamento é feito, como manda a tradição, por</p><p>meio do lobolo20. Em entrevista a Tiago Ribeiro dos Santos, publicada em 2018,</p><p>Paulina Chiziane explica o lobolo como um ritual que tem duas componentes da qual a</p><p>maior é a espiritual, que</p><p>para se realizar, a família da mulher que vai ser lobolada se ajoelha em</p><p>frente a árvore, aliás, debaixo da árvore, e leva as prendas dos mortos,</p><p>que são farinha, um pouco de bebida, uma galinha, panos e outras</p><p>coisas, alguns pequenos dinheiros, podem ser até moedas. [...] A</p><p>cerimônia do Lobolo começa com uma invocação espiritual [...].</p><p>Nunca se recebe a prenda, ou o dinheiro, ou o pagamento, sem nunca</p><p>se fazer essa cerimônia. Então, o dinheiro e as prendas que vêm são</p><p>para agradecer aos que já morreram (2018, p. 8).</p><p>A perspectiva de Paulina Chiziane sobre o lobolo, é muito explorada neste</p><p>romance, contudo, a escritora o aborda, trazendo as várias configurações que tal ritual</p><p>ganha na atualidade.</p><p>A noiva casada por meio deste ritual tem que corresponder ao que espera a</p><p>família do marido, afinal é fruto de uma sociedade – como tantas outras – que impõe</p><p>papéis sociais à mulher, com o propósito de engessá-la na vida de domésticas e mães de</p><p>família. Para garantir que tudo ocorra de acordo com o esperado, durante os</p><p>preparativos para o casamento, suas ancestrais aconselham-na. Em suas falas, há um</p><p>tom de tristeza incompreendido pela narradora/protagonista, que ingenuamente parece</p><p>embevecida pelo fato de casar com Nguila, “o homem mais desejado por todas as</p><p>fêmeas do território” (CHIZIANE, 2003, p. 45). Em contraposição à felicidade da</p><p>jovem, suas ancestrais revivem mágoas do passado que se repetirão na vida de Sarnau e,</p><p>20 De acordo com o pesquisador Rhuann Fernandes, “o lobolo pode ser entendido como um casamento</p><p>costumeiro e recorrente no Sul de Moçambique, uma prática tradicional que envolve o kulovola (significa</p><p>dar bens à família da noiva para realizar uma união reconhecida entre os parentes do noivo e os parentes</p><p>da noiva). Apoia-se na dinâmica, transformando-se e reinventando-se ao longo dos tempos pelas</p><p>interações sociais dos indivíduos decorrentes dos processos socioeconômicos. Uma prática que se</p><p>generalizou culturalmente na sociedade moçambicana e que hoje, de acordo com as famílias que o</p><p>praticam e a região do país, assume diversos contornos, podendo estar inserido no conflito entre a</p><p>‘tradição’, o sincretismo religioso e os valores ocidentais ‘modernos’”. Disponível em:</p><p>https://revistas.ufpr.br/campos/article/view/63709/pdf. Acesso em: 14/04/21. No artigo intitulado O</p><p>lobolo e suas narrativas... (2020), Rhuann Fernandes observa que esse ritual, embora tenha sido proibido</p><p>no período colonial assim como no pós-independência – pela FRELIMO –, sempre foi praticado nas</p><p>cerimônias de casamento, até que foi reconhecido por lei “a partir da promulgação da Lei da Família, em</p><p>2004. [...] Contudo para a sua celebração e reconhecimento, é necessário ter alguém de capacidade</p><p>matrimonial exigida na lei civil”. Disponível em:</p><p>https://revistas.uneb.br/index.php/africas/article/view/9417. Acesso em: 15 abr. 21.</p><p>https://revistas.ufpr.br/campos/article/view/63709/pdf.%20Acesso%20em:%2014/04/21</p><p>https://revistas.uneb.br/index.php/africas/article/view/9417</p><p>51</p><p>provavelmente, na de suas descendentes. Na tentativa de amenizar o sofrimento</p><p>iminente da jovem noiva, elas aconselham-na: “Não ligues importância às amantes que</p><p>tem; respeita as concubinas do teu senhor, elas serão tuas irmãs mais novas e todas se</p><p>unirão à volta do mesmo amor. Sarnau, ama o teu homem com todo o coração” (2003,</p><p>p. 48).</p><p>Os conselhos das ancestrais não correspondem às expectativas da jovem noiva</p><p>que não vê problema em se casar com um homem que pode ter outras mulheres. Afinal,</p><p>o fato de viver um casamento polígamo, no primeiro momento, parece ser muito</p><p>tranquilo para a jovem noiva, pois quando descobriu que o seu primeiro amor, Mwando,</p><p>iria se casar com uma mulher cristã e de situação financeira abastada, Sarnau se</p><p>ofereceu para ser a segunda esposa dele. No entanto, veremos que quando isso se torna</p><p>realidade em seu casamento com Nguila o impacto na vida da recém-casada é</p><p>estarrecedor.</p><p>A felicidade da jovem diante do casamento, em contraposição à tristeza da mãe</p><p>e das mulheres que a preparam para a cerimônia, evidencia como está internalizada a</p><p>ideia de que o casamento é a grande realização para uma jovem moçambicana,</p><p>representada na personagem Sarnau. Ainda que não conheça o noivo, o fato de começar</p><p>uma nova vida, depois de ter vivido uma decepção amorosa com Mwando, lhe dá a</p><p>possibilidade de novamente sonhar. Entretanto as vozes femininas, ao aconselhá-la,</p><p>parecem não corresponder com o sentimento de Sarnau. Esta não compreende, pois, é</p><p>jovem e, como tal, vive as ilusões próprias desse período da vida e a certeza, no seu</p><p>imaginário, de que os sonhos que lhe foram internalizados pela sociedade patriarcal em</p><p>que vive serão realizados. Acreditamos que, como fruto do meio, a personagem não tem</p><p>consciência de que talvez esse não seja o seu desejo e que apenas reproduz aquilo que</p><p>lhe foi imposto como única saída para uma jovem mulher nesse contexto.</p><p>As mães21 e avós de Sarnau têm consciência de tudo o que ela irá passar, mas</p><p>em nenhum momento, demonstram que pretendem subverter a ordem posta, repassam o</p><p>que aprenderam, acreditam estar seguindo o curso natural da vida. A construção social</p><p>as impede de qualquer movimento de subversão, por isso optam por ensinar às filhas a</p><p>submissão, assim garantem segurança econômica para as descendentes, por meio do</p><p>casamento, e afastam a possibilidade de um divórcio, pois caso isso aconteça, terão que</p><p>devolver à família do noivo os bens que foram adquiridos pela família da noiva por</p><p>21 Termo utilizado pela personagem Sarnau.</p><p>52</p><p>meio do lobolo. Além disso, ela se constituirá um peso para a própria família, já que não</p><p>ficarão bem vistos e ela será desprezada pela aldeia.</p><p>A escritora, em suas narrativas, coloca em xeque o casamento por ser uma das</p><p>formas de aprisionar a mulher aos papéis sociais legitimados pela sociedade e</p><p>retroalimentados pelas práticas cotidianas de controle e intimidação. Põe ainda em</p><p>discussão o fato de a noiva ser devolvida se não conseguir gerar filhos ou filhas. Não se</p><p>questiona se o problema está no homem, ele está isento de qualquer julgamento, uma</p><p>vez que os seus privilégios, apenas pelo fato de ter nascido homem, torna-o blindado na</p><p>sociedade sexista. Enquanto a mulher objetificada nessa relação é alvo de toda a sorte</p><p>de julgamento, afinal</p><p>não se compra uma mulher para trazer prejuízos à família, antes pelo</p><p>contrário, o lobolo é uma troca de rendimentos. Mulher lobolada tem a</p><p>obrigação de trazer filhos para o marido e os pais deste. Deve parir</p><p>filhos, de preferência varões, para engrandecer o nome da família</p><p>(CHIZIANE, 2016, p. 70).</p><p>Lembremo-nos de que o lobolo não se limita a doações de presentes para a</p><p>família da noiva como vimos no início desta subseção, ainda assim, a</p><p>narradora/protagonista evidencia também essa questão, como sendo o alter ego da</p><p>escritora, problematizando a condição da mulher em Moçambique objetificada na</p><p>relação matrimonial e, praticamente, impossibilitada de reivindicar direitos ou de se</p><p>rebelar contra esse sistema cuja consolidação se dá, muitas vezes, pelas próprias</p><p>mulheres. Reiteramos a nossa reflexão com o que diz o sociólogo Pierre Bourdieu sobre</p><p>a dominação masculina perpetrada pelas mãos do dominado:</p><p>quando os dominados aplicam àquilo que os domina esquemas que</p><p>são produto da dominação, ou, em outros termos, quando seus</p><p>pensamentos e suas percepções estão estruturados de conformidade</p><p>com as estruturas mesmas da relação da dominação que lhes é</p><p>imposta, seus atos de conhecimento são, inevitavelmente, atos de</p><p>reconhecimento, de submissão (2017, p. 27, grifo do autor).</p><p>O sociólogo francês expõe suas considerações a partir de um contexto</p><p>ocidental branco, ainda assim estabelecemos um diálogo com o intelectual por</p><p>entendermos que estas dizem respeito à condição da mulher no mundo. Em seu livro A</p><p>dominação masculina (2017), o autor faz uma explanação do quão internalizada está,</p><p>nas sociedades androcêntricas, a dominação do homem sobre a mulher. Para ilustrar</p><p>essa hipótese, o autor direciona sua pesquisa etnográfica, durante as décadas de 1950 a</p><p>53</p><p>1960, sobre a sociedade Cabila, na região da Argélia, que, como muitas sociedades, tem</p><p>a sua estrutura social baseada na dicotomia de gênero cuja diferença anatômica entre os</p><p>órgãos sexuais, serve para justificar “a diferença socialmente construída entre os</p><p>gêneros e, principalmente, da divisão social do trabalho” (BOURDIEU, 2017 p. 24).</p><p>A sociedade aqui discutida, por meio do romance, é estruturada de tal forma</p><p>que as mulheres mais velhas repassam o que aprenderam, sem nenhum questionamento,</p><p>deixando subentendidos, em seus conselhos, as seguintes palavras de ordem: obediência</p><p>e submissão. Todo cenário contribui para a manutenção do império masculino. Nada</p><p>pode ser feito contra aquilo que, no imaginário social, é provido pela natureza. A</p><p>dominação masculina torna a mulher um objeto que pode ser manipulado de acordo</p><p>com a sua vontade.</p><p>A ideologia patriarcal, nesse contexto, dá a impressão de não ser algo</p><p>construído, pois está consolidada nos mitos, nas lendas, enfim na cultura nativa ou</p><p>assimilada e ratificada pelas influências da cultura islâmica e a do colonizador</p><p>português. A exemplo do que vemos no excerto abaixo, quando a narradora, em suas</p><p>elucubrações, externa para o/a leitor/a a imagem que se desenha à sua frente:</p><p>Vacas caminham, lesmas, para o sacrifício; as cabras ruminam a</p><p>última erva; galos e galinhas berram na sua despedida ao sol, prepara-</p><p>se o casamento do filho do rei, Sarnau, o teu homem é teu senhor. Se</p><p>ele, furioso, agredir o teu corpo, grita de júbilo porque te ama</p><p>(CHIZIANE, 2016, p. 47, grifos nossos).</p><p>Toda cerimônia dá visibilidade ao poder do homem, em detrimento da</p><p>submissão feminina. Não por acaso, a maioria dos animais sacrificados são femininos,</p><p>como se a narradora, que conta, já adulta – no presente da enunciação – e com todas as</p><p>experiências de sofrimento, pudesse perceber que aquele momento vaticinava os</p><p>sacrifícios pelos quais passaria como mulher casada.</p><p>No quarto capítulo, os espíritos são evocados pela avó materna e, na oração</p><p>proferida, constata-se a soberania masculina respaldada também na religião. É sabido</p><p>que as instituições religiosas formalizaram a subserviência feminina, embora estejamos</p><p>falando da religião monoteísta cristã, percebemos, na narrativa, que essa também foi</p><p>uma das formas utilizadas pelos moçambicanos para disseminar a suposta superioridade</p><p>masculina. Como vemos na oração abaixo proferida pela avó materna nos preparativos</p><p>para a realização do casamento de Sarnau e Nguila:</p><p>54</p><p>Alegrai-vos, cantai, espíritos dos Guiamba Twalufo, que a grande</p><p>sorte caiu sobre vós. Os antepassados sempre disseram: a mulher é a</p><p>galinha que se cria para com ela presentear os visitantes. Chegou o</p><p>momento doloroso. Criámos a Sarnau com amor e sacrifício, os</p><p>visitantes estão à porta e vêm buscá-la para sempre. Defuntos dos</p><p>Guiamba e dos Twalufo, a vossa filha é hoje lobolada. O vosso sangue</p><p>vai hoje pertencer à nobre família dos governantes dessa terra. O</p><p>número de vacas com que é lobolada é tão elevado, coisa que nunca</p><p>aconteceu desde os tempos dos nossos antepassados. Alegrai-vos,</p><p>cantai, espíritos da terra e do mar. Recebei as ofertas que nos trazem e</p><p>abri todos os caminhos da felicidade. Que do vento da vossa protegida</p><p>saiam rebentos assim como ela nasceu de nós. Aclamai, abençoai,</p><p>espíritos da terra e do mar, porque a vossa filha escolhida foi para</p><p>esposa do filho do rei (CHIZIANE, 2016, p. 40, grifos nossos).</p><p>Ironicamente, a linguagem é polida no discurso da velha senhora, ainda assim o</p><p>uso do eufemismo “presentear o visitante” não consegue mascarar a objetificação do</p><p>feminino nesse processo. Por meio de imperativos, as mulheres são convocadas a</p><p>se</p><p>subordinarem ao que está posto. Respaldada na religião e sentenciada pela voz de uma</p><p>mulher mais velha, a cultura androcêntrica, já estruturada, é reafirmada.</p><p>Entretanto, na perspectiva de Bourdieu, a mulher não pode ser responsabilizada</p><p>por contribuir com a sua própria opressão ou mesmo de gostar dessa dominação, pois</p><p>essas estruturas de poder devem a sua eficácia aos mecanismos que elas desencadeiam e</p><p>que contribuem para a sua reprodução. Para que o poder simbólico seja exercido é</p><p>preciso que haja a colaboração do subordinado e “só se subordinam a ele porque o</p><p>constroem como poder” (BOURDIEU, 2017, p. 62-63). Vale salientar que a igreja</p><p>católica também se faz presente na narrativa, por meio do padre Ferreira, que oferece</p><p>para o casal um casamento cristão, mesmo sabendo que não foram batizados na igreja</p><p>católica, como determina essa instituição, e mais, mesmo estando ciente de que Nguila,</p><p>assim como seu pai, é um homem polígamo. As instituições tanto tradicionais de</p><p>Moçambique como as do colonizador se unem para garantir a manutenção do sistema</p><p>sexista. As diferenças são esquecidas quando o que está em jogo é a garantia do</p><p>patriarcado.</p><p>Tudo ocorre para garantir a onipotência do filho do rei. Compete à avó, voz da</p><p>ancestralidade na aldeia, fazer o discurso que lembrará à Sarnau o seu papel como</p><p>mulher. Em nome da soberania masculina, Sarnau deverá abster-se de sua subjetividade.</p><p>Deve assimilar esse discurso como, provavelmente, fizeram/fazem a maioria das</p><p>mulheres que foram dadas como esposas na aldeia. O fato de não possuir recursos</p><p>55</p><p>financeiros, torna a narradora/protagonista ainda mais subordinada ao marido e a toda a</p><p>família deste.</p><p>A voz que fala à Sarnau é amplificada de tal forma que, no início do quinto</p><p>capítulo do romance, não identificamos a personagem feminina que fala, como se a</p><p>aldeia fosse personificada no feminino, fazendo eco à voz de todas as mulheres,</p><p>reafirmando em uníssono o papel da narradora/protagonista, a partir do momento em</p><p>que ela se tornar mulher de Nguila: “Sarnau, o homem é o Deus na terra, teu marido, teu</p><p>soberano, teu senhor, e tu serás a serva obediente, escrava dócil, sua mãe, sua rainha”.</p><p>Reitera: “Se ele trouxer uma amante só para conversar, recebe-o com um sorriso,</p><p>prepara a cama para que os dois durmam, aqueça a água com que se irão estimular</p><p>depois do repouso, o homem, Sarnau, não foi feito para uma só mulher” (CHIZIANE,</p><p>2016, p. 48). Alçado ao posto de uma divindade pela aldeia, o homem torna-se, para a</p><p>mulher, um prêmio que deve ser amado e respeitado independentemente de sua atitude</p><p>com relação a ela. Não à toa, iniciamos esta seção com o trecho do romance acima e</p><p>transcrevemo-lo neste parágrafo.</p><p>Como a submissão da mulher é algo construído culturalmente, é preciso que</p><p>seja constantemente reafirmada para que não tentem se rebelar. Consideremos o fato de</p><p>que a personagem Sarnau é jovem e, como tal, nunca se sabe se manterá viva essa</p><p>tradição, pois, como uma mulher jovem, pode não se intimidar para viver aventuras.</p><p>Enquanto isso, ela, na sua ingenuidade, propositadamente construída pela autora,</p><p>estranha tanto pessimismo em suas ancestrais, como vemos no excerto abaixo:</p><p>Conselhos loucos me furam os tímpanos e interrompem os meus</p><p>sonhos, Sarnau, ama o teu homem com todo o coração. A partir do</p><p>momento em que te casas pertences a um só homem até ao fim dos</p><p>teus dias. As atitudes dos homens, os seus caprichos, são mais</p><p>inofensivos que os efeitos das ondas do mar calmo. Não ligues</p><p>importância às amantes que tem, respeita as concubinas do teu senhor,</p><p>elas serão tuas irmãs mais novas e todas se unirão à volta do mesmo</p><p>amor. Sarnau, ama o teu homem com todo o coração (CHIZIANE,</p><p>2016, p. 48).</p><p>A personagem Sarnau não se refere à uma mulher que lhe fala, mas a várias</p><p>vozes femininas, como se o fato de ter nascido nesta estrutura social lhe impusesse o</p><p>destino de mulher/serva.</p><p>São as mães, tias e avós que a fecham em uma palhota para prepará-la para o</p><p>matrimônio. É preciso que saiba qual o seu lugar nessa relação para que resignadamente</p><p>56</p><p>possa aceitá-lo. Segundo Pierre Bourdieu, o poder simbólico além de ter que ser</p><p>exercido com a colaboração dos que lhe são subordinados, pois afinal é um poder, está</p><p>“inscrito duradouramente no corpo dos dominados sob forma de esquemas de percepção</p><p>e de disposições (admirar, respeitar, amar etc.) que o tornem sensível a certas</p><p>manifestações simbólicas de poder” (2017, p. 63). Reiteramos as reflexões de Bourdieu</p><p>com o que diz Constância Lima Duarte sobre a construção da identidade dos gêneros</p><p>como contributo para o exercício desse poder:</p><p>A identidade social da mulher, como a do homem, também é</p><p>construída através da atribuição de distintos papéis e comportamentos.</p><p>Se ao homem cabe ser agressivo, Racional, forte e seguro de si, em</p><p>contrapartida as mulheres deveriam se conservar inseguras, ingênuas,</p><p>carinhosas e passivas. Para tanto, a sociedade investe na naturalização</p><p>desse processo, lançando mão de leis, educação, trabalho, propaganda</p><p>etc. etc… (2020, p. 139).</p><p>Os rituais se intensificam, respaldando a supremacia masculina, à medida que</p><p>se aproxima a entrega de Sarnau – termo usado na narrativa – para a família do esposo.</p><p>Todos eles conduzem a mulher para resignar-se diante das atrocidades que o marido</p><p>poderá cometer. Sarnau é confinada por um período e os conselhos são direcionados</p><p>para fazer jus ao império masculino. Dessa vez, é a velha tia quem a alerta: “– Sarnau, o</p><p>lar é um pilão e a mulher o cereal. Como o milho serás amassada, triturada, torturada,</p><p>para fazer a felicidade da família. Como o milho suporta tudo, pois esse é o preço da tua</p><p>honra” (CHIZIANE, 2017, p. 50). A honra da mulher é alicerçada e erguida na sua</p><p>própria submissão. A socióloga brasileira feminista, Heleieth Saffioti, constata que</p><p>quanto mais dócil for a mulher mais macho será o homem, logo a “mulher frágil é a</p><p>contraparte do homem forte. Mulher emotiva é a outra metade de homem racional.</p><p>Mulher inferior é a outra face da moeda do macho superior” (1987, p. 29). Esses</p><p>estereótipos formam a base para a subalternidade da mulher.</p><p>Observemos que, no trecho do romance acima citado, a mulher é assemelhada</p><p>à natureza, sendo assim, ela pode ser manipulada, moldada de forma a ganhar os ajustes</p><p>que satisfaça a estrutura patriarcal. Além disso, é pela memória revisitada que a</p><p>ideologia da sociedade androcêntrica vai sendo reproduzida e legitimada e a mulher,</p><p>modelada de forma a tornar-se invisível em contraposição à visibilidade do ser</p><p>masculino. Segundo Losandro Antonio Tedeschi, “o patriarcado teve como uma de suas</p><p>funções na história, a construção e a reprodução de uma memória implacável, imóvel,</p><p>endurecida controladora do poder epistêmico” (2012, p. 12-13).</p><p>57</p><p>Na contramão dessa realidade, a personagem Sarnau embala-se em seus sonhos</p><p>na esperança por uma vida nova que a liberte do amor por Mwando. Há um abismo</p><p>entre a sua expectativa com relação ao casamento e a de suas ancestrais. Inclusive, o</p><p>cenário, aos seus olhos, contribui para embalar os seus sonhos: “Lá fora tudo se veste de</p><p>fantasia; as entradas são orladas com coroas de palmeiras [..]” (CHIZIANE, 2016, p.</p><p>47). Por isso, espanta-se ao perceber tanta tristeza no rosto da mãe quando se aproxima</p><p>a sua partida. Indigna-se quando percebe as lágrimas nos olhos das velhas. Não entende</p><p>por que tanta infelicidade.</p><p>É somente após a entrada na vida de casada que a narradora/protagonista</p><p>compreende as vozes que antes anunciavam a resignação da mulher. Enquanto se</p><p>mantém no quarto que compartilha com o marido continua no mundo de fantasia, pois</p><p>tudo foi arranjado de forma que ambos se sentissem em um palácio.</p><p>Ao sair do quarto para prestar os seus serviços a todas as suas sogras – pois</p><p>esta é uma das tarefas impostas às mulheres recém-casadas: demonstrar que são dignas</p><p>do casamento pelos</p><p>seus dotes domésticos –, o ambiente com o qual se depara é de total</p><p>degradação humana. Essa realidade que se descortina aos olhos de Sarnau,</p><p>gradativamente, leva-a à consciência de si como esposa e, portanto, como um ser que</p><p>está predestinado a aceitar a sua condição subalterna. Desdobra-se para tornar-se a</p><p>mulher que satisfaça o imaginário de toda a família de Nguila. “Pilei como uma</p><p>máquina, cozinhei como uma artista, deixando as minhas habilidades de mulher bem</p><p>demarcadas” (CHIZIANE, 2016, p. 57). Tornando-se escrava dos seus, anula-se na sua</p><p>subjetividade.</p><p>Ainda que tente ser a mulher condizente com o que todos da família de Nguila</p><p>espera, Sarnau em suas primeiras semanas de casamento toma consciência de que a sua</p><p>nulidade vai além dos excessivos trabalhos domésticos. Após visitar a sua oitava sogra,</p><p>ao chegar em casa, depara-se com o marido ao lado de outra mulher em sua cama. Neste</p><p>momento, a voz das ancestrais ecoa em sua memória: “Quando ele dormir com a tua</p><p>irmã mais nova mesmo debaixo do teu nariz, fecha os olhos e a alma, porque o homem</p><p>não foi feito para uma mulher. Os caprichos de um homem são mais inofensivos que os</p><p>efeitos das ondas no mar calmo” (CHIZIANE, 2016, p. 60). Rememora os conselhos na</p><p>tentativa de aceitar a sua condição e assim evitar qualquer manifestação de protesto.</p><p>Aprendera com suas ancestrais que a mulher deve total obediência ao homem, logo, não</p><p>pode nem deve contestar a supremacia masculina supostamente naturalizada.</p><p>58</p><p>O matrimônio por meio do lobolo, de acordo com Sanaa Boutchich, é</p><p>concebido</p><p>como um pacto de escravidão em virtude do qual a esposa tem de</p><p>prestar perpétua homenagem à hegemonia masculina. Ser esposa</p><p>pressupõe uma infinidade de obrigações altruístas e de</p><p>responsabilidades. É uma eterna aprendizagem de como suportar a</p><p>humilhação, como obedecer silenciosamente, se adaptar à condição de</p><p>invisibilidade e inibir qualquer emoção ou qualquer manifestação de</p><p>amargura. (2016, p. 23).</p><p>Não interpretamos o papel da mulher moçambicana limitado apenas ao</p><p>casamento por meio do lobolo. No entanto, ponderamos as proposições de Sanaa</p><p>Boutchich quando se refere às obrigações, silenciamento e invisibilidade da figura</p><p>feminina. Tais imposições são vistas em qualquer sociedade que tem como base a</p><p>ideologia do patriarcado. Elas adquirem apenas nuances diferentes. Nas culturas</p><p>ocidentais, por exemplo, na união entre o homem e a mulher, esta adota o sobrenome do</p><p>marido, como se se tornasse propriedade dele. Em contrapartida, em Moçambique, de</p><p>acordo com Chiziane</p><p>mesmo na região bantu do Sul, onde o homem é muito poderoso, uma</p><p>mulher quando se casa vai viver para casa do marido, mas nunca</p><p>perde o seu nome e a sua identidade. [...] Se ela perder o nome da sua</p><p>própria família, vai perder a proteção dos antepassados e a família não</p><p>ficará feliz (2014, n.p).</p><p>As nossas reflexões sobre a submissão da mulher, em várias partes do mundo,</p><p>podem ser reiteradas com as análises da socióloga brasileira, feminista e marxista,</p><p>Heleieth Saffioti, que em seu livro O poder do macho constata:</p><p>A resignação, ingrediente importante da educação feminina não</p><p>significa senão a aceitação do sofrimento enquanto destino de mulher.</p><p>Assim, se o companheiro tem aventuras amorosas ou uma relação</p><p>amorosa estável fora do casamento, cabe à esposa resignar-se. Não</p><p>deve ela, segundo a ideologia dominante, revidar na mesma moeda. A</p><p>esposa, na medida em que se mantém fiel ao marido, ainda que este</p><p>lhe seja infiel, recebe aprovação social (1987, p. 35, grifos da autora).</p><p>Tal proposição nos leva a perceber que a história da mulher se repete como se</p><p>isso fizesse parte do curso natural da vida. Observemos que, independente do continente</p><p>a submissão feminina, a assimilação aos papéis que ela deve exercer foram e,</p><p>infelizmente, ainda são parâmetros em muitas sociedades.</p><p>59</p><p>Há toda uma lógica cultural para enquadrar a mulher nesses papéis. De acordo</p><p>com a pesquisadora Larissa Silva Lisboa Souza (2020), o acesso à educação formal para</p><p>a mulher negra, em Moçambique em 1935, era limitado as atividades domésticas. O</p><p>recenseamento sobre o ensino licencial neste mesmo ano em Lourenço Marques</p><p>demonstrava que no total de 134 mulheres estudantes nenhuma delas era “africana”, ou</p><p>seja, “negra”.</p><p>Souza, respaldada no historiador Valdemir Donizett Zamparoni, afirma ainda</p><p>que os primeiros intelectuais mestiços e negros moçambicanos que publicavam em</p><p>jornais manifestavam uma visão paternalista e viam o ensino como uma forma de</p><p>“aproximar esses sujeitos das tradições portuguesas” (SOUZA, 2020, p. 27). Reitera que</p><p>em um trecho do jornal O Africano, de 1911, Zamparoni (1998) encontra o seguinte:</p><p>As mulheres deveriam ser educadas nos princípios rudimentares da</p><p>religião cristã, para que substituíssem “as crenças e costumes</p><p>selvagens” que a impedem de entrar no convívio da civilização”, e</p><p>instruídas nos deveres de uma boa dona-de-casa, capacitadas para os</p><p>trabalhos de corte e costura, o que tornaria fácil a ela e os seus filhos</p><p>trajarem-se “à europeia” (apud SOUZA, 2020, p. 28).</p><p>Na década de 70, essa realidade não era tão diferente. A socióloga</p><p>moçambicana Isabel Casimiro (2014) constata que em Moçambique a Organização da</p><p>Mulher Moçambicana (OMM), constituída em 1973, é a única a ter um programa</p><p>político direcionado para as mulheres, ainda assim, limitava-as à alfabetização e aos</p><p>“cuidados de saúde primários, projectos de costura, artesanato, creches, culinária [...].</p><p>As mulheres eram vistas como um recurso, cuidadoras e fornecedoras de serviços</p><p>sociais” (CASIMIRO, 2014, p. 236).</p><p>Diante do exposto, inferimos que o cerceamento à mulher moçambicana não se</p><p>limita apenas aos espaços rurais, à medida que a independência do país ganha forma, o</p><p>controle sobre essas jovens moçambicanas toma novas configurações. Observemos</p><p>ainda que do início do século XX até a década de 70 do mesmo século o acesso à</p><p>educação da mulher ainda se limitava aos cuidados com o lar.</p><p>A resignação da personagem Sarnau diante da cena do marido com outra</p><p>mulher em sua cama demonstra a subalternização feminina como única alternativa do</p><p>seu reconhecimento na sociedade patriarcal. Enquanto a personagem Nguila usufrui dos</p><p>seus direitos de macho, ela apenas chora. Ainda não satisfeito ao vê-la naquele estado,</p><p>ele a chama:</p><p>60</p><p>- Hum, parece que choraste. Morreu alguém?</p><p>Arremessou-me um violento pontapé no traseiro que me deixou</p><p>estatelada no chão. Minutos depois voltei à posição inicial. Enviou-me</p><p>uma bofetada impiedosa que me fez saltar um dente. A minha rival</p><p>assistia a tudo coroando-me com um sorriso de troça e triunfo. Reparei</p><p>bem nela. Tinha o peito cheio e o ventre muito dilatado. Estava</p><p>grávida, meu Deus, enquanto eu sou a primeira ainda não senti lá</p><p>dentro a lombriga da gravidez (CHIZIANE, 2016, p. 61).</p><p>O fato de a personagem não reagir de forma contestatória à cena que vislumbra</p><p>à sua frente demonstra o quanto a visão masculina dominante está inscrita na ordem das</p><p>coisas para ambos os sexos, claro que de forma antagônica: à mulher o silêncio e a</p><p>resignação; ao homem, o direito a exercer, ao máximo, a sua tirania.</p><p>É perceptível que a inscrição da ordem patriarcal, nesse contexto, se estrutura</p><p>de fato tanto nas coisas quanto nos corpos. O fato de Sarnau ter que dissimular um</p><p>sorriso dá clara demonstração dessa assertiva, pois ela não pode sequer demonstrar o</p><p>seu desagrado com a cena que presencia. Não bastasse esse episódio, a narrativa ilustra</p><p>ainda mais quão danoso é o matrimônio para a mulher quando a narradora/protagonista</p><p>sai chorando e, em seguida, é chamada aos gritos pelo marido, ela volta e descreve a</p><p>cena a seguir: “[...] coloquei-me de joelhos perante o meu soberano e baixei os olhos</p><p>como manda a tradição” (CHIZIANE, 2016, p. 61). Uma sociedade estruturada sob a</p><p>égide do poder patriarcal garante a sua eficácia quando os seus</p><p>tentáculos se estendem a</p><p>todos os campos.</p><p>Os conselhos da sogra quando a ampara é mais um que se alinhava a esse</p><p>sistema, como vemos no trecho abaixo:</p><p>[...] Não chores, Sarnau, que os caprichos do homem não fazem mal a</p><p>ninguém. O teu marido é como pai, conheço-o bem, é meu vitelino.</p><p>Aqueles dois só se sentem bem nos braços das mulheres. Aprende a</p><p>ser serva obediente e serás feliz (CHIZIANE, 2016, p. 62).</p><p>Da violência simbólica à violência física, a construção da mulher na aldeia vai</p><p>tomando forma a partir dos interesses masculinos. Ela é moldada para se submeter</p><p>silenciosamente aos caprichos do homem.</p><p>Some-se a isso a rivalidade que é criada entre as personagens femininas quando</p><p>desejam o mesmo homem, situação presente em vários romances de Paulina Chiziane.</p><p>Em Balada de amor ao vento, esses conflitos são evidenciados no diálogo de Sarnau</p><p>com a sogra. Na tentativa de amenizar o sofrimento da nora, Rassi, mãe de Nguila, vai</p><p>ao encontro da nora para confortá-la: “– Sarnau, é o teu marido, volta para casa. Sorri</p><p>61</p><p>para ele, sê boazinha, faz tudo o que ele desejar, demonstra a tua superioridade sobre</p><p>essa cadela com quem acaba de dormir” (CHIZIANE, 2016, p. 63, grifos nossos).</p><p>Percebe-se na fala da sogra o ódio pela mulher que dorme com Nguila.</p><p>No casamento poligâmico, o fato de o homem ser casado com várias mulheres</p><p>– em alguns casos, com o consentimento da primeira esposa que opta por isso com o</p><p>intuito de obter ajuda na criação dos filhos e no trabalho com a machamba22 – pode se</p><p>constituir em rivalidade entre elas, cria-se assim um clima de disputa, que contribui para</p><p>que não haja solidariedade entre as mesmas e assegura a impossibilidade de resistência</p><p>à cultura patriarcal. Enquanto os homens se harmonizam, formando uma teia</p><p>hegemônica, as mulheres rivalizam-se, já que o próprio sistema patriarcal, que coloca o</p><p>ser masculino como soberano, proporciona esses conflitos. Contudo, veremos na</p><p>próxima seção que a escritora rasura essa concepção quando algumas de suas</p><p>personagens femininas estabelecem alianças para ultrapassarem as linhas limítrofes de</p><p>sua liberdade.</p><p>A invisibilidade e anulação de si é a única forma de ser reconhecida na aldeia.</p><p>Sua subjetividade é construída a partir da negação de si. Não há escapatória, onde quer</p><p>que busque amparo, os discursos vão se tecendo até formar uma rede em que todas</p><p>sejam capturadas e tornadas servas/escravas desse sistema.</p><p>Ainda que tenhamos consciência de que o romance de Paulina Chiziane não</p><p>pode ser tomado como uma realidade da história da mulher em Moçambique, lemos</p><p>suas narrativas como provocações para se pensar as mazelas de uma sociedade</p><p>estruturada na hierarquia de gênero. Assimilada a sua nulidade, a mulher esforça-se por</p><p>agradar o homem e seus familiares, anulando-se, já que precisa satisfazer o imaginário</p><p>de mulher erigido por esse sistema de poder.</p><p>As múltiplas vozes na narrativa correspondendo com a condição da mulher</p><p>como um ser submisso demonstra uma sociedade marcadamente patriarcal. A</p><p>invisibilidade da mulher está expressamente delineada. Ao fixá-la, o poder hegemônico</p><p>masculino encarrega-se da sua manutenção e tudo transcorre como se fosse algo natural,</p><p>portanto, sem a possibilidade de manifestações contrárias, apenas a aceitação resignada</p><p>de todas as ancestrais e, consequentemente, das jovens que são coagidas a se casar.</p><p>Usamos o termo coerção porque em uma estrutura patriarcal, uma das formas de</p><p>realização da mulher é por meio do casamento, a outra se dá a partir do momento em</p><p>22 Pequena roça para subsídio da família.</p><p>62</p><p>que ela se torna mãe. Caso não corresponda a essas expectativas, sua nulidade será</p><p>ainda mais acentuada, pois mulher lobolada “deve parir filhos, de preferência varões</p><p>para engrandecer o nome da família. Se o rendimento não alcança o desejável, nada há a</p><p>fazer senão devolver a mulher à sua origem, recolher as vacas e recomeçar o negócio</p><p>com outra família” (CHIZIANE, 2016, p. 70). O destino da mulher é traçado desde o</p><p>momento em que é identificada como sendo do sexo feminino. A sua anatomia</p><p>determina a sua condição na sociedade.</p><p>Ao colocar a protagonista com uma visão ingênua da condição da mulher nesse</p><p>contexto, entendemos que a escritora deixa claro para os seus leitores/as que as jovens</p><p>moçambicanas se dão o direito de sonhar e pensam poder realizar os seus sonhos em um</p><p>casamento de complementaridade com o parceiro. No entanto, muitas vezes, por causa</p><p>da interferência da tradição, que legitima a inferiorização da mulher e impede-as de</p><p>qualquer movimento contrário a essa ideologia, esses casamentos se desfazem ou</p><p>continuam, porém sem nenhuma possibilidade de felicidade. Além disso, a poligamia</p><p>parece não corresponder mais às expectativas de algumas jovens que, por terem tido</p><p>contato com outras culturas, criam novas expectativas com relação ao casamento e, ao</p><p>se perceberem oprimidas por um marido que mal lhes dá atenção ou agridem-na</p><p>simbólica ou fisicamente buscam saída fugindo de casa ou cometendo adultério.</p><p>A filósofa norte-americana bell hooks23 discorre sobre a forma como o homem</p><p>negro e branco se vê na América: “A busca dos homens pelo reconhecimento da sua</p><p>‘natureza masculina’ [...] está enraizada na sua internalização do mito que simplesmente</p><p>por ter nascido homem, tem inerentemente o direito ao poder e aos privilégios” (2020,</p><p>p. 73). Aportamo-nos na abordagem de bell hooks por entendermos que essa é uma</p><p>realidade vivenciada também em Moçambique. Entretanto é visível na narrativa que as</p><p>personagens femininas mais jovens nem sempre estão em consonância com essa forma</p><p>de estar no mundo. De acordo com Ebenezer Adedeji, “as mulheres africanas, em</p><p>especial, as mais jovens e educadas24, já começam a questionar, se não a condenar as</p><p>tradições patriarcais que asseguram a sujeição e o sofrimento das mulheres” (2018, p.</p><p>417).</p><p>23 bell hooks foi registrada como Gloria Jean Watkins. O pseudônimo, inspirado pela bisavó materna, Bell</p><p>Blair Hooks, é uma homenagem ao legado das mulheres fortes. É grafado em letras minúsculas para</p><p>deslocar o foco da figura autoral para suas ideias. In: HOOKS, bell. O feminismo é para todo mundo:</p><p>políticas arrebatadoras. Trad. Bhuvi Libanio. 12. ed. Rio de Janeiro. Rosa dos Tempos, 2020. orelha da</p><p>quarta capa. Optamos por transcrever o pseudônimo em minúscula em respeito a autora.</p><p>24 Acreditamos que ao mencionar “educadas”, o pesquisador se refere à educação formal.</p><p>63</p><p>Mediante o exposto, concluímos que, na obra Balada de amor ao vento (2016),</p><p>o casamento é um dos dispositivos de poder que torna possível a manutenção da cultura</p><p>patriarcal, uma vez que durante todo ritual de preparativos para a cerimônia, a cultura de</p><p>submissão da mulher é reiterada por homens e mulheres que preparam a noiva para tal</p><p>acontecimento. As personagens femininas acabam nutrindo uma relação desigual e</p><p>injusta com o companheiro. É na preparação da noiva por meio das instruções das mais</p><p>velhas que o leitor toma ciência da dominação simbólica – usando o termo desenvolvido</p><p>por Pierre Bourdieu (2017) – experienciada e disseminada pelas mulheres.</p><p>Entendemos os discursos das personagens femininas de Paulina Chiziane,</p><p>pautados na ideologia patriarcal, como uma forma de denúncia da própria autora, pois</p><p>evidencia que o sistema androcêntrico está tão intrinsecamente arraigado na sociedade</p><p>que as mulheres os reproduzem e difundem sem se aperceberem de que, sendo vítimas,</p><p>também se tornam algozes delas mesmas e de suas descendentes. É o que observaremos</p><p>ainda na próxima subseção, no romance Niketche: uma história de poligamia (2004).</p><p>2.2 Niketche: uma história de poligamia: múltiplas vozes a referenciar o</p><p>patriarcado</p><p>Nesta subseção, refletimos, em Niketche: uma história de poligamia25 (2004),</p><p>os discursos</p><p>Por que sou levada a escrever? Porque a escrita</p><p>me salva da complacência que me amedronta.</p><p>Porque não tenho escolha. Porque devo manter</p><p>vivo o espírito de minha revolta e a mim mesma</p><p>também. Porque o mundo que crio na escrita</p><p>compensa o que o mundo real não me dá. No</p><p>escrever coloco ordem no mundo, coloco nele uma</p><p>alça para poder segurá-lo. Escrevo porque a vida</p><p>não aplaca meus apetites e minha fome. Escrevo</p><p>para registrar o que os outros apagam quando</p><p>falo, para escrever as histórias mal escritas sobre</p><p>mim sobre você. Para me tornar mais íntima</p><p>comigo mesma e consigo. Para me descobrir,</p><p>preservar-me, construir-me, alcançar autonomia.</p><p>[...] Para mostrar que eu posso e que eu escreverei</p><p>sem me importar com as advertências contrárias.</p><p>Escreverei sobre o não dito, sem me importar com</p><p>o suspiro do ultraje censor e da audiência.</p><p>Finalmente, escrevo porque tenho medo de</p><p>escrever, mas tenho medo maior de não escrever.</p><p>Gloria Anzaldúa (1980, p. 232)</p><p>RESUMO</p><p>O cenário literário moçambicano esteve em consonância com o contexto histórico</p><p>nacional durante muitos anos, dando visibilidade apenas à escrita masculina. No</p><p>entanto, essa realidade gradativamente tem tomado outras direções, uma vez que a</p><p>mulher delineia um novo caminho que a conduz para um espaço de fala e permite que</p><p>suas insatisfações com relação às condições impostas a elas sejam colocadas em pauta.</p><p>Paulina Chiziane é uma dessas mulheres que ousa ultrapassar a fronteira que pretende</p><p>limitar o acesso da mulher à educação formal, às letras e, portanto, a vivências mais</p><p>libertárias. Intentamos comprovar nesta pesquisa a hipótese de que em seus romances</p><p>Balada de amor ao vento (2016), Niketche: uma história de poligamia (2004) e O</p><p>alegre canto da perdiz (2018), a escritora problematiza as questões culturais e de</p><p>gênero, fragilizando a soberania masculina e, simultaneamente, propõe a possibilidade</p><p>de convivências menos conflituosas entre os/as moçambicanos/as, por meio do perdão e</p><p>da reconciliação. Para isso, Chiziane projeta nas personagens femininas um devir-</p><p>mulher disruptivo que se constrói a partir do momento em que estas ultrapassam o</p><p>limite do espaço doméstico e se lançam no espaço público, como fez a própria escritora.</p><p>Para sustentar as nossas reflexões, buscamos aporte crítico e teórico em Michel</p><p>Foucault (1998), Heleieth Saffioti (1987), Pierre Bourdieu (2017), bell hooks (2020),</p><p>María Lugones (2020), Patricia Hill Collins (2020), Maria Nazareth S. Fonseca (2006),</p><p>Laura Cavalcante Padilha (2006), Ana Rita Santiago (2019), dentre outros/as.</p><p>Palavras-chave: Literatura de autoria feminina. Paulina Chiziane. Subserviência/</p><p>Subversão feminina. Perdão/Reconciliação.</p><p>ABSTRACT</p><p>The Mozambican literary scene was in line with the national historical context for many</p><p>years, granting visibility only to male writing. However, this reality has gradually taken</p><p>other directions, as women outline a new path that leads them to a space of speech and</p><p>allows their dissatisfaction with the conditions imposed on them to be brought to the</p><p>fore. Paulina Chiziane is one of those women who dares to go beyond the border that</p><p>intends to limit women's access to formal education, to letters and, therefore, to more</p><p>liberating experiences. We aim to prove on this research the hypothesis that in her</p><p>novels Ballad of love to the wind (2016), Niketche: a story of polygamy (2004) and The</p><p>happy song of the partridge (2018), the writer talks over cultural and gender issues,</p><p>weakening male sovereignty and, at the same time, proposing the possibility of less</p><p>conflictual coexistences between Mozambicans, through forgiveness and reconciliation.</p><p>Having this as an aim, Chiziane projects a disruptive woman-becoming onto the female</p><p>characters, which is built from the moment they go beyond the limits of the domestic</p><p>space and launch themselves into the public space, as the writer herself did. To support</p><p>and contribute with our reflections, we seek critical and theoretical input in Michel</p><p>Foucault (1998), Heleieth Saffioti (1987), Pierre Bourdieu (2017), Bell Hooks (2020),</p><p>María Lugones (2020), Patricia Hill Collins (2020), Maria Nazareth S. Fonseca (2006),</p><p>Laura Cavalcante Padilha (2006), Ana Rita Santiago (2019), among others.</p><p>Keywords: Female authorship literature. Paulina Chiziane. Female</p><p>Subservience/Subversion. Forgiveness/Reconciliation.</p><p>SUMÁRIO</p><p>INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 11</p><p>1 MOÇAMBIQUE: UM BREVE PANORAMA DA ESCRITA LITERÁRIA TECIDA</p><p>POR MÃOS FEMININAS .......................................................................................... 16</p><p>1.1 A construção do espaço literário moçambicano de autoria feminina: mulheres em</p><p>pauta ........................................................................................................................... 16</p><p>1.2 Paulina Chiziane: a voz que ganha protagonismo em Moçambique ....................... 37</p><p>2 O ENCARCERAMENTO FEMININO POR MEIO DE VÁRIOS SISTEMAS DE</p><p>PODER ....................................................................................................................... 48</p><p>2.1 Balada de amor ao vento: a manutenção do patriarcado em rede ........................... 50</p><p>2.2 Niketche: uma história de poligamia: múltiplas vozes a referenciar o patriarcado</p><p>................................................................................................................................... 63</p><p>2.3 O alegre canto da perdiz: raça, classe e gênero, mecanismos de subalternização das</p><p>personagens femininas ................................................................................................ 78</p><p>3 ENTRE BALADAS, NIKETCHES E CANTOS: NOVOS SONS, OUTRAS</p><p>DANÇAS ................................................................................................................... 93</p><p>3.1 A propósito das personagens protagonistas: destecendo as redes do patriarcado .... 93</p><p>3.1.1 Pequenas fissuras: a desestabilização dos papéis de gênero pelas personagens</p><p>femininas secundárias ............................................................................................... 107</p><p>3.1.2 O despontar de subjetividades femininas autônomas ......................................... 113</p><p>3.2 Entre conflitos e reconciliação: a encenação de novas histórias ........................... 120</p><p>CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 137</p><p>BIBLIOGRAFIA ...................................................................................................... 142</p><p>11</p><p>INTRODUÇÃO</p><p>O primeiro passo para pensar a escrita desta tese se deu logo após o término do</p><p>mestrado em 2014. Por ter lido Mia Couto – objeto de estudo no mestrado –, resolvi</p><p>conhecer mais sobre a escrita literária moçambicana. Percebi que os escritores se</p><p>destacavam nesse país. Busquei entender o motivo da ausência das escritoras. Nessa</p><p>empreitada, descobri que o acesso das mulheres às letras em Moçambique ainda é muito</p><p>limitado, pois além de a cultura tradicional tentar impedir esse avanço, o período</p><p>colonial intensificou-o, haja vista que seu objetivo era desumanizar o povo negro para</p><p>que aceitasse com passividade o “título” de escravo que lhe fora dado.</p><p>Em minhas pesquisas, descobri Paulina Chiziane como primeira romancista</p><p>moçambicana a ter maior visibilidade dentro e fora do seu país. Algumas poucas</p><p>mulheres haviam publicado nos jornais que circulavam no período em que se aventava a</p><p>possibilidade de libertação de Moçambique do jugo colonial português, dentre elas,</p><p>Noémia de Sousa, conhecida até os dias atuais como “Mãe dos poetas moçambicanos”.</p><p>Todavia, nenhuma delas havia se destacado</p><p>das personagens femininas que caucionam a soberania masculina e como</p><p>tal império se estrutura na narrativa. Considerando que este é o quarto romance da</p><p>escritora, acreditamos que, pela sua estética e complexidade das personagens, o</p><p>romance nos dá ampla visão da condição de vivência da mulher, por meio da ficção, no</p><p>contexto de Moçambique.</p><p>Para que se compreenda melhor as atitudes da narradora/protagonista, Rami,</p><p>trazemos um breve resumo da obra. Rami é casada nas tradições católicas, mas cria os</p><p>filhos praticamente só, enquanto o marido, Tony, vive a poligamia à moda ocidental,</p><p>tem várias amantes e quase nenhum compromisso com os filhos frutos desses</p><p>relacionamentos. Ao se deparar com a realidade em que vive, Rami decide buscar novas</p><p>estratégias de sobrevivência e, nessa empreitada, percebe que o mundo construído e</p><p>alicerçado na estrutura patriarcal ergue uma muralha quase instransponível para as</p><p>conquistas dos direitos femininos.</p><p>25 A partir das próximas páginas, usaremos apenas Niketche ao mencionarmos o romance.</p><p>64</p><p>Neste romance, as personagens femininas são de várias regiões de</p><p>Moçambique, o que torna a narrativa mais dinâmica, visto que cada uma delas nos dá</p><p>uma visão do feminino das regiões sul e norte desse país. De acordo com Ana Mafalda</p><p>Leite, a narradora, à maneira da oratura, ao discutir as normas e os preceitos da</p><p>poligamia tradicional no capítulo dezessete e o ritual da kutchinga no capítulo vinte,</p><p>“desdobra-se em personagem, dramatiza a ação narrando, distancia-se dela, na pausa</p><p>comentarista, retomando depois o papel de condutora do ato narrativo” (2013, p. 31). O</p><p>que, a nosso ver, também contribui para a dinamicidade da narrativa. Ademais, as</p><p>personagens femininas, ao se manifestarem, despertam no leitor a busca pela</p><p>compreensão de um contexto cindido pelas várias formas de dominação: sexual,</p><p>colonial, de classe e raça, pois “exprimem condições humanas devastadas, sobretudo</p><p>femininas, trágicas [...], como que dando corpo a novelas da vida real” (LARANJEIRA,</p><p>2018, p. 532).</p><p>É perceptível já, no primeiro capítulo do romance, que a</p><p>narradora/protagonista, Rami, vive em meio a um espaço de estrutura marcadamente</p><p>patriarcal, pois, quando toma consciência de que é uma mulher casada, mas cria os/as</p><p>filhos/as praticamente só, alicerça seus discursos na visão androcêntrica de mundo.</p><p>Embora não concorde com a sua condição, a voz da narradora/protagonista está</p><p>impregnada do discurso sexista, fruto do seu ambiente, como vemos a seguir: “[...]</p><p>Onde andas, meu marido, para me protegeres, onde? Sou uma mulher do bem, uma</p><p>mulher casada” (CHIZIANE, 2004, p. 10, grifos nossos). Baseada no discurso da</p><p>mulher frágil, a personagem se coloca no papel subalterno, uma vez que necessita de um</p><p>protetor; assim, o homem exerce a sua soberania com direitos e privilégios em</p><p>detrimento da mulher. Além disso, o fato de ser uma mulher casada, no seu imaginário,</p><p>fruto dos mitos sociais, imputa-lhe o estatuto, como ela mesma afirma, de “mulher do</p><p>bem”, ou seja, ela não é uma ameaça para outras mulheres, não corre o risco de cobiçar</p><p>os homens alheios. Evidencia-se, assim, uma dominação estrutural que deixa o próprio</p><p>dominado em “conformidade com as estruturas mesmas da relação de dominação que</p><p>lhes é imposta” (BOURDIEU, 2017, p. 27).</p><p>A internalização da visão androcêntrica pode ser percebida ainda na educação</p><p>que a personagem feminina dá ao seu filho, quando percebe que ele demonstra medo</p><p>por ter quebrado o vidro de um carro, ela o alerta: “– Betinho, um homem não se mija</p><p>de medo” (CHIZIANE, 2004, p. 10). A advertência de Rami ao filho está respaldada</p><p>65</p><p>nos ensinamentos das mulheres mais velhas que em seus conselhos às mulheres de Tony</p><p>sentenciam: “– Na ausência do pai, toma o comando da família o filho varão mais</p><p>velho, mesmo que seja um bebé, é um líder, é o chefe da família por substituição” (p.</p><p>127). Comumente, no nosso dia a dia ouvimos pessoas adultas falarem para crianças do</p><p>sexo masculino “menino não chora”. Essas máximas evidenciam que “a ideologia</p><p>machista que considera o homem um ser superior, não entra apenas na cabeça dos</p><p>homens. Também as mulheres, majoritariamente, acreditam nestas ideias e as</p><p>transmitem aos filhos”. Dessa forma, elas passam “aos mais jovens este sistema de</p><p>ideias que privilegia o homem em prejuízo da mulher” (SAFFIOTI, 1987, p. 34).</p><p>A socióloga Heleieth Saffioti aborda , no livro Gênero Patriarcado e violência</p><p>(2015), o sexismo que rege a sociedade, reflete-o como uma ideologia e estrutura de</p><p>poder que “amputam” as mulheres “sobretudo no desenvolvimento e uso da razão e no</p><p>exercício do poder”. Segundo Saffioti, “Elas são socializadas para desenvolver</p><p>comportamentos dóceis, cordatos, apaziguadores. Os homens, ao contrário, são</p><p>estimulados a desenvolver condutas agressivas, perigosas, que revelem força e</p><p>coragem” (2015, p. 37).</p><p>Às mulheres cabe a função de formar os filhos para se tornarem os soberanos</p><p>delas próprias e de outras mulheres. Estes, por sua vez, quando percebem os seus</p><p>privilégios, na fase adulta, passam a exercer a sua tirania contra as suas ancestrais e</p><p>contra a companheira. Todavia, segundo Pierre Bourdieu, “o privilégio masculino é</p><p>também uma cilada e encontra sua contrapartida na tensão e contensão permanentes,</p><p>levadas por vezes ao absurdo, que impõe a todo homem o dever de afirmar, em toda e</p><p>qualquer circunstância, sua virilidade” (2017, p. 75-76). O antropólogo afirma ainda que</p><p>“a virilidade, entendida como capacidade reprodutiva, sexual e social [...] é acima de</p><p>tudo, uma carga” (BOURDIEU, 2017, p. 76, grifo do autor).</p><p>A sociedade patriarcal, construída e alicerçada na soberania masculina, impõe</p><p>também papéis ao homem que podem se tornar um fardo. Esse cenário torna impossível</p><p>uma convivência familiar harmoniosa, uma vez que a mulher deve estar sempre numa</p><p>posição inferior, enquanto o homem precisa constantemente reafirmar a sua</p><p>superioridade.</p><p>Essa assertiva é muito bem demonstrada na obra Niketche. A passividade da</p><p>personagem Rami evidencia que, por ter sido criada em um contexto sexista, esta se</p><p>manifesta de acordo com os padrões sociais. Suas atitudes, geralmente, condizem com o</p><p>66</p><p>que se espera das mulheres nesse contexto. Quanto mais manifestarem acordo a esse</p><p>sistema, mais serão reconhecidas como boas esposas socialmente, porém nada disso</p><p>garante que serão valorizadas pelo companheiro.</p><p>Em seus monólogos, Rami revela que se sente uma mulher digna de ser</p><p>respeitada, pois sempre fora obediente ao marido, fez as suas vontades, cuidou dele e</p><p>suportou suas loucuras, o que fica subentendido que espera dele reciprocidade. É</p><p>inegável os esforços da narradora/protagonista em querer satisfazer o marido, todavia é</p><p>fato que a reciprocidade dificilmente ocorre, pois a soberania masculina, representada</p><p>na personagem Tony, impulsiona-lhe quase sempre para a satisfação dos seus próprios</p><p>desejos.</p><p>Como já afirmamos, a narrativa revela que a nulidade das mulheres é uma das</p><p>referências em uma sociedade patriarcal, quanto mais submissa forem mais reputação</p><p>social terão. Entretanto, ainda que correspondam ao papel de esposa, imaginado por tal</p><p>contexto, não têm garantias de que serão mulheres felizes em seu casamento. Mesmo</p><p>porque, como afirma Bronislaw Baczko, o imperialismo masculino erigido pelo</p><p>imaginário social torna insaciável as demandas do ser masculino. Considerando que</p><p>para Baczko “o imaginário é a forma a partir da qual a sociedade organiza o conjunto de</p><p>suas representações” (apud TEDESCHI, 2012, p. 31), acreditamos que, neste contexto</p><p>social, o imaginário engendra “a adesão a um sistema de valores e intervém eficazmente</p><p>nos processos da sua interiorização pelos indivíduos, modelando os comportamentos,</p><p>capturando as energias e, em caso de necessidade, arrastando para uma ação comum”</p><p>(BACZKO, 1985,</p><p>p. 311). Entendemos que as próprias mulheres se tornam as</p><p>mantenedoras dessa soberania quando de forma talvez inconsciente repassam de</p><p>geração a geração o que se constrói como representação masculina.</p><p>Baczko observa que controlando o imaginário social, sua reprodução, difusão e</p><p>manejo se garante uma segurança, em graus variáveis, de que haja uma real influência</p><p>sobre os comportamentos e as atividades individuais e coletivas, o que trará como</p><p>consequência resultados práticos e desejados. E mais, esses imaginários e os símbolos</p><p>em que eles se alicerçam “fazem parte de sistemas complexos, tais como,</p><p>nomeadamente, os mitos, as religiões, as utopias e as ideologias” (1985, p. 312).</p><p>Pontua:</p><p>A influência dos imaginários sociais sobre as mentalidades depende</p><p>em larga medida da difusão destes e, por conseguinte dos meios que</p><p>67</p><p>asseguram tal difusão. Para garantir a dominação simbólica, é de</p><p>importância capital o controlo destes meios, que correspondem a</p><p>outros tantos instrumentos de persuasão, pressão e inculcação de</p><p>valores e crenças. É assim que qualquer poder procura desempenhar</p><p>um papel privilegiado na emissão dos discursos que veiculam os</p><p>imaginários sociais, do mesmo modo que tenta conservar um certo</p><p>controlo sobre os seus circuitos e difusão (BACZKO, 1985, p. 313,</p><p>grifo nosso).</p><p>No romance Niketche, a personagem Rami tem consciência da sua condição</p><p>subalterna, todavia reproduz inconscientemente os discursos difundidos na sociedade,</p><p>tornando-se dessa forma conivente com a opressão perpetrada pela ideologia patriarcal.</p><p>Contudo, ao adentrarmos a narrativa, compreendemos que a atitude de Rami reflete a</p><p>ordem androcêntrica que está interiorizada tanto nos homens quanto nas mulheres.</p><p>A difusão desses papéis é constantemente representada na narrativa, como</p><p>vemos quando Rami vai consultar uma conselheira do amor e toma consciência de que</p><p>por não ter cumprido os rituais da tradição, não se tornara uma mulher. Rami revolta-se</p><p>diante de tal afirmação e desabafa: “cumpri o meu papel de esposa: lavar cuecas, coser</p><p>peúgas, pregar botões de camisa dele” (CHIZIANE, 2004, p. 38). Nota-se que se tornar</p><p>mulher é tornar-se vassala do homem, dedicar-se totalmente a ele e por consequência</p><p>ratificar a sua condição de serva. Rami descarrega a sua revolta culpabilizando outras</p><p>mulheres por terem roubado o seu Tony, imediatamente é repreendida pela conselheira</p><p>do amor: “– Não culpes as outras pelo teu insucesso. Como tu foram conquistadas e</p><p>responderam aos apelos do corpo. Os desejos de um homem são desejos de Deus. Não</p><p>se devem negar” (CHIZIANE, 2004, p. 38).</p><p>A imagem do homem, como um ser naturalmente valoroso, torna-o isento de</p><p>culpas caso o casamento esteja desmoronando, pois toda a expectativa com relação ao</p><p>bom relacionamento entre os cônjuges é lançada sobre a mulher. Esta, por sua vez,</p><p>culpabiliza outras, caso o marido a traia. O ser masculino dificilmente será</p><p>responsabilizado pelos seus erros, como consequência, a rivalidade entre as personagens</p><p>femininas que disputam o mesmo homem é acentuada assim como acontece em Balada</p><p>de amor ao vento. É o que vemos quando Rami resolve procurar as amantes de Tony.</p><p>Ao se deparar com a primeira amante, a Julieta, a narradora/protagonista descreve a sua</p><p>impressão: “Olho bem para a minha rival. Na imagem desta mulher a morte do meu</p><p>amor, a causa da minha dor. Por causa dela, sofro esta solidão. Ela enfeitiçou o meu</p><p>homem para tirá-lo de mim” (CHIZIANE, 2004, p. 21).</p><p>68</p><p>Na disputa pelo mesmo homem, as personagens femininas não percebem que</p><p>seu verdadeiro rival está para além de uma figura humana, pois se trata do sistema</p><p>patriarcal dominante, transmitida por meio de crenças, mitos, tradição religiosa,</p><p>representações e exploração do imaginário social, que as engessou em papéis</p><p>internalizados e repassados de geração a geração.</p><p>Os privilégios concedidos aos homens lhes permitem cometer toda a sorte de</p><p>escárnio contra as mulheres, já que a cultura patriarcal reverbera em todas as instâncias</p><p>sociais e são assimiladas como verdades absolutas. Os instrumentos de inculcação e</p><p>persuasão inserem-se nas práticas da tradição cristã bem como da tradição nativa</p><p>moçambicana. Esta toma forma em vários trechos da narrativa. Para ilustrar nossas</p><p>proposições, citamos o momento em que a conselheira do amor dá lições à Rami de</p><p>como agradar o homem, e entre elas trava-se um diálogo que dá indícios de como as</p><p>culturas tanto do sul quanto do norte de Moçambique contribuem para disseminar a</p><p>ideologia da superioridade masculina:</p><p>– Se queres um homem prenda-o na cozinha e na cama – diz ela. – Há</p><p>comidas masculinas e femininas. Na galinha, as mulheres comem as</p><p>patas, as asas e o pescoço. Aos homens servem-se as coxas de frangos.</p><p>A moela.</p><p>– A moela de galinha? No norte também? – pergunto eu, morta de</p><p>curiosidade.</p><p>[...]</p><p>– No norte, a história da moela por vezes gera conflitos conjugais, que</p><p>terminam em violência e até em divórcios.</p><p>– Não é possível! No sul também é assim. Essa tradição devia ser</p><p>combatida (CHIZIANE, 2004, p. 43).</p><p>Na condição de mulher casada neste contexto social, poucas são as que não se</p><p>submetem aos encargos impostos pelo sistema patriarcal, pois são encurraladas pelas</p><p>instituições sociais – geralmente dirigidas por homens – a cumprirem o papel de esposas</p><p>dóceis. Concretiza-se assim a “violência simbólica, violência suave, insensível, invisível</p><p>a suas próprias vítimas” (BOURDIEU, 2017, p. 12), cujo exercício se dá</p><p>“essencialmente pelas vias puramente simbólicas da comunicação e do conhecimento,</p><p>ou mais precisamente, do desconhecimento, ou em última instância, do sentimento”</p><p>(2017, p. 12).</p><p>É preciso considerar que essa violência cerceia a mulher de tal forma que a</p><p>torna vulnerável a várias formas de controle, inclusive fazendo-a acreditar, como diz a</p><p>pesquisadora Amara Moira (2017, on-line) “que precisam de um homem que as proteja.</p><p>69</p><p>Quando, na verdade, a violência é perpetrada também dentro do próprio lar”. Inferimos,</p><p>portanto, que os papéis, que devem ser exercidos pelas mulheres, são construídos de</p><p>forma que elas estejam sempre prontas a se doar, sem direito à reciprocidade apenas</p><p>entrega de uma das partes, neste caso, da mulher. Para isso, é preciso abnegar qualquer</p><p>sentimento que contrarie os desejos masculinos.</p><p>Essa perspectiva fica mais acentuada nos monólogos de Rami, momentos em</p><p>que ela revela os costumes do norte e sul, que legitimam a submissão e opressão</p><p>protagonizada contra a mulher, como vemos no trecho abaixo:</p><p>As culturas são fronteiras invisíveis construindo fortaleza do mundo.</p><p>Em algumas regiões do norte de Moçambique, o amor é feito de</p><p>partilhas. Partilha-se a mulher com o amigo, com o visitante nobre,</p><p>com o irmão de circuncisão. Esposa é água que serve ao caminhante,</p><p>ao visitante. A relação do amor é uma pegada na areia do mar que as</p><p>ondas apagam. Mas deixa marcas. Uma só família pode ser um</p><p>mosaico de cores e raças de acordo com o tipo de visitas que a família</p><p>tem, porque mulher é fertilidade. É por isso que em muitas regiões os</p><p>filhos recebem o apelido da mãe. Na reprodução humana, só a mãe é</p><p>certa. No Sul, a situação é bem outra. Só se entrega a mulher ao irmão</p><p>de sangue ou de circuncisão quando o homem é estéril (CHIZIANE,</p><p>2004, p. 39, grifos nossos).</p><p>A mulher é objetificada, podendo ser entregue pelas mãos de um homem a</p><p>outro homem. Na sentença acima, não se percebe nenhuma manifestação da mulher</p><p>contestando o que foi decidido pela família, caso ela seja escolhida para ser entregue a</p><p>um visitante ou a um irmão de sangue.</p><p>A voz da autora reverbera no trecho do romance acima, ratificando o que</p><p>defende em entrevistas quando demonstra o seu desconforto com relação a várias</p><p>culturas de seu país que tentam objetificar a mulher. Temos a impressão de que a</p><p>personagem narradora se afasta para tornar audível</p><p>a voz da sua criadora, esta, por sua</p><p>vez, revela que, independente da região, a cultura tradicional do seu país tende a</p><p>engessar a mulher de modo a impedir qualquer possibilidade de autonomia.</p><p>Há evidências na narrativa de que a condição da mulher não é diferente na</p><p>cidade, espaço de hibridização cultural por consequência do período colonial português.</p><p>Constatamos isso quando Rami resolve procurar as amantes de Tony e se depara com</p><p>vidas iguais a sua. Cada encontro termina em pancadaria entre elas, no entanto é com a</p><p>terceira mulher de Tony, Luísa, que se dá a maior contenda, até que ambas vão parar na</p><p>delegacia. É nesse espaço majoritariamente masculino que se revela a legitimidade do</p><p>70</p><p>poder masculino. Quando Rami anuncia que é mulher do comandante daquele policial,</p><p>ele imediatamente tenta reverter a situação e repreende-a: “– Se o seu marido a deixa, a</p><p>senhora deve ser azeda, fria. Homem é homem, tem todo o direito de procurar em</p><p>qualquer lugar o que em casa não há” (CHIZIANE, 2004, p. 52).</p><p>Não há a proteção à mulher. Diante da lei personificada no policial, suas</p><p>reivindicações também são invisibilizadas, e, portanto, desconsideradas. Como um</p><p>agente do Estado, o policial se sente, inclusive, no direito de atacar simbolicamente as</p><p>mulheres à sua frente:</p><p>– É uma vergonha, duas esposas de uma pessoa tão importante</p><p>baixarem de nível até este ponto. [...] E parem de manchar a imagem</p><p>de um homem tão culto, tão ilustre e tão cheio de classe. Comportem-</p><p>se à altura do digníssimo marido que conseguiram caçar, minhas</p><p>senhoras (CHIZIANE, 2004, p. 58).</p><p>Não se discute a condição das esposas, tampouco há críticas ao fato de Tony,</p><p>homem cristão e da lei, ter duas esposas. A repreensão é direcionada às mulheres por</p><p>estarem maculando a reputação do marido com suas atitudes. A elas, é negado qualquer</p><p>direito de manifestação contra o companheiro, representação simbólica da soberania</p><p>masculina.</p><p>A escritora feminista bell hooks permite-nos uma reflexão sobre a</p><p>insensibilidade do homem negro com relação à mulher negra ao afirmar que “homens</p><p>negros são capazes de desconsiderar os sofrimentos de mulheres negras, como se</p><p>fossem desimportantes, porque a socialização sexista ensina que eles devem ver</p><p>mulheres como objetos, sem valor humano nem mérito” (2020, p. 166). Embora esteja</p><p>fazendo uma explanação sobre a solidariedade sexista entre homens brancos e negros</p><p>nos EUA, nos respaldamos em hooks por entendermos que essa é uma prática das</p><p>sociedades que se alicerçam na estrutura patriarcal em geral, não somente das que são,</p><p>em sua maioria, constituídas por homens e mulheres negros/as.</p><p>Faz-se necessário que a mulher para ser reconhecida como “boa dona de casa”</p><p>aceite, com passividade, todos os papéis que lhe foram atribuídos pelo sistema</p><p>patriarcal. Lembremo-nos de que se alguma mulher decide contestar os papéis que lhe</p><p>são atribuídos, podem pagar muito caro por isso. Como vimos em vários momentos da</p><p>história da humanidade, sendo a caça às bruxas na idade média, o período auge dessa</p><p>história.</p><p>71</p><p>Em Niketche, quanto mais a personagem Rami se manifesta contra a condição</p><p>imposta a ela, mais evidente se torna a naturalidade da tirania masculina contra o</p><p>feminino. Não há escapatória, onde quer que a narradora/protagonista vá, na tentativa de</p><p>encontrar apoio, as vozes que se manifestam, reafirmam os papéis estabelecidos para a</p><p>mulher. Vale lembrar que a soberania masculina fora erigida também pelo mito da</p><p>virilidade e, como afirma a filósofa francesa, Simone de Beauvoir (2009), todo mito</p><p>pressupõe um Sujeito e, por não fazerem parte da categoria Sujeito, pois foram tidas</p><p>como o Outro na história dos homens,</p><p>elas [as mulheres] não criaram o mito viril no qual seus projetos se</p><p>refletiriam [...]. A representação do mundo, como o próprio mundo, é</p><p>operação dos homens; eles o descrevem do ponto de vista que lhes é</p><p>peculiar e que confundem com a verdade absoluta (2009, p. 211).</p><p>Para ilustrar as reflexões de Beauvoir, sobre a representação do mundo como</p><p>operação dos homens, esboçamos um trecho do romance em que Rami resolve visitar a</p><p>mãe e o pai e queixa-se ao progenitor sobre o seu casamento. Ele que aparentemente,</p><p>aos olhos da filha, demonstra morbidez, repentinamente, renova-se e tal qual o policial,</p><p>que mencionamos acima, faz a sua defesa em favor da supremacia masculina: “– Se o</p><p>teu marido não te responde, é em ti que está a falta” (CHIZIANE, 2004, p. 97).</p><p>Surpreendida com a reação e acusação áspera do pai, Rami lhe pergunta onde está a</p><p>falta dela, ao que ele responde: “– As mulheres de hoje falam muito por causa dessa</p><p>coisa de emancipação. Falas demais, filha. No meu tempo as mulheres não eram assim”</p><p>(2004, p. 97). O pai de Rami percebe que há uma ameaça ao império masculino,</p><p>manifesta-se contra e censura a filha, tornando vil o seu sofrimento.</p><p>É preciso arrefecer os ânimos da figura feminina, pois o mundo foi construído</p><p>por e para os homens. Seus privilégios devem ser mantidos em detrimento da autonomia</p><p>das mulheres. Enquanto isso, elas devem manter-se na invisibilidade, inibir seus</p><p>sentimentos e responsabilizar-se em manter o casamento intacto ainda que o marido não</p><p>cumpra com a função de provedor como determina o sistema sociopolítico patriarcal.</p><p>Isso está assegurado em todas as instâncias de poder. No entanto, a</p><p>narradora/protagonista continua a sua jornada na tentativa de se fazer ouvir.</p><p>A quebra de expectativa na narrativa se dá após Rami ter conversado com a</p><p>mãe, cujo conselho, mais uma vez, é direcionado na tentativa de apaziguar os conflitos</p><p>da filha. A mãe ensina-lhe o que aprendeu: “– Este teu marido bonito está apenas a</p><p>72</p><p>pastar noutras searas, mas há de voltar. Há por aí muita mulher procurando ser ruminada</p><p>por aqueles dentes de bode. Segura esse marido com as duas mãos. Um homem segura-</p><p>se, minha filha” (CHIZIANE, 2004, p. 99). Em seguida, chora ao recordar a morte de</p><p>uma irmã por causa de uma moela de galinha:</p><p>– Era domingo e a minha irmã preparou o jantar. Era galinha.</p><p>Preparou a moela cuidadosamente e guardou numa tigela. Veio o gato</p><p>e comeu. O marido regressou e perguntou: a moela? Ela explicou. Foi</p><p>inútil. O homem sentiu-se desrespeitado e espancou-a selvaticamente.</p><p>Volta para casa da tua mãe para ser reeducada, disse ele. Já! Ela</p><p>estava tão agoniada que perdeu a noção do perigo e meteu-se em</p><p>marcha na calada da noite. Eram cerca de dez quilômetros até ao lar</p><p>paterno. Caiu nas garras do leopardo nas savanas distantes. Morreu na</p><p>flor da idade por causa de uma imbecilidade. Morreu ela e ficou o gato</p><p>(CHIZIANE, 2004, p. 100).</p><p>No depoimento da mãe subjaz o medo, por isso atribui à filha a</p><p>responsabilidade de preservar o casamento. As lágrimas revelam que a progenitora nada</p><p>pode fazer para libertar a filha de um contexto em que a hierarquia de gênero</p><p>predomina, anulando, inclusive, o sofrimento da mulher. A mãe, vítima dessa estrutura,</p><p>vê na descendente a história de opressão sendo repetida na nova geração e se sente</p><p>impossibilitada de fazer algo para mudar esse cenário. As violências perpetradas, não</p><p>somente contra a irmã, mas contra toda uma geração de mulheres é revivida naquele</p><p>momento, na história da filha. Nada pode fazer por ela senão aconselhá-la à submissão.</p><p>O silenciamento a que foi submetida é a única coisa que sabe ensinar, pois, caso a filha</p><p>resolva se rebelar, poderá perdê-la definitivamente para a morte. Seu choro silencioso</p><p>revela ainda que o sofrimento deve ser velado para não incomodar o torturador.</p><p>Diante das lágrimas veladas da mãe, Rami toma consciência do quão aviltada é</p><p>a mulher, esse episódio a impulsiona a tomar atitudes não mais contra suas rivais, mas a</p><p>favor. O capítulo seguinte do romance nos coloca diante de uma nova Rami. O virar a</p><p>página do leitor é sincronizado com o redirecionamento que a narradora/protagonista dá</p><p>à sua vida e à de todas as mulheres</p><p>de Tony, como se a memória tocada pela mãe a</p><p>tivesse despertado não só para a sua condição, mas a das mulheres, que foram vítimas</p><p>do seu marido.</p><p>Rami decide ouvir o que pensam mulheres e homens sobre a poligamia. Sonda</p><p>as mulheres e percebe a revolta delas com relação a essa forma de relacionamento:</p><p>“Elas reagiram como gasolina na presença de um pavio aceso. Explosão, chamas,</p><p>lágrimas, feridas e cicatrizes. A poligamia é uma cruz. Um calvário. Um inferno. Um</p><p>73</p><p>braseiro. E cada uma conta sua história trágica comovente” (CHIZIANE, 2004, p. 102).</p><p>Ouve homens que salivam quando falam da poligamia, sorriem “esticam os lábios de</p><p>orelha a orelha. As glândulas salivam entram em acção como se estivesse a servir um</p><p>manjar de agradável paladar” (2004, p. 102), e ressaltam: “Poligamia é natureza, é</p><p>destino, é nossa cultura, dizem. No país há dez mulheres para cada homem, a poligamia</p><p>tem que continuar. A poligamia é necessária as mulheres são muitas” (2004, p. 102).</p><p>Após esses depoimentos, Rami, surpreendentemente, toma a decisão de unir</p><p>todas as mulheres de Tony, Julieta, Luísa, Saly e Mauá para formarem uma grande</p><p>família poligâmica e apresenta-as à família dele e dela no aniversário de cinquenta anos</p><p>de Tony. As vozes a favor e contra a atitude de Rami se manifestam. A sogra, ao se</p><p>manifestar sobre o assunto, revela o mundo cindido do qual faz parte: no primeiro</p><p>momento, condena a nora para, em seguida, agradecê-la, pois graças à revelação de</p><p>Rami, ela teria todos os netos consigo. Afirma: “a poligamia é a natureza do homem:</p><p>embora se condene, não é crime, não faz mal a ninguém” (CHIZIANE, 2004, p. 115,</p><p>grifo nosso).</p><p>Mais uma vez, a mulher é colocada em condição de invisibilidade. O</p><p>“ninguém” pronunciado pela sogra torna nulo todo o sofrimento da mulher numa</p><p>relação poligâmica, já que ela é a única prejudicada nesse sistema em que os homens</p><p>têm aos seus pés várias mulheres para servi-lo, enquanto elas são cerceadas e reguladas</p><p>não só pelo marido, mas pelo próprio sistema de que lançam mão. No entanto, é</p><p>também a mãe de Tony que faz questão de que as noras sejam todas loboladas, como</p><p>manda a tradição em uma família poligâmica. Há ambiguidade ainda no comportamento</p><p>de Lu e Saly, que, por serem nortenhas, espantaram-se “queriam dizer não por ser</p><p>contra os seus costumes culturais. Mas envolve dinheiro e muito dinheiro. [...] Quando</p><p>se trata de benesses, qualquer cultura serve. Elas esqueceram o matriarcado e disseram</p><p>sim à tradição patriarcal” (CHIZIANE, 2004, p. 125).</p><p>O trecho do romance acima é emblemático por nos fazer perceber que as</p><p>personagens femininas do norte se submetem à ordem patriarcal por uma questão</p><p>econômica. Ainda que haja certa flexibilidade para a mulher no norte de Moçambique</p><p>onde se destaca o regime matrilinear e matrilocal26 entre alguns povos, as personagens</p><p>26 José Luís Cabaço, em seu livro Moçambique: Identidade, Colonialismo e Libertação afirma, com base</p><p>em Jorge Dias e Margot Dias, que no norte de Moçambique entre os Macondes se destacavam o regime</p><p>matrilinear e matrilocal. De acordo com Cabaço, “Na região a presença dos portugueses era mínima: a</p><p>74</p><p>nortenhas se submetem ao regime patriarcal para terem direitos adquiridos no</p><p>casamento com Tony. Sem recursos financeiros próprios, elas se rendem às situações</p><p>que lhe são apresentadas ainda que contra a vontade.</p><p>Além de colocar em voga questões culturais do sul e norte de Moçambique, a</p><p>narrativa traz à luz a discussão sobre a vulnerabilidade econômica da mulher que,</p><p>geralmente, é levada a viver uma relação poligâmica por questões financeiras,</p><p>ocorrendo principalmente quando o homem tem um poder aquisitivo mais elevado. A</p><p>voz da narradora/protagonista em monólogo revela: “Para todas as mulheres o Tony é</p><p>emprego, fonte de rendimento” (CHIZIANE, 2004, p. 67). A filósofa Simone de</p><p>Beauvoir permite-nos uma reflexão sobre essa temática quando afirma:</p><p>O privilégio econômico detido pelos homens, seu valor social, o</p><p>prestígio do casamento, a utilidade de um apoio masculino, tudo</p><p>impele as mulheres a desejarem ardorosamente agradar aos homens.</p><p>Em conjunto, elas ainda encontram-se em situação de vassalas. Disso</p><p>decorre que a mulher se conhece e se escolhe, não tal como existe para</p><p>si, mas tal qual o homem a define (2009, p. 203).</p><p>É recorrente entre as feministas a temática dos privilégios concedidos aos</p><p>homens. bell hooks, por exemplo, pautando-se em John Stoltenberg explica da seguinte</p><p>forma essa situação: “[...] no patriarcado, a norma cultural da identidade do homem</p><p>consiste em poder, prestígio, privilégio e prerrogativa acima e contra a classe das</p><p>mulheres” (STOLTENBERG apud HOOKS, 2020, p. 164).</p><p>Esta é mais uma forma de tacitamente subjugar e tiranizar as mulheres, pois</p><p>sendo eles os detentores dos bens econômicos, tornam-se, no imaginário feminino, um</p><p>“prêmio” para ser conquistado. Essa estratégia contribui para criar conflitos entre elas,</p><p>uma vez que conquistar um homem se torna um dos objetivos da condição feminina</p><p>para manter a sua estabilidade financeira.</p><p>O romance Niketche como representação de realidades vivenciadas em</p><p>algumas regiões de Moçambique, bem como em alguns países de África, desvela com</p><p>precisão quais as estratégias de poder para a manutenção dos privilégios masculinos. A</p><p>imagem de mulher/serva é acentuada à medida que as personagens femininas</p><p>reivindicam seus direitos, quanto mais lutam mais os papéis sociais que elas devem</p><p>cumprir são acionados. É o que observamos quando Rami lança mão da poligamia para</p><p>agricultura caracterizava-se pela predominância das grandes plantações (algodão e sisal); não existia</p><p>indústria; a rede de transportes era elementar” (2009, p. 290-291).</p><p>75</p><p>garantir os seus direitos como mulher casada. Embora pareça vantajoso para ela e para</p><p>as suas amigas/rivais, esse sistema revela-se também garantidor dos direitos concedidos</p><p>ao homem. O trecho do romance ilustra nossa proposição, momento em que as mulheres</p><p>de Tony recebem orientações de como proceder no sistema poligâmico:</p><p>– Devem servir o vosso marido de joelhos, como a lei manda. Nunca</p><p>servi-lo na panela, mas sempre em pratos. Ele não pode tocar na loiça</p><p>nem entrar na cozinha. Quando servirem galinha, não se esqueçam das</p><p>regras. Aos homens se servem os melhores nacos: as coxas, o peito, a</p><p>moela. Quando servirem carne de vaca, são para eles os bifes, os ossos</p><p>gordos com tutano. É preciso investir nele, tanto no amor como na</p><p>comida. O seu prato deve ser o mais cheio e o mais completo, para</p><p>ganhar mais força e produzir filhos de boa saúde, pois sem ele a</p><p>família não existe (CHIZIANE, 2004, p. 126).</p><p>Essas máximas são proferidas por suas ancestrais, o que confirma que a</p><p>dominação masculina estende os seus tentáculos por todas as esferas, incluindo os</p><p>espaços públicos e privados. Não basta apenas confiná-las no espaço privado é preciso</p><p>reafirmar a sua imagem como o Outro, para que o homem possa colocar-se como</p><p>sujeito soberano.</p><p>Tal soberania é reafirmada em cada ritual de casamento, como vimos no</p><p>romance Balada de amor ao vento e agora em Niketche; simultaneamente, a identidade</p><p>feminina é ratificada como algo negativo. À medida que a imagem da mulher é reiterada</p><p>como o Outro do homem, sua identidade é construída por meio da negação de sua</p><p>subjetividade.</p><p>Confinada no espaço do lar e educada para servir, a mulher não tem outra</p><p>alternativa senão adquirir “tanto por mimetismo inconsciente quanto por obediência</p><p>expressa” (BOURDIEU, 2017, p. 45) a maneira correta de se comportar como</p><p>esposa/vassala. Consideremos que toda essa construção se dá pautada no sexismo: é</p><p>preciso que, como mulher, sua concepção de vida esteja atrelada, pelo mito da boa dona</p><p>de casa, às atividades domésticas; ademais, além de ser serva do marido, ela deve</p><p>também ser boa reprodutora, pois “mulher estéril é um ser condenado à solidão, à</p><p>amargura” (CHIZIANE, 2004, p. 136).</p><p>A escritora demostra a sua indignação sobre o controle do corpo feminino e faz</p><p>ver que essa é uma das formas de tentar manter a mulher engessada em seu papel.</p><p>Sendo mãe, dedicar-se-á com afinco à educação dos filhos e aos trabalhos domésticos,</p><p>enquanto os homens serão os senhores que decidirão o rumo do país, já que ocupam os</p><p>76</p><p>cargos públicos e de poder. Explica-se, dessa forma, o mito da maternidade e a ideia de</p><p>que a mulher só será mulher, de acordo com o imaginário social, a partir do momento</p><p>que se tornar mãe, do contrário será um ser “eternamente à busca de um poiso, numa</p><p>sociedade onde só é considerada mulher aquela que pode parir” (CHIZIANE, 2004, p.</p><p>136).</p><p>Todavia, os diálogos entre as coesposas de Tony revelam quão conscientes</p><p>estão de sua condição nesta sociedade sexista. Como vemos na manifestação de Rami:</p><p>“a sociedade, os homens, as próprias mulheres, especialmente as sogras que determinam</p><p>o número de filhos que devem nascer dentro de um lar” (2004, p. 136-137). Entretanto,</p><p>são poucos que “não portam ideologias dominantes de gênero, ou seja, poucas mulheres</p><p>questionam sua inferioridade” (SAFFIOTI, 2004, p. 35).</p><p>Na narrativa, aqui em estudo, vimos que Rami é uma das que reproduz os</p><p>discursos patriarcais, todavia, timidamente, por meio de monólogos ou de diálogos com</p><p>suas amigas/rivais, – o que indica que ainda se sente coibida para expressar sua</p><p>indignação publicamente – a narradora/protagonista demonstra o seu desconforto com</p><p>relação à condição da mulher e busca delinear um outro modo de sobrevivência.</p><p>Ademais, as peripécias pelas quais ela passa vão gradativamente ilustrando a</p><p>vivência da mulher em um cenário construído para torná-la um ser incapaz e dependente</p><p>do homem, possibilitando, assim todas as formas de violência que vai desde a</p><p>“violência simbólica” e, portanto, “silenciosa e invisível” (BOURDIEU, 2017) até a</p><p>física, quando ocorre, por exemplo, a kutchinga27, em um episódio em que Tony foi</p><p>dado como morto. O ritual é descrito da seguinte forma por Rami:</p><p>kutchinga é lavar o nojo com beijos de mel. É inaugurar viúva, oito</p><p>dias depois da fatalidade. Kutchinga é carimbo, marca de propriedade.</p><p>27 No livro Usos e Costumes dos Bantu, do missionário-etnógrafo Henri Junod (2009, p. 178-179-190),</p><p>temos a explanação dos rituais realizados pelos Tsongas aos quais mulheres viúvas são submetidas. Após</p><p>vários rituais de purificação das viúvas, elas, como propriedades da família do marido e parte dos bens</p><p>dele, devem ser repartidas pelos herdeiros da família. Neste momento é feita uma reunião e as irmãs do</p><p>morto dirigem as negociações com as viúvas a respeito dos novos maridos. Se o marido possuía um</p><p>harém, isto é, pelo menos cinco mulheres, estas serão muito provavelmente atribuídas aos herdeiros pela</p><p>seguinte maneira: a mulher principal, que é o ‘pilar da aldeia’ deve ficar nessa e pertence ao irmão a</p><p>seguir do defunto, que se torna o senhor da povoação. A segunda é atribuída ao seguinte irmão, a terceira</p><p>ao terceiro, a quarta ao filho da irmã do defunto. A quinta será a mulher de um dos filhos do morto [...],</p><p>ela é a mais nova de todas casou-se quando o pai era já velho, e o filho mais velho do morto talvez tenha</p><p>mais idade do que ela. Junod não usa o termo kutching, porém a prática descrita é semelhante às</p><p>desempenhadas pelas personagens femininas no ritual da viúva mencionada no romance Niketche.</p><p>77</p><p>Mulher é lobolada com dinheiro e gado. É propriedade. Quem investe</p><p>cobra, é preciso que o investimento rende (CHIZIANE, 2004, p. 212).</p><p>A descrição da suposta viúva dá a dimensão do quanto a mulher é objetificada</p><p>em dada cultura. Os rituais perpetrados em nome da tradição acabam por ser mais uma</p><p>forma de dominação e controle sobre o corpo feminino.</p><p>Diante da suposta morte do marido, Rami, como primeira esposa, é dada como</p><p>objeto sexual ao irmão de Tony para que seja purificada do luto. Aqui a violência física</p><p>legitimada pela tradição é acionada. Ela perde completamente o domínio sobre o seu</p><p>corpo. É manipulada pelas mãos das cunhadas, tem os cabelos raspados, é levada a casa</p><p>de banho para ser purificada com óleos e sebos, tem a pele rasgada com lâminas para,</p><p>em seguida, passarem pomadas ardentes. Todo esse ritual culmina na entrega de Rami</p><p>ao cunhado Levy para a purificação da viuvez pelo ato sexual.</p><p>Nesse episódio da diegese, a autora implícita nos leva a compreensão do quão</p><p>insuportável se torna a vida da mulher quando a cultura está acima dos direitos</p><p>humanos. Embora a narradora/protagonista ressignifique o ritual de purificação sexual,</p><p>tornando-o um momento de prazer e uma forma de se vingar do marido, como</p><p>observamos no capítulo subsequente da narrativa, é evidente que a escritora Paulina</p><p>Chiziane faz a denúncia da condição da mulher nesse cenário. Demonstra, em que</p><p>medida, a mulher contribui para materializar o império hegemônico masculino. O</p><p>pesquisador Maximiliano Torres, analisa o conto “Cicatrizes do amor”, de Chiziane, e</p><p>enfatiza os papéis culturais determinados pela sociedade como um construtor da</p><p>subordinação feminina. Assevera que</p><p>a construção ideológica de gênero impõe às pessoas modelos de</p><p>comportamento em função do seu sexo. Desse modo, numa estrutura</p><p>patriarcal, todo o processo de socialização vai reforçar preconceitos e</p><p>criar estereótipos para os gêneros, como próprios de uma suposta</p><p>naturalização, apoiados na determinação biológica. Assim, na</p><p>diferença biológica, apoia-se a desigualdade social e esta toma uma</p><p>aparência de naturalidade. Com isso, as relações de gênero refletem</p><p>concepções de gênero, internalizadas tanto por homens quanto por</p><p>mulheres (2010, p. 03).</p><p>Nos capítulos em que os monólogos se sobrepõem aos diálogos, percebe-se</p><p>que as reflexões da narradora/protagonista reverberam a voz da própria escritora que,</p><p>por meio dos seus romances, problematiza a condição da mulher em um cenário em que</p><p>a subjugação, resignação e silenciamento são condições essenciais para que a mulher</p><p>78</p><p>possa ser reconhecida de acordo com os papéis que lhe são conferidos. A mulher está</p><p>destinada desde o nascimento, devido aos efeitos dessa lógica binária, a viver em</p><p>desigualdade social com relação ao homem.</p><p>Nessa perspectiva, apropriamo-nos mais uma vez das reflexões de Simone de</p><p>Beauvoir, quando afirma que o homem constitui a mulher como o Outro e nessa lógica</p><p>a mulher “não se reivindica como sujeito porque não possui os meios concretos para</p><p>tanto, porque sente o laço necessário que a prende ao homem sem reclamar</p><p>reciprocidade dele, e porque, muitas vezes, se compraz no seu papel de Outro” (2009, p.</p><p>22, grifo da autora). Nos romances de Paulina Chiziane, geralmente, são as personagens</p><p>femininas mais velhas, representação da ancestralidade moçambicana, quem zela pela</p><p>manutenção dos papéis femininos, tornando quase impossível a autonomia e liberdade</p><p>das mais jovens.</p><p>2.3 O alegre canto da perdiz: raça, classe e gênero, mecanismos de subalternização</p><p>das personagens femininas</p><p>O romance O alegre canto da perdiz (2018), da escritora Paulina Chiziane, está</p><p>ambientado na província da Zambézia, terra multicultural, pela presença dos nativos,</p><p>árabes-persas e portugueses. A temática preponderante na obra são os conflitos rácicos</p><p>provindos da miscigenação desses povos, que afeta, sobretudo, a condição da mulher.</p><p>No romance, a luta de três gerações de mulheres de uma mesma família pela</p><p>sobrevivência ilustra as sequelas da colonização portuguesa desde o período da</p><p>escravidão até a atualidade.</p><p>Serafina, a matriarca da família, por ter visto três filhos serem tirados dos seus</p><p>braços para a escravatura, renega a sua própria raça.</p><p>Delfina, filha de Serafina, anseia</p><p>por ascensão econômica, desejando a vida do colonizador. Maria das Dores, filha desta</p><p>e neta daquela, sofre as consequências, na atualidade da enunciação, deste mundo</p><p>cindido que, dentre outras coisas, não lhe permitiu sequer viver plenamente a infância,</p><p>pois aos treze anos fora entregue ao feiticeiro Simba para saldar as dívidas da mãe.</p><p>O início da narrativa se dá com Maria das Dores nua às margens do rio</p><p>Licungo, fugindo dos ataques de mulheres e crianças em uma vila da cidade de Gurue.</p><p>As mulheres da pequena vila se manifestam em uníssono condenando a nudez de Maria</p><p>das Dores. Veem, nessa atitude, mal presságio: “Dentro das mentes assustadas os mitos</p><p>surgem como a única verdade para explicar o inexplicável. Imaginavam as plantas a</p><p>79</p><p>secar e a chuva a cair e a arrasar todas as sementeiras” (CHIZIANE, 2018, p. 8). Na</p><p>manifestação da multidão, o desespero não apenas por um corpo nu estar à mostra, mas</p><p>por ser o corpo de uma mulher. É necessário que seja coberto para que nada de mal</p><p>aconteça à vila: “Era a superstição e o medo aliando-se como fios da mesma corda”</p><p>(2010, p. 12). Não há compaixão pela mulher que se lhes apresenta desnuda. Querem</p><p>açoitá-la por estar desafiando a soberania masculina ao se apresentar nua e, sobretudo,</p><p>por estar tomando banho no lugar privado dos homens, “quebrando todas as normas do</p><p>local” (2010, p. 7).</p><p>As vozes que se manifestam em coro, julgando a mulher nua, dão indícios de</p><p>que o império masculino está preservado e assegurado por meio dos mitos</p><p>internalizados no imaginário social, sendo o controle sobre o corpo feminino uma das</p><p>estratégias de sua manutenção. Os mitos contribuem, assim, para a concretização do</p><p>poder simbólico masculino e para que isso ocorra, as próprias mulheres se tornam as</p><p>suas guardiãs. De acordo com Bronislaw Baczko, a sociedade, ao produzir um sistema</p><p>de representação que simultaneamente traduz e legitima a sua ordem, instala também</p><p>“‘guardiões’ do sistema que dispõem de uma certa técnica e manejo das representações</p><p>e símbolos” (1985, p. 299), sendo assim “tanto o imaginário social como as técnicas do</p><p>seu uso são produzidos espontaneamente confundindo-se com os mitos e ritos”</p><p>(BACZKO, 1985, p. 299) No romance, as personagens femininas da aldeia identificam</p><p>a protagonista da desordem e, quando percebem que ela não se submete aos seus</p><p>comandos, decidem chamar a mulher do régulo – autoridade tradicional local – que</p><p>restabelece a ordem, porém contradizendo as superstições, como veremos na próxima</p><p>seção.</p><p>As limitações impostas às personagens femininas são atravessadas também</p><p>pela tentativa de controle sobre o corpo nu da mulher, estigmatizando-o como algo que,</p><p>desnudo, traz mau presságio não só para o homem, mas para toda a comunidade. Diante</p><p>do exposto, acreditamos que os romances da escritora Paulina Chiziane nos fazem</p><p>refletir o modus operandi dessa sociedade e dão indícios de que as superstições e os</p><p>mitos erigidos contribuem para impedir qualquer movimento de resistência da figura</p><p>feminina, o que vai ao encontro do que pensa Bourdieu:</p><p>[os ritos] se inscrevem na série de operações de diferenciação visando</p><p>a destacar em cada agente, homem ou mulher, os signos exteriores</p><p>mais imediatamente conformes à definição social de sua distinção</p><p>sexual, ou estimular as práticas que convêm a seu sexo, proibindo ou</p><p>80</p><p>desencorajando condutas impróprias, sobretudo na relação com o</p><p>outro sexo (2017, p. 43, grifos nossos).</p><p>A diferença biológica entre os sexos determina não só as relações de gênero</p><p>como também ordena toda lógica social, inclusive estabelece os espaços limitados às</p><p>mulheres e reservados apenas para os homens. Tudo isso “conformando-se aos</p><p>princípios de uma visão mítica do mundo, enraizada na relação arbitrária de dominação</p><p>dos homens sobre as mulheres” (BOURDIEU, 2017, p. 24). Assinalamos ainda que essa</p><p>ordenação é respaldada também pelos ritos, que de forma insidiosa – usando as</p><p>reflexões de Bourdieu – são eficazes, simbolicamente, para torná-la possível.</p><p>Esse cenário pode ser percebido no cotidiano da personagem Delfina, que</p><p>sonha em estudar e ser professora, mas é expulsa pela freira do colégio da missão</p><p>“porque era recheada, bonita e atrapalhava a concentração dos rapazes” (CHIZIANE,</p><p>2018, p. 74). Além de ser impedida de realizar os seus sonhos por ser mulher, seu corpo</p><p>é perseguido por despertar o desejo dos padres. Há implícito nesse episódio questões</p><p>interseccionadas por raça e classe. Não há espaço no mundo do colonizador para a</p><p>realização dos sonhos da mulher negra.</p><p>A igreja do colonizador, guardiã dos bons costumes e da moral, torna-se na</p><p>narrativa a instituição que também tenta manter o controle sobre o corpo da mulher. É</p><p>pelas mãos de uma mulher/freira que a personagem Delfina é punida porque o seu corpo</p><p>representa uma ameaça. A guardiã do imaginário social – agora representada pela freira</p><p>– se ergue para cercear o corpo feminino que precisa estar em constante estado de</p><p>vigília. Simone de Beauvoir, em suas pesquisas, aponta o cristianismo como o</p><p>construtor da imagem da mulher como um ser repugnante visto que é carne e como tal,</p><p>“nela é que se encarnam todas as tentações da terra, do sexo, do demônio. Todos os</p><p>padres da Igreja insistem no fato de que ela conduziu Adão ao pecado” (2009, p. 242).</p><p>Corrobora essa reflexão Patricia Hill Collins quando discorre sobre o corpo da</p><p>mulher negra norte-americana, visto pelo imaginário social como algo que precisa ser</p><p>controlado, argumenta baseando-se em Barbara Christian que “as imagens associadas à</p><p>condição da mulher negra servem como um reservatório dos medos da cultura</p><p>ocidental”. Reitera “um local de despejo para aquelas funções femininas que uma</p><p>sociedade fundamentalmente puritana não conseguiu confrontar” (CHRISTIAN apud</p><p>COLLINS, 2019, p. 142).</p><p>81</p><p>Para Collins, a imagem da mammy, por exemplo, é um dispositivo criado pela</p><p>cultura ocidental branca que vem corroborar “a ideologia do culto à verdadeira condição</p><p>da mulher, a qual elimina a sexualidade e a fecundidade” (2019, p. 142). O homem</p><p>nunca deve chegar a ela na sua nudez original sem que antes tenha passado pela</p><p>purificação por meio dos ritos operados pelas mãos dos sacerdotes “através de</p><p>cerimônias, sacramentos que a arrancam da terra, da carne, que a metamorfoseiam em</p><p>uma criatura humana” (BEAUVOIR, 2009, p. 244).</p><p>A escritora feminista bell hooks, por sua vez, faz uma explanação sobre a</p><p>ênfase que o movimento dos muçulmanos negros deu “na purificação e limpeza de</p><p>pessoas negras, principalmente de mulheres negras, de sua sexualidade imunda”, nos</p><p>EUA. Elas foram incentivadas a aderir ao movimento. Destaca ainda que</p><p>no patriarcado estadunidense, acredita-se que todas as mulheres são a</p><p>encarnação do mal sexual. O racismo sexual levou mulheres negras a</p><p>serem as que mais sofrem com a necessidade de degradar e</p><p>desvalorizar mulheres. Enquanto mulheres brancas foram colocadas</p><p>em um pedestal simbólico, as negras são vistas como mulheres caídas</p><p>(HOOKS, 2020, p. 180).</p><p>O racismo anti-negro, usando um termo desenvolvido por Patricia Collins</p><p>(2019), acentua essa imagem da mulher negra como ser impuro, colocando-a em</p><p>condição de total aviltamento, haja vista que são dadas como “naturalmente mais</p><p>sexuais e moralmente depravadas do que outros grupos de mulheres” (HOOKS, 2020, p.</p><p>28).</p><p>A personagem Delfina é a metáfora desse imaginário de mulher erigido pela</p><p>cultura patriarcal ocidentalizada: a negra, que traz em si a maldição da carne. Dada</p><p>como impura por uma mulher branca, é afastada dos espaços em que poderia desvirtuar</p><p>homens de “boa índole”. Sofre a violência simbólica ao ser cerceada de realizar-se</p><p>como uma mulher produtiva na sociedade. Seus sonhos são reprimidos por ser mulher e</p><p>por trazer na pele a cor do “pecado da carne”.</p><p>A igreja também rejeita Maria das Dores, filha de Delfina.</p><p>Quando Jacinta</p><p>descobre que sua irmã Maria das Dores fora entregue ao feiticeiro Simba como forma</p><p>de pagamento pelas dívidas da mãe, procura o socorro da igreja e expõe o caso. “Estes</p><p>cruzaram os braços e declararam: já não é pura, não vale a pena” (CHIZIANE, 2018, p.</p><p>82</p><p>262). Ao discutir sobre a religião cristã, no contexto do colonizado, Frantz Fanon28</p><p>afirma:</p><p>Uma Igreja nas colônias é uma Igreja de brancos, uma Igreja de</p><p>estranhos. Ela não chama o homem colonizado para o caminho de</p><p>Deus, mas para o caminho do branco, o caminho do senhor, o</p><p>caminho do opressor. E, como sabemos, nessa história há muitos</p><p>chamados e poucos escolhidos (2010, p. 59).</p><p>O Deus cristão não corresponde às aflições da mulher, pois ele apresenta-se</p><p>apático e impotente diante dos problemas que dizem respeito às questões do feminino.</p><p>Seus representantes parecem estar preocupados apenas em fazer belos discursos, mas</p><p>negligenciam em suas práticas. Eles têm a pretensão de corresponder aos interesses da</p><p>metrópole que os mantém economicamente e que persiste na ideia de uma sociedade</p><p>eminentemente patriarcal. Contudo, por meio do discurso indireto livre, o narrador</p><p>revela-nos a consciência da personagem feminina com relação ao descaso da igreja para</p><p>com a sua condição, como vimos no trecho do romance acima mencionado. Para o</p><p>pesquisador António Manuel Ferreira:</p><p>Alguns dos temas africanos trabalhados por Paulina Chiziane, embora</p><p>surjam programaticamente localizados, podem ser transpostos para</p><p>outras latitudes, por causa da sua dimensão intrinsicamente universal.</p><p>No que diz mais diretamente respeito à questão religiosa, a escritora</p><p>tende, por exemplo, a opor a presença sensorial e tangível das</p><p>divindades africanas à abstração longínqua e inatingível do deus que</p><p>veio de fora e foi imposto pela espada da cruz (2013, p. 89).</p><p>O episódio da personagem Delfina assim como o da sua filha Maria das Dores</p><p>problematizam questões interseccionais: às personagens é negado o direito à proteção</p><p>da igreja por serem mulheres, negras e pobres. Sobre essa temática, a professora e</p><p>pesquisadora Kimberlé Crenshaw defende a ideia de que as políticas de proteção racial</p><p>e de gênero não consideram que as pessoas que sofrem discriminação ou são oprimidas</p><p>na relação são também mulheres negras. Para Crenshaw, os mecanismos de proteção</p><p>legal contra as discriminações racial e de gênero não têm contemplado as questões</p><p>interseccionais de raça, gênero e classe. A pesquisadora afirma que é preciso</p><p>28 Frantz Fanon ficou conhecido como o psiquiatra da guerra na Argélia, foi um revolucionário e crítico</p><p>do regime colonial. Suas ideias “estimularam obras influentes no pensamento político e social, na teoria</p><p>da literatura, nos estudos culturais e na filosofia” (GORDON, Lewis R. Prefácio. In: FANON, Frantz.</p><p>Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008)</p><p>83</p><p>compreender que “as vítimas da discriminação racial podem ser mulheres e que as</p><p>vítimas de discriminação de gênero podem ser mulheres negras” (CRENSHAW, s/d, p.</p><p>8-9). Crenshaw pontua que quando os direitos humanos não consideram a discriminação</p><p>interseccional que as mulheres negras enfrentam, estas ficam desprotegidas. É preciso</p><p>considerar que esse grupo de mulheres são as que mais sofrem com a questão da</p><p>discriminação não só de gênero e raça, mas também de classe. Por não considerarem</p><p>essas diversidades acabam universalizando a proteção, e as políticas de proteção falham</p><p>em seu objetivo.</p><p>Em um mundo marcado pela violência da colonização como o da personagem</p><p>Maria das Dores bem como o de Delfina, não existem direitos para a mulher negra. Se</p><p>já eram vítimas da ordem patriarcal operada pelas várias tradições moçambicanas, isso</p><p>se acentua com os desmandos da colonização portuguesa, sistemas que ratificam a</p><p>subjugação da mulher negra, tornando-as invisíveis, também, para o Estado.</p><p>Entretanto Delfina, ao ser apresentada pela narradora no capítulo oito do</p><p>romance, quando ainda era jovem, está próxima ao porto e demonstra admiração e</p><p>desejo pela vida dos brancos, pensa por “convicção nascida da intuição, de</p><p>pressentimentos infundados, de uma estrela elétrica ou da vela do farol distante. Do</p><p>nada. De oráculo qualquer. Um dia terei uma casa destas, eu juro. Nesta vida, eu serei</p><p>alguém” (CHIZIANE, 2010, p. 81). Não há uma base sólida que possa respaldar os seus</p><p>sonhos, pois o contexto em que está inserida não lhe dá sustentação para a realizá-los,</p><p>ainda assim sonha, embora, nos comentários da narradora, seja perceptível a</p><p>impossibilidade de concretização dos seus sonhos diante de uma sociedade que</p><p>inviabiliza qualquer tentativa de ascensão do nativo. Seus sonhos alicerçam-se no</p><p>império erigido pelo colonizador por meio da escravização do povo negro. Cenas como</p><p>essas são vistas também em textos literários de Conceição Evaristo. Aludimos às</p><p>reflexões de Simone Schmidt sobre a personagem Ditinha de Becos da memória (2013),</p><p>de Conceição Evaristo; quando a personagem se depara com a sua imagem no espelho</p><p>se vê de forma negativa, pois quer ter vestidos, sapatos, cabelos e joias, enfim ser rica</p><p>como a sua patroa. Schmidt pontua:</p><p>O espelho onde Ditinha se vê reflete, de forma muito clara, a ausência</p><p>de uma tradição de representação de outros paradigmas de beleza,</p><p>auto-estima sociabilidade, que não aqueles construídos a partir das</p><p>regras coloniais, racializadas e patriarcais, os quais confinam o corpo</p><p>84</p><p>da mulher negra em um lugar de negação de si mesma, ou em um não-</p><p>lugar (2018, p. 105).</p><p>Tal qual Ditinha, Delfina não encontra representatividade para alicerçar os seus</p><p>desejos naquilo que os seus ancestrais podem oferecer, pois a sua imagem é o negativo</p><p>da raça europeia, seus costumes, a representação do mal na ótica do colonizador.</p><p>No desejo de Delfina e de Ditinha, tem-se o que Frantz Fanon (2008),</p><p>caracteriza como o desejo do colonizado. Em seus estudos, Fanon observa: “O olhar que</p><p>o colonizado lança sobre a cidade do colono é um olhar de luxúria, um olhar de inveja.</p><p>Sonhos de posse” (2010, p. 56). Subentende-se, portanto, que se há o desejo de posse</p><p>material, há a desigualdade econômica e por consequência a exploração do trabalho</p><p>daqueles que estão em situação de vulnerabilidade, como ocorre com o colonizado.</p><p>Ainda na perspectiva de Fanon, “a originalidade do contexto colonial é que as</p><p>realidades econômicas, as desigualdades, a enorme diferença dos modos de vida não</p><p>conseguem nunca mascarar as realidades humanas” (2010, p. 56). O fato de Delfina</p><p>alimentar em si o desejo de ter o que os brancos possuem nada mais é do que as</p><p>consequências de um mundo construído da exploração do trabalho alheio, que desperta</p><p>no explorado a ânsia de posse por aquilo que foi construído por suas próprias mãos, mas</p><p>que não têm o direito de usufruir.</p><p>A ordem social que se ergue neste cenário cindido pela colonização relega</p><p>principalmente à mulher negra a uma situação de total aviltamento, de tal forma que</p><p>Serafina, mãe de Delfina, no passado da enunciação, também a entregou a um velho</p><p>branco em troca de comida. Além disso, é a mãe Serafina que tenta impedir a filha de se</p><p>casar com José dos Montes, por ele ser negro. Não admite que a progenitora perpetue a</p><p>cor negra em sua família, é preciso melhorar a raça, essas são palavras proferidas por</p><p>Serafina</p><p>que os próprios negros adoptam como verdades inquestionáveis. As</p><p>frases ouvidas gravam-se na mente e materializam-se. E as falsidades</p><p>ganham a forma de verdade. Serafina absorveu a vida inteira as</p><p>injúrias nos gritos dos marinheiros, que acabaram semeadas na</p><p>consciência. [...] O estigma da raça deixou sementes cancerígenas, que</p><p>se multiplicaram como raiz mesmo depois da partida dos marinheiros</p><p>(CHIZIANE, 2018, p. 88).</p><p>A manutenção da hegemonia branca ocidental como raça superior é</p><p>reproduzida pela mãe que internaliza o discurso</p><p>do colonizador como sendo esta a raça</p><p>pura. Serafina destila a sua revolta contra a filha e contra a sua raça: “[...] E tu, Delfina,</p><p>85</p><p>escolhes o caminho do sofrimento. Vais casar com um preto, parir mais pretos e mais</p><p>desgraças. Com tantos brancos que te querem bem. Não custa nada eliminar a tua raça</p><p>para ganhar liberdade” (CHIZIANE, 2018, p. 97). A mãe se torna a algoz de sua própria</p><p>raça, reproduz o discurso tirano do colonizador, reafirmando de forma inconsciente a</p><p>supremacia branca. Acredita que este é um modo de resistência: evitar o casamento</p><p>entre negros e negras para que não se reproduza mão de obra para os exploradores de</p><p>corpos negros. É preciso clarear a raça, reproduzir a cultura do colonizador, pois</p><p>“quanto mais o colonizado assimilar os valores culturais da metrópole, mais o</p><p>colonizado escapará de sua selva. Quanto mais ele rejeitar sua negridão, seu mato, mais</p><p>humano será” (FANON, 2008, p. 34). No mundo branco, segundo Fanon, “o homem de</p><p>cor encontra dificuldade na elaboração de seu esquema corporal. O conhecimento do</p><p>corpo é unicamente uma atividade de negação” (2008, p. 104). Não obstante a África</p><p>subsaariana ser um mundo em que a população em sua maioria é negra, o colonizador</p><p>violentamente se apossou daquelas terras, explorou-as e construiu, no imaginário desses</p><p>povos, a ideia de supremacia branca, em contrapartida, o colonizado eram os bárbaros,</p><p>incultos.</p><p>Nas palavras da mulher/mãe Serafina, a revolta por ser vítima em séculos de</p><p>história do sexismo, racismo e do preconceito de classe. Percebe-se, pelo excerto do</p><p>romance acima, que a colonização deixou sequelas indeléveis na vida das mulheres que</p><p>precisam lidar com a luta pela sobrevivência, muitas vezes, tornando o seu corpo</p><p>mercadoria em troca da sua manutenção e da dos filhos e filhas. A escravidão toma um</p><p>novo corpo na vida da mulher negra, uma vez que ela não se torna propriedade apenas</p><p>de um senhor, mas de vários, pois a luta diária pela sobrevivência torna recorrente a</p><p>busca pelo cliente em troca de migalhas.</p><p>A construção do imaginário da raça negra como negativa foi um dos projetos</p><p>difundidos pelo colonizador para tornar possível a subserviência de pessoas negras com</p><p>relação aos brancos. De acordo com bell hooks (2020), as experiências traumáticas de</p><p>mulheres e homens a bordo de navios negreiros se constituíram uma etapa de</p><p>doutrinação para transformar o ser humano africano livre em escravo. Era necessário</p><p>quebrar o espírito orgulhoso, arrogante e independente das pessoas africanas para “que</p><p>estivesse em conformidade com o conceito que o colonizador branco tinha de</p><p>comportamento escravo apropriado” (HOOKS, 2020, p. 43). Os métodos de tortura nos</p><p>navios negreiros tinham como propósito “forçar as pessoas africanas a reprimir a</p><p>86</p><p>consciência de sua liberdade e adotar a identidade de escravizado que lhe era imposta”</p><p>(p. 43). A autora acentua que</p><p>mulheres africanas recebiam a pior parte dessa violência e desse terror</p><p>em massa, não somente porque poderiam ser vitimadas pela</p><p>sexualidade, mas também porque eram mais propensas a trabalhar</p><p>intimamente com a família branca do que os homens negros. [...] A</p><p>fim de tornar o seu produto vendável, o escravizador precisava</p><p>garantir que nenhuma criada negra recalcitrante envenenasse a</p><p>família, matasse crianças, incendiasse a casa ou oferecesse resistência</p><p>de qualquer forma (HOOKS, 2020, p, 44).</p><p>Corrobora essa reflexão o antropólogo Kabengele Munanga quando afirma</p><p>como tráfico negreiro foi “um intercâmbio de mercadorias humanas africanas contra</p><p>mercadorias da manufatura ocidental, num complexo de relações envolvendo a</p><p>violência física e simbólica como a desumanização do ser africano” (2018, p. 10)</p><p>Vale lembrar que o romance O alegre canto da perdiz perpassa por três</p><p>gerações de mulheres, desde o período da escravidão até os dias atuais, sendo Serafina a</p><p>personagem que vivenciou a escravidão de corpos negros. Em suas lembranças há muita</p><p>perda e dor, como vemos no excerto do romance abaixo, quando relembra o momento</p><p>em que perdeu os seus filhos para o colonizador</p><p>[...] porque os filhos me foram retirados na flor da idade e levados</p><p>para terras desconhecidas. Talvez estejam vivos. Ou mortos. Sinto que</p><p>nunca mais voltarei a vê-los. E eram lindos, como esse José à minha</p><p>frente [...]. Mas um dia virá, em que o mundo inteiro se recordará do</p><p>sofrimento da mãe negra e nos pedirá perdão pelos filhos que nos</p><p>roubaram, arrancaram, venderam (CHIZIANE, 2018, p. 98).</p><p>O depoimento de Serafina justifica os ataques a José dos Montes, pretenso</p><p>noivo de sua filha, ao fazer isso, a personagem agride, na verdade, uma história de</p><p>sofrimento e desumanização perpetrada pelo colonizador português. A ausência sem</p><p>retorno dos filhos é o registro de uma violência contra corpos negros que sequer tinham</p><p>o direito de constituir família, criar os seus descendentes.</p><p>O sentimento de inferioridade faz o nativo assimilar a ideia de</p><p>embranquecimento da raça para se aproximar da cultura europeia portuguesa e assim</p><p>amenizar toda a sorte de discriminação perpetrada pelo colonizador e, sobretudo,</p><p>garantir um meio menos sofrido de subsistência. Tal assertiva é sustentável nas palavras</p><p>de Serafina à filha: “– Minha Delfina, esperava que me dissesses: tenho um amante</p><p>87</p><p>branco! Olha que eu aceitaria, pois na nossa mesa não faltariam migalhas de vinho,</p><p>bacalhau e azeitona. Agora, um condenado?” (CHIZIANE, 2018, p. 91).</p><p>Todos os argumentos da mãe para evitar o casamento da filha com José dos</p><p>Montes são insuficientes. Delfina se casa de branco na igreja católica. O vestido branco</p><p>da noiva como sinal de purificação toma corpo na narrativa, simbolizando o estereótipo</p><p>da mulher pura. A mãe, antes resistente ao casamento, passa a também sonhar com a</p><p>imagem da filha no altar “vestida de branco e flor de laranjeira. Os sinos da igreja a</p><p>tocar, a marcha nupcial da música de órgão, tudo muito enfeitado, em honra da menina.</p><p>[...] É bom que se case sim, para que a brancura no altar lave todas as máculas do</p><p>passado” (CHIZIANE, 2018, p. 102). A ânsia pela pureza da raça, metaforicamente,</p><p>toma corpo no vestido de noiva, uma vez que Delfina será purificada pela simbologia</p><p>que essa indumentária tem na cultura do colonizador cuja assimilação se deu pelo</p><p>colonizado.</p><p>No casamento de Delfina e José dos Montes o discurso patriarcal se acentua na</p><p>voz da multidão que se aglomera para ver uma negra prostituta vestida de branco. A</p><p>narradora testemunha o evento e assim o descreve:</p><p>A cidade parou, para assistir ao insólito; o casamento de uma</p><p>prostituta. Delfina faz a sua mágica aparição. Fulgurante. Sublime.</p><p>Vencedora. Sorri para os quatro ventos e triunfalmente se afirma.</p><p>Vestida a rigor como as noivas virgens. Com o véu, grinalda e flores</p><p>de laranjeira. [...] As bocas desdenhosas da multidão, hoje não</p><p>blasfemam, emudecem de espanto, perante a Madalena convertida que</p><p>conspurcava o altar de todos os santos. Os olhos das mulheres</p><p>invejavam outra mulher. Quem diria, quem me dera! Como é que</p><p>pode, uma prostituta de rua transformar-se em santa de momento para</p><p>outro? (CHIZIANE, 2018, p. 106).</p><p>A cerimônia de casamento como um rito sacramental, no imaginário social,</p><p>deve manter Delfina, mulher negra e prostituta, sob controle da igreja, impedindo-a de</p><p>ser uma ameaça para as famílias de “bem”. Nossa reflexão pode ser reiterada com o que</p><p>diz Simone de Beauvoir sobre a simbologia da cerimônia sacramental do casamento:</p><p>Nas sociedades patriarcais, a mulher conserva muitas das inquietantes</p><p>qualidades que detinha nas sociedades primitivas. Eis porque não a</p><p>abandonam nunca à Natureza, cercam-na de tabus, purificam-na com</p><p>ritos, colocam-na sob o controle dos sacerdotes; ensinam ao homem</p><p>que não deve achegar-se a ela em sua nudez original, e sim através de</p><p>cerimônias, sacramentos que a arrancam da terra, da carne, que a</p><p>metamorfoseiam em criatura</p><p>humana (2009, p. 243-244).</p><p>88</p><p>Purificada pelo rito sacramental do casamento, Delfina deixa de ser a “carne do</p><p>pecado” e passa a ser a mulher casada e invejada por outras mulheres, já não oferece</p><p>riscos para as famílias de “bem”, pois está sob o controle da igreja, não à toa que outras</p><p>mulheres a invejam. A prostituta negra pecadora é duplamente contemplada por ter tido</p><p>o privilégio de encontrar um marido e por ter entrado de forma triunfal – como noiva –</p><p>no espaço geralmente reservado às mulheres brancas.</p><p>Delfina, adornada de branco dentro da igreja do colonizador, conduz-nos para</p><p>interpretações ambivalentes: embora ultrapasse o espaço reservado às mulheres brancas,</p><p>se submete à cultura ocidental do colonizador que impõe o ritual de purificação da</p><p>mulher por meio do sacramento religioso cristão, a cerimônia matrimonial; cujo</p><p>objetivo é amenizar a ameaça que a mulher oferece, como um ser maléfico erótico, ao</p><p>império masculino.</p><p>No entanto, a cerimônia portentosa, o casamento com José dos Montes, que</p><p>eleva Delfina ao posto de santa aos olhos da sociedade, não a satisfaz “por causa do</p><p>dinheiro que falta. Do açúcar que não basta. Do conforto que não há” (CHIZIANE,</p><p>2018, p. 109). Tal qual a mulher em várias sociedades no mundo, a personagem</p><p>protagonista pensa o homem como um ser provedor e exige que José dos Montes</p><p>cumpra com o seu papel.</p><p>bell hooks analisa da seguinte forma o desejo da mulher negra nos Estados</p><p>Unidos do século XIX: “Mulheres negras queriam assumir o papel ‘feminino’ de dona</p><p>de casa, sustentada, protegida e honrada por um marido amoroso” (2020, p. 151).</p><p>Observemos que o modus operandi europeu se estabelece em todas as colônias.</p><p>Acreditamos que é possível este diálogo com a constatação de bell hooks, afinal grande</p><p>parte dos países africanos colonizados pelos europeus assimilaram o modo de vida</p><p>ocidental como o ideal.</p><p>A autora bell hooks assinala que as mulheres, nos Estados Unidos capitalistas,</p><p>fazem grande pressão para que os homens ganhem mais dinheiro e assim elas possam</p><p>consumir. As mulheres negras trabalhadoras, “equipararam virilidade com a habilidade</p><p>do homem de ser, sozinho, o provedor financeiro da família” (2020, p. 154), como</p><p>consequência elas se sentem frustradas e traídas por homens negros não assumirem esse</p><p>papel. Para hooks, isso nada mais é do que a “indicação da extensão da aceitação e do</p><p>apoio dela ao patriarcado” (2020, p. 155).</p><p>89</p><p>No romance, essa ideologia é ratificada quando José dos Montes cede aos</p><p>caprichos de Delfina se tornando um homem assimilado29. Toma como seu, o sonho da</p><p>mulher. De início, se incomoda com as novas roupas que passa a vestir como cidadão</p><p>assimilado – metáfora da internalização da nova identidade – para, em seguida, ao se</p><p>tornar sipaio, internalizar a luta sangrenta do colonizador pelo domínio da terra, como</p><p>sendo sua. Ainda que seja subordinado à mulher, contrariando as regras da sociedade</p><p>patriarcal, demonstra que está em consonância com esta ideologia quando dá indícios de</p><p>que está arrependido de ter casado com Delfina e, em suas elucubrações, passa a sonhar</p><p>com o dia em que sua companheira “se renderá e se ajoelhará, como as mulheres de</p><p>verdade se ajoelham aos pés dos seus maridos. Começa a arrepender-se. Devia ter</p><p>casado com uma mulher submissa que olhasse para ele como a um deus, para ele sentir-</p><p>se mais homem” (CHIZIANE, 2018, p. 130). O estereótipo de mulher submissa escapa-</p><p>lhe da mão, já que fora capturado por uma paixão que o torna duplamente escravo: da</p><p>mulher e do sistema colonial.</p><p>Por meio de Delfina, a narrativa vai alinhavando um cenário conflituoso,</p><p>evidenciando quão desprezível é a condição do nativo, em especial, a condição de</p><p>muitas mulheres que, representadas na personagem Delfina, anseiam por uma vida</p><p>diferente, porém, muitas vezes, o que lhes resta é tornar-se ainda mais submissa, como</p><p>ocorre com essa personagem: de prostituta dos marinheiros no porto à mulher de um</p><p>homem negro, Delfina se torna amante de Soares, um português, e faz, do seu lar, um</p><p>espaço de miscigenação racial. Tem dois filhos negros com José dos Montes, Maria das</p><p>Dores e Zezinho, e dois com o português Soares, Jacinta e Luisinho.</p><p>29 No artigo intitulado Violência atmosférica e violências subjetivas: uma experiência pessoal (2011), o</p><p>professor/pesquisador José Luís Cabaço relata que em 1917, o governo português na colônia instituía um</p><p>alvará do assimilado, obrigando todos os cidadãos não brancos a requererem o estatuto de assimilado,</p><p>fazendo prova de que tinham abandonado a cultura tradicional e que viviam segundo os valores e os</p><p>princípios da cultura portuguesa. Instituía-se, dessa forma, a condição de cidadãos de segunda classe, por</p><p>oposição aos cidadãos plenos (os brancos) e os desprovidos de cidadania, a maioria da população</p><p>denominada como “os indígenas” (2011, p. 214). Disponível em:</p><p>https://www.scielo.br/pdf/rbcsoc/v26n76/13.pdf. Acesso em: 28 set. 2013. Acesso em: 2 maio de 2018.</p><p>No livro Moçambique: identidade colonialismo e libertação (2009), Cabaço acentua que “a assimilação</p><p>em momento algum representou a integração do colonizado como membro de comunidade portuguesa da</p><p>colónia. Em primeiro lugar, por factores de natureza objectiva que se traduziam na limitada capacidade</p><p>infraestrutural da administração portuguesa para influenciar directamente as populações em toda a área;</p><p>também por factores subjetivos ligados à falta de vontade dos colonos e ao acesso dos autóctones ao que</p><p>era considerado o saber moderno; finalmente, pela dinâmica de autoproteção dos privilégios e</p><p>mordomias, expressos nas barreiras racistas que se erguiam para os escalões ocupacionais mais baixos,</p><p>cerceando a mobilidade social que a legislação anunciava” (2009, p. 118, grifo do autor).</p><p>https://www.scielo.br/pdf/rbcsoc/v26n76/13.pdf</p><p>90</p><p>O discurso machista/sexista e racista se faz presente na narrativa em todas as</p><p>instâncias de poder. A escritora Paulina Chiziane mais que denunciar essa realidade</p><p>demonstra como se constroem as várias formas de poder que tentam impedir a luta da</p><p>mulher por subjetividades mais autônomas. Sem meios de subsistência, uma vez que</p><p>seu país viveu a guerra pela libertação da colonização portuguesa, conquistada em 1975,</p><p>e em seguida a guerra civil, que se estendeu até 1992, é natural que, algumas mulheres,</p><p>se submetam a condições vis de sobrevivência. Afinal, essas guerras ceifaram muitas</p><p>vidas, destruíram infraestruturas econômicas e só terminaram em 1992 com “a</p><p>assinatura dos Acordos Gerais de Paz entre o Governo da FRELIMO e a RENAMO” 30.</p><p>Afetaram sobremaneira a imagem do povo negro já vilipendiadas pelas teorias racistas</p><p>do imperialismo colonial europeu que constituiu “uma identidade imaginada, a partir da</p><p>ideia de que nada era mais natural do que a submissão das raças dos mundos dominados</p><p>da Ásia e da África, uma vez reduzidos a subprodutos do racialismo europeu”</p><p>(HERNADEZ, 2005, p. 131).</p><p>O romance O alegre canto da perdiz ilustra com perspicácia esses conflitos</p><p>raciais gerados pela violência da colonização que, para tornar o seu império possível,</p><p>classificou os povos negros como “selvagens e bárbaros” em detrimento dos europeus</p><p>que foram classificados como “civilizados”.</p><p>Leila Leite Hernandez constata que “o planeta foi dividido entre uma raça</p><p>superior, glorificada por uma missão civilizatória auto-atribuída e raças inferiores”</p><p>(2005, p. 132). Por meio de teorias científicas racistas e respaldados na religião, os</p><p>europeus estigmatizaram o povo negro de ‘“manhoso, preguiçoso, negligente, além de</p><p>governado pela verdade arbitrária de seus mestres’. Em oposição o branco é adjetivado</p><p>como ‘inventivo, determinado e governado por leis’” (2005, p. 132).</p><p>Essas falácias se perpetuaram por séculos de história e chegam até os nossos</p><p>dias, transformando a relação das pessoas negras consigo</p><p>mesmas e com suas iguais em</p><p>algo negativo. Isso ocorre tanto com os/as africanos/as quanto com as pessoas negras</p><p>que estão em diáspora, a exemplo as afro-brasileiras e afro-americanas que, geralmente,</p><p>buscam em si o reflexo do europeu e como não o encontram, estabelecem uma relação</p><p>distorcida com a sua imagem. O depoimento da pesquisadora brasileira Carla Akotirene</p><p>30Portal de Moçambique. Disponível em:</p><p>https://www.portaldogoverno.gov.mz/por/Mocambique/Historia-de-Mocambique/A-Luta-pela</p><p>Independencia. Acesso em: 29 junho 2020. FRELIMO - Frente de Libertação de Moçambique.</p><p>RENAMO – Resistência Nacional de Moçambique.</p><p>https://www.portaldogoverno.gov.mz/por/Mocambique/Historia-de-Mocambique/A-Luta-pela%20Independencia.%20Acesso%20em:%2029%20junho%202020</p><p>https://www.portaldogoverno.gov.mz/por/Mocambique/Historia-de-Mocambique/A-Luta-pela%20Independencia.%20Acesso%20em:%2029%20junho%202020</p><p>91</p><p>nos dá a dimensão das consequências desse propósito desumanizador, quando em 2018,</p><p>em um projeto organizado pela TVE Bahia intitulado “Mulher com a palavra”, participa</p><p>de uma mesa e afirma que antes da sua formação antirracista, via as cotas raciais como</p><p>esmolas e que não existia racismo no Brasil, além disso, não tinha uma boa relação com</p><p>a mãe por esta ter escolhido um homem negro retinto para se casar. Pontua: “É isso que</p><p>o racismo faz com a gente: esfacela as nossas famílias, impede que a gente não entenda</p><p>por que o alcoolismo e a violência doméstica estão dentro da nossa casa”</p><p>(AKOTIRENE, 2018, on-line). Como “imagem de controle” (COLLINS, 2019),</p><p>alvejado por todo tipo de discriminação social, o corpo negro se torna um “problema”</p><p>em muitas famílias especialmente quando não há uma formação antirracista que</p><p>combata os estereótipos erigidos contra esses corpos.</p><p>Em convergência com essas pesquisadoras, Abdias Nascimento considera que,</p><p>no Brasil, as classes dominantes brancas têm à sua disposição os órgão de poder e os</p><p>poderosos implementos de controle social e cultural: “Todos esses instrumentos estão a</p><p>serviço dos interesses das classes no poder e são usados para destruir o negro como</p><p>pessoa e como criador de uma cultura própria” (NASCIMENTO, 2016, p. 112).</p><p>Percebe-se, portanto, por que o povo negro por muitos anos renegou a sua cor:</p><p>condicionados a se verem como selvagens, vítimas da escravatura e, após a abolição,</p><p>relegados à marginalidade é “natural” que tenham uma imagem negativa de si.</p><p>Diante da explanação acima, é impossível não reconhecermos a escrita de</p><p>Paulina Chiziane como uma escrita que fala do ser humano no mundo, em especial, a</p><p>história do povo negro colonizado como fica visível nas obras Niketche e O alegre</p><p>canto da perdiz. Enfatiza as relações assimétricas de gênero, temática contemplada em</p><p>ambos os romances como também em Balada de amor ao vento. Há, nas narrativas da</p><p>escritora, a preocupação em colocar em foco a condição da mulher oprimida, por meio</p><p>de várias estratégias de poder. O seu silêncio, por muito tempo sufocado, ganha voz e se</p><p>faz ouvir no mundo, através da narrativa ficcional. Quando adentramos a obra da autora,</p><p>dá-nos a impressão de que estamos diante de uma explanação antropológica de</p><p>Moçambique tendo como recorte a figura da mulher. Ao transmitir sua visão do</p><p>contexto em que vive, por meio dos romances, a autora faz com que suas narrativas</p><p>desempenhem uma função social de reflexão sobre a estrutura social estabelecida em</p><p>seu país.</p><p>92</p><p>3 ENTRE BALADAS, NIKETCHES E CANTOS: NOVOS SONS, OUTRAS</p><p>DANÇAS</p><p>Se as próprias mulheres não gritam quando</p><p>algo lhes dá amargura da forma como</p><p>pensam e sentem, ninguém o fará da forma</p><p>como elas desejam.</p><p>(CHIZIANE, 2013, p. 202-203)</p><p>93</p><p>3.1 A propósito das personagens femininas protagonistas: destecendo as redes do</p><p>patriarcado</p><p>Na seção anterior, vimos quão eficazes são as estratégias de poder que tentam</p><p>manter a mulher em seu papel construído dicotomicamente pelas sociedades sexistas.</p><p>Tudo contribui para que a tradição que confere a subserviência feminina seja mantida,</p><p>para isso se faz necessário que os discursos que a sustentam estejam inseridos em todas</p><p>as instâncias de poder, naturalizando, dessa forma, a soberania masculina, como já</p><p>mencionamos. Contudo, há de se notar, também, atitudes subversivas das personagens</p><p>femininas, o que vem a corroborar a epígrafe acima pelo fato de as mulheres serem</p><p>representadas como protagonistas das narrativas aqui analisadas. Destacamos o fato de</p><p>ser Paulina Chiziane, uma mulher, a transpor para as linhas imaculadas do papel – pois</p><p>sem a interferência da escrita masculina – suas angústias e insatisfações, que se tornam</p><p>reivindicações coletivas, já que parte da sua experiência e das de outras mulheres com</p><p>quem se irmana.</p><p>Nesta seção, buscaremos compreender como as personagens protagonistas</p><p>femininas minam as estratégias de cerceamento à mulher e constroem sua resistência.</p><p>Considerando que os romances da autora estão ambientados em períodos diversos da</p><p>história de Moçambique, observaremos quais são os mecanismos de resistência com</p><p>relação à colonialidade do poder e de gênero que, dentre outras coisas, contribuem para</p><p>a manutenção da subordinação feminina.</p><p>Sobre o conceito colonialidade do poder, María Lugones observa que o</p><p>sociólogo peruano Aníbal Quijano, quando o desenvolve faz uma análise sobre “o</p><p>sistema capitalista mundial de poder em relação à ‘colonialidade do poder’ e à</p><p>modernidade, duas esferas inseparáveis no funcionamento do sistema” (2019, p. 361).</p><p>Lugones se apropria do conceito desenvolvido por Quijano por entender que “a análise</p><p>do autor nos fornece um entendimento histórico da inseparabilidade dos processos de</p><p>racialização e a exploração capitalista, constituinte do sistema capitalista e ancorada na</p><p>colonização das Américas” (2019, p. 361). No entanto, a filósofa feminista critica o fato</p><p>de Quijano não ter acrescentado aos seus estudos a colonialidade de gênero, considera</p><p>94</p><p>que ele se limitou a entender gênero apenas no que se refere ao acesso sexual às</p><p>mulheres31. Lugones, vai além, uma vez que pensa</p><p>o termo colonialidade para nomear não apenas uma forma de</p><p>classificar pessoas através de uma colonialidade do poder e dos</p><p>gêneros, mas também para pensar sobre o processo ativo de redução</p><p>de pessoas, a desumanização que as qualificam para a classificação, o</p><p>processo de subjetivação, a tentativa de transformar o colonizado em</p><p>menos que humano (2019, p. 361).</p><p>Todo esse processo reverbera nas sociedades colonizadas até os dias atuais,</p><p>toma nova forma, fazendo com que as relações subjetivas/intersubjetivas ainda sejam</p><p>pautadas na relação dominante e dominado. Neste sentido, a professora Heloísa</p><p>Buarque de Holanda afirma que</p><p>a colonialidade se refere a um padrão de poder que não se limita às</p><p>relações formais de dominação colonial, mas envolve também as</p><p>formas pelas quais as relações intersubjetivas se articulam a partir de</p><p>posições de domínio e subalternidade de viés racial (2020, p. 16).</p><p>Nos romances Balada de amor ao vento, (2016), Niketche (2004) e O alegre</p><p>canto da perdiz (2018), percebemos que as personagens femininas tendem a subverter</p><p>as diversas formas de dominação impostas a elas. A escritora constrói suas narrativas</p><p>atravessadas por ambiguidades e ambivalências32, com isso fragiliza os binarismos que</p><p>mantêm, por exemplo, a superioridade do homem sobre a mulher, da raça branca sobre</p><p>a negra, do mestiço sobre o negro. Enfim, demonstra que o discurso colonial que</p><p>alicerça esses preconceitos “é uma forma de discurso crucial para a ligação de uma série</p><p>de diferenças e discriminações</p><p>ainda como romancista.</p><p>Aguçou-me a curiosidade por saber sobre o que escreve Paulina Chiziane, pois</p><p>já tinha consciência de que Noémia de Sousa ganhou notoriedade por ter uma escrita</p><p>majoritariamente poética, combativa, de exaltação do povo negro e que reivindicava</p><p>liberdade para o seu país.</p><p>Enveredei-me pela leitura dos cinco romances de Chiziane. Para minha surpresa,</p><p>deparei-me com uma escrita em que as mulheres ganham protagonismo por meio das</p><p>personagens femininas. Em suas narrativas, a escritora problematiza conflitos culturais</p><p>vividos pelos/as moçambicano/as no período do pós-independência até os dias atuais.</p><p>De forma panorâmica ilumina questões culturais vivenciadas no espaço rural, como</p><p>vemos em Balada de amor ao vento, romance publicado em 1990, para em seguida, no</p><p>romance Ventos do apocalipse (2010) – primeira obra da autora, com publicação</p><p>posterior à Balada de amor ao vento – focalizar os conflitos vividos por aqueles que</p><p>fogem da guerra nas aldeias e das catástrofes climáticas que levam à fome, à dor e à</p><p>miséria. Já na obra O sétimo juramento (2016), a escritora direciona o seu olhar para as</p><p>elites dominantes que, ao tomarem posse das direções das estatais do país no pós-</p><p>independência, mantêm o modus operandi dos colonizadores; nas palavras do</p><p>professor/pesquisador Benjamin Abdala, muda-se “para que as coisas continuem</p><p>12</p><p>estruturalmente as mesmas” (2012, p. 59), a despeito da miséria e da fome vividas</p><p>pelos/as funcionários/as dessas estatais. Em Niketche: uma história de poligamia</p><p>(2004), Chiziane coloca em discussão a condição da mulher casada que sendo do sul ou</p><p>norte do país experiencia as diversas formas de invisibilidade, independentemente de</p><p>serem oriundas de culturas influenciadas pelas tradições moçambicanas, cristianismo ou</p><p>islamismo. Em O alegre canto da perdiz (2018), a escritora focaliza os conflitos</p><p>rácicos, decorrentes da miscigenação gerada no período pós-colonial, muitas vezes por</p><p>meio da relação sexual forçada pelos colonizadores.</p><p>Em todos os romances elencados acima, a escritora dá destaque às</p><p>consequências dos conflitos culturais e do pós-independência na vida da mulher</p><p>moçambicana, encenada pelas personagens femininas. Todavia há também a proposta</p><p>de um alinhamento entre homens e mulheres e as diversidades culturais que compõem o</p><p>Moçambique atual a fim de estabelecer um convívio menos conflituoso. Isso instigou-</p><p>nos a levantar como hipótese desta tese que os romances Balada de amor ao vento,</p><p>Niketche: uma história de poligamia e O alegre canto da perdiz sugerem a</p><p>possibilidade de uma convivência mais harmoniosa por meio do perdão e da</p><p>reconciliação não somente entre homens e mulheres, mas também entre negros,</p><p>mestiços e brancos, no país em que as obras são ambientadas. Intentamos comprovar</p><p>que, para que isso ocorra, as três obras engendram um devir-mulher, que faz a trajetória</p><p>de resistência à soberania masculina. À proporção que as mulheres constroem</p><p>subjetividades mais autônomas, fragilizam as estruturas da sociedade sexista na qual</p><p>estão inseridas e, consequentemente, forçam mudanças também no comportamento dos</p><p>homens. Tal cenário só se transforma a partir do momento em que as personagens</p><p>femininas se lançam do espaço doméstico para o público e tornam audível sua voz,</p><p>tendo condições, assim, de construírem identidades mais libertárias. A constatação de</p><p>tais semelhanças, nos romances mencionados, nos fez elegê-los como corpus para nossa</p><p>pesquisa.</p><p>Considerando que Paulina Chiziane, apesar de viver em um contexto</p><p>fortemente marcado pela ideologia patriarcal, consegue se sobressair como escritora,</p><p>observamos, por meio dos seus romances, textos de opinião e entrevistas, qual o olhar</p><p>da romancista sobre o seu país no pós-independência. Perscrutamos ainda em que</p><p>medida sua escrita contribui para o processo de desarticulação da sociedade machista</p><p>em que está inserida. Analisamos quais são as estratégias de sobrevivência das</p><p>13</p><p>personagens femininas para desestabilizar a soberania masculina que as tornam vítimas</p><p>de um sistema extremamente opressor e, por fim, como o perdão e a reconciliação são</p><p>operacionalizados em cada obra.</p><p>Esta tese está dividida em três seções além da Introdução e Considerações finais.</p><p>Na primeira seção, investigamos como se deu o acesso das mulheres escritoras às letras</p><p>em Moçambique. Com base em Laura Cavalcante Padilha (2006) e Nazareth Fonseca</p><p>(2006), mapeamos o momento em que textos de mulheres moçambicanas foram</p><p>contemplados nos primeiros jornais e boletins do país e como se deu o lugar das</p><p>poetisas no processo de formação da moderna literatura. Considerando que a escritora</p><p>Paulina Chiziane, em pleno século XXI, ainda é a única romancista em destaque neste</p><p>cenário, com base nas pesquisas de Ana Rita Santiago (2019), mapeamos algumas</p><p>mulheres que estão se sobressaindo na escrita em prosa em Moçambique e as que estão</p><p>em diáspora. Abordamos também a importância da escritora Paulina Chiziane no</p><p>cânone literário moçambicano e internacional. Para entendermos o que pensa a escritora</p><p>sobre Moçambique, sobretudo, com relação à condição da mulher, nos debruçamos em</p><p>seus textos de opinião e entrevistas.</p><p>Dado o fato de as mulheres ainda serem impedidas de exercer a sua autonomia</p><p>e reivindicarem direitos não somente no espaço privado como no público, na segunda</p><p>seção, buscamos compreender quais são os mecanismos de poder que intensificam e</p><p>retroalimentam o sistema patriarcal, tornando invisíveis as demandas do feminino na</p><p>narrativa. Nosso percurso para identificarmos esses dispositivos de poder que tentam</p><p>impedir a autonomia das personagens femininas foi norteado pelas considerações de</p><p>Michel Foucault (1998), Pierre Bourdieu (2017), Heleieth Saffioti (2004/2017) e bell</p><p>hooks (2020).</p><p>Considerando que para Michel Foucault (1998) o poder é uma relação de</p><p>forças que ao mesmo tempo que é exercido encontra pontos de resistência, na terceira</p><p>seção, abordamos como se dão as estratégias de subversão engendradas pelas</p><p>personagens femininas protagonistas e secundárias. Observamos como elas constroem,</p><p>dentro de suas possibilidades, vivências outras que acabam por rasurar o pretenso</p><p>inabalável sistema patriarcal, inclusive, proporcionando mudanças nas subjetividades</p><p>masculinas. Identificamos como essas transformações culminam no que levantamos</p><p>como hipótese para esta tese: a possibilidade de convivência mais harmoniosa entre</p><p>os/as moçambicanos/as, a partir do perdão e da reconciliação. Buscamos comprovar que</p><p>14</p><p>isso só se torna possível no momento em que as personagens femininas se lançam do</p><p>espaço privado para o público. Nortearam as nossas reflexões María Lugones (2019),</p><p>Oyèrónké Oyěwùmí (2020), Homi Bhabha (2014), Patricia Hill Collins (2019), Paula</p><p>Roschel (2020), Cintia Acosta Küter (2013), Joice Berth (2020) e Vilma Piedade</p><p>(2020).</p><p>Para analisarmos como as personagens femininas subvertem as várias opressões</p><p>a que são submetidas, lançamos mão dos estudos de Aníbal Quijano que desenvolve o</p><p>conceito de “colonialidade do poder”. Buscamos aporte teórico em Quijano por</p><p>entendermos que o contexto social moçambicano, espaço das narrativas em estudo,</p><p>compõe hoje o que o sociólogo peruano define como a estrutura de poder, “organizada</p><p>sobre e ao redor do eixo colonial” (2005, p. 135), que se mantém até os dias atuais.</p><p>Reproduz padrões sociais de dominação pautada na ideia hierárquica de poder do</p><p>período colonial. Nessa perspectiva, nos embasamos também nas pesquisas da</p><p>socióloga argentina, María Lugones, que acrescenta aos estudos de Quijano o conceito</p><p>de colonialidade de gênero. De acordo com a socióloga, o gênero foi uma imposição</p><p>colonial à grande parte das sociedades colonizadas, sendo que essa dicotomia alterou a</p><p>estrutura de muitas sociedades que eram matriarcais. Contudo, lemos os romances em</p><p>estudo, numa perspectiva decolonial, uma vez que</p><p>que embasam as práticas discursivas e políticas de</p><p>hierarquização racial e cultural” (BHABHA, 2014, p. 119), acrescentamos às</p><p>proposições de Bhabha a hierarquização de gêneros.</p><p>A escritora lança mão dos estereótipos que enquadram a figura feminina em</p><p>papéis para em seguida desarticulá-los, fazendo ver que os papéis sociais impostos ao</p><p>31 Lugones observa que “o olhar de Quijano pressupõe uma compreensão patriarcal e heterossexual das</p><p>disputas pelo controle do sexo, seus recursos e produtos [...]. Seu quadro de análise mantém velado o</p><p>entendimento de que as mulheres colonizadas, não brancas, foram subordinadas e destituídas de poder”</p><p>(LUGONES, 2020, p. 56).</p><p>32 Apropriamo-nos do termo ambivalência com base em Homi K. Bhabha, quando que ao discutir o</p><p>discurso colonial propõe que este está pautado na construção de estereótipo que permite entrever a</p><p>ambivalência da autoridade colonial, uma vez que “o negro é ao mesmo tempo selvagem (canibal) e ainda</p><p>o mais obediente e digno dos servos (o que serve a comida); ele é a encarnação da sexualidade</p><p>desenfreada e, todavia, inocente como uma criança; ele é místico, primitivo, simplório e, todavia, o mais</p><p>escolado e acabado dos mentirosos e manipulador de forças sociais” (2013, p. 141).</p><p>95</p><p>gênero são um construto também, mas não só, do discurso colonial que pode e deve ser</p><p>contestado. Lembremo-nos de que, para Bhabha, o estereótipo, que é a principal</p><p>estratégia discursiva do colonialismo, evidencia um processo ambivalente, uma vez que</p><p>“é uma forma de conhecimento e identificação que vacila entre o que está ‘no lugar’, já</p><p>conhecido, e algo que deve ser ansiosamente repetido” (2014, p 119), com o propósito</p><p>de fixá-lo, uma vez que jamais poderá ser provado no discurso.</p><p>Há de se perceber ainda que as culturas são tensionadas na narrativa de forma a</p><p>dar visibilidade às fragilidades que as sustentam. Tanto é assim que a maioria das</p><p>personagens não mantêm uma ideia fixa sobre uma cultura ou outra, defendem ou</p><p>atacam-na sinalizando que independentemente de onde venham é preciso que sejam</p><p>discutidas quando negam a algum indivíduo o direito à sua individualidade.</p><p>As tensões culturais colocadas em foco na narrativa abrem uma fissura para</p><p>atitudes subversivas das personagens femininas. Perceberemos que embora muitas</p><p>vezes os seus discursos estejam em consonância com o poder constituído, quando se</p><p>tornam conscientes da subserviência que lhes é imposta, constroem estratégias de</p><p>subversão, minando os obstáculos que tentam freá-las.</p><p>Em diálogo com Patricia Hill Collins, observamos como se dão as estratégias</p><p>de subversão das personagens femininas de Paulina Chiziane. Collins discute duas</p><p>abordagens principais do poder uma que “diz respeito à relação dialética que conecta</p><p>opressão e ativismo, na qual grupos com mais poder oprimem grupos com menos</p><p>poder” (2019, p. 434). Nesse tipo de poder “opressão e resistência permanecem</p><p>intrinsecamente ligadas, de tal maneira que a forma de uma afeta a da outra. Ao mesmo</p><p>tempo essa relação é muito mais complexa do que um simples modelo formado por</p><p>opressores permanentes e vítimas eternas” (2019, p. 435) – ideia também desenvolvida</p><p>por Foucault. E a segunda maneira se sustenta na ideia de que o poder “não é inerente</p><p>aos grupos, e sim uma entidade intangível que circula em uma matriz particular de</p><p>dominação, e com a qual os indivíduos se relacionam de formas variadas” (2019, p.</p><p>435). Collins acredita que “esse tipo de abordagem enfatiza como a subjetividade</p><p>individual enquadra as ações humanas em uma matriz de dominação” (2019, p. 435). Há</p><p>constantemente entre as mulheres estadunidenses esforços “para lidar com os efeitos da</p><p>dominação na vida cotidiana” (COLLINS, 2019, p. 435). Para resistir à opressão, elas</p><p>criam espaços seguros, estabelecem relações de amor umas com as outras, com os</p><p>filhos, pais e irmãos e até mesmo com indivíduos que não veem valor nelas. Ou seja, as</p><p>96</p><p>estratégias para lidar com a opressão se baseiam na união entre essas mulheres que</p><p>ampliam seus laços até mesmo com quem não as reconhece como cidadãs que sejam</p><p>dignas de direitos.</p><p>Entendemos que há pontos de convergências entre as estratégias das mulheres</p><p>negras estadunidenses e das personagens femininas da escritora Paulina Chiziane. O que</p><p>nos leva a perceber que no texto crítico ou literário as atitudes da mulher negra bem</p><p>como das personagens femininas negras geralmente estão voltadas à resistência a toda</p><p>forma de opressão a que são submetidas. Escravizadas no período colonial, ceifadas dos</p><p>seus direitos no pós-independência e maculadas pela história, as mulheres negras tentam</p><p>na atualidade ser reconhecidas como indivíduos plenos de direito.</p><p>Nos romances aqui em estudo, percebemos que as duas abordagens de poder</p><p>defendidas por Collins permeiam grande parte das narrativas. Perscrutaremos de que</p><p>forma essas personagens conseguem ultrapassar as fronteiras imaginárias que tentam</p><p>mantê-las na invisibilidade social e consequentemente como o Outro do homem.</p><p>Em Balada de amor ao vento, a personagem Sarnau é-nos apresentada como</p><p>uma jovem com poder de decisão. Quando percebe Mwando como um jovem</p><p>interessante, age estrategicamente até se aproximar dele, mesmo sabendo que o rapaz</p><p>está estudando para ser padre. O primeiro encontro se dá dentro da igreja católica e é</p><p>estrategicamente pensado pela narradora/protagonista:</p><p>Num belo domingo, vesti-me com todo o esmero, enfeitei-me bem e</p><p>parti para o ataque. Entrei na igreja com toda a solenidade, sentei-me à</p><p>frente para que ele me visse bem, pois estava bonitinha só para ele. O</p><p>padre disse tanta coisa que não entendia (CHIZIANE, 2016, p, 16).</p><p>Na enunciação de Sarnau, imprime-se a indiferença do colonizado à religião</p><p>cristã. Não basta apenas à jovem entrar na igreja e tentar seduzir o iminente padre, é</p><p>preciso que fique registrado que não entende nada do que diz o representante do</p><p>colonizador e, portanto, da religião cristã e, ao que tudo indica, não faz questão de</p><p>entendê-lo. Vislumbra-se nesse episódio atitudes decoloniais.</p><p>Se para Quijano a estrutura de poder “foi e ainda segue estando organizada</p><p>sobre o eixo colonial” (2005, p. 135). Numa perspectiva decolonial, as narrativas de</p><p>Paulina Chiziane colocam em discussão as hierarquias dicotômicas – civilizado/não</p><p>civilizado, homens/mulheres, cristãos/não cristãos, dentre outras – que deram</p><p>sustentação ao sistema colonial que se apossou não só das terras, mas dos corpos e</p><p>97</p><p>mentes do povo africano, desumanizando-os. Seus romances desconstroem estereótipos</p><p>da mulher moçambicana e faz ver que o ativismo da mulher se constrói, também, no</p><p>cotidiano. Prova disso é que a diegese traz uma personagem feminina como</p><p>protagonista, com atitudes ousadas, desconstrói o estereótipo de mulher submissa da</p><p>zona rural e mostra indiferença ao que diz a religião cristã na pessoa do padre.</p><p>Acrescente-se ainda que ela toma a inciativa de ficar com Mwando como amante,</p><p>depois que este volta à aldeia e encontra-a casada com o rei Nguila. Sarnau, insatisfeita</p><p>com o seu casamento, mesmo sabendo que poderia ser punida de morte caso resolvesse</p><p>ter um amante, vai à palhota de Mwando e ambos vivem um amor clandestino.</p><p>Na contramão da colonialidade de gênero que é pautada na “dicotomia</p><p>hierárquica dos gêneros” (LUGONES, 2019, p. 360), a personagem Sarnau é</p><p>construída, em certa medida, de forma que delineia o seu próprio caminho e realiza os</p><p>seus desejos, ainda que para isso tenha que abandonar as filhas e o filho que deixa para</p><p>trás em Mambone – aldeia de Nguila –, quando foge com Mwando.</p><p>A propósito, o casamento e a igreja se tornam as instituições mais</p><p>problematizadas nos romances de Paulina Chiziane. Acreditamos que por serem espaços</p><p>em que os papéis sociais da mulher são mais intensificados, a escritora coloca-os em</p><p>xeque e à medida que</p><p>são abordados, evidencia-se o quanto é negado à mulher o direito</p><p>à cidadania plena, não obstante serem elas, em sua maioria, as mantenedoras da família.</p><p>Ao homem, representado nas personagens masculinas, não há uma cobrança social ou</p><p>legal para se responsabilizarem pela manutenção dos filhos e/ou filhas que são gerados</p><p>dessas relações extraconjugais.</p><p>Sarnau tem uma filha de Mwando e cria-a sozinha, pois quando ele se vê</p><p>ameaçado de morte pelos capangas do rei Nguila, abandona-a. Sendo que Mwando só</p><p>toma conhecimento da filha dezesseis anos depois, quando volta a se encontrar com a</p><p>mãe da menina. É também de Sarnau o menino João, filho de uma relação com um</p><p>homem cristão. A personagem, em suas elucubrações, faz a seguinte observação:</p><p>Sou tão feliz com os meus dois filhinhos. O Joãozinho também não</p><p>tem pai. O homem soube encher-me a barriga para abandonar-me logo</p><p>em seguida. O pai afasta-o da sua mesa, não o deixa conviver com os</p><p>outros irmãos, diz que é por ele ser casado e para mais não fica bem a</p><p>um cristão dar a entender que tem filhos por aí. Mwando também é</p><p>cristão, mas abandonou-me com uma criança no ventre. Ser cristão é</p><p>uma coisa, mas a perversão e o afastamento dos deveres paternais</p><p>porque se é cristão, é coisa que ainda não entendo bem (CHIZIANE,</p><p>2016, p. 157-158).</p><p>98</p><p>As críticas ao cristianismo são agudizadas quando Sarnau compara as atitudes</p><p>do homem cristão às do homem de tradição poligâmica. Ela constata que embora a</p><p>poligamia tenha todos os males, as mulheres disputem a posse do homem, matem-se,</p><p>enfeiticem-se, não cheguem “a conhecer o prazer do amor, mas tem uma coisa</p><p>maravilhosa: não há filhos bastardos nem crianças sozinhas na rua” (2016, p. 158).</p><p>Os questionamentos com relação aos vários sistemas de poder são colocados</p><p>em pauta nos três romances selecionados como recorte para essa pesquisa. Dessa forma,</p><p>Paulina Chiziane estrategicamente aponta sua arma/caneta para conflitos que, por serem</p><p>silenciados, inviabilizam políticas que dariam garantias de direitos à mulher. Para María</p><p>Lugones, é “preciso decolonizar os gêneros” (2019, p. 363) e para isso faz-se necessário</p><p>transformar uma crítica da opressão de gênero – racializada, colonial,</p><p>capitalista e heterossexista – em uma mudança viva na sociedade;</p><p>colocar o teórico no meio das pessoas em um entendimento histórico,</p><p>humano, subjetivo/intersubjetivo da relação oprimir →← resistir na</p><p>intersecção de sistemas complexos de opressão (2019, p. 363).</p><p>Onde a socióloga feminista diz “teórico”, acrescentamos escritor/a, professor/a,</p><p>antropólogo/a, enfim, qualquer intelectual consciente que seja ouvido/a em sua</p><p>comunidade deve direcionar seus conhecimentos para fazer resistência às diversas</p><p>formas de opressão que relegam seres humanos à margem da sociedade.</p><p>Esse parece ser o propósito de Paulina Chiziane. Em entrevista a Vanessa</p><p>Riambau, a escritora reconhece que seus livros, por abordarem temas ainda tabus, são</p><p>recebidos com muita guerra, pois “as pessoas não estão habituadas a um tipo de</p><p>tratamento, a um tipo de discurso. Não estão habituadas a ver determinadas coisas</p><p>descritas no papel. Isso tem criado alguns conflitos” (CHIZIANE, 2021, p. 108-109).</p><p>Acreditamos que por ser uma intelectual que está inserida no meio do seu povo, a</p><p>escrita literária de Chiziane acaba por provocar discussões e despertar a necessidade de</p><p>mudança que proporcione relações menos desiguais entre os/as moçambicanos/as.</p><p>No romance Niketche as críticas à opressão vividas pelas personagens</p><p>femininas são intensificadas. A escritora ganha mais autonomia neste que é o seu quarto</p><p>livro e evidencia com maior rigor o seu descontentamento, por meio da narrativa, com a</p><p>insensibilidade do homem com relação as demandas da mulher. A personagem Rami,</p><p>por exemplo, nos é apresentada no primeiro momento como uma mulher frágil que</p><p>parece se acomodar à prática opressora silenciosa da sociedade machista, entretanto o</p><p>99</p><p>conhecimento mais aprofundado sobre essa personagem nos leva a perceber que uma</p><p>força a move para a construção de uma outra vida possível:</p><p>A minha vida é um rio morto. No meu rio as águas pararam no tempo</p><p>e aguardam que o destino traga a força do vento. No meu rio, os</p><p>antepassados não dançam batuques nas noites de lua. Sou um rio sem</p><p>alma, não sei se a perdi e nem sei se alguma vez tive uma. Sou um ser</p><p>perdido, encerrado na solidão mortal.</p><p>[...]</p><p>Sou um rio. Os rios contornam todos os obstáculos. Quero libertar a</p><p>raiva de todos os anos de silêncio. Quero explodir com o vento e</p><p>trazer de volta o fogo para o meu leito, hoje quero existir</p><p>(CHIZIANE, 2004, p. 18-19, grifos nossos).</p><p>A ambivalência que constitui a personagem a move para a resistência. No</p><p>primeiro momento se encontra em estado de inércia para, em seguida, ser acometida de</p><p>uma força que a impulsiona para a vida. Quer romper o silêncio, ser ouvida, sair da</p><p>invisibilidade. O despertar dessa força se materializa por meio dos diálogos que</p><p>estabelece com o espelho dando-lhe e que lhe dão cada vez mais consciência de sua</p><p>nulidade, antagonicamente, também a impulsiona para fazer-se resistência e encontrar</p><p>caminhos que lhe deem o direito a ser.</p><p>O momento em que Rami se lança na tentativa de salvar o seu casamento</p><p>proporciona para outras mulheres a possibilidade de construir-se como seres mais</p><p>autônomos. A personagem/protagonista abre uma fissura nesse universo sexista e</p><p>instaura novas convivências entre o homem e a mulher, acionando velhas estruturas</p><p>como a poligamia. Evidencia-se as contradições das várias culturas que tentam cercear a</p><p>mulher a lançar-se para a vida pública. Isso ocorre quando Rami desfaz as barreiras que</p><p>delimitam a fronteira entre o cristianismo e as religiões moçambicanas. Sendo cristã vai</p><p>à procura de uma conselheira do amor para tentar enredar Tony em seus braços. A</p><p>conversa entre Rami e a conselheira descortina um cenário tanto do sul quanto do norte</p><p>de Moçambique que com todos os seus tabus impedem a emancipação feminina.</p><p>Quando se estabelece um diálogo entre duas personagens femininas em que</p><p>ambas, uma cristã e outra alicerçada na cultura nativa, reconhecem quão limitado é esse</p><p>cenário para a mulher, a narrativa se inscreve no feminismo decolonial33 uma vez que</p><p>traz personagens femininas em resistência constante não só aos saberes colonizados,</p><p>33 Embora saibamos que autora flerta com o feminismo decolonial, não pretendemos explorar esse</p><p>conceito, pois não é o nosso foco de estudo. Só gostaríamos de deixar registrado como essa escritora</p><p>apresenta um universo ficcional entrelaçado de várias teorias que desvelam opressões normalizadas das</p><p>quais muitas mulheres são vítimas no mundo.</p><p>100</p><p>mas também às tradições moçambicanas. Essas personagens, diferentes daquelas que</p><p>foram construídas numa visão estereotipada e submissa pela escrita do colonizador, são</p><p>questionadoras e insubmissas.</p><p>Mencionamos, mais uma vez, María Lugones quando discute a decolonialidade</p><p>de gênero se propondo a pensar o colonizado</p><p>não como simplesmente imaginado e construído pelo colonizador e</p><p>pela colonialidade, de acordo com a imaginação colonial e as</p><p>restrições de sua aventura capitalista, e sim como um ser que começa</p><p>a habitar um lócus fraturado construído duplamente, que percebe o</p><p>mundo duplamente, onde os “lados” estão em tensão e o próprio</p><p>conflito ativamente informa a subjetividade do Eu colonizado em</p><p>relações múltiplas (2019, p. 364-365).</p><p>O lócus fraturado que “inclui a dicotomia hierárquica que forma a</p><p>subjetividade do colonizado” (LUGONES, 2019, p. 366) de que nos fala Lugones é</p><p>detectável em Niketche quando as personagens femininas colocam em tensão o mundo</p><p>do colonizado e o do colonizador. Embora a narrativa se situe em um período pós-</p><p>independência mais ou menos na década de 90 é visível as tensões coloniais que</p><p>atravessam suas vivências.</p><p>Contudo, ao colocar em evidência os conflitos vivenciados pelas personagens</p><p>femininas e a construção de sua autonomia, a narrativa rompe o lócus fraturado “pela</p><p>presença resistente, a subjetividade ativa do colonizado contra a invasão colonial do Eu</p><p>comunal – quando habita essa subjetividade” (LUGONES, 2019, p. 366). Dessa forma,</p><p>é possível perceber que a escrita de Chiziane também rompe com a imagem da mulher</p><p>moçambicana que está em consonância com o imaginário de mulher negra erigido pelo</p><p>colonizador. Traz à luz, por meio das personagens femininas, mulheres insubmissas que</p><p>estão em constante resistência às várias formas de opressão.</p><p>À medida que a companheira de Tony resolve lutar pelos seus direitos, vai,</p><p>gradativamente, laçando-se para a construção de outras subjetividades. Para que isso</p><p>ocorra, a narrativa centra-se em colocar à luz as contradições das diversas instituições</p><p>que corroboram a manutenção do silenciamento feminino.</p><p>Rami, ao contrário de Sarnau, é educada no cristianismo, mas desperta para as</p><p>contradições dessa religião e percebe que Deus também as desampara:</p><p>Até na bíblia mulher não presta. Os santos, nas suas pregações antigas,</p><p>dizem que a mulher nada vale, a mulher é um animal nutridor de</p><p>maldade, fonte de todas as discussões, querelas e injustiças. [...] E esse</p><p>101</p><p>Deus se existe, por que nos deixa sofrer assim? O pior de tudo é que</p><p>Deus não tem mulher nenhuma. Se ele fosse casado, a deusa – sua</p><p>esposa – intercederia por nós. Através dela pediríamos a bênção de</p><p>uma vida de harmonia. Mas a deusa deve existir, penso. Deve ser tão</p><p>invisível como todas nós. O seu espaço é, de certeza, a cozinha</p><p>celestial (CHIZIANE, 2004, p. 68).</p><p>Quando a personagem/protagonista coloca em xeque a igreja em que foi</p><p>formada como cristã, sinaliza uma insatisfação que toma fôlego na diegese e vai</p><p>gradativamente se ampliando até chegar às críticas as várias tradições culturais que se</p><p>configuram no contexto moçambicano. Rami insatisfeita com os conselhos dados pela</p><p>conselheira do amor que não resultaram no que ela desejava, reconquistar o seu Tony só</p><p>para si, decide explorar o “campo da magia”. Nesse episódio, a hipocrisia dos líderes</p><p>religiosos locais, assim como dos líderes das religiões ocidentais é evidenciada:</p><p>A cidade está cheia desses mercadores de sortes cujas histórias</p><p>balançam entre o real e o fantástico. Metem nas cabeças das pessoas</p><p>crenças inacreditáveis que causam desentendimento entre amigos,</p><p>famílias e até colegas de trabalho. Alguns desses indivíduos deixam as</p><p>pessoas na pobreza. Querem dinheiro. Dinheiro logo à entrada para</p><p>saudar o espírito e ler o destino. Dinheiro para a galinha de sacrifício,</p><p>dinheiro para panos sagrados e raízes. Dinheiro para pagar o serviço.</p><p>Dinheiro novamente para perguntar ao espírito se o trabalho foi bem</p><p>feito e se será bem sucedido. Dinheiro para cima, dinheiro para baixo,</p><p>idas, voltas. Nos dias de hoje, até os cristãos que dão dinheiro aos</p><p>padres como pagamento dos milagres divinos. De mim este curandeiro</p><p>não terá dinheiro algum (CHIZIANE, 2004, p. 62-63).</p><p>Suas insatisfações com relação à vivência da mulher se amplificam de forma</p><p>tal que a personagem narradora tem a clarividência de que nada contribui para tornar a</p><p>mulher uma cidadã com direitos comuns aos dos homens. Agrega-se a essa exclusão o</p><p>fato de muitas delas não terem condições financeiras para criarem sua prole, tornando-</p><p>se vítimas da opressão interseccionada por gênero, classe e raça de que nos fala María</p><p>Lugones (2019) e Crenshaw (2020). À medida que toma consciência de sua</p><p>subalternidade a personagem/protagonista concomitantemente vai se empoderando –</p><p>termo discutido por Joice Berth, cuja definição se dá pela “aliança entre o conscientizar-</p><p>se e o transformar na prática algo contestador e revolucionário na sua essência” (2020,</p><p>p. 153).</p><p>O mergulho no universo da narrativa nos faz perceber que a tomada de</p><p>consciência de Rami a leva a transformações inimagináveis. Vale salientar que isso</p><p>102</p><p>ocorre devido, também, às suas conversas com outras mulheres do seu contexto até que</p><p>chega à conclusão de que</p><p>poligamia é um uivo solitário à lua cheia. Viver a madrugada na</p><p>ansiedade ou no esquecimento. Abrir o peito com as mãos, amputar o</p><p>coração. Drená-lo até se tonar sólido e seco como uma pedra, para</p><p>matar o amor e extirpar a dor quando o teu homem dorme com outra,</p><p>mesmo ao teu lado [...]. Poligamia é um exército de crianças, muitos</p><p>meios-irmãos crescendo felizes, inocentes, futuros reprodutores dos</p><p>ideais de poligamia. Embora não aceite, a minha realidade é esta. Já</p><p>vivo na poligamia (CHIZIANE, 2004, p. 91).</p><p>A consciência de que é cristã, mas vive a poligamia leva Rami ao que</p><p>consideramos o ponto máximo da subversão: o momento em que ela resolve unir todas</p><p>as mulheres de Tony para formarem uma família polígama sem ao menos consultar o</p><p>marido sobre a sua decisão. A aliança entre elas se consolida, todas passam a ser</p><p>reconhecidas como esposas de Tony e terem seus direitos resguardados por essa</p><p>tradição, inclusive exigindo dele que cumpra as responsabilidades de marido, visitando</p><p>as cinco mulheres a cada semana, como manda a cultura polígama. A aliança se</p><p>consolida ente as coesposas de Tony e ocorrem colaborações mútuas entre as mulheres</p><p>que, de alguma forma, mantêm relação com ele.</p><p>As estratégias de subversão vão desde a apresentação de Tony para a família</p><p>obrigando-o a se assumir como um homem polígamo e, portanto, responsabilizar-se</p><p>pelos filhos que gerou com essas mulheres, até a tomada de decisão de Luísa, uma das</p><p>cinco mulheres de Tony, de compartilhar o seu amante Vito com Rami. No primeiro</p><p>momento, Rami rejeita a ideia de estar se sentindo atraída pelo amante de Luísa, para</p><p>em seguida entregar-se a ele e, em suas elucubrações, revelar: “Fecho os olhos e voo.</p><p>Este homem tem o poder infinito de me fazer viver. E morrer. E evadir-me para outros</p><p>planetas com o corpo em terra. Adormeço a lua” (CHIZIANE, 2004, p. 80).</p><p>Lu partilha o amante com Rami, mulher casada e cristã. Esta ainda lança mão</p><p>da poligamia para ter seus direitos garantidos. Ju e Lu, mesmo sendo de cultura</p><p>matrilinear por uma questão de conveniência aceitam ser loboladas por Tony. Essas</p><p>adaptações estão em diálogo com as interpretações de María Lugones no que diz</p><p>respeito à colonialidade do poder. Para ela, “o sujeito, as relações, as bases e as</p><p>possibilidades são continuamente transformadas, encarnando uma trama desde o lócus</p><p>fraturado que constitui uma recriação criativa, povoada”. Portanto “adaptar, rejeitar,</p><p>adotar, ignorar nunca são apenas formas de resistência, por serem sempre performadas</p><p>por um sujeito ativo complexamente construído na sua habitação da diferença colonial</p><p>103</p><p>com um lócus fraturado” (2019, p. 372). O fato de viverem nesse lócus fraturado os</p><p>impulsiona a fazer o movimento de tensão “entre a desumanização e a paralisia da</p><p>colonialidade do ser, e a atividade do ser-sendo” (2019, p. 372). É o que podemos</p><p>constatar nas decisões de Rami que embora se perceba oprimida na relação com Tony,</p><p>busca alternativas que vão de encontro à colonialidade do poder.</p><p>No romance O alegre canto da perdiz, as “adaptações, rejeições e adoção” ao</p><p>poder constituído também atravessam toda a narrativa. Nele é possível vislumbrar as</p><p>mazelas psíquicas deixadas pela colonização portuguesa e, simultaneamente, práticas de</p><p>resistência ao pensamento colonial. Os conflitos raciais entre personagens da mesma</p><p>família evidenciam que a independência dos países colonizados não significa a</p><p>libertação mental que foram internalizadas pelos colonizados.</p><p>Delfina, personagem protagonista, é a expressão na narrativa do lócus fraturado</p><p>de que nos fala Lugones. Suas atitudes oscilam entre a resistência e a perseguição pela</p><p>vida do colonizador. Quando nos é apresentada no quarto capítulo do romance, parece</p><p>estar na fronteira entre a loucura</p><p>e a sanidade, já em idade avançada, sofre a amargura</p><p>de um passado em que fez escolhas cruéis para ter a vida do colonizador: vendeu a</p><p>virgindade da filha Maria das Dores e perdeu-a para Simba, o “comprador”, que a</p><p>tornou escrava dos seus desejos libidinosos. Delfina enlouquece quando percebe que</p><p>tudo o que fez para aproximar-se da boa vida do colonizador fora insuficiente. Entende</p><p>que o desejo de posses é inalcançável para a mulher negra.</p><p>Ainda assim, interpretamos o desejo de Delfina como um ato de resistência,</p><p>uma vez que, segundo Frantz Fanon, o homem negro quando se depara com a oposição</p><p>do outro, toma consciência de si e passa a ter a experiência do desejo. No momento em</p><p>que isso ocorre</p><p>peço que me considerem a partir do meu Desejo. Eu não sou apenas</p><p>aqui-agora, enclausurado na minha coisidade. Sou para além e para</p><p>outra coisa. Exijo que levem em consideração minha atividade</p><p>negadora, na medida em que persigo algo além da vida imediata; na</p><p>medida em que luto pelo nascimento de um mundo humano, isto é, um</p><p>mundo de reconhecimentos recíprocos (2018, p. 181).</p><p>Para concretizar o seu desejo, a personagem protagonista age com tirania</p><p>também contra os seus. Quando Soares, seu companheiro português, a adverte para que</p><p>não trate os filhos negros e mulatos de forma diferente ela responde:</p><p>104</p><p>Os filhos negros representam o mundo antigo. O conhecido. São o</p><p>meu passado e o meu presente. Sou eu. E eu já não quero ser eu. Os</p><p>filhos mulatos o fascínio pelo novo. Instrumentos para abrir as portas</p><p>do mundo. A Zambézia ainda é virgem, não tem raça. Por isso é</p><p>preciso criar pessoas humanas à altura das necessidades do momento</p><p>(CHIZIANE, 2018, p. 228).</p><p>Aprende desde cedo a vender o seu corpo para ter a garantia do pão. Ainda</p><p>assim, deseja ser professora para fugir da prostituição. Quando jovem,</p><p>inconscientemente, contesta a subserviência da mãe ao poder colonial: enquanto</p><p>Serafina nega a própria raça, tentando impedir que ela se casasse com o negro José dos</p><p>Montes, Delfina faz questão de selar o seu amor com o homem que a mãe rejeita por ser</p><p>negro. Na velhice, percebe que foi educada para “aceitar a tirania como destino de</p><p>pobres e olhar com desprezo a própria raça” (CHIZIANE. 2018, p. 40). No entanto, luta</p><p>contra a miséria a que foi submetida por ser negra para realizar-se como mulher –</p><p>categoria negada no contexto colonial à mulher preta – apesar de ser negra.</p><p>No percurso da narrativa, entendemos a negação de Serafina à própria raça</p><p>como o fechamento do ventre da mulher negra como resistência à produção de trabalho</p><p>braçal para o colonizador. À sua maneira Serafina resiste ao poder colonial e de gênero.</p><p>Como mencionado, essas personagens se situam em um espaço ambivalente do mundo</p><p>colonial, logo suas atitudes frequentemente se mostram ambíguas, ao passo que ora</p><p>refutam sua cultura ora defendem-na ameaçando, assim, o discurso colonial que</p><p>“apresenta o colonizado como uma população de tipo degenerado com base na origem</p><p>racial de modo a justificar a conquista e estabelecer sistemas de administração e</p><p>instrução” (BHABHA, 2013, p. 124). A personagem Serafina torna o encontro com a</p><p>sua identidade possível, sem que esta esteja enquadrada na imagem do colonizado</p><p>erigida pelo colonizador, e quando isso ocorre, “deixa um rastro de resistente, uma</p><p>mancha do sujeito, um signo de resistência” (2013, p. 92).</p><p>Após a chegada da primeira neta, Serafina, que antes tentou impedir a união da</p><p>filha com um homem negro para que não tivesse filhos pretos, sonha:</p><p>O ventre da sua Delfina dá bons filhos. Que ela deixe desembarcar</p><p>daquele nobre ventre mais alma negra, que serão, talvez gente boa,</p><p>professores, agricultores, quem sabe até, nascerão daquele ventre os</p><p>bravos que irão libertar a terra. Sonha com o dia da liberdade, em que</p><p>os netos possam preencher os espaços da terra, sonhando pelos</p><p>campos sem medo de serem deportados. Neste momento Serafina quer</p><p>a liberdade, só quer a liberdade (CHIZIANE, 2018, p. 146).</p><p>105</p><p>A vida que surge do ventre de Delfina dá à Serafina o direito de sonhar. Tenta</p><p>convencer a filha a tomar o chá de erva, porém a nova mãe rejeita, pois já tem os</p><p>antibióticos da farmácia que o marido lhe trouxera. A mãe sugere que seja feita “a</p><p>cerimónia do nascimento para dar sorte à menina”. Delfina refuta a ideia, explica-se: “–</p><p>Porque fiz um juramento. Renunciei a todas essas práticas primitivas e vivo a vida dos</p><p>brancos” (2018, p. 148).</p><p>O conflito entre as duas gerações denuncia e torna visível o espaço cindido</p><p>pelo colonizador que tem como uns dos principais objetivos demonizar a cultura</p><p>tradicional nativa, aviltar o colonizado. Essa negação à cultura tradicional persiste</p><p>mesmo depois da independência do país quando os moçambicanos passam a governá-lo.</p><p>Fanon faz a seguinte crítica à tentativa de apagamento da religião local: “os chefes</p><p>tradicionais são ignorados, algumas vezes molestados. A história da nação futura destrói</p><p>com uma singular desenvoltura as pequenas histórias locais [...]”. Destaca ainda que “os</p><p>velhos, cercados de respeito nas sociedades tradicionais e geralmente revestidos de uma</p><p>autoridade moral indiscutível, são publicamente ridicularizados” (2010, p. 135). O</p><p>assunto é também abordado por Sheila Khan que salienta: “O saber local é</p><p>menosprezado e catalogado como um saber negativo e espúrio aos olhos de um outro</p><p>saber que se imagina hegemônico e rigoroso na sua caminhada ao encontro da</p><p>civilização e do progresso” (2013, p. 212).</p><p>Mediante o exposto, consideramos a atitude de Serafina, na tentativa de</p><p>preservar a cultura tradicional, como um ato de resistência. Corrobora nossa assertiva a</p><p>pesquisadora Sheila Khan quando afirma que Serafina e o seu marido (pai de Delfina)</p><p>põem em questão e desafiam a retórica da modernidade associada à lógica da</p><p>colonialidade que cria e projeta “no Outro a ideia/crença de que os seus saberes e</p><p>conhecimentos são negativamente delimitados quando comparados com o esplendor de</p><p>um pensamento ocidental” (KHAN, 2013, p. 212). Para Khan, as personagens</p><p>supracitadas recusam essa racionalidade “na medida em que não se deixam violentar</p><p>pelas ambições desmesuradas da filha” (2013, p. 212).</p><p>A personagem Maria das Dores, filha de Delfina, por sua vez, ao fugir da casa</p><p>do seu “comprador”, o feiticeiro Simba, subverte à condição a que foi posta: objeto</p><p>vendável. A atitude da personagem feminina mitiga o poder patriarcal tradicional,</p><p>representado pela personagem Simba que, por ser feiticeiro, carrega consigo o</p><p>imaginário do homem que mantém conexões com seus ancestrais mortos, sendo capaz</p><p>106</p><p>de impossibilitar uma vida de paz para qualquer pessoa que o desafie. Problematizar a</p><p>mercantilização do corpo feminino na narrativa é um dos atos subversivos da escritora,</p><p>haja vista que esse é um tema tabu em seu país.</p><p>A narrativa faz ver que a venda/troca de meninas é legitimada pelas culturas</p><p>tradicionais por permitirem que mulheres sejam vendidas ainda na mais tenra idade e</p><p>pelo poder colonial que nada faz para punir essa prática. De acordo com Simone</p><p>Schmidt, “o corpo erotizado e posto à venda pode ser compreendido dentro da lógica de</p><p>apropriação e subordinação dos colonizados no regime colonial” (2013, p. 231). Isto é,</p><p>ocorre a apropriação do colonizado às práticas coloniais, uma vez que Simba, assim</p><p>como Delfina que entrega a filha para saldar dívidas, lança mão da comercialização do</p><p>corpo feminino, assim como fez o colonizador com o corpo negro, para satisfazer os</p><p>seus desejos, enquanto a mãe, “principal responsável pelo cuidado de sua filha, é a</p><p>agenciadora da prostituição” (SCHMIDT, 2013, p. 232).</p><p>Maria das Dores, quando aparece nua às margens do rio Licungo, coloca</p><p>desordem “na moral pública”. Foi além, “desafiou os hábitos da terra e conspurcou o</p><p>santuário dos homens” (CHIZIANE, 2018, p. 12). Sua nudez é a metáfora da liberdade</p><p>tão almejada. Liberta-se</p><p>da corrente que a aprisiona a Simba, dos preconceitos que</p><p>oprimem e limitam a mulher a papéis que lhe são impostos. Invade o espaço reservado</p><p>aos homens da aldeia, conclamando para uma outra história em que mulher e homem</p><p>vivam em equidade. A sua atitude convoca a mulher do régulo, guardiã do imaginário</p><p>social, a ressignificar a nudez da mulher. Em sua história para acalmar os ânimos das</p><p>mulheres ensandecidas por verem uma mulher nua no espaço reservado aos homens, a</p><p>conselheira alerta: “lembrem-se sempre de que a nudez é expressão de pureza, imagem</p><p>da antiga aurora. Fomos todos esculpidos com o barro do Namuli. Barro negro com</p><p>sangue vermelho” (CHIZIANE, 2013, p. 21).</p><p>Em Balada de amor ao vento, Niketche e O alegre canto da perdiz, as</p><p>personagens femininas desejam e realizam os seus sonhos ainda que sangrem na</p><p>concretização do que almejam, lutam e vivenciam, à sua maneira, o que têm como ideal</p><p>de vida para si. Para isso, algumas vezes, subordinam-se aos poderes colonial,</p><p>tradicional e de gênero que tentam enclausurá-las, outras vezes, subvertem-nos,</p><p>apontam para a impossibilidade de silenciar por muito tempo as vozes femininas.</p><p>107</p><p>3.1.1 Pequenas fissuras: a desestabilização dos papéis de gênero pelas personagens</p><p>femininas secundárias</p><p>As personagens femininas secundárias, nos romances de Paulina Chiziane,</p><p>parecem ter mais autonomia para enfrentar os poderes que tentam mantê-las em</p><p>condições subalternas. No romance Balada de amor ao vento, Khedzi, por exemplo, a</p><p>primeira jovem a ser escolhida pela rainha Rassi para se casar com o seu filho, por ter</p><p>uma vida livre e por não ser muito afeita ao trabalho doméstico, é imediatamente</p><p>descartada. A liberdade e a ociosidade não são dádivas destinadas à mulher. A futura</p><p>noiva de Nguila, “foi educada para ser esposa do futuro rei, mas, quando chegou o</p><p>momento do lobolo, as línguas de serpente puseram a nu todas as suas maldades; ela é</p><p>feiticeira e herdou este dom da falecida mãe” (CHIZIANE, 2016, p. 41). Por não se</p><p>enquadrar nos papéis impostos à mulher, Khedzi é tachada de feiticeira. Suas ações</p><p>precisam ser condenadas para que outras jovens não a tenham como modelo de mulher.</p><p>A personagem Sumbi, diferente de Khedzi, chega a casar: “O casamento fora</p><p>arranjado pelos pais dela, gente rica que, na impossibilidade de casar a filha com um</p><p>nobre, quiseram presenteá-la com um homem culto e bem-aperfeiçoado, tendo a escolha</p><p>recaído sobre o Mwando” (2016, p. 67). Todavia, Sumbi se nega a fazer as atividades</p><p>domésticas, ao passo que é o marido quem tem que fazê-las. Alegando dores de cabeça,</p><p>no primeiro dia da vida conjugal, ela não cumpriu com as regras, “não pilou nem</p><p>cozinhou para os sogros. Sentava-se na cadeira como os homens, recusando o seu lugar</p><p>na esteira ao lado das sogras e das cunhadas” (2016, p. 67).</p><p>Sumbi está em total desacordo com os costumes. Ciente do seu poder sobre o</p><p>marido se permite subverter a ordem posta. Desestabiliza, assim, o poder colonial e de</p><p>gênero tão bem assentados na aldeia. Se constitui uma ameaça, pois “nos poucos dias</p><p>que ela se dignou a fazer alguma coisa, o marido sempre estava ao seu lado, ajudando</p><p>na lavagem da roupa, demonstrando, assim, a força do amor” (2016, p. 68). O fato de</p><p>Mwando não impor a sua autoridade masculina sobre a mulher, incomoda o povo da</p><p>aldeia:</p><p>Onde já se viu um homem colar-se como um piolho nas capulanas da</p><p>mulher, cozinhar para ela, lavar para ela? As gentes conspiraram, pois</p><p>o casal seria capaz de contaminar a aldeia com aquele modo de vida.</p><p>Afastavam-se do mal, impedindo as esposas e os filhos de se</p><p>aproximarem daquela mulher para não serem contaminados por aquele</p><p>génio do feitiço (2016, p. 69).</p><p>108</p><p>A narrativa desloca o lugar da mulher erigido pelas sociedades patriarcais,</p><p>dando indícios da impossibilidade de enquadramento da mulher como eterna doméstica,</p><p>submissa e em conformidade com o que está posto. Anuncia novos modos de vida entre</p><p>os gêneros que, por enquanto, se coloca como ameaça, ainda assim como possibilidades</p><p>plausíveis. De acordo com a pesquisadora Cíntia Acosta Kütter</p><p>Sumbi vem esclarecer que o movimento de Paulina com relação à</p><p>inversão de papéis entre os personagens masculino – Mwando – e</p><p>feminino – Sumbi – é possível mesmo tendo como pano de fundo uma</p><p>sociedade patriarcal, daí o estranhamento com a mulher promíscua e</p><p>ao mesmo tempo “virtuosa” (2013, p. 144-145).</p><p>É preciso, portanto, censurá-la, estigmatizando-a de feiticeira, dessa forma,</p><p>impede atitudes semelhantes das jovens de sua idade, mantendo intacta a tradição na</p><p>aldeia que, por conseguinte, está ancorada na exclusão da mulher nas tomadas de</p><p>decisões.</p><p>Sumbi e Khedzi são duas personagens subversivas que aparecem de forma</p><p>muito sutil no romance. Não há a exploração dessas personagens. Suas atitudes parecem</p><p>ir além do que aquilo que a escritora pode expressar. Inferimos que há uma lacuna</p><p>proposital, especialmente com relação à personagem Khedzi. Sua ousadia se torna um</p><p>impeditivo para a liberdade literária de sua criadora.</p><p>Em Niketche, Luísa (Lu) e Saly, são mais ousadas na incursão de transgredir as</p><p>instituições regidas por mãos masculinas. Essas personagens são do norte, logo foram</p><p>criadas em um contexto matriarcal, mas vivem na área urbana, espaço da narrativa. É</p><p>preciso considerar que o sul de Moçambique teve grande influência da cultura do</p><p>colonizador português, que tem como base o sistema de família nuclear, pautada na</p><p>desigualdade de gênero. Segundo a socióloga nigeriana Oyèrónké Oyěwùmí (2020),</p><p>com a chegada do colonizador no continente africano esse sistema foi imposto a</p><p>culturas que não eram organizadas na dicotomia de gênero. Portanto, Rami e Julieta, por</p><p>serem do sul, demonstram uma certa timidez quando enfrentam Tony.</p><p>Oyèrónké Oyěwùmí critica o fato de o colonizador europeu impor a sua</p><p>vivência de família nuclear – alicerçada na desigualdade de gênero – às sociedades</p><p>africanas. Destaca que “por causa da matrifocalidade de muitos sistemas familiares</p><p>africanos, a mãe é o eixo em torno do qual as relações familiares são delineadas e</p><p>organizadas” (2020, p. 92). Estudando a cultura iorubá no sudoeste da Nigéria, a</p><p>109</p><p>pesquisadora observa que a família iorubá tradicional não se baseia em relações de</p><p>gênero:</p><p>O princípio organizador fundamental no seio dessa família é a</p><p>ancianidade, não o gênero. A ancianidade classifica socialmente as</p><p>pessoas com base em suas idades cronológicas. Por exemplo, egbon se</p><p>refere ao irmão mais velho, e aburo, ao irmão mais novo de quem</p><p>fala, independentemente do gênero desses irmãos. Diferente do</p><p>gênero, que é rígido e estático, o princípio da ancianidade é dinâmico</p><p>e fluido (2020, p. 91).</p><p>Oyěwùmí chega à conclusão de que “os relacionamentos são fluidos e os</p><p>papéis sociais são situacionais, continuamente situando indivíduos em determinados</p><p>papéis, hierárquicos ou não, de acordo com o contexto em que estão inseridos” (2020, p.</p><p>91). A socióloga nigeriana assevera que</p><p>a relação entre irmãos de ventre, como aquela das irmãs da família</p><p>nuclear, é baseada em compreensão de interesses comuns e nasce de</p><p>uma experiência compartilhada. A experiência partilhada definidora,</p><p>que une os omoya34 com lealdade e amor incondicional, é o ventre da</p><p>mãe. A categoria omoya, diferentemente de ‘irmã’, transcende o</p><p>gênero (2020, p. 91).</p><p>A cultura iorubá alicerçada no sistema matrilinear dá às mulheres condições de</p><p>relação de complementaridade com os homens, de acordo com os estudos de Oyěwùmí.</p><p>Acreditamos que seja esse o motivo de Luísa, Saly e Mauá serem mais ousadas no</p><p>enfrentamento a Tony. Em conversa com Rami, quando esta pergunta se Luísa se sente</p><p>casada com Tony, ela responde: “– Enquanto ele me der assistência, sim. Nós, lá do</p><p>norte, somos práticas. Não perdemos muito tempo com esses rituais de lobolos,</p><p>casamentos e confusões. Basta um homem estar comigo uma noite para ser</p><p>meu</p><p>marido” (CHIZIANE, 2004, p. 56-57).</p><p>Na manifestação da personagem, há uma certa consciência de liberdade, uma</p><p>vez que sendo ela uma das amantes, sabe que ele nunca terá apenas ela como</p><p>companheira. Em contrapartida, Luísa também tem um amante e cede-o a Rami por</p><p>uma noite, como já foi mencionado na seção anterior. Na interpretação do pesquisador</p><p>34 Em seus estudos, Oyěwùmí enfatiza a impossibilidade de interpretação dos europeus, pautados em suas</p><p>experiências, com relação aos iorubás. Observa que a palavra omoya, traduzida por estudiosos europeus</p><p>como irmã, não dá conta da abrangência desse vocábulo no contexto iorubá para quem a palavra “omoya</p><p>também transcende a casa, porque primos matrilineares são considerados irmãos de ventre e são mais</p><p>próximos uns dos outros do que irmãos que compartilham o mesmo pai e que podem até viver na mesma</p><p>casa [...]”. A pesquisadora destaca que omoya “ressalta a importância da maternidade como instituição e</p><p>como experiência na cultura” (OYĚWÙMÍ, 2020, p. 92).</p><p>110</p><p>Russell G. Hamilton, Luísa que compartilha o seu amante com outras mulheres, “pratica</p><p>o que quase chega a ser poliandria, isto é, ter mais de um marido” (2018, p. 321). Nota-</p><p>se aqui as adaptações de que nos fala Lugones (2020). Luísa aceita a poligamia, mas</p><p>não se limita ao que impõe a sociedade patriarcal tradicional, subverte-a quando, de</p><p>forma silenciosa, traz um amante para dentro de casa e ainda o compartilha com Rami.</p><p>Para tranquilizar a amiga/rival que está de consciência pesada por ter cometido</p><p>adultério, Luísa alerta-a:</p><p>– Adultério? Há quanto tempo esperas por quem não vem? Vocês,</p><p>mulheres do sul, perdem tempo com essas histórias e preconceitos.</p><p>Renunciam à existência, pode-se saber porquê? Fidelidade a quê, se</p><p>ele já te deixou? Mesmo as viúvas aliviam o luto em algum momento.</p><p>E tu não és viúva, o Tony está vivo, está feliz e anda a fazer das suas</p><p>por aí (CHIZIANE, 2004, p. 82).</p><p>Saly, por sua vez, é descrita por Rami da seguinte forma quando aquela chega à</p><p>casa desta para a reunião em que Tony seria apresentado para a família como um</p><p>marido polígamo: “A Saly entra em passos de furacão, de amazona, guerreira, disposta a</p><p>vencer qualquer batalha” (2004, p. 108). Quando descobrem que Tony as está traindo,</p><p>Rami em monólogo pensa em como seria bom escolher a mulher para o marido,</p><p>assevera que se pudesse escolheria a Saly, pois ela sim, “é uma rival ideal. Ela é muito</p><p>impulsiva e resolve tudo a soco. O Tony andaria em broncas com ela, finalmente viria</p><p>chorar nos meus braços na minha cama” (2004, p. 132). Enquanto Lu decide aprofundar</p><p>a história de traição de Tony, Saly as alerta: “[...] temos que fazer alguma coisa. A</p><p>poligamia confere-nos alguns direitos, vamos usufruí-los. Um polígamo pode ter</p><p>amantes e deve ter amantes, caso as suas esposas estejam no período do resguardo”</p><p>(CHIZIANE, 2004, p. 132).</p><p>A consciência de que são portadoras de direitos levam-nas a encurralar Tony,</p><p>deixando-o atordoado. Lu e Saly preparam a dança niketche para o marido, envolvendo</p><p>todas elas nessa dança. Abatido diante da humilhação, Tony some da vida de suas cinco</p><p>mulheres. Nesse ínterim, um homem morre atropelado tendo o seu rosto completamente</p><p>desfigurado. Todos acreditam que aquele é Tony, com exceção de Rami. É feito o</p><p>funeral. Rami é surrupiada em seu direito de esposa pela família de Tony que leva todos</p><p>os seus móveis, alegando que ela tinha culpa na morte do marido por feitiçaria. Após a</p><p>volta de Tony, as cinco mulheres se unem para resgatar a dignidade de Rami.</p><p>111</p><p>A sororidade toma forma na narrativa, sinalizando que a mulher conseguirá</p><p>plenos direitos a partir do momento em que o enfrentamento aos dispositivos de poder</p><p>se der de forma coletiva. Exploraremos melhor o conceito de sororidade na próxima</p><p>seção, cuja abordagem ficará em torno da autonomia das personagens femininas.</p><p>As personagens femininas vindas de várias regiões do país evidenciam que</p><p>ainda que, muitas vezes, se pautem nos discursos machistas/sexistas também revelam,</p><p>na perspectiva decolonial, ideias opostas a essa forma de poder. Quando contestam as</p><p>atitudes de Tony, representação da colonialidade de poder e de gênero, instauram uma</p><p>reviravolta no patriarca da família, fazendo-o aperceber-se de suas fragilidades. Tony,</p><p>personagem educada no sistema patriarcal, é a personificação do colonizador português</p><p>que, na sua ganância, apossa-se das terras africanas, mas perde o controle quando os</p><p>nativos tomam consciência do quanto são destituídos de direitos e lutam pela sua</p><p>independência. A liberdade conquistada pelas mulheres de Tony é emblemática</p><p>especialmente quando pensamos que o homem colonizado – representado pelo marido</p><p>polígamo – assimila em todos os campos de poder a forma de administrar do</p><p>colonizador.</p><p>Em Serafina, mãe de Delfina, a resistência ao poder colonial se dá quando tenta</p><p>manter viva a cultura tradicional, insiste em preservar os rituais locais no nascimento da</p><p>primeira neta e manter vivos os saberes tradicionais, oferecendo chás para a filha que</p><p>acabara de ter um bebê, porém Delfina rejeita. O despojamento cultural “vai corroendo</p><p>a relação familiar e afetiva entre Delfina e os seus pais, aumentando, de uma forma mais</p><p>concreta, o lugar da modernidade/colonialidade entre membros de uma mesma</p><p>comunidade e destruindo laços primordiais e ancestrais” (KHAN, 2013, p. 213).</p><p>Tentar manter viva a memória nativa se constitui, portanto, um ato de</p><p>resistência. Ainda que a filha rejeite os rituais ancestrais para abençoar a chegada da</p><p>neta,</p><p>contra a vontade de Delfina, Serafina fez todas as cerimónias.</p><p>Acendeu velas ajoelhou, ofereceu flores, farinha, rapé e aguardente,</p><p>numa reza sincrética. Invocou os deuses bons e espíritos bons.</p><p>Invocou anjos e santos. Deus de sorte e da fertilidade, deuses da</p><p>maternidade e dos partos saudáveis (CHIZIANE, 2018, p. 143).</p><p>Hildete Leal dos Santos (2018) interpreta os discursos e práticas de Serafina</p><p>como uma forma possível de permanecer vinculada à sua cultura e tirar proveito do</p><p>112</p><p>sistema colonial. Por isso, ora Serafina defende os costumes tradicionais locais, ora</p><p>estimula a filha a ter filhos mestiços. Santos menciona que</p><p>o assimilacionismo e a mestiçagem, meios usados pelo colonizador</p><p>para desarticular o colonizado, eram vistos por Serafina como uma</p><p>forma de romper a estrutura de poder permitindo que os</p><p>moçambicanos ascendessem socialmente. Assim acreditava ela, bem</p><p>como muitos moçambicanos assimilados. E estimulava a filha Delfina</p><p>a ter filhos mestiços que já nasceriam “cobertos” pela lei de</p><p>assimilação (SANTOS, 2018, p. 181-182).</p><p>Dessa forma a personagem assume “um discurso público de aceitação para tirar</p><p>proveito do que oferecia o sistema, ao tempo em que não abandonava suas práticas</p><p>culturais, espaço de onde emergiam os discursos ocultos de críticas e resistência à</p><p>colonização” (2018, p. 182).</p><p>Jacinta, filha de Delfina, é outra personagem que se depara com várias</p><p>injustiças que repercutem em revoltas em sua vida. O desejo da mãe de ter a vida do</p><p>colonizador destrói a família. Quando descobre que a irmã Maria das Dores foi vendida</p><p>pela mãe, tenta resgatá-la, mas não encontra acolhida da igreja nem do Estado. Revolta-</p><p>se com a mãe. Sua casa tal qual o país Moçambique “tomava rumos inesperados. Via a</p><p>casa ser visitada por homens brancos das redondezas, ocupando o lugar que era do seu</p><p>pai. As bebedeiras de Delfina cada vez mais prolongadas. Mas a ausência de Maria das</p><p>Dores é mais dolorosa” (CHIZIANE, 2010, p. 271). A filha mestiça inicia uma guerra</p><p>contra a mãe, exige que traga de volta a irmã Maria das Dores, do contrário sairá de</p><p>casa e levará consigo os dois irmãos, Zezinho e Luisinho. A promessa se cumpre.</p><p>Delfina amarga sozinha a dor do abandono. “Delfina não odiava Maria das dores. Nem</p><p>se odiava. Odiava o mundo. O regime.</p><p>Odiava as diferenças que criavam senhores e</p><p>escravos” (2018, p. 263).</p><p>A família de Delfina com os filhos mestiços e negros é a metáfora do país</p><p>Moçambique que foi violentamente explorado pelo colonizador. Este destruiu lares</p><p>quando, ao racializar a nação, colocou colonizado como o negativo, cria no imaginário</p><p>desse povo o desejo por ter a vida do colonizador, muitas vezes, tornando-se inimigo da</p><p>própria raça. O romance nos faz ver que</p><p>a colonialidade como ave de rapina é, simultaneamente, veneno que</p><p>vai atuando paulatinamente e suprimindo no sujeito colonizado a</p><p>capacidade de uma recusa em face de supressão epistêmica da sua</p><p>cultura, da sua cosmogonia, da sua identidade (KHAN, 2013, p. 209).</p><p>113</p><p>Jacinta, ao confrontar a mãe, simbolicamente, contesta a colonialidade do</p><p>poder que invade a sua casa, desumanizando-a e a seus irmãos. Se a Maria das Dores</p><p>não foi dada a opção de escolher o seu futuro, Jacinta forçadamente constrói o seu pelas</p><p>suas próprias mãos. Para isso, arbitrariamente, elege como inimiga a mãe, mulher negra,</p><p>que na infância da filha, a exibia para as amigas como troféu. A subversão de Jacinta se</p><p>concretiza quando interrompe a prática da prostituição na família, já que ela, “[...] Não</p><p>era ainda uma mulher, mas tinha a idade ideal para ser violada por qualquer um. O</p><p>medo impele-a a buscar uma proteção, uma defesa. A desafiar a sua mãe em busca de</p><p>solução” (CHIZIANE, 2018, p. 259).</p><p>Em seus romances, a escritora Paulina Chiziane parece querer dar conta</p><p>daquilo a que se propõe quando em uma das suas primeiras conferências intitulada Eu,</p><p>Mulher... Por uma Nova Visão do Mundo, escrita em 1992 e publicada em 1994 pela</p><p>UNESCO, diz que pretende “revelar um pouco desta experiência [de escritora] sem</p><p>falsidade nem superficialização, para quebrar o silêncio, para comunicar-me, para apelar</p><p>à solidariedade e encorajamento das outras mulheres ou homens que acreditam que se</p><p>pode construir um mundo melhor” (2013, p. 201).</p><p>O movimento de resistência das suas personagens coaduna com suas</p><p>perspectivas. Ainda que seja de forma muito sutil, elas lutam pelos seus direitos,</p><p>harmonizam-se e, consequentemente, engajam-se na luta para construírem</p><p>subjetividades autônomas. Para isso, saem do espaço privado e se lançam no espaço</p><p>público. Esse parece ser, nas narrativas aqui elegidas como recorte para essa pesquisa, o</p><p>mote para a conquista de emancipação feminina. Temática que será desenvolvida na</p><p>próxima seção.</p><p>3.1.2 O despontar de subjetividades femininas autônomas</p><p>Sarnau, Rami, Delfina e Maria das Dores nomes fictícios que problematizam,</p><p>por meio do texto ficcional, situações do cotidiano de mulheres que se reinventam no</p><p>seu dia a dia para se fazer ouvir. Vivem uma luta diária para construir estratégias de</p><p>subversão aos dispositivos de poder que insistem em mantê-las subservientes,</p><p>silenciadas e subjugadas. As atitudes contestatórias dessas personagens reivindicam</p><p>outras vivências que não sejam marcadas por diversas formas de opressão. Ainda que</p><p>deem passos inseguros para viverem de forma digna, conquistam dentro de suas</p><p>possiblidades o que almejam.</p><p>114</p><p>Se no primeiro romance de Paulina Chiziane, a personagem Sarnau se mostra</p><p>ainda tímida para refutar as condições impostas à mulher, no romance O alegre canto</p><p>da perdiz, a personagem Maria das Dores, personifica o grito libertário das mulheres</p><p>que são impedidas de fazer a sua própria história: lança-se no mundo com a filha,</p><p>Rosinha, e os dois filhos, Fernando e Benedito, para fugir da tirania do feiticeiro Simba.</p><p>No caminho, desmaia por causa da fome, da abstinência da aguardente e do cigarro de</p><p>soruma. Perde os filhos e aparece nua à margem do rio Licungo. A descrição é</p><p>emblemática uma vez que a personagem demonstra total indiferença às práticas sociais</p><p>que cerceiam a mulher. Sua nudez simbolicamente representa o despir-se de toda a</p><p>forma de opressão a que foi submetida.</p><p>Sua atitude instaura reflexão sobre os mitos que sancionam a nudez da mulher</p><p>como algo pecaminoso. Desestabiliza as estruturas tradicionais moçambicanas quando,</p><p>em jeito de dororidade – a dor que “contém as sombras, os vazios, a ausência, a fala</p><p>silenciada, a dor causada pelo racismo” (PIEDADE, 2020, p. 105) – a mulher do régulo</p><p>aciona as histórias orais para valorizar a nudez feminina, como já pontuado. Em diálogo</p><p>com as lendas moçambicanas revive momentos de empoderamento feminino, conta a</p><p>história a seguir irmanando a dor das mulheres da comunidade à dor de Maria das</p><p>Dores:</p><p>Era uma vez...</p><p>No princípio de tudo. Homens e mulheres viviam em mundos</p><p>separados pelos Montes Namuli. As mulheres usavam tecnologias</p><p>avançadas, até tinham barco de pesca. Dominavam os mistérios da</p><p>natureza e tudo... eram tão puras, mais puras que as crianças numa</p><p>creche. Eram poderosas. Dominavam o fogo e a trovoada. Tinham já</p><p>descoberto o fogo. Os homens ainda eram selvagens, comiam carne</p><p>crua e alimentavam-se de raízes. Eram canibais e infelizes. Um dia,</p><p>um homem jovem tentou atravessar o Rio Licungo, para saber o que</p><p>havia. Ia afogar-se quando aparece a linda jovem, sua salvadora que</p><p>meteu o homem no seu barco. O homem olhou para o corpo dela,</p><p>completamente aberto, um antúrio vermelho com rebordos de barro.</p><p>Ali residia o templo maravilhoso, onde se escondiam todos os</p><p>mistérios da criação. [...] Os homens invadiram o nosso mundo – dizia</p><p>ela – roubaram-nos o fogo e o milho, e colocaram-nos num lugar de</p><p>submissão. Enganaram-nos com aquela linguagem de amor e de</p><p>paixão, mas usurparam o poder que era nosso. Uma mulher nua do</p><p>lado dos homens? Ó gente, ela veio de um reino antigo para resgatar o</p><p>nosso poder usurpado. Trazia de novo o sonho da liberdade. Não a</p><p>deviam ter maltratado e nem expulsado à pedrada (CHIZIANE, 2018,</p><p>p. 17-18).</p><p>115</p><p>A história contada ameniza a fúria das mulheres que querem atacar Maria das</p><p>Dores. Faz com que cada uma “recorde o seu próprio percurso. As pedras do caminho.</p><p>Percursos alegres, tristes, desesperados, espinhosos. E começaram a pensar na louca do</p><p>rio com brandura” (2018, p. 21).</p><p>A mulher do régulo contraria a tradição quando se depara com uma multidão</p><p>ensandecida por ver uma mulher nua às margens do rio Licungo. Como uma boa</p><p>contadora de história, acalma o povo que pretende julgar a “louca do rio” que aparece</p><p>nua, desafiando todas “as normas do local”. A inominável mulher do régulo subverte as</p><p>tradições, fazendo um discurso que lemos como decolonial. Corresponde ao desejo da</p><p>escritora quando encoraja suas ouvintes a olhar o mundo pela lente da mulher.</p><p>Como guardiã do imaginário social, ela deveria estar em consonância com o</p><p>que diz a tradição, no entanto, sua história traz à tona uma época em que as mulheres</p><p>tinham poder. Logo, a narrativa da mulher do régulo se instaura na ordem do que seria</p><p>ideal para a mulher. Para isso, a contadora de histórias lança mão da tradição para</p><p>empoderar as mulheres que assimilaram, como seus, os discursos preconceituosos sobre</p><p>o corpo feminino. Ao fazer uso da oralidade para mitigar os discursos masculinos sobre</p><p>o corpo feminino, a guardiã da tradição convoca os/as seus/suas ouvintes para uma outra</p><p>visão do mundo. Além disso, revisita essas lendas abordando temáticas como</p><p>empoderamento feminino e a colonialidade do gênero.</p><p>A narrativa é colocada em dois espaços, simultaneamente, o de Moçambique</p><p>quando simula a oralidade nas histórias contadas pela mulher do régulo e o ocidental</p><p>por sua forma compor o gênero romance. Dessa maneira, a escritora anuncia o seu lugar</p><p>de fala e demonstra que as mulheres em seu país também fazem a luta contra as</p><p>opressões a que são submetidas. Ademais os títulos das obras elencadas como recorte</p><p>para essa pesquisa inscrevem-se nas tradições moçambicanas de baladas, danças e</p><p>cantos, com isso Paulina Chiziane prenuncia que as narrativas não se limitam a falar</p><p>apenas das tristezas, misérias</p><p>e fome do seu povo, mas das histórias que são</p><p>atravessadas por dificuldades, resistências e superações que compõem um país. Os</p><p>romances da escritora rasuram, portanto, a ideia de um país pertencente ao continente</p><p>africano atravessado apenas por guerras, doenças, catástrofes climáticas e fomes, como</p><p>divulgam as mídias tradicionais.</p><p>Outra marca desses romances de Chiziane é a autonomia conquistada pelas</p><p>personagens femininas a partir do momento em que se lançam do espaço privado para o</p><p>116</p><p>público. Sarnau nos é apresentada como uma mulher que sozinha supera a fome e as</p><p>adversidades surgidas em seu caminho. Cria a filha e o filho sem a ajuda dos pais das</p><p>crianças e quando passa por dificuldades com a filha Chivite, cuja vida quase foi ceifada</p><p>aos três meses de idade, a ajuda vem das mãos de outra mulher, a curandeira. Para</p><p>salvar a filha de Sarnau, a boa senhora sugere que esta faça as pazes com o espírito de</p><p>Phati, sua rival enquanto esteve casada com Nguila. A protagonista cede ao pedido da</p><p>curandeira rebatizando a filha com o nome de Phati: “A partir desse dia comecei a amar</p><p>a Phati. [...] Por que odiava a Phati? Ela era a minha irmã mais nova, amou o seu marido</p><p>e lutou pelo objeto do seu amor da mesma forma que eu abandonei tudo à procura desse</p><p>amor” (2016, p. 157). O perdão de Sarnau à Phati e o socorro que vem das mãos da</p><p>curandeira acessam a importância da sororidade entre as mulheres. Palavra que, de</p><p>acordo com a jornalista Paula Roschel,</p><p>se apropria de significados como solidariedade entre irmãs, harmonia</p><p>e, sobretudo, aliança feminina, mas seu maior impacto está na luta</p><p>contra a violência relacionada ao gênero, sugerindo que através do</p><p>apoio coletivo entre mulheres é possível lutar pelo direito de todas</p><p>(2020, p. 15).</p><p>Todas as formas de cerceamento à mulher não foram suficientes para impedir</p><p>Sarnau de driblar esses sistemas e tentar construir sua felicidade. De acordo com Cintia</p><p>Küter, ainda que a protagonista de Balada de amor ao vento</p><p>seja criada e educada segundo a cultura e a tradição bantu, que</p><p>“ensina”, em seus rituais de iniciação, como a mulher deve proceder</p><p>com relação à família, ao casamento, à machamba, sobre como e o</p><p>que cozinhar para o marido e sua família, como servir-lhe, sobre o</p><p>“dever obediência” ao marido e sobre sua vida sexual, ela transgride,</p><p>burla e escapa diversas vezes dos problemas que se vão apresentando</p><p>ao longo da narrativa, pois a personagem cria, reiteradamente,</p><p>estratégias para exercer sua liberdade de escolha, malgrado o</p><p>constrangimento e as impossibilidades da tradição e da família</p><p>patriarcal (2010, 141).</p><p>Rami, a narradora/protagonista de Niketche, faz o mesmo movimento que</p><p>Sarnau, lança-se do espaço privado para o público, no entanto, a sua ânsia é por tentar</p><p>mudar o seu mundo, lutar pelo seu amor – palavras da personagem – porém, ao fazer</p><p>esse movimento percebe que todas as mulheres que se envolveram com o seu marido</p><p>vivem a mesma sensação de abandono que ela. Decide juntar as mulheres de Tony em</p><p>uma reunião secreta. Constata:</p><p>117</p><p>Coloquei o dedo nas feridas da alma e espremi lamentos. Desencantos.</p><p>Desabafos. Estas mulheres simbolizam a dor do mundo. Bebo as suas</p><p>dores, os seus sentimentos. [...] Sofro por essas crianças. A situação</p><p>destas concubinas é de longe pior que a minha. Sem proteção legal,</p><p>nem familiar. As casas onde moram são propriedade do senhor, é ele</p><p>quem paga a renda no fim do mês. Pode expulsá-las quando entender,</p><p>arremessá-las à pobreza total. Se ele morre, não terão direito a nada,</p><p>porque não constituem família de coisa nenhuma [...]. É preciso</p><p>inverter a ordem das coisas (CHIZIANE, 2004, p. 104-105).</p><p>A sororidade é o mote para que Rami tome consciência da opressão de gênero</p><p>de que todas elas são vítimas. Conhecer as quatro mulheres de Tony a fez perceber que</p><p>suas dores são idênticas e que nenhuma delas, ainda que seja muito nova, escapará do</p><p>abandono de Tony quando ele se interessar por outra mulher. Irmanadas pela dor, todas</p><p>se unem para lutar contra a indiferença do marido.</p><p>Em diálogo com Paula Roschel (2020), Vilma Piedade (2020), reconhece a</p><p>importância da sororidade, entretanto percebe que essa palavra não dá conta das dores</p><p>das mulheres negras, por apenas unir, irmanar e não abarcar a ausência, o silêncio</p><p>histórico, o não lugar e a invisibilidade do Não Ser, sendo das mulheres negras. Para</p><p>incluir essas demandas, Piedade propõe o conceito dororidade. Na sua perspectiva</p><p>“dororidade carrega no seu significado a dor provocada em todas as Mulheres pelo</p><p>Machismo” (2020, p. 17). Para a pesquisadora, “a pele preta marca a mulher negra na</p><p>escala inferior da sociedade” (2020, p. 17), por isso a necessidade de um outro conceito</p><p>que dê visibilidade às dores dessa categoria de mulheres.</p><p>O silenciamento da dor da mulher moçambicana é abordado também no início</p><p>da narrativa quando Rami sente o acolhimento das mulheres da sua rua, no momento em</p><p>que o filho quebra o vidro de um carro. A personagem observa:</p><p>As minhas vizinhas consolam-me com histórias de espantar. Elas são</p><p>mães. Para me embalar a dor, elas contam-me histórias das suas</p><p>próprias dores e espinhos. [...] Deliramos em murmúrios de nostalgia.</p><p>Nos olhos de todas nós, miragens do marido que foi e não volta mais.</p><p>Calar as nossas angústias tornou-se a nossa batalha de cada dia</p><p>(CHIZIANE, 2004, p. 13).</p><p>Para Rami, conhecer as dores dessas mulheres e das coesposas de Tony foi</p><p>também o desvelamento de sua própria situação. Essa consciência a fez perceber que a</p><p>sua luta não poderia ser solitária, era preciso transformá-la em um ato coletivo. Propõe</p><p>para Julieta, Luísa e Saly: “Unamo-nos num feixe e formemos uma mão. Cada uma de</p><p>nós será um dedo, e as grandes linhas da mão a vida, o coração a sorte, o destino e o</p><p>118</p><p>amor. Não estaremos tão desprotegidas e poderemos segurar o leme da vida e traçar o</p><p>destino” (CHIZIANE, 2016, p. 105). Eva, a mestiça, uma provável amante de Tony, se</p><p>solidariza com Rami quando fica sabendo da suposta morte do homem polígamo.</p><p>Preocupa-se por saber que Rami será tchingada, no entanto a suposta viúva confessa</p><p>para Eva que será um prazer passar por essa cerimônia, dado o fato de o irmão de Tony</p><p>ser um monumento, palavras da protagonista, com a qual Eva concorda. A provável</p><p>amante de Tony se despede de Rami com as seguintes palavras: “– Estou do teu lado. É</p><p>preciso dar uma lição a esse chalado” (2016, p. 218).</p><p>A volta de Tony se dá sob muitos pedidos de perdão. Diante desse cenário,</p><p>Rami faz a sua imposição: “Tony, estou disposta a elaborar a escala [...], mas nesta nova</p><p>escala faltam duas: a Eva e a Gaby” (CHIZIANE, 2016, p. 243) as mais novas amantes</p><p>do seu companheiro. Rami explica-se: “Durante a semana fúnebre a Eva foi de uma</p><p>ajuda inestimável. O caixão do morto comprado com o dinheiro dela. [...] A dor uniu-</p><p>nos, Tony” (2016, p. 243).</p><p>O imaginário de que as mulheres são rivais vai se desfazendo ao longo da</p><p>narrativa à medida que as personagens femininas se conhecem e se reconhecem em</p><p>dores irmanadas. Isso as fortalece e leva-as a formar uma confraria de mulheres. Nesse</p><p>movimento reconhecemos que a sororidade, como afirma Paula Roschel,</p><p>vai além do relacionamento de amizade entre as pessoas, englobando</p><p>a empatia – a capacidade de se pôr no lugar da outra, de se enxergar</p><p>em outra mulher, reconhecendo nela suas próprias fraquezas – mesmo</p><p>aquelas que não estão no seu círculo de convivência, as desconhecidas</p><p>que merecem tanto respeito quanto você, em uma identificação frente</p><p>aos problemas que passam simplesmente por questões de gênero. É o</p><p>afeto e o reconhecimento por meio da troca e da vivência (2020, p.</p><p>15).</p><p>A opressão que vitimiza as personagens femininas de Paulina Chiziane também</p><p>as impulsiona para luta. É o que acontece com Jacinta, em O alegra canto da perdiz,</p><p>quando sai de casa e leva consigo os irmãos, abandonando a mãe</p><p>que fragmenta a</p><p>família e torna o próprio lar um espaço cindido entre negros e mestiços. É também o</p><p>que ocorre com Rami quando se lança do espaço privado para o público, primeiro</p><p>tentando salvar o seu casamento, quando se dá conta de que todas as mulheres do seu</p><p>marido estão irmanadas na mesma dor, forma uma aliança com todas elas para combater</p><p>a opressão de gênero de que são vítimas. Sugere que busquem a independência</p><p>financeira: “Se cada uma de nós tivesse uma fonte de rendimento, um emprego,</p><p>119</p><p>estaríamos livres dessa situação” (CHIZIANE, 2004, p. 117). Com dinheiro emprestado</p><p>de Rami, as mulheres de Tony passam a ser comerciantes, cada uma a seu modo, e</p><p>conquistam sua estabilidade econômica. “O Tony reage mal às nossas iniciativas mas</p><p>nós fechamos os ouvidos e fazemos a nossa vida” (2004, p. 119). A conquista da</p><p>soberania das mulheres de Tony ganha espaço na narrativa, uma vez que se dão o direito</p><p>à própria emancipação. Passam a partir daí a tecer sua própria história alinhavada numa</p><p>só rede por meio da sororidade e da dororidade.</p><p>Assim como a escritora, as personagens femininas protagonistas nas obras</p><p>Balada de amor ao vento, Niketche e O alegre canto da perdiz refutam os papéis que</p><p>lhes foram impostos e buscam novas estratégias de sobrevivência. Para isso, lançam-se</p><p>do espaço privado para o público e, ao darem esse passo forçam reflexões,</p><p>questionamentos e denunciam o que permanece vigente na estrutura social. É</p><p>perceptível que desde o seu primeiro romance, as personagens femininas de Paulina</p><p>Chiziane, embora vivam em um espaço extremamente opressor, são insubordinadas e</p><p>questionadoras. Sarnau, no presente da enunciação, vive a sua pobreza com os dois</p><p>filhos no bairro da Mafalala35, ainda assim, quando jovem viveu as aventuras amorosas,</p><p>sonhou e se decepcionou, no entanto, lutou pelos seus desejos. Rami não se contenta</p><p>com o casamento a que está submetida, constrói uma aliança com as coesposas do seu</p><p>marido Tony e força-o a assumir todas as famílias que construiu. Delfina, mulher forte e</p><p>determinada, luta, ainda que de forma torpe, para realizar-se como a mulher que tem</p><p>como parâmetro. Maria das Dores destrói a soberania de Simba quando decide fugir do</p><p>enclausuramento a que foi submetida. Os romances da referida escritora, portanto,</p><p>encenam uma nova história para as mulheres, dão indícios de que é necessário</p><p>reestruturar a história com a participação ativa das mulheres, para que, assim, elas</p><p>também tenham voz e sejam ouvidas.</p><p>3.2 Entre conflitos e reconciliação: a encenação de novas histórias</p><p>Os movimentos de transformação das personagens femininas impulsionam</p><p>mudanças nas atitudes das personagens masculinas. Nessa perspectiva, acreditamos que</p><p>os romances aqui estudados apontam para um futuro em que todos/as se reconheçam</p><p>como seres humanos capazes de dar sua contribuição para um país em que as diferenças</p><p>35 Em Lourenço Marques, hoje Maputo, capital de Moçambique.</p><p>120</p><p>sejam referenciadas e não rechaçadas. Mediante essa constatação, observamos quais</p><p>transformações ocorrem nas personagens masculinas, forçadamente, impulsionadas</p><p>pelas subversões das mulheres e como isso contribui para instaurar outros modos de</p><p>convivência.</p><p>Se Mwando, em Balada de amor ao vento, opta por abandonar Sarnau por uma</p><p>mulher de posses – Sumbi – esta, por ser extremamente insubmissa, passa a dividir com</p><p>o marido os trabalhos domésticos, algo inaceitável na aldeia, como já mencionado. Com</p><p>isso a narrativa desestabiliza os papéis de gênero e coloca em pauta a possibilidade de</p><p>questionamento sobre esses papéis fixos.</p><p>No entanto, a escritora opta por construir essa personagem feminina como uma</p><p>tirana. Quando se percebe adorada e protegida, “as manifestações de carinho do marido</p><p>passaram a obrigações, situação que piorou com a chegada da gravidez” (2016, p. 69).</p><p>Ainda assim, consideramos a construção da personagem Sumbi pelas mãos de Paulina</p><p>Chiziane muito ousada por desestabilizar do poder hegemônico masculino. Nossa</p><p>suposição se assenta no fato de ela não ter dado à Sumbi um final trágico: sob a</p><p>alegação de que “os defuntos não abençoavam aquela união” (2016, p. 74), a família de</p><p>Sumbi a leva, porém, a narradora implícita dá a seguinte informação: “Sumbi já tinha</p><p>arranjado um marido rico [...]” (2016, p. 74).</p><p>Sarnau também força Mwando a rever suas atitudes. Quando ele a reencontra</p><p>dezesseis anos depois de tê-la abandonado pela segunda vez, busca humildemente o</p><p>perdão da amada. No primeiro momento não o obtém, ela exige que ele pague o preço</p><p>do lobolo, afinal, devolveu a Nguila o valor do lobolo que ele tinha pagado por ela.</p><p>Diante da cobrança, Mwando se sente impotente, pois Sarnau cobra-lhe um preço muito</p><p>alto e mais uma vez ele implora o seu perdão: “– Sarnau, tem piedade de mim. Deus</p><p>deu-me já o castigo merecido. Pelos nossos filhos, imploro-te perdão, Sarnau” (2016, p.</p><p>166). Se na juventude implorou pelo amor de Mwando, na vida adulta, depois de ter</p><p>vivido tantos dissabores e todo tipo de aflição, ela se impõe diante do homem que um</p><p>dia a abandonou. Sarnau dá-lhe as costas e vai para casa. Mwando não desiste, vai até à</p><p>casa da mulher que ainda ama, e ciente de que também o ama, a protagonista decide</p><p>acolhê-lo.</p><p>Cintia Acosta Küter interpreta da seguinte forma esse reencontro:</p><p>Depois de reatar com Mwando e abrir mão do lobolo que ela mesma</p><p>havia imposto a ele, Sarnau, já cansada, opta pela felicidade, não mais</p><p>121</p><p>pelo orgulho que lhe corroera nesses anos de abandono. [...] Todo</p><p>reencontro entre ambos se dá sob uma forte chuva, o que faz com que</p><p>Sarnau renasça, enterrando definitivamente o passado. Através do</p><p>perdão dado a Mwando, a protagonista instaura o apagamento dessa</p><p>memória antiga e repleta de dores para, enfim, iniciar uma nova vida</p><p>(2013, p. 148, grifos nossos).</p><p>O último capítulo de Balada de amor ao vento é o prenúncio de uma nova fase</p><p>na vida de Sarnau. Sob o barulho da chuva que cai lá fora a protagonista reconhece que</p><p>ainda ama loucamente Mwando. Neste momento os sons da natureza prenunciam novos</p><p>tempos na vida dos amantes: a água da chuva que “cai melodiosa sobre o telhado de</p><p>zinco; o vento assobia tocando os acordes das árvores, das palhotas, dos caniços e tudo</p><p>gira, dança, balança ao ritmo do vendaval. Entre a música da tempestade escuto três</p><p>pancadas na porta do quintal” (CHIZIANE, 2016, p. 169). Mwando adentra a casa da</p><p>amada e a o vento assobia a balada desse amor. O desfecho do romance respalda a nossa</p><p>hipótese quando a narradora/protagonista em tom de reconciliação anuncia:</p><p>Enterrei o passado. Puxei o candeeiro, soprei, apagou-se.</p><p>Mergulhámos na escuridão da paz, no esquecimento de todas as</p><p>coisas, naquela ausência que encerra todas as maravilhas do mundo. A</p><p>solidão desfez-se. O vento espalha melodia em todo o universo.</p><p>Continua a chover lá fora (CHIZIANE, 2016, p. 172).</p><p>A água da chuva leva consigo toda a mágoa de Sarnau que perdoa o seu amado</p><p>e se permite ser feliz ao seu lado. Por meio do perdão e da reconciliação, a vida dos</p><p>amantes é selada.</p><p>No artigo Aspectos Conceituais do Perdão no Campo da Psicologia (2012),</p><p>Rodrigo Gomes Santana e Renata Ferrarez Fernandes Lopes fizeram uma investigação</p><p>sobre os conceitos do perdão. De acordo com esses estudiosos, “alguns autores fazem</p><p>distinções entre o perdão e outras formas de denominações comumente utilizadas como</p><p>sinônimos” (2012, p. 622). Com base em Enright e Coyle (1998), Santana e Lopes</p><p>citam alguns termos sinônimos do perdão. Enumeramos para uma melhor compreensão:</p><p>1. Pardoning (absolvição): “conceito relacionado à justiça, e que implica perdoar</p><p>legalmente alguém da pena consequente à transgressão cometida. No entanto, o perdão</p><p>pode ocorrer independentemente de o sistema jurídico já ter realizado seu julgamento”</p><p>(2012, p. 622). 2. Condoning (que pode ser entendido</p><p>como fazer vistas grossas): ocorre</p><p>quando se aprova um comportamento que a maioria das pessoas pensa ser errado, mas</p><p>que foi justificado pela ofensa, com isso o ofensor é liberado de qualquer</p><p>122</p><p>responsabilidade. “Diferentemente dessa ideia perdoar não é o mesmo que desistir do</p><p>pleito por justiça ou por tolerância à injustiça”. 3. Excusing (desculpas): “termo que</p><p>sugere que o ofensor teve um motivo que justifique ter cometido a afronta. Mesmo que</p><p>haja motivos razoáveis que expliquem a ofensa, e que esses sejam considerados, perdoar</p><p>não é somente entender que não houve intencionalidade”. 4. Forgetting (esquecimento):</p><p>“traduz a ideia de que a memória da ofensa foi suprimida da consciência. Entretanto, ao</p><p>perdoar, o indivíduo não deixa de se lembrar da afronta, embora seja possível relembrar</p><p>a situação de um modo menos perturbador” (p. 622-623). 5. Denying (negação): “refere-</p><p>se a uma indisposição ou incapacidade para perceber que uma afronta tenha ocorrido.</p><p>Contudo, fingir que nada aconteceu ou que não se sentiu magoado não é o mesmo que</p><p>perdoar” (p. 623). 6. Reconciliation (reconciliação): “sugere a restauração do</p><p>relacionamento. De fato, para que possa haver reconciliação, deve haver alguma forma</p><p>de perdão, entretanto, quando se perdoa, não necessariamente deve ocorrer</p><p>reconciliação” (p. 623).</p><p>Nos atemos a esse último conceito para analisarmos o perdão concedido por</p><p>Sarnau a Mwando por entendermos que ela não só cede o perdão ao amado como</p><p>também se reconcilia com ele. Vale salientar que, de acordo com Enright et al, “a</p><p>distinção filosófica básica entre perdão e reconciliação é que perdoar envolve a resposta</p><p>de uma pessoa a uma ofensa, enquanto a reconciliação envolve duas pessoas</p><p>relacionando-se bem novamente” (apud SANTANA; LOPES, 2012, p. 623).</p><p>Depreendemos que o desfecho da história entre Sarnau e Mwando dá indícios</p><p>do que consideramos ser o que propõe as obras Balada de amor ao vento, Niketche e O</p><p>alegre canto da perdiz: o início de um país mais pacífico para os/as moçambicanos/as,</p><p>representados/as nas personagens, a partir do momento em que houver a reconciliação e</p><p>o perdão entre a população que se configura após séculos de colonialismo, colonialidade</p><p>do poder e de gênero e todas as práticas que desumanizaram mulheres e homens</p><p>negros/as nessa sociedade.</p><p>Em Niketche, não obstante as cenas em que as personagens femininas são</p><p>oprimidas, a narrativa, pela lente da narradora/protagonista, coloca em foco também</p><p>mulheres insubmissas, como ocorre já no capítulo seis quando uma velha senhora leva o</p><p>companheiro ao hospital e é maltratada por ele. Ela descreve os problemas do marido</p><p>para o médico, sendo, grosseiramente, repreendida pelo companheiro: “– Cala-te,</p><p>mulher. Desde quando tens categoria para falar com um doutor? Nunca te autorizei a</p><p>123</p><p>falar com homem nenhum. Estás a comportar-se como uma prostituta” (CHIZIANE,</p><p>2004, p. 60). A velha reage e em tom de desabafo fala para o médico: “– Velho</p><p>rabugento! Suportei-lhe a vida inteira. Se não quer que eu fale, então que morra!”</p><p>(2004, p. 60). Rami, a narradora/protagonista, continua a sua narrativa: “A velha</p><p>abandona o companheiro estendido na maca. Dá passos em retaguarda. Percorre o</p><p>corredor num voo como se respondesse ao chamamento da liberdade. O velho marido</p><p>grita de raiva chamando por ela, mas esta não volta atrás [...]” (2004, p. 60). Rami em</p><p>estado de êxtase e de choque aprecia a cena. A atitude subversiva da velha senhora,</p><p>focalizada pelos olhos incrédulos da narradora, faz esta perceber que o império</p><p>masculino pode ser abalado.</p><p>A cena descrita já nos primeiros capítulos do romance sugere mudanças</p><p>inclusive nas atitudes das mulheres mais velhas. Vimos que, em sua maioria, elas</p><p>tendem a manter a tradição cobrando das mais novas o bom tratamento ao marido,</p><p>entretanto, no episódio do romance acima, a ambivalência se insere nos primeiros</p><p>capítulos como a sinalizar que a resistência à colonialidade do poder e de gênero não</p><p>está circunscrita apenas nas mulheres mais novas.</p><p>Vito, amante de Luísa, é outra personagem que está na contramão dos homens</p><p>da narrativa. Contudo, revela para Rami que ele ajudou Luísa, quando a encontrou</p><p>grávida na rua, em um dia que tinha sido agredida por Tony. Confessa que a amparou</p><p>porque sente remorso, pois no passado também agrediu a mulher no último mês de</p><p>gravidez, o que a fez perder o bebê. Confessa: “Como estou arrependido, Deus meu!</p><p>Mal saiu da maternidade, foi para a casa dos pais e não voltou mais para mim, tinha</p><p>toda razão. Casou-se com outro e é feliz, para meu castigo” (CHIZIANE, 2001, p. 87).</p><p>Esses episódios nos levam a compreensão de que Chiziane sinaliza a</p><p>impossibilidade de se manter uma tradição que nega às mulheres o direito a ser. Ainda</p><p>que toda a sociedade esteja estruturada para manter a figura feminina subserviente ao</p><p>homem em algum momento, por uma questão de dignidade, estas se rebelarão, buscarão</p><p>a sua própria liberdade e, simultaneamente, forçarão a transformação também da figura</p><p>masculina, como ocorreu com Vito.</p><p>A reconciliação e o perdão permeiam também toda a narrativa em Niketche.</p><p>Desde o primeiro encontro de Rami com a segunda mulher de Tony até o momento em</p><p>que o próprio Tony reconhece os seus erros e pede perdão às coesposas. No encontro da</p><p>narradora/protagonista com Julieta, depois de muitas contendas entre elas, Julieta dá o</p><p>124</p><p>primeiro passo para a reconciliação, para em seguida a sua rival pedir perdão. Rami</p><p>declara:</p><p>O meu estado era tão deplorável que não podia andar na rua naquelas</p><p>condições. A julieta levou-me para dentro de casa. Deu-me banho</p><p>morno. Fez-me os pensos para estancar as feridas. Escolheu suas</p><p>melhores roupas me vestiu como uma princesa. Lavou-me a cabeça e</p><p>me penteou [...] (CHIZIANE, 2004, p. 23).</p><p>Rami reconhece que Julieta é apenas mais uma vítima do abandono de Tony e,</p><p>ao reconhecer isso, treme “de piedade, de tristeza e de vergonha” (2004, p. 26), decide</p><p>pedir-lhe perdão.</p><p>O primeiro sinal de reconciliação entre Rami e Luísa, a terceira mulher se</p><p>Tony, se dá quando são levadas para a delegacia por terem brigado na rua. Assustada,</p><p>Rami segura a mão de Luíza: “Ela não me rejeita e também se segura a mim. Ficamos</p><p>as duas coladas uma à outra, paralisadas, enquanto as outras nos olhavam</p><p>surpreendidas” (2004, p. 51). Depois de falar para o policial que era casada com um</p><p>comandante da polícia, Rami é convidada a sair da sala, mas não sai só, olha para sua</p><p>rival e afirma, com remorso, que a outra também é mulher do seu marido. Rami,</p><p>inclusive, manifesta arrependimento: “– Perdoa-me pelo que aconteceu. Não era a</p><p>minha intenção...” (2004, p. 53).</p><p>Na visita a Saly, a quarta mulher de Tony, esta faz Rami perceber que o seu</p><p>marido é fonte de renda, quando lhe diz que é pobre, não tem pai, “nem emprego, nem</p><p>dinheiro, nem marido. Se não tivesse roubado o teu marido, não teria nem filhos, nem</p><p>existência. A minha vida seria árida como um deserto. O amor que me dá é quase nada,</p><p>mas é quase nada para me fazer florir” (2004, p. 66). Ao contrário do que se espera de</p><p>uma rival, Rami toma como sua a dor da quarta amante do seu marido. Reconhece, no</p><p>diálogo com Saly, que todas as mulheres em volta do seu marido buscam estabilidade</p><p>econômica. Mauá, a quinta, é a única com quem Rami não entra em conflito, pois a</p><p>mulher mais nova do seu marido tem apenas dezenove anos: “Que ajustes de contas</p><p>posso fazer com uma criatura que nem tem a idade da minha terceira filha?” (2004, p.</p><p>67).</p><p>Em suas visitas às mulheres de Tony, Rami percebe que elas também estão</p><p>insatisfeitas nesta relação, na forma como ele as trata e com o abandono de que são</p><p>vítimas. Em conversa com a tia Maria, a narradora/protagonista recebe um alerta:</p><p>“quando as mulheres se entendem, os homens não abusam” (CHIZIANE, 2004, p. 103).</p><p>125</p><p>A sabedoria popular é acionada na narrativa, servindo</p><p>a escritora tenta dizer como eles e</p><p>elas próprios se representam sem a intervenção do colonizador.</p><p>Propomo-nos a pesquisar essas três obras por entendermos que a literatura de</p><p>Paulina Chiziane vai além dos espaços moçambicanos, uma vez que nos instiga a</p><p>resistir e combater a estrutura hierárquica e dicotômica de poder que se mantém até hoje</p><p>não só em seu país, mas em toda sociedade capitalista. Suas narrativas propõem uma</p><p>visão decolonial de mundo. Faz-nos perceber que a reação ao poder dominante pode</p><p>ocorrer na capital, como vimos na reação de Rami, até numa pequena aldeia nos</p><p>recônditos de um país, como o faz a personagem Sarnau. Convoca-nos a exaltar as</p><p>diferenças e a criarmos condições de convivências mais harmoniosa entre a espécie</p><p>humana.</p><p>A escrita desta tese foi norteada pelo mapeamento das escritoras que se</p><p>destacaram e as que se destacam hoje no cenário moçambicano. Para obtermos uma</p><p>visão mais aprofundada da escrita de Paulina Chiziane, fizemos a leitura do conjunto de</p><p>obras da escritora, atentando-nos para a construção das personagens femininas, muitas</p><p>vezes, mantenedoras e outras, desarticuladoras do sistema social que tentam impedi-las</p><p>15</p><p>de alcançar e exercer sua autonomia e seus direitos como cidadãs. Embasamo-nos em</p><p>teóricos e críticos que, com sua escrita, contribuem para pensarmos os diversos grupos</p><p>da sociedade cujos lugares de margem lhes são reservados pelo mundo capitalista.</p><p>Buscamos nestas leituras obter dados teóricos necessários para alcançarmos nossos</p><p>objetivos e alicerçarmos a argumentação, no intuito de atingirmos a proposta levantada</p><p>pela tese.</p><p>16</p><p>1 MOÇAMBIQUE: UM BREVE PANORAMA DA ESCRITA LITERÁRIA</p><p>TECIDA POR MÃOS FEMININAS</p><p>1.1 A construção do espaço literário moçambicano de autoria feminina: mulheres</p><p>em pauta</p><p>Compreendera que sua vida, um grão de areia lá no fundo do</p><p>rio, só tomaria corpo, só engrandeceria, se se tornasse matéria</p><p>argamassa de outras vidas. Descobria também que não bastava</p><p>saber ler e assinar o nome. Da leitura era preciso tirar outra</p><p>sabedoria. Era preciso autorizar o texto da própria vida, assim</p><p>como era preciso ajudar a construir a história dos seus.</p><p>Conceição Evaristo (2017, p. 109-110)</p><p>A história da mulher em Moçambique, no período pós-colonial, é permeada</p><p>por diversos fatores que, por vezes contribuem, outras, impedem o seu movimento de</p><p>lançar-se como protagonistas de suas próprias histórias. Vale lembrar que, embora o</p><p>patriarcado seja predominante nesse país, devido às influências das culturas tradicionais</p><p>moçambicanas, portuguesas, indianas, árabes e chinesas, em algumas etnias africanas,</p><p>especialmente as do norte, a organização familiar é matrilinear, ou seja, a mulher exerce</p><p>um certo protagonismo, uma vez que, segundo o antropólogo Alfred. R. Radcliffe-</p><p>Brown (1973, p. 37), na organização matrilinear, é por meio da linhagem feminina que</p><p>ocorre a descendência do grupo social, herança da propriedade e sucessão da monarquia</p><p>ou chefia. Percebe-se, portanto, que algumas sociedades africanas são organizadas de</p><p>forma a dar visibilidade à mulher. Em contrapartida, as sociedades ocidentais</p><p>estruturadas no patriarcalismo tentam preservar este modelo social e,</p><p>consequentemente, manter a mulher subserviente ao homem.</p><p>Todavia, o acesso à educação formal e ao trabalho fora do espaço doméstico,</p><p>que tem início na era industrial, proporcionou à mulher ocidental maior independência e</p><p>consciência de luta por direitos igualitários. Enquanto que, em boa parte dos países</p><p>africanos, a mulher teve acesso à escrita tardiamente, além disso, o excesso de</p><p>atividades domésticas e a ligação com a tradição, que tenta mantê-las no confinamento</p><p>do lar e no silenciamento, especialmente nos lugares em que o patriarcado impera,</p><p>impedem-nas de se organizar de forma coletiva para resistirem à tirania do silêncio.</p><p>Essa realidade reverbera no cenário literário. Os homens, em sua maioria,</p><p>ganham destaque e sua escrita têm maior visibilidade no contexto nacional</p><p>17</p><p>moçambicano. No entanto, há um movimento de transformação que gradativamente tem</p><p>dado nuances diferentes para esse contexto: a mulher delineia um novo caminho que a</p><p>conduz para um espaço de fala e permite que suas insatisfações sejam colocadas em</p><p>pauta. É preciso considerar que essa luta se dá de forma lenta, ademais, aquelas, que</p><p>tentam ultrapassar a fronteira dos espaços notadamente demarcados por homens, podem</p><p>muitas vezes sofrer represálias e ficar em situação vulnerável. É o que ocorre, por</p><p>exemplo, com as mulheres que pretendem trazer à luz a sua escrita e se inserir no</p><p>universo acadêmico. A professora e pesquisadora Nazareth Fonseca (2004), assinala</p><p>que, em depoimento, no Seminário sobre a situação da mulher escritora em África e na</p><p>América Latina, realizado em Lisboa, em 1998, as escritoras deixaram claro que a</p><p>publicação de seus livros não indica a aceitação delas nesses espaços demarcados</p><p>majoritariamente pelo masculino. Além disso, nem sempre o livro contribui para a</p><p>construção de uma outra forma de vida que rasure “os valores legitimados por essas</p><p>sociedades que ainda se regem por formas explícitas ou camufladas de separação entre o</p><p>espaço das mulheres e o dos homens” (FONSECA, 2004, p. 284). Ou seja, alguma</p><p>dessas escritoras sentem-se ainda intimidades para desengrenar ou, pelo menos rasurar,</p><p>por meio da sua escrita, a estrutura patriarcal nesses contextos. Fonseca destaca ainda</p><p>que</p><p>as escritoras africanas presentes ao encontro apontaram a dificuldade</p><p>de uma mulher, em África, conseguir transgredir, sem grandes</p><p>sacrifícios, os lugares determinados pela cultura, mesmo considerando</p><p>as alterações significativas presentes nos centros urbanos nos quais as</p><p>barreiras ainda fortes nas zonas rurais mostrem-se mais porosas (2004,</p><p>p. 284).</p><p>Com base na reflexão acima, propomos nesta seção discutir como se deu a</p><p>inserção da escrita literária de autoria feminina no espaço moçambicano. Para isso,</p><p>abordaremos de forma breve como e quando ocorreu o registro de grupos silenciados na</p><p>história.</p><p>Hutcheon, no seu livro, Poética do pós-modernismo... (1991), discute a</p><p>descentralização do centro, defende que a partir da perspectiva descentralizada, o</p><p>“marginal” e aquilo que chama de “ex-cêntrico”1 assumem nova importância à luz do</p><p>reconhecimento implícito de que a cultura europeia “não é um monolito homogêneo</p><p>1 Houtcheon cunha o termo ex-cêntricos para se referir aqueles que se encontram fora do centro europeu-</p><p>ocidental, os grupos anteriormente ‘“silenciosos’ definidos por diferença de raça, sexo, preferências</p><p>sexuais, identidade étnica, status pátrio e classe” (1991, p. 89).</p><p>18</p><p>(isto é, masculina, classe média, heterossexual, branca e ocidental)” (1991, p. 29) que se</p><p>presumia. Hutcheon considera que essa contestação da autoridade se dá parcialmente</p><p>pela revolta daqueles que estão fora do centro da ‘“política molecular’2, da década de</p><p>60” (1991, p. 85). Reitera que a ascensão do protesto negro militante na literatura,</p><p>iniciado nos Estados Unidos, nessa mesma década, permitiu, “o protesto feminista e</p><p>outras formas de protesto”; desafiou “o etnocentrismo que havia transformado o negro</p><p>numa figura de negação ou de ausência – assim como o androcentrismo tornava ausente</p><p>a mulher” (1991, p. 90).</p><p>É sabido que durante séculos, o Ocidente instaurou no imaginário ocidental um</p><p>arquétipo de África que mesmo no século XXI poucos conseguem desconstruir.</p><p>Imaginar a África como um lugar de produção de conhecimento, arte e cultura ou coisa</p><p>do gênero é quase impossível para muitos ainda hoje. Falar de intelectual africano até há</p><p>um tempo relativamente recente estava fora de cogitação. Em meados do século XX,</p><p>durante as lutas armadas</p><p>como um sinal de alerta para a</p><p>primeira companheira de Tony, o que a torna mais segura em seu intento. E, somente</p><p>quando a união de Rami com suas amigas/rivais se concretiza, a vida delas toma uma</p><p>nova configuração.</p><p>As investidas de Rami contra Tony só dão certo quando finalmente se une às</p><p>suas rivais para apresentá-lo à família como um marido polígamo. Essa iniciativa força-</p><p>o a assumir os/as filhos/a. Mesmo contrariado, o marido cede ao que exigem suas</p><p>mulheres. Outro momento em que a narrativa demonstra sinais de mudança em Tony</p><p>ocorre quando suas coesposas descobrem a traição dele. Elas se reúnem com Tony e</p><p>Rami constata: “enfrentamo-lo sem medo e dissemos todas as verdades. Dissemos tudo</p><p>o que nos doía” (CHIZIANE, 2004, p. 140). Insatisfeitas com a reação do companheiro</p><p>que ainda as afronta, Saly e Mauá força-o a assistir a todas elas nuas dançando niketche:</p><p>O Tony fica atrapalhado. Somos cinco contra um. Cinco fraqueza</p><p>juntas se tornam força em demasia. Mulheres desamadas são mais</p><p>mortíferas que as cobras pretas. A Saly abre a porta do quarto. A cama</p><p>estava desmontada e o assoalho coberto com esteiras. Achamos a ideia</p><p>genial e entramos no jogo. Era preciso mostrar a Tony o que valem</p><p>cinco mulheres juntas. Entramos no quarto e arrastamos o Tony, que</p><p>resistia como um bode. Despimo-nos, em strip-tease. Ele olha para</p><p>nós. Os seus joelhos ganham tremor ligeiro (2004, p. 143).</p><p>No momento em que Saly e Lu encurralam Tony convidando todas as</p><p>coesposas dele para dançarem niketche, nenhuma delas rejeita o convite mesmo sabendo</p><p>que, naquele momento, estavam transgredindo uma das tradições mais respeitadas, pois</p><p>“nudez de mulher é mau agouro mesmo que seja de uma só esposa, no acto da zanga. É</p><p>protesto extremo, protesto de todos os protestos. [...] Dá azar. Provoca cegueira.</p><p>Paralisia. Mata” (2004, p. 144).</p><p>Como ocorre em Balada de amor ao vento, a nudez da mulher se torna um ato</p><p>de resistência não só ao poder patriarcal, mas à tradição de algumas culturas nacionais.</p><p>Dizemos algumas porque as superstições referentes à nudez da mulher são relativizadas</p><p>quando Mauá explica a importância dessa dança para os macua: “uma dança do amor</p><p>que as raparigas recém-iniciadas executam aos olhos do mundo, para afirmar: somos</p><p>mulheres. Maduras como frutas. Estamos prontas para a vida” (2004, p. 160). Para</p><p>enfrentarem o patriarcado e a colonialidade de gênero as personagens femininas, muitas</p><p>vezes, lançam mão da própria tradição. Dessa forma as narrativas de Paulina Chiziane</p><p>126</p><p>elucidam as fragilidades da tradição ou contestam-nas quando negam à mulher os seus</p><p>direitos.</p><p>A união das cinco mulheres para enfrentar Tony leva-nos a fazer alusão aos</p><p>conceitos de sororidade e dororidade, como já foi dito, uma vez que é, por meio das</p><p>personagens que se irmanam na dor que a soberania de Tony, representação do poder</p><p>masculino, gradativamente se fragiliza ao passo que o força a fugir por um tempo,</p><p>complicando ainda mais sua vida. Quando volta descobre que fora dado como morto e</p><p>que a primeira mulher foi tchingada. Diante das notícias narradas por Rami, o marido</p><p>polígamo percebe o quanto a cultura oprime mulheres: “Foi desumano o que fizeram</p><p>contigo. Ah, cultura assassina!” (CHIZIANE, 2004, p. 229). Toma consciência do que</p><p>sentem as mulheres diante da tirania da tradição, “diz que não sabia que a vida era má,</p><p>nem imaginava que as mulheres sofriam tanto. Sempre achara que a sociedade estava</p><p>bem estruturada e que as tradições eram boas, mas só agora percebia a crueldade do</p><p>sistema” (2004, p. 229). Tony se dá conta das limitações da mulher em uma sociedade</p><p>sexista. Percebe que como Rami, ele também se torna vítima da tradição quando foi</p><p>assassinado por esta. Acrescenta: “Por isso assumo o risco de desafiar o mundo dos</p><p>homens. Acabo de provar que dentro da humanidade vocês, mulheres, não são gente,</p><p>são simples exiladas da vida, condenadas a viver nas margens do mundo” (2004, p.</p><p>230).</p><p>Mediante tais constatações, Tony reconhece o seu erro. A ironia é, mais uma</p><p>vez, instaurada na narrativa quando Rami, diante da fragilidade do companheiro, afirma</p><p>que vai para casa de Levy e acrescenta: “ele é o marido que a viuvez me conferiu.</p><p>Dormi com ele e gostei” (2004, p. 233). Pela primeira vez ele pede perdão à Rami. O</p><p>pedido de perdão é reiterado quando chegam todas as esposas. Tony cai do seu pedestal</p><p>e pede que Rami organize novamente as escalas, no entanto, Saly o alerta: “[...] devolve</p><p>tudo à Rami, tudo! Mas tudo novo. Nada de trazer aqueles móveis conspurcados pelas</p><p>mãos assassinas da tua família. Devolve tudo num prazo de sete dias” (2004, p. 243).</p><p>A mudança de Tony se amplifica no capítulo trinta e seis. Suas mulheres se</p><p>reúnem para saber se ele foi bem servido na última casa em que esteve, a de Saly. Ela</p><p>relata que o serviu de joelhos e que fez tudo como manda a tradição. Rami reconhece</p><p>essa mudança: “O Tony cumpre o seu papel de amante e apaixonado por todas,</p><p>procurando agradar-nos com toda a força que a sua macheza permite. Passa os fins de</p><p>semana a correr” (2004, p. 261). Reitera: “[...] e ele não se cansa de nos elogiar” (2004,</p><p>127</p><p>p. 262). Paradoxalmente, Ju, a segunda esposa, dá sinais de que não o quer em sua casa.</p><p>Pergunta para Saly: “Não queres ficar com ele todo para ti?” (2004, p. 263). Saly aos</p><p>gritos constata: “Já ninguém quer o Tony[...] O que se passa? Está a mais de quinze dias</p><p>na minha casa e nunca mais sai e vocês nada reclamam. [...] Quero cuidar dos meus</p><p>negócios, ganhar dinheiro para criar este filho e projectar o meu futuro” (2004, p. 264).</p><p>O perdão concedido a Tony pelas coesposas não as impede de continuarem em</p><p>busca da realização pessoal e coletiva, suas prioridades passam a ser outras, já não há</p><p>mais o prazer de tê-lo em suas casas e não simulam a insatisfação. Destacamos o fato de</p><p>que Santana e Lopes, em seus estudos sobre o perdão, constatam que</p><p>as pessoas podem perdoar sem reconciliar-se. [...] perdoar não requer</p><p>necessariamente substituir elementos negativos por outros positivos.</p><p>Em outras palavras, ao perdão bastaria a liberação de ações,</p><p>sentimentos e comportamentos negativos ou orientados pela vingança</p><p>(2012, p. 624).</p><p>A partir do episódio do romance mencionado acima, acontece uma inversão: se</p><p>antes as mulheres de Tony o procuravam, ele passa a mendigar o amor delas. Mesmo</p><p>que sua transformação seja visível, como bem menciona Rami, não há a intenção de</p><p>reconciliação delas com o marido polígamo. Vislumbramos o empoderamento das</p><p>mulheres em detrimento das fragilidades de Tony. A situação econômica estável das</p><p>personagens femininas aponta novos caminhos para vivências mais independentes.</p><p>Joice Berth vê a teoria do empoderamento como algo que visa</p><p>“primordialmente a mudança social com rompimento ativo e processual, tanto coletivo</p><p>quanto individual, das estruturas de poder que foram articuladas para serem</p><p>hierarquizantes à custa de escassez de grupos situados na base” (2020, p. 53). Berth</p><p>observa que o empoderamento não trata de um dimensionamento individual, mas se</p><p>refere “a transformações coletivas em grupos historicamente oprimidos por uma</p><p>estrutura dominante” (2020, p. 53). Sob essa ótica destaca:</p><p>É o empoderamento um fator resultante da junção de indivíduos que</p><p>se reconstroem e desconstroem em um processo contínuo que culmina</p><p>em empoderamento prático da coletividade, tendo como resposta as</p><p>transformações sociais que serão desfrutadas por todos e todas. Em</p><p>outras palavras, se o empoderamento no seu sentido mais genuíno,</p><p>visa a estrada para a contraposição fortalecida ao sistema dominante, a</p><p>movimentação de indivíduos rumo ao empoderamento é bem-vinda,</p><p>desde que não se desconecte da razão coletiva de ser (2020, p. 54).</p><p>128</p><p>Dessa maneira, depreendemos que a consciência crítica da personagem Rami</p><p>em Niketche acaba por beneficiar todas as coesposas de Tony. Em movimento de</p><p>sororidade</p><p>e dororidade e de forma coletiva, elas despertam para a subalternização em</p><p>que vivem e reivindicam um outro lugar na história. Vale salientar que o</p><p>empoderamento das personagens femininas em Niketche se dá pela via de conflitos e</p><p>diálogos. Para Jorge O. Romano e Marta Antunes:</p><p>a abordagem de empoderamento não pode ser neutral, nem ter aversão</p><p>a conflitos e a seus desdobramentos. O desdobramento dos conflitos</p><p>significa que o processo de mudança, uma vez deslanchado, permeia e</p><p>se infiltra em outras dimensões vividas pelas pessoas e grupos sociais.</p><p>O empoderamento implica contágio, não assepsia. É fermento social:</p><p>está mais para invocação criativa que para evolução crontrolada (apud</p><p>BERTH, 2020, p. 71-72).</p><p>Enquanto vivenciavam suas angústias individualmente e no silêncio dos seus</p><p>lares, essas mulheres nada conquistaram para si. Após encontros organizados por Rami,</p><p>mesmo atravessados por conflitos, elas entendem que a opressão contra as mulheres é</p><p>algo que ultrapassa o ambiente doméstico e precisa ser combatido. Para isso fez-se</p><p>necessário um trabalho coletivo dessas mulheres que juntas alcançam sua autonomia.</p><p>Graças aos empréstimos concedidos por Rami: “Saly comprava cereais em sacos e</p><p>vendia em copos no mercado suburbano” (CHIZIANE, 2004, p. 119). Enquanto Lu</p><p>começa “a vender roupa em segunda mão”, Mauá passa “a tratar os cabelos, a defrisar</p><p>cabelos, coisa que entende muito bem [...]. Agora tem uma multidão de clientes”. A Ju</p><p>vende bebidas em retalho, “ela começou a sorrir um pouco e a ganhar mais confiança</p><p>em si mesma” (2004, p. 119). Rami, como primeira esposa em um casamento polígamo,</p><p>teria que preservar as tradições, fiscalizando as coesposas de Tony no atendimento a ele.</p><p>Quando decide, como matriarca da família, manter relação de equidade com suas</p><p>amigas/rivais, ela desarticula, dentro do seu núcleo familiar de estrutura polígama, as</p><p>relações de opressão vivenciadas pela mulher neste sistema. Consolida-se, dessa forma,</p><p>um dos conceitos de perdão defendido por Enright et al, os quais sugerem que</p><p>perdão interpessoal é uma atitude moral na qual uma pessoa considera</p><p>abdicar do direito ao ressentimento, julgamentos negativos, e</p><p>comportamentos negativos para com a outra pessoa que a ofendeu</p><p>injustamente, e, ao mesmo tempo, nutrir sentimentos imerecidos de</p><p>compaixão, misericórdia e, possivelmente, amor para com o ofensor</p><p>(apud SANTANA; LOPES, 2012, p. 624).</p><p>129</p><p>Cada vez que Rami reconhece o seu erro, quando na primeira visita às</p><p>pseudorrivais as ataca, liberta-se do ressentimento e, em seguida, estabelece-se uma</p><p>relação de solidariedade e companheirismo entre elas. O companheirismo promove a</p><p>independência financeira que ocorre concomitantemente ao empoderamento dessas</p><p>mulheres.</p><p>Sair dos limites do espaço doméstico para o público contribui para que Rami</p><p>amplie o seu olhar sobre a condição das mulheres em seu entorno, além disso desperta</p><p>nela a necessidade de proporcionar a autonomia financeira das amigas/rivais.</p><p>Consideremos que lançar-se no mercado informal, prática muito comum nos centros</p><p>urbanos de Moçambique, se constitui uma das alternativas para a emancipação da</p><p>mulher. A exemplo do que acontece também com Sarnau que consegue sobreviver, por</p><p>meio do mercado informal na periferia de Maputo. Quando recebe Mwando em sua</p><p>casa, depois de quinze anos sem vê-lo, sob muitos pedidos de perdão, ela decide aceitá-</p><p>lo de volta. Constata: “tenho casa, tenho negócio, tenho dinheiro. Hei de alimentá-lo.</p><p>Não será fácil para ele arranjar um posto de trabalho nesta terra” (CHIZIANE, 2016, p.</p><p>171). Se o trabalho doméstico instituído desde a era burguesa como um trabalho</p><p>feminino não é valorizado, a prática do comércio informal às margens da capital de</p><p>Moçambique, em Maputo, permite uma certa autonomia às mulheres.</p><p>Em seu livro Mulheres, raça e classe (2016), Angela Davis destaca que nas</p><p>sociedades capitalistas avançadas “o trabalho doméstico, orientado pela ideia de servir e</p><p>realizado pelas donas de casa, que raramente produzem algo tangível com seu trabalho,</p><p>diminui o prestígio das mulheres em geral”. A filósofa ressalta: “a dona de casa, de</p><p>acordo com a ideologia burguesa, é simplesmente a serva do seu marido para a vida</p><p>toda” (2016, p. 228). Davis atesta os danos da mudança do capitalismo industrial para a</p><p>produção familiar (artesanal): “como as tarefas domésticas não geram lucro, o trabalho</p><p>doméstico foi naturalmente definido como uma forma inferior de trabalho, em</p><p>comparação com a atividade assalariada capitalista” (2016, p. 230). Davis dá destaque à</p><p>relevância do Movimento de Remuneração das Tarefas Domésticas que teve origem na</p><p>Itália, em 1974:</p><p>De acordo com a estratégia desse movimento, a remuneração contém</p><p>a chave para a emancipação das donas de casa, e a reivindicação em si</p><p>é representada como o foco central da campanha pela libertação</p><p>feminina em geral. Além disso, a luta das donas de casa por</p><p>130</p><p>remuneração é posta como a questão central de todo o movimento da</p><p>classe trabalhadora (DAVIS, 2016, p. 234).</p><p>São raros os países que reconhecem o trabalho doméstico como tarefa que</p><p>deveria ser remunerada. Os romances de Paulina Chiziane sequer mencionam essa</p><p>possibilidade. Contudo suas personagens demonstram consciência da subalternização de</p><p>gênero em que vivem quando dispensam tantos cuidados ao marido, também por se</p><p>sentirem no direito de expressar insatisfação pela tarefa de ter que cuidá-lo. Por</p><p>perceberem que, diante de tantas demandas, “um marido não é leveza, é um fardo. O</p><p>marido não é companheiro, é dono, é patrão. Não dá liberdade, prende. Não ajuda,</p><p>dificulta. Não dá ternura, dá amargura. Dá uma colher de gosto e um oceano de</p><p>desgosto” (CHIZIANE, 2004, p. 263). Dá-se aí o empoderamento das personagens</p><p>femininas.</p><p>Tony solicita uma reunião com suas coesposas, o que nos permite entrever o</p><p>seu desespero já que, comumente, são as mulheres quem reivindicam reuniões. Ele traz</p><p>para elas uma carta de Lu, sua terceira companheira, e um convite de casamento dela</p><p>com Vito. Encurrala as quatro mulheres para que confessem que já sabiam da traição,</p><p>porém nenhuma delas se manifesta. A soberania masculina vai gradativamente ruindo a</p><p>partir daí. Cansadas das tarefas que têm que exercer para satisfazer o marido, as</p><p>coesposas de Tony, mais uma vez, lançam mão da poligamia para encontrar para ele</p><p>uma nova esposa. A sugestão vem de Rami, mas é a Ju, a mais humilde e submissa</p><p>entre elas, que faz um discurso mais contundente quando percebe que a primeira esposa</p><p>aparenta insegurança com relação a própria proposta:</p><p>– Em matéria de presença, um marido polígamo é tal e qual um</p><p>amante. É aquele que vem, aquele que vai, aquele de quem nunca se</p><p>sabe quando parte e quando volta, é como chuva, o marido polígamo.</p><p>Mas é pior do que um amante. O marido polígamo é complicado,</p><p>caprichoso, orgulhoso, preguiçoso. Senta-se no trono o dia inteiro e</p><p>dita ordens como um rei. Depois de comer, banha-se, perfuma-se e</p><p>parte. E nós sempre mendigas, de mão estendida, formamos um clube,</p><p>reforçamos as nossas fraquezas e exigimos os nossos direitos. Estou a</p><p>reivindicar direitos? Mas que direitos? O que é um marido polígamo</p><p>senão um ser errante que se espalha pelo mundo, como uma nuvem,</p><p>uma semente, uma pluma, um pedaço de ar? Por acaso pode-se exigir</p><p>direitos ao vento? (2004, p. 312).</p><p>O discurso contestatório da personagem dá indícios de seu empoderamento, no</p><p>entanto, os planos das companheiras de Tony não são concluídos, pois o marido se sente</p><p>impotente e rejeita a jovem que elas escolheram para ele. Se antes fazia questão de</p><p>131</p><p>“colecionar” mulheres, quando passa a exercer o papel de fato de homem polígamo</p><p>percebe que as obrigações vão além da sua capacidade. Vemos o Tony pedir perdão</p><p>novamente às suas coesposas por decepcioná-las. É pressionado a aceitar a oferta, mas é</p><p>incisivo na sua decisão. A reação do marido polígamo</p><p>nos remete ao que propõe o</p><p>pesquisador Robson Dutra: “Tony não consegue adentrar com a mesma segurança o</p><p>universo masculino que vivenciara, experimentando, desse modo, o peso da</p><p>desigualdade social de que prevalecera” (DUTRA, 2018, p. 313).</p><p>Dá-se a virada, Saly revela que já tem um companheiro e Ju aproveita o ensejo</p><p>para dizer que há dois anos também tem outro homem. Diante dos fatos, Tony</p><p>reconhece todos os seus erros e revela a sua admiração pela primeira esposa. Ela tenta</p><p>consolá-lo e quando ele a abraça sente que sua barriga está elevada. Descobre que Rami</p><p>carrega um filho de Levy, o irmão de Tony que foi escolhido para purificá-la – por meio</p><p>da kutchinga – no ritual da suposta viuvez. O desfecho da narrativa se dá de forma</p><p>ambígua: Tony desmaia ou morre diante da descoberta.</p><p>As implicações da poligamia são constantemente levantadas no romance</p><p>Niketche. O fato de as coesposas de Tony terem optado pela monogamia nos faz</p><p>entender que esse sistema não se adapta mais a contemporaneidade de Moçambique,</p><p>embora na narrativa haja também críticas à monogamia. Entretanto, parece-nos que</p><p>Paulina Chiziane sugere, em seu texto literário, que este sistema traz menos danos para</p><p>a mulher. Em contrapartida, há a valorização da cultura nativa quando Saly e Mauá</p><p>lançam mão da dança niketche, própria de algumas culturas do norte e ergue conflitos</p><p>que revelam um novo homem, já que Tony, após todas as contendas geradas após a</p><p>dança, muda a sua relação com as coesposas. Ainda assim, a poligamia é desfeita e suas</p><p>companheiras, menos a Rami, optam pela relação monogâmica.</p><p>O perdão concedido a Tony não as impediu de desenvolver uma consciência</p><p>crítica à opressão de gênero a que foram submetidas e, quando se sentem finalmente</p><p>seguras, trilham os seus próprios caminhos, ficando apenas Rami ao lado de Tony,</p><p>porém com o filho de outro no ventre. Além disso, as críticas levantadas na narrativa</p><p>aventam a possibilidade de libertação da colonialidade do poder e, consequentemente,</p><p>da autoafirmação da sociedade moçambicana, por meio das personagens femininas.</p><p>No romance O alegre canto da perdiz, o preconceito racial no interior de uma</p><p>mesma família dá a dimensão do quanto “a colonialidade do poder ainda exerce o seu</p><p>domínio” (QUIJANO, 2005, p. 135), no contexto moçambicano, encenado no romance.</p><p>132</p><p>Os conflitos entre Serafina e Delfina são mantidos na geração seguinte: jacinta, filha de</p><p>Delfina, não concorda com as atitudes da mãe, que em sua ambição de ter a vida dos</p><p>brancos, abandona os filhos à própria sorte. Jacinta decide procurar ajuda, sai de casa e</p><p>leva os irmãos consigo. A partir daí a narrativa nos faz vislumbrar um outro cenário: “os</p><p>padrinhos brancos e as freiras pretas e brancas responderam de imediato ao seu pedido e</p><p>apressaram-se a afastá-los do antro de perdição [da mãe]” (CHIZIANE, 2018, p. 264).</p><p>As crianças são amparadas pela nova população, que toma forma no contexto</p><p>moçambicano do pós-independência, representada na narrativa. O mesmo ocorre com</p><p>Maria das Dores, quando chega a cidade de Gurue é acolhida pelo médico negro,</p><p>Fernando, este “esforça-se por reconhecer os traços da humanidade onde os outros a</p><p>julgam perdida [...]. Porque ele sabe que confortar o outro é confortar-se. É dormir de</p><p>coração feliz, por ter ajudado alguém e ser alguém” (2018, p. 43). O padre negro,</p><p>Benedito, também a acolhe em sua igreja: “dedica-lhe uma oração breve e convida-a</p><p>para as missas, encorajando os crentes a conviver com ela, porque é tão humana como</p><p>as demais” (2018, p. 64).</p><p>Os episódios acima indicam a emergência de reconciliação entre o novo país</p><p>que se configura no pós-independência e prenuncia a necessidade de acolhimento à</p><p>nova geração para que, assim, possa se construir um futuro em que todos/as se sintam</p><p>parte dessa nova engrenagem. Logo, pensamos a narrativa na senda da utopia, da</p><p>possibilidade de convivências em que os conflitos possam ser discutidos e não velados.</p><p>Sugere que um novo país é possível desde que todos/as se reconheçam como parte desse</p><p>país, que busquem a reconciliação e o perdão para viver em complementaridade.</p><p>O enfoque nesse romance são as várias formas de desumanização sobretudo</p><p>das mulheres negras que têm o seu corpo mercantilizado no contexto colonial e de pós-</p><p>independência. No entanto, as personagens masculinas, diferentes dos romances Balada</p><p>de amor ao vento e Niketche, não agem com tirania contra as mulheres. São mais</p><p>passivas, inclusive, quando Serafina ataca José dos Montes por ser negro e querer casar</p><p>com a sua filha, é o pai de Delfina quem tenta apaziguar os ânimos da companheira.</p><p>Após perceber que Serafina amaina os ataques, fala para o futuro noivo:</p><p>– Pois bem, meu rapaz, bem vindo a esta casa. A partir de hoje,</p><p>pertences a essa família. Casem-se e sejam felizes. Tragam muitos</p><p>netos e muita alegria à nossa velhice. Que Deus vos dê a felicidade</p><p>que lhe pedem. Aceitem, pois, a minha bênção (CHIZIANE, 2018, p.</p><p>100).</p><p>133</p><p>Ainda assim, a exploração do corpo feminino protagonizada no período colonial</p><p>e mantida no pós-independência perpassa toda a narrativa, como pano de fundo.</p><p>Todavia, os maridos não são agressivos com as companheiras.</p><p>O movimento de reconciliação se intensifica no capítulo trinta e dois do</p><p>romance. O episódio que trazemos neste parágrafo acontece vinte e cinco anos depois</p><p>do casamento de Delfina. O insólito se instaura na diegese com a chegada de Maria das</p><p>Dores – denominada pela narradora como a louca do rio – à casa do padre Benedito. O</p><p>padre pacientemente a deixa entrar e juntamente com o seu irmão médico, Fernando,</p><p>apenas acompanham em gesto de curiosidade o percurso de Maria das Dores em sua</p><p>casa. O Cristo fixado na parede toma forma de um Cristo negro na visão daquela</p><p>mulher, sua imagem se confunde com a do cozinheiro do padre. Este escuta a louca do</p><p>rio revelar que é filha de Delfina e José dos Montes. Ao ouvir isso, o cozinheiro que até</p><p>então era tido como mudo na pequena cidade, pede para Maria: “Desfaz o nó que tens</p><p>no peito, eu estou aqui para te amparar [...]” (2018, p. 301). Após várias revelações da</p><p>louca do rio, que inclusive pede pelos filhos Benedito, Fernando e Rosinha, o padre e o</p><p>médico decidem chamar Simba, o curandeiro sisudo – adjetivação dada pela narradora –</p><p>para hipnotizar Maria até que ela se acalme. Após o transe, tudo é esclarecido: Maria</p><p>das Dores é a mãe que há mais de vinte e cinco anos o padre e o médico procuram, e “os</p><p>dois irmãos olham para Maria das Dores com redobrada ternura. Arregalam os olhos</p><p>sobre a mulher que delira, vasculhando na noite a memória dos tempos. Era sim. Era</p><p>ela, o motivo da eterna procura” (2018, p. 303).</p><p>Diante de tamanha revelação, atravessada por delírios e transes, o padre,</p><p>representação da cultura do colonizador e o médico se sentem impotentes na função de</p><p>acalmar os delírios da louca do rio, buscam o auxílio do velho Simba. Os</p><p>conhecimentos populares são acionados em detrimento da ciência e da religiosidade</p><p>cristã ocidental. A valorização da cultura nativa pode ser apreciada no decorrer de toda</p><p>a narrativa, inclusive, quando as lendas populares são recuperadas para, também,</p><p>conforme o pesquisador Lola Geraldes Xavier,</p><p>enfatizar a superioridade da mulher no início dos tempos,</p><p>superioridade, que, depois à traição, lhes é roubada pelos homens. São</p><p>estórias encaixadas na narrativa que recuperam a tradição oral do</p><p>contar e que começam todas por ‘Era uma vez... no princípio de tudo</p><p>(2013, p. 181).</p><p>134</p><p>O cenário de revelação de Maria das Dores recupera a elevação da mulher/mãe</p><p>tão valorizada na cultura tradicional moçambicana, porém relativizada na personagem</p><p>Delfina. Se esta macula a imagem da mãe, aquela a resgata. Maria das Dores faz</p><p>renascer, por meio da sua revelação, a mãe há muito tempo perdida e não só, toda</p><p>família é resgatada: “O cozinheiro mudo abriu a boca”, diz ser pai de Maria</p><p>da Dores.</p><p>“O curandeiro chora como uma criança. De emoção. De qualquer coisa que ninguém</p><p>entende”, revela ser Simba, “o que amou Maria das Dores até a perdição” (CHIZIANE,</p><p>2018, p. 305), portanto, pai do médico e do padre.</p><p>Se o colonialismo e a colonialidade do poder foram o mote para a</p><p>fragmentação da família no romance, representação do Moçambique colonizado, a</p><p>narrativa propõe a reconfiguração do país pautada na ideia de decolonialidade. Usamos</p><p>este termo fazendo alusão ao que diz Ramón Grosfoguel e Joaze Bernardino-Costa: “a</p><p>decolonialidade consiste também numa prática de oposição e intervenção, que surgiu no</p><p>momento em que o primeiro sujeito colonial do sistema mundo moderno/colonial reagiu</p><p>contra os desígnios imperiais que se iniciou em 1492” (2016, p. 16).</p><p>A oposição ao colonialismo da família de Delfina se dá quando finalmente o</p><p>perdão é concedido e a reconciliação é feita entre todos/as independente das diferenças</p><p>raciais e de classe. As hierarquias são destituídas de valor e a possibilidade de</p><p>reconfiguração do país pautada na reconciliação e no perdão entre os concidãos/ãs é</p><p>encenada, anunciando convivências igualitárias. O cenário utópico toma forma na</p><p>narrativa pela voz de José dos Montes: “Nas próximas gerações as raças se amarão, sem</p><p>ódio nem raivas, inspirados no nosso exemplo. [...] Os pretos, os brancos e seus mulatos</p><p>deverão expurgar os ódios, raivas e ressentimentos que ainda restam” (CHIZIANE,</p><p>2010, p. 346-347). Mas é Delfina, a matriarca, que cela a união entre as gerações: “A</p><p>paz assume o comando, no trono de pedra, e Delfina abraça todos os filhos e todos os</p><p>netos. Reina um violento silêncio. É o passado e o presente beijando-se nas invisíveis</p><p>fronteiras do futuro” (2010, p. 347). De acordo com Simone Schmidt,</p><p>Na cena utópica, anunciada por José dos Montes, reside o cerne da</p><p>proposta descolonial, que aponta para a desconstrução do forte sentido</p><p>racializado que ainda hoje norteia as ralações desiguais entre países,</p><p>povos e comunidades. A mestiçagem formulada por Chiziane se</p><p>mostra, portanto, como um projeto que desconstrói os sentidos que</p><p>normalmente a ela se atribuem, já que nestes, a “diluição” das raças</p><p>vai manter, em última instância, as relações inter-raciais desiguais. O</p><p>futuro mestiço antevisto por José, ao contrário, desfaz os sentidos</p><p>atribuídos cultural e politicamente às diferenças raciais (2013, p. 245).</p><p>135</p><p>Envolvidos no abraço da matriarca, metonímia do país Moçambique, o</p><p>sentimento de perdão os faz vislumbrar o futuro em que todos possam se libertar de</p><p>ressentimentos e construir um país em que o perdão e a reconciliação sejam a base para</p><p>uma vivência mais harmoniosa. Reiteramos nossa assertiva com as considerações de</p><p>Luís Henrique Eloy e Silva, que, respaldado em Wiesenthal, afirma:</p><p>o perdão dá um basta ao acontecimento e abre caminho para a</p><p>liberdade, pois diante do irreparável, a memória decide optar não pela</p><p>doença que é a lembrança incessante do mesmo fato, mas pela cura</p><p>que sinaliza o nascimento e a possiblidade de que tudo possa</p><p>recomeçar, de outra forma (apud SILVA, 2017, p. 368).</p><p>O excerto acima dialoga com o que diz Santana e Lopes, respaldados em Enright</p><p>et al, quando defendem que o objetivo do perdão</p><p>consiste, essencialmente, em que aquele que perdoa tenha sentimentos</p><p>e pensamentos positivos em relação ao ofensor. Nesse sentido, as</p><p>pessoas podem iniciar o processo de perdão por quererem sentir-se</p><p>melhor, mas quando decidem ofertar o perdão ao ofensor, a pessoa</p><p>que perdoa deixa de estar concentrada em si mesma e passa a</p><p>concentrar-se no outro, dando início ao processo de cura e mágoa</p><p>(SANTANA; LOPES, 2021, p. 625).</p><p>Esses processos podem ser vistos em Balada de amor ao vento, quando o perdão</p><p>de Sarnau ofertado à Phati, ainda que esta já esteja morta, insere a ofendida em uma</p><p>mudança de sentimento com relação à sua rival. Sarnau reconhece em Phati, mesmo que</p><p>tardiamente, uma irmã que como ela viveu os sabores e dissabores do amor. Em seguida</p><p>o perdão é concedido também a Mwando, como já mencionado nesta pesquisa, e</p><p>culmina na reconciliação entre ambos. Já em Niketche, o perdão e a reconciliação se dão</p><p>entre a esposa e coesposas de Tony, o que faz mudar significativamente a relação entre</p><p>elas, inclusive, oportunizando a liberdade para suas próprias escolhas. Enquanto que a</p><p>ele é concedido apenas o perdão pelas coesposas, haja vista que não há a reconciliação,</p><p>pois todas elas seguem a sua vida sem o marido polígamo. No romance O alegre canto</p><p>da perdiz, o perdão vem seguido da reconciliação e da sensação de cura das mágoas</p><p>entre os mais velhos da família, como também de cura psíquica de Delfina e sua filha</p><p>Maria das Dores. A sensação de liberdade os/as envolve condicionando-os/as a</p><p>acreditarem em um recomeço.</p><p>Mediante o exposto, contatamos que, de fato,</p><p>136</p><p>o ato do perdão é a única ação estritamente humana que libera a nós</p><p>mesmos e aos outros da cadeia e do tipo de consequências que toda</p><p>ação engendra; enquanto tal, o perdão é uma ação que garante a</p><p>continuidade da capacidade para a ação, para começar algo</p><p>novamente, em cada ser humano individual (ARENDT apud</p><p>CORREIA, 2020 p. 6).</p><p>Os romances de Paulina Chiziane revolvem conflitos existentes em seu país,</p><p>pensam “nos espaços cidade e aldeia, passado e presente. Espaços e tempos que se</p><p>polarizam e se interpenetram, principalmente a partir de uma instituição africana muito</p><p>forte que é a família” (MIRANDA, 2013, p. 200-201), denunciam as máculas deixadas</p><p>pelo processo de escravização, das injustiças sociais, da hierarquização de gêneros e de</p><p>raça, todavia tendem a trazer a proposta de uma país idealizado. Além disso, não existe</p><p>na literatura de Chiziane o espaço para o maniqueísmo. As personagens femininas</p><p>geralmente são construídas numa perspectiva ambivalente em que ora rejeitam as</p><p>tradições culturais moçambicanas e lançam mão das do colonizador, ora resgatam a</p><p>cultura tradicional atualizando-a para, enfim, conquistarem espaços de fala.</p><p>Torna-se marca, nos três romances que foram selecionados como recorte para</p><p>esse estudo, a necessidade da compreensão da diferença para uma convivência menos</p><p>conflituosa. A literatura de Chiziane não propõe a valorização de uma cultura em</p><p>detrimento da outra, mas considera essas diversidades culturais, problematiza-as,</p><p>demonstrando a necessidade de discussão para, enfim, tornar o país mais humanizado,</p><p>livre das mazelas da colonização, para assim construir uma convivência em que as</p><p>diferenças não sejam suprimidas ou homogeneizada, mas respeitadas, valorizadas.</p><p>CONSIDERAÇÕES FINAIS</p><p>Vimos no desenvolvimento dessa tese que os primeiros registros da escrita</p><p>literária da mulher moçambicana dão sinais de uma escrita combativa, articulada com o</p><p>compromisso de lutar pela independência do país. Esse propósito se amplia à proporção</p><p>que mais mulheres em Moçambique ou em diáspora se enveredam pelo caminho das</p><p>letras. Há a tendência entre essas escritoras de manifestarem suas experiências</p><p>compartilhadas no cotidiano com outras mulheres, o que torna essa escrita coletiva uma</p><p>137</p><p>vez que tangencia modos de vida semelhantes trazendo à luz perspectivas outras para o</p><p>cenário literário.</p><p>A escritora Paulina Chiziane fala da mulher pela lente feminina e a partir de</p><p>dentro do seu país, pautada em suas próprias experiências e nas dos/as seus/suas</p><p>conterrâneos/as, torna o seu fazer literário escrevivências de si e de outros/as, dando</p><p>destaque, principalmente, à mulher. Suas narrativas perpassam por várias regiões de</p><p>Moçambique, dando-nos uma visão panorâmica, reinventada – já que estamos falando</p><p>de textos literários – das diversidades culturais desse país. Vão além, denunciam as</p><p>mazelas da colonização e a assimilação das ideologias culturais do colonizador pelo</p><p>colonizado.</p><p>Em seus romances problematiza o silenciamento imposto à mulher</p><p>e traz à luz</p><p>os dispositivos de poder que tentam cerceá-la quando busca uma vida mais autônoma e</p><p>libertária. Entretanto, não há uma visão maniqueísta em seus textos ficcionais, pois</p><p>muitas vezes as personagens femininas são as mantenedoras das tradições que</p><p>contribuem para a opressão da mulher ou assimilam a ideologia do colonizador,</p><p>buscando nele, ilusoriamente, a identidade do europeu português, inacessível para o</p><p>colonizado. Além disso, percebemos comportamentos ambíguos nessas personagens</p><p>que ora criticam a tradição ora lançam mão dela para reivindicarem direitos antes</p><p>garantidos. A crítica à poligamia e, simultaneamente, a defesa é um dos exemplos, já</p><p>que neste sistema todos/as filhos/as têm o reconhecimento da família paterna e do pai. A</p><p>dança niketche que perde o seu sentido original e toma outra configuração quando é</p><p>dançada pelas coesposas de Tony, fazendo-o perceber sua fragilidade masculina. A</p><p>kutchinga também reconfigurada pela personagem Rami que sente prazer ao ser</p><p>tchingada por Levy, o irmão de Tony. Com isso, a escritora faz entender que a tradição</p><p>não é estática, toma outras vestes no seu cotidiano. Reconfigurando esses rituais,</p><p>Chiziane preenche de ironia sua narrativa, pontuando a impossibilidade da clausura, do</p><p>silenciamento feminino, de ideias fixas sobre as culturas e identidades moçambicanas.</p><p>Apesar de algumas personagens femininas, principalmente as mais velhas,</p><p>corresponderem à ideologia patriarcal, observamos que as mais jovens geralmente</p><p>tendem a desestabilizá-la. Elas estabelecem alianças construindo pontes onde antes</p><p>havia muros. A sororidade e a dororidade ganham espaço nas narrativas da escritora em</p><p>questão. Os movimentos da maioria das personagens femininas conduzem o desfecho</p><p>da narrativa para a possibilidade de outras vivências entre os moçambicanos/as. Os</p><p>138</p><p>conflitos permeiam toda a diegese e culminam na reconciliação entre grande parte das</p><p>personagens.</p><p>Há a tendência, nas obras de Paulina Chiziane, em vaticinar um futuro</p><p>diferente para o seu país. A construção das personagens femininas se dá numa</p><p>perspectiva em que, depois de terem vivido muitos conflitos e serem vítimas da</p><p>opressão própria do modelo patriarcal, passam a contestar esse sistema que impõe</p><p>obstáculos para a igualdade de gênero e tornam audível sua voz. Instauram reflexões</p><p>sobre o papel que a mulher exerce no Moçambique contemporâneo. Sinalizam outras</p><p>vivências para a mulher e rompem com o status quo imposto para a figura feminina,</p><p>empoderando-as em detrimento das personagens masculinas que têm a sua soberania</p><p>fragilizada diante da emancipação das mulheres. Contudo, há a reconciliação entre essas</p><p>personagens. Esse movimento tem início entre as personagens femininas que, em sua</p><p>maioria, conquistam a autonomia e, consequentemente, se apoderam das suas decisões.</p><p>À proporção que isso ocorre, as personagens masculinas tendem a também se</p><p>transformar. Encurralados pelas decisões de suas companheiras, eles, forçadamente,</p><p>reveem suas atitudes e buscam a reconciliação, reconhecendo inclusive – como acontece</p><p>com Tony – quão tirana é a sociedade quando impede a mulher de usufruir dos seus</p><p>direitos.</p><p>A escritora aventa a necessidade de discutir a ordem estabelecida que traz</p><p>danos incalculáveis para todos/as que se sentem impedidos/as de viverem plenamente</p><p>sua cidadania e sugere a libertação da colonialidade do poder que perpassa tais</p><p>indivíduos e os faz vítimas e algozes desse sistema. Suas narrativas espelham um</p><p>mundo em que o pensamento colonial ainda permeia o imaginário da população. Um</p><p>mundo em que as tradições atravessadas por várias culturas, como vimos no início desta</p><p>pesquisa, muitas vezes, impedem uma relação de complementaridade entre homens e</p><p>mulheres. Por tudo isso, Chiziane convoca para um novo futuro em que esses conflitos</p><p>sejam revolvidos e resolvidos.</p><p>A literatura de Paulina Chiziane inova o fazer literário moçambicano por suas</p><p>personagens femininas subverterem o modus operandi dessa sociedade. Problematiza a</p><p>negação de direitos para a mulher; as mazelas deixadas pelo colonizador quando este</p><p>desumaniza o povo negro, fazendo com que o imaginário da cor negra, construído como</p><p>negativo, se mantenha até os dias atuais. Denuncia as questões referentes à</p><p>colonialidade que se mantêm nos espaços moçambicanos agenciadas hoje pelas mãos</p><p>139</p><p>negras que detêm o poder de decisão. Confronta a cultura do seu país que, muitas vezes,</p><p>legitima a subserviência da mulher pautada também nas tradições moçambicanas.</p><p>Enfim, assim como Maldonado-Torres, Chiziane faz um apelo para que os povos</p><p>colonizados se libertem das influências do pensamento europeu. Busquem se</p><p>sensibilizar “para dar uma resposta aos que se encontram aprisionados em posições de</p><p>subordinação” (MALDONADO-TORRES, 2008, p. 83).</p><p>Paulina Chiziane ousadamente instiga, por meio da sua escrita literária, a busca</p><p>por essa consciência descolonial, para isso, além do que mencionamos no parágrafo</p><p>acima, valoriza a tradição oral e, ao fazer isso, traz aquilo que é próprio desse gênero</p><p>literário: histórias com teor moralizante, de ensinamento. Em grande parte das histórias</p><p>orais narradas em seus romances, aciona tempos vividos antes da colonização ou</p><p>tempos em que a mulher governava o mundo. Algumas lendas recuperadas alertam o</p><p>país para revisitar os conhecimentos nativos e libertar as mentes do colonialismo.</p><p>É inegável a importância dessa escritora no contexto de Moçambique. O fato</p><p>de sua literatura geralmente ser recebida sob conflitos em seu país a faz entender que</p><p>sua escrita é ideológica e que “existe uma linha política por dentro de uma boa escrita”,</p><p>(CHIZIANE, 2021, p. 109). De fato, é o que percebemos em suas produções: há uma</p><p>linha política que dialoga com a de Craverinha, e a de Noémia de Sousa. Estes</p><p>ofereceram produções literárias “que gritaram pelo despertar da consciência de toda</p><p>uma nação à volta da questão do colonialismo” (2021, p. 111) mesmo após a</p><p>independência e fizeram crescer uma consciência nacionalista. Chiziane faz uma</p><p>literatura que também propõe a libertação das mentes negras ainda colonizadas, instiga</p><p>a luta da mulher por uma relação simétrica e de complementaridade com os homens. e a</p><p>necessidade da reconciliação e do perdão para uma outra convivência em que a</p><p>comunidade heterogênea “seja compreendida como o ponto de virada em direção a um</p><p>futuro des-colonizado [...] onde corpos e territórios superem definitivamente a ideia da</p><p>dominação” (SCHMIDT, 2013, p. 245-246).</p><p>O fato de o processo de resistência ao poder colonial se fazer presente desde as</p><p>primeiras manifestações literárias da mulher moçambicana dá demonstração de que a</p><p>figura feminina, assim que pôde, deixou transparecer o seu incômodo com relação ao</p><p>lugar imposto à mulher tanto pelas culturas oriundas de Moçambique quanto às que</p><p>foram importadas. Embora em movimentos ambivalentes que ora se pautam na cultura</p><p>do colonizador ora as repelem, as escritoras moçambicanas não deixam a desejar em sua</p><p>140</p><p>escrita combativa. Começam sutilmente valorizando a cultura nacional para em seguida,</p><p>por meio das personagens femininas, demonstrarem a insatisfação da mulher nessa</p><p>sociedade.</p><p>À medida que as primeiras poetisas tecem a valorização do seu povo, como o fez</p><p>Noémia de Sousa, lançam o tear para que suas descendentes literárias construam uma</p><p>escrita mais ousada. De Noémia de Sousa a Lilia Momplé, Lina Magia dentre outras, o</p><p>tear chega às mãos de Paulina Chiziane. Esta, por sua vez, intensifica as críticas,</p><p>colocando o foco em seu próprio povo que, após tomar posse do poder político, mantém</p><p>as mesmas mãos de ferro exercidas pelos seus algozes, o colonizador. Dá indícios de</p><p>que as mulheres do seu país precisam e devem construir o seu espaço de fala para que</p><p>sejam ouvidas. Constrói narrativas que dão ao leitor/a uma visão da complexibilidade e</p><p>beleza cultural de</p><p>Moçambique.</p><p>O tear de Chiziane atravessa o Atlântico, possibilitando o reconhecimento de</p><p>suas obras também em países estrangeiros. Traduzidos para línguas como, o alemão,</p><p>inglês, italiano, francês, espanhol e sérvio, seus romances ganham notoriedade e abrem</p><p>portas para que outras moçambicanas que se aventuram no mundo da escrita possam</p><p>também galgar visibilidade nos espaços literários.</p><p>Em 2021, ano em que finalizamos a escrita desta tese, a escritora vence o Prêmio</p><p>Camões, uma das honrarias concedidas a escritores/as lusófonos/as. O Brasil bem como</p><p>os países de língua portuguesa comemoram, com grande satisfação, a sublime conquista</p><p>de Paulina Chiziane. Afinal, a história de colonização vivenciada por esses países de</p><p>língua portuguesa se coaduna e cada um e cada uma da população negra nesses</p><p>contextos que inscreve sua história na linha da história sinaliza a possibilidade de</p><p>desconstrução dos estigmas construídos contra esses povos.</p><p>A escritora volta, forçadamente, os olhos do mundo para um contexto periférico</p><p>do capitalismo e rasura o estereótipo da mulher moçambicana como submissa e incapaz</p><p>de produzir conhecimento. Faz entender que o “direito à Literatura”, como defendido</p><p>por Antonio Candido (2011), deve ser dado a todos/as, possibilitando, assim, a</p><p>formação do senso crítico e uma vivência em que as escolhas sejam feitas pelo próprio</p><p>indivíduo. Que os países “ex-cêntricos” tenham autonomia para decidir os rumos da sua</p><p>história e, sobretudo, que as mulheres não se deixem inibir pelas ameaças e</p><p>cerceamentos que tentam impedi-las de tecer, com suas próprias mãos, o tapete que lhes</p><p>permitirá alçar voos.</p><p>141</p><p>Se no século XX o protesto negro militante na literatura ascendeu de forma</p><p>significativa, como bem afirma Hutcheon (1991) – impulsionado pelos movimentos de</p><p>libertação dos países colonizados – a ação dos movimentos feministas negros</p><p>proporcionou a entrada da mulher negra em vários espaços de poder. No século XXI as</p><p>sementes plantadas começam a dar frutos e várias escritoras e intelectuais negras</p><p>tardiamente se destacam no cenário mundial. As temáticas abordadas em seus textos</p><p>geralmente dizem respeito à vivência marginalizada do pessoas negras e a histórias de</p><p>mulheres que são lesadas em seus direitos como cidadãs.</p><p>Com o advento da internet suas vozes se fazem ouvir por meio das redes sociais,</p><p>forçando os meios de comunicação convencionais a reconhecerem o sucesso das</p><p>mulheres negras que ganham imensa repercussão. As escritoras negras, por sua vez,</p><p>passam a ser estudadas nos espaços acadêmicos. A exemplo de Paulina Chiziane que</p><p>publica Balada de amor ao vento, em 1990, mas é no início do século XXI com a obra</p><p>Niketche: uma história de poligamia, que a romancista conquista notoriedade, sendo</p><p>estudada em várias universidades. Se antes era rechaçada pelos conterrâneos, como</p><p>afirma em várias entrevistas, hoje, ao ganhar destaque com a conquista do Prêmio</p><p>Camões, demonstra para a sociedade moçambicana e para o mundo que não há</p><p>fronteiras para a Literatura e para a arte em geral.</p><p>BIBLIOGRAFIA</p><p>ABDALA JR., Benjamin. Literatura Comparada e Relações Comunitárias Hoje.</p><p>São Paulo: Ateliê Editorial, 2012.</p><p>ADEDEJI, Ebenezer. A problemática do amor e casamento na literatura africana escrita</p><p>pela mulher. In: MATA, Inocência; PADILHA, Laura C. (orgs.). A mulher em África.</p><p>Vozes de uma margem sempre presente. 2 ed. Lisboa: Edições Colibri, p. 409-420,</p><p>2018.</p><p>142</p><p>AKOTIRENE, Carla. Mulher com a palavra. Entrevista mediada por Rita Batista.</p><p>TVE/Bahia. Bahia, 23 nov. 2018. Disponível em:</p><p>https://www.youtube.com/watch?v=Jnfk0pCP3pg&t=3463s. Acesso em: 18 mar. 2020.</p><p>ANZALDÚA, Gloria. 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Disponível</p><p>em:https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8156/tde-04012011</p><p>101230/publico/2010_EricaAntunesPereira.pdf. Acesso em: 1 abr. 2013.</p><p>PIEDADE, Vilma. Dororidade. São Paulo: Editora Nós, 2020.</p><p>QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, Eurocentrismo e América Latina.</p><p>Buenos Aires: CLACSO, 2005. Disponível em:</p><p>http://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/sur-sur/20100624103322/12_Quijano.pdf. Acesso</p><p>em: 25 maio 2018.</p><p>RADCLIFFE-BROWN, Alfred Reginald. Estrutura e função na sociedade primitiva.</p><p>Tradução Nathanael C. Caixeiro. Petropólis: Vozes, 1973.</p><p>RODRIGO, Gomes Santana; LOPES, Renata F. Fernandes. Aspectos Conceituais do</p><p>Perdão no Campo da Psicologia. Revista Psicologia: Ciência e Profissão,</p><p>Universidade Federal do Rio Grande do Sul, v. 32, n. 3, p. 618-631, 2012. Disponível</p><p>em: https://www.scielo.br/j/pcp/a/yXJPQJnLmgcWBzDXt8hXFtb/?lang=pt. Acesso</p><p>em: 27 ago. 2021.</p><p>ROSCHEL, Paula. 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Reflexões sobre gêneros nas narrativas de Paulina Chiziane.</p><p>Revista Mulemba. v. 2, n. 2, 2010. Disponível em:</p><p>https://revistas.ufrj.br/index.php/mulemba/article/view/4686. Acesso em: 20 mar. 2020.</p><p>XAVIER, Lola Geraldes. Era uma vez... Moçambique no feminino. In: MIRANDA,</p><p>Geralda de; SECCO, Carmen Lucia Tindó (orgs.). Paulina Chiziane: vozes e rostos</p><p>femininos de Moçambique. Curitiba: Editora Appris, p. 25-41, 2013.</p><p>OBRAS DA AUTORA</p><p>CHIZIANE, Paulina. Eu, mulher... por uma nova visão do mundo. Revista do Núcleo</p><p>de Estudos de Literatura Portuguesa e Africana da UFF. Rio de Janeiro, v. 5, n. 10;</p><p>p. 199-205, 2013. Disponível em:</p><p>https://periodicos.uff.br/revistaabril/article/view/29695/17236. Acesso em 12 fev. 2019.</p><p>CHIZIANE, Paulina. Balada de amor ao vento. 3. ed. Lisboa: Editorial Caminho,</p><p>2016.</p><p>CHIZIANE, Paulina. Ventos do apocalipse. 3. ed. Maputo: Editora Ndjira, 2010.</p><p>CHIZIANE, Paulina. Niketche: uma história de poligamia. São Paulo: Companhia</p><p>das letras, 2004.</p><p>CHIZIANE, Paulina. O alegre canto da perdiz. Porto Alegre: Dublinense, 2018.</p><p>CHIZIANE, Paulina. O Sétimo Juramento. 4 ed. Portugal: Editorial Caminho, 2016.</p><p>CHIZIANE, Paulina. As andorinhas. 2. ed. Belo Horizonte: Nandayla, 2017.</p><p>CHIZIANE, Paulina. Ngoma Yethu: o curandeiro e o Novo Testamento. Belo</p><p>Horizonte: Nandyala, 2018.</p><p>CHIZIANE, Paulina. O canto dos escravizados. Belo Horizonte: Nandyala, 2018.</p><p>https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8156/tde-03062021-121351/pt-br.php</p><p>https://revistas.ufrj.br/index.php/mulemba/article/view/4686</p><p>151</p><p>CIP – CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO</p><p>INTRODUÇÃO</p><p>1 MOÇAMBIQUE: UM BREVE PANORAMA DA ESCRITA LITERÁRIA TECIDA POR MÃOS FEMININAS</p><p>1.1 A construção do espaço literário moçambicano de autoria feminina: mulheres em pauta</p><p>1.2 Paulina Chiziane: a voz que ganha protagonismo em Moçambique</p><p>2. O ENCARCERAMENTO FEMININO POR MEIO DE VÁRIOS SISTEMAS DE PODER</p><p>2.1 Balada de amor ao vento: a manutenção do patriarcado em rede</p><p>2.2 Niketche: uma história de poligamia: múltiplas vozes a referenciar o patriarcado</p><p>2.3 O alegre canto da perdiz: raça, classe e gênero, mecanismos de subalternização das personagens femininas</p><p>pela libertação dos países africanos colonizados por europeus,</p><p>vários teóricos e líderes políticos anticoloniais passaram a ter visibilidade por questionar</p><p>as teorias impostas pelo Ocidente sobre esses países, por teorizar as várias formas de</p><p>opressão perpetradas pelos colonizadores e por propor novas formas de convívio social.</p><p>A história do continente passou a ser contada “a partir da perspectiva dos africanos,</p><p>mesmo que vários autores fossem africanistas estrangeiros” (CARVALHO FILHO;</p><p>NASCIMENTO, 2018, p. 17). Apesar de muitos deles terem adquirido sua formação na</p><p>Europa, passaram a desejar e lutar por um país livre. As ideias propostas por líderes</p><p>políticos e intelectuais como Aimé Césaire (Martinica), Leopoldo Senghor (Senegal),</p><p>Amílcar Cabral (Guiné-Bissau), Frantz Fanon (Martinica), Edward Said (Palestina),</p><p>dentre outros, contribuíram para impulsionar a independência dos países africanos</p><p>colonizados por europeus, influenciaram e influenciam a escrita de vários/as intelectuais</p><p>africanos/as e de diásporas até a atualidade.</p><p>O crítico literário e professor Benjamim Abdala, ao discutir as tendências</p><p>hegemônicas eurocêntricas, pondera:</p><p>Os estudos pautados pelo eurocentrismo desconsideram a</p><p>potencialidade subjetiva do outro, visto sempre como objeto e não</p><p>como sujeito capaz de produzir (e não apenas reproduzir</p><p>2 De acordo com Hutcheon, o conceito pode ser encontrado em (Introdução a Sayres et al. 1984,4). In:</p><p>SAYRES et al. (orgs.). The 60s Without Apolgy. Minneapolis, Social Text e University of Minesota</p><p>Press, 1984.</p><p>19</p><p>especularmente) o conhecimento. Defendem uma falsa neutralidade</p><p>epistêmica, desconsiderando a potencialidade de quem produz</p><p>conhecimento na periferia, a não ser daqueles que mantêm hábitos dos</p><p>colonizados. [...] Na verdade, essa desconsideração está associada à</p><p>história do eurocentrismo que vem do processo colonial e que, de</p><p>várias formas, acaba por exteriorizar ou encobrir uma maneira de</p><p>pensar o mundo marcado pela discriminação (2012, p. 41-42).</p><p>A assertiva esclarece que o silêncio imposto aos países que não se encontram</p><p>no centro do poder econômico se deu com o intuito de escamotear a capacidade</p><p>cognitiva do subalterno, assumindo esse papel, este nunca se sentiria capaz de escapar</p><p>da clausura. Entretanto, muitos/as intelectuais africanos/as continuam a escrever sobre o</p><p>continente, focando, também, no que se transformaram esses países no pós-</p><p>independência e/ou vislumbrando transformações que deem conta das diversidades e</p><p>conflitos desse continente.</p><p>Essa mudança de paradigmas repercute na literatura produzida por mulheres,</p><p>escrita até então tida como algo sem muito valor, pois, para a cultura centralizadora,</p><p>aquilo que dizia respeito às práticas do cotidiano – temática muito presente nos poemas</p><p>e prosas de mulheres escritoras – não era considerado boa literatura. Contudo, a partir</p><p>do momento em que a centralização da cultura foi abalada pela contestação também</p><p>daqueles que estão fora do centro, houve um enfoque e valorização do local e do</p><p>periférico, com isso, a escrita feminina ganha visibilidade nos estudos culturais.</p><p>Ater-nos-emos aqui às questões da escrita de autoria feminina moçambicana,</p><p>alvo de exclusão e tentativa de silenciamento por parte da cultura patriarcal em séculos</p><p>de história. De acordo com a pesquisadora Laura Cavalcante Padilha (2012), a obra O</p><p>Cânone OcidentaI (1995), de Harold Bloom, é um exemplo de tentativa de demarcação</p><p>do espaço literário como majoritariamente masculino, quando, entre os escritores</p><p>listados, seleciona apenas três mulheres, a saber: Jane Austen, Emily Dickinson e</p><p>Virgínia Woolf. É preciso frisar que, se para as escritoras da Europa Ocidental a</p><p>receptividade da sua escrita se deu de forma tardia, a escrita literária de autoria feminina</p><p>negra ainda é vista com desconfiança pelo espaço acadêmico. Talvez isso se deve ao</p><p>fato de, em sua maioria, as antologias serem organizadas por homens, o que acentua a</p><p>exclusão da mulher escritora.</p><p>As pesquisadoras Laura Cavalcante Padilha e Nazareth Fonseca debruçam-se</p><p>sobre as antologias africanas de língua portuguesa, na tentativa de mapear a inserção da</p><p>escrita feminina nesses países. Padilha objetiva rastrear o momento em que a mulher</p><p>20</p><p>teve condições de participar do mundo letrado, e como adquire domínio sobre o espaço</p><p>simbólico do arquivo. Afinal, o desejo de apropriar-se da letra – sinal de “civilidade” –</p><p>e da modelização canônica passam a fazer parte do imaginário africano a partir do</p><p>momento em que o colonizado tem acesso aos bens simbólicos, tendo como modelo a</p><p>cultura ocidental (AHMAD apud PADILHA, 2018). Padilha visa observar o papel da</p><p>mulher na formação do cânone poético africano, atendo-se às antologias editadas pela</p><p>ACEI (Associação da Casa dos Estudantes do Império)3 e a coletânea dos 50 poetas</p><p>africanos, de 1989, organizada por Manuel Ferreira. No ensaio intitulado Sobre</p><p>mulheres, cânones, silêncios e enfrentamentos (2012), Padilha afirma que, em sua</p><p>pesquisa, resolveu trabalhar com uma série de instrumentos culturais, como boletins e</p><p>antologias de 1950 a 1975 para buscar os textos poéticos femininos que nele</p><p>circulassem, pois tenta compreender o lugar das poetisas no processo de formação da</p><p>moderna literatura.</p><p>Nazareth Fonseca considera que a escrita de mulheres africanas no período</p><p>colonial se constitui uma forma de resistência ainda que de forma muito sutil, pois,</p><p>mesmo sendo duramente impedidas de ultrapassarem os rigores de ordem político-</p><p>cultural, burlavam as interdições e propiciavam nesses espaços a demanda de uma outra</p><p>voz ao transpor para o texto “sentimentos reprimidos, aspirações e desejos” (2018, p.</p><p>491), alterando assim a literatura nos países de língua portuguesa do século XIX que se</p><p>fazia ouvir insistentemente pela voz masculina. Em decorrência desse cenário, Fonseca</p><p>objetiva analisar “mais profundamente a produção poética de autoria feminina em</p><p>antologias que coletam poemas produzidos em períodos cuja fronteira está marcada pela</p><p>independência dos países africanos de língua portuguesa” (2018, p. 492), tendo como</p><p>foco no primeiro momento a coletânea No reino de Caliban, organizado por Manuel</p><p>Ferreira (3v. 1975, 1976, 1984)4 e no segundo, sua pesquisa se volta</p><p>para a análise mais demorada da produção poética de autoria feminina</p><p>presente em algumas das muitas antologias que se dispuseram a</p><p>coletar a produção poética dos países africanos de língua portuguesa</p><p>produzida no pós-independência ou que mesmo sendo produzida em</p><p>fase anterior à independência não tinha sido publicada (FONSECA,</p><p>2018, p. 492).</p><p>3 Laura Cavalcanti Padilha diz que, durante suas pesquisas, recebeu dois volumes de Antologias de poesia</p><p>CEI (Casa dos Estudantes do Império) – 1951/1963, editados pela Associação Casa dos Estudantes do</p><p>Império (ACEI), em 1994 (2018, p. 474).</p><p>4 A pesquisadora Nazareth Fonseca utiliza em seus estudos, a edição de 1997 para o volume I e III e a de</p><p>1989 para a do II volume (2018, p. 492).</p><p>21</p><p>Por uma questão de foco, mencionaremos apenas as antologias que dizem</p><p>respeito a Moçambique, analisadas pelas pesquisadoras. Respeitando a ordem de</p><p>publicação no livro A mulher em África: vozes de uma margem sempre presente (2018),</p><p>onde os dois primeiros ensaios acima mencionados foram publicados, iniciaremos com</p><p>Laura Cavalcante Padilha e, em seguida, observaremos as pesquisas feitas por Maria</p><p>Nazareth S. Fonseca.</p><p>Constatamos que dentre as antologias da CEI (Casa dos Estudantes do</p><p>Império), pesquisadas por Padilha (2018), cujo recorte foi direcionado à produção de</p><p>escritores/as moçambicano/as, temos o segundo volume, da primeira antologia</p><p>intitulada Separata de mensagem dedicada à Poesia de Moçambique, de 1951, e “a</p><p>segunda e a terceira são respectivamente, de 1960 (o subtítulo é</p><p>‘coletânia da CEI.</p><p>Compilação de Polanah’) e de 1962 (‘Antologia da Casa dos Estudantes do Império’)”</p><p>(2018, p. 475). Padilha Observa que dentre os poetas contemplados nas antologias</p><p>pesquisadas, ao todo há 57 poetas moçambicanos nomeados, além de dois</p><p>desconhecidos e somente seis mulheres: Irene Gil; Noémia de Sousa/Vera Micaia (o</p><p>segundo nome é pseudônimo da poetisa); Ana Pereira Nascimento; Anunciação</p><p>Prudente; Glória de Sant’Ana e Marília Santos.</p><p>À medida que avança em suas pesquisas, a professora pesquisadora chama a</p><p>atenção para a antologia de Manuel Ferreira, intitulada 50 poetas africanos, cujo</p><p>objetivo, segundo o organizador é “dar uma visão geral da poesia que se publicou até</p><p>1985 nos cinco países africanos” (apud PADILHA, 2012, p. 475). De acordo com a</p><p>pesquisadora, essa antologia tem uma extração canônica, visto que é o próprio Ferreira</p><p>quem a preceitua assim no prefácio de sua obra. Padilha destaca que “dos cinquenta</p><p>poetas elencados, dentro do ‘critério seletividade’ e ‘do ponto de vista qualitativo’, só</p><p>aparecem duas mulheres Noémia de Sousa e Alda Espírito Santo5 [...]” (2018, p. 476). É</p><p>perceptível a invisibilidade da mulher escritora na seleção das literaturas africanas de</p><p>língua portuguesa que se pretende canônica. Ademais, grande parte desses volumes era</p><p>organizado e prefaciado por intelectuais homens.</p><p>Para além das antologias, Padilha lança mão do boletim Mensagem da CEI</p><p>editado, embora com interrupções, entre 1948 e 1961, em Lisboa. A pesquisadora</p><p>respaldando-se nas reflexões do prefaciador de grande parte das antologias da CEI,</p><p>Alfredo Margarido, observa que o objetivo de quem dela [da CEI] participava era: 1.</p><p>5 Alda Espírito Santo é poetisa são-tomense.</p><p>22</p><p>“manter os valores culturais que caracterizavam cada país”; 2. “afinar o projecto</p><p>cultural”; 3. “fornecer ao mesmo tempo os alicerces a uma consciência nacional cada</p><p>vez mais liberta dos obstáculos colonialistas” (2018, p. 476).</p><p>Mediante o exposto, observa-se que havia uma ânsia por construir uma</p><p>identidade nacional por meio da escrita literária e das diversas culturas africanas, no</p><p>entanto, a voz feminina é praticamente silenciada nas antologias e boletins. Sendo que,</p><p>segundo Padilha, geralmente as imagens que ilustravam as capas – desenhadas por</p><p>homens – eram as de mulheres no seu devido papel social, ainda assim, algumas poucas</p><p>poetisas já demonstravam, em seus textos poéticos, consciência de privação vivida pela</p><p>mulher negra africana e recusavam “a ver a África ‘canonizada’ pela estereotipia do</p><p>olhar branco-ocidental” (PADILHA, 2018, p. 477). Além disso, as poetisas Alda</p><p>Espírito Santo e Noémia de Sousa em seus poemas deixam claro “o inconformismo, a</p><p>rebeldia e a urgência da transformação” (2018, p. 478) em seu país.</p><p>Corrobora com essas reflexões a também professora pesquisadora Maria</p><p>Nazareth S. Fonseca. Em seu ensaio Mulher-poeta e poetisas em antologias africanas</p><p>de Língua portuguesa: o feminino como exceção (2018), ao mencionar Moçambique,</p><p>afirma que o volume III, da antologia intitulada No reino de Caliban, editada em 1986 e</p><p>organizada por Manuel Ferreira, é dedicado a produção literária produzida nesse país.</p><p>Fonseca constata que a presença de escritoras é muito pequena e que, “na fase anterior à</p><p>independência, apenas é citada a produção de Noêmia6 de Souza” (2018, p. 506).</p><p>Todavia no poema “Deixa passar o meu povo”, publicado no Jornal O Brado Africano</p><p>em fevereiro de 1949, essa poetisa já “explicita uma estética comum à literatura de</p><p>combate, que se desenvolveu, nos países africanos de língua portuguesa, mais</p><p>concretamente a partir da década de 1950” (FONSECA, 2018, p. 506).</p><p>Com base nas pesquisas de Fonseca, percebemos que a temática abordada no</p><p>poema de Noémia de Souza7 deixa clara que a primeira mulher moçambicana a ser</p><p>citada em várias antologias poéticas já demonstra uma voz feminina que se une a “um</p><p>coro de vozes desafiantes, articuladas por um objetivo comum” (2018, p. 506): a luta</p><p>6 A grafia de Noêmia com circunflexo é opção da pesquisadora Maria Nazareth S. Fonseca. Optamos por</p><p>deixar com acento agudo, visto que no livro Sangue Negro, publicado pela editora Kapulana, de São</p><p>Paulo, em 2016, o nome da poetisa está grafado dessa forma.</p><p>7 Seu único livro, Sangue Negro, foi publicado pela primeira vez em 2001, pela Associação do Escritores</p><p>Moçambicanos (AEMO), é a compilação de vários poemas publicados esparsamente, sobretudo, no Jornal</p><p>O Brado Africano. Essa foi a única publicação em vida da autora. Essas informações foram transcritas da</p><p>orelha da capa do livro Sangue Negro, publicado em 2016 pela editora brasileira Kapulana.</p><p>23</p><p>pela independência do país. Sousa se torna, portanto, a primeira mulher moçambicana</p><p>que, por meio da escrita poética, ergue a voz a favor do seu povo e combate as</p><p>atrocidades perpetradas pelo colonizador.</p><p>Maria Manuela de Sousa Lobo é outra poetisa moçambicana que, de acordo</p><p>com Nazareth Fonseca, é citada na parte referente à amostragem da poesia produzida na</p><p>década de 70 nesse país, no mesmo volume III, da antologia No reino de Caliban,</p><p>mencionada acima. Fonseca salienta que em seus poemas nota-se “uma forma de</p><p>revolução literária que se inicia mesmo antes da independência do país, [...] ainda</p><p>quando o texto poético demonstrava um compromisso maior com um projeto</p><p>revolucionário” (2018, p. 508).</p><p>Na Antologia da Nova Poesia Moçambicana, lançada em 1989 e organizada</p><p>por Fátima Mendonça e Nelson Saúte, Noémia de Sousa aparece, mais uma vez, e</p><p>Clotilde da Silva, poetisa moçambicana do pós-independência, tem seus poemas</p><p>publicados. Nazareth Fonseca observa que, em seus escritos literários, há uma tendência</p><p>a realçar “as manifestações eróticas do corpo feminino ou que reforçam o apelo ao</p><p>amor” (2018, p. 512). Destaca ainda que outros poemas</p><p>ressaltam os ecos de uma poesia de compromisso social que tanto</p><p>pode redesenhar símbolos da luta pela conquista da terra-nação</p><p>(“catanas cadentes/lhes tatuaram a História/ na carne da memória”)</p><p>quanto propor um novo canto à memória de Samora Machel, o</p><p>primeiro presidente do país [...] (2018, p. 508).</p><p>No artigo intitulado Corpo e voz em poemas brasileiros e africanos escritos</p><p>por mulher, Nazareth Fonseca, ao falar sobre a escrita feminina africana, direciona o seu</p><p>olhar para as escritoras africanas que estiveram comprometidas com “a poesia de</p><p>combate e à que, na atualidade, vem procurando traçar novos caminhos para a poesia</p><p>ainda quando os versos se produzem e voltam para a celebração de costumes étnicos e</p><p>das tradições ancestrais” (2002, p. 37). À época Fonseca constata que Noémia de Sousa</p><p>foi uma poetisa que esteve presente em várias antologias, porém ainda não tinha sequer</p><p>um livro publicado. A escritora já tinha uma produção literária considerável, mas não</p><p>havia um movimento entre as editoras para publicar o seu livro, problema enfrentado</p><p>por muitas escritoras até hoje em Moçambique. Não há uma divulgação mais ampla dos</p><p>seus escritos literários.</p><p>Por sua vez, a pesquisadora Érica Antunes (2010) afirma que Noémia de Sousa</p><p>desperta a atenção do público já em 1948, quando publica o seu poema, intitulado</p><p>24</p><p>Canção fraterna, nesse mesmo ano, no Jornal da Mocidade Portuguesa (2010, p. 100).</p><p>Para Antunes, a reduzida participação das mulheres na literatura moçambicana se deve</p><p>à dificuldade de acesso à instrução, as tradições seculares que</p><p>atribuem à mulher apenas funções relacionadas com a maternidade e a</p><p>criação da prole, os critérios de seleção de obras literárias por editoras,</p><p>o sentimento de incapacidade, a falta de estímulo e a pouca</p><p>visibilidade das mulheres no espaço público (2010, p 101).</p><p>Acrescentamos às proposições de Érica Antunes que nesse país há também a</p><p>necessidade de uma crítica literária feminina e feminista, visto que</p><p>as antologias</p><p>estudadas pelas pesquisadoras, em sua maioria, foram editadas por homens. Destacamos</p><p>que, embora o número de mulher moçambicana a ter seus textos publicados fosse</p><p>ínfimo e, algumas vezes, seus escritos preservassem a manutenção da cultura patriarcal,</p><p>concomitantemente, há a tendência de reivindicação por um país livre do jugo da</p><p>colonização portuguesa. Essas mulheres já se fazem notar de forma ainda muito tímida e</p><p>solitária, porém demonstram desconforto com a condição de submissão dos nativos com</p><p>relação ao colonizador português e prenunciam a necessidade de transformações</p><p>urgentes em seu país, como pontua Nazareth Fonseca (2002), quando entrevista Noémia</p><p>de Sousa, em 1998, chegando à seguinte conclusão sobre seus poemas:</p><p>A voz que se anuncia é a da mulher comprometida com uma</p><p>consciência de luta contra o sistema colonialista, da poeta que, como</p><p>os escritores que publicavam no O Brado Africano, na revista Vértice</p><p>e Mensagem, acreditavam que a literatura, particularmente em forma</p><p>de poema, poderia ajudar a construir um “amanhã melhor e mais belo”</p><p>(2002, p. 39, grifo da autora).</p><p>No mapeamento feito por Laura Cavalcante Padilha e Nazareth Fonseca fica</p><p>evidente que, enquanto a crítica literária se limitar tão somente ao crivo do olhar</p><p>masculino/branco, haverá uma tentativa de invisibilidade da escrita da mulher,</p><p>sobretudo da mulher negra. É urgente, portanto, a necessidade de um olhar feminino</p><p>sobre os textos literários das mulheres que considere “o estudo da mulher como</p><p>escritora” (SHOWALTER, 1994, p. 29). Para isso deve-se priorizar tópicos como “a</p><p>história, os estilos, os temas, os gêneros e as estruturas dos escritos de mulheres; a</p><p>psicodinâmica da criatividade feminina; a trajetória da carreira feminina individual ou</p><p>coletiva; e a evolução e as leis de uma tradição literária de mulheres” (1994, p. 29). Ao</p><p>25</p><p>que Showalter denomina ginocrítica8, uma crítica que tenha como parâmetro as</p><p>experiências de mulheres.</p><p>A pesquisadora destaca a importância de se considerar a escrita da mulher</p><p>negra que em grande parte do mundo compartilhou experiências comuns, dado o fato da</p><p>colonização. Reitera a sua reflexão, citando a socióloga feminista negra estadunidense,</p><p>Barbara Smith:</p><p>As escritoras negras constituem uma tradição literária identificável</p><p>(...) temática, estilística, estética e conceptualmente. As escritoras</p><p>negras manifestam pontos de vista em comum com relação ao ato de</p><p>criar literatura como resultado direto de experiência política, social e</p><p>econômica específica que foram obrigadas a compartilhar (apud</p><p>SHOWALTER, 1994, p. 51).</p><p>A crítica literária não usa o termo intersecção9 em sua análise, mas é visível</p><p>sua lucidez ao considerar os fatores que influenciaram/influenciam a escrita da mulher</p><p>negra, alicerçada na subalternidade sexual, racial e de classe. Todavia, para Showalter,</p><p>a/o crítica/o deve considerar que a escrita das mulheres é um ‘“discurso de duas vozes’</p><p>que personifica sempre as heranças social, literária e cultural tanto do silenciado quanto</p><p>do dominante” (1994, p. 50). Reitera que, dentro deste contexto, é preciso levar em</p><p>conta as especificidades de mulheres, por exemplo, uma poetisa americana negra “teria</p><p>sua identidade literária formada pela tradição (branca e masculina) dominante, por uma</p><p>cultura feminina silenciada, e por uma cultura negra silenciada” (1994, p. 51, grifo). As</p><p>considerações de Showalter, indiretamente, explicam a escrita das primeiras poetisas</p><p>moçambicanas que conseguiram publicar, como foi mencionado acima, e que</p><p>mantiveram um discurso de manutenção do patriarcado. É preciso levar em conta que</p><p>essa era a sua vivência, logo, suas manifestações literárias geralmente estavam em</p><p>consonância com a formação advinda desse contexto.</p><p>8 Conceito que se propõe a “ver os escritos femininos como assunto principal força-nos a fazer a transição</p><p>súbita para um novo ponto de vantagem conceptual e a redefinir a natureza do problema teórico com o</p><p>qual nos deparamos. Não é mais o dilema ideológico de reconciliar pluralismos revisionistas, mas a</p><p>questão essencial da diferença” (SHOWALTER, 1994, p. 29).</p><p>9 Em suas pesquisas sobre os vários aspectos de discriminação de raça, gênero e outros elementos que</p><p>atrelados contribuem para a subalternização da mulher negra, Kimberlé Crenshaw propõe uma discussão</p><p>sobre linhas de contatos que devem ser levadas em conta pelos discursos dos direitos humanos para</p><p>identificar as situações em que tal discriminação interativa possa ter ocorrido. A essa metodologia</p><p>Crenshaw denomina interseccionalidade. “A interseccionalidade é uma conceituação do problema que</p><p>busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da</p><p>subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de</p><p>classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas</p><p>de mulheres, raças, etnias, classes e outras” (CRENSHAW, 2002, p. 177).</p><p>26</p><p>Sobre essa temática a pesquisadora Larissa da Silva Lisboa Souza, assevera</p><p>que “os poucos textos de mulheres que viviam no continente africano no final do século</p><p>XIX e no início do século XX, espelham algumas contradições do período” (2020, p.</p><p>29). De acordo com a pesquisadora, esses textos reproduziam “uma cultura patriarcal</p><p>dos costumes portugueses”, dado o fato de elas [as autoras] estarem ligadas aos seus</p><p>pais e maridos. Segundo Souza, somente nas décadas seguintes, essas primeiras escritas</p><p>puderam “colocar a mulher no centro da discussão” e puseram em tensão os papéis</p><p>tradicionais de gênero, como ocorreu com “o ensaio Questões sociais: a Mulher, da</p><p>moçambicana Florinda Rego, no periódico O Africano, em 04 de outubro de 1913”.</p><p>Neste ensaio a autora se posiciona criticamente sobre a condição da mulher. Sua</p><p>manifestação a coloca “duplamente avante la lettre, pela publicação em um periódico</p><p>predominantemente masculino, como pelo conteúdo discursivo, questionando os papeis</p><p>(sic) de gênero [...]” (SOUZA, 2020, p. 30).</p><p>O fato de pesquisadoras se lançarem como críticas ou teóricas da escrita de</p><p>mulheres oportunizam a visibilidade da literatura de mulheres, criando assim uma rede</p><p>de solidariedade em que a crítica, a teórica, a escritora e suas leitoras compartilham</p><p>experiências coletivas, próprias de mulheres. Assim, temos a oportunidade, por meio da</p><p>ginocrítica, de aprender algo sólido, duradouro e real sobre a relação da mulher com a</p><p>cultura literária (SHOWALTER, 1994, p. 31). Nessa perspectiva, vale destacar que</p><p>cada passo dado pela crítica feminista em direção à definição da</p><p>escrita das mulheres é, da mesma forma, um passo em direção à</p><p>autocompreensão; cada avaliação de uma cultura literária e de uma</p><p>tradição literária femininas tem uma significação paralela para nosso</p><p>lugar na história e na tradição crítica (SHOWALTER, 1994, p. 50).</p><p>O passo de que nos fala a crítica literária já foi dado por várias estudiosas das</p><p>literaturas africanas de língua portuguesa, como Ana Mafalda Leite, Carmem Lúcia</p><p>Tindó Secco, Maria Nazareth S. Fonseca, Laura Cavalcante Padilha, Inocência Mata,</p><p>Simone Caputo, dentre outras. E, em se tratando de um trabalho direcionado para</p><p>autoras femininas moçambicanas já consolidadas e outras em construção, temos o</p><p>estudo da professora pesquisadora Ana Rita Santiago que busca elaborar uma</p><p>cartografia de autoras, cujo foco são as mulheres moçambicanas que escrevem neste</p><p>país, em diáspora e as luso-moçambicanas. Seu trabalho está direcionado para</p><p>publicações de mulheres a partir do pós anos 70, e são eleitos vários gêneros literários</p><p>escritos pelas autoras pesquisadas.</p><p>27</p><p>O resultado de sua pesquisa se materializa no livro Cartografias em</p><p>Construção: algumas escritoras de Moçambique (2019). Como nos alerta o título, a</p><p>cartografia</p><p>literária está ainda em construção, pois, segundo a autora tanto a</p><p>historiografia quanto a crítica literária “igualmente, se fazem no caminho, na história a</p><p>partir da libertação do jugo colonial português, da independência nacional, da pós-</p><p>independência, da formação e consolidação do país e da formação identitária”</p><p>(SANTIAGO, 2019, p. 17).</p><p>Santiago, assim como as pesquisadoras acima mencionadas, também constata a</p><p>tentativa de invisibilidade à Noémia de Sousa. Afirma que o fato de essas mulheres não</p><p>participarem, satisfatoriamente, de circuitos literários e projetos artísticos-culturais e</p><p>literários do país não significa que elas não estejam escrevendo, reitera: “ainda não de</p><p>modo equânime, desejável e necessário, várias já conseguem publicar e, de modo</p><p>criativo e resistente, formar público leitor nacional e algumas (poucas ainda) até</p><p>internacionalmente” (2019, p. 19).</p><p>Dentre as autoras elencadas por Santiago, mencionaremos as que já publicaram</p><p>textos em prosa, uma vez que é o gênero literário em foco em nosso estudo. Seguem</p><p>abaixo as escritoras pesquisadas que optaram por outros gêneros10. Vale salientar que a</p><p>pesquisadora não tem a pretensão de estabelecer juízos de valor aos textos pesquisados,</p><p>mas dar visibilidade à escrita literária de autoria feminina em Moçambique no pós anos</p><p>70 do século XX até a atualidade, como dito anteriormente.</p><p>Das escritoras que já publicaram romances, Santiago elege Amilca Ismael,</p><p>nascida em Lourenço Marques, atual Maputo, em 25 de junho de 1963, esta vive na</p><p>Itália desde 1986. Seu primeiro romance, La casa de ricordi, é publicado em Roma na</p><p>Itália, em 2009 e prefaciado pela escritora Paulina Chiziane. Em 2010, esse livro foi</p><p>traduzido para a língua portuguesa com o título Casa de recordações, pela editora</p><p>moçambicana Ndjira, em Maputo. O seu segundo romance Il raconto di Nadia (A</p><p>história de Nádia), também foi publicado na Itália, em 2010. Em 2014, Amilca publica</p><p>10 Poetisas, contistas e crônistas moçambicanas mapeadas por Ana Rita Santiago: Amélia Margarida</p><p>Matavale, Carla Soeiro, Celina Sheila Macone, Cláudia Constance, Dama do Bling, Dônia Temba, Eliana</p><p>Nzualo, Emília Alexandre, Emmy Exy, Énia Lipanda, Fátima Longa , Felismina Velho, Henriqueta</p><p>Macuácua, Hirondina Josuha, Isabel Gil, Lica Sebastião, Melita Matsinhe, Nilzete Monteiro, Noémia de</p><p>Sousa, Mpaiy Rinkel, Rosa Isabel Maiopué, Rosa Landa, Sara Rosária (escritora infantil), Sônia Sultuane,</p><p>Tânia Tomé, Teresa Xavier Coito. Escritoras Luso-moçambicanas: Ana Mafalda Leite, Maria dos Anjos</p><p>Martins, Glória Sant`Anna, Ana Oliveira Dias (contos infanto-juvenil), Ana Margarida Cristo, Elsa de</p><p>Noronha, Giselia Gracias, Ramos Rosa, Maria Helena Duarte, Nora Vilar.</p><p>28</p><p>o seu terceiro romance intitulado Effimera Libertá, pela editora Youcanprint, também</p><p>na Itália.</p><p>Ana Rita Santiago observa que as personagens femininas ganham destaque nas</p><p>narrativas de Amilca Ismael. Com base nas reflexões da pesquisadora, podemos dizer</p><p>que há nessas obras uma necessidade de desvelar atrocidades cometidas contra o ser</p><p>humano – em especial as mulheres –, que são abandonadas em abrigos para idosos,</p><p>espaço de trabalho de Amilca, as que são vítimas de opressão perpetradas pelo marido,</p><p>temática do segundo romance, e as jovens africanas que são levadas para a Europa, com</p><p>a promessa de estudarem e acabam por se tornar prostitutas, tema abordado no terceiro</p><p>romance da escritora.</p><p>Clarisse Machanguana é outra escritora de prosa, que, em 2013, publicou o</p><p>livro A Estrela, Luz da minha alma. Ana Rita Santiago o lê como um livro</p><p>“autobiográfico-reflexivo, mas com poucos traços de autoficcionalização” (OLMI apud</p><p>SANTIAGO, 2019, p. 41), por nele, a escritora retratar “seu percurso de vida,</p><p>passeando pela infância vivida no distrito de Marracuene, sua vida e família, formação e</p><p>carreira profissional como esportista, nacional e internacionalmente, e o seu retorno a</p><p>Moçambique” (2019, p. 40). Por ter adquirido sucesso como jogadora de basquetebol,</p><p>se engajou na luta contra a proliferação da AIDS em seu país, criou a Fundação Clarisse</p><p>Machanguana, em 2014, tendo como público-alvo crianças e jovens. Em 2016, tornou-</p><p>se embaixadora da UNICEF, em Moçambique.</p><p>Santiago percebe na narrativa de Machanguana “um desejo explícito da autora-</p><p>narradora-personagem de convencer os (as) leitores (as), em especial, as pessoas jovens,</p><p>de que a sua caminhada sirva de referência para outros (as) [...]” (2019, p. 41).</p><p>Cri Essencia, também mencionada na obra de Santiago, escreveu o romance</p><p>intitulado In Search of An Accepting Sea: the worst case scenario is my best friend, em</p><p>2016, e traduzido para a língua portuguesa em 2018, pela editora Alcance, com o título</p><p>Em busca do mar Certo. Essencia é natural de Maputo e reside atualmente em Londres.</p><p>A escritora assevera que11</p><p>o livro trata de uma estudante moçambicana que vai estudar em</p><p>Portugal e Holanda, com o apoio do dinheiro da mãe, que é</p><p>divorciada, e das primeiras empreendedoras moçambicanas após a</p><p>11 Como não havia informações suficientes sobre a narrativa no livro Cartografias em construção...,</p><p>entrei em contato com Cri Essencia, no dia 04 de outubro de 2020. A autora, por meio do</p><p>Facebook/Messenger enviou-me este resumo. Para que não ficasse muito extenso fiz algumas adaptações.</p><p>29</p><p>abertura do mercado moçambicano ao investimento privado em massa</p><p>(transição do comunismo para o capitalismo). [...] A família não</p><p>percebe como é que a mãe tornou-se tão empreendedora enquanto que</p><p>os demais parentes continuavam na miséria. Só podia ser feitiço,</p><p>concentrando a força do resto da família nela – na mãe. Portanto, a</p><p>mãe estava a sugar a família para seu benefício, já que era a única bem</p><p>sucedida entre 12 irmãos. Importante referir que este sucesso é</p><p>alcançado em Maputo, para onde a mãe regressou, depois de ter</p><p>vivido muitos anos no estrangeiro. [...] A mãe ajuda a família, de bom</p><p>grado. Estudar era tudo o que almejava para os dois filhos: Paula e</p><p>Miguel.</p><p>Miguel era vagabundo, Paula era empenhada. Cresceu uma grande</p><p>rivalidade entre os irmãos, por isso. Piorou quando a mãe mandou</p><p>Paula estudar em Portugal.</p><p>A mãe morre e Miguel fica em Maputo com a herança, recusando-se a</p><p>mandar a habitual mesada à Paula. Esta viu-se obrigada a se virar.</p><p>Paula tinha muitos sonhos. Foi fazer mestrado na Holanda, limpando</p><p>casas. Muito chocante para quem cresceu sendo de classe média-alta</p><p>em Moçambique. Sim, porque apesar de a mãe ser uma sacrificada, os</p><p>filhos cresceram ricos. Portanto, Paula vinha de classe média-alta. No</p><p>entanto, para ela, limpar casas era fascinante, pois era por esse recurso</p><p>que pagava seus estudos. Ela era estudante que limpava casas e não</p><p>faxineira que estudava. Há aqui uma diferença muito grande.</p><p>James foi seu namorado, que lhe deu uma mão no início da sua estadia</p><p>na Holanda, a partir do Brasil, onde ele se encontrava.</p><p>O livro trata de experiências com racismo nos dois países [Portugal e</p><p>Holanda], mas principalmente em Portugal. Muitos episódios</p><p>interessantes. Em busca do mar Certo porque os países por onde ela</p><p>passou têm todo mar e trata-se de migração.</p><p>Percebe-se que é mais uma narrativa em que a mulher ganha protagonismo por</p><p>meio da personagem feminina. É mais uma mulher/escritora a desvelar, por meio da</p><p>narrativa, as duras experiências de mulheres negras que tentam sobreviver, de forma</p><p>independente, em seu país ou em um país estrangeiro. No romance, as tentativas de</p><p>cerceamento e os julgamentos são perpetrados pela própria família, pois não veem a</p><p>mulher como um ser capaz de construir por si própria sua história.</p><p>Ivânea da Silva Mudanisse, nasceu em Maputo, em 25 de outubro de 1979 e</p><p>publica o seu primeiro livro Diário de UMA Irreverente, em 2008, uma narrativa</p><p>autoficcional. De acordo com Ana Rita Santiago,</p><p>o público leitor e artístico não aceitou</p><p>de forma tranquila a obra porque a autora ocultou alguns fatos da sua vida pessoal que</p><p>geraram conflitos e polêmicas. No entanto, pautada em Bakhtin, a pesquisadora afirma</p><p>que é preciso levar em consideração “dentre outros elementos, a criatividade, os</p><p>recursos de linguagem, a inventividade e possíveis relações de eu-para-si” (2019, p.</p><p>48).</p><p>30</p><p>Além dessa obra, Dama do Bling (nome pelo qual é conhecida artisticamente</p><p>como cantora de Hip Hop e R&B), lançou um livro infantil Melissa e o arco-íris, em</p><p>Maputo, pela editora Ndjira, em 2011, cuja narrativa se dá pelas suas lembranças da</p><p>infância, pelas “travessuras, questionamentos e no cotidiano de sua sobrinha, Melissa,</p><p>homônimo da personagem principal da história” (SANTIAGO, 2019, p. 49).</p><p>Eunice Matavele, escritora também contemplada nas pesquisas de Santiago,</p><p>nasceu em 3 de setembro de 1977, em Maputo, Moçambique, é apresentadora de</p><p>Televisão de Moçambique (TVM), do programa “Defesa da vida”, tendo como foco o</p><p>combate ao HIV-AIDS. Em 2013, publicou o livro Retalhos de uma vida, pela</p><p>Associação de Escritores Moçambicanos (AEMO). A obra que se quer autobiográfica,</p><p>segundo Santiago, trata da vida profissional da autora bem como dos “problemas nas</p><p>relações familiares e o boato de que ela é soropositiva” (2019, p. 70). Esse equívoco</p><p>“associado às intervenções de outras personagens das cenas, soa, mediante tanta</p><p>dramaticidade, quase como verdade incontestável, além de nutrir as narrativas da</p><p>autora-protagonista” (2019, p. 70). Por reunir histórias sobre um mesmo tema, para a</p><p>pesquisadora Santiago, a obra torna-se exaustiva e repetitiva.</p><p>Isabel Ferrão é apresentada, por Santiago, como “contadora de história entre o</p><p>ontem e o hoje” (2019, p. 84). A escritora publicou em Maputo, em 2004, pela Ndjira a</p><p>obra Amar sobre um Leito de Preconceitos, já na segunda edição. De acordo com Ana</p><p>Rita Santiago, este é mais um romance que traz como foco narrativo e temático a luta</p><p>contra a discriminação da mulher e pela sua emancipação. Assim, “há momentos</p><p>narrativos em que dados biográficos da autora parecem se confluir e confundir com as</p><p>características e destino das personagens Nadwa e Makuve” (2019, p. 84, grifo da</p><p>autora).</p><p>A jornalista e Bacharel em Direito, Lídia Mussá publicou o seu primeiro livro</p><p>O Lado Oculto, em 2015 pela Fundac - Fundo para o Desenvolvimento Artístico e</p><p>Cultural -, em Maputo. A obra “trata dos maridos espirituais em Moçambique, tema tão</p><p>complexo e imbuído de ambivalências e reúne relatos e histórias de pessoas, sobretudo</p><p>mulheres, que, de algum modo, conviveram com maridos espirituais” (SANTIAGO,</p><p>2019, p. 102). Há no livro, conforme Santiago, depoimentos de mulheres que viveram</p><p>31</p><p>ou ainda vivem “o drama e o sofrimento de ter marido espiritual12 em Moçambique”</p><p>(2019, p. 102, grifo do autora).</p><p>Boia Efraime Júnior, psicólogo e prefaciador do livro O lado oculto, acredita</p><p>que uma leitura possível para a questão do marido espiritual se deve ao fato de algumas</p><p>mulheres não conseguirem se manter em uma relação amorosa ou de não terem filhos, o</p><p>que se constitui, para muitas delas, experiências traumatizantes. Já que não</p><p>correspondem a uma expectativa social e provavelmente pessoal, “elas recorrem a</p><p>explicação de um ‘marido espiritual’ para explicar “as dificuldades no seu</p><p>relacionamento conjugal” (2015, p. 14). Efraime Júnior, observa que a investigação de</p><p>Lídia Mussá contribui para colocar em discussão esse fenômeno sobre ‘maridos</p><p>espirituais’, trazendo o “‘lado oculto das mulheres’ à luz do dia e submetendo-o a (sic)</p><p>leitura e reflexão dos leitores” (2015, p. 16).</p><p>Observemos que Lidia Mussá com o seu livro traz à tona um assunto que afeta</p><p>principalmente a mulher. Sua contribuição se dá pelo fato de forçar a reflexão dos</p><p>papéis impostos ao feminino que, por vezes, causa danos psíquicos quando não</p><p>conseguem corresponder ao imaginário social de mulher determinado por essa</p><p>sociedade. O que nos leva à compreensão de que a pena da mulher moçambicana</p><p>quando se movimenta coloca em xeque, também, a estrutura tradicional.</p><p>Lília Maria Clara Carrièrre Momplé nasceu em 19 de março de 1935, escritora</p><p>já consagrada em Moçambique, em especial, pelos seus contos, cuja temática gira em</p><p>torno do passado colonial, “além de reapresentarem os dilemas da constituição da</p><p>identidade nacional e ressignificarem a compreensão da realidade pós-colonial</p><p>moçambicana” (SANTIAGO, 2019, p. 105).</p><p>Santiago salienta ainda que as obras da escritora já foram traduzidas para o</p><p>alemão, francês, sueco, inglês e italiano e que em 1995 Lília Momplé publica o seu</p><p>primeiro romance Neighbours. Para a pesquisadora, as narrativas de Lília Momplé se</p><p>destacam por denominar as personagens moçambicanas como negras, por abordar “o</p><p>12 Jonas Alberto Mahumane pautado em Feliciano, afirma que “o fenômeno do marido espiritual se situa</p><p>no conjunto de produções e construções culturais que potenciam ideologias de subserviência, dominação</p><p>e de violência simbólica. A crença de que os espíritos, através dos mais velhos, particularmente</p><p>indivíduos do gênero masculino, velam pela vida do grupo, cria condições para que sejam pólos no acesso</p><p>aos saberes do sistema de crenças e tradições religiosas locais, dando possibilidade de gerir e coordenar</p><p>toda a vida do grupo. Este aspecto contribui em grande medida para as desigualdades e desequilíbrios que</p><p>se verificam no relacionamento entre gerações e nos papéis e relações de gênero, potenciando</p><p>particularmente os casamentos simbólicos com seres espirituais, especialmente com jovens” (2015, p. 51-</p><p>52).</p><p>32</p><p>sofrimento vivido pelas personagens, advindo da exploração do trabalho [...]” e por</p><p>colocar em foco “as personagens femininas, suas labutas e enfrentamentos das práticas</p><p>de subserviência e de preconceitos” (2019, p. 105).</p><p>Corrobora essa assertiva a professora pesquisadora Maria Teresa Salgado,</p><p>quando afirma que o romance Neighbours além de nos propor uma reflexão sobre a</p><p>violência vivenciada em Moçambique durante o período da guerra civil e sobre a</p><p>violência do apartheid sul-africano, termina por nos propor, também, “uma discussão</p><p>sobre a mulher e a violência que a cerca, uma violência que está necessariamente</p><p>integrada a uma série de outras violências sociais” (2019, p.174).</p><p>As pesquisadoras acima citadas ratificam a contribuição de Lília Momplé para</p><p>a formação da resistência moçambicana contra o poder colonial português. O fato de</p><p>enfatizar a cor das personagens negras e dar-lhes o protagonismo sinaliza para a</p><p>desconstrução da imagem negativa do povo negro, a autoafirmação do nativo e</p><p>demanda para este povo um outro lugar na história.</p><p>A escritora Lina Júlia Francisco Magaia, descrita por Ana Rita Santiago (2019)</p><p>como uma “voz literária moçambicana”, nasceu em 1945, em Lourenço Marques, hoje</p><p>Maputo – Moçambique, e faleceu em 27 de junho de 2011. Foi militante na luta pela</p><p>libertação do seu país das forças coloniais portuguesa. Sua escrita perpassa pelos</p><p>gêneros conto, relatos e biografia. Publicou o livro de contos Dumba-Nengue: Histórias</p><p>Trágicas de Banditismo (1987), Duplo Massacre em Moçambique: Histórias Trágicas</p><p>de Banditismo II (1989), Delehta: Pulos na Vida (1994) e Recordações da Vovó Marta</p><p>(2011).</p><p>A professora/pesquisadora constata, em seus estudos sobre as narrativas de</p><p>Lina Magaia, que “escrita e realidade se apresentam juntas e com nuances de</p><p>ficcionalidade” (2019, p. 2019, p. 110). Estão em consonância com Santiago, os</p><p>pesquisadores Alody Costa Cassemiro e Algemira De Macêdo Mendes ao afirmarem</p><p>que em Dumba Nengue observa-se a relação entre a história e a ficção, “visto que se</p><p>trata de uma obra que registra a atmosfera de um contexto político-social da sociedade</p><p>moçambicana” (2018, p. 46), salientam ainda que Lina Magaia toma nota de uma</p>