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<p>Aprendizado de Máquina em uma Sociedade de</p><p>Atividades</p><p>Valdinei Freire</p><p>Agosto de 2024</p><p>1 Atividades</p><p>1.1 Postulados</p><p>Considere os seguintes postulados:</p><p>1. a atividade (comportamento) humana pode ser dividida em momentos</p><p>contáveis: t1, t2, . . ..</p><p>2. similar à teoria de Aprendizado por Reforço, considera-se uma interface de</p><p>um agente (pessoa) com o ambiente que em cada momento t = ti observa</p><p>algo sobre o estado do mundo ot = O(st) e um conjunto de oportunidades</p><p>de ações At.</p><p>3. em cada momento t o agente escolhe uma ação at ∈ At.</p><p>4. em cada momento cont́ınuo τ existem um conjunto Ωτ de atividades ativas</p><p>sob controle do agente.</p><p>5. a ação at escolhida no momento t pode ser explicada (racionalizada) como</p><p>a intenção de auxiliar a execução de um conjunto de atividades αt ⊆ Ωt.</p><p>6. as atividades em Ωτ podem ser parcialmente hierarquizada pelo operador</p><p>≻, de modo que se ω′′ ≻ ω′, então ω′ pode ser racionalizada como a</p><p>intenção de auxiliar a execução de ω′′. Note que, assim como as ações,</p><p>as atividades podem ser explicadas como a intenção de auxiliar mais que</p><p>uma atividade.</p><p>7. as interações entre agentes (humanos) propiciam oportunidades de ações</p><p>e suscitam ou cessam atividades de cada agente envolvido.</p><p>Note que os postulados acima não definem uma teoria de como, quando e</p><p>onde as atividades são suscitadas ou cessadas, apenas nos dá um vocabulário</p><p>para pensar um processo de agência significado por atividades. Também não nos</p><p>dá uma teoria de como a próxima ação será escolhida condicionada no conjunto</p><p>de atividades ativas e oportunidades dispońıveis.</p><p>1</p><p>1.2 Ferramentas e Algoritmos</p><p>Propiciar novas oportunidades de ações e atividades é inerente à construção</p><p>de uma ferramenta. Por exemplo, a construção de uma calculadora propicia a</p><p>atividade de ‘fazer uma conta na calculadora’, uma picareta propicia a atividade</p><p>de ‘cavar um buraco com picareta’. Outro lado de uma ferramenta é propiciar</p><p>outras formas de realizar uma atividade. Por exemplo, uma calculadora pode</p><p>ser utilizada para realizar a atividade de ‘fazer uma conta’.</p><p>Algoritmos podem ser vistos como um plano para realizar uma atividade.</p><p>Por exemplo, somar 23 e 48 pode ser realizado através de um algoritmo, passo</p><p>a passo utilizando papel e caneta, mas também pode ser visto como algum</p><p>processo não consciente que apenas retorna o número 71. Quando executado</p><p>por um ser humano, seja no papel ou mentalmente, estamos sempre sujeitos a</p><p>algum erro.</p><p>Um computador é uma ferramenta geral para execução de algoritmos. Um</p><p>algoritmo implementado no computador nos garante duas propriedades impor-</p><p>tantes: delegação e determinismo. Podemos delegar ao computador a execução</p><p>de algumas ações que fazem parte de uma atividade, isto é, rodar um algo-</p><p>ritmo como parte da realização de uma atividade. A execução de um algoritmo</p><p>em um computador, a menos de defeitos f́ısicos no mesmo, sempre realizam da</p><p>mesma forma, produzindo sempre o mesmo resultado dada as mesmas condições</p><p>iniciais.</p><p>1.3 Algoritmos, demonstrações e avaliação</p><p>Escrever um algoritmo é especificar por completo uma atividade, que pode ser</p><p>explicada como a intenção de realizar alguma outra atividade. Um algoritmo</p><p>para encontrar o máximo divisor comum pode ser utilizado para executar a</p><p>atividade ‘encontrar o máximo divisor comum entre dois números’. Escrever</p><p>um algoritmo exige a ação intelectual de trazer à consciência uma atividade,</p><p>especificá-la intuitivamente, especificá-la formalmente, e traduzi-la em alguma</p><p>linguagem de programação.</p><p>Até então, em nossos postulados não hav́ıamos considerado a necessidade da</p><p>consciência das atividades. A consciência das atividades permitem a delegação</p><p>das mesmas a outras entidades, seja um computador ou outro ser humano. No</p><p>entanto, para delegação de uma atividade torna-se necessário alguma forma de</p><p>comunicá-la.</p><p>Vislumbro aqui ao menos três formas de comunicação: por algoritmo, por</p><p>demonstração, e por função de avaliação (ou relação de preferências ou função</p><p>de escolha). Comunicar por algoritmo requer uma linguagem comum com sub-</p><p>atividades comum às entidades que podem ser acionadas uma após a outra.</p><p>Comunicar por demonstração requer que uma entidade exiba uma execução da</p><p>atividade algumas vezes para que outra entidade possa apreender o significado</p><p>da mesma. Finalmente, comunicar por avaliação requer uma função (em alguma</p><p>linguagem comum) ou algum oráculo, que emite pontuações para demonstrações</p><p>de tentativas de executar uma atividade.</p><p>2</p><p>Na atividade ‘correr’, um algoritmo deveria especificar a sequência de tor-</p><p>ques, e correções para eventuais contingências, aplicados a cada grau de li-</p><p>berdade de um robô para que ele simulasse um humano correndo; uma de-</p><p>monstração seria a simples operação dos torques para que o robô simulasse um</p><p>humano correndo em uma contingência espećıfica; e uma função de avaliação</p><p>mensuraria se o robô se desloca em alguma direção e se existe uma fase aérea.</p><p>Quando pensamos em computadores e aprendizado de máquina; a comu-</p><p>nicação por algoritmo é a programação tradicional, que requer conhecimento</p><p>consciente e completo da atividade; a comunicação por demonstração é o apren-</p><p>dizado supervisionado, que deve generalizar de contingências conhecidas para</p><p>contingências novas; e a comunicação por avaliação é o aprendizado por reforço,</p><p>que consiste na entidade tentar realizar uma atividade, avaliá-la e aprimorá-la.</p><p>1.4 Programação e Inteligência Artificial</p><p>Da mesma forma que um computador é uma ferramenta geral para executar</p><p>algoritmos, algoritmos de inteligência artificial podem ser pensados como algo-</p><p>ritmos gerais para executar atividades. De forma simples, pode-se dividir os</p><p>algoritmos de IA em duas classes: dedutiva e indutiva.</p><p>Algoritmos de planejamento, por exemplo, consideram o racioćınio dedutivo</p><p>para a partir de premissas e regras de encadeamento lógicos, deduzir um plano</p><p>que atinja um objetivo. Por exemplo, pode-se utilizar planejamento para deduzir</p><p>um plano que a partir da configuração de um tabuleiro de xadrez define jogadas</p><p>(ações) que garantam a vitória.</p><p>Programar um algoritmo de planejamento consiste em especificar um con-</p><p>junto de regras de encadeamento e a especificação de um objetivo. Aqui, assim</p><p>como na programação de um algoritmo, também torna-se necessário a utilização</p><p>de uma linguagem formal para especificar as regras de encadeamento e a espe-</p><p>cificação de um objetivo. No entanto, se um especialista em linguagem de</p><p>planejamento especificar as regras de encadeamento, um usuário pode fazer uso</p><p>de planejamento apenas especificando um objetivo. Por exemplo, no uso de</p><p>GPS, as regras de encadeamentos (topologia das ruas) estão pré-programadas</p><p>na ferramenta, enquanto o usuário pode especificar o destino final e alguns filtros</p><p>(mais rápido, mais curto, sem pedágio, etc.).</p><p>Algoritmos de aprendizado supervisionado, por outro lado, consideram ra-</p><p>cioćınio indutivo para a partir de exemplos obter um modelo da atividade. Aqui,</p><p>a programação acontece por meio de demonstração da realização da atividade.</p><p>Por exemplo, na atividade de navegação pela cidade, as demonstrações são pares</p><p>(origem-destino, caminho que vai da origem ao destino); a partir dos exemplos,</p><p>deve generalizar as demonstrações conhecidas para novas entradas de origem-</p><p>destino.</p><p>No aprendizado supervisionado, exemplos são considerados como as melhores</p><p>execuções posśıveis da atividade e tenta-se copiá-las. O racioćınio indutivo</p><p>também é considerado no aprendizado por reforço, mas considera-se que o agente</p><p>realiza demonstrações e recebe como reforço (uma avaliação), assim, ações que</p><p>obtiveram mais avaliações positivas são reforçadas e ações que obtiveram mais</p><p>3</p><p>avaliações negativas são desincentivada. Por exemplo, na atividade de navegação</p><p>pela cidade, o agente faria uma tentativa de realizar a tarefa (demonstração)</p><p>e recebe de retorno uma</p><p>avaliação (pontuação); a partir desses pares, o agente</p><p>deve induzir tentativas de realizar a atividade com maior sucesso no futuro.</p><p>Enquanto no aprendizado supervisionado a programação é feita por meio de</p><p>demonstrações supostamente ótimas, no aprendizado por reforço a programação</p><p>é feita avaliando qualquer demonstrações, sejam elas ótimas, medianas ou ruins.</p><p>No primeiro caso, precisa-se de vários exemplos de boa qualidade; no segundo</p><p>caso, precisa-se de uma função de avaliação e a possibilidade de realizar tenta-</p><p>tivas.</p><p>2 Inteligência Artificial e atores no mundo atual</p><p>2.1 O Fetiche Tecnicista</p><p>Automatizar as atividades por meio de algoritmos é tentador. Primeiro, um</p><p>agente humano pode delegar atividades, que gastem muito tempo, para o com-</p><p>putador. Segundo, o computador executa o algoritmo sem erro. Terceiro, o</p><p>computador pode executar atividades de forma otimizada. Quarto, o computa-</p><p>dor permite que pessoas realizem atividades que elas não tem capacidade.</p><p>Dentre as atividades que realizamos diariamente, temos o desejo de não</p><p>realizar várias delas. O exemplo mais comum são as máquinas de lavar roupa</p><p>e louça que nos auxiliam no dia-a-dia. Por outro lado, o meio art́ıstico sempre</p><p>soube incorporar as novas invenções para continuar a ter prazer na própria</p><p>realização das tarefas. Mesmo que temos tear e bordados mecânicos, isso não</p><p>fez com que as rendeiras e bordadeiras sumissem da sociedade, mesmo que tenha</p><p>diminúıdo bastante o valor dado aos trabalhos manuais. O fato de ter aparecido</p><p>o retrato, não fez com que os artistas de desenhos realistas sumissem. Portanto,</p><p>podemos nos perguntar: qual o limite dessa automatização? Temos atividades</p><p>que não gostaŕıamos de delegar para o computador? Um exemplo clássico na</p><p>literatura é o sistema COMPASS que pretende estimar a chance de alguém</p><p>reincidir em crime. Mesmo com um judiciário abarrotado de processos, seria</p><p>ético desenvolver um sistema que realize tal atividade?</p><p>O fato de que o computador executa sempre o algoritmo sem erro, faz com</p><p>que muitas vezes confiamos mais neles do que em nossas próprias operações.</p><p>Enquanto isso é verdade para o uso da calculadora, não necessariamente é ver-</p><p>dade para aplicações atuais. O ChatGPT, talvez a tecnologia baseada em IA de</p><p>mais rápido alcance na sociedade, não garante que suas respostas sejam total-</p><p>mente coerentes, principalmente por não se basear em racioćınio dedutivo, mas</p><p>sim em indutivo. Outro exemplo já citado é o sistema COMPASS que produz</p><p>erros tendenciosos que prejudicam minorias. Em vez de realizar as atividades,</p><p>deveŕıamos virar meros monitores das atividades realizadas por sistemas como</p><p>ChatGPT e COMPASS? Ou aceitar os erros, quando eles são dos mesmos ńıveis</p><p>produzidos pelos seres humanos?</p><p>O fato da atividade não depender das limitações humanas faz com que suas</p><p>4</p><p>atividades possam ser otimizadas segundo algum critério de avaliação. Especifi-</p><p>car uma função de avaliação que atenda as particularidades de um único usuário</p><p>não é nada trivial, quanto mais definir uma função de otimização que atenda</p><p>a demanda de uma sociedade. O mesmo acontece com aprendizado supervisio-</p><p>nado, quando a atividade aprendida pela máquina depende das demonstrações</p><p>realizadas; quais demonstrações devem fazer parte da base de dados para trei-</p><p>namento de um algoritmo? Então, algo sempre está sendo otimizado, mas nem</p><p>sempre o que a sociedade gostaria. Mais do que isso, nem sempre é posśıvel</p><p>colocar um problema da sociedade como um problema de otimização; pense na</p><p>educação de uma criança, apenas por ingenuidade ou leviandade, alguém aven-</p><p>taria uma função de avaliação que exprime apenas por um conjunto finito de</p><p>fatores a qualidade da educação de uma criança.</p><p>Recentemente temos vários exemplos de ferramentas de IA que permitem</p><p>as pessoas irem além de suas capacidades. Tradutores entre ĺınguas naturais,</p><p>navegadores que levam em conta o trânsito, geradores de imagens, identificador</p><p>de plantas, entre outros. Diferentes de várias outras ferramentas, como o avião,</p><p>o carro, que são acesśıveis para poucas pessoas; algumas ferramentas de IA tem</p><p>uma maior disponibilidade, muitas vezes apenas dependendo do acesso à Inter-</p><p>net, mas que mesmo assim não está acesśıvel a muitas pessoas no mundo. Cabe</p><p>perguntar qual o ganho que empresas tem ao disponibilizar essas ferramentas</p><p>gratuitamente. Em geral, essas ferramentas estão dispońıveis gratuitamente</p><p>desde que o usuário esteja disposto a ser bombardeado por propagandas, ou</p><p>desde que o usuário doe os dados que faz do uso de tal ferramenta.</p><p>2.2 Capitalismo e a persuasão de atividades</p><p>Sob uma abordagem meramente utilitarista, dev́ıamos nos perguntar sobre a uti-</p><p>lidade das atividades automatizadas em um algoritmo. Como já discutido antes,</p><p>podemos perguntar se as atividades automatizadas atendem uma demanda, e</p><p>se as atividades são executadas com qualidade.</p><p>Diferente do mantra do mercado capitalista, de oferta e demanda, as várias</p><p>ferramentas de rede sociais criadas nos últimos anos ofertam e criam a demanda</p><p>ao mesmo tempo.</p><p>Como já dito antes, a criação de uma ferramenta cria junto com ela uma</p><p>atividade. A criação de uma sacola, cria a atividade de ‘carregar algo mais</p><p>facilmente’. A criação de uma arma de fogo, cria a atividade de ‘matar uma</p><p>pessoa com a arma de fogo’. A criação de um jogo de videogame, cria a atividade</p><p>de ‘jogar o jogo’. A criação de uma rede social, cria a atividade de ‘ler o feed’.</p><p>Na era das ferramentas na nuvem, todo uso das ferramentas viram demons-</p><p>trações (informações) para que algum algoritmo de aprendizado de máquina</p><p>possa ser treinado. Se para atividade que demandamos no dia a dia, especificar</p><p>uma forma adequada de avaliação é improvável, a avaliação desses algoritmos</p><p>são simples: quanto mais dinheiro melhor.</p><p>Em um processo de realimentação, esses algoritmos aprendem qual est́ımulo</p><p>mantém o usuário mais engajado para realizar atividades de interesse de em-</p><p>presas, como, continuar conectado para eventualmente ser fisgado por uma pro-</p><p>5</p><p>paganda. Em um experimento a céu aberto, esses algoritmos podem testar a</p><p>cada interação alguma teoria de como persuadir as atividades realizadas pelo</p><p>usuário. Qual é a melhor cor de um anúncio? Qual é o melhor momento para um</p><p>anúncio? Onde colocar um anúncio? Seja um anúncio de uma nova mensagem</p><p>de seu melhor amigo, seja o anúncio de um patrocinador.</p><p>Por outro lado, cria-se nos usuários uma nova relação com atividades. Se é</p><p>dif́ıcil construir uma teoria de atividades humanas: como elas são aprendidas?</p><p>criadas? suscitadas? cessadas? Os algoritmos em tempo real afetam o compor-</p><p>tamento das pessoas, de modo que hoje a disponibilidade para as atividades são</p><p>muito diferente das que t́ınhamos a duas décadas atrás. Carregamos no bolso</p><p>uma ferramenta que nos disponibiliza milhares de atividades. Dessa forma, os</p><p>usuários fornecem dados para uma armadilha para eles mesmos cáırem.</p><p>Mesmo em cenários longe das nuvens, empresas automatizam atividades e</p><p>criam a demanda para elas. O caso COMPASS é t́ıpico dessa situação, quando</p><p>uma solução de automação é oferecida ao poder público sem que a sociedade</p><p>civil possa ter discutido com o tempo adequado. Outro exemplo são sistemas</p><p>de vigilância; o lobby de empresas junto ao estado faz com que a instalação de</p><p>câmeras avancem em várias cidades. Essas ferramentas vem carregadas do valor</p><p>meritocrático, no qual criam possibilidades de atividades para quem demonstra</p><p>potencial para algo, seja uma vaga de emprego ou a possibilidade de responder</p><p>em liberdade a uma acusação judicial.</p><p>Em geral, a sociedade meritocrata é estruturada para oferecer privilégios,</p><p>por meio de atividades dispońıveis, a quem demonstra potencial para algo que é</p><p>mensurado por algum instrumento. Por exemplo, o vestibular filtra quem terá o</p><p>privilégio de acessar a universidade. Para pleitear um emprego, deve-se ter um</p><p>grau mı́nimo de instrução.</p><p>Em geral, existe uma correlação positiva entre poten-</p><p>cial avaliado por esses instrumentos e situação financeira, e, em um páıs como</p><p>o Brasil, essa correlação também se estende para raça. Dessa forma, embora</p><p>explicações e modelos estat́ısticos sejam vendidos como ferramentas objetivas,</p><p>eliminando a subjetividade humana, na verdade essas ferramentas atuam como</p><p>um dispositivo racial em nossa sociedade.</p><p>O alcance de uma mesma ferramenta, controlada por uma única empresa,</p><p>na era atual é enorme. Ainda, com a globalização e diminuição das distâncias, a</p><p>disputa por privilégios (possibilidades de atividades) passa não só a ser global,</p><p>mas avaliada sempre pelo mesmo sistema. Essa abordagem pode fazer com que</p><p>uma pessoa fique em último em qualquer processo de avaliação.</p><p>Finalmente, a preocupação das empresas com os erros e suas consequências</p><p>na sociedade são nulas. Mas o efeito produzido por uma única empresa pode ser</p><p>enorme. Algumas consequências podem ser individuais, mas de efeito devasta-</p><p>dor, seja nas condições materiais, quando uma pessoa é condenada por engano,</p><p>seja na psiquê, quando uma pessoa é ‘apenas’ abordada ou detida por engano</p><p>após um reconhecimento facial errôneo. Outras consequências podem afetar a</p><p>cultura de uma sociedade, influenciando diretamente nas atividades realizadas</p><p>pelas pessoas.</p><p>6</p><p>2.3 Engenharia e a ilusão de um problema bem posto</p><p>A engenharia é a ciência por natureza para criar ferramentas, principalmente,</p><p>envolvendo recursos da natureza, baseada em resolver problemas. A Ciência da</p><p>Computação e Inteligência Artificial, como uma irmãs mais nova dessa famı́lia,</p><p>também parte de um problema. Primeiro, considera-se alguma teoria, modela-se</p><p>o problema nessa teoria, e encontra-se uma solução.</p><p>Um problema só pode ser resolvido computacionalmente se ele é bem posto.</p><p>Uma boa parte da pesquisa em Aprendizado de Máquina consiste em formular</p><p>o problema de forma que eles esteja bem posto. Por exemplo, a tarefa de</p><p>reconhecer gatos em uma imagem é posto da seguinte maneira: coleta-se um</p><p>conjunto de imagens com gatos e sem gatos, realiza-se uma etiquetagem do</p><p>posicionamento de cada gato na imagem, separa-se o conjunto de imagens em</p><p>conjunto de teste e treinamento, faz-se uso do conjunto de treinamento para</p><p>criar um estimador, e faz-se uso do conjunto de teste para avaliar o estimador</p><p>obtido.</p><p>Aqui, uma teoria bastante utilização é o problema de regressão, ou o pro-</p><p>blema de estimador estocástico. Em ambos os casos, a solução encontrada</p><p>depende do conjunto utilizado de treinamento, e a avaliação da solução depende</p><p>do conjunto de teste e de algum critério de avaliação. Embora, dados os conjun-</p><p>tos de treinamento e teste e o critério de avaliação, o problema fica bem posto;</p><p>temos um meta-problema, para escolhê-los, que não é bem posto. Em geral,</p><p>as pessoas envolvidas na solução de problemas, se contentam em utilizar uma</p><p>versão bem posta do problema, muitas vezes não se dando conta de que é apenas</p><p>uma dentre várias possibilidades, muito menos de que existe um meta-problema</p><p>que não é bem posto.</p><p>Considere novamente o caso do COMPASS. Criou-se uma ferramenta com o</p><p>intuito de auxiliar júızes a tomar decisões em julgamentos. A tomada de decisão</p><p>aqui é um problema que não é bem posto, embora exista um conjunto de leis,</p><p>na qual estabelece-se fatos e suas consequências, não temos um problemas bem</p><p>posto de como estabelecer fatos. O sistema COMPASS considera o problema</p><p>bem posto de regressão através de um conjunto de treinamento baseado em</p><p>fatos coletados historicamente. Embora se discuta e concorde sobre os vieses</p><p>que esse processo pode gerar, não há acordo sobre como evitar os vieses. Há</p><p>várias formas de se medir viés, e não se pode eliminar todos os vieses ao mesmo</p><p>tempo.</p><p>Ainda que os sistemas não produzissem vieses, pode-se perguntar se os vieses</p><p>podem ser desejáveis. Por exemplo, se os júızes são racistas, deve-se construir</p><p>um sistema com vieses em favor de pessoas negras para corrigir os vieses dos</p><p>júızes. Enquanto essa solução não costuma ser aventada, tenta-se convencer, e</p><p>muitos acreditam, que o problema de regressão possui objetividade.</p><p>Construir um sistema sem levar em conta todas essas questões e possibilida-</p><p>des, é simplesmente ser negligente com a dificuldade de ter um problema bem</p><p>posto.</p><p>7</p><p>3 Banir ou consertar?</p><p>Diferente de um jogo de resultado 0 ou 1, no qual tudo que resta é maximizar</p><p>a probabilidade de vencer o jogo, o objetivo (intenção) de uma sociedade é dis-</p><p>putado em cada momento histórico. Embora uma parte da sociedade suponha</p><p>vários prinćıpios para guiar as atividades humanas: democracia, direitos huma-</p><p>nos, preservação do meio-ambiente, etc.; esses prinćıpios não nos permitem co-</p><p>locar um problema bem posto para determinar quais ferramentas, algoŕıtmicas</p><p>ou não, deveriam fazer parte de nossa cultura. Por outro lado, no momento</p><p>histórico atual, podemos debater, guiado por prinćıpios, a validade de algumas</p><p>ferramentas.</p><p>Novamente, considerando o caso COMPASS, pode-se pensar em dois prin-</p><p>cipais argumentos contra sistemas como esse: ético e com relação a eficiência.</p><p>Pode-se considerar uma violação aos direitos humanos julgar uma pessoa por</p><p>algo que ela não fez, mas que se infere que será feito. Outro argumento é com</p><p>relação ao fato dessa tecnologia produzir erros, e com vieses raciais, e, portanto,</p><p>não ter eficiência adequada. O primeiro argumento leva ao banimento dessas</p><p>tecnologia, enquanto o segundo leva à suspensão até que se atinja uma eficiência</p><p>adequada.</p><p>No entanto, quando as tecnologias são criadas, dificilmente estes argumentos</p><p>são levados em conta. Como nos exemplos bizarros de identificação apenas por</p><p>uma foto se a pessoas é criminosa ou qual é a orientação sexual da mesma; ou</p><p>em filtros de embelezamento. Basta um problema aparentemente bem posto</p><p>para engenheiros correrem atrás de uma solução. Basta uma possibilidade de</p><p>fazer dinheiro para um capitalista criar novas aplicações (atividades).</p><p>Uma vez que uma ferramenta é criada, a mesma é uma possibilidade de</p><p>atividade. O que temos visto é um movimento na sociedade civil para argu-</p><p>mentar contra algumas ferramentas eticamente, pedindo seu banimento. Temos</p><p>visto também um esforço para apontar problemas na eficiência das mesmas,</p><p>como racismo algoŕıtmico. Muitas vezes, o segundo argumento toma o lugar do</p><p>primeiro. O que coloca a pergunta: lutar pelo banimento ou conserto dessas</p><p>ferramentas?</p><p>8</p>