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<p>343</p><p>Abordagem</p><p>ergonômica</p><p>centrada no</p><p>trabalho real</p><p>Sandra Francisca Bezerra Gemma</p><p>Roberto Funes Abrahão</p><p>Flávia Traldi de Lima</p><p>Mauro José Andrade Tereso</p><p>14</p><p>Acesse</p><p>www.engenhariadotrabalho.com.br</p><p>para materiais complementares</p><p>e atualizados - incluindo atividades e</p><p>indicação de filmes, artigos e livros.</p><p>345</p><p>1. Introdução</p><p>Este capítulo apresenta as bases conceituais da Ergonomia da Atividade. A</p><p>partir da narrativa do capítulo anterior, apresentam-se aqui, inicialmente, dois</p><p>modos complementares de se praticar a ergonomia; um deles, a vertente da er-</p><p>gonomia da atividade, é apresentada a partir dos conceitos de tarefa, atividade,</p><p>variabilidade, determinantes, carga de trabalho, margem de manobra, estratégias e</p><p>modos operatórios. Esses conceitos estruturam o método da Análise Ergonômica</p><p>do Trabalho (AET), tema principal do capítulo 17 deste livro.</p><p>2. Uma ideia revolucionária</p><p>O surgimento da ergonomia trouxe uma nova dimensão à expressão análise</p><p>do trabalho, invertendo o dito adaptar o homem ao trabalho para o dito, à época</p><p>revolucionário, adaptar o trabalho ao homem.</p><p>Anteriormente, o imensamente influente movimento de organização do traba-</p><p>lho conhecido como administração científica do trabalho, o taylorismo, entendia</p><p>que analisar o trabalho significava, antes de tudo, definir a forma mais eficiente de</p><p>executar uma tarefa, do ponto de vista operacional. A partir de uma minuciosa di-</p><p>visão do trabalho e de um estudo intensivo dos tempos e movimentos envolvidos,</p><p>a tarefa era projetada quase como uma coreografia de gestos executada pelos tra-</p><p>balhadores. Com a tarefa projetada pelos gestores do trabalho, cabia aos(às) traba-</p><p>lhadores(as) executá-la maquinalmente, e, para tanto, buscava-se o(a) mais apto(a)</p><p>a desempenhar aquela coreografia definida. É o primado das políticas de seleção</p><p>de pessoal, ainda hoje muito influentes no mundo do trabalho. Segundo essa ótica,</p><p>o(a) trabalhador(a) era forçado(a) a se adaptar a uma tarefa concebida externamen-</p><p>te a ele(ela), não sendo considerado(a) agente autônomo(a) e consciente, com his-</p><p>tória profissional própria e com aptidões cognitivas e motivacionais.</p><p>A ergonomia se insurge contra esse cenário. Surge, inicialmente, como uma</p><p>tecnologia de adaptação dos meios técnicos do trabalho às características psico-</p><p>fisiológicas dos indivíduos. Essa ergonomia clássica ficou conhecida como Human</p><p>Factors Engineering, HFE (fatores humanos ou engenharia de fatores humanos),</p><p>que tem fundação oficial na Inglaterra do pós-Segunda Guerra Mundial. Caracte-</p><p>rizou-se por intensa experimentação em ambiente controlado, buscando quanti-</p><p>ficar as variáveis que expressam a adaptação dos meios de trabalho às caracterís-</p><p>Capítulo 14 - Abordagem ergonômica...</p><p>346</p><p>ticas dos indivíduos. A adaptação dos dispositivos às características dimensionais</p><p>humanas (estudos antropométricos), a análise do custo fisiológico do trabalho,</p><p>os estudos dos tempos de reação a partir de estímulos sensoriais e o projeto de</p><p>interfaces homem/máquina são exemplos dessa abordagem ergonômica. É a</p><p>ergonomia do componente humano, na denominação de Montomollin (FALZON,</p><p>2007), centrada no componente humano dos sistemas homem/máquina.</p><p>Essa abordagem ajudou e ainda ajuda a construção de um importante conjunto</p><p>de conhecimentos fundamentais no projeto de um trabalho adaptado às caracte-</p><p>rísticas psicofisiológicas dos(das) trabalhadores(as). Entretanto, tal abordagem ain-</p><p>da retém alguns elementos da visão tradicional da análise do trabalho. A expressão</p><p>pessoal e única dos trabalhadores na dinâmica do trabalho tem representação tí-</p><p>mida nessa abordagem e a tarefa, ou trabalho prescrito, projetado externamente</p><p>ao(à) trabalhador(a), apresenta uma grande proeminência na análise.</p><p>Esse cenário começou a mudar com a publicação, na França, das obras A análi-</p><p>se do trabalho (L’analyse du travail), em 1955, de autoria de Ombredane e Faverge,</p><p>e Adaptação da máquina ao homem (L’adaptation de la machine à l’homme), em</p><p>1958, de Faverge, Leplat e Guiguet.</p><p>Na primeira obra, os autores apresentam uma perspectiva inovadora e hu-</p><p>manista da análise do trabalho, afirmando que há duas questões fundamentais</p><p>nesse tipo de análise – o que os trabalhadores fazem e o porquê. Trata-se, me-</p><p>taforicamente, de “descer do cavalo” e compreender o trabalho a partir da ótica</p><p>dos trabalhadores, através da observação do trabalho real e da interlocução. De</p><p>um lado, há os requisitos da tarefa; do outro, as atitudes e comportamentos que</p><p>os trabalhadores adotam para cumprir com os requisitos ou exigências impostos</p><p>pela tarefa. Os autores ressaltam que, para cumprir as tarefas, os trabalhadores</p><p>necessitam, eles próprios, criar estratégias de ação que permitam dar conta das</p><p>exigências variadas que as tarefas apresentam a eles.</p><p>A segunda obra, L’adaptation de la machine à l’homme, como o próprio título</p><p>explicita, inverte, historicamente, o dito taylorista – adaptação do homem ao tra-</p><p>balho – se opondo, na literatura de língua francesa, à obra de 1947, de Bonnardel,</p><p>L’adaptation de l’homme à son métier (A adaptação do homem ao seu ofício).</p><p>Estava inaugurada, portanto, uma nova modalidade de análise do trabalho.</p><p>Essa vertente privilegiava a análise do trabalho em condições reais de execução,</p><p>no chão de fábrica, nas fazendas, nos escritórios, em contraposição à simulação</p><p>controlada do trabalho, caminho adotado pela vertente dos fatores humanos. O</p><p>analista é um interlocutor dos trabalhadores, chamados preferencialmente de</p><p>operadores (que não são meros executantes de um roteiro elaborado externa-</p><p>Gemma, Abrahão, Lima e Tereso</p><p>347</p><p>mente). Ele observa o comportamento dos operadores com um olhar parecido</p><p>com o dos antropólogos que observam uma nova cultura – o trabalho real, irre-</p><p>dutível às prescrições da tarefa. Esse modo de praticar a ergonomia e analisar o</p><p>trabalho ficou conhecido como ergonomia da atividade, ou, nas palavras de Mont-</p><p>mollin (FALZON, 2007), ergonomia centrada na atividade humana. Hoje, é opinião</p><p>generalizada entre os especialistas que essas duas vertentes da ergonomia – a</p><p>ergonomia clássica (fatores humanos) e a ergonomia da atividade não são opos-</p><p>tas ou contraditórias, mas se complementam.</p><p>3. Tarefa e atividade</p><p>Dentro da perspectiva da ergonomia da atividade, foco deste capítulo, tarefa e</p><p>atividade inserem-se como conceitos fundamentais para revelar a complexidade</p><p>do trabalho.</p><p>Nessa abordagem, a tarefa assume um sentido mais amplo do que o usual, con-</p><p>sistindo em tudo que é imposto ao trabalhador por instâncias externas. Ou seja, a</p><p>tarefa está ligada à forma como a organização impõe sua gestão ao trabalhador</p><p>para atingir seus objetivos, sendo por isso o conjunto de prescrições, regras, nor-</p><p>mas, modos operatórios e dispositivos fixados na produção. Define-se por meio de</p><p>seus objetivos – quantitativos ou qualitativos – e por suas condições, de acordo com</p><p>os procedimentos, constrangimentos1, meios postos à disposição, características</p><p>do ambiente físico, cognitivo e coletivo do trabalho (FALZON, 2007). A tarefa é indis-</p><p>pensável, pois ela autoriza a realização do trabalho, de modo a fornecer um quadro</p><p>de referência para que o indivíduo exerça o seu trabalho. No entanto, ela determina</p><p>certo controle sob funcionamentos, gestos e ações – com o intuito de otimizar a</p><p>produtividade – que pode ser difícil de gerenciar pelos operadores. Sendo a tarefa</p><p>um resultado antecipado, fixado dentro de condições determinadas, dizemos que</p><p>1 - Constrangimento, tradução do termo em francês (contrainte), utilizado no sentido proposto pela nota de tra-</p><p>dução de GUÉRIN et al. (2001): “[...] apesar de ser mais usado entre nós para significar embaraço, em referência a</p><p>um estado psíquico, tem vários significados que correspondem ao que se deseja passar em ergonomia. A palavra,</p><p>originada do latim constringere, faz referência a apertado, aperto, compressão, coação, obrigatoriedade, restrição,</p><p>cerceamento, injunções, entre outros. Se nos ativermos ao uso da palavra contrainte, em ergonomia,</p><p>estamos utili-</p><p>zando o mesmo referencial, adequado ao que acontece no trabalho humano[...] constrangimento pode ser utilizado</p><p>com mais propriedade que a palavra estresse’”, aportuguesada recentemente. Note-se que as duas têm raízes seme-</p><p>lhantes e que o significado usado para os fatores de estresse, no Brasil, nada mais é do que os diferentes constrangi-</p><p>mentos” (GUÉRIN et al., 2001, p. xviii).</p><p>Capítulo 14 - Abordagem ergonômica...</p><p>348</p><p>é o que se deve fazer, o que se espera implícita ou explicitamente do trabalhador.</p><p>Quando se pede a um(a) operador(a) que descreva o que faz em seu traba-</p><p>lho, geralmente a resposta está relacionada aos resultados obtidos – “eu faço ma-</p><p>nutenção de redes elétricas” – ou sobre os meios que utiliza para realizar o seu</p><p>trabalho – “eu utilizo ferramentas para realizar a manutenção de redes elétricas”.</p><p>Essa maneira de falar do trabalho revela de forma simplificada o que é uma ta-</p><p>refa (ver capítulo 17). No entanto, o que se observa da atividade ou da fala dos</p><p>próprios operadores não é necessariamente a tarefa prescrita. Isso porque, como</p><p>um contexto dinâmico, o trabalho apresenta variabilidades, imprevistos e eventos</p><p>indeterminados, que fazem com que os(as) trabalhadores(as) transgridam as nor-</p><p>mas e façam adaptações para alcançar os objetivos ou resultados com melhor</p><p>qualidade. Ao conjunto de estratégias utilizados pelos operadores nas situações</p><p>reais de trabalho damos o nome de atividade.</p><p>A atividade é a maneira como os resultados são obtidos e os meios utilizados</p><p>para isso (GUÉRIN et al., 2001). Corresponde ao que é efetivamente feito, é o que</p><p>se faz. São as ações, as decisões, aquilo que o(a) operador(a) usa de si para efetuar</p><p>a tarefa, ou o trabalho prescrito. Situam-se nesse contexto as mobilizações fisio-</p><p>lógicas e psicológicas de indivíduos que se engajam de diferentes maneiras para</p><p>dar conta do que foi prescrito pela organização do trabalho, a partir de condições</p><p>reais de trabalho e da busca por resultados efetivos.</p><p>Trabalho</p><p>Prescrito</p><p>Condições</p><p>Determinadas</p><p>Condições</p><p>Reais</p><p>Condições</p><p>Determinadas</p><p>Resultados</p><p>Efetivos</p><p>Atividade</p><p>de TrabalhoTarefa</p><p>Trabalho</p><p>Real</p><p>Figura 1: Tarefa e atividade de trabalho.</p><p>Fonte: Guérin et al. (2001, p. 15).</p><p>Nesse sentido, o(a) trabalhador(a) não age somente como executor(a) me-</p><p>cânico(a) de regras e prescrições impostas exteriormente pela organização, mas</p><p>Gemma, Abrahão, Lima e Tereso</p><p>349</p><p>como operador(a), dotado(a) de conhecimentos e habilidades específicas, que</p><p>cria modos de operar e elabora estratégias para enfrentar as variabilidades do</p><p>trabalho, a partir de uma história de vida e de um contexto socioeconômico par-</p><p>ticular. Por isso, os pesquisadores da ergonomia da atividade usam, frequente-</p><p>mente, o termo operador(a) quando se referem aos(às) trabalhadores(as): esse</p><p>termo salienta a relação dinâmica, ativa e criativa que as pessoas normalmente</p><p>têm com o seu trabalho.</p><p>A atividade ou trabalho real comporta elementos que são diretamente ob-</p><p>serváveis pelo analista [ver capítulo 17]. Isso acontece quando o(a) trabalha-</p><p>dor(a) utiliza seus recursos motores e sensoriais: os deslocamentos, as ações</p><p>sobre comandos ou controles, a adoção de posturas diversas, a execução de</p><p>esforços físicos, as comunicações trocadas com colegas, a busca ativa por infor-</p><p>mações, entre outros. A parte não diretamente observável da atividade corres-</p><p>ponde aos processos mentais: sensação, percepção, memorização, tratamento</p><p>de informação e tomada de decisão. São os componentes das cadeias cogniti-</p><p>vas utilizadas pelos operadores no dia a dia das jornadas. Para que o analista do</p><p>trabalho tenha acesso a esses elementos da atividade, é necessária a interlocu-</p><p>ção direta com o operador.</p><p>Como ilustração do papel dos processos cognitivos na dimensão coletiva do</p><p>trabalho e na cooperação entre os operadores, considere-se o trabalho de eletri-</p><p>cistas de manutenção de redes elétricas. Suas tarefas são executadas em altura,</p><p>com exposição constante ao sol, mediante o uso de roupas especiais de proteção</p><p>contra correntes e choques elétricos, que recobrem todo o corpo. Por ser uma</p><p>atividade de alto risco, o trabalho é sempre desenvolvido em dupla. Em uma</p><p>situação hipotética, após várias horas de trabalho, o eletricista que se encontra</p><p>em altura pode apresentar sinais de desidratação, fadiga excessiva dos múscu-</p><p>los, cansaço ou vertigem (Figura 2). Antes que ocorra uma piora neste quadro, o</p><p>companheiro de equipe pode tomar a decisão de solicitar que o eletricista pare</p><p>de operar, acionando imediatamente um operador substituto que assume o tra-</p><p>balho e finaliza a tarefa com êxito.</p><p>Capítulo 14 - Abordagem ergonômica...</p><p>350</p><p>Figura 2: Eletricistas em operação.</p><p>Na situação hipotética apresentada pode-se considerar que a forma como</p><p>essa situação foi antecipada pelo companheiro de equipe do eletricista repre-</p><p>senta um conjunto de conhecimentos adquiridos da experiência de trabalho do</p><p>sujeito no setor. A percepção refinada do companheiro de equipe sobre a situ-</p><p>ação de trabalho evitou uma piora no quadro de desidratação, ou mesmo um</p><p>acidente de trabalho, de modo que a manobra realizada pelo companheiro de</p><p>equipe, além de preservar a saúde e a vida do eletricista, viabilizou a conclusão</p><p>da tarefa. A observação e a análise do trabalho real, postuladas pela vertente da</p><p>ergonomia da atividade, permite ao(à) analista compreender a lógica da ativida-</p><p>de dos operadores, entendida como uma resposta pessoal e única a um conjunto</p><p>de determinantes da situação de trabalho, parte deles gerada pela organização</p><p>e parte, de caráter pessoal. Esse conhecimento advindo da análise da atividade</p><p>fornece elementos para a adequação e a otimização das condições de trabalho.</p><p>O Esquema 1 permite visualizar de forma simples os elementos que atuam como</p><p>determinantes das situações de trabalho.</p><p>Gemma, Abrahão, Lima e Tereso</p><p>351</p><p>Esquema 1: Os elementos que atuam como determinantes das situações de trabalho.</p><p>Fonte: Guérin et al. (2001, p. 27).</p><p>De um lado, existem os determinantes externos ao(à) operador(a), defini-</p><p>dos pela empresa ou instituição, envolvendo elementos materiais, ambientais</p><p>e organizacionais. De outro, os determinantes pessoais do(a) operador(a) O</p><p>contrato legitima e ordena, por meio da tarefa, o exercício do trabalho; o(a)</p><p>operador(a) responde a esse contrato e a essa tarefa com sua atividade de tra-</p><p>balho, que gera resultados. Se o equilíbrio dinâmico imposto pelos determi-</p><p>nantes às situações de trabalho for favorável, esses resultados serão positivos,</p><p>tanto para a empresa/institui ção (aumento da produção e da produtividade do</p><p>trabalho, ganhos de qualidade) quanto para o(a) operador(a) (ganho de com-</p><p>petências, segurança no trabalho). Se, por outro lado, as exigências da tarefa e</p><p>as condições gerais de trabalho forem desfavoráveis, os resultados podem ser</p><p>a baixa qualidade da produção e da produtividade do trabalho, a ocorrência de</p><p>acidente e um trabalho que não agrega competências nem favorece a saúde</p><p>dos operadores.</p><p>Capítulo 14 - Abordagem ergonômica...</p><p>352</p><p>Dessa forma, o papel do(a) analista do trabalho é compreender como opera-</p><p>dores enfrentam as variabilidades e como criam as estratégias para administrar a</p><p>distância entre o prescrito e o real, ou seja, na contradição do que é previsto pela</p><p>organização e do que se apresenta como incerto no cotidiano prático da execu-</p><p>ção da atividade. Isso porque, além das variabilidades presentes nas situações do</p><p>trabalho, considera-se a variabilidade dos indivíduos, sua história de vida, suas ex-</p><p>periências, conhecimentos e habilidades que se constroem de maneira singular.</p><p>4. Variabilidade das situações produtivas e</p><p>dos operadores</p><p>“A atividade de um operador, num dado momento, é o resultado de um com-</p><p>promisso complexo levando em consideração numerosos fatores” (GUÉRIN et</p><p>al., 2001). Esses fatores podem ser internos ao(à) trabalhador(a): características</p><p>gerais e particulares do seu organismo; propriedades gerais de seu raciocínio e</p><p>saberes adquiridos ao</p><p>longo de sua vida; sua personalidade e seus projetos in-</p><p>dividuais. Os fatores também podem ser externos ao(à) trabalhador(a): objetivos</p><p>determinados pela organização; meios técnicos e informacionais colocados à sua</p><p>disposição. Entretanto, estes fatores variam com o tempo e, consequentemente,</p><p>o compromisso do(a) trabalhador(a) também varia. Os fatores descritos se atuali-</p><p>zam permanentemente, o que pode trazer consequências tanto para a saúde dos</p><p>trabalhadores, como para a atividade e a produção.</p><p>A diversidade e variabilidade dos trabalhadores pode ser interindividual ou</p><p>intraindividual.</p><p>A diversidade interindividual baseia-se nas diferenças entre trabalhadores: gê-</p><p>nero, estatura, alcance, acuidade visual, formação, experiências de vida e experi-</p><p>ências profissionais. Os constrangimentos e as dificuldades que cada um vivencia</p><p>são diferentes. Um mesmo posto de trabalho ocupado por trabalhadores(as) dis-</p><p>tintos(as) pode ser usado de forma singular, já que as estratégias adotadas, o grau</p><p>de fadiga resultante, os raciocínios por eles utilizados geralmente são distintos,</p><p>ainda que os resultados da produção sejam semelhantes.</p><p>Já a diversidade intraindividual assenta-se nas variações de estado físico e men-</p><p>tal de cada trabalhador. Estas variações podem ser de curto ou de longo prazo.</p><p>As variações de curto prazo ocorrem porque o organismo humano reage a</p><p>ritmos biológicos que se manifestam variáveis ao longo do dia. Essas variações</p><p>Gemma, Abrahão, Lima e Tereso</p><p>353</p><p>podem ser afetadas por medicamentos, acontecimentos familiares, do transporte</p><p>ou do trabalho, uma noite mal dormida, e que modificam o estado do indivíduo,</p><p>podendo levar à diminuição da atenção ou à variação de humor.</p><p>As variações de longo prazo são decorrentes do estado funcional do orga-</p><p>nismo do indivíduo, que se transforma com o passar dos anos. Isto decorre do</p><p>envelhecimento ou de efeitos do meio de trabalho.</p><p>Aproximadamente após os 35 ou 40 anos, as funções biomecânicas, cardior-</p><p>respiratórias e musculares sofrem redução de sua capacidade, os indivíduos co-</p><p>meçam a apresentar mais dificuldades com o sono e ficam mais sensíveis às alte-</p><p>rações de horários, ou ambientais.</p><p>Há que se considerar que, com a idade, cada um evolui diferentemente e com</p><p>ritmos diferentes. Por outro lado, é possível identificar processos de compensa-</p><p>ção que se desenvolvem para diminuir as limitações da idade. Neste caso, a expe-</p><p>riência acumulada leva à adoção de estratégias que compensam a diminuição da</p><p>capacidade física.</p><p>A variabilidade também ocorre nas organizações. Ela pode ser normal ou</p><p>incidental.</p><p>A variabilidade normal decorre do tipo de trabalho efetuado e considera as</p><p>alterações nas demandas cotidianas da organização. Já a variabilidade inciden-</p><p>tal é decorrente de erros, resultados fora dos padrões previstos e quebra de</p><p>ferramentas ou máquinas.</p><p>Parte da variabilidade normal é previsível e parcialmente controlada. São</p><p>exemplos: as variações sazonais nos volumes de produção, como o aumento de</p><p>demanda em determinada época do ano; as variações periódicas decorrentes da</p><p>natureza da produção, como o aumento da produção em função de maior dispo-</p><p>nibilidade de matéria prima; da diversidade de produtos ou serviços oferecidos,</p><p>fruto de demanda maior de clientes; e das variações nas matérias primas origi-</p><p>nadas de diferentes fornecedores. As organizações podem se preparar para lidar</p><p>com estas variações. Entretanto, sem uma devida preparação, o impacto junto</p><p>aos trabalhadores pode ser significativo, trazendo consequências negativas que</p><p>poderiam ser mitigadas.</p><p>Outra parte da variabilidade normal ou incidental da produção é aleatória e</p><p>não se podem fazer previsões. São exemplos: variações instantâneas de deman-</p><p>da, em natureza e volume; incidentes com dispositivos técnicos, quebra de ferra-</p><p>mentas, desajustes de máquinas e interrupção de energia; variações imprevisíveis</p><p>da matéria-prima e variações ambientais (como as meteorológicas ou de tráfego).</p><p>Diante do exposto, faz-se necessário compreender como estas variabilidades in-</p><p>Capítulo 14 - Abordagem ergonômica...</p><p>354</p><p>ternas e externas se refletem nos indivíduos nos contextos de trabalho. Elas in-</p><p>tegram, entre outros, os elementos que compõem a carga de trabalho, conceito</p><p>importante e complexo, tratado a seguir.</p><p>5. Carga de trabalho</p><p>Falzon e Sauvagnac (2007, p. 143) apontam a ambiguidade do termo carga,</p><p>que tanto “pode se referir ao nível de exigência de uma tarefa num dado momen-</p><p>to, ou às consequências desta tarefa”. O nível de exigência, ou constrangimento,</p><p>é definido pela tarefa e é condicionado pelas metas a serem atingidas (objetivos</p><p>organizacionais, resultados esperados em quantidade e qualidade, padrões). Já o</p><p>esforço está vinculado à atividade, ou seja, durante a realização do trabalho em</p><p>si, exigindo certo grau de mobilização do trabalhador – esforço físico, cognitivo e</p><p>psíquico empregados.</p><p>Os mesmos autores entendem que a análise da carga de trabalho consiste em</p><p>identificar os constrangimentos da tarefa e os descritores do esforço, ou seja, ela</p><p>é resultante da interação entre os requisitos impostos pela tarefa e as circunstân-</p><p>cias em que a atividade se desenvolve. As exigências físicas estão relacionadas ao</p><p>esforço físico, ao dispêndio fisiológico e biomecânico exigido pela atividade. As</p><p>exigências cognitivas se relacionam ao dispêndio mental e de aprendizagem. E as</p><p>exigências psíquicas com o dispêndio emocional, reações afetivas, sentimentos e</p><p>estados de humor exigidos ou gerados em função da atividade.</p><p>Os principais métodos para avaliação da carga física de trabalho podem ser</p><p>fisiológicos (que se baseiam na frequência cardíaca, no consumo de oxigênio, na</p><p>temperatura corporal interna em situações laborais), biomecânicos (baseados nas</p><p>avaliações de resultantes de forças em músculos e articulações, nas frequências de</p><p>movimentos, nas posturas adotadas no trabalho ou na avaliação de trabalho mus-</p><p>cular estático) e psicofísicos (baseados no nível de conforto/desconforto manifesta-</p><p>dos após o trabalho ou em avaliações de experiências anteriores com o trabalho). A</p><p>fadiga é uma consequência do esforço. É um estado consecutivo a um trabalho re-</p><p>alizado sob certas condições que se traduz em sintomas específicos e induz a uma</p><p>perda temporária e reversível da eficiência no trabalho (FALZON, 2007).</p><p>A fadiga reduz os recursos e aumenta o esforço do(a) trabalhador(a) num cír-</p><p>culo vicioso: o esforço gera fadiga, que reduz os recursos, o que aumenta o esfor-</p><p>ço, que aumenta a fadiga. Este processo não é ilimitado.</p><p>Gemma, Abrahão, Lima e Tereso</p><p>355</p><p>Constrangimentos</p><p>Margens de</p><p>manobra</p><p>Esforço</p><p>intenso?</p><p>Dé�cit</p><p>percebido?</p><p>Modos</p><p>operatórios</p><p>aprendizagem</p><p>Ruptura ética?</p><p>Recursos</p><p>Esforço</p><p>Fadiga Estresse</p><p>Burn-out</p><p>Esquema 2: Relações entre carga, estresse e burn-out</p><p>Fonte: Adaptado de Falzon (2007, p.150).</p><p>O Esquema 2 apresenta as relações entre carga de trabalho e estresse. O es-</p><p>tresse é consequência de um desequilíbrio entre o esforço e a capacidade de</p><p>recuperação do indivíduo. “É um estado dinâmico expressando desequilíbrio psi-</p><p>cofisiológico entre recursos estimados e as exigências percebidas em situações</p><p>sob fortes constrangimentos” (Falzon, 2007, p.149).</p><p>A carga de trabalho é o esforço resultante entre os constrangimentos da tare-</p><p>fa e os recursos do indivíduo, que ocorrem na execução da atividade. O esforço</p><p>pode ter como consequência a aprendizagem de modos operatórios, mas as suas</p><p>modificações podem levar à fadiga. Quando ocorre um déficit entre os recursos</p><p>estimados e os constrangimentos percebidos, o operador não dispõe mais de</p><p>modos operatórios satisfatórios em termos de desempenho ou preservação da</p><p>saúde, não tem margens de manobras, aumenta a fadiga, degrada-se a saúde,</p><p>surgindo o estresse. O estresse pode levar ao burn-out. O sujeito chega a um es-</p><p>gotamento emocional, ao esvaziamento afetivo das relações e baixa o sentimen-</p><p>to de realização profissional.</p><p>Capítulo 14 - Abordagem ergonômica...</p><p>356</p><p>6. Margem de</p><p>manobra e estratégias operatórias</p><p>Como vimos anteriormente, há uma distinção muito clara entre trabalho prescrito</p><p>(tarefa) e trabalho real (atividade) no referencial teórico da ergonomia da atividade.</p><p>No entanto, apesar de inicialmente parecer trivial, nas aulas de ergonomia,</p><p>não raramente os(as) estudantes de Engenharia, ao entrarem em contato com</p><p>tais conceitos, deduzem inicialmente que a atividade é diferente da tarefa exclu-</p><p>sivamente porque os indivíduos são diferentes. Inclusive, nas provas, costumam</p><p>usar exemplos de situações de trabalho que evidenciam esse viés. Ou seja, atri-</p><p>buem a diferença apenas aos aspectos da variabilidade interindividual. Nesse</p><p>sentido, ficam presos às questões físicas e psíquicas (mentais e emocionais) que</p><p>nos distinguem como seres humanos. Dessa forma, não se pensa que a organiza-</p><p>ção do trabalho possa ser responsável pelos modos diferenciados de fazer e obter</p><p>resultados no desempenho do trabalho e tampouco se vislumbram os aspectos</p><p>da variabilidade intraindividual, ou seja, do indivíduo consigo mesmo ao longo</p><p>das horas, dias, meses e anos de trabalho.</p><p>No entanto, conforme já discutido anteriormente no conceito de tarefa apre-</p><p>sentado, a organização do trabalho2, que é constituída pela empresa/instituição,</p><p>exerce papel fundamental na forma como executamos nosso trabalho. Ou seja,</p><p>muitos fatores de trabalho influenciam nosso raciocínio e tomada de decisões,</p><p>nosso comportamento, nossas ações, nossas posturas e inclusive nossos acertos e</p><p>erros, pois sabe-se que o ambiente organizacional influencia a percepção do con-</p><p>texto, podendo ainda mascarar informações importantes, dificultando o trabalho</p><p>(ABRAHÃO et al., 2009).</p><p>Muitos são os fatores de trabalho que nos influenciam: ambiência física, jorna-</p><p>da de trabalho, hierarquia e formas de comando, presença ou ausência de outros</p><p>trabalhadores ligados direta ou indiretamente, dispositivos técnicos, instrumentos</p><p>(físicos ou intelectuais, como o uso de sistemas informatizados), qualidade dos ma-</p><p>teriais e insumos, relação com clientes (no caso de prestação de serviço), tempo</p><p>alocado para a realização do trabalho, critérios de produtividade e qualidade, além</p><p>do salário ou ganho financeiro e formas de reconhecimento, avaliação de desem-</p><p>penho, possibilidade de aprimoramento e ascensão no trabalho, entre outros.</p><p>É perceptível, a partir do exposto, que muitos são os fatores e aspectos que</p><p>modulam a atividade humana. Pode-se pensar, a título ilustrativo, no trabalho</p><p>2 - Ver capítulo 2 deste livro que trata da organização do trabalho de forma aprofundada.</p><p>Gemma, Abrahão, Lima e Tereso</p><p>357</p><p>de uma costureira, imaginar que ela está sentada diante de sua máquina de cos-</p><p>tura, daquelas mais tradicionais. O que faz com que ela adote uma determinada</p><p>postura física? É somente a sua constituição biológica, idade, sexo, capacidades,</p><p>tempo de experiência? Ou será que a máquina, (modelo, formato, tamanho),</p><p>condição da agulha (pontiaguda ou rombuda), tipo de tecido (fino, grosso, liso,</p><p>áspero), linha (fina, grossa, que arrebenta por problemas de qualidade), o tipo</p><p>de ponto a costurar e a distância visual que precisa manter para enxergar a cos-</p><p>tura interferem na adoção da postura? A resposta é afirmativa, ou seja, a pos-</p><p>tura física adotada pela costureira é um compromisso que ela estabelece entre</p><p>estas variáveis e outras, como a percepção que ela tem das condições de uso</p><p>da máquina (o ruído que o motor emite, sensação de vibrações diferenciadas,</p><p>entre outros) que interferem no modo como ela trabalha e se vai se aproximar</p><p>mais ou menos do foco da costura (inclinando o tronco a frente, p. ex., mesmo</p><p>quando sente dor nas costas).</p><p>Figura 5: Costureira em atividade.</p><p>Fonte: Pexels imagens.</p><p>Na própria história da ergonomia muita ênfase tem sido dada para a questão</p><p>das posturas, dos movimentos e das ações que se empreendem no campo físico</p><p>do trabalho. As posturas estáticas e dinâmicas expressam visualmente os gestos e</p><p>ações dos trabalhadores, facilitando inclusive os processos de avaliação da carga</p><p>física de trabalho (força, posturas, gestos e movimentos). Aparentemente, pare-</p><p>ce mais factível avaliar a carga física do que avaliar a componente cognitiva do</p><p>Capítulo 14 - Abordagem ergonômica...</p><p>358</p><p>trabalho (percepção, análise da situação, tomada de decisão, competência, entre</p><p>outros), ou ainda os aspectos psíquicos (desejos, sentimentos, emoções, sofri-</p><p>mento e prazer). Estes últimos, inclusive, acabam sendo alvo de outras pesquisas</p><p>e campos do conhecimento mais ligados à psicologia do trabalho (CLOT, 2010) e</p><p>à psicodinâmica do trabalho (DEJOURS, 1992; DEJOURS et al., 2010) e são tratados</p><p>neste livro em capítulo exclusivo.</p><p>Portanto, reduzir a análise do trabalho apenas ao nível dos elementos visíveis</p><p>resulta em uma redução das possibilidades de apreensão do que é essencial para</p><p>conhecer e melhor compreender o trabalho dos operadores, bem como para po-</p><p>der implementar melhorias das condições de trabalho no sentido da promoção da</p><p>saúde e da segurança, para além da produtividade. Como a ergonomia da atividade</p><p>adota como referências a noção de variabilidade, a distinção entre tarefa e ativida-</p><p>de, e a de regulação das ações associada ao reconhecimento da competência dos</p><p>trabalhadores, é necessário que os responsáveis por projetar e/ou adaptar situações</p><p>de trabalho – muitas vezes, engenheiros(as) – o façam por meio de conhecimentos</p><p>mais amplos sobre o trabalho e sobre as capacidades e limites humanos.</p><p>A partir do exposto, pode-se inferir que estratégias precisam ser adotadas pe-</p><p>los trabalhadores para enfrentar os desafios que a realidade de trabalho impõe.</p><p>As chamadas estratégias operatórias são necessárias pois, afinal, trabalhar nunca</p><p>é simplesmente realizar o que já foi pré-determinado3, é sempre necessário en-</p><p>gajar-se para colocar a inteligência e a experiência a serviço da construção de</p><p>soluções. Essas soluções visam a manter um compromisso – nem sempre muito</p><p>fácil –, entre a segurança, a produtividade e a própria saúde.</p><p>O conceito de estratégia operatória leva em conta que o sujeito ordena um</p><p>conjunto de passos por meio do raciocínio para a resolução do problema formula-</p><p>do, criando assim as condições para sua ação. Esse processo que o(a) operador(a)</p><p>desenvolve permite organizar suas competências para a resolução das questões</p><p>que a tarefa lhe impõe, levando simultaneamente em consideração seus limites</p><p>pessoais e suas motivações.</p><p>3 - Os operadores frequentemente sabem que se apenas seguirem as regras e as prescrições (operação padrão), o</p><p>trabalho não acontecerá a contento. Dito de outra forma, diante de tanta variabilidade das situações de trabalho, se</p><p>eles fizerem tudo de acordo com os manuais, o trabalho perde em eficácia e eficiência, sem contar com os imprevis-</p><p>tos que não constam dos manuais, pois estes, por melhores e mais completos que sejam, não dão conta de abarcar a</p><p>realidade. A chamada “operação padrão” é usada nos movimentos de resistência dos trabalhadores – como no caso</p><p>das greves –, explicitando bem esta questão, ou seja, quando os operadores resolvem cumprir todas as determina-</p><p>ções sem nenhuma flexibilidade, tornando assim, paradoxalmente, o trabalho moroso e ineficiente.</p><p>Gemma, Abrahão, Lima e Tereso</p><p>359</p><p>Tal estratégia operatória envolve obviamente aspectos cognitivos4 (percepção,</p><p>atenção, memória e raciocínio), bem como da capacidade de solucionar problemas</p><p>no tempo requerido por meio de ações. A este conjunto de ações dá-se o nome de</p><p>modo operatório. Dessa forma pode-se dizer que os modos operatórios são:</p><p>[...] adotados pelos trabalhadores como resultado de um compro-</p><p>misso que articula os objetivos exigidos, meios de trabalho, esta-</p><p>do interno e os resultados produzidos ou, ao menos, a informação</p><p>de que dispõe o trabalhador sobre eles”, ou ainda, “o conjunto de</p><p>ações e operações que os sujeitos adotam em função das exigên-</p><p>cias da tarefa e de suas competências (ABRAHÃO et al., 2009, p.</p><p>167, grifos nossos).</p><p>Se o objetivo da ergonomia</p><p>é compreender o que os trabalhadores fazem e</p><p>como e por que fazem, esta compreensão passa necessariamente pela compre-</p><p>ensão das estratégias e modos operatórios. Analisá-los permite identificar as situa-</p><p>ções de trabalho que possam favorecer ou até mesmo induzir a erros, insucessos,</p><p>incidentes e até acidentes nos ambientes de trabalho. Em outras palavras, pode</p><p>ser bastante útil para os engenheiros(as) reconhecer a existência dos diferentes</p><p>modos operatórios e, sempre que possível, projetar e criar situações de trabalho</p><p>flexíveis, que permitam a constituição de formas diferentes de execução do tra-</p><p>balho, favorecendo a margem de manobra por parte dos operadores, conceito</p><p>este que será melhor explicado, logo a seguir. Na obra de Alain Wisner, autor re-</p><p>nomado na ergonomia da atividade, é possível visualizar o papel e a importância</p><p>dos engenheiros(as), pois, na visão por ele colocada, toda questão de ergonomia</p><p>desemboca na Engenharia, ou seja, dela depende. Há um capítulo neste livro so-</p><p>bre projeto de trabalho em que essas questões são elucidadas.</p><p>Alguns exemplos de mudança do modo operatório pelos agricultores, na pro-</p><p>dução orgânica de hortaliças, são citados por Gemma et al. (2010), tanto para</p><p>diminuir esforço ou posturas incômodas, quanto para melhorar a eficiência da</p><p>atividade. Ainda usando a agricultura como foco de pesquisa em ergonomia da</p><p>atividade, os pesquisadores afirmam que:</p><p>A observação da atividade dos agricultores revelou as estratégias</p><p>para fazer frente às dificuldades oriundas da falta de tecnologia</p><p>4 - Ver capítulo 15 deste livro que trata de cognição e ação situada.</p><p>Capítulo 14 - Abordagem ergonômica...</p><p>360</p><p>apropriada ao cultivo orgânico, tais como o uso de ganchos adap-</p><p>tados pelos próprios trabalhadores para aproximar os galhos das</p><p>árvores. Foi possível interpretar o trabalho do raleio de frutas, que</p><p>antecede o ensacamento, na forma de um fluxograma das decisões</p><p>que o agricultor tomava no decorrer da atividade, o qual comporta-</p><p>va várias subtarefas e ações específicas que revelam uma complexi-</p><p>dade não reconhecida, inicialmente, nem pelos próprios agriculto-</p><p>res (ABRAHÃO et al., 2015, p. 90).</p><p>É preciso reconhecer um ponto fundamental; os elementos determinantes</p><p>da atividade de trabalho, que foram detalhados anteriormente, podem favorecer</p><p>ou dificultar a realização de modos diferentes de trabalho. Em outras palavras,</p><p>os constrangimentos podem ser maiores ou menores nas diferentes situações de</p><p>trabalho nos variados contextos. Sabe-se que as organizações de trabalho muito</p><p>rígidas podem trazer impactos negativos, ou desfavoráveis, como já citado, para</p><p>as pessoas, como insatisfação, frustração, fadiga e adoecimentos (GUÉRIN et al.,</p><p>2001; ABRAHÃO et al., 2009). Neste livro há conteúdos exclusivos sobre diferentes</p><p>aspectos da relação saúde e trabalho.</p><p>Portanto, faz-se importante a noção de margem de manobra adotada na ergo-</p><p>nomia da atividade, ou seja, de que condições (externas e internas) o operador</p><p>dispõe para, conforme a situação de trabalho, atingir satisfatoriamente os objeti-</p><p>vos (de produção e individuais). Nos contextos de trabalho, observa-se que ope-</p><p>radores tentam antecipar eventos e planejar o desenvolvimento posterior de sua</p><p>atividade. Estas antecipações podem ser de curto prazo (o próximo produto ou</p><p>serviço acabado) ou ainda de maior prazo (um dia, uma semana...). Desnecessário</p><p>dizer que este planejamento é evidentemente refeito a partir dos eventos que</p><p>surgem. Há menção sobre a margem de manobra em Wisner (2004), mostrando</p><p>sua importância no contexto de trabalho, na medida em que cada problema pre-</p><p>cisa ser constituído por operadores, mesmo naqueles ambientes mais restritivos,</p><p>em que os dispositivos técnicos assumem grande importância como indutores</p><p>do comportamento de operadores (máquinas que produzem em série produtos</p><p>idênticos, ou nas linhas de montagem). O autor destaca que mesmo nesses am-</p><p>bientes é possível “notar comportamentos diversos entre os operadores e em um</p><p>mesmo operador, de acordo com seu grau de aprendizagem, a hora da jornada, o</p><p>estado de saúde ou o seu estado físico e mental (WISNER, 2004, p. 38).</p><p>Ainda na mesma obra, esse autor explicita que um local de trabalho em fábri-</p><p>ca, por exemplo, pode permitir maior margem de manobra se tiver um nível de</p><p>Gemma, Abrahão, Lima e Tereso</p><p>361</p><p>ruído que possibilite a comunicação entre os operadores, se o leiaute permitir</p><p>que eles possam se ver e trocar informações, se houver a possibilidade de trocar</p><p>de posto de trabalho, de modificar a sequência de ações e de escolher o período</p><p>para realizar as pausas (WISNER, 2004, p. 48).</p><p>Não se trata de achar que pode haver uma prescrição bem elaborada e que</p><p>estaria isenta de transformação por parte dos operadores, como muitas vezes se</p><p>observa em sala de aula, quando há questionamento sobre as causas dos dife-</p><p>rentes comportamentos e ações dos(das) operadores(as). Constata-se certa frus-</p><p>tração dos futuros engenheiros(as) ao perceberem que, por mais completa e rica</p><p>que seja a prescrição feita para o trabalho, ela nunca vai dar conta da realidade,</p><p>justamente porque o real é aquilo que resiste ao nosso conhecimento, que traz ele-</p><p>mentos de novidade que colocam em xeque o que já sabemos e que, portanto,</p><p>demanda e instiga a pensar saídas.</p><p>Destaca-se aqui a importância dos(das) engenheiros(as) e demais pessoas</p><p>responsáveis pela organização do trabalho em construir solução de compromisso</p><p>com os envolvidos nas diferentes situações de trabalho, para estabelecer o que</p><p>pode, ou não, ser flexibilizado em função do que esse coletivo pode enunciar.</p><p>Trabalhar (tanto para engenheiros/as quanto para operadores/as) não é simples-</p><p>mente cumprir regras e usar os recursos disponíveis da maneira prevista, é tam-</p><p>bém transgredir, usar a inteligência astuciosa para resolver os problemas que se</p><p>apresentam continuamente no trabalho. Isso implica saber se relacionar com os</p><p>demais, saber comunicar e saber negociar, em um processo contínuo de aprendi-</p><p>zagem e desenvolvimento de capacidades.</p><p>7. Considerações finais</p><p>Os temas tratados neste capítulo propiciam uma visão abrangente, realista e</p><p>não reducionista do trabalho humano, a partir de sua expressão viva e dinâmica.</p><p>Autorizam uma visão integrada das pessoas em situação de trabalho, que, utili-</p><p>zando de forma consciente seus recursos físicos, cognitivos e emocionais, bus-</p><p>cam responder às demandas da tarefa e também às suas necessidades pessoais</p><p>de saúde física e mental e de ganho de competências.</p><p>Finalmente, a compreensão dos conceitos aqui apresentados, que estruturam</p><p>a ergonomia da atividade, é um passo fundamental no aprendizado dos métodos</p><p>de análise ergonômica do trabalho, tema de outros capítulos nesta seção.</p><p>Capítulo 14 - Abordagem ergonômica...</p><p>362</p><p>Referências</p><p>Gemma, Abrahão, Lima e Tereso</p><p>ABRAHÃO, R. F; TERESO, M. J. A.; GEMMA, S. F. B. A análise ergonômica do trabalho</p><p>(AET) aplicada ao trabalho na agricultura: experiências e reflexões. Revista Brasi-</p><p>leira de Saúde Ocupacional, São Paulo, v. 40, n. 131, p. 88-97, 2015.</p><p>ABRAHÃO, J. et al. Introdução à ergonomia: da prática à teoria. São Paulo: Blücher, 2009.</p><p>CLOT, Y. Trabalho e poder de agir. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010.</p><p>DEJOURS, C. A loucura do trabalho: Estudo de psicopatologia do trabalho. 6. ed.</p><p>São Paulo: Cortez, 2018.</p><p>DEJOURS, C.; ABDOUCHELI, E.; JAYET, C. Psicodinâmica do trabalho: contribuições</p><p>da escola dejouriana à análise da relação prazer, sofrimento e trabalho. São Pau-</p><p>lo: Atlas, 2010.</p><p>FALZON, P. Ergonomia. São Paulo: Blücher, 2007.</p><p>FALZON, P.; SAUVAGNAC, C. Carga de trabalho e estresse. In: FALZON, P. Ergono-</p><p>mia. São Paulo: Editora Blücher, 2007. p. 141-154.</p><p>FAVERGE, J.-M.; LEPLAT, S.; GUIGUET, B. L›adaptation de la machine à l›homme, Pa-</p><p>ris: PUF, 1958</p><p>GEMMA, S. F. B.; TERESO, M. J. A.; ABRAHÃO, R. F. Ergonomia e complexidade: o</p><p>tra balho do gestor na agricultura orgânica na região de Campinas - SP. Ciência</p><p>Rural, v. 40, n. 2, p. 318-324, 2010.</p><p>GUÉRIN, E. et al. A. Compreender</p><p>o trabalho para transformá-lo: a prática da ergo-</p><p>nomia. São Paulo: Blücher, 2001.</p><p>HOC, J. M. Para uma cooperação homem-máquina em situação dinâmica. In: FAL-</p><p>ZON, P. Ergonomia. São Paulo: Blücher, 2007.</p><p>IIDA, I. Ergonomia: projeto e produção. 2. ed. São Paulo: Edgard Blücher, 2005.</p><p>OMBREDANE, A.; FAVERGE, J.-M. L’analyse du travail. Facteur d’économie humaine</p><p>et de productivité. Paris: PUF, 1955.</p><p>WISNER, A. Questões epistemológicas em ergonomia e em análise do trabalho. In:</p><p>DANIELLOU, F. (Coord.). A ergonomia em busca de seus princípios: debates episte-</p><p>mológicos. São Paulo: Edgar Blücher, 2004. p. 29-56.</p><p>363</p><p>Cognição e</p><p>trabalho</p><p>Renata Bastos Ferreira Antipoff</p><p>Raquel Guimarães Soares</p><p>15</p>

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