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<p>MARIA CRISTINA GRIFFA & JOSÉ EDUARDO MORENO CHAVES PARA A PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO VIDA PRÉ-NATAL ETAPAS DA INFÂNCIA TOMO 1 aulinas</p><p>CHAVES PARA A PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO</p><p>MARÍA CRISTINA GRIFFA Professora de Filosofia e Psicologia; diretora do Departamento de Psicopedagogia do Instituto do Professorado do Conselho Superior de Educação Católica; professora titular de Psicologia Geral e Psicologia da Personalidade na Universidade Católica Argentina JOSÉ EDUARDO MORENO Professor de Psicologia Evolutiva; pesquisador na área de Psicologia do Desenvolvimento no Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas; diretor do Instituto de Pesquisas Psicoantropológicas da Universidade de Salvador (Argentina) CHAVES PARA A PSICOLOGIA DO VIDA PRÉ-NATAL ETAPAS DA INFÂNCIA TOMO I aulinas</p><p>Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Griffa, Maria Cristina Chaves para a psicologia do desenvolvimento : vida pré-natal, etapas da infância / Maria Cristina Griffa, Eduardo Moreno ; tradução de Vera - 7. ed. - São Paulo : Paulinas, Título original: Claves para la comprensión de la psicologia de las edades. Bibliografia. ISBN 978-85-356-3210-1 1. Crianças - Desenvolvimento 2. Psicologia do desenvolvimento 3. Psicologia infantil I. Moreno, José Eduardo. II. Título. 12-06118 CDD-155 Índice para catálogo 1. Crianças : Psicologia do desenvolvimento 155 edição 2012 Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, in- cluindo fotocópia e ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora. Direitos reservados. Paulinas Rua Dona Inácia Uchoa, 62 04110-020 - São Paulo - SP (Brasil) Tel.: (11) 2125-3500 http://www.paulinas.org.br - editora@paulinas.com.br Telemarketing e SAC: 0800-7010081 Pia Sociedade Filhas de São Paulo - São Paulo, 2001</p><p>PRÓLOGO ESTA OBRA em dois tomos é dirigida a estudantes de Psi- cologia e também àqueles que se especializam em outras áreas, mas têm conteúdos psicológicos incluídos em seus programas de estudo. Do mesmo modo, é dirigida àqueles que, não obstante os diferentes papéis que possam ocupar - como ser pai, mãe ou filho, ser professor, reitor, médico, engenheiro ou psicólogo - são capazes de erguer a cabeça sobre o fazer cotidiano e se perguntar: quem sou? O que acontece comigo? Qual é senti- do deste êxito ou deste fracasso? Por que morrer? O que acon- tece aos que me rodeiam? Por que estou distante de meus fi- lhos? Por que este adolescente parece não me escutar? Por que este ancião tem um eterno sorriso apesar de, aparentemente, lhe faltarem tantas coisas...? Milhares de perguntas eternas como essas amontoaram-se também em nossa mente. Talvez tenham surgido respostas, mas não todas as que esperávamos. Por isso mesmo, nosso espírito permanece aberto, inquieto, já que a última página desta publi- cação é apenas uma a mais naquela que em outro tempo e lugar escreveremos; talvez uma inquietude, uma resposta para logo trocá-la por outra. Parafraseando homem é um ser em caminho, um eterno viajante, um eterno inquisidor do mistério da vida, do mundo que O rodeia e daquele que o transcende. Quando nos propusemos responder ao compromisso de escrever um texto sobre a psicologia das idades, buscamos um ponto do qual pudéssemos visualizar desenvolvimento huma- no, ou seja, um farol que guiasse e configurasse a nossa meta. Partimos, assim, da noção de que nos permitiu com- 1 JASPERS, K. La filosofía. México, FCE, 1978. 2 Na noção de epigênese, seguimos a posição de E. Erikson, que desenvolvere- mos no primeiro capítulo (cf. cap. pp. 9-10). 5</p><p>preender o homem como o desenvolvimento de um "projeto básico em triplo sentido": como o desdobramento das partes, tendo cada uma delas seu momento de eclosão; como o de- senvolvimento de potencialidades destinadas a uma interação significativa com pessoas e instituições; e, finalmente, como um projeto de vida, uma busca de sentido que nos singulariza, que constitui um roteiro de vicissitudes únicas e misteriosas, que vão desde a "seleção" dos genes até o "livre" entrelaçamento das histórias. Essas histórias constituem cenas de um drama uni- seja na "eleição" de uma palavra, de uma enfermidade, com quem partilhar determinado degrau da vida, ou diante de quem morrer. Tudo isso é expressão do projeto vital, porque ele "fala" de múltiplas formas, às vezes apesar de nós, de tal modo que desde a concepção até a morte somos a suces- são de um "projeto básico", apropriado e singular. Assim como buscamos um ponto de encrave para consi- derar desenvolvimento da personalidade humana, mesmo fizemos com cada um dos capítulos que constituem esta obra. Com essa postura, nos afastamos do objetivo de descrever exaus- tivamente cada etapa, tarefa que tem sido realizada por outros colegas, e passamos a buscar uma "chave" de interpretação para cada um dos momentos significativos do desenvolvimento epigenético. Conseqüentemente, analisamos começo da vida no seio materno (capítulo I) e os fatores intervenientes no de- senvolvimento da personalidade: a autodeterminação e jogo mútuo de forças, dado ou a herança, o adquirido ou apro- priado. Enfatizamos esse momento no qual tudo se inicia, ou seja, instante da concepção, momento em que, a partir dos aportes de ambos os progenitores, misteriosamente irrompe uma nova pessoa, que se move, tem necessidades, sofre e sente prazer. O nascimento e os primeiros 18 meses de vida (capítulo II) constituem a matriz do eu e das relações objetais. Nesse pe- ríodo enfatizamos O vínculo mãe-filho e o significado da mater- nidade. Tratamos tema com maior extensão porque conside- ramos que sua vigência é central nesse estágio, ainda que sua influência se prolongue no tempo. O mesmo sucede em outros 6</p><p>capítulos com sua temática-chave, de modo que a idéia-chave de cada capítulo é capaz de justificar o desenvolvimento de uma temática em um período para constituir uma totalidade funcional e viva. A primeira infância, desde os 18 meses até os 3 anos (ca- pítulo III), está delineada em torno de uma idéia-força, que é desenvolvimento da função simbólica como uma das caracte- rísticas do psiquismo e, no final, do psiquismo humano. Na segunda infância, dos 3 aos 5 anos (capítulo IV), aconte- ce a ruptura da relação mãe-filho, que permite a visão do pai. No entanto, com surgimento do pai e com rompimento da relação simbiótica, instaura-se a lei, e a criança transpõe a porta para a sociedade. Desse ponto é que analisamos a função da paternida- de, triângulo edípico e valor da fraternidade. É importante enfatizar que a resolução desse período é o pilar da identidade do ser humano e, conseqüentemente, de sua identidade sexual. Na idade escolar, entre os 6 e os 12 anos (capítulo V), realiza-se a passagem da família para a escola, um momento fundamental no processo de socialização. Nesse estágio, o com- plexo de Édipo entra em latência, permitindo à criança orientar- se para outros interesses. Desse ponto de vista é que tratamos as características, nesse período, do desenvolvimento intelectual, social, moral e religioso. São cinco capítulos constituindo uma unidade totalizadora que dá conta do desenvolvimento da vida no seio materno e durante o transcurso da infância. No segundo tomo, consideramos os outros períodos vitais, que vão desde a adolescência (capítulo VI) até a senectude, ou seja, o período da velhice (capítulo VII). E ainda propomos, no final (capítulo VIII), uma reflexão filosófica que fundamenta dis- curso psicológico e explicita o balizamento teórico que utiliza- mos para analisar as diferentes etapas do ciclo vital humano. Por último, não podemos deixar de explicitar nossas con- siderações sobre como as ciências, hoje, a despeito de seus di- ferentes métodos e objetos, estão convocadas para um diálogo fecundo, que rompa falsas atitudes onipotentes e estéreis, ou 7</p><p>seja: como estão sendo chamadas a constituir uma "rede" de conhecimentos. Por isso, atendemos não só as respostas psico- lógicas que nos pareceram mais ricas e significativas para ilumi- nar cada uma das questões que cada período delineava, mas também as outras ciências, como a biologia (genética, embrio- logia, em geral), a sociologia, a antropologia cultural, a tica, a lógica, a filosofia, entre outras. Estimamos que esta últi- ma merece um tratamento especial; por isso, enfocamos a psi- cologia como uma ciência que supõe uma visão antropológica, de tal modo que toda afirmação no campo psicológico se fun- damenta em um pressuposto filosófico. Agora, só nos resta agradecer às instituições e às pessoas que nos brindaram com seu interesse e seu apoio, como a Pontificia Universidad Católica Argentina (UCA) e Instituto de Profesorado del Consejo Superior de Educación Católica (CONSUDEC); o dou- tor Luis Chiozza, diretor do Centro Weizsaecker de Consulta Médica e diretor geral do Instituto de Docencia e Investigación de la Fundación Luis Chiozza; doutor Horacio J. A. Rimoldi, diretor do Centro Interdisciplinario de Investigaciones en Psicología Matemática y Experimental (CIIPME-CONICET). Queremos agradecer, ainda, a Martha Giuliano de Iglesia e à Sociedade Brasileira de Logoterapia (SOBRAL) pela divulga- ção de nossos trabalhos no Brasil, assim como por seu perma- nente estímulo para que se realizasse a presente tradução de nossa obra para público brasileiro. Também não podemos deixar de reconhecer, neste traba- as marcas daqueles que estiveram ao nosso lado com a pala- vra e afeto, assim como os ensinamentos sempre vivos de nos- SOS professores, as perguntas e inquietações de nossos alunos, e a contribuição de nossos pacientes que, a partir de suas dificulda- des, nos permitiram "viver" várias vezes os conflitos das diversas idades que configuram o drama da existência humana. Buenos Aires, março de 2001. María Cristina Griffa José Eduardo Moreno 8</p><p>CAPÍTULO I O INÍCIO DA VIDA VIDA NO VENTRE MATERNO FATORES DO DESENVOLVIMENTO INTRODUÇÃO Quando nos perguntamos a respeito do início da vida humana, abordamos um tema vital, perpassado por respostas provenientes de diferentes disciplinas científicas e visões de mundo que no decorrer dos tempos e das conquistas culturais partilham esse ponto de confluência. Da mesma forma, quando nos perguntamos sobre o desenvolvimento do embrião e do feto no ventre materno, diferentes concepções se fazem presentes. Dentre estas, a de Erik H. Erikson é especialmente esclarecedora: "Sempre que tentamos compreender o crescimento, vale a pena recordar o princípio epigenético que é derivado do crescimento de indivíduos in utero. Algo generalizado, esse princípio afirma que tudo que cresce tem um plano básico e é a partir desse plano básico que se erguem as partes ou peças componentes, tendo cada uma delas o seu tempo de ascensão especial, até que todas tenham sido levantadas para formar então um todo em funcionamento. Isto é verdade, obviamente, para o desen- volvimento fetal, em que cada peça do organismo tem o seu momento crítico de crescimento ou de perigo de 1 ERIKSON, E. H. Identidade, juventude e crise. 2. ed. Rio de Janeiro, Guanabara, 1987. pp. 91-92. 9</p><p>Capítulo O princípio epigenético, como veremos, não só torna possível o desenvolvimento fetal, como contribui para o pró- prio desabrochar da personalidade do sujeito: ....mas também aqui é importante compreender que, na de suas ex- periências mais pessoais, pode-se confiar em que a criança sau- dável, dado um momento razoável de orientação adequada, obe- decerá às leis internas do desenvolvimento, leis essas que criam uma sucessão de potencialidades para a interação significativa com aquelas pessoas que a abordam e lhe respondem e aquelas instituições que estão a postos para ela. Conquanto essa intera- ção varie de cultura para cultura, ela deve manter-se no apropriado e na que governa toda a epigênese. Portanto, pode-se dizer que a personalidade se de- senvolve de acordo com uma escala predeterminada na pronti- dão do organismo humano para ser impelido na direção de um círculo cada vez mais amplo de indivíduos e instituições signifi- cantes, ao mesmo tempo que está cônscio da existência desse círculo e pronto para a interação com O princípio epigenético pressupõe, portanto, um plano de desenvolvimento do ser vivo - um plano de construção que precede o ser vivo, mas que é cumprido por este mesmo sem "ser conhecido", de modo que cada parte surge no mo- mento oportuno, até emergir a totalidade viva. De forma se- melhante, a personalidade constitui-se em uma inter-relação: por um lado, daquilo que é "dado", tanto leis de desenvolvi- mento quanto potencialidades; por outro, com O "adquirido" de diferentes maneiras, começando do vínculo com os pais, educadores, instituições e com a cultura em sua totalidade. Por fim, com a "autoposse" e a "autodeterminação", indiví- duo torna livremente seu O que foi recebido, materializando-o, ou seja, tornando-o próprio. Cria-se assim um círculo interati- cultura-indivíduo que permite crescimento e o desenvol- vimento mútuos. 2 ERIKSON, E. H. Identidade, juventude e crise. 2. ed. Rio de Janeiro, Guanabara, 1987. p. 92. 10</p><p>o início da vida / Vida no ventre materno / Fatores do desenvolvimento VIDA PRÉ-NATAL Algumas crenças comuns, posições filosóficas e mesmo tratados, cursos e programas de psicologia evolutiva conside- ram o nascimento o primeiro instante do desenvolvimento da vida humana. Certos pensadores, porém, afirmam que a vida humana tem seu verdadeiro início na fecundação, ou seja, na união dos gametas (o espermatozóide paterno e o óvulo mater- no). Esse ponto de vista não permite sustentar a existência de etapas pré-humanas no desenvolvimento humano. Assim, o em- brião humano não é anteriormente um animal ou qualquer ou- tro tipo de ser, mas todo o seu desenvolvimento ocorre desde o início sob a forma humana. Contudo, muitas correntes psicoló- gicas influenciadas pelo afirmam a existência de estágios pré-humanos na ontogênese da personalidade, além de suporem uma evolução das espécies anterior ao aparecimento do homem. Para tais correntes, a ontogênese de cada ser huma- no reproduz a filogênese, isto é, a evolução da espécie humana. Desse modo, o novo ser no ventre materno tomaria sucessiva- mente as formas de protozoário, peixe, réptil, mamífero, até chegar a ser um indivíduo humano. Ao contrário dessas teorias, afirmamos que a vida no ven- tre materno é uma autêntica vida humana, que se desenvolve não só em termos anatômicos e fisiológicos, mas também psí- quicos. Por ser inconsciente, essa vida psíquica pré-natal é ina- ceitável para aqueles que identificam vida anímica com vida consciente. Não obstante, já na Antigüidade, judeus, gregos e egípcios fizeram referência à vida pré-natal, aos movimentos do feto, à sua alimentação e, portanto, à existência de sua alma. Nessa mesma linha de pensamento inscrevem-se a tradição medieval e, na atualidade, cientistas de diferentes áreas, os quais consideram que a partir da fecundação já existe uma nova rea- lidade biológica distinta da materna, com todas as determina-</p><p>Capítulo ções hereditárias e uma individualidade biológica. Portanto, na concepção origina-se uma natureza humana concreta, isto é, uma pessoa. A fecundação Um novo ser começa com a fecundação. No momento em que um espermatozóide penetra no óvulo, forma-se um ovo humano ou zigoto, célula a partir da qual se desenvolverá uma nova pessoa. Todo o potencial desse novo ser concentra-se nes- sa célula, a qual, uma vez formada, dará início à sua divisão e multiplicação, isto é, ao "milagre" do crescimento. A fertilização ocorre nas trompas uterinas. O encontro do óvulo com o espermatozóide só é possível durante um período muito limitado. Os espermatozóides devem alcançar o óvulo quando este começa sua viagem pela trompa. Se isso não acon- tecer, o óvulo vai perdendo vitalidade e morre antes de entrar no útero. Os espermatozóides, por sua vez, vêm de uma longa via- gem, impulsionados pelas caudas, e recebem ajuda dos movi- mentos uterinos para chegar às trompas e fecundar o óvulo. Das centenas de milhões de espermatozóides de uma ejaculação normal, apenas alguns milhares penetram nas trompas e alguns poucos alcançam as imediações do óvulo. Antes de introduzir- se, o espermatozóide reconhece o óvulo como pertencente à sua mesma espécie. Esse dinamismo é necessário para que pos- sa ocorrer a penetração. Além do reconhecimento, há também uma atração mú- O óvulo não é um protagonista passivo no ato da fecunda- ção; ele libera substâncias químicas que atraem os espermato- zóides, e estes liberam substâncias que atraem o óvulo. Assim que um deles atravessa a grossa membrana que rodeia o óvulo, fecundando-o, ela se torna impermeável, impedindo a entrada de outros espermatozóides. 12</p><p>início da vida / Vida no ventre materno / Fatores do desenvolvimento A cabeça e colo do espermatozóide são os elementos que penetram no óvulo, pois em geral a cauda desprende-se antes desse momento. Período germinal ou fase zigótica - a implantação ou nidificação Uma vez formado o ovo ou zigoto tem início o processo de reprodução celular (mitoses sucessivas). Cerca de 24 horas depois da concepção, o zigoto divide-se em duas células. Em seguida, estas convertem-se em quatro, depois em oito e assim sucessivamente, iniciando-se o crescimento mais rápido de O ciclo vital humano (processo de segmentação). Na semana da fecundação, novo ser já tem mais de uma centena de células. Ao mesmo tempo que se divide e cresce, o ovo viaja pela trom- pa uterina até chegar ao útero antes de completar uma semana. Como resultado da reprodução celular, forma-se uma esfera oca (blastocisto), cujas células internas logo darão lugar ao embrião, enquanto as externas formarão a placenta. O blastocisto flutua livremente no útero até que, entre sete e dez dias após a fecundação, adere às paredes deste, que estão pre- paradas para recebê-lo e alimentá-lo. Essa parede ou revesti- mento uterino está mais grossa e com o abastecimento aumentado. O ovo corrói a parede uterina por meio de suas secreções (fermentos histolíticos) e "cava" um nicho no qual se aninha e implanta o novo ser. Mais tarde, desenvolve prolongamentos que, como raízes, absorvem o sangue dos vasos Quando o ovo está implantado na mucosa uterina, a vasculari- zação dessa área aumenta, formando-se volumosas cavidades especialmente nas zonas próximas da implantação. A "ferida" causada pela implantação cicatriza imediata- mente, e o ovo fica totalmente cercado pelas células uterinas. A implantação termina cerca de 12 ou 13 dias depois da fe- cundação. 13</p><p>Capítulo I Como podemos observar, os processos de nidação e de absorção de substâncias alimentícias da mãe destacam papel ativo, o ato "agressivo" do fecundado em sua luta pela SO- brevivência. A implantação é um processo difícil, no qual 50% ou mais dos zigotos fracassam, em geral porque são anormais.4 Período embrionário Cerca de 14 dias depois da fecundação tem início pro- cesso de formação da placenta. A capa externa do blastocisto transforma-se em córion, membrana protetora que, com os teci- dos uterinos, formará a placenta. Esta possibilita o intercâmbio entre a mãe e o filho e cumpre múltiplas funções: permite a passagem de substâncias nutritivas; age como órgão de excreção ao facilitar a saída dos catabolitos ou resíduos do metabolismo do pequeno ser; é o órgão respiratório no qual se produz a oxigenação do sangue fetal e, além disso, age como uma glân- dula de secreção interna produtora de hormônios. O cordão umbilical, que se forma nesse período, faz a comunicação entre embrião e a placenta, em meio à qual se implanta. Forma-se o saco amniótico, cheio de líquido, que envol- ve e protege embrião, amortecendo golpes e pressões. O embrião constrói, junto à sua mãe, um meio apropria- do para crescer e goza de uma certa autonomia, com grande intercâmbio recíproco. Cabe ressaltar que a contribuição nutri- tiva da mãe chega à placenta e intercâmbio ocorre sem que o sangue materno se mescle com o do novo ser. 4 ROBERTS, C.J. & LOWE, C. R. Where have all the conceptions gone? Lancet, 1975. pp. 14</p><p>início da vida / Vida no ventre materno / Fatores do desenvolvimento A citada autonomia nesse período firma-se com desen- volvimento do coração, que começa a bater no primeiro mês de vida, impulsionando o sangue pela rede circulatória embrioná- ria e permitindo que seja oxigenado na placenta. Ao mesmo tempo que funciona, coração continua a modificar sua estru- tura e a crescer. Ao fim de dois meses, todos os órgãos já se originaram e o embrião tem traços reconhecíveis. É esse o período formativo desses órgãos, que começam lentamente a agir em estreita rela- ção com a atividade placentária. Por volta de oito ou nove semanas, com a formação bási- ca dos órgãos, exceto os sexuais, e com o aparecimento das primeiras células ósseas, o embrião passa a ser um feto. O período embrionário é de grande importância devido aos processos citados e à velocidade de crescimento. Além disso, é um momento de grande sensibilidade às doenças in- fecciosas e à desnutrição materna, que provocam danos não só funcionais, mas também estruturais. O segundo e o terceiro mês constituem o período de maior risco de aborto natural (cf., neste mesmo capítulo, "O novo ser é pessoa o direito à vida", pp. 27-28). O quadro a seguir sintetiza as principais etapas de desen- volvimento do período embrionário: 15</p><p>Capítulo I EMBRIONÁRIO 12 13 dias Termina o processo de implantação ou nidação. 14 dias Inicia-se o desenvolvimento placentário. 15 20 dias A placenta desenvolve-se rapidamente. O cordão umbilical passa a ser arvia de intercâmbio entre o embrião e a placenta. Inicia-se o desenvolvimento do tubo neural. 21 28 dias O coração do embrião já está constituído, com suas quatro cavidades, e começa a bater. Começa a funcionar a circulação infante-placenta materna. Todo o sangue umbilical passa pelo lóbulo hepático. Inicia-se a formação dos olhos e orelhas. embrião tem um comprimento de cerca de 5mm e cresce em média 1 mm por dia. 5 semanas Esboça-se a coluna vertebral; já é um eixo cartilaginoso. Desenvolvem-se os braços e as pernas (extremidades). 8 semanas Termina o período embrionário. novo ser tem um comprimento de 2,5 a 3 cm e pesa 1 g. Os órgãos fundamentais já estão exceto os sexuais. Termina o período da organogênese. embrião adquire as formas características do ser humano e é denominado feto. As células do embrião ordenam-se em três folhas ou ca- pas celulares ectoderma, mesoderma e endoderma -, que continuam a se diferenciar e vão dar lugar aos diferentes órgãos e partes do corpo, conforme o quadro a seguir: ECTODERMA MESODERMA ENDODERMA Sistema nervoso Tecido muscular, Sistema central e periférico conetivo e cartilaginoso respiratório Cobertura externa Sistema excretor Sistema (epiderme) e reprodutivo digestivo Glândula mamária Sistema circulatório e pituitária e sangue Derme 16</p><p>início da vida / Vida no ventre materno / Fatores do desenvolvimento A seguir, vamos considerar, especialmente, o desenvolvimento do sistema nervoso central, que tem sua origem no ectoderma: MORFOGÊNESE DO SISTEMA NERVOSO CENTRAL DURANTE EMBRIONÁRIO semana Primeiro esboço do sistema nervoso. Engrossamento do ectoderma na zona média dorsal do embrião (placa neural). semana A placa neural cresce e transforma-se em um sulco ou canal que vai se fechando, formando-se o tubo neural. A porção cefálica é maior. semana Formam-se o telencéfalo e o diencéfalo. semana Observa-se a saída dos nervos cranianos ao longo do tubo neural. A gravidez Com a confirmação de uma gravidez desejada, esperada, surgem na mãe sentimentos ambivalentes (aceitação e rejeição da criança), preocupações com a saúde do bebê, medo do de- senvolvimento dessa nova situação e também do parto, e ansie- dade pela responsabilidade de cuidar do bebê. Beatrice assinala que o corpo adqui- re um novo significado para a mulher grávida. Ela o vê, toca-o, sente que se transforma por completo. Seu corpo é o receptácu- lo de um tesouro e torna-se incomumente belo. O metabolismo intensifica-se, o peito torna-se firme e a da pele fica mais viva e delicada. Essa grande mobilização afetiva pode ficar oculta, de modo que tanto a verbalização quanto a reflexão acerca desta experiência, de modo geral, não têm um espaço social para acontecer, além das consultas obstétricas e do curso preparató- rio para o parto. Como idealiza-se a maternida- 5 B. sexo das mães e as divergências teóricas psicanalíticas: Campinas, Papirus, 1989. 17</p><p>Capítulo de, espera-se dos pais apenas expressões de alegria e felicidade, enquanto a sociedade de consumo apresenta-lhes todo seu uni- verso de "objetos" necessários para a "maternidade feliz". No entanto, em geral nem a família,6 nem a sociedade, nem a cul- tura oferecem à mãe a experiência, a formação ou a ajuda ne- cessária para que desempenhe esse papel. A psicologia da mulher é uma culminação do processo evolutivo que se iniciou com O parto da mãe dela, ou seja, com seu próprio nascimento. Embora a gravidez seja um fenômeno normal na vida humana, é um momento de mudan- ças nas quais se sobrepõem O psíquico e O físico, O atual e passado, a mãe e a filha, a mulher e homem. Dessa forma, os problemas que a mulher viveu desde sua concepção atualizam- se nesses nove meses de gestação. A mãe está à escuta de si mesma, do outro que cresce den- tro dela, da "revolução" que se produz no interior de seu corpo. À medida que a gravidez avança, a presença corporal e psicológica do filho envolve toda a vida interior da mulher. Sua consciência está exaltada; é como uma dilatação do ego por se sentir habitada por uma força maior que a sua, por se sentir mais "densa", porque são dois corpos em um, duas vidas em uma. A sensação nova de plenitude leva-a a centrar-se em si mesma, nas transformações de seu corpo e em seus estados afetivos. O amor por si mesma é prelúdio do amor pelo novo ser. As mulheres que não amam a si mesmas e desvalorizam-se, ou as que se amam de forma desmedida, sentem dificuldades em viver essa profunda e duradoura intimidade que se inicia entre dois seres. A mãe tem de se preparar para o nascimento, que vai "fe- rir" esse ego exaltado e, além disso, supõe a separação dos dois corpos e a conseqüente mobilização de sentimentos de perda. 6 STERN, D. A constelação da maternidade. Porto Alegre, Artes Médicas, 1997. 7 VIDELA, M. Maternidad, mito y realidad. Buenos Aires, Nueva Visión, 1990. 18</p><p>início da vida / Vida no ventre materno / Fatores do desenvolvimento Os detalhes concretos e cotidianos do futuro cuidado do bebê, como, por exemplo, preparar o berço, costurar e comprar a roupa que ele vai usar, permitem que a grávida se "agarre" de novo ao externo e a certos rituais para elaborar a futura situação de separação que estimula sentimentos de perda e de depressão. Em toda mulher grávida ativam-se múltiplas fantasias, coloridas emocionalmente: a tanto com sua mãe quanto com seu bebê, que lhe permitirá elaborar papéis e reparar culpas; fantasias de ter despojado a mãe de conteúdos valiosos do corpo dela;9 ou o desejo de ser completa, onipoten- te, de duplicar-se ou refletir-se no filho, de ser A criança que nasce na trama do desejo de ambos os pais será portadora de traços, do sobrenome e às vezes do nome de seus progenitores ou antecessores. Mas também recaem sobre ela as oportunidades perdidas, os ideais não atingidos; a crian- ça ocupa lugar de "sua majestade, o isto é, o do narcisismo de seus pais. A gravidez, como uma situação de conflito que envolve toda a família, representa um momento de grande mobilização de energias que criam a possibilidade de entrever novas fun- ções, novas relações, novas soluções. A maternidade transforma a relação da mulher consigo mesma e com os demais. A mulher grávida tem uma atitude narcisista que costuma provocar críticas de seus familiares. O marido observa nela um recolhimento que às vezes inter- preta erroneamente como um certo desinteresse e indiferen- 8 BRAZELTON, B. & CRAMER, B. As primeiras relações. São Paulo, Martins Fontes, 1992. 9 LANGER, M. Maternidad y sexo. Buenos Aires, Paidós, 1993. 10 Brazelton e Cramer, op. cit. 11 FREUD, S. (1914c). Sobre o narcisismo: uma introdução. In: Obras completas. Rio de Janeiro, Imago, 1974. V. XIV 19</p><p>Capítulo ça em relação a ele. Ao contrário, deveria oferecer controle afetivo e compreensão, para que, sentindo-se amada, ela pudesse cuidar adequadamente do novo ser. Os outros filhos, se existem, percebem muito cedo a gra- videz da mãe e reclamam maior atenção. Explicar a eles o pro- cesso de gestação, de forma adequada às suas possibilidades de compreensão, pode contribuir para criar um clima favorável à chegada da nova criança e às modificações que isso produz nas relações familiares. Os filhos exigem um reforço afetivo dos novos papéis a serem cumpridos depois do nascimento do novo irmão e a valorização de sua condição de irmãos mais velhos. É um momento no qual precisam confirmar, de modo constante, a segurança e a estabilidade do amor dos pais. Desse modo, o clima familiar favorece no marido ou nos filhos não só a conti- nência e a elaboração das fantasias de deslocamento e de ex- clusão, mas também a compreensão de que é uma oportunida- de para continuar aprendendo a partilhar e a conviver com to- das as dificuldades trazidas por esse desafio. Durante período da gravidez ocorrem na mulher modi- ficações endócrinas, metabólicas, neurovegetativas e do meio que são fenômenos de adaptação à elevada finali- dade biológica da maternidade. O organismo da mulher fica sujeito a uma hiperatividade que exige repouso e tranqüilidade. A mãe começa a experimentar um cansaço maior e necessita dormir mais do que o habitual (hipersonia), mesmo durante o dia. Existe uma necessidade orgânica de repouso, juntamente com a de recolhimento ou interiorização. A psicanálise interpreta a sintomatologia da gravidez; assim, Fidias estuda a letargia, relacionando-a ao período de ges- tação na mulher. Nesses momentos surgem nela fantasias de de- senvolvimento e integração que haviam sido excluídas de seu ego 12 "El letargo. Una reacción a la pérdida de un objeto" e "Procreación y letargo", em Un estudio del hombre que padece (Buenos Aires, CIMP Kargieman, 1970). 20</p><p>o início da vida / Vida no ventre materno / Fatores do desenvolvimento são núcleos aletargados inconscientes. A mulher grávida sente que em seu íntimo desenvolvem-se esses conteúdos não nas- cidos e emergem fantasias reprimidas, as quais despertam ansieda- des e temores, pois se tornam perigosas. O conflito, que havia sido reprimido, ativa-se e ela se defende dele por meio da letargia. Os sintomas de cansaço e hipersonia, a verificação da falta de menstruação e em muitos casos a presença de mal-estar gás- trico, náuseas e vômitos, produtos das modificações endócrinas e metabólicas, despertam as primeiras suspeitas de gravidez. Desde momento da nidação do ovo, a hipófise - o centro que rege o sistema endócrino vê-se parcialmente subs- tituída em tal função pelo epitélio corial (córion, esboço da pla- centa), que é um claro exemplo das modificações que a gravi- dez provoca na mãe. Suas secreções começam a regular as de- mais glândulas endócrinas, permitindo a adaptação de seu fun- cionamento às necessidades da gravidez. Período fetal Inicia-se por volta da oitava semana da gestação. Duran- te esse período o novo ser se prepara e atinge o amadurecimen- to necessário para funcionar com a capacidade e autonomia exigidas pela vida depois do nascimento. Os órgãos formados no período anterior agora se diferen- ciam e desenvolvem-se em termos anatômicos e funcionais. Aos quatro meses, formam-se no pólo cefálico do tubo neural três engrossamentos que mais tarde vão dar lugar ao cérebro ante- rior, médio e posterior. Dessa forma, o cérebro fica formado. Por volta do sétimo mês de vida pré-natal, o feto é capaz de sobreviver por si mesmo, ou seja, é viável, embora um pre- maturo dessa idade exija atenção especial. Como cia, seus sistemas vitais já funcionam de forma rudimentar ou estão preparados para funcionar sem a dependência biológica do corpo materno. 21</p><p>Capítulo I Nesse período surgem na mãe os temores com relação à proximidade do parto, medo da responsabilidade que signifi- ca cuidar do filho. O ventre já desenvolvido é um fato concreto e evidente que a impede de fugir do problema. Temores de ter um filho com deformações físicas ou retardamento mental sur- gem acompanhados de fantasias de ter um filho belo e bom, que encherá a família de felicidade. Essas fantasias servem de refúgio para a mulher durante a gravidez. O trabalho e as relações sexuais começam a decrescer à medida que se aproxima a hora do parto. Em geral a atividade sexual diminui, embora a clínica tenha demonstrado que ela não causa problemas ou danos durante a gravidez normal. No quadro a seguir esquematizamos desenvolvimento físico durante esse período: FETAL 8 - 12 semanas Cresce a um ritmo de 1,5 mm por dia. Com Com 12 semanas pesa cerca de 14 g e mede 7,5 cm. Experimenta as primeiras reações diante de ruídos (12 semanas). Manifesta-se a primeira atividade reflexa. Primeiro o reflexo de alarma e depois de sucção. Efetua seus primeiros movimentos de braços e pernas, ainda que a mãe não os perceba. Desenvolvimento dos órgãos sexuais. Os tecidos gonadais indiferenciados dão lugar aos testículos e ovários. Desenvolvimento do sistema respiratório e excretor, embora estes comecem a funcionar a partir do nascimento. O fígado atinge o maior tamanho relativo, ocupando grande parte do abdome. 13 16 semanas Processo de ossificação. Desenvolvimento da pele e do cabelo. 17 24 semanas É possível reconhecer, no feto feminino, o útero e a vagina. Os testículos do feto masculino estão em posição de descer para o escroto. 22</p><p>início da vida / Vida no ventre materno / Fatores do desenvolvimento O cérebro está formado. Os movimentos do feto são percebidos claramente pela mãe, e as batidas cardíacas podem ser escutadas com o uso do Responde a estímulos exteriores (ruídos). Atinge, com 24 semanas, um comprimento de 20 cm e pesa por volta de meio quilo. 25 28 semanas Aumento veloz de peso; acumula gorduras na camada subcutânea que lhe permitirão sobreviver nos primeiros dias após o nascimento, até que a mãe produza leite. O desenvolvimento pulmonar e de seus órgãos é suficiente para conseguir sobreviver em caso de nascimento precoce. Com 28 semanas mede entre 28 e 40 cm e pesa cerca de 1 kg. 29 38 semanas Aumento rápido do número de células nervosas e do tamanho do cérebro. Vida psíquica pré-natal Jerónimo de afirma que a vida psíquica inicia- se no momento da concepção, que não significa que ela se manifeste plenamente. É necessário um certo desenvolvimento corporal, em especial do sistema nervoso, para que a atividade psicológica se expresse. Vejamos, brevemente, alguns pontos importantes do de- senvolvimento neurológico. As respostas neuromusculares a estímulos e os movimen- tos fetais, que são francamente perceptíveis antes do quinto mês da gravidez, podem ser considerados manifestações de uma vida psíquica. As experiências científicas atuais encontram atividade neuromuscular incipiente já no terceiro mês de vida. 13 MORAGAS, J. de. Psicología del niño y del adolescente. Barcelona, Labor, 1965. 23</p><p>Capítulo As vias olfativas e gustativas são as primeiras a desen- volver-se, e o nervo óptico e o acústico desenvolvem-se antes do nascimento. Apesar disso, essas vias encontram-se isoladas dos estímulos do mundo exterior à mãe e, diante da falta de desenvolvimento do córtex cerebral, que é o encarregado de receber as sensações externas, o feto percebe de forma não- discriminada o mundo que o cerca. Seu cérebro interno está suficientemente desenvolvido para possibilitar as sensações e a vida psíquica proprioceptiva, de modo que ele experimenta impulsos, desejos e afetos. Embora não possamos afirmar que o feto tenha consciência de seus estados de ânimo, a constân- cia e as variações metabólicas, endócrinas ou afetivas da mãe, que alteram o meio, refletem-se nele, provocando sensações de agrado ou desagrado. Observam-se no feto humano tanto reações globais, provocadas por estímulos fortes, quanto locais, provocadas por estímulos de baixa intensidade. Essas reações já ocorrem no período germinal e no embrionário. No primeiro mês existem movimentos reflexos e no terceiro o feto responde globalmente a estímulos internos. No quarto ou quinto mês responde a estí- mulos da superfície cutânea e a modificações do metabolismo da mãe com movimentos e mudanças de posição. No sexto mês responde globalmente a estímulos externos e, a partir do sétimo mês, reage à luz e à escuridão. Em resumo, podemos falar de psiquismo pré-natal, pois se observam antes do nascimento atividades de conduta que supõem desejos, sensações, afetos. O ego fetal A escola psicanalítica, com base na experiência clínica, também afirma a existência de um psiquismo fetal. Em Sigmund Freud encontramos antecedentes sobre a continuidade entre a vida intra-uterina e a pós-natal. No livro Inibições, sintomas e angústia, ele afirma que a vida intra-uterina e a primeira infân- 24</p><p>início da vida / Vida no ventre materno / Fatores do desenvolvimento cia constituem um contínuo, em maior medida do que se pode- ria acreditar em relação ao trauma do Tanto a escola kleiniana inglesa quanto a escola america- na do ego, ao afirmar a existência de um ego imediato, dão sustentação a trabalhos posteriores, como os do psicanalista ar- gentino Arnaldo Rascovsky, que fundamentam a existência de um ego Esse autor afirma que o ego está suficientemente organizado no nascimento, pois nele se distinguem um aspecto receptor e outro realizador. Esse grau de estruturação do ego é atingido muito antes do nascimento, como revelado pela possi- bilidade de adaptação dos prematuros ao mundo exterior dois ou três meses antes do prazo esperado. Paul assina- la que um prematuro de 6 meses é capaz não só de sugar e engolir (sucção e mas também de reagir a diferen- tes sabores (doce - salgado) e a estímulos olfativos. O prema- turo de 7 meses já diferencia a luz da escuridão e observam-se nele respostas aos estímulos cutâneos de pressão, de dor e de temperatura, isto é, a organização psíquica que possibilita tais respostas está presente antes do nascimento. Para Rascovsky, o ego fetal tem como tarefa a adaptação do indivíduo ao meio, e para isso recebe a ajuda da mãe. Entre- tanto, autor assinala que principal trabalho desse ego con- siste na visão dos objetos internos herdados. Conseqüentemen- te, a herança contida no id em forma de imagens e cargas ou catexias passaria para o ego por meio desse trabalho de percep- ção interna das protofantasias herdadas. 14 FREUD, S. (1926d). Inibições, sintomas e angústia. Obras completas. Rio de Janeiro, Imago, 1976. V. XX. 15 RASCOVSKY, A. El psiquismo fetal. Buenos Aires, Paidós, 1960. 16 OSTERRIETH, P. Introdução à psicologia da criança. São Paulo, Nacional, 1962. 25</p><p>Capítulo O ego pré-natal é totalmente permeável aos conteúdos do id; não há um limite rígido entre ego e id, pois a repressão primária se estabelece no nascimento, diferentemente do que afirmam Freud e Melanie Klein. Portanto, o ego se formaria por meio de identificações diretas com os padrões herdados que se armazenam no id. As protofantasias herdadas seriam como os planos a partir dos quais se construiria O ego. Essa permeabilidade e continuidade entre ego e id, aná- logas à permeabilidade e simbiose biológica com a mãe, rom- pem-se com o nascimento. Este é momento no qual O ego se vê obrigado, por força da necessidade, a buscar objetos exter- nos para satisfazer suas exigências pulsionais. Estas aumentam pela ausência do cordão umbilical, fonte de alimentação. O mundo fetal caracteriza-se pela ausência quase total de tensão e pela satisfação quase imediata de qualquer necessi- dade. O cordão umbilical provê "incondicionalmente" os meios para apaziguar a tensão, de forma que a frustração é mínima. É uma situação de máxima dependência e segurança. No ventre materno o feto está perfeitamente alimentado, por meio de subs- tâncias previamente digeridas e metabolizadas pela mãe, fican- do a seu cargo a apropriação e consumo delas. Além disso, ele tem uma temperatura constante e ideal, um lugar cômodo e uma sustentação no espaço. O sono é considerado uma reprodução da situação fetal primitiva. Desse modo, seria possível estabelecer uma analogia entre o sono e a vida pré-natal. No repouso diário seria possível retornar ao mundo interno, à situação ideal de segurança e de- pendência para recuperar energias, por meio de um enfraqueci- mento provisório das barreiras que nos separam do mundo ex- terior. No sono profundo o ego conecta-se com suas imagens internas inconscientes, recriando de certa forma a permeabili- dade perdida entre o ego fetal e o id. Em resumo, mundo fetal caracteriza-se por: 26</p><p>início da vida / Vida no ventre materno / Fatores do desenvolvimento ausência de uma relação direta com os objetos do mundo externo; falta de atividade dos mecanismos de adaptação ao mundo exterior; baixo nível de tensão e de desequilíbrio interno - predomina, em geral, a satisfação imediata das necessidades; permeabilidade entre ego e o id, ausência da repressão e unidade indiferenciada inicial ego-id; atividade perceptiva interna do ego e relação exclusiva do ego fetal com fantasias inatas, anteriores a qualquer relação com os objetos externos e materiais; rompimento da unidade e coerência do ego fetal em virtude do impacto do nascimento. A integridade do ego no ventre mater- no é maior do que a existente nos primeiros meses pós-natais; desenvolvimento das funções autônomas do ego, que consti- tuem a porção do quantum herdado, permitindo a adaptação ao mundo exterior pós-natal. Em síntese, a proposta psicanalítica afirma a existência de um ego fetal e de vida anímica do feto, tanto com suas repre- sentações herdadas quanto com suas idéias-objetos próprias. Isto é radicalmente importante para a compreensão da conti- nuidade psíquica entre a vida fetal e a vida pós-natal. O novo ser é pessoa - direito à vida Denomina-se aborto a interrupção da gravidez antes da viabilidade do feto, não importa se este é expulso de forma es- pontânea ou não. O aborto pode ser espontâneo, ou seja, sem a interven- ção humana, ou provocado (feticídio). Considera-se aborto tan- to a expulsão prematura e voluntária do produto da concepção quanto a sua destruição no ventre materno. 27</p><p>Capítulo O novo ser é pessoa (cf., no t. 2, cap. VIII, pp. 123ss). a palavra "pessoa" provém do vocábulo grego prósopon, que significa "máscara". Com ela o ator cobria rosto para desempenhar seu papel, especialmente nas tragé- dias, daí a relação entre os termos "pessoa" e "personagem". No entanto, a noção de pessoa foi cuidadosamente elaborada no seio da teologia medieval para "explicar" mistério da trin- dade. Boécio, no século VI, propôs uma definição posterior- mente considerada clássica: é uma substância individual de natureza racional. Isso significa que a pessoa existe em si, seu ser é incomunicável; assim, sua nota distintiva é a propriedade. Além disso, sua natureza ou modo de operar é racional, e isso se refere à forma de aprender como um caminho que transita do conhecido para o desconhecido, que supõe uma sucessão de atividades realizadas em um tempo cronológico. Da mesma for- ma, tal racionalidade estabelece uma hierarquização do conhe- cimento intelectual em relação à vontade, embora ambas sejam funções espirituais. Partindo-se do conceito de que a vida humana já está pre- sente desde a fecundação, como consideramos anteriormente, o aborto provocado deve ser considerado um ato homicida. Em ge- ral, é justificado como uma solução não procurada, mas suposta- mente necessária para evitar filhos indesejados ou deficientes. Consideramos que não se pode alegar nenhum direito nem argumentação para destruir uma vida humana, como forma de evitar as dificuldades em aceitar e criar o filho com todo o esfor- que isso requer. Ao mesmo tempo, apontamos para uma pa- ternidade responsável na qual a oportunidade de ter ou não um filho seja considerada antes de concebê-lo. Caso se permita o retorno ao bárbaro arbítrio dos pais sobre a vida dos filhos, não será possível constituir-se uma so- ciedade mais humana e mais justa. 17 FERRATER MORA, J. Dicionário de filosofia. São Paulo, Martins Fontes, 1994. 28</p><p>o início da vida / Vida no ventre materno / Fatores do desenvolvimento FATORES INTERVENIENTES NO DESENVOLVIMENTO DA PERSONALIDADE Viktor Frankl posiciona-se diante da condicionalidade do homem e expressa assim seus pensamentos: "... o homem é in- condicionado à medida que não se 'esgota' em sua condiciona- lidade, à medida que nenhuma condição é suficiente para 'cons- tituir' todo o homem. [...] O homem incondicionado não é nem o Homo sapiens recens, condicionado de forma vital, nem Animal rationale, nem o Zoon Politikon, socialmente condicio- nado. Podemos dizer que o homem incondicionado é o homem em si: Homo humanus". 18 Essas palavras sugerem o paradoxo da natureza humana entre o que alguns autores chamaram de determinantes, limitações ou condicionamentos do processo de desenvolvimento da personalidade e a liberdade espiritual pró- pria dessa natureza humana. Para esclarecer esse dilema entre o interveniente e o determinante, parece-nos oportuno abordar outros pensamentos do mesmo autor. Viktor Frankl diz em outra de suas obras: "... por mais que o homem seja, de acordo com sua essência, um ser espiritual, mesmo assim continua sendo um ser finito e limitado; essa limitação coincide com sua condi- ção de condicionado, pois o ser humano é incondicionado ape- nas em potencial, pois de fato é sempre condicionado. Disso de- corre que a pessoa espiritual nem sempre consegue impor-se por meio dos estratos psicofísicos. O ser humano só pode ser incondicionado de um modo condicionado". 19 Optamos por falar de "fatores intervenientes" a fim de marcar nossa diferença tanto das posições deterministas quanto das antideterministas ou indeterministas da Psicologia. Como as pessoas chegam a ser o que são? Por que o de- senvolvimento humano segue uma direção ou curso? Estas são as questões básicas da Psicologia do Desenvolvimento. 18 FRANKL, V. El hombre incondicionado. Buenos Aires, Plantín, 1955. pp. 11-12. 19 FRANKL, V. La idea psicológica del hombre. Madrid, Rialp, 1979. pp. 82 e 112. 29</p><p>Capítulo Desde seu início, essa disciplina questionou-se a respeito da necessidade de definir os fatores que intervêm na formação e nas mudanças da personalidade no decorrer do tempo. Seus pesquisadores perguntaram-se se a ação humana depende das estruturas anatômicas; se as relações interpessoais, a convivên- cia com outras pessoas em determinado contexto familiar, social e cultural impõem um modo de ser; ou se o desenvolvimento e a conduta humana são voluntários e livres. Essas três grandes questões levaram-nos a classificar os fatores intervenientes no desenvolvimento da personalidade em: 1. O dado: compreende a natureza, a herança e as poten- cialidades que amadurecerão. Faz referência ao presente desde a concepção, embora vá se manifestando posteriormente. Da mesma forma, refere-se ao inato ou co-natural, isto é, ao nasci- do com próprio sujeito. O dado manifesta-se e atualiza-se em diálogo com mun- do, isto é, em função do que este apresenta e propõe. Mais especificaremos seus diversos significados. 2. apropriado: sujeito constitui-se a partir desse nú- cleo que denominamos dado" e por meio da apropriação do mundo, ou seja, do não-eu. Essa apropriação faz referência ao aprendido, ao adquirido, ao vínculo com ambiente, com os valores, com a cultura e também à experiência como fator organizador da personalidade. 3. Autodeterminação: é o fator característico da livre von- tade da pessoa. A personalidade constitui-se a partir da esponta- neidade natural possibilitada pelo "dado" e pela escolha no âmbito das oportunidades com que o sujeito interage. Esse duplo âmbito "exterior" e "interior", juntamente com a possibilidade de autodeterminação, vai constituindo estilo do sujeito. 20 Cf., no t. 2, cap. VIII deste livro, "Abertura ao mundo", pp. 204-216. 30</p><p>início da vida / Vida no ventre materno / Fatores do desenvolvimento Além das três questões mencionadas, há outras que deri- vam delas: qual é o "peso" relativo de cada fator nas diferentes ações e em cada período do desenvolvimento? Como e qual é o grau de interação entre tais fatores? A seguir, abordaremos estes questionamentos e também a inter-relação entre os fatores intervenientes no desenvolvimento. dado O princípio da existência não depende da própria deci- são, consciente e livre, da pessoa de existir e de existir como tal. A existência nos foi dada e com ela temos certas propriedades e límites a partir dos quais buscamos nossa plenitude. As disposições hereditárias traçam o marco de desenvol- vimento no plano constitutivo do organismo. A vida só provém da vida. Como é própria dos seres vivos a reprodução, a geração de novos indivíduos parecidos com os pais. O fenômeno da herança, isto é, da trans- missão de informação de geração a geração, ocorre em todos os seres vivos. Dessa forma, seja qual for o tipo de reprodução destes, observa-se uma constância nas propriedades dos indiví- duos da espécie. Hoje não se pode sustentar a existência de um programa genético constituído apenas pela combinação de elementos invariáveis, isto é, também se consideram influências do exte- rior na mensagem do herdado. A articulação entre o herdado e o adquirido ou apropriado pela experiência inicia-se desde o primeiro instante da vida, desde a fecundação. É muito difícil distinguir e avaliar na organização funcional da criança o lu- gar do herdado, do alcançado por meio do processo de ama- durecimento e do adquirido ou apropriado. Apesar disso, o papel dos processos hereditários e maturativos é mais signifi- cativo e observável no período do desenvolvimento embrio- nário, assim como também nos aspectos estruturais do cresci- mento humano. 31</p><p>Capítulo Herança: a dotação genética Aqui, vamos nos referir especificamente à herança gené- tica, tanto cromossômica quanto extracromossômica, transmiti- da pelos dois genitores, que é a informação contida no óvulo fecundado, ou Assim, falamos do hereditário como tudo o que se transmite de pais para filhos por meio das células se- xuais, isto é, o óvulo e o espermatozóide. O termo "herança" também é utilizado em um sentido mais amplo, para se referir à "herança cultural", ou seja, à trans- missão da informação que o ser humano recebe no decorrer das gerações mediante, por exemplo, a linguagem e a educação. Esse conceito de herança pode ser incluído no que anterior- mente denominamos "o apropriado" e é uma característica hu- mana distintiva, embora nos animais superiores se possa obser- var uma certa "educação" dos descendentes por parte de seus genitores. Ainda que seja dada, o sujeito pode apropriar-se total ou parcialmente dessa herança ou até mesmo desprezá-la. Tipos de herança genética Todo ser humano é "produzido" e desenvolve-se a partir de uma célula de matéria viva denominada germe ou ovo. Para a constituição desse ovo, único laço orgânico de união entre as gerações, os genitores contribuíram com duas células reprodu- toras ou gametas: a mãe com o óvulo e o pai com o espermato- zóide. A nova célula germinal resulta, assim, da união de duas células distintas e de diferentes procedências. Uma vez constituída, a célula germinal começa a repro- duzir-se em cerca de 24 horas, isto é, a dividir-se em duas célu- las, as quais, por sua vez, dividem-se em outras e assim sucessi- vamente. A partir dessas divisões celulares constitui-se um novo ser humano. Na informação genética transmitida ao novo ser devemos distinguir uma herança específica, uma herança racial e uma 32</p><p>início da vida / Vida no ventre materno / Fatores do desenvolvimento herança individual. Em relação a essa distinção, G. afirma que em certo aspecto cada ser humano é como os ou- tros, como alguns ou como nenhum outro. A lei da herança específica é absoluta, pois afirma que nenhum ser dará nascimento a outro que não seja de sua espé- cie. Apesar das mudanças que ocorrem em todas as espécies vivas, persiste nelas um estado de fixação. A herança racial nos torna semelhantes a determinados grupos humanos. A diferenciação étnica da espécie humana produz-se pela com que um ou vários genes apare- um determinado grupo de pessoas. As diferenças raciais estão baseadas em um número rela- tivamente baixo de genes em relação aos milhares deles que formam o patrimônio hereditário comum da espécie humana. Essa afirmação marca a existência da diferença racial e também seu limite. As hipóteses que afirmam a existência de diferenças intelectuais entre as raças devidas a fatores genéticos carecem de sustentação empírica. A herança cultural, e não a genética, parece ser fundamental nas diferenças intelectuais, mais do que o hereditário racial. A herança individual nos faz semelhantes a nossos pais e ascendentes, mas, por sua vez, nos torna seres únicos. A dotação genética de cada ser humano é diferente, sin- gular, exceto nos gêmeos univitelinos, ou seja, aqueles proce- dentes de um mesmo ovo ou germe, que têm dotação genética ou genótipo idêntico e um meio intra-uterino em comum. Todo indivíduo é portador de uma combinação genética específica que pertence unicamente a ele, de modo que, além dessas ex- ceções, não há duas pessoas iguais, em termos genéticos. 21 KLUCKHOHN, G. et al. A personalidade na natureza, na sociedade e na cultura. Belo Horizonte, Itatiaia, 1965. 33</p><p>Capítulo I Assim como a genética revela-nos uma tendência singu- larizante, mostra-nos que a quase-totalidade dos indivíduos é um "exemplar" único da espécie humana a partir do momento da concepção, na qual se produz a combinação cromossômica peculiar. Como diferentemente da herança específi- ca, a herança individual não é absoluta, mas resulta de múltiplas combinações genéticas, explicadas pelas leis de transmissão de caracteres de herança simples e complexa (Leis de Mendel). A variabilidade individual caracteriza todas as espécies na escala dos seres vivos, principalmente nos superiores e em especial no humano. Isso permite falar de um caráter individual e singularizante do genoma humano. O genoma, mais do que determinante de uma linha de desenvolvimento, é um esboço de possibilidades. Entre a he- rança genética e sua realização final em estruturas e funções orgânicas abre-se um processo de desenvolvimento, pois o conteúdo esboçado no genoma necessita de um mundo ou am- biente para ser realizado na fenogênese de estruturas e funções. Mecanismos de transmissão dos caracteres hereditários No núcleo de cada uma das células do corpo humano existem 23 pares de estruturas, em forma de bastonetes, deno- minados cromossomos. Nessas estruturas encontram-se os genes, que contêm a informação codificada dos atributos ou caracteres hereditários. O ácido desoxirribonucléico (DNA), juntamente com suas combinações com diferentes proteínas, e o ácido ribonucléico (RNA) têm papel fundamental no processo de armazenamento e transmissão da informação hereditária. A herança genética depende essencialmente da capaci- dade de cópia, de autoduplicação ou de auto-reprodução do 34</p><p>início da vida / Vida no ventre materno / Fatores do desenvolvimento DNA. Quando uma célula se reproduz ou se divide, ocorre a duplicação exata de todos os seus genes. Cada uma das novas células possui mesmo material hereditário da célula-mãe. A informação genética está contida nas moléculas de DNA, construídas em forma de dupla espiral, ou melhor, de dupla hélice. Portanto, os genes são porções claramente delimi- tadas dessas macromoléculas de DNA, que contêm a informa- ção necessária para a produção específica de proteínas, por meio das quais intervêm no surgimento dos diversos caracteres ou atributos. As características orgânicas de um ser vivo não são her- dadas dessa forma, mas como de um processo de desenvolvimento iniciado e delimitado pela carga genética re- cebida (genoma). As teses preformacionistas e epigenesistas constituem duas tentativas, surgidas no decorrer da história do pensamento, de explicar o desenvolvimento humano. Antes da constituição da ciência genética, muitos pensa- dores adotavam as doutrinas preformacionistas, segundo as quais haveria no ventre materno sujeitos em miniatura, que iriam "au- mentando" até atingir as dimensões adultas. As características seriam herdadas enquanto tais, e o desenvolvimento ficaria li- mitado a um aumento do já pré-formado desde o princípio. A epigênese supõe a transmissão não de um padrão morfológico como o homem em miniatura mas de um conjunto de instruções para desenvolver, com tempo, tal padrão ou plano de construção. Aristóteles expõe a noção de epigênese ao considerar que a estrutura de um organismo adulto existe em forma potencial, não atual, no embrião que começa a desenvolver-se. As teses preformacionistas foram abandonadas devido ao avanço da Embriologia e da Genética. Os cromossomos e a cé- lula germinal em sua totalidade são a fonte potencial que guar- da a informação necessária para o desenvolvimento epigenéti- 35</p><p>Capítulo I CO do ser humano. Podemos exemplificar essa posição com o seguinte texto do biólogo Jean "[...] é necessário com- preender que, no germe, O ser humano só está predeterminado em potência. Não há no nenhuma parte do novo ser, ne- nhum órgão, mesmo que apenas.em estado rudimentar ou esquemático, nem mais potente microscópio poderia desco- algo que recordasse aproximadamente as formas ou o as- pecto de um ser humano". Retomando O tema da herança genética dos pais, pode- mos acrescentar que cada genitor contribui com um cromosso- mo de cada um dos 23 pares que se encontram no filho. No entanto, apesar dessa participação igualitária de ambos, não se pode afirmar com certeza que pai e mãe contribuem cada qual com 50% da informação herdada pelo filho. O ovo inicial não se reduz a cromossomos, pois também contém citoplasma proveniente do óvulo materno, no qual há informação armaze- nada. Com base nesses fatos, alguns pesquisadores falam de uma herança extracromossômica. Portanto, embora a informa- ção essencial da espécie e do indivíduo esteja no núcleo celular e provenha dos dois genitores, a herança extracromossômica provém fundamentalmente da mãe. O espermatozóide contri- bui com pouco ou nada para O citoplasma do ovo ou zigoto, de modo que este é fundamentalmente similar ao do óvulo. A ca- beça do espermatozóide com seus cromossomos funde-se com o núcleo do óvulo e sua cauda desprende-se, na maioria dos casos, antes da penetração. Devemos acrescentar que nas mitocôndrias do citoplasma existe DNA e, portanto, informação genética. Essa herança ge- nética procederia exclusivamente da mãe, que nos permite afirmar que se herda um maior número de características da mãe do que do pai. Apesar disso, o significado da herança ex- tracromossômica é um tema que exige maiores pesquisas. 22 ROSTAND, J. La herencia humana. Buenos Aires, Eudeba, 1965. p. 8. 36</p><p>início da vida / Vida no ventre materno / Fatores do desenvolvimento Os genes são a informação codificada em uma cadeia de fosfatos relacionados com açúcares. Cada um destes, por sua vez, enlaça-se com uma base, constituindo o par açúcar- base chamado nucleotídeo. Há quatro bases diferentes no DNA, que são a guanina, a adenina, a timina e a citosina. De acordo com a base, formam-se quatro nucleotídeos, com os quais se "escrevem", como se fossem letras, as instruções dos caracteres hereditários. O conjunto de combinações possíveis dessas quatro ba- ses dos nucleotídeos, colocadas em grupos de três (tripletos ou códons), forma que se denomina código genético ou chave genética. Esse código pode se expressar em tripletos de nucleotídeos de DNA ou de nucleotídeos de RNA complemen- tares. As combinações ou informações armazenadas no DNA são transcritas ou sintetizadas no RNA, o qual leva a mensagem do núcleo celular para o citoplasma, onde se traduz de forma a estruturar os aminoácidos, base das diversas proteínas, tal como estavam nos genes (segmentos da cadeia de DNA). Entre as proteínas (cadeias de aminoácidos), as enzimas, que são proteínas de elevada especificidade, têm papel funda- mental. Elas regulam as reações químicas celulares, enquanto as proteínas estruturais mantêm a constância de forma ou especifi- cidade da célula, que está em contínuo fluxo de transformações. As características específicas de um determinado tipo de célula derivam da natureza das enzimas e proteínas que ela contém. Portanto, cada célula individualiza-se pelas suas proteí- nas e é o que é, diferenciando-se de outras, pelas proteínas que a integram. As macromoléculas do DNA que compõem o nú- cleo celular são "genotípicas" e contêm informação armazena- da de forma unidimensional. As macromoléculas das proteínas são "fenotípicas", são a expressão tridimensional e o desdobra- mento da informação nuclear (cf., neste mesmo capítulo, "Glos- sário de genética", pp. 40-44). Essa interação entre o DNA e as proteínas é a chave para a compreensão de como uma única célula (o zigoto) origina células tão diferentes quanto neurônios, eritrócitos, hepatócitos, linfócitos, entre outras, isto é, de como 37</p><p>Capítulo a divisão celular que transmite o mesmo patrimônio genético (genótipo) a cada célula "filha" produz células de estrutura e função diferentes (fenótipo). A quantidade de proteínas diferentes produzidas por um organismo manifesta a complexidade fenotípica. O genoma hu- mano pode armazenar em sua memória os códigos de cerca de 3 milhões de proteínas diferentes, embora as diversas células humanas produzam somente entre 30 mil e 50 mil delas. O genoma humano incluído em cada núcleo celular, de poucas micras cúbicas de volume, atinge, estendido linearmen- te, um comprimento aproximado de 1,75 m. O genoma de uma bactéria como a Ischerichia coli chega a apenas mm. Contudo, há espécies vegetais que possuem maior quantidade de DNA no núcleo das células que o ser humano. Porém, tamanho do genoma, ou a quantidade de informação possível de codificar e armazenar, não é essencial. O que diferencia o ser humano dos outros seres vivos é a qualidade da informação contida na "memó- ria genética", mais do que a capacidade de armazenamento dela. Dissemos acima que o ser humano produz entre 30 mil e 50 mil proteínas, embora seu genoma admita armazenamento de 3 milhões, o que parece representar um excesso de capaci- dade de memória. Há no sistema de informação genético se- que se repetem várias vezes (entre 3 e 10% do genoma são genéticas repetidas), espaçadoras, segmentos, nós, entre outros. Isso explica a flexibilidade e a in- teração dessa memória genética; dessa forma, o genoma consti- tui um sistema, e não um mosaico de elementos descontínuos e atômicos. Há genes que agem sobre outros. A informação de cada gene subordina-se ao trabalho e ao estado desse sistema. O genoma tem uma norma de reação, uma gama de fenótipos possíveis, que se concretiza de acordo com as cir- cunstâncias do meio. O gene não contém o caráter fenotípico, apenas codifica a informação das proteínas que intervêm em sua construção. Como há uma interação entre genoma, o citoplasma e o meio em geral. 38</p><p>início da vida / Vida no ventre materno / Fatores do desenvolvimento Como mencionamos, a constituição genética do filho (genótipo) fixa-se no momento da concepção ou fecundação, em que pai e mãe contribuem com um cromossomo para cada um dos 23 pares constitutivos, porém só a mãe fornece os genes mitocondriais. Os genes herdados interagem de diversos modos, impondo-se uns aos outros (genes dominantes, genes recessivos) ou interagindo entre si, de tal forma que criam características in- termediárias. A herança genética do filho resulta dessa combina- ção e interação da informação genética dada pelos pais. As características morfológicas e fisiológicas resultantes da constituição genética (genótipo) e de sua interação com o meio recebem nome de "fenótipo". O genótipo e o fenótipo não coincidem e existe informação herdada presente no genótipo que não vai se manifestar no fenótipo; além disso, a interação entre os genes provoca uma característica intermediária (híbri- do) que difere da informação genética de ambos os pais (cf. "Glossário de genética", a seguir, verbete híbrido genético). Os diversos componentes do genótipo, agindo entre si, modificam a expressão fenotípica da característica sobre a qual influem. Por esses motivos, os filhos não têm necessariamente gran- des semelhanças com seus genitores. Dentro de um mesmo tron- CO familiar há diferenças devido às numerosas combinações possíveis entre os genes parentais. Além disso, é importante considerar que cada atributo físico, por mais simples que seja, está vinculado a vários genes. Por exemplo, grupo que parece um dado de fácil transmissão, requer mais de um par de genes. A altura de um indivíduo também está relacionada com sua constituição ge- nética total e resulta de uma complexa interação de informa- ções. Muitas doenças e malformações hereditárias são causa- das pela combinação de vários genes alterados ou de alguns genes alterados com outros normais. O caráter dominante de muitos genes expressa-se apenas em determinadas condições do meio e associações com outros genes (dominância irregular). Tudo isso nos mostra a complexidade das combinações genéticas e de sua inter-relação com o meio. 39</p><p>Capítulo GLOSSÁRIO DE GENÉTICA Cariótipo: é a constituição cromossômica de um indivíduo. Código genético: contém as chaves para decifrar e as normas ne- cessárias para transmitir as características inscritas no DNA. A seqüência de quatro unidades (timina, citosina, adenina e guanina) no DNA determina o ordenamento específico dos 20 aminoácidos na estrutura das proteínas. As proteínas são polímeros naturais cujas bases são esses 20 aminoácidos diferentes, que mantêm a constân- cia da forma ou especificidade da célula, mesmo quando permane- cem em um contínuo fluxo de transformações (proteínas estrutu- rais), e também regulam as reações químicas de cada função vital (proteínas enzimáticas). Assim, são a base química das estruturas e funções do protoplasma. As características próprias de cada espécie são transmitidas no decor- rer das gerações, segundo a ordem dos aminoácidos nas proteínas. Características do código genético: É universal: é comum a todos os seres vivos. É o sistema biossintetizador de proteínas que e interpreta, de uma mesma maneira, as combinações das bases de nucleotídeos do DNA em uma bactéria, em uma planta, em um animal ou no próprio ser hu- mano. É flexível: sua ductilidade garante a estabilidade. Seu elevado grau de flexibilidade permite-lhe manter a biossíntese de proteínas dian- te das trocas mutacionais e minimiza a possibilidade de troca de um aminoácido diante de qualquer variação de uma base. Congênita: característica adquirida durante o desenvolvimento em- brionário e prévio ao nascimento (pré-natal). Cromossomo: base anatômica dos genes e suporte da informação genética. Estrutura em forma de bastão que se encontra no núcleo de cada célula. É composto de ácidos nucléicos, ao longo dos quais estão dispostos os genes. Cada cromossomo contém sempre os mes- mos genes, na mesma linear e na mesma posição. O nú- mero de cromossomos em cada núcleo celular é constante para cada espécie. O ser humano tem 23 pares de cromossomos (46 no total). Os gametas (espermatozóide e óvulo) são as únicas células humanas 40</p><p>início da vida / Vida no ventre materno / Fatores do desenvolvimento que têm 23 cromossomos. Ao unir-se no ovo, ou zigoto, constituem os 23 pares de cromossomos acima citados; cada par contém um elemento paterno e outro materno. Darwinismo: teoria da evolução proposta por Charles Robert Darwin (1809-1882) em seu livro A origem das espécies (1859). Explica a origem de novas espécies pela transformação de umas em outras, em virtude de uma seleção natural, devida à luta pela vida. Além da seleção natural, a teoria frisa a importância dos efeitos here- ditários do uso e da falta de uso como sugerido por e as variações provocadas de modo espontâneo. Para Darwin, a seleção natural consiste na eliminação ou morte dos ineptos e sobrevivência dos aptos na luta pela vida. Os organismos que possuem variações favoráveis são capazes de sobreviver me- em um dado ambiente. Darwin não conhecia as leis mendelianas da herança. Apesar disso, os neodarwinistas incorporaram essas leis às suas argumentações e às descobertas posteriores da Genética. Dominância: um traço ou característica é dominante quando se expressa no indivíduo em que, tendo dois genes diferentes em um determinado locus de um par de cromossomos homólogos, o alelo do gene que produziria tal traço deixa de fazê-lo. Os alelos são formas alternativas de um gene que se encontram em um mesmo lugar de um par de cromossomos. DNA (ácido desoxirribonucléico): ácido nucléico que se encontra nos cromossomos e nas mitocôndrias. Contém a informação genéti- ca codificada pela síntese de uma determinada cadeia de nucleotídeos. Tem uma estrutura tridimensional, helicoidal (dupla hélice), com uma específica de nucleotídeos, que consti- tui a base informativa para a realização da herança genética. O DNA é um polímero (moléculas entrelaçadas, encadeadas) que se baseia em quatro unidades (nucleotídeos) diferentes: timina, citosina, adenina e guanina. As combinações destas quatro bases formam código genético. Expressividade: designa a variabilidade ou grau em que um caráter genotípico se manifesta no fenótipo. Tal expressividade é a propor- ção segundo a qual um gene manifesta seu efeito. Assim, um gene 41</p><p>Capítulo com expressividade variável pode se manifestar desde um grau moderado até outro muito acentuado. Fenótipo: é o aspecto físico de um organismo. Compreende as ca- racterísticas visíveis resultantes de uma constituição genética ou genótipo. É o produto da interação entre o genótipo e o meio. Em um sentido amplo, compreende a totalidade da natureza física, bioquímica e fisiológica de um indivíduo resultante de sua consti- tuição genética e do ambiente no qual se desenvolve. Em um sentido mais limitado, é a expressão de algum gene ou al- guns genes em especial. Gene: unidade básica da herança. É uma porção limitada das gran- des moléculas de DNA cromossômico, que regulam a especificidade das proteínas e, por meio delas, o aparecimento dos diversos caracteres hereditários. O gene não contém o caráter fenotípico; apenas codifi- ca a informação das proteínas que intervêm em sua construção. Genética: ramo da Biologia que estuda a herança e suas leis. Anali- sa as semelhanças e diferenças entre indivíduos e os mecanismos de transmissão de caracteres de pais para filhos. Genética do comportamento. Psicologia genética: especialidade baseada na Genética e na Psicologia. Ocupa-se da influência dos fatores hereditários sobre o comportamento. Genótipo: é a constituição genética de um indivíduo. É o conjunto parti- cular de genes de um organismo presente em cada uma de suas células. Esse conjunto de genes de um indivíduo pode se manifestar ou se manter oculto, invisível (em potência). Atualmente distinguem-se as noções de genoma e de genótipo. O vocábulo "genoma" refere-se a todos os genes de um organismo, enquanto "genótipo" tem um sentido mais limitado, pois se refere a um locus genético específico. Herança: transmissão de qualidades, particularidades ou caracterís- ticas de pais para filhos. Herança extracromossômica: informação do óvulo materno trans- mitida por meio do citoplasma e portanto não proveniente do nú- cleo celular (cromossomos). 42</p><p>início da vida / Vida no ventre materno / Fatores do desenvolvimento Herança genética: transmissão por meio dos genes de cas dos pais para os filhos. Híbrido genético ou heterozigoto: um indivíduo ou caráter é heterozigoto ou híbrido quando os fatores ou genes dos gametas são diferentes para uma determinada característica. heterozigoto ou híbrido genético, diferentemente do híbrido es- pecífico, resulta do cruzamento de dois indivíduos da mesma espé- cie, que diferem em termos hereditários em alguma característica. O híbrido específico é o resultante do cruzamento de espécies dife- rentes, como, por exemplo, a mula (cruzamento do asno e da égua). Johann Mendel (1822-1884): monge agostiniano de origem austríaca. Descobriu as leis que regem os mecanismos de transmis- são dos caracteres hereditários nas plantas (1865). Demonstrou que os traços físicos de nosso corpo e dos seres vivos em geral são trans- mitidos pelos pais a seus descendentes por meio dos gametas. Lamarckismo: teoria da evolução formulada por Jean-Baptiste Lamarck (1744-1829) no início do século XIX. Afirma a origem de novas espécies mediante a herança dos caracteres adquiri- dos. As características desenvolvidas durante o curso da vida de um ser, seja pelo uso (que a desenvolve), seja pela falta de uso (que a atrofia), são transmitidas aos gametas e herdadas pelos descendentes. O ambiente obriga organismo a adotar hábitos apropriados, e estes provocam mudanças estruturais, que são herdadas. A adaptação, o uso e a falta de uso dos diversos órgãos são os instrumentos-chave do transformismo lamarckiano. Como nega a constância e a estabilidade das estruturas dos seres vivos (transformismo). A variação das espécies orgâni- cas deve-se à adaptação constante às novas influências do meio em que elas se desenvolvem. As pesquisas genéticas atuais descartam a herança dos caracteres adquiridos, embora geneticista russo T. D. Lysenko formulasse uma posição neolamarckiana e tentasse fundamentá-la nas contribuições contemporâneas da ciência genética. Mutação: é uma mudança do material hereditário, isto é, uma brus- ca modificação de seu estado e propriedades. A referida mudança afeta a quantidade (mutações cromossômicas) ou a estrutura (muta- ções genéticas) do DNA. Estas últimas são mais que as primeiras. 43</p><p>Capítulo I As mutações ocorrem a qualquer momento do ciclo vital e sua fre- qüência difere segundo os diferentes genes. Se a mutação se produz nos gametas sexuais, é herdada pelas gerações posteriores; mas, se ocorre em qualquer outra célula humana, não é herdada, com ex- ceção das células filhas daquela que sofreu a mutação (mutação somática). Certos agentes físicos (raios X, ultravioletas, entre outros) e quími- (fenol, sulfamidas, por exemplo) facilitam as mutações. Puro ou homozigoto: um indivíduo ou caráter é puro ou homozigoto quando os fatores ou genes derivados dos gametas são iguais para uma característica. O herdado e meio O organismo e ambiente fazem parte de um todo, um holo no qual estão inter-relacionados e em constante interação. O meio mobiliza ou favorece disposições hereditárias, mas, por sua vez, a ação do meio não é independente dessas disposições. Por um lado, qualquer fator hereditário isolado opera de modo diferente quando as condições do meio ambiente variam. Por outro lado, as condições do meio ambiente exercem dife- rentes influências sobre as características hereditárias. As disposições hereditárias traçam o marco do desenvol- vimento e oferecem-nos um plano da construção do organismo. Os genes exercem um papel ou ação diretiva nos fenômenos do desenvolvimento embrionário e, especialmente, dos primeiros anos de vida, isto é, não se transmitem qualidades já desenvol- vidas, mas apenas disposições ou possibilidades para configu- rar essas qualidades. Por exemplo, a estatura de um indivíduo depende de toda a carga genética, mas, além disso, variará, en- tre outros fatores, de acordo com a alimentação recebida nos primeiros anos de vida e com as vicissitudes do desenvolvimen- to glandular posterior. 44</p><p>início da vida / Vida no ventre materno / Fatores do desenvolvimento No ser humano, o meio está representado, em um pri- meiro momento, pelo ventre materno; depois, desde o nasci- mento, pelo mundo exterior. A função do meio na constituição das características do novo ser varia de acordo com os tipos de caracteres envolvidos no processo. Herança e meio são fatores que contribuem para a for- mação do novo ser e misturam-se de tal modo que é difícil distinguir o que corresponde a um e a outro. Não se pode considerá-los opostos ou antagônicos, como ocorre muitas ve- zes, mas complementares. Assim, para nos formarmos como indivíduos, precisamos de uma carga genética humana e de um meio humano. Nós nos diferenciamos e somos singulares devido tanto à nossa combinação genética peculiar quanto à nossa história pessoal. Quanto à relação herança-meio, cabe perguntar se os caracteres adquiridos são herdados, isto é, se a influência do meio sobre o ser humano é apenas individual, se está limita- da ao sujeito que influencia ou se modifica também seu pa- trimônio hereditário e, portanto, afeta sua descendência por meio da transmissão às células germinais. A esse respeito, é importante considerar que a transmissibilidade dos caracteres adquiridos carece de fundamentação teórica e de comprova- ção experimental. A história pessoal de cada um dos genitores, que é tão significativa na educação e nos modelos de identificação ofere- cidos, sem dúvida incide de forma relativa na constituição ge- nética do filho; apesar disso, os pais que se expõem a agentes físicos ou químicos mutagênicos alteram o patrimônio hereditá- rio que oferecerão à sua descendência. Ao se falar de herança e de meio, é comum considerar que a primeira é rígida, fixa, imutável, algo como um código ou lista de instruções e procedimentos que não admite modifica- ções e na qual cada "instrução" age de modo independente das demais. O meio seria, segundo essa visão, mutável, em muta- ção ou reversível. Hoje tal posição não se sustenta, pois o mate- 45</p><p>Capítulo I rial genético comporta-se como um sistema flexível e há muta- ções no patrimônio hereditário humano. Em geral, por mais estável que seja a carga genética, espo- radicamente algum gene sofre uma brusca modificação de esta- do e de propriedades (mutação). Um gene transforma-se varian- do a informação que contém, de modo que em alguns casos tais mutações produzem anomalias e doenças na descendência. A espontânea de mutação é muito baixa e difere de acor- do com o gene. As mutações podem ocorrer de forma nea em qualquer etapa da vida e em geral não são benéficas. A visão comum afirma que herdado é irreversível, en- quanto o adquirido pela experiência é reversível ou facilmente modificável. A etiologia de algumas doenças mentais é um exem- plo de que isso não é cem por cento correto. O erro metabólico herdado que se detecta na galactosemia congênita, enfermida- de que leva ao retardamento mental, é facilmente evitado quan- do reconhecido precocemente. A descoberta precoce permite que não se ofereça ao bebê alimentos que contenham galactose, pois ele não é capaz de transformar esse açúcar em glicose, o que provoca graves danos tóxicos no sistema nervoso. Dessa forma, evita-se uma enfermidade herdada que parece vel - e de fato é - se estabelecida. Por sua vez, como demonstrou René as depres- sões relacionadas com abandono materno ou a falta de con- trole afetivo durante primeiro ano de vida são difíceis de alte- rar, mesmo que mais tarde se ofereça afeto e um ótimo meio familiar à criança. Portanto, há transtornos psíquicos adquiri- dos, isto é, provocados pelo meio, que se tornam praticamente permanentes e "imutáveis". 23 SPITZ, R. O primeiro ano de vida. São Paulo, Martins Fontes, 1988. 46</p><p>O início da vida / Vida no ventre materno / Fatores do desenvolvimento Herança psíquica É possível estabelecer a transmissão de caracteres psíqui- COS por via genética. Esta se observa em comportamentos seme- lhantes ou com pequenas variações entre os indivíduos de uma mesma família. Há um aspecto de semelhança ou de reprodução da se- melhança psíquica entre pais e filhos que não é totalmente ex- plicável pela vida em comum, isto é, pelos vínculos familiares. Portanto, não se pode falar em sentido estrito de herança psico- lógica, mas sim de uma herança de condições morfológicas, fisiológicas e patológicas (individuais, familiares ou étnicas) que influem na personalidade. Não se herdam comportamentos de forma direta e simples. A formação da estrutura cerebral e dos sistemas neurovegetativo e endócrino ocorre em um quadro geneticamente herdado e influi de modo mediato e indireto nos comportamentos. Hoje os cientistas avançaram mais no conhecimento da herança dos caracteres físicos do que dos psicológicos, como aptidões psicológicas ou traços de caráter. Assim, atribui-se à herança genética que é obra de uma iniciação precoce, da estimulação, da imitação ou da introjeção de um modelo de identificação. Recorre-se às vezes à noção de herança com uma atitude fatalista, para justificar a não-realização do esforço que representa educar. Podemos afirmar que os comportamentos, incluindo aprendidos, não fogem de uma certa influência da informação genética herdada, assim como os próprios comportamentos "não- aprendidos" ou "instintivos" têm no ser humano um desenvol- vimento que implica aprendizado. Diversas pesquisas sobre a hereditariedade da personali- dade, das aptidões e faculdades psíquicas chegam à conclusão de que a estrutura genética fixa limites ao desenvolvimento intelectual, influi na expressividade emocional e nas caracterís- ticas da afetividade, e é um fator presente nos transtornos 47</p><p>Capítulo psíquicos e no retardamento mental. Desde O início do século XX, estudos como os de Heymans e confirmaram o caráter hereditário da afetividade e dos estados de humor. A seguir, exporemos de forma sintética as teorias de Freud, Jung e Piaget tema. O problema da herança, isto do inato e do constitucio- nal, foi tratado de forma constante ao longo da obra de Freud. Sobre o tema, ele afirma: "Aproveito esta oportunidade para me defender da acusação errônea de haver negado a importância dos fatores inatos (constitucionais) [...] A psicanálise já falou muito sobre os fatores acidentais na etiologia e pouco sobre os constitucionais, mas isto se deveu apenas ao fato de ter podido contribuir com algo de novo para os primeiros, enquanto, inicialmente, não sabia mais do que era comumente conhecido sobre os últimos [...] Incidentalmente, poder-se-ia ousar encarar a própria constituição como um precipitado dos efeitos aciden- tais produzidos na cadeia infindavelmente longa de nossos an- O contexto histórico da Psiquiatria da época freudiana admitia a doutrina da degeneração, de Morel, a dos desequilí- brios mentais, de Magnan, além das teorias de Esquirol, Bayle e Kahlbaum. Freud discorda dessas teorias, que só falam de de- generação, de disposição hereditária, de inferioridade consti- tucional, e tenta esclarecer sentido e alcance dessa terminolo- gia. Para isso, aceita a teoria da herança dos caracteres adquiri- dos proposta pelo lamarckismo (cf., neste mesmo capítulo, sário de genética", pp. 41-44). 24 HEYMANS, G. & Die Korrelationen der Aktivität, der Emotionalität und der Sekundärfunktion. Zeitschrift für Psychologie, 51, 1909, pp. 1-45. Apud: NUTTIN, J. A estrutura da personalidade. Rio de Janeiro, Zahar, 1982. 25 FREUD, S. (1912b). A dinâmica da transferência. In: Obras completas. Rio de Janeiro, Imago, 1974. V. XII, pp. 133-134. 48</p><p>início da vida / Vida no ventre materno / Fatores do desenvolvimento No seu trabalho Estudos sobre a para estudar a etiologia da doença, Freud introduz conceito de predisposi- ção hereditária. Mais tarde, enquadra-a na noção de "equação etiológica" ou de séries complementares, a saber, herança-pre- disposições adquiridas (primeira série) e inato-acidental (segun- da série). Para Freud, inato compreende, por exemplo, as pulsões recebidas por via filogenética, a constituição física se- xual, as zonas erógenas, os diques da repressão, as fantasias filogenéticas (cena primária, castração, sedução, complexo de Édipo); já acidental abarca as vivências traumáticas infantis, o destino posterior do pulsional, seja ele sublimado ou constitua um quadro patológico de perversão ou neurose. Nessa propos- ta, entre os dois elementos da equação, autor supõe a coope- ração, e não a exclusão de um deles. Por meio do uso da noção de séries complementares, se- ria possível esquematizar a etiologia das neuroses e psicoses, e generalizar esse modelo para todo comportamento da maneira indicada a seguir: SÉRIES COMPLEMENTARES CONSTITUIÇÃO INFANTIS Fatores hereditários REAIS OU FANTASIADAS série Vivências maternas que (do nascimento aos complementar agem sobre o feto 5 anos) Amadurecimento série Predisposição FATOR DESENCADEANTE complementar (Fixação) Conflito real (frustração, impedimento externo, privação) Comportamento 26 FREUD, S. (1895d). Estudos sobre a histeria. In: Obras completas. Rio de Janeiro, Imago, 1974. V. 49</p><p>Capítulo I Em suas últimas obras, estabelece a extensão do conceito de herança, que atinge, no aparelho psíquico, tanto id quanto o superego. O id é a instância mais antiga do apare- lho psíquico. Seu conteúdo é inconsciente, em parte herdado e aparece em formações como os sonhos ou atos falhos, por exem- plo. Contém a instância representante das pulsões, as quais pro- vêm da organização corporal e expressam-se aqui de forma psí- quica. Como algo proveniente do período infantil, no qual a criança depende dos pais, cria-se-no ego um espaço que pro- longa a ação deles, que é o superego. Tanto o id quanto supe- rego mantêm as marcas do passado: primeiro, enquanto her- dado; o segundo, enquanto o ontem é assumido por outro, isto é, a repetição de uma vivência filogenética ancestral. Freud estende esse conceito de herança ao desenvolvimen- to do ego, que parte do herdado geneticamente, mas é assumido ontogenicamente em cada momento. No entanto, em livros anterio- res afirmava que não era possível falar em herança direta do ego. Em Moisés e o analisa o conceito e con- teúdo da herança arcaica, que compreende, entre outros, as in- clinações para reagir a estímulos, as pegadas mnemônicas do que foi vivenciado por gerações anteriores, a universalidade do simbolismo da linguagem, as reações a traumas precoces, as emoções, as fantasias primordiais, os mitos. Na Conferência XXIII da Introdução à pro- a partir da sua experiência clínica, a hipótese da presença de fantasias primárias, como na análise do "homem dos lobos",30 27 FREUD, S. (1923b). O ego e o id. In: Obras completas. Rio de Janeiro, Imago, 1976. XIX. 28 FREUD, S. (1939a). Moisés e o monoteísmo. In: Obras completas. Rio de Janeiro, Imago, 1975. V. XXIII. 29 FREUD, S. (1916-1917). Conferência XXIII. In: Obras completas. Rio de Janeiro, Imago, 1976. V. XVI 30 FREUD, S. (1918b). História de uma neurose In: Obras completas. Rio de Janeiro, Imago, 1976. V. XVII. 50</p>