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<p>Jodi Picoult nasceu e cresceu em Long Island. Estudou Inglês e Escrita Criativa</p><p>na Universidade de Princeton e publicou dois contos na revista Seventeen</p><p>enquanto ainda era estudante. O seu espírito realista e a necessidade de pagar a</p><p>renda levaram a autora a ter uma série de empregos diferentes depois de se</p><p>formar: trabalhou numa corretora e numa editora, foi copywriter numa agência de</p><p>publicidade e professora de Inglês. É uma das autoras mais populares da</p><p>atualidade. Em 2003, foi galardoada com o New England Bookseller Award for</p><p>Fiction.</p><p>Título original: Second Glance</p><p>1.ª edição em papel: julho de 2017</p><p>Autora: Jodi Picoult</p><p>Tradução: Fernanda Oliveira</p><p>Revisão: Miguel Martins Rodrigues</p><p>Design da capa: Marta Teixeira</p><p>Imagem da capa: Getty Images</p><p>© 2003 by Jodi Picoult</p><p>All Rights Reserved</p><p>Published by arrangement with the original publisher, Atria Books, a Division of</p><p>Simon & Schuster, Inc.</p><p>[Todos os direitos para a publicação desta obra em língua portuguesa, exceto Brasil,</p><p>reservados por Bertrand Editora, Lda.]</p><p>Esta edição segue a grafia do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.</p><p>Bertrand Editora</p><p>Rua Prof. Jorge da Silva Horta, n.° 1</p><p>1500-499 Lisboa</p><p>www.bertrandeditora.pt</p><p>editora@bertrand.pt</p><p>Tel. 217 626 000</p><p>ISBN: 978-972-25-3481-9</p><p>Para Sammy, que é simultaneamente leitor e escritor.</p><p>Amo-te como daqui até à Lua e voltar.</p><p>Chocho,</p><p>Mãe</p><p>E se adormecesses?</p><p>E se, no teu sono, sonhasses?</p><p>E se, no teu sonho, fosses ao Céu</p><p>e aí colhesses uma flor misteriosa e bela?</p><p>E se, quando acordasses, tivesses a flor na mão?</p><p>Ah!, como seria então?</p><p>— SAMUEL TAYLOR COLERIDGE</p><p>PRIMEIRA PARTE</p><p>2001</p><p>O amor verdadeiro é como os fantasmas:</p><p>todos falam dele, mas poucos o viram.</p><p>— FRANÇOIS, DUQUE DE LA ROCHEFOUCAULT, MÁXIMA 76</p><p>1</p><p>Ross Wakeman foi bem-sucedido da primeira vez que se matou,</p><p>mas não da segunda nem da terceira.</p><p>Adormeceu ao volante e o carro galgou a ponte e caiu num lago</p><p>— isso foi da segunda vez —, tendo sido encontrado na margem</p><p>pela equipa de socorro. Quando o seu Honda meio afundado foi</p><p>resgatado, as portas encontravam-se todas trancadas e o vidro</p><p>temperado das janelas estava estilhaçado qual teia de aranha,</p><p>embora continuasse no lugar. Ninguém conseguiu perceber como é</p><p>que ele tinha saído do carro e muito menos como sobrevivera ao</p><p>acidente sem um arranhão.</p><p>Da terceira vez, Ross foi assaltado com violência em Nova Iorque.</p><p>O ladrão tirou-lhe a carteira e espancou-o, e depois deu-lhe um tiro</p><p>nas costas e deixou-o como morto. A bala, disparada</p><p>suficientemente próximo para lhe destroçar a omoplata e perfurar</p><p>um pulmão, não o fez. Em vez disso, deteve-se milagrosamente no</p><p>osso, uma pequena pepita de chumbo que Ross usava agora como</p><p>porta-chaves.</p><p>A primeira vez tinha sido anos antes, quando Ross deu por si no</p><p>meio de uma tempestade elétrica. O raio, um belo clarão azul,</p><p>riscara o céu e fora direitinho ao seu coração. Os médicos disseram-</p><p>lhe que tinha estado legalmente morto durante sete minutos.</p><p>Concluíram que a corrente não podia tê-lo atingido diretamente, pois</p><p>50 000 amperes na sua cavidade torácica teriam deixado o líquido</p><p>das suas células em ebulição e tê-lo-iam feito literalmente explodir.</p><p>Em vez disso, o raio tinha atingido um local próximo e criado uma</p><p>corrente induzida no seu corpo, ainda assim suficientemente forte</p><p>para lhe perturbar o ritmo cardíaco. Os médicos disseram que ele</p><p>era um homem com uma sorte dos diabos.</p><p>Estavam enganados.</p><p>Agora, enquanto subia às escuras o telhado íngreme e molhado</p><p>da casa dos O’Donnells, em Oswego, Ross nem sequer se</p><p>preocupava em ter cuidado. O vento que vinha do lago Ontário era</p><p>frio, mesmo em agosto, e o cabelo comprido fustigava-lhe os olhos à</p><p>medida que ele se movimentava à volta da janela de empena. A</p><p>chuva batia-lhe na nuca enquanto fixava os grampos ao</p><p>revestimento de zinco e posicionava a câmara de vídeo à prova de</p><p>água, de forma a apontá-la para o sótão.</p><p>As botas escorregaram, fazendo saltar algumas ripas antigas. No</p><p>chão, protegido por um guarda-chuva, O’Donnell levantou a cabeça,</p><p>de olhos franzidos.</p><p>— Tenha cuidado — gritou.</p><p>Ross também ouviu as palavras que ele não pronunciou: Já</p><p>temos fantasmas que cheguem.</p><p>Mas não ia acontecer-lhe nada. Não ia tropeçar nem cair. Era por</p><p>isso que se oferecia para as tarefas mais arriscadas e se expunha</p><p>constantemente ao perigo. Era por isso que tinha experimentado</p><p>bungee-jumping, escalada em rocha e crack. Acenou ao senhor</p><p>O’Donnell, lá em baixo, para mostrar que tinha ouvido. Mas, da</p><p>mesma maneira que Ross sabia que o Sol nasceria daí a oito horas,</p><p>da mesma maneira que sabia que teria de aguentar o ramerrame de</p><p>mais um dia, também sabia que não conseguiria morrer, embora</p><p>fosse o que mais desejava.</p><p>O bebé acordou Spencer Pike, que se esforçou por se sentar.</p><p>Apesar das luzes mantidas acesas durante a noite em todos os</p><p>quartos da Casa de Repouso Shady Pines — um número de watts</p><p>suficiente, imaginava ele, para iluminar toda a cidade de Burlington,</p><p>Vermont —, Spencer não conseguia ver para lá dos pés da cama.</p><p>Nos dias que corriam, já não via nada, graças às cataratas, embora</p><p>às vezes se levantasse para urinar e, ao passar pelo espelho,</p><p>vislumbrasse alguém a observá-lo, alguém cuja testa não estava</p><p>cheia de manchas e amarelecida, alguém cuja pele não estava a</p><p>despedir-se dos seus ossos. Mas depois o jovem que Spencer fora</p><p>em tempos desaparecia, deixando-o a olhar para as migalhas de</p><p>vida que lhe restavam.</p><p>Os seus ouvidos, porém, eram apurados. Ao contrário dos outros</p><p>velhos idiotas que ali se encontravam, Spencer nunca precisara de</p><p>aparelho auditivo. Caramba, até ouvia coisas que não queria…</p><p>Como se fosse a sua deixa, o bebé voltou a chorar.</p><p>A mão de Spencer arrastou-se sobre os cobertores para premir a</p><p>campainha ao lado da cama. Passado um momento, a enfermeira da</p><p>noite entrou no quarto.</p><p>— Senhor Pike — disse ela. — O que se passa?</p><p>— O bebé está a chorar.</p><p>A enfermeira afadigou-se atrás dele, virando almofadas e</p><p>elevando a cabeceira da cama.</p><p>— Aqui, não há bebés, o senhor sabe disso. Foi só um sonho. —</p><p>Deu-lhe umas palmadinhas no ângulo reto que tinha sido outrora um</p><p>ombro forte. — Vá, agora precisa de voltar a adormecer. Amanhã,</p><p>tem um dia muito agitado. Um encontro, lembra-se?</p><p>Porque é que ela lhe falava como se ele fosse uma criança?,</p><p>perguntou-se Spencer. E porque reagia ele como tal, voltando a</p><p>deitar-se sob a suave pressão das suas mãos e deixando-a puxar-lhe</p><p>os cobertores para o peito? Sentiu um nó na garganta ao evocar</p><p>uma memória que, embora indistinta, lhe trouxe as lágrimas aos</p><p>olhos.</p><p>— Precisa de um Naproxeno? — perguntou carinhosamente a</p><p>enfermeira.</p><p>Spencer abanou a cabeça. No fim de contas, tinha sido um</p><p>cientista. E ainda nenhum laboratório conseguira criar um</p><p>medicamento capaz de apaziguar aquela dor.</p><p>Em pessoa, Curtis Warburton era mais pequeno do que parecia</p><p>na televisão, mas não lhe faltava o magnetismo que fizera de</p><p>Bogeyman Nights o programa com maior audiência na sua faixa</p><p>horária. Tinha o cabelo preto espetado, como uma doninha, com</p><p>uma madeixa branca que possuía havia nove anos, desde a noite em</p><p>que o fantasma do avô lhe aparecera aos pés da cama e o levara</p><p>para o domínio da investigação paranormal. A esposa, Maylene, uma</p><p>mulher pequenina cujas capacidades mediúnicas eram bem</p><p>conhecidas da polícia de Los Angeles, estava empoleirada a seu</p><p>lado, a tirar notas enquanto ele fazia perguntas aos proprietários da</p><p>casa.</p><p>— Primeiro, foi na cozinha — murmurou Eve O’Donnell, e o</p><p>marido assentiu.</p><p>Estando ambos reformados, o casal tinha comprado três meses</p><p>antes aquela casa junto ao lago como retiro de verão, e desde então</p><p>que se confrontava com fenómenos sobrenaturais, pelo menos duas</p><p>vezes por semana.</p><p>— Por volta das dez da manhã, fechei todas as portas à chave,</p><p>liguei o alarme e fui à estação dos correios. Quando cheguei a casa,</p><p>o alarme continuava ligado… mas, cá dentro, os armários da cozinha</p><p>estavam abertos e as caixas de cereais encontravam-se todas em</p><p>cima da mesa, deitadas de lado. Telefonei ao Harlan, a pensar que</p><p>ele tinha vindo a casa e deixado</p><p>Quando eu morrer, tens de lá estar.</p><p>Mas ele não tinha estado. E, no entanto, parecia que agora não</p><p>conseguia partir.</p><p>O consultório de Meredith Oliver no Generra Institute tinha um</p><p>código postal de Washington, D.C., e se se olhasse atentamente pela</p><p>janela era possível ver o Jefferson Memorial. Ela achava isso</p><p>bastante irónico, uma vez que a maior parte dos cientistas no seu</p><p>local de trabalho escarnecia do conceito de que todos os homens</p><p>nasciam iguais: na sua opinião, só os mais fortes sobreviviam.</p><p>Sentados à frente dela, apertando nervosamente as mãos um do</p><p>outro, estavam o senhor e a senhora De la Corria.</p><p>— Boas notícias — disse Meredith com um sorriso. Ao longo dos</p><p>dez anos em que já fazia diagnóstico genético pré-implantação,</p><p>aprendera que a única coisa mais angustiante para um casal do que</p><p>a fertilização in vitro era esperar pelos resultados dos testes que a</p><p>antecediam. — Há três embriões viáveis.</p><p>Carlos de La Corria era hemofílico. Apavorado com a possibilidade</p><p>de transmitir a doença aos filhos, ele e a mulher tinham optado pela</p><p>reprodução assistida, em que os embriões eram criados a partir dos</p><p>seus próprios esperma e óvulos e depois geneticamente</p><p>selecionados por Meredith. Antes de o embrião ser implantado no</p><p>seu útero, a mãe saberia que o bebé não possuía o gene da</p><p>hemofilia.</p><p>— Quantos são rapazes? — perguntou Carlos.</p><p>— Dois — respondeu Meredith, olhando-o nos olhos.</p><p>O gene da hemofilia estava localizado no cromossoma X. Isso</p><p>significava que um bebé do sexo masculino dos De la Corria não</p><p>poderia transmitir a doença do pai. Com efeito, se só tivessem</p><p>rapazes, erradicariam a hemofilia das futuras gerações da família.</p><p>Carlos levantou a esposa da cadeira e fê-la rodopiar pelo</p><p>consultório de Meredith. Todos os moralistas que ficavam</p><p>aterrorizados com as possibilidades da modificação genética… bem,</p><p>só precisariam de testemunhar um momento como aquele. Meredith</p><p>tinha duas fotografias na secretária: uma de Lucy e outra da sua</p><p>primeira paciente, uma mulher com fibrose quística e um ar</p><p>radiante, a segurar o filho que, graças a Meredith, tinha nascido sem</p><p>a doença.</p><p>A senhora De la Corria deixou-se cair novamente na cadeira,</p><p>ainda sem fôlego.</p><p>— E a menina? — perguntou baixinho.</p><p>— O terceiro embrião testado é, de facto, portador. Lamento —</p><p>replicou Meredith.</p><p>Carlos apertou a mão da esposa.</p><p>— Bem, nesse caso — disse ele, com ar otimista —, parece que</p><p>vamos ter rapazes gémeos.</p><p>Ainda havia muitos obstáculos a superar e uma grande</p><p>possibilidade de os embriões não vingarem, mas Meredith já fizera a</p><p>sua parte. A partir daquele momento, seriam outros médicos do</p><p>Generra a tratar da implantação. Aceitou a gratidão dos De La Corria</p><p>e a seguir examinou o horário de consultas. Ainda tinha mais duas, e</p><p>depois a tarde toda para trabalhar no laboratório.</p><p>Pôs os óculos de leitura que guardava numa bolsa, pois era</p><p>demasiado vaidosa para os ter à mostra, e tirou a caneta que lhe</p><p>segurava os caracóis numa espécie de puxo. O seu cabelo cor de</p><p>mel caiu-lhe sobre os ombros todo emaranhado, a confusão de</p><p>sempre, como se tivesse sido uma piada divina dar a Meredith</p><p>Oliver, a maníaca do controlo, cabelo que parecia ter vontade</p><p>própria. Passou as mãos pelo rosto e esfregou os olhos castanhos</p><p>raiados de sangue.</p><p>— Esta noite — disse para consigo em voz alta —, não vou ficar a</p><p>trabalhar. Vou para casa, tomo um banho quente e leio qualquer</p><p>coisa à Lucy sem ser um artigo do Journal of Theriogenology.</p><p>Perguntou-se se o facto de dizê-lo, em vez de se limitar a pensá-</p><p>lo, tornaria mais provável a sua concretização.</p><p>— Doutora Oliver? — Um toque na porta, logo seguido pela</p><p>secretária de Meredith. — Os De la Corria assinaram este</p><p>documento.</p><p>Mesmo sem olhar, ela sabia do que se tratava: a autorização para</p><p>o Generra se desfazer do terceiro embrião, do sexo feminino.</p><p>— Eles deviam esperar pela implantação. Há sempre a hipótese</p><p>de não vingar e, nesse caso…</p><p>A voz morreu-lhe nos lábios. De qualquer modo, não faria</p><p>diferença. Os De la Corria preferiam não ter filhos a utilizar aquele</p><p>embrião defeituoso. A bebé não seria hemofílica — aliás, o mais</p><p>provável era ser uma menina perfeitamente saudável, com o cabelo</p><p>resplandecente da mãe e os olhos castanhos do pai —, mas era</p><p>suscetível de transmitir a doença aos seus filhos homens um dia e,</p><p>sendo assim, os pais preferiam que ela não nascesse.</p><p>Meredith assinou o documento e pô-lo de lado.</p><p>— Os Albertsons estão aqui — disse a secretária.</p><p>— Dê-me um minuto.</p><p>Mal a porta se fechou, pegou no telefone e ligou para casa.</p><p>Imaginou a filha sentada à mesa da cozinha, com as duas tranças</p><p>caídas sobre as costas como a réplica do genoma humano, enquanto</p><p>praticava os us e os vês para o trabalho de caligrafia. Ulisses</p><p>usurpou a última uva.</p><p>— Estou? — atendeu Lucy.</p><p>— Olá, fofinha!</p><p>— Mãe! Onde estás?</p><p>— Em Júpiter. E tu?</p><p>— No deserto do Calamari.</p><p>Meredith sorriu.</p><p>— Deves estar a falar do Kalahari.</p><p>— Quando é que vens para casa?</p><p>— Não tarda.</p><p>Houve um momento de silêncio.</p><p>— Antes de ficar escuro?</p><p>Meredith fechou os olhos.</p><p>— Estou aí à hora de jantar — prometeu. — Diz à avó Ruby. E</p><p>não comes mais Oreos até eu chegar a casa.</p><p>Lucy susteve a respiração.</p><p>— Como é que sabias que eu estava…</p><p>— Porque sou tua mãe. Adoro-te.</p><p>Desligou e depois enrolou o cabelo no alto da cabeça. Procurou</p><p>um elástico na gaveta, mas só encontrou uns quantos clipes, que</p><p>funcionaram quase tão bem como ganchos de cabelo. O seu olhar</p><p>pousou no documento que os De la Corria tinham assinado.</p><p>Obedecendo a um impulso, enfiou-o na gaveta de baixo da</p><p>secretária. Ia perdê-lo temporariamente. Pelo sim, pelo não.</p><p>Premiu o botão do intercomunicador e, passado um momento, a</p><p>porta abriu-se e os Albertsons entraram. Tinham um ar abatido e</p><p>exausto, como a maior parte dos outros casais que entravam no seu</p><p>consultório pela primeira vez. Meredith estendeu a mão.</p><p>— Sou a doutora Oliver. Analisei o vosso caso. E — acrescentou</p><p>rapidamente — posso ajudar.</p><p>Az sabia que, se a coisa ficasse feia, não seria capaz de expulsar</p><p>um esquilo da Pedreira dos Anjos, quanto mais perseguir um intruso</p><p>armado. Os proprietários mantinham-no como segurança por</p><p>benevolência ou piedade, ou talvez porque ele apenas se dava ao</p><p>trabalho de levantar metade dos cheques com o salário, não tendo</p><p>grande utilidade para eles a longo prazo. Felizmente, só havia uma</p><p>estrada de acesso à pedreira, embora de facto Az não lhe prestasse</p><p>muita atenção. Sentou-se na pequena guarita iluminada no escritório</p><p>da pedreira, onde três televisões em circuito fechado vigiavam a</p><p>atividade em diferentes locais, e centrou a atenção no quarto</p><p>monitor, sintonizado num jogo dos Red Sox.</p><p>— Ora — resmungou ele para o batedor. — Pagam-te onze</p><p>milhões de dólares por ano para isso?</p><p>A pedreira era uma das minas de granito do Vermont: veios de</p><p>rocha embutidos nas escarpas como as rugas fundas no rosto de Az.</p><p>Em tempos, os mineiros introduziam os explosivos manualmente,</p><p>detonavam-nos e extraíam a pedra para exportação. Atualmente, era</p><p>quase tudo computorizado. Trabalhando sozinho à noite, ele nunca</p><p>via ninguém… e, tanto quanto sabia, também era assim nas horas</p><p>de maior movimento. Por vezes, perguntava-se se seria o único ser</p><p>humano ali empregado.</p><p>Nos trinta anos em que já trabalhava na pedreira, só tinha</p><p>apresentado dois relatórios de segurança. Um envolvia uma</p><p>tempestade elétrica que provocou a explosão de uma carga</p><p>preparada para detonar no dia seguinte. O segundo tinha a ver com</p><p>um suicida, que escalou o muro de proteção e tentou saltar de uma</p><p>das escarpas para o amontoado de pedras cheias de arestas cá em</p><p>baixo. O palerma fraturou ambas as pernas, recuperou e depois</p><p>abriu um negócio na Internet.</p><p>Az gostava de trabalhar à noite, e gostava de trabalhar sozinho.</p><p>Se estivesse em silêncio enquanto fazia as suas rondas, conseguia</p><p>ouvir os botões das flores a abrirem e cheirar as mudanças de</p><p>estação. De vez em quando, deitava-se de costas com as mãos atrás</p><p>da cabeça e via as estrelas reconfigurarem-se nas constelações da</p><p>sua vida: o touro bravo da frustração, os pratos desequilibrados da</p><p>balança</p><p>da justiça, os amores gémeos que perdera havia uma</p><p>eternidade.</p><p>Perguntou-se o que se estaria a passar no Otter Creek Pass. Na</p><p>semana em que Rod van Vleet estivera no local, o protesto dos</p><p>Abenaki intensificara-se e o público tinha ficado atento. Ajudava o</p><p>facto de Abbott Thule, o bêbedo da vila, ter acordado uma manhã</p><p>com o cabelo, antes liso, todo encaracolado e ter passado um dia</p><p>inteiro na igreja a levar a sua dose de Jesus e a culpar os fantasmas</p><p>pelo seu infortúnio. Os boatos voavam pela vila de Comtosook como</p><p>as ocasionais pétalas de rosa que caíam como pólen sobre os carros</p><p>estacionados no parque do Dairy Twirl e entupiam os ralos nos</p><p>chuveiros exteriores da piscina municipal.</p><p>Se Rod van Vleet tivesse dois dedos de testa, levaria os materiais</p><p>de construção para o local durante a noite, quando a maior parte</p><p>dos índios ressonava nas suas tendas, longe dali. Ainda bem que o</p><p>testa de ferro do Grupo Redhook era um idiota. Tendo em conta a</p><p>habitual desorganização do protesto dos Abenaki, punha-os em pé</p><p>de igualdade.</p><p>Um pequeno pirilampo passou a piscar pelo seu olho esquerdo.</p><p>Mas logo de seguida Az apercebeu-se de que afinal não era um</p><p>inseto, mas uma pequena luz vacilante no ecrã escuro como breu de</p><p>uma das televisões, aquela que vigiava a parede norte da mina e o</p><p>local de extração mais ativo. Sentiu uma onda de calor percorrer-lhe</p><p>a espinha e levou um momento a reconhecê-la como excitação.</p><p>Enfiando o chapéu na cabeça, precipitou-se na direção do sítio onde</p><p>vira a luz. O peso dos anos ia desaparecendo a cada passo, até</p><p>voltar a ser direito e forte como um carvalho que desafiava o céu,</p><p>até precisarem dele.</p><p>Ross não sabia dizer quem era o mais culpado: se Ethan, por ter</p><p>semeado a dúvida na sua mente, ou ele próprio, por lhe ter dado</p><p>ouvidos. Toda a gente diz que a Pedreira dos Anjos está</p><p>assombrada, dissera o sobrinho. Caminhou cuidadosamente ao</p><p>longo do caminho estreito até sentir os pelos eriçarem-se na nuca.</p><p>Portanto, era ali que se iria instalar. Não se atreveu a usar logo a</p><p>lanterna, algo que tinha aprendido cedo com os Warburtons.</p><p>Normalmente, as autoridades deixavam os caçadores de fantasmas</p><p>em paz, mas invasão de propriedade não deixava de ser invasão de</p><p>propriedade. Quando se explorava um cemitério, por exemplo,</p><p>aprendia-se a entrar de marcha atrás com os faróis dianteiros</p><p>apagados, para poder fugir rapidamente. Da mesma forma, se se</p><p>entrasse à socapa numa propriedade privada a meio da noite, fazia-</p><p>se o possível para não chamar a atenção sobre si.</p><p>Pensar em Aimee naquela tarde dera-lhe vontade de tentar uma</p><p>última vez, apesar de ter dito a Shelby que se retirara da</p><p>investigação paranormal. Por isso, tinha ido do lago Champlain a</p><p>Burlington, a uma loja de eletrónica, onde comprara uma câmara de</p><p>infravermelhos nova. Quando Shelby pôs o jantar na mesa, ele</p><p>disse-lhe que tinha um encontro nessa noite.</p><p>— A sério? — disse a irmã, com um sorriso tão animado que Ross</p><p>até se sentiu mal. — Quem é ela?</p><p>— Não tens nada a ver com isso.</p><p>— Ross — replicou Shelby —, é exatamente disso que precisas.</p><p>Ele detestava ter-lhe mentido. Detestava o modo como ela</p><p>enfiara as mãos pela janela do carro antes de ele se ir embora para</p><p>lhe endireitar o colarinho da camisa, o modo como lhe dissera que a</p><p>porta estaria aberta quando chegasse a casa.</p><p>Agora, enquanto a irmã se perguntava qual seria a mulher com</p><p>quem ele se fora encontrar, Ross equilibrou a lanterna num</p><p>afloramento de rocha, para poder montar o tripé para a câmara de</p><p>vídeo.</p><p>— Não vou ver nada — murmurou, enquanto espreitava pelo</p><p>visor.</p><p>Hesitou, e depois praguejou.</p><p>Estava retirado.</p><p>Já não acreditava em fantasmas.</p><p>Mas e se fosse desta vez que algo se materializasse à sua frente?</p><p>E se ele se fosse embora naquele momento, sem ter a certeza</p><p>absoluta? Se Ethan tinha razão e alguém fora assassinado na</p><p>pedreira, havia excelentes hipóteses de andar por ali um espírito</p><p>inquieto. Aqueles que não rumavam ao Céu, ou ao que quer que</p><p>fosse que se seguia, eram os que tinham deixado assuntos por</p><p>resolver: pessoas vítimas de morte violenta ou que se tinham</p><p>suicidado sem deixar uma mensagem. Às vezes, ficavam porque não</p><p>queriam deixar alguém que amavam.</p><p>Ross sabia que, se a sorte estivesse do seu lado quando ligasse a</p><p>câmara, talvez fosse capaz de captar algumas luzes fugidias ou um</p><p>ou dois glóbulos. Talvez fosse capaz de captar alguns FVE, isto é,</p><p>fenómenos de voz eletrónica. E, se existisse alguma prova de</p><p>atividade paranormal naquela pedreira, também era possível que</p><p>Aimee se encontrasse algures.</p><p>Orientando-se pelos seus sentidos, apontou a câmara para um</p><p>local da pedreira que estava constantemente a atrair o seu olhar,</p><p>embora não fizesse ideia se teria sido ali que ocorrera um homicídio.</p><p>Pôs uma cassete nova e verificou a bateria, e depois recostou-se à</p><p>espera.</p><p>De repente, sentiu uma luz cegá-lo.</p><p>— Posso explicar… — começou.</p><p>Porém, o que quer que fosse que ia dizer morreu-lhe nos lábios</p><p>quando se deparou com um ancião que envergava um uniforme de</p><p>segurança obsoleto; um homem que tinha tanto mundo nos seus</p><p>olhos, que Ross tinha a certeza de estar a olhar para um fantasma.</p><p>— Quem é você? — perguntou o homem em voz sumida a Az.</p><p>Estava boquiaberto como se nunca antes tivesse visto um nativo</p><p>e, sinceramente, isso deixou Az irritado.</p><p>— Está a invadir propriedade privada — disse ele.</p><p>— Esta terra era sua?</p><p>Santo Deus, e ainda diziam que os índios é que alucinavam com</p><p>mescalina! Ele era velho, é verdade, e usava o mesmo uniforme</p><p>havia já vinte e cinco anos, mas mesmo assim… O tipo tinha um ar</p><p>bastante normal… até talvez tivesse um bocadinho de sangue</p><p>abenaki, com aquele cabelo escuro e comprido. E só isso foi o</p><p>suficiente para Az se condoer dele.</p><p>— Ouça, vamos fazer o seguinte. Você junta as suas coisas,</p><p>desiste do que quer que esteja a fazer e põe-se a andar, e eu não</p><p>digo a ninguém que o vi.</p><p>O homem assentiu e depois precipitou-se para a frente, tentando</p><p>tocar-lhe. Apanhado de surpresa, Az afastou-se e puxou do seu</p><p>cassetete.</p><p>— Por favor! Eu só… só queria fazer-lhe umas perguntas.</p><p>Santo Deus! Por aquele andar, Az ia perder todo o sétimo período</p><p>de jogo.</p><p>— Vive aqui?</p><p>— Não, e também não tenho um tipi, se é o que vai perguntar a</p><p>seguir. — Agarrou-o pelo braço. — Agora, desligue essa coisa e…</p><p>— Consegue tocar-me…?</p><p>— Também consigo dar-lhe uma coça, se continuar com isto —</p><p>disse Az. — Mas, como os Red Sox estão empatados com os</p><p>Yankees, terá de ser rápido.</p><p>O intruso desvaneceu-se… era a única palavra para explicar o</p><p>sucedido. Era a mesma coisa que Az presenciara vezes sem conta</p><p>junto ao leito de morte de um amigo: aquela luz que fazia da pessoa</p><p>quem ela era a apagar-se de repente.</p><p>— Os Red Sox — murmurou o homem. — Então, não é um</p><p>fantasma.</p><p>— Posso ser velho, mas tenho a certeza de que não estou morto.</p><p>— Pensei que era… — Abanou a cabeça e depois estendeu-lhe a</p><p>mão. — Sou o Ross Wakeman.</p><p>— É mas é maluco!</p><p>— Isso também, suponho. — Ross passou a mão pelo cabelo. —</p><p>Sou investigador paranormal. Bem, pelo menos, era.</p><p>Az encolheu os ombros.</p><p>— E já encontrou alguma coisa?</p><p>Ele ficou calado por um momento.</p><p>— Há aqui alguma coisa para encontrar?</p><p>— Eu nunca vi nada. Pelo menos, aqui.</p><p>— Mas já viu noutros lugares?</p><p>Az evitou a pergunta.</p><p>— Não pode ficar. Isto é propriedade privada.</p><p>Ross pôs-se a arrumar o equipamento, sem grande pressa, ao</p><p>que parecia.</p><p>— Ouvi dizer que houve aqui um homicídio há muitos anos.</p><p>— É o que dizem.</p><p>— Sabe alguma coisa sobre isso?</p><p>Az olhou para o fundo da pedreira.</p><p>— Aconteceu antes de eu ser segurança.</p><p>— Certo. — Ross pegou no saco da câmara e pô-lo ao ombro. —</p><p>Desculpe aquilo de… ter confundido a sua identidade.</p><p>— Não tem importância.</p><p>E começou a escoltar o homem mais novo para fora dali. Quando</p><p>Ross estava a chegar ao carro, Az agarrou o portão de ferro com</p><p>uma mão.</p><p>— Senhor Wakeman — chamou. — Esses espíritos que procura?</p><p>Não está muito longe deles.</p><p>E voltou para a guarita da segurança, deixando Ross a pensar se</p><p>aquilo era uma promessa ou uma ameaça.</p><p>Ao longo das semanas seguintes, os residentes de Comtosook</p><p>começaram</p><p>a acreditar no inesperado. Mães que acordavam com as</p><p>gargantas tão embargadas de lágrimas, que não conseguiam chamar</p><p>pelos filhos. Homens de negócios que viam o seu reflexo numa</p><p>vidraça e, de repente, não conseguiam reconhecer o próprio rosto.</p><p>Jovens amantes que, estacionados junto ao lago e entrelaçados</p><p>como os fios de uma corda, sussurravam juras de amor</p><p>desesperadas para logo em seguida perceberem que as suas</p><p>palavras tinham saído sob a forma de bolas de sabão e rebentado</p><p>com igual rapidez.</p><p>Shelby Wakeman encontrou as janelas do lado norte da casa</p><p>pejadas de joaninhas. Rod van Vleet não conseguia fazer mais de</p><p>quinhentos metros no carro da empresa sem que o cheiro a frutos</p><p>silvestres entrasse pelas grelhas do ar condicionado, tornando o</p><p>interior do Taurus tão enjoativo e denso como geleia. Spencer Pike</p><p>enfiou a mão debaixo da almofada e descobriu três ovos de pisco-</p><p>azul.</p><p>Ethan, sabendo muito bem que não devia, deu por si a lançar</p><p>olhares furtivos ao sol.</p><p>Carradas de gatos fugiram de suas casas e foram até ao rio para</p><p>se banharem. O nível da água no lago Champlain subia e descia</p><p>duas vezes por dia, como se houvesse marés. As rosas libertaram-se</p><p>das suas treliças para crescerem em matagais silvestres e</p><p>emaranhados. Nada do que se comia à mesa sabia bem.</p><p>E, apesar do clima temperado de agosto, a disputada terra no</p><p>Otter Creek Pass gelou de tal maneira, que a escavação se tornou</p><p>uma impossibilidade física, assim como filosófica.</p><p>— O que achas disto? — perguntou Winks Smiling Fox,</p><p>resmungando enquanto deslocava o tambor um ou dois metros para</p><p>a esquerda.</p><p>Onde antes tinham estado sentados, o chão debaixo dos seus</p><p>pés estava gelado. Mas ali cresciam dentes-de-leão.</p><p>Havia casos documentados de congelamento do solo durante o</p><p>verão na Nova Inglaterra. Em 1794, o Almanaque do Agricultor</p><p>previu uma geada em julho devido a um erro tipográfico, mas isso</p><p>acabou inesperadamente por se verificar quando o monte Vesúvio</p><p>entrou em erupção e a poeira que expeliu para a atmosfera</p><p>provocou um inverno nuclear em miniatura. De tantos em tantos</p><p>anos, o Vermont era atingido por uma vaga de frio que cobria os</p><p>mirtilos de geada, provocando temperaturas negativas e secando os</p><p>frutos no arbusto. E, no entanto, em todos esses casos, os danos</p><p>atingiam a vila inteira, não apenas um pedaço de terra.</p><p>— Lembras-te das histórias sobre o Azeban? — perguntou Winks.</p><p>— Aquelas de quando éramos miúdos? Estou sempre a lembrar-me</p><p>delas.</p><p>— Azeban? — replicou Fat Charlie. — O trapaceiro?</p><p>— Hum, hum — anuiu Winks. — Lembras-te de como armava</p><p>uma cilada a alguém e acabava ele próprio por cair nela? Como</p><p>quando foi apagar a fogueira ao pé do Fox, que estava a dormir, e</p><p>acabou por sair queimado…</p><p>— Na verdade, não me importava de ter aqui uma fogueirinha</p><p>agora.</p><p>— Não, Charlie — disse Az, aparecendo por trás. — O que o</p><p>Winks quer dizer é que, quando fazemos mal aos outros, acabam</p><p>por nos acontecer coisas más.</p><p>Viu os amigos voltarem a sentar-se e pegarem nas suas</p><p>baquetas. Era assim que passavam o tempo, entrelaçando as vozes</p><p>num cordão de som comprido e forte. Tirando a canção que</p><p>entoavam na sua língua nativa quase esquecida, não havia outra</p><p>forma de saber que aquele grupo de homens era abenaki. Tinham</p><p>aprendido bem as lições do século passado, em que os seus</p><p>antepassados tinham casado com pessoas de outra raça, na</p><p>esperança de desaparecerem por trás de apelidos brancos e traços</p><p>caucasianos. Winks tinha cabelo louro e a pele de Fat Charlie era</p><p>branca como a de um irlandês.</p><p>— Acham que há mais alguma coisa por trás disto? — perguntou</p><p>Winks. — Não há dúvida de que andam a acontecer coisas</p><p>estranhas.</p><p>E não precisava de explicar, pois, além do solo congelado, o</p><p>proprietário de uma empresa de veículos pesados andava a usar um</p><p>aspirador para limpar todos os recantos das suas escavadoras, que</p><p>estavam entupidos de cigarras.</p><p>— Dizem na vila que, se os índios não puserem o Redhook a</p><p>andar, os fantasmas tratam disso — acrescentou Fat Charlie.</p><p>— Se a minha sepultura fosse revolvida por um buldózer, eu</p><p>também ia ficar bastante chateado. Havia de cá voltar a arrastar</p><p>correntes, pois claro — resmungou Winks. — Estão a ver aquele</p><p>arqueólogo do governo? Diz um pai-nosso baixinho sempre que acha</p><p>que ninguém está a ouvir. Mesmo que os fantasmas não existam, a</p><p>verdade é que eles andam assustados como o caraças!</p><p>— Não existam? O espírito do meu tio-bisavô apareceu-me</p><p>durante um ritual de purificação no ano passado — disse Fat Charlie.</p><p>— E tu também os viste, não foi, Az?</p><p>— Há uma diferença entre os espíritos que seguiram o seu</p><p>caminho e aqueles que não conseguem partir — disse Az. Pegou</p><p>numa faca e começou a aguçar um galho. — Onde eu vivia, havia</p><p>uma rapariga cujos pais lhe disseram que não podia desposar o</p><p>rapaz que amava. Por isso, ela enforcou-se numa faia no topo de</p><p>uma colina. Depois do enterro, o namorado subiu à mesma árvore e</p><p>também se enforcou. E, quando um índio se enforca, o seu espírito</p><p>não pode subir às alturas, fica preso ao corpo. — Testou a ponta da</p><p>sua flecha. — Depois de eles morrerem, costumavam aparecer à</p><p>noite duas luzes azuis sobre a colina.</p><p>Winks inclinou-se para a frente, com os cotovelos apoiados nos</p><p>joelhos.</p><p>— Alguma vez alguém se aproximou delas?</p><p>O velho passou novamente a faca ao longo do galho. Atrás dele,</p><p>conseguia sentir Rod van Vleet, a fazer tudo ao seu alcance para</p><p>fingir que não estava a ouvir.</p><p>— Ninguém foi suficientemente estúpido para tentar —</p><p>respondeu.</p><p>— Ethan?</p><p>Da sua posição estratégica por baixo dos estores opacos, Ethan</p><p>ficou petrificado ao ouvir a voz da mãe. Puxou o corpo para trás,</p><p>para deixar de estar encostado à vidraça quente, e fez desaparecer</p><p>os óculos de sol no intervalo entre a cama e a parede.</p><p>— Olá — disse, quando ela abriu a porta do quarto.</p><p>Os olhos de falcão da mãe abarcaram o edredão amarrotado, o</p><p>boné na cabeça do filho, as cortinas corridas. Aproximou-se dele,</p><p>semicerrou os olhos e puxou-lhe a manga da camisa para baixo,</p><p>onde havia pouco mais de meio centímetro de pele à mostra acima</p><p>do pulso.</p><p>— Vou trabalhar — disse ela. — A estas horas, já devias estar a</p><p>dormir.</p><p>— Não estou cansado — queixou-se Ethan. Mas começou a</p><p>pensar que a mãe devia estar exausta. Passar toda a noite acordada</p><p>com ele e trabalhar em part-time durante o dia na biblioteca? — E</p><p>tu, mãe, estás cansada?</p><p>— Sempre — respondeu ela, despedindo-se com um beijo.</p><p>Ele esperou até ouvir os passos dela ecoarem nos mosaicos do</p><p>chão da cozinha. A mãe e o tio Ross trocaram palavras como cartas</p><p>de jogar sobre até que horas ele podia ficar levantado e o que fazer</p><p>em caso de emergência. Ethan enfiou a mão junto à cama e</p><p>procurou até encontrar os óculos de sol espelhados. Enterrou ainda</p><p>mais o boné na cabeça. Depois levantou a ponta do estore opaco e</p><p>enroscou-se como um gato no peitoril. Passados minutos,</p><p>começaram a surgir queimaduras na sua pele branca como giz, o</p><p>seu rosto encheu-se de manchas, mas Ethan não se importou.</p><p>Ficaria com cicatrizes, se tal fosse necessário para provar que tinha</p><p>feito parte deste mundo.</p><p>Os cientistas do CRREL, o Corpo de Engenharia do Exército, que</p><p>tinham vindo numa carrinha de Hanover, New Hampshire, até</p><p>Comtosook e passado o dia a recolher amostras com brocas próprias</p><p>para perfurar solo congelado como pedra, só falaram com Rod van</p><p>Vleet de modo vago. Tinham vindo por curiosidade académica e</p><p>fizeram comentários sobre o impacto da distribuição do degelo na</p><p>mobilidade dos veículos… mas não explicaram como ou por que</p><p>razão aquilo tinha ocorrido ali e naquela altura.</p><p>O tipo que veio do Instituto de Investigação Scott Polar disse que</p><p>parecia permafrost, um fenómeno dependente do clima que ocorria</p><p>quando a temperatura do solo permanecia negativa durante dois ou</p><p>mais anos, o que não era o caso do Otter Creek Pass. Falou do gelo</p><p>que preenche os poros do sedimento, das lâminas de gelo</p><p>segregado e dos pingos, e lembrou Rod de que, a dada altura,</p><p>Burlington e arredores tinham sido uma zona glacial.</p><p>Uma equipa dinamarquesa telefonou a perguntar se o</p><p>congelamento súbito do terreno tinha</p><p>afetado a composição química</p><p>da atmosfera e se Rod consideraria a hipótese de vender a</p><p>propriedade em nome da ciência.</p><p>Porém, apesar da sabedoria conjunta que estes cientistas tinham</p><p>para oferecer, nenhum deles conseguia explicar os desejos</p><p>extravagantes que sentiam assim que entravam em Comtosook:</p><p>chips de banana, violetas cristalizadas e a suave película dos pudins</p><p>caseiros. Não eram capazes de comentar a forma como a solidão se</p><p>empoleirava nas linhas telefónicas como um corvo, a não ser para</p><p>observar que era normal isso acontecer em regiões onde o frio se</p><p>infiltrava de modo tão profundo, que era fisicamente impossível</p><p>contactar quem quer que fosse.</p><p>Quando regressavam aos seus laboratórios e às suas fortalezas</p><p>académicas e sacavam das suas amostras, limpando a camada de</p><p>pétalas dos tubos de ensaio e das bolsas de gel térmico, já tinham</p><p>esquecido essas bizarrias. Já sabiam o que os residentes de</p><p>Comtosook estavam agora a aprender: que o mundo é um lugar</p><p>onde a fronteira entre o extraordinário e o normal é extremamente</p><p>ténue; e que, mesmo em ambientes inóspitos para o homem, todo o</p><p>tipo de entidades pode florescer.</p><p>A Biblioteca Pública de Comtosook não recebia muitos visitantes,</p><p>o que era uma bênção, dado o tamanho do edifício. Salas</p><p>minúsculas enfiadas umas atrás das outras como pérolas, muito</p><p>mais adequadas para uma pequena pousada do que para um</p><p>repositório de literatura. A altura de maior afluência era nas manhãs</p><p>de quinta-feira, quando chegava a haver trinta crianças do pré-</p><p>escolar deitadas de barriga para baixo nos dois pequenos enclaves</p><p>que constituíam a secção juvenil, para a hora do conto. A</p><p>bibliotecária infantil tinha de andar de um lado para o outro entre as</p><p>salas com um livro aberto, para todos os miúdos poderem ver.</p><p>Havia estantes a formarem ângulos, estantes implantadas no</p><p>meio do chão, estantes deitadas de lado, se necessário, tudo o que</p><p>fosse preciso para acomodar um grande número de volumes num</p><p>espaço inadequado. A bibliotecária responsável pelas consultas —</p><p>Shelby, durante as manhãs dos dias úteis — precisava de conhecer o</p><p>sistema de classificação decimal de Dewey e vários motores de</p><p>busca, assim como saber navegar no site da biblioteca, para</p><p>encontrar os frutos desse trabalho. Contudo, a maior parte do</p><p>tempo, Shelby ficava livre para fazer o que quisesse durante as</p><p>horas de expediente, e o que ela gostava de fazer era ruminar</p><p>palavras.</p><p>Adorava-as da mesma forma que os epicuristas adoram comida:</p><p>cada sílaba era enrolada na língua, engolida e inteiramente</p><p>apreciada. Por vezes, sentava-se com o dicionário aberto e lia-o com</p><p>a mesma impaciência ansiosa que outra pessoa reservaria para um</p><p>policial. Alcantilado: escarpado. Encanecido: grisalho. Nidícola: ave</p><p>que se mantém no ninho até ser capaz de voar.</p><p>Imaginava receber um dia um telefonema de Meredith Vieira, do</p><p>Quem Quer Ser Milionário, ou de um apresentador de rádio a</p><p>oferecer-lhe uma fortuna se ela soubesse a definição de uma palavra</p><p>bizarra. «Piloso?», repetiria, e depois fingiria não saber para</p><p>aumentar o suspense. «Coberto de pelos.»</p><p>Era suficientemente inteligente, após quatro anos de</p><p>universidade e outros dois de pós-graduação, para saber que usava</p><p>a linguagem como os moradores ribeirinhos usavam sacos de areia:</p><p>para criar uma zona tampão entre ela própria e o resto do mundo.</p><p>Também sabia que podia aprender todas as palavras que vinham no</p><p>dicionário e ainda assim não conseguir explicar porque seguira a sua</p><p>vida o rumo que seguira.</p><p>Preocupava-se com Ethan; preocupava-se com Ross. Na verdade,</p><p>andava tão atarefada a tomar conta do mundo imediato, que isso a</p><p>impedia de pensar no facto de nunca haver ninguém por perto que</p><p>se preocupasse com ela.</p><p>A biblioteca estava vazia, resultado de os utilizadores habituais se</p><p>sentirem presentemente demasiado apreensivos para se</p><p>aventurarem a sair numa vila que se transfigurava diante dos seus</p><p>olhos. Para Shelby, as excentricidades recentes significavam ter de</p><p>varrer as pétalas dos degraus da entrada do edifício; não estava</p><p>preocupada com um Armagedão iminente, com o aquecimento</p><p>global ou com a chegada de fantasmas, como as conversas no</p><p>restaurante da vila sugeriam. Para uma mulher que tinha construído</p><p>um lar numa base de anormalidade, os acontecimentos recentes não</p><p>eram nada de especial.</p><p>Quando a porta se abriu com um rangido, Shelby ergueu o olhar.</p><p>Viu entrar um homem que nunca vira e que envergava um fato</p><p>demasiado caro para ter vindo de qualquer loja num raio de oitenta</p><p>quilómetros. No entanto, havia qualquer coisa… que não estava</p><p>bem. Tinha a gravata à banda e a pele quase tão branca quanto a</p><p>de Ethan. Olhou do soalho estranhamente inclinado para os ângulos</p><p>pronunciados da parede e para as pilhas de enciclopédias que a</p><p>forravam.</p><p>— É aqui a biblioteca?</p><p>— Sim. Posso ajudá-lo?</p><p>Ele olhou à sua volta como um pássaro, acabando por se fixar</p><p>em Shelby.</p><p>— Será sequer possível encontrar alguma coisa aqui?</p><p>Rabdomancia, pensou Shelby. Arte de adivinhar por meio de</p><p>varas.</p><p>— Depende. Está à procura de quê?</p><p>— Cemitérios índios. O que lhes aconteceu no passado quando</p><p>alguém construiu sobre eles. Precedentes jurídicos. Esse tipo de</p><p>coisas.</p><p>— Deve ser um dos promotores imobiliários — disse Shelby, e</p><p>conduziu-o até um local nas traseiras, onde havia um leitor de</p><p>microfichas enfiado atrás de uma prateleira baixa de livros de</p><p>cozinha. — Houve uma disputa há apenas um ano, em Swanton.</p><p>Talvez seja melhor tentar lá, primeiro.</p><p>— Por acaso, não se lembra do desfecho, não?</p><p>— O Estado comprou a propriedade.</p><p>— Oh, ótimo. Fantástico. — Expirou pesadamente e deixou-se</p><p>cair numa cadeira. — Essas terras em Swanton também estavam</p><p>amaldiçoadas?</p><p>— Como?</p><p>Por um momento, ele pareceu demasiado frustrado para falar.</p><p>— O que é que esses índios fazem? Invocam os antepassados</p><p>mortos sempre que precisam deles? Tudo o que for preciso para</p><p>correr com os forasteiros da vila, certo?</p><p>Shelby pôs-se a roer uma unha.</p><p>— Por amor de Deus, nós só estamos a tentar construir um</p><p>centro comercial! Tenho a assinatura do proprietário, foi tudo posto</p><p>por escrito. Fiz um investimento inicial de cinquenta mil dólares,</p><p>para começar. Faço tudo como manda a lei, e o que é que recebo</p><p>em troca? Temperaturas negativas sem qualquer razão aparente,</p><p>vozes a gritarem a meio da noite… Os meus operários andam a</p><p>demitir-se. Santo Deus! Esta manhã, fui empurrado e não havia</p><p>ninguém atrás de mim! — Olhou diretamente para Shelby. — Não</p><p>estou a enlouquecer. A sério que não!</p><p>— Claro que não — murmurou ela.</p><p>O homem passou a mão pelo rosto.</p><p>— Nem sei porque me dei ao trabalho de cá vir. Não pode ajudar-</p><p>me.</p><p>— Pois não, não posso — disse Shelby. — Mas acho que conheço</p><p>alguém que pode.</p><p>Ross estava esparramado na sala de Shelby, com o som da</p><p>televisão o mais alto que ele achava possível sem acordar o</p><p>sobrinho. Havia fios a ligarem a sua câmara de vídeo ao ecrã, onde</p><p>se via a curta gravação que ele tinha feito na pedreira. Parou a</p><p>imagem com o comando, rebobinou e inclinou-se para a frente para</p><p>a analisar novamente. Mas não, a luz trémula ao canto era apenas</p><p>um reflexo, não tinha nada de paranormal.</p><p>Desligou a televisão e recostou-se, de olhos fechados.</p><p>— Pura perda de tempo.</p><p>— Então, foi assim tão mau? — perguntou Shelby ao entrar,</p><p>atirando a bolsa para cima do sofá.</p><p>— O Ethan portou-se lindamente.</p><p>— Eu estava a falar do teu encontro romântico. Já podes dizer-</p><p>me quem era ou é segredo de Estado?</p><p>— Ninguém que conheças.</p><p>— Só posso ter a certeza disso quando me disseres quem é —</p><p>disse ela, sentando-se. — O que é que se passa com a câmara de</p><p>vídeo?</p><p>Ross tratou de mudar de assunto o mais depressa possível.</p><p>— Como é que correu o trabalho?</p><p>— Na verdade, acho que te arranjei hoje um emprego.</p><p>— Obrigado, mas o trabalho de bibliotecário não é para mim.</p><p>Desisti de pôr as coisas por ordem alfabética durante a Quaresma.</p><p>— A: Não estamos na Quaresma, e B: Não é trabalho de</p><p>bibliotecário.</p><p>— Estás a usar a ordem alfabética — observou Ross, a sorrir.</p><p>Shelby enfiou um pé debaixo dela.</p><p>— Hoje apareceu lá um homem, Rod van Vleet. Trabalha para</p><p>a</p><p>construtora que comprou um terreno no Otter Creek Pass…</p><p>— Onde?</p><p>— Bem, não interessa. O que importa é que ele está apavorado</p><p>porque acha que a propriedade está assombrada. — Shelby esboçou</p><p>um sorriso triunfante. — Adivinha lá onde é que tu entras.</p><p>Ele cerrou os maxilares.</p><p>— Isto tem a ver com dinheiro? Porque se quiseres que eu pague</p><p>renda…</p><p>— Ross, para com isso! Eu falei-lhe em ti porque pensei que</p><p>gostasses da ideia. Tens andado a engonhar desde que aqui</p><p>chegaste. Há várias semanas que mal sais de casa.</p><p>— Tu também mal sais de casa.</p><p>— Isso é diferente, e tu sabes bem.</p><p>Ross levantou-se e desligou os fios da televisão, arrumando a</p><p>câmara de vídeo na respetiva bolsa almofadada.</p><p>— Não tinha percebido que tinhas expectativas — disse ele</p><p>amargamente. — Não sabia que era mau fazer uma pausa para</p><p>respirar.</p><p>— Uma pausa para respirar? Tens a certeza de que foi por isso</p><p>que vieste para cá? — Entretanto, já estava cara a cara com ele. —</p><p>Ou andavas à procura de um sítio para deixares de respirar?</p><p>Ross aguentou o olhar dela por um instante.</p><p>— Shel, isso foi só daquela vez, logo a seguir a ela ter morrido.</p><p>As mãos de Shelby agarraram os pulsos do irmão, puxando-os</p><p>para baixo, para o meio de ambos. Usou os polegares para lhe</p><p>levantar as mangas da camisola, localizando a história aí contida.</p><p>— Pois, só daquela vez… Vou perguntar-te se queres sopa ao</p><p>almoço, sopa, Ross, e estás a esvair-te em sangue.</p><p>— Devias ter-me deixado — disse ele, libertando-se suavemente.</p><p>— Vai-te lixar! — As lágrimas reluziram nos olhos de Shelby. —</p><p>Agora, quando fechas a porta da casa de banho, fico a pensar se</p><p>estarás a tomar comprimidos. Quando sais de carro, fico a pensar se</p><p>te terás espatifado contra alguma árvore. Já alguma vez pensaste</p><p>que não és a única pessoa a ter perdido alguém? A Aimee morreu.</p><p>As pessoas morrem. Tu estás vivo, e tens de começar a agir como</p><p>tal.</p><p>Ele lançou-lhe um olhar glacial.</p><p>— Será que vais sentir o mesmo daqui a uns anos, quando for o</p><p>Ethan?</p><p>Um pequeno som fê-los virarem-se para a porta, mas nessa</p><p>altura o rapaz já tinha fugido, depois de ouvir cada palavra dita.</p><p>Estava de sweatshirt e calças, e de boné, é claro, mas tinha o</p><p>rosto e as mãos destapados. Quando Ethan chegou à pedreira, o</p><p>ponto mais elevado da vila, com escarpas que trespassavam o céu,</p><p>os seus dedos estavam inchados como salsichas e tão vermelhos,</p><p>que lhe doíam a cada bater do coração.</p><p>Talvez fosse atropelado no caminho por um camião. Talvez</p><p>ficasse esturricado e irrompesse em chamas como as imagens</p><p>daquele tipo que ele tinha visto no Guiness Book. Se morresse</p><p>agora, que diferença faria?</p><p>Aquilo que sabia sobre a vila de Comtosook aprendera em mapas</p><p>e na Internet. É claro que já tinha estado ao ar livre, mas as coisas</p><p>eram diferentes à luz do dia. Não conseguia desviar os olhos das</p><p>ruas cheias de carros e dos magotes de gente nos passeios. Não</p><p>tinha como saber que, normalmente, aquela vila albergava o dobro</p><p>das pessoas; em comparação, para Ethan, aquele mundo soalheiro</p><p>já era tão agitado, que o deixava sem fôlego.</p><p>Sabia que ia morrer. Já tinha ido a psicólogos, médicos e</p><p>assistentes sociais, para que eles o ajudassem a aceitar o</p><p>prognóstico de um paciente com XP. Era possível chegar aos</p><p>cinquenta anos, mas havia fortes probabilidades de não passar dos</p><p>quinze. Tudo dependia dos danos infligidos às suas células antes do</p><p>diagnóstico.</p><p>Na sua maneira de ver, essa era uma das poucas coisas que o</p><p>tornavam igual a toda a gente. Mais cedo ou mais tarde, todos iam</p><p>desta para melhor. A diferença era que, se ele quisesse protelar esse</p><p>dia o mais possível, nunca chegaria a saber realmente o que era</p><p>viver.</p><p>Já faltava pouco para chegar à pedreira; Ethan sabia disso</p><p>porque as escarpas estavam a ficar cada vez maiores. Não sabia o</p><p>que faria quando lá chegasse. Talvez tirasse a camisola até a dor ser</p><p>tão forte que o fizesse perder os sentidos. Talvez se deitasse de</p><p>costas e olhasse para o sol até as suas córneas ficarem queimadas.</p><p>Virou para a entrada da pedreira e estacou subitamente.</p><p>Encostado ao capô do seu carro amolgado, estava o tio Ross, de</p><p>braços cruzados.</p><p>— Como é que me encontraste?</p><p>— Como é que te encontrei? Cheguei cá primeiro.</p><p>Ross olhou de relance para os dedos e rosto do sobrinho</p><p>queimados pelo sol, mas não disse nada, limitando-se a entregar-lhe</p><p>uma das suas próprias camisas, cujas mangas lhe tapavam as mãos,</p><p>protegendo-as da luz ultravioleta. Depois olhou para o céu, franzindo</p><p>os olhos.</p><p>— Calculei que um miúdo que tinha umas contas a ajustar com o</p><p>sol tentasse enfrentá-lo cara a cara. Este é o lugar mais alto da vila.</p><p>— Virou-se para Ethan. — A tua mãe está desesperada.</p><p>— Onde é que ela está?</p><p>— Em casa, para o caso de lá apareceres primeiro. —</p><p>Desencostando-se, abriu a porta do passageiro. — Podemos acabar</p><p>esta conversa lá dentro?</p><p>Passado um momento, Ethan anuiu. Entrou no carro, tirou o</p><p>boné e esfregou o couro cabeludo. — É verdade que tentaste matar-</p><p>te?</p><p>— É.</p><p>Ethan sentiu um nó na garganta. O tio… bem, era um dos poucos</p><p>homens com quem tinha contacto e, seguramente, o mais fixe de</p><p>todos. Tinha feito coisas completamente loucas, como paraquedismo</p><p>e escalada no gelo. Ethan queria ser como ele, se viesse a ter a</p><p>oportunidade de crescer. Por isso, não conseguia entender porque é</p><p>que o homem que ele mais idolatrava neste mundo haveria de</p><p>preferir morrer a querer continuar a viver no limite.</p><p>— E porque é que o fizeste?</p><p>Ross esticou o braço em frente do corpo de Ethan e bateu no</p><p>vidro com os nós dos dedos. Depois, com o toque num botão do</p><p>tablier, o vidro da janela abriu-se automaticamente; Ethan conseguia</p><p>sentir o cheiro acre dos epilóbios que cresciam ao longo da estrada</p><p>em regimentos coloridos.</p><p>— Para chegar ao outro lado — explicou o tio.</p><p>— Oh, meu Deus! — gritou Shelby, correndo pelo caminho de</p><p>acesso para tirar Ethan do carro.</p><p>Ross viu-os guardar aquele momento entre si, com a pequena</p><p>semente de calamidade transformada agora numa pérola de alívio.</p><p>Voltaram para casa em passo vacilante, com Shelby enrolada à volta</p><p>do filho, como se ele fosse uma extensão do seu próprio corpo.</p><p>Ross encostou-se ao capô, agradecendo a Deus o palpite de</p><p>procurar o sobrinho naquele local. Não queria pensar no que podia</p><p>ter acontecido se tivesse voltado sozinho ou se Ethan tivesse ficado</p><p>demasiado tempo no exterior.</p><p>Começou a andar em direção à porta e deu-se conta da presença</p><p>de um desconhecido no alpendre, ao lado da irmã.</p><p>— Apresento-te o Rod van Vleet — disse ela, num tom que o fez</p><p>perceber que a discussão anterior estava longe de estar resolvida. —</p><p>Passou por cá para falar contigo.</p><p>Ross brindou a irmã com o olhar mais sombrio que conseguiu,</p><p>dadas as circunstâncias. O homem era mais baixo do que ele e a sua</p><p>cabeça calva tinha a forma lamentável de um amendoim. Vestia um</p><p>fato elegante, camisa engomada e gravata de banqueiro.</p><p>— Senhor Wakeman — disse ele, com um sorriso hesitante. —</p><p>Ouvi dizer que caça fantasmas.</p><p>3</p><p>Daquela vez, para variar, até era fixe ver toda a gente a olhar</p><p>para ele.</p><p>Ethan levava a câmara de vídeo, que era pesada, mas não lhe</p><p>passava pela cabeça queixar-se ao tio. De qualquer modo, Ross</p><p>carregava tudo o resto, desde os sacos-cama à comida de plástico</p><p>(uma operação de vigilância era uma operação de vigilância, dissera</p><p>o tio, mesmo que as pessoas que eles queriam tentar apanhar em</p><p>flagrante já estivessem mortas). Saíram do carro, passaram pelos</p><p>tocadores de tambor, pelo buldózer e pela equipa de construção</p><p>civil, e Ethan reparou que cada pessoa por que passavam parecia</p><p>parar a meio do que estava a fazer. Um velho índio olhou-o tão</p><p>fixamente, que ele pensou que era capaz de ficar marcado na nuca.</p><p>Mas não o olhava por ele ser anormal, apenas porque estava curioso</p><p>em relação ao homem e ao rapaz que atravessavam a propriedade</p><p>como se ela fosse sua.</p><p>Ethan parou por um momento, ao ver um universitário a crivar</p><p>areia. O rapaz só tinha uns calções vestidos, deixando ver a pele</p><p>acobreada dos ombros e das costas. Ethan olhou para as mangas</p><p>compridas e para as calças grossas que ele próprio usava.</p><p>Respirou</p><p>fundo por trás da máscara que a mãe o obrigava a usar quando saía</p><p>durante o dia.</p><p>— Eh, toca a andar! — gritou Ross por cima do ombro, e ele</p><p>apressou-se a apanhá-lo.</p><p>O empreiteiro, o senhor Van Vleet, veio ter rapidamente com eles</p><p>assim que os viu. Calçava sapatos de couro e estava sempre a</p><p>escorregar no gelo que alastrara sobre o terreno como a cobertura</p><p>de um bolo.</p><p>— Senhor Wakeman — saudou ele baixinho. — Lembra-se do que</p><p>eu lhe disse acerca de fazer isto… discretamente?</p><p>— E lembra-se do que eu lhe disse acerca de me deixar gerir a</p><p>minha própria investigação? — replicou Ross, virando as costas ao</p><p>homem e subindo os degraus da casa velha, um dos quais cedeu e</p><p>se partiu ao meio enquanto ele o pisava.</p><p>— Tem cuidado — disse ele a Ethan.</p><p>A casa parecia que tinha estado a chorar, com as portadas pretas</p><p>fora dos gonzos como uma orla de pestanas molhadas. Ethan recuou</p><p>e lançou a cabeça para trás, para conseguir ver tudo até acima. Era</p><p>branca, ou fora em tempos. A maior parte das janelas tinham sido</p><p>partidas pelos miúdos locais anos atrás. A hera crescia em volta da</p><p>porta, como um bigode pintalgado de pontas reviradas.</p><p>— Ethan!</p><p>Sobressaltado pela voz do tio, subiu os degraus a correr. Estacou</p><p>à entrada. Chovia estuque do teto e as tábuas do soalho tinham</p><p>uma espessa camada de sujidade. As paredes onde antes havia</p><p>papel de parede estampado estavam cheias de marcas de mãos</p><p>esborratadas e de graffiti: A SARI FAZ BONS BROCHES. Por baixo das</p><p>escadas, viam-se os restos de uma fogueira e cerca de trinta</p><p>garrafas de cerveja vazias.</p><p>Ethan olhou do corrimão partido para o buraco negro de uma</p><p>sala contígua, e depois para o teto. Sim, era sinistro, pensou. E daí?</p><p>Puxou destemidamente os ombros para trás, convencido de que, se</p><p>fizesse bem as coisas, poderia ser escolhido para o Fear Factor ou</p><p>outro desses reality shows. Podia pedir ao tio que o levasse em</p><p>todos os casos. No fim de contas, Ethan só saía à noite. Talvez fosse</p><p>preciso um fantasma para reconhecer outro.</p><p>Era mais corajoso do que qualquer outro miúdo que</p><p>conhecesse… não que conhecesse muitos.</p><p>Pelo menos, era o que ele ia dizendo para consigo até um toque</p><p>na nuca fazê-lo dar um salto.</p><p>Kerrigan Klieg era o repórter do The New York Times que fazia o</p><p>artigo obrigatório sobre vampiros no Halloween, que escrevia sobre</p><p>a natureza química do amor no Dia de São Valentim, que</p><p>entrevistava os pais do primeiro bebé do milénio na cidade. Por</p><p>outras palavras, era um baldas. Não tinha coragem nem propensão</p><p>para investigar a corrupção policial ou as pressões políticas; os seus</p><p>artigos centravam-se em matérias de interesse humano, embora não</p><p>fossem assim tão interessantes para ele próprio. Do que Kerrigan</p><p>gostava, porém, era de sair e viajar para fazer a investigação. Ir até</p><p>à sepultura de Mercy Brown, em Rhode Island, por exemplo, para</p><p>ver os mortos-vivos com os próprios olhos. Ou até à Johns Hopkins,</p><p>onde os investigadores andavam a medir os níveis de melatonina</p><p>associados à luxúria. Gostava que lhe lembrassem de que havia um</p><p>mundo fora da ilha de Manhattan, um mundo onde as pessoas</p><p>andavam mesmo pelas ruas e se entreolhavam, em vez de fingirem</p><p>que estavam noutro lugar ou que eram outra pessoa.</p><p>A combinação de elementos naquele artigo em particular era</p><p>difícil de bater: um índio centenário, um grupo de habitantes</p><p>assustados, um magnata do mercado imobiliário e um suposto</p><p>fantasma irado. E ocupavam apenas a ponta da propriedade, a parte</p><p>que tinha a casa. Quem sabia o que mais se esconderia na enorme</p><p>área florestada por trás?</p><p>Kerrigan caminhava ao lado de Az Thompson, o tipo que tinha</p><p>ligado ao editor da redação, perguntando-se o que teria ele feito</p><p>para se manter vivo tanto tempo. Comeria iogurte, como nos</p><p>anúncios Danone? Faria meditação? Tomaria injeções de vitamina</p><p>B12?</p><p>— As pessoas têm-nos roubado a nossa terra desde sempre —</p><p>dizia Thompson. — Mas ainda é mais deprimente pensar que isso</p><p>pode continuar a acontecer-nos mesmo depois de mortos.</p><p>Kerrigan passou por cima de um cão que estava a roer um</p><p>sapato velho.</p><p>— Segundo sei, Spencer Pike, o dono da propriedade, já não</p><p>morava aqui há algum tempo.</p><p>— Há vinte anos.</p><p>— Acha que ele já sabia antes dessa altura que esta terra era</p><p>alegadamente um cemitério?</p><p>O velhote estacou de repente.</p><p>— Acho que o Spencer Pike sabe muito mais do que dá a</p><p>entender.</p><p>Bem, ora ali estava algo interessante. Kerrigan abriu a boca para</p><p>fazer outra pergunta, mas distraiu-se ao ver entrar um homem e um</p><p>rapaz.</p><p>— Quem são estes?</p><p>— Diz-se por aí que foram contratados pelo Van Vleet —</p><p>respondeu Thompson. — Para garantir que não há fantasmas. —</p><p>Virou-se para o repórter. — O que é que você acha?</p><p>Ele estava habituado a entrevistar, não a ser entrevistado.</p><p>— Que tudo isto dá uma grande história — replicou</p><p>cuidadosamente.</p><p>— Alguma vez acorda com o sonho de outra pessoa na sua</p><p>língua? Ou calça as botas e dá com elas cheias de neve, em pleno</p><p>agosto? Alguma vez viu flores de abóbora treparem pelo ralo do</p><p>lava-louça de um dia para o outro, senhor Klieg?</p><p>— Bem, não, não vi.</p><p>Thompson meneou a cabeça.</p><p>— Então, fique por aqui.</p><p>Quando Ross pôs a mão no pescoço do sobrinho, o rapaz quase</p><p>morreu de susto.</p><p>— Ethan — disse ele —, estás à vontade com isto?</p><p>Ethan tremia como varas verdes.</p><p>— Sim, claro. Estou na boa.</p><p>— Porque, se quiseres, posso levar-te a casa. Não há qualquer</p><p>problema. — Olhou calmamente para o sobrinho. — Podes dizer a</p><p>toda a gente que fui eu que não te deixei ficar.</p><p>Em resposta, Ethan agarrou o corrimão lascado das escadas e</p><p>começou a subir.</p><p>Com um suspiro, Ross seguiu-o. Talvez Ethan quisesse ali estar,</p><p>mas ele tinha a certeza de que não queria. Quando Van Vleet lhe</p><p>pedira para investigar alguns dos fenómenos paranormais na</p><p>propriedade Pike, tinha recusado. Mas depois tinha visto a irmã a</p><p>observá-lo, à espera.</p><p>Pusera quatro condições. Primeiro, era ele o responsável pela</p><p>investigação e não aceitava ordens de ninguém, incluindo do diretor</p><p>do Grupo Redhook. Em segundo lugar, as únicas pessoas que</p><p>poderiam estar na propriedade durante a investigação seriam ele e o</p><p>seu assistente, Ethan, para surpresa e deleite do rapaz. Em terceiro</p><p>lugar, Ross não queria qualquer informação sobre a história da</p><p>propriedade até ser ele a pedi-la; caso contrário, isso poderia</p><p>influenciar as suas impressões. Por último, não aceitaria dinheiro</p><p>pelos seus serviços, ao contrário dos Warburtons, que a troco de</p><p>uma determinada quantia estavam dispostos a arranjar um fantasma</p><p>para qualquer cliente.</p><p>Em troca, prometeu manter a sua investigação «discreta». Isto,</p><p>porque os poderes instituídos no Grupo Redhook não queriam que</p><p>toda a gente soubesse que estavam a dar crédito à crença no</p><p>sobrenatural.</p><p>Por isso, ali estava ele agora, a preparar-se para uma noite de</p><p>observação e a retornar aos velhos hábitos como se fossem um</p><p>colchão de penas. Ethan esperava ao cimo das escadas, como um</p><p>cachorrinho dedicado.</p><p>— Pousa a câmara — ordenou Ross. — Vamos fazer um ensaio e</p><p>ver se captas alguma coisa.</p><p>— Se capto alguma coisa? Tipo o quê?</p><p>Ross teve de parar e pensar por um momento. Como se explicava</p><p>a um miúdo a sensação de abrir a mente de tal forma, que cada</p><p>cheiro e cada imagem deixavam uma marca? Como se descrevia a</p><p>sensação do ar a tornar-se pesado como um cobertor estendido</p><p>sobre as nossas costelas?</p><p>— Fecha os olhos e diz-me o que vês.</p><p>— Mas…</p><p>— Faz o que te digo.</p><p>A princípio, Ethan ficou calado.</p><p>— Luz… a vir dos cantos.</p><p>— Está bem. — Ross fê-lo rodar devagarinho em círculo, como no</p><p>jogo da cabra-cega. A seguir, firmou-lhe os ombros. — Agora… sem</p><p>espreitar… onde são as escadas?</p><p>— Atrás de mim — disse Ethan, com o espanto deste sexto</p><p>sentido a fazer tremer-lhe a voz.</p><p>— Como sabes?</p><p>— Bem, sinto uma espécie de buraco no ar lá atrás.</p><p>Ross fê-lo girar e depois deu-lhe uma palmada na cabeça com</p><p>força suficiente para o fazer abrir os olhos.</p><p>— Bom trabalho, Rapaz Maravilha. Esta foi a lição número um.</p><p>— E qual é a número dois?</p><p>— Parar de pedir lições.</p><p>Ross avançou pelo corredor. Toda a mobília e relíquias de família</p><p>que aquela casa albergara</p><p>tinham desaparecido havia muito, e a sua</p><p>localização original era denunciada apenas pela tinta descorada ou</p><p>pelos riscos deixados no chão imundo. O piso de cima tinha três</p><p>quartos pequenos e uma casa de banho, e havia uma escada que</p><p>levava à alcova minúscula da criada.</p><p>— Tio Ross? Quando é que eles chegam?</p><p>— Se houver fantasmas, já cá estão. — Espreitou para dentro da</p><p>casa de banho. A banheira com pés em garra ainda ali estava,</p><p>rachada no meio, assim como um antigo vaso sanitário com um</p><p>autoclismo alto de parede. — Na verdade, o mais provável é estarem</p><p>a vigiar-nos. Se decidirem que gostam do que veem, hão de tentar</p><p>chamar-nos a atenção mais tarde.</p><p>Quando Ethan abriu a torneira, saíram resíduos castanhos.</p><p>— Eles importam-se que estejamos aqui?</p><p>— Podem importar-se. — Ross tateou ao longo da janela,</p><p>examinando o vedante. — Alguns fantasmas estão desesperados por</p><p>conseguir que alguém repare neles; mas há outros que não sabem</p><p>sequer que estão mortos e, quando nos virem, vão perguntar-se</p><p>porque é que estamos em casa deles. Isto — disse ele bem alto, em</p><p>tom de desafio —, se existe mesmo algum por aqui.</p><p>Vem buscar-me, pensou.</p><p>Desceu as escadas e examinou a cozinha, a despensa, a adega e</p><p>a sala. Um pequeno escritório com portas duplas ainda tinha uma</p><p>poltrona lá dentro, um bloco de couro esfarrapado onde uma família</p><p>de ratos tinha feito o seu ninho. Naquele piso, o chão estava coberto</p><p>de jornais velhos e as paredes, manchadas com o que parecia ser</p><p>massa lubrificante.</p><p>— Tio Ross? A Aimee é um fantasma?</p><p>Ele sentiu os pelos eriçarem-se na nuca, e não tinha nada a ver</p><p>com fenómenos paranormais… era apenas o choque bem humano e</p><p>real.</p><p>— Não sei, Ethan. — Expulsou a imagem de Aimee que lhe veio à</p><p>cabeça, como uma sereia que emerge do submundo oceânico. —</p><p>Morrer… bem, acho que é como apanhar um autocarro. A maior</p><p>parte das pessoas gosta da viagem e segue para a próxima etapa,</p><p>mas há algumas que se apeiam antes da última paragem.</p><p>— Talvez ela tenha saído para o ver.</p><p>— Talvez.</p><p>Virou-se, decidido a subir as escadas antes de passar alguma</p><p>vergonha diante do sobrinho.</p><p>— Qual achas que terá sido a razão para o fantasma que aqui</p><p>vive ter saído do autocarro?</p><p>— Não sei.</p><p>— E se…</p><p>— Ethan — interrompeu Ross. — Chiu!</p><p>Rodou num círculo, tentando agarrar o pensamento fugidio que</p><p>lhe cruzava a mente, demasiado caprichoso para se revelar com</p><p>nitidez. Tentando concentrar-se, debruçou-se sobre o corrimão e</p><p>franziu o sobrolho diante do lixo que juncava a base das escadas e</p><p>da movimentação silenciosa dos roedores. Olhou para um vespeiro,</p><p>ao canto.</p><p>Havia outros detritos orgânicos no corredor: teias de aranha e</p><p>ácaros, musgo e bolor, as marcas prósperas da negligência e do</p><p>tempo húmido. Ross entrou no quarto que dava para as traseiras da</p><p>propriedade. Aí, as tábuas do soalho estavam negras da sujidade e</p><p>pejadas de louça partida e invólucros de chocolates. Mas o teto</p><p>estava tão nu como se tivesse sido limpo nessa manhã. Não tinha</p><p>uma única teia de aranha, nem fungos ou insetos. Apesar do estado</p><p>do resto da casa, havia algum tempo que nenhum organismo vivo se</p><p>abrigava naquele quarto.</p><p>Ross virou-se para o sobrinho.</p><p>— É aqui que vamos instalar-nos — disse.</p><p>— Não sei o que aconteceu — disse a monitora de Lucy no</p><p>acampamento, uma rapariga tão jovem que podia passar por uma</p><p>das crianças. Encaminhou rapidamente Meredith em direção ao</p><p>barracão do material, onde Lucy se trancara quarenta e cinco</p><p>minutos antes. — Num minuto, estava a jogar ao mata e no minuto</p><p>a seguir fugiu aos gritos.</p><p>Um dos saltos de Meredith ficou preso numa pedra e quase a fez</p><p>cair para a frente. Tinha o medicamento de Lucy consigo? Se ela</p><p>estava assustada, tão assustada que não conseguiam convencê-la a</p><p>sair do escuro, estaria provavelmente com um ataque de asma.</p><p>— Telefonámos imediatamente para casa — disse a monitora —,</p><p>mas a sua mãe disse que não é capaz de conduzir.</p><p>— A minha avó — corrigiu Meredith distraidamente.</p><p>Com setenta e muitos anos, Ruby tinha uma mente ágil, mas já</p><p>não se sentia confortável atrás do volante. Tinha ligado para o</p><p>laboratório, para falar com Meredith. É uma emergência, dissera.</p><p>Entretanto, tinham chegado junto de uma casinha em madeira na</p><p>orla da floresta.</p><p>— Lucy? — chamou Meredith, mexendo na maçaneta. — Lucy,</p><p>abre a porta imediatamente!</p><p>Bateu nela com o punho fechado por duas vezes. À terceira, a</p><p>porta rodou nos gonzos e Meredith penetrou no interior.</p><p>A primeira coisa que sentiu foi o ar viciado e quente. Um saco de</p><p>rede cheio de bolas de borracha, qual molécula gigantesca, impediu-</p><p>a de chegar a Lucy, que estava a arquejar atrás de uma torre de</p><p>cones de segurança cor de laranja e de raquetes de badmínton.</p><p>Segurava junto ao peito a cauda de um vestido em cetim roxo, o</p><p>resto de uma fantasia de um velho musical de verão. E estava a</p><p>chorar.</p><p>— Toma — disse Meredith, entregando-lhe o Albuterol, que Lucy</p><p>enfiou obedientemente na boca e inalou.</p><p>Tinha aprendido havia muito tempo que, por mais difícil que</p><p>fosse ver a filha com falta de ar, não podia respirar por ela. O seu</p><p>primeiro instinto foi arrastá-la para fora daquele espaço exíguo e</p><p>bafiento, a bem da sua asma, mas algo lhe disse que não lidar</p><p>primeiro com os medos de Lucy podia ser igualmente perigoso. Por</p><p>isso, pôs um braço à volta dos ombros da filha.</p><p>— Por que razão há de chamar-se jogo do mata? — devaneou,</p><p>como se fosse perfeitamente normal estar ali a conversar.</p><p>— Porque o objetivo é desviarmo-nos da bola, senão morremos</p><p>— disse Lucy, aconchegada junto ao ombro de Meredith.</p><p>— Ah — assentiu ela devagar. — Provavelmente, já soube isso</p><p>em tempos.</p><p>O peito de Lucy continuava a dilatar-se como um fole.</p><p>— Não foi o jogo — confessou ela. — Eu vi uma coisa.</p><p>— Uma coisa?</p><p>— Uma coisa… pendurada. Na árvore. Na ponta de uma corda.</p><p>— Como um balouço feito com um pneu?</p><p>Lucy abanou a cabeça.</p><p>— Como uma senhora.</p><p>Meredith obrigou-se a permanecer calma.</p><p>— Podes mostrar-me?</p><p>Saíram para o exterior, passaram pela monitora, pelo pavilhão de</p><p>artes e ofícios, e por cima da ponte estreita junto à foz do ribeiro,</p><p>até chegarem aos campos de atletismo. Havia um novo grupo de</p><p>campistas, todos mais velhos do que Lucy, a jogar ao mata.</p><p>— Onde? — perguntou Meredith.</p><p>Lucy apontou para um maciço de árvores à sua esquerda.</p><p>Segurando a mão da filha com firmeza, Meredith aproximou-se da</p><p>base da árvore e olhou para cima.</p><p>— Não vejo corda nenhuma — disse baixinho. — Não vejo nada.</p><p>— Estava aí — replicou Lucy, com a frustração espelhada na voz.</p><p>— A sério que estava!</p><p>— Luce, acredito que viste alguma coisa. Penso apenas que,</p><p>algures entre a tua retina e o teu cérebro, as coisas ficaram um</p><p>pouco confusas. Deve haver uma explicação perfeitamente aceitável,</p><p>que não tenha nada a ver com uma mulher enforcada numa árvore.</p><p>Por exemplo, talvez o sol te tenha encandeado.</p><p>— Talvez — repetiu a filha, sem a menor convicção.</p><p>— Talvez fosse um ramo que o vento deslocou por um segundo.</p><p>Ela encolheu os ombros.</p><p>De repente, Meredith descalçou-se e entregou a bata do</p><p>laboratório a Lucy.</p><p>— Segura aqui — disse, e começou a trepar à árvore.</p><p>Não chegou assim tão alto — no fim de contas, estava de saia e</p><p>meias —, mas conseguiu alcançar um ramo mais elevado, onde se</p><p>empoleirou como um enorme esquilo. Por esta altura, todos os</p><p>campistas que se encontravam no campo de jogos estavam a</p><p>assistir, e até Lucy tinha um sorrisinho no rosto.</p><p>— Não — disse Meredith muito alto.</p><p>Estava disposta a fazer figura de parva, para que à hora do</p><p>almoço, durante a natação e na viagem de regresso a casa, todos os</p><p>campistas falassem sobre a doida varrida que tinha subido ao</p><p>carvalho e não na miúda assustada que fugira aos gritos.</p><p>— Luce, a costa está limpa… oh… oh!</p><p>Com um tombo calculado que teria deixado orgulhosa qualquer</p><p>companhia de circo, Meredith caiu da árvore, aterrando agachada e</p><p>rebolando depois para o lado até ficar a poucos metros.</p><p>Estava suja e arranhada e o cabelo soltara-se do travessão, mas</p><p>Lucy tomou-lhe o rosto entre as mãos.</p><p>— É capaz de ter sido o sol a bater-me nos olhos — sussurrou.</p><p>Meredith abraçou</p><p>a filha.</p><p>— Cá está a miúda corajosa que eu conheço — disse ela,</p><p>perfeitamente ciente de que nenhuma das duas acreditava numa</p><p>única palavra que tinham dito.</p><p>Eli Rochert não queria acordar. Conhecia essa sensação tão bem</p><p>quanto o perfume que parecia rodeá-lo nos seus sonhos, uma</p><p>curiosa mistura de maçãs e água da chuva; tão bem como quando</p><p>reconhecia o tom de uma voz de mulher, a flutuar como uma nota</p><p>que nunca existira em qualquer escala musical. Só se deitara duas</p><p>horas atrás, depois de fazer dois turnos seguidos para impedir os</p><p>índios e os empreiteiros de chegarem a vias de facto. Mas o telefone</p><p>não parava de tocar e, por fim, ele acabou por tirar o braço do</p><p>casulo da roupa de cama e pegou no auscultador.</p><p>— O que é? — grunhiu.</p><p>— Queria falar com a senhora Rochert. Será que está disponível?</p><p>— Não.</p><p>— Sabe dizer-me quando volta?</p><p>Nunca, pensou Eli, sentindo uma dor aguda sob as costelas que,</p><p>mesmo ao fim de todo aquele tempo, o surpreendeu. Desligou o</p><p>telefone sem responder e depois rolou sobre a barriga para dar com</p><p>Watson a açambarcar a almofada.</p><p>— Oh, por amor de Deus! — murmurou, empurrando o focinho</p><p>do cão.</p><p>Watson pestanejou por entre as pregas de pele e depois</p><p>aninhou-se novamente onde estava antes.</p><p>— Nunca devia ter-te deixado dormir em cima da cama — disse</p><p>Eli em voz alta, encostado ao dorso largo do seu cão.</p><p>Ouviu-o começar a ressonar e foi nessa altura que soube que não</p><p>seria capaz de voltar aos seus sonhos. Atirando os cobertores para</p><p>trás, saiu da cama e foi até à cozinha, onde abriu o frigorífico e ficou</p><p>a olhar para o conteúdo.</p><p>O médico dissera-lhe que devia deixar de comer carne vermelha,</p><p>o que não seria problema para muito boa gente, mas era</p><p>absolutamente devastador para Eli, que a considerava um de dois</p><p>grupos alimentares (sendo o outro batatas). Por esse motivo, o</p><p>interior do seu frigorífico era tão pouco estimulante quanto algumas</p><p>das receitas vegetarianas que ele descarregara da Internet: dois</p><p>frascos de mostarda, leite com um cheiro suspeito, uma embalagem</p><p>de seis cervejas, aleluia!… fiambre fatiado que devia ter sido de peru</p><p>uma ou duas semanas antes e tofu, um alimento em que ele não</p><p>confiava, pois deslizava pela garganta abaixo como um boato.</p><p>O ar frio invadiu-lhe os boxers e concentrou-se junto aos pés. Eli</p><p>fechou a porta do frigorífico, ao mesmo tempo que o telefone</p><p>recomeçava a tocar. Atendeu na extensão da cozinha.</p><p>— Estou?</p><p>— Posso falar com a senhora Rochert?</p><p>Ele contou até dez.</p><p>— A senhora Rochert não está. A senhora Rochert foi-se embora</p><p>há aproximadamente sete anos e seis meses, na companhia do tipo</p><p>que andava a comê-la na altura. Levou todo o dinheiro que tínhamos</p><p>na nossa conta-poupança, o nosso gato e a minha sweatshirt</p><p>favorita. Antes de sair porta fora, explicou-me que aquilo não tinha</p><p>nada a ver comigo, porque eu não tinha estado tempo suficiente por</p><p>perto para ela fazer esse tipo de avaliação, embora deva dizer em</p><p>minha defesa que andava a esfalfar-me a trabalhar para pôr dinheiro</p><p>na conta que ela deixou a zeros. Da última vez que soube dela,</p><p>estava a viver no Novo México, mas isto é apenas diz que disse. Por</p><p>isso, não, não pode falar com a senhora Rochert, por mais que</p><p>queira. Na verdade, se tiver oportunidade de falar com ela, talvez</p><p>lhe queira dizer que é apenas o primeiro da fila.</p><p>Quando terminou, estava ofegante, o que compensava o silêncio</p><p>do outro lado da linha.</p><p>— Oh — ouviu ele finalmente, em tom desmaiado.</p><p>— Talvez possa tirar este número da sua lista — sugeriu Eli,</p><p>arremessando o telefone portátil, que foi bater violentamente na</p><p>parede.</p><p>Estava sentado no chão com as mãos enfiadas no cabelo quando</p><p>Watson o encontrou. O cão largou a pilha do telefone no seu colo e</p><p>ficou a olhar para ele. Eli passou a mão pelo rosto.</p><p>— Se estás à espera de um petisco, Watson, estás com azar. A</p><p>menos que tofu saiba bem com cerveja Coors.</p><p>Pôs o braço à volta do enorme pescoço do cão e fitou os seus</p><p>olhos castanhos e tristonhos. Tinha sido uma das razões para o ter</p><p>escolhido na Sociedade Protetora dos Animais: bastava um olhar</p><p>para perceber que aquele cão nunca seria feliz. O que significava</p><p>que Eli não voltaria a fracassar.</p><p>Enquanto trabalhara para os Warburtons, Ross tinha aprendido</p><p>que a hora a que os fantasmas andavam à solta era entre as dez da</p><p>noite e as três da manhã. A maior parte dos baques surdos e visões</p><p>que Curtis testemunhara, ou fingira testemunhar, ocorriam durante</p><p>esse período. Às dez e meia, Ross e Ethan já tinham preparado o</p><p>quarto na casa abandonada a contento do primeiro, ainda que não</p><p>ao do sobrinho.</p><p>— Onde está o resto da tralha? — perguntou Ethan. — O</p><p>equipamento fixe, como o que têm no programa Real Scary Stories.</p><p>— O Curtis diz que não devemos usar demasiados extras da</p><p>primeira vez que vamos investigar — respondeu Ross. — Acabamos</p><p>por nos distrair com as máquinas e por confiar mais nelas do que em</p><p>nós próprios. Além disso, as entidades perturbam o campo</p><p>magnético. Há tanta probabilidade de fazerem o equipamento entrar</p><p>em curto-circuito como de deixarem um vestígio.</p><p>— Mesmo assim — murmurou Ethan. — Sem essas coisas, somos</p><p>tão inúteis como o Shaggy e o Scooby.</p><p>Ross riu-se.</p><p>— Zoinks — disse, e depois reparou no ar desanimado do</p><p>sobrinho. — Olha, sempre que o Curtis tinha a sensação de que</p><p>havia qualquer coisa, voltava com o equipamento fixe para confirmar</p><p>o que os seus sentidos lhe diziam. Também podemos fazer isso. É</p><p>claro que, primeiro, vamos ter de comprar o equipamento fixe.</p><p>A câmara estava apontada para uma das paredes do quarto, a</p><p>comida à mão de semear, os sacos-cama desenrolados, formando</p><p>uma ilha sintética nas tábuas imundas do soalho. A única fonte de</p><p>luz no quarto era uma pequena lanterna pousada entre Ethan e Ross</p><p>que criava uma poça luminosa. Ross pôs um baralho de cartas na</p><p>área iluminada e começou a baralhar.</p><p>Ethan falou por entre um enorme balão de pastilha elástica que</p><p>acabara de rebentar.</p><p>— Para quem acha que o Warburton é um merdas, falas muito</p><p>dele!</p><p>— Tento na língua! Ele não é um merdas, é um mentiroso. E,</p><p>embora pense que ele inventa metade das coisas que diz ver, sabe</p><p>disto para caraças.</p><p>— Tento na língua! — repetiu Ethan, e depois pegou no baralho.</p><p>— Tio Ross? Achas que o fantasma daqui morreu de uma morte</p><p>horrível?</p><p>— Ainda nem sequer sei se há aqui algum fantasma. Vais dar as</p><p>cartas, ou não?</p><p>— Sim. — O rapaz começou a distribuir as cartas. — Pergunto-</p><p>me se irá ficar zangado connosco. Se irá confundir-nos com quem</p><p>quer que lhe tenha cortado a cabeça com um machado.</p><p>— Que machado? — Ross inclinou as suas cartas em direção ao</p><p>feixe de luz da lanterna. — Diz-me uma coisa: é bom ter membros</p><p>da realeza?</p><p>— Não acredito que nunca jogaste a isto. Sim, é bom ter reis e</p><p>damas. E ases. Mas melhor ainda é ter cartas do mesmo naipe</p><p>seguidas, tipo dois, três, quatro, cinco, seis. Primeiro, tens de</p><p>apostar alguma coisa… Tens dinheiro?</p><p>— Drageias de chocolate.</p><p>— Bem, pode ser. Uma sequência de cinco cartas do mesmo</p><p>naipe vale mais do que um póquer e um póquer vale mais do que</p><p>um full house. Para começar, basta isto, por isso vou «puxar». —</p><p>Olhou para o tio. — Significa tirar uma carta.</p><p>— Obrigado — disse Ross secamente. — Aposto duas drageias.</p><p>— Sabes uma coisa? Mesmo que ele venha atrás de mim, não</p><p>vou ficar assustado.</p><p>Se tivesse sido posto entre a espada e a parede, algo que não</p><p>permitira que Van Vleet fizesse, Ross teria sido obrigado a dizer que</p><p>não acreditava que a propriedade Pike estivesse assombrada por</p><p>qualquer entidade. Em primeiro lugar, nunca vira nada ao longo dos</p><p>meses em que caçara fantasmas. Em segundo lugar, mesmo que se</p><p>cingisse à teoria, era loucura pensar que um espírito humano era</p><p>capaz de reunir energia suficiente para provocar os acontecimentos</p><p>que lhe tinham sido atribuídos: desde o congelamento do solo às</p><p>pétalas de rosa que choviam do céu. Embora improváveis, essas</p><p>circunstâncias podiam ter uma explicação natural… uma massa de</p><p>gelo latente no subsolo, uma evaporação estranha.</p><p>Por outro lado, Ross já se enganara antes.</p><p>Pelo menos, aquela noite era boa para Ethan. Ross</p><p>deitou-se</p><p>para trás sobre os cotovelos e viu o sobrinho pôr as suas cartas na</p><p>mesa.</p><p>— Tenho uma série de cinco.</p><p>— Eu tenho um trio. Valetes.</p><p>— Talvez devesses jogar com alguma vantagem — sugeriu Ethan,</p><p>dando uma segunda mão. — Eu acho que vou voltar.</p><p>— Aqui?</p><p>— Não, não propriamente aqui… apenas aqui. Depois de morrer.</p><p>— Olhou primeiro à volta do quarto e depois para o tio, com ar de</p><p>desafio. — Quero dizer, não vou arrumar logo as botas, estás a</p><p>perceber?</p><p>Ross tinha ido com os Warburtons a casas onde crianças tinham</p><p>morrido de doença ou acidente. As mães usavam a esperança como</p><p>uma mantilha que lhes emoldurava o rosto enquanto aguardavam</p><p>que Curtis lhes devolvesse o que tinham perdido. Nesses casos, não</p><p>eram gemidos, baques surdos ou ocorrências estranhas que as</p><p>levavam a pedir ajuda, mas a falta deles.</p><p>Pensou na irmã e baixou as cartas.</p><p>— Tenho fome — disse Ethan.</p><p>Esgueirou-se por entre as sombras, remexendo desajeitadamente</p><p>nas coisas e provocando um grande estrondo.</p><p>— Estás bem? — perguntou Ross, virando a lanterna para as</p><p>embalagens de comida que tinham levado, mas esse canto do</p><p>quarto estava vazio.</p><p>Ethan falou por trás dele.</p><p>— Estou aqui — disse em voz trémula. — Aquilo… hum… não fui</p><p>eu.</p><p>E colou-se às costas do tio.</p><p>— Vamos só dar uma vista de olhos — murmurou Ross. Estava</p><p>tudo novamente silencioso e não havia indícios de alguma coisa ter</p><p>caído. — Pode ter sido um tijolo lá fora, ou uma ratazana. — Pôs um</p><p>braço por cima dos ombros do sobrinho. — Pode ter sido qualquer</p><p>coisa, Ethan.</p><p>— Certo.</p><p>— Porque é que não nos sentamos, para eu te ganhar desta vez?</p><p>Ethan ficou um bocadinho mais descontraído.</p><p>— Vai sonhando! — disse, reunindo a coragem para se afastar e</p><p>voltar a sentar-se.</p><p>Ross deu as cartas, mas não deixava de perscrutar a escuridão.</p><p>Nada de estranho, nada que lhe chamasse a atenção. A não ser a</p><p>tampa da lente da câmara de vídeo, suspensa de um fio preto ao</p><p>lado do aparelho, que tinha começado a balouçar de um lado para o</p><p>outro.</p><p>Embora não corresse uma aragem naquele quarto.</p><p>Do exterior, chegou-lhes o som de um baque surdo: uma árvore</p><p>derrubada ou uma pessoa a cair de gatas.</p><p>— Ouviste aquilo? — sussurrou Ethan, vacilante.</p><p>— Ouvi.</p><p>Foi até à janela partida e espreitou para a floresta que orlava as</p><p>traseiras da propriedade. Teve a visão fugaz de qualquer coisa</p><p>branca e brilhante: a cauda de um veado, uma estrela cadente, os</p><p>olhos de uma coruja.</p><p>Um restolhar de folhas e o som nítido de duas passadas. Um</p><p>vagido agudo, como o choro de um bebé.</p><p>— Talvez seja melhor dar uma volta por ali — murmurou.</p><p>Ethan abanou a cabeça com força.</p><p>— Nem pensar! Eu fico aqui.</p><p>— Provavelmente, é só um guaxinim.</p><p>— E se não for?</p><p>Ross sorriu lentamente.</p><p>— Se não for…</p><p>Shelby não tinha por hábito deixar o filho fazer coisas perigosas;</p><p>para ele, já era suficientemente arriscado viver neste mundo. Mas</p><p>Ethan tinha o gosto da aventura e o desejo de viajar de um miúdo</p><p>de nove anos. Acreditar que fazia parte da missão de Ross… bem,</p><p>talvez isso fosse bom para ambos.</p><p>Entrou no quarto dele, apanhando o Game Boy do chão, assim</p><p>como alguns dos cartuchos que tinham caído para baixo da cama.</p><p>Havia um calendário dos jogos dos Red Sox na parede, juntamente</p><p>com os manuais que Shelby usava para dar aulas em casa a Ethan,</p><p>e um haiku que ele tinha escrito no ano anterior, como parte de uma</p><p>aula sobre o Japão.</p><p>Na mais funda escuridão</p><p>Acordo para fazer da noite dia.</p><p>Qual será a sensação do sol?</p><p>Shelby deixou-se cair na cama do filho. Perguntou-se se Ross</p><p>estaria a mantê-lo em segurança. Perguntou-se se Ethan sentiria a</p><p>falta dela, nem que fosse um bocadinho.</p><p>Olhou apreensiva para o computador. Da última vez que decidira</p><p>ver o que o filho andava a fazer, tinha entrado na sua conta de email</p><p>e descoberto que ele tinha seis novos amigos por correspondência,</p><p>todos miúdos da idade dele, todos de diferentes partes do mundo. A</p><p>princípio, achara isso animador. O facto de Ethan ter encontrado</p><p>forma de estabelecer ligação com outras crianças parecia algo</p><p>saudável, senão mesmo inspirador. Mas depois Shelby tinha</p><p>começado a ler o correio e percebera que Ethan não se apresentara</p><p>tal como era. Para Sonya, na Dinamarca, era um betinho do sexto</p><p>ano que fazia parte do grupo de matemática da escola. Para Tony,</p><p>em Indianapolis, era o melhor batedor de uma equipa de basebol da</p><p>liga juvenil. Para Marco, no Colorado, era um adepto do</p><p>montanhismo, que ia fazer caminhadas com o pai todos os fins de</p><p>semana.</p><p>Em nenhuma das cartas mencionava o facto de sofrer de XP. Em</p><p>nenhuma delas parecia ser outra coisa senão o típico rapaz</p><p>americano, normal e dado ao desporto, no seio de uma família feliz</p><p>que contava com a presença de ambos os pais.</p><p>Em suma, transformara-se em algo que não era.</p><p>Com um suspiro, Shelby saiu para o corredor. Ao passar pela</p><p>porta de Ross, hesitou. Tinha mais oito anos do que o irmão e dava-</p><p>lhe a sensação de que tomara conta dele a vida inteira: desde</p><p>trocar-lhe as fraldas em bebé até sentar-se ao seu lado após a</p><p>tentativa de suicídio, passando pela preocupação com a sua</p><p>segurança quando ele não lhe telefonava durante meses a fio.</p><p>Sempre lhe fora fácil fazer de mãe; quando os pais tinham falecido</p><p>anos atrás, limitara-se a ocupar o lugar deles e a tomar conta de</p><p>tudo.</p><p>Acreditava que a dedicação genuína tinha a sua quota-parte de</p><p>poder protetor, como se o amor fosse uma viga de aço que o destino</p><p>não conseguia furar. Também acreditava que o momento em que</p><p>baixávamos a guarda, o momento em que abdicávamos de uma</p><p>vigilância feroz, era o momento em que tudo podia ser-nos roubado.</p><p>O que a fez pensar novamente em Ross e quando traria ele</p><p>Ethan para casa.</p><p>Abriu a porta e começou a limpar o quarto. Fez a cama. Alinhou a</p><p>escova de dentes e a escova do cabelo em cima da cómoda. Enfiou</p><p>o champô, o corta-unhas e a pasta de dentes na bolsa de higiene</p><p>pessoal, e correu o fecho.</p><p>A cadeira tinha um monte de roupa amarfanhada. Com um</p><p>suspiro, pegou numa camisa, dobrou-a muito bem e pô-la na borda</p><p>da cama. Enrolou um par de meias. Empilhou os boxers e as t-shirts</p><p>e, por fim, sacudiu umas calças de ganga. Quando começou a</p><p>dobrá-las com precisão militar, algo caiu da algibeira. Shelby</p><p>inclinou-se para apanhar o que tinha caído: três moedas de cêntimo,</p><p>de 1932, que ela pôs em cima da cómoda, onde o irmão não</p><p>deixaria de vê-las.</p><p>Ross virou-se e acenou a Ethan, que estava lá em cima à janela,</p><p>e depois aproximou-se cautelosamente do local onde vira um</p><p>lampejo branco. Tinha deixado a lanterna com Ethan, o que</p><p>significava que estava à espera de tropeçar numa raiz exposta e cair</p><p>de cabeça. Embora não conseguisse ver mais de um palmo à sua</p><p>frente, continuava a ouvir o som de alguém, ou de alguma coisa, a</p><p>andar por ali.</p><p>Estremeceu. Estava mais frio do que esperava; quem lhe dera ter</p><p>levado a sweatshirt. De repente, sentiu um cheiro a rosas silvestres,</p><p>como se houvesse um campo delas debaixo dos seus pés, e ele</p><p>sabia por Curtis que essa era uma das formas de um fantasma dar a</p><p>conhecer a sua presença. Mostra-te, pensou.</p><p>Mas qualquer esperança que tivesse de encontrar a sua primeira</p><p>aparição desvaneceu-se ao deparar-se com uma jovem mulher,</p><p>agachada enquanto tentava escavar a terra gelada.</p><p>Envergava um vestido às flores e tinha o rosto emoldurado pelo</p><p>cabelo claro e revolto. O vislumbre de branco que Ross vira era uma</p><p>gola de renda. Ela trabalhava febrilmente, absorta na sua tarefa. E</p><p>era tão real quanto o chão debaixo dos seus pés.</p><p>Era óbvio que não o ouvira aproximar-se; caso contrário, teria</p><p>percebido que tinha sido apanhada em flagrante a… bem, a fazer</p><p>sabe-se lá o quê. Ross emudeceu: além de não ser o fantasma de</p><p>que estava à espera, ela era jovem, bonita e não tinha sido</p><p>convidada. Aproveitou-se deste facto para ter alguma coisa para</p><p>dizer.</p><p>— O que está aqui a fazer?</p><p>Ela virou-se lentamente, a pestanejar, como que surpreendida</p><p>por se encontrar no meio da floresta.</p><p>— Eu… não sei.</p><p>Olhou para as mãos, viu as unhas sujas de terra e franziu a testa.</p><p>— Foi o Van Vleet que a mandou cá?</p><p>— Eu não conheço nenhum Van Fleet…</p><p>— Vleet —</p><p>corrigiu-a Ross, franzindo o sobrolho.</p><p>Talvez fosse apenas uma coincidência improvável, precisamente</p><p>na noite em que começara a sua investigação, haver uma mulher</p><p>que sofria de insónias a deambular pela propriedade. Havia outras</p><p>casas na vizinhança e tinham acontecido coisas ainda mais</p><p>estranhas. Deu por si a desejar não ter iniciado aquela conversa na</p><p>defensiva. Deu por si a desejar que ela olhasse novamente para ele.</p><p>— O que procura? — perguntou, acenando com a cabeça em</p><p>direção ao buraco que ela escavara.</p><p>A mulher corou, o que lhe deu uma luz interior. Quando abanou a</p><p>cabeça, ele sentiu novamente aquele perfume floral.</p><p>— Não faço ideia. Da última vez que tive um ataque de</p><p>sonambulismo, acabei no palheiro de um vizinho.</p><p>— Com ou sem o vizinho? — ouviu-se Ross perguntar, e a mulher</p><p>ficou com um ar tão envergonhado, que ele desejou de imediato</p><p>poder retirar o que dissera. Em vez disso, enfiou as mãos nos</p><p>bolsos, tentando remediar a situação. — O meu nome é Ross</p><p>Wakeman.</p><p>Ela ergueu o olhar, ainda atrapalhada.</p><p>— Tenho de ir.</p><p>— Não, não é assim. De onde venho, a resposta apropriada seria:</p><p>«Muito prazer, eu sou a Susan.» Ou: «Olá, o meu nome é Hannah.»</p><p>Ou: «Como vai? Eu sou a Madonna.»</p><p>— Madonna?</p><p>Ross sorriu.</p><p>— Tanto faz.</p><p>— Chamo-me Lia — disse ela, com um sorrisinho a bailar-lhe nos</p><p>cantos dos lábios.</p><p>— Só Lia?</p><p>Ela hesitou.</p><p>— Beaumont. Lia Beaumont.</p><p>Todas as linhas do seu corpo estavam prontas para fugir. A</p><p>verdade é que dar de caras com um desconhecido no meio da</p><p>floresta durante um ataque de sonambulismo devia ser uma</p><p>experiência bastante desagradável. Inverosimilmente, ela parecia</p><p>ainda menos segura de si perto de Ross do que ele perto dela. Fez</p><p>um aceno de cabeça, ainda embaraçada, e começou a afastar-se.</p><p>Ross sentiu uma necessidade inexplicável de impedi-la de se ir</p><p>embora e tentou pensar em alguma coisa para dizer que a</p><p>mantivesse ali, mas as palavras ficaram todas represadas ao fundo</p><p>da garganta.</p><p>De repente, ela virou-se e encarou-o.</p><p>— Também é sonâmbulo?</p><p>— Não, na verdade, estou a trabalhar — disse Ross, enrolando o</p><p>fio da conversa à sua volta, como uma âncora.</p><p>— Aqui? Agora?</p><p>— Sim. Sou investigador paranormal. — Mas logo percebeu que a</p><p>designação não lhe dizia nada. — Fantasmas — explicou. — Procuro</p><p>fantasmas. Na verdade, vim aqui porque pensei que a sua gola era…</p><p>bem, não interessa. Não é quem eu estava à espera.</p><p>— Desculpe.</p><p>— Não tem nada de que se desculpar.</p><p>Ela inclinou a cabeça de lado, estudando-o.</p><p>— Acredita mesmo que as pessoas podem voltar depois de</p><p>morrerem? Como o Harry Houdini?</p><p>— E não acreditamos todos? — Ela usava a tristeza como o capuz</p><p>de um carrasco; velava-lhe as feições delicadas. — Quem sabe? —</p><p>brincou ele. — Até podemos ter companhia neste preciso momento.</p><p>Mas as suas palavras fizeram Lia começar a olhar para trás</p><p>desvairadamente.</p><p>— Se ele me encontra…</p><p>Quem?, queria Ross perguntar, ao mesmo tempo que percebia</p><p>que o nervosismo da mulher não se devia a ele tê-la descoberto,</p><p>mas sim à possibilidade de ser descoberta por outra pessoa. Antes</p><p>que pudesse perguntar, ouviu um grito ensurdecedor vindo da casa.</p><p>— Tio Ross! — guinchou Ethan. — Tio Ross, vem cá!</p><p>Ele olhou para a janela, onde já não havia qualquer luz residual</p><p>da lanterna ou da câmara de vídeo. Ficou sem pinga de sangue ao</p><p>imaginar o que Ethan poderia ter visto.</p><p>— Tenho de ir — disse a Lia e, sem mais explicações, desatou a</p><p>correr.</p><p>Artigo publicado no The New York Times:</p><p>COISAS QUE FAZEM BARULHO</p><p>DURANTE A NOITE?</p><p>Kerrigan Klieg</p><p>Comtosook, Vermont. Os residentes de Comtosook, uma pequena vila no</p><p>canto noroeste do Vermont, estão ansiosos por contar histórias mirabolantes.</p><p>Há histórias de seiva de ácer a escorrer dos troncos nos meses secos de verão,</p><p>de pétalas de flor a choverem do céu e de congelamento do solo em pleno</p><p>agosto, de carros que, de repente, passaram a andar apenas de marcha atrás.</p><p>Porém, o mais estranho de tudo é que isto é mesmo verdade, e estas</p><p>estranhas ocorrências são apenas a ponta do icebergue. Especialistas de várias</p><p>áreas na vizinha Universidade do Vermont não foram capazes de explicar os</p><p>inúmeros acontecimentos, mas os residentes têm as suas próprias ideias sobre</p><p>o que está a provocar este alvoroço: um espírito inquieto que não quer que o</p><p>mudem de sítio.</p><p>Há algumas semanas, Comtosook era uma vila bucólica do Vermont.</p><p>Depois, o Grupo Redhook fez negócio com um proprietário idoso e adquiriu</p><p>uma pequena extensão de terreno. De imediato, um grupo local de índios</p><p>Abenaki iniciou um protesto, insistindo que a terra era um cemitério nativo. Os</p><p>testes arqueológicos efetuados pelo estado não revelaram quaisquer restos</p><p>mortais humanos, embora isso seja secundário, segundo Az Thompson, um</p><p>líder abenaki local: «Eu não estava à espera de que um grupo imobiliário vindo</p><p>de fora soubesse onde os meus antepassados estão sepultados, mas também</p><p>não estava à espera de que me dissessem que estou a mentir sobre isso.»</p><p>Winks Smiling Fox, outro dos manifestantes, acrescenta: «Ultimamente,</p><p>aconteceram coisas suficientes para provar que, por mais que o Grupo</p><p>Redhook queira lá entrar, há qualquer coisa que não quer sair.»</p><p>Ele refere-se à lista crescente de coisas estranhas que começaram a</p><p>desgastar o público em geral, mesmo pessoas que vivem a quilómetros da</p><p>propriedade disputada. Abe Huppinworth, proprietário de um armazém local,</p><p>habituou-se a varrer pétalas de rosa do alpendre. «Caem durante toda a noite,</p><p>como neve. Quando chego para abrir a porta, encontro uma camada de dez</p><p>centímetros de altura. E não há uma roseira num raio de cinco quilómetros.»</p><p>Ava Morgan levou o filho de dois anos ao Hospital Fletcher Allen, em</p><p>Burlington, quando ele acordou uma manhã a falar português, língua em que</p><p>ninguém da sua família era versado, e muito menos fluente. «Os médicos</p><p>também não souberam dizer-me o que aconteceu. Fizeram-lhe todo o tipo de</p><p>exames e depois, uma manhã, desapareceu tudo e o Cole recomeçou a falar</p><p>em inglês.» Mas nem todos os residentes são tão complacentes. Uma petição</p><p>com mais de seiscentas assinaturas foi entregue a Rod van Vleet, gestor do</p><p>projeto do Grupo Redhook. O senhor Van Vleet recusou ser entrevistado, mas</p><p>já antes classificou todas as alegações de atividade paranormal na propriedade</p><p>como sendo ridículas.</p><p>Porém, há relatos que indicam que Van Vleet pode não estar tão confiante</p><p>quanto se mostra. Há fontes que dizem que o Grupo Redhook contratou um</p><p>investigador para explorar a propriedade.</p><p>Contudo, para a gente da vila, as intenções ocultas de um promotor</p><p>imobiliário e a fúria indignada dos Abenaki são igualmente insignificantes. «A</p><p>única coisa que eu sei é que isto anda a dar cabo de mim», diz o senhor</p><p>Huppinworth, durante uma pausa na sua interminável tarefa de varrer pétalas.</p><p>«Mais cedo ou mais tarde, alguém tem de ceder.»</p><p>Era um facto estabelecido que Meredith nunca iria conhecer um</p><p>homem decente. No trabalho, era demasiado esperta e, por isso,</p><p>demasiado intimidante. Os encontros românticos com desconhecidos</p><p>também não tinham sido mais bem-sucedidos. O último fora com um</p><p>ator que a avó dela tinha conhecido no parque, que chegara ao</p><p>restaurante vestido de Hamlet. Ir embora ou não ir, eis a questão,</p><p>pensara Meredith. Desde esse fiasco, a avó presenteara-a com os</p><p>números de telefone de um agente funerário, um veterinário e um</p><p>quiroprático, que muito convenientemente Meredith tinha perdido.</p><p>— Quero um neto antes de morrer — dizia Ruby.</p><p>— Já tem uma neta — recordava-lhe Meredith.</p><p>— Quero um que tenha pai — esclarecia ela.</p><p>Meredith tinha finalmente cedido, quando Ruby lhe disse que</p><p>este passava o tempo livre a fazer voluntariado com idosos. Por isso,</p><p>estava agora sentada à frente de Michael DesJardins, a tentar</p><p>convencer-se de que aquilo não era tão mau quanto parecia.</p><p>Ele estava a babar-se. Está bem, tinha a ver com a cirurgia</p><p>dentária que fizera nesse dia, mas não era algo particularmente</p><p>aliciante.</p><p>— Então — disse ele em voz arrastada —, trabalha num</p><p>laboratório? O que é que faz? Dá de comer aos ratos e essas coisas?</p><p>— Faço DGP. Diagnóstico genético pré-implantação.</p><p>tudo desarrumado.</p><p>— Eu estive no Elks Club o tempo todo — interveio o marido. —</p><p>Não vim a casa. Ninguém cá veio.</p><p>— Depois, foi a música de órgão que vinha do sótão às duas da</p><p>manhã. Assim que lá fomos acima, parou. Abrimos a porta e</p><p>deparámo-nos com um piano de criança, sem pilhas, no meio do</p><p>chão.</p><p>— Nós não temos um piano desses — acrescentou Harlan. —</p><p>Muito menos uma criança.</p><p>— E quando pusemos as pilhas nem sequer tocava aquele tipo de</p><p>música. — Eve hesitou. — Senhor Warburton, espero que</p><p>compreenda que não somos o tipo de pessoas que… que acredita</p><p>nessas coisas. Mas é que… se não for isso, então estou a perder o</p><p>juízo.</p><p>— A senhora não está a enlouquecer — disse Curtis, tocando-lhe</p><p>na mão com a sua simpatia característica. — Amanhã de manhã, já</p><p>teremos uma ideia mais precisa do que se está a passar em vossa</p><p>casa.</p><p>Curtis olhou por cima do ombro para ter a certeza de que Ross</p><p>estava a filmar. Dependendo do que acontecesse mais tarde, os</p><p>O’Donnells podiam vir a participar no Bogeyman Nights e, se assim</p><p>fosse, aquelas imagens eram cruciais. Os Warburtons recebiam mais</p><p>de trezentos emails por dia de pessoas que acreditavam que as suas</p><p>casas estavam assombradas. Oitenta e cinco por cento acabavam</p><p>por revelar-se embustes ou ratos nos vigamentos. Os restantes…</p><p>bem, Ross já trabalhava com eles havia tempo suficiente para saber</p><p>que algumas coisas simplesmente não tinham explicação.</p><p>— E têm tido visões de espectros? — perguntou Curtis. — Têm</p><p>sentido mudanças de temperatura?</p><p>— No nosso quarto, tão depressa está um calor infernal, como</p><p>ficamos a tremer de frio — respondeu Harlan.</p><p>— Há algumas zonas da casa onde se sintam particularmente</p><p>desconfortáveis?</p><p>— O sótão, sem dúvida. E a casa de banho lá de cima.</p><p>Os olhos de Curtis passaram rapidamente do tapete oriental</p><p>tecido à mão para a jarra antiga sobre a lareira.</p><p>— Devo avisá-los de que encontrar um fantasma pode ser uma</p><p>tarefa dispendiosa.</p><p>Enquanto investigador no terreno para os Warburtons, Ross fora</p><p>enviado a bibliotecas e arquivos de jornais para localizar documentos</p><p>sobre a propriedade e, com alguma sorte, a informação adicional de</p><p>que talvez tivesse sido o cenário de um homicídio ou suicídio. A sua</p><p>investigação tinha dado em nada, mas isso nunca era impedimento</p><p>para Curtis. No fim de contas, um fantasma tanto podia assombrar</p><p>uma pessoa como um lugar. A história podia pairar por ali, como um</p><p>leve perfume ou uma memória gravada por trás das pálpebras de</p><p>alguém.</p><p>— O que for preciso — disse Eve O’Donnell. — Não se trata de</p><p>dinheiro.</p><p>— Claro que não. — Curtis sorriu e bateu com as palmas das</p><p>mãos nos joelhos. — Muito bem, temos trabalho para fazer.</p><p>Esta era a deixa de Ross. Durante a investigação, era ele o</p><p>responsável por montar e monitorizar o equipamento</p><p>eletromagnético, as câmaras de vídeo digitais e o termómetro de</p><p>infravermelhos. Trabalhava a troco do salário mínimo, apesar do</p><p>dinheiro que o programa de televisão e casos como aquele</p><p>proporcionavam. Ross pedira emprego aos Warburtons nove meses</p><p>antes, depois de ter lido um artigo sobre eles no L.A. Times por</p><p>altura do Halloween. Ao contrário de Curtis e Maylene, nunca tinha</p><p>visto um espírito, mas queria muito ver. Esperava que a sensibilidade</p><p>aos fantasmas pudesse ser algo que se transmitisse pelo contacto,</p><p>como a varicela, e que, tal como a doença, deixasse a pessoa</p><p>marcada para sempre.</p><p>— Pensei em ir ver o sótão… — disse ele.</p><p>Parou junto à porta por um instante, à espera de que Eve</p><p>O’Donnell subisse as escadas para lhe indicar o caminho.</p><p>— Sinto-me ridícula — confidenciou ela, embora Ross não lhe</p><p>tivesse perguntado nada. — Ver o Casper, com a minha idade…</p><p>Ross sorriu.</p><p>— Um fantasma pode deixar-nos um bocadinho abalados e fazer-</p><p>nos pensar que estamos doidos, mas não nos faz mal nenhum.</p><p>— Oh, não creio que ela me fizesse mal!</p><p>— Ela?</p><p>Eve hesitou.</p><p>— O Harlan disse que eu não devia dar nenhuma informação.</p><p>Assim, se vissem o que nós vemos, saberíamos que é verdade. —</p><p>Estremeceu e olhou para cima, na direção das escadas estreitas. —</p><p>A minha irmã mais nova morreu quando eu tinha sete anos. Às</p><p>vezes, pergunto-me… será que um fantasma nos pode encontrar, se</p><p>quiser?</p><p>Ross desviou o olhar.</p><p>— Não sei — disse, desejando poder dar-lhe mais alguma coisa,</p><p>uma resposta concreta, uma experiência pessoal. Os seus olhos</p><p>cravaram-se na pequena porta ao cimo das escadas. — É ali?</p><p>Ela assentiu, deixando-o passar à frente para abrir a porta. A</p><p>câmara que Ross tinha montado no exterior vigiava-os a partir da</p><p>janela, como um ciclope. Eve abraçou-se com força.</p><p>— Estar aqui dá-me calafrios.</p><p>Ross mudou algumas caixas de sítio, para que não aparecessem</p><p>sombras na filmagem que pudessem ter justificação.</p><p>— O Curtis diz que é assim que sabemos onde encontrá-los.</p><p>Deixamo-nos levar pelo que os sentidos nos dizem. — O brilho de</p><p>alguma coisa no chão chamou-lhe a atenção; ajoelhando-se,</p><p>apanhou um punhado de moedas. — Seis moedas de cêntimo —</p><p>disse, sorrindo. — Que ironia!</p><p>— Ela às vezes faz isso — comentou Eve, encaminhando-se para</p><p>a porta, abraçada a si mesma. — Deixa-nos trocos.</p><p>— O fantasma? — perguntou Ross ao mesmo tempo que se</p><p>virava, mas Eve já tinha fugido escadas abaixo.</p><p>Respirando fundo, fechou a porta do sótão e apagou a luz,</p><p>mergulhando o pequeno espaço nas trevas. Chegou-se para o lado,</p><p>onde ficaria fora do ângulo da câmara, e ligou-a com o controlo</p><p>remoto. Depois concentrou-se na escuridão à sua volta, deixando-a</p><p>oprimir-lhe o peito e a parte de trás dos joelhos, como Curtis</p><p>Warburton lhe ensinara. Apurou os sentidos até que a aura de</p><p>incredulidade se esfumasse e o espaço à sua volta florescesse.</p><p>Talvez seja isto, pensou. Talvez a aparição de fantasmas seja como</p><p>um soluço preso na garganta.</p><p>Algures à sua esquerda, ouviu o som de passos e o tilintar</p><p>inconfundível de moedas a cair no chão. Ross ligou uma lanterna e</p><p>virou o feixe de luz até iluminar a sua bota e as três novas moedas</p><p>caídas ao lado.</p><p>— Aimee? — sussurrou para o ar vazio. — És tu?</p><p>Comtosook, no estado do Vermont, era uma vila marcada por</p><p>fronteiras: o declive que terminava no lago Champlain, as escarpas</p><p>que orlavam a pedreira de granito onde trabalhava metade dos</p><p>habitantes, a demarcação invisível onde os campos ondulados do</p><p>Vermont se convertiam na cidade de Burlington. Na igreja</p><p>congregacional, que ficava no centro da vila, estava pendurada uma</p><p>placa da revista Vermont Life, datada de 1994, o ano em que a vila</p><p>de Comtosook foi proclamada o lugar mais idílico do estado. E era…</p><p>Havia dias em que Eli Rochert olhava para as folhas a</p><p>transformarem-se em rubis, âmbar e esmeraldas, e tinha de parar</p><p>por um instante para recuperar o fôlego.</p><p>Porém, independentemente do que era para os turistas,</p><p>Comtosook era o lar de Eli. Sempre fora, e ele imaginava que</p><p>sempre seria. Claro que, sendo um dos dois agentes da polícia que</p><p>trabalhavam a tempo inteiro na vila, compreendia que o que os</p><p>turistas viam era uma ilusão. Eli tinha aprendido havia muito tempo</p><p>que podemos estar a olhar para uma coisa e não ver as mentiras</p><p>que se escondem por trás das aparências.</p><p>Conduziu ao longo da Cemetery Road, a patrulha habitual em</p><p>noites como aquela, quando a lua estava tão redonda e amarela</p><p>como o olho de um falcão. Apesar de as janelas do carro irem</p><p>abertas, não corria uma aragem, e o cabelo preto e curto de Eli</p><p>estava húmido na nuca. Até Watson, o seu cão, ofegava no banco ao</p><p>lado dele.</p><p>As lápides antigas perfilavam-se como soldados de infantaria</p><p>cansados. No canto esquerdo do cemitério, perto da faia, ficava a</p><p>pedra tumular mais estranha de Comtosook. WINNIE SPARKS, dizia.</p><p>NASCEU 1835. FALECEU 1901. FALECEU 1911. Rezava a lenda que o</p><p>cortejo fúnebre da velhota irascível ia a caminho do cemitério</p><p>quando os cavalos se empinaram e o caixão caiu da carroça,</p><p>abrindo-se. Winnie sentou-se e saltou para fora da urna, cuspindo</p><p>injúrias. Dez anos mais tarde, quando morreu — outra vez —, o</p><p>marido que tanto sofrera às suas mãos fechou a tampa do caixão</p><p>com 150 pregos, como medida de precaução.</p><p>Eli não estava muito interessado em saber se isso era verdade</p><p>— Eu estou no ramo da restauração.</p><p>— Ah, sim? — Meredith entrelaçou as mãos à sua frente, vendo-o</p><p>pôr manteiga numa fatia de pão inteira e enfiá-la na boca. O lado</p><p>positivo é que isso absorveu o excesso de saliva. — Não me diga</p><p>que é chef.</p><p>— Sim, por acaso, sou.</p><p>Ela sempre acalentara a fantasia de um homem a levar para um</p><p>apartamento acolhedor, onde uma fabulosa refeição gourmet teria</p><p>sido preparada para seu deleite.</p><p>— Então, suponho que estar num restaurante lhe dá a sensação</p><p>de estar a trabalhar.</p><p>— Na verdade, este é um bocadinho superior ao meu… já foi</p><p>alguma vez ao Wendy’s, na Sixteenth Street?</p><p>Meredith não precisou de responder, pois nesse preciso momento</p><p>o empregado de mesa chegou com os pratos. Michael começou a</p><p>cortar o bife todo em cubinhos, e isso fê-la pensar nas refeições que</p><p>serviam nas instituições para doentes mentais.</p><p>Alisou o guardanapo e olhou para a sua salsicha fresca, aninhada</p><p>numa cama de polenta. O melhor de tudo, disse para consigo, é que</p><p>vou ganhar uma bela refeição à custa disto.</p><p>Michael apontou com a faca para o prato dela e riu-se.</p><p>— Parece que um foi um dogue alemão que deixou aí o seu</p><p>presente — disse, com um fio de baba a escorrer pelo queixo.</p><p>Vou levantar-me e dar uma desculpa para ir à casa de banho,</p><p>pensou Meredith. E depois não volto.</p><p>Mas, se fizesse isso, a avó Ruby iria acusá-la de estragar</p><p>deliberadamente mais um encontro. Por isso, Meredith começou a</p><p>pensar em maneiras de fazer com que fosse Michael a querer ir-se</p><p>embora. Ia pedir lápis de cor e começar a colorir a toalha e os</p><p>guardanapos. Ia fazer uma escultura com a sua polenta. Ia lamber o</p><p>prato e oferecer-se para lamber o dele. Ia comunicar apenas por</p><p>mímica ou em Língua dos Pês.</p><p>— Posso fazer-lhe uma pergunta pessoal? — disse Michael. —</p><p>Está no período de ovulação?</p><p>— Como?</p><p>— É que, ultimamente, quando olho para o espelho, só vejo</p><p>escrito «Papá».</p><p>Sorriu e apontou para a testa, como se tivesse a palavra ali</p><p>tatuada.</p><p>Meredith desejou muitas coisas naquele momento: a cabeça da</p><p>avó numa estaca, paciência, tendências lésbicas. Voluntariado com</p><p>idosos, lembrou-se. Olhou fixamente para o prato de Michael.</p><p>— Vai comer isso?</p><p>— O bife?</p><p>— Não, o osso. Queria levá-lo para casa, para a minha avó. —</p><p>Inclinou-se para ficar mais perto dele. — Já tem setenta e tal anos,</p><p>está praticamente morta, e é mais barato do que dar-lhe de comer.</p><p>Michael engasgou-se com o gole de água. Depois, recompondo-</p><p>se, levantou a mão e fez sinal para o empregado lhe trazer a conta.</p><p>— Já acabou, certo?</p><p>Meredith dobrou o guardanapo sobre a mesa.</p><p>— Oh, sim!</p><p>Ethan sabia agora o que era sentir medo: a testa pressionada por</p><p>todos os lados, embora não houvesse nada à sua volta. Os pelos na</p><p>nuca a eriçarem-se um por um, como um efeito dominó invertido. As</p><p>pernas a ficarem bambas e a tremerem tanto, que ou ele se sentava</p><p>ou caía.</p><p>— Não é que estivesse com medo — insistiu pela centésima vez</p><p>desde que gritara pelo tio na noite anterior. — Quer dizer, foi apenas</p><p>estranho, sabes? Ficar às escuras, assim de repente?</p><p>Ross sentou-se ao lado dele na sala, com a câmara de</p><p>infravermelhos ligada à televisão. A imagem tinha grão e era escura,</p><p>com as margens a tremeluzirem. Além disso, como a câmara tinha</p><p>sido montada num tripé, o resultado era enfadonho de se ver. Ethan</p><p>não percebia qual era o interesse de ficar a olhar para uma parede</p><p>durante três horas de gravação. Apesar de aparentemente ser um</p><p>elemento muito importante da investigação paranormal, não</p><p>conseguia deixar de bocejar.</p><p>Isso era outra coisa que o tio Ross lhe ensinara: quando estamos</p><p>na presença de fantasmas, eles deixam-nos esgotados.</p><p>O tio estava a ser fixe, sobretudo desde que… bem, para ser</p><p>sincero, Ethan tinha de admitir que apanhara um grande susto</p><p>quando a lanterna se apagou e a câmara de vídeo se desligou</p><p>sozinha. Acontece que a cassete tinha chegado simplesmente ao fim</p><p>e as pilhas da lanterna estavam gastas.</p><p>A mãe estava agora a franzir o sobrolho, enquanto olhava para a</p><p>imagem na televisão.</p><p>— Estou a perder alguma coisa?</p><p>— Por enquanto, não. — Ross virou-se para Ethan. — Sabes o</p><p>que eu acho? Acho que ele estava no quarto, contigo.</p><p>Ethan não conseguiu deixar de estremecer. Será que um</p><p>fantasma podia andar à boleia connosco? Será que podíamos</p><p>apanhar um, como quem apanha uma constipação ou sarampo?</p><p>Sentiu a mãe a abraçá-lo por trás e recostou-se para ficar mais perto</p><p>dela.</p><p>— Eu… eu pensava que tinhas ido lá fora porque tinhas visto</p><p>alguma coisa.</p><p>— Não, afinal, era uma pessoa. — De repente, Ross premiu o</p><p>botão de pausa do comando. — Estás a ver aquilo?</p><p>— Pirilampos? — aventou Shelby.</p><p>— Diz-me lá quando é que viste tantos pirilampos juntos, a ponto</p><p>de parecer uma tempestade de neve… — Rebobinou e aumentou o</p><p>volume, para que a sua própria voz e a de Ethan se fizessem ouvir</p><p>novamente. — Foi nesta altura que saí — narrou Ross. Na gravação,</p><p>o som dos seus passos foi-se tornando cada vez mais suave à</p><p>medida que descia as escadas. — Estás a ver? Aquelas luzes</p><p>aparecem logo depois de eu sair.</p><p>A seguir, a imagem desapareceu.</p><p>Ross rodou os ombros até os ossos estalarem.</p><p>— Seja lá o que for, acho que entrou no quarto onde estava o</p><p>Ethan enquanto eu andava lá fora. Aquelas chispas na gravação… é</p><p>a energia a mudar de forma. E isso explicaria porque é que a</p><p>lanterna se apagou. Os fantasmas precisam de energia para se</p><p>materializarem e andarem por aí; este estava a usar a das pilhas da</p><p>lanterna. — Viu Ethan reprimir mais um bocejo. — E,</p><p>aparentemente, a força que faz o Ethan resistir.</p><p>Mas Ethan estivera sozinho naquele quarto e não tinha visto</p><p>nada. Ou tinha?</p><p>Uma banheira. Um pé a levantar-se no meio da espuma.</p><p>A imagem surgiu do nada na sua mente e depois desapareceu</p><p>antes que ele conseguisse agarrá-la. Entretanto, cada uma das suas</p><p>pálpebras pesava à vontade uns cinco quilos. Ouviu a voz da mãe,</p><p>como uma corrente subterrânea.</p><p>— O que é que vais dizer à empresa de construção?</p><p>Mas não ouviu a resposta do tio. Já estava a sonhar com uma</p><p>praia, de areia tão quente que parecia uma faca debaixo dos seus</p><p>pés que não paravam quietos.</p><p>Shelby sabia que alguns bibliotecários pensavam que o cérebro</p><p>humano era como um dossiê de microfichas, com imagens e</p><p>palavras incrivelmente minúsculas em folhas transparentes,</p><p>organizadas página por página para proporcionar o prazer da sua</p><p>visualização. Porém, sempre que via aqueles dossiês em miniatura,</p><p>pensava que, se havia parte do corpo capaz de ser catalogada dessa</p><p>forma, era o coração. Imaginava autópsias, com o órgão a ser</p><p>cortado em fatias finas. Uma delas relataria o modo como tínhamos</p><p>amado um filho; outra registaria os sentimentos que nutríamos pelos</p><p>nossos pais e irmãos. Outra ainda, escarlate, poderia estar gravada</p><p>com momentos de paixão; anjos abraçados na cabeça de um</p><p>alfinete. E, para os que tinham sorte, a fatia mais fina estaria repleta</p><p>de memórias de um amor tão forte que nos virava do avesso e nos</p><p>deixava ofegantes, e seria exatamente igual a uma fatia guardada</p><p>no coração de uma alma gémea.</p><p>Desiderato: aquilo que se deseja.</p><p>— Precisa de ajuda?</p><p>Shelby empurrou os óculos de ler para cima e virou-se para o</p><p>funcionário bexigoso do tribunal das sucessões.</p><p>— Não, obrigada. Consigo fazer isto de olhos fechados.</p><p>Para ilustrar, puxou para fora a base do leitor de microfichas e foi</p><p>passando os acetatos com destreza, para ir vendo as páginas do</p><p>testamento.</p><p>Tinha sido Ross que requisitara os seus serviços de investigação</p><p>e, como era tão raro pedir ajuda, ela concordara. Queria que ela</p><p>descobrisse desde quando a terra estava nas mãos da família Pike e</p><p>se havia algum registo de uma aldeia de nativos americanos naquele</p><p>local. Shelby tinha ido de carro até ao edifício da câmara municipal</p><p>que albergava a esquadra e o tribunal de primeira instância, assim</p><p>como o departamento de sucessões e os serviços públicos. Ficou a</p><p>saber que a propriedade só pertencia a Pike desde a década de</p><p>1930.</p><p>Não havia registo de qualquer nativo americano ter lá vivido.</p><p>Por iniciativa própria, tratou de descobrir como conseguira</p><p>Spencer Pike a</p><p>escritura da terra e, para sua surpresa, não tinha</p><p>sido uma transação imobiliária, mas sim uma herança. Da sua</p><p>falecida mulher.</p><p>Shelby não tinha feito testamento. Na verdade, não possuía um</p><p>património assim tão grande… Claro que Ethan não ficaria na</p><p>miséria se ela fosse atropelada ao sair do tribunal, mas também não</p><p>era nenhuma Ivana Trump. Porém, a razão por que não se dera ao</p><p>trabalho de ir a um advogado para redigir um testamento tinha mais</p><p>a ver com os seus beneficiários do que com os seus haveres. Todos</p><p>os outros pais deixavam os bens materiais aos filhos. Mas o que</p><p>fazer quando se sabia que íamos viver mais tempo do que o nosso</p><p>filho?</p><p>Eu, a senhora Spencer T. Pike, de Comtosook, Vermont, declaro</p><p>que este é o meu último testamento, revogando por este meio</p><p>todos os testamentos e codicilos anteriores por mim redigidos.</p><p>Shelby franziu o sobrolho ao ver a data: assinado em 1931. A</p><p>letra da assinatura era delicada e cheia de arabescos. O testamento</p><p>estava assinado da mesma maneira — Senhora Spencer T. Pike —,</p><p>como se ela não tivesse existido antes do casamento. Shelby teve de</p><p>decifrar a linguagem jurídica, mas a intenção era bastante clara: a</p><p>senhora Spencer T. Pike deixava tudo ao marido. Quase tudo.</p><p>Deixo e lego todos os meus bens pessoais tangíveis, incluindo,</p><p>entre outros, o mobiliário, o recheio da casa, as joias e os</p><p>automóveis, ao meu marido, Spencer Pike. Deixo e lego a</p><p>propriedade imobiliária de que sou titular, localizada no</p><p>cruzamento do Otter Creek Pass e da Montgomery Road, em</p><p>Comtosook, condado de Chittenden, estado do Vermont, aos</p><p>descendentes resultantes do meu casamento com Spencer Pike,</p><p>ficando à guarda do meu executor em nome desses</p><p>descendentes até cada um deles perfazer vinte e um anos. Essa</p><p>propriedade imobiliária será detida pelos descendentes em</p><p>regime de propriedade conjunta. Se eu e Spencer Pike não</p><p>tivermos gerado descendência por altura da minha morte, deixo e</p><p>lego a propriedade supracitada ao meu marido, Spencer Pike.</p><p>Não havia nada no testamento que indicasse como uma mulher</p><p>com tão pouco sentido de individualidade tinha acabado como</p><p>proprietária. E também não havia nada que indicasse como é que a</p><p>sua morte prematura afetara o marido; se alguma vez ele teria</p><p>olhado para a propriedade que era agora sua e pensado que</p><p>entregaria cada centímetro quadrado se isso lhe trouxesse a mulher</p><p>de volta.</p><p>Shelby adorava palavras, mas seria a primeira a dizer que elas</p><p>tinham o hábito de nos desapontar. A maior parte das vezes, as</p><p>palavras que não estavam escritas eram aquelas de que mais</p><p>precisávamos.</p><p>Tirou a microficha do leitor, enfiou-a na capa de proteção,</p><p>entregou-a ao funcionário e saiu do tribunal das sucessões. No</p><p>entanto, assim que pôs o pé fora do passeio, um carro da polícia</p><p>com a sirene ligada entrou na rampa circular da entrada do edifício</p><p>municipal, parando tão em cima dela, que Shelby deu por si com a</p><p>mão estendida, como se isso pudesse evitar que o carro lhe batesse.</p><p>O polícia que saiu lá de dentro murmurou um pedido de desculpa,</p><p>mas nem sequer olhou para ela enquanto corria para a esquadra.</p><p>Shelby tremeu durante o caminho todo até ao carro. Jurou a si</p><p>mesma que faria o testamento até ao final da semana.</p><p>Eli estava atrasado. Entrou precipitadamente na esquadra e</p><p>enfiou a cabeça no cubículo das comunicações.</p><p>— Andam à tua procura — disse o sargento.</p><p>— Diz-me alguma coisa que eu não saiba. Onde é que eles</p><p>estão?</p><p>— Na sala de reuniões. Com o chefe.</p><p>Resmungando, Eli percorreu o corredor e deu com o chefe</p><p>Follensbee sentado com dois adolescentes.</p><p>— Ah, detetive Rochert. Aqui o senhor Madigan e o senhor Quinn</p><p>disseram que lhes ordenou especificamente que viessem ter aqui</p><p>consigo às dez e meia para tomar os seus depoimentos. E, no</p><p>entanto, já passa das onze!</p><p>— Desculpe, chefe — disse Eli, baixando a cabeça. — Fiquei…</p><p>retido.</p><p>Na verdade, deixara-se dormir. Depois de ter passado a maior</p><p>parte da noite acordado, tinha adormecido pouco antes de</p><p>amanhecer. Tinha sonhado com a mulher que cheirava a maçãs, a</p><p>mesma com que já sonhara. Por isso, não era de estranhar o facto</p><p>de ter ignorado o despertador.</p><p>E depois, quando passava de carro pela propriedade Pike, duas</p><p>raparigas de bicicleta tinham-no feito parar, para lhe dizerem que</p><p>tinham visto uma senhora a vaguear pela Montgomery Road, com ar</p><p>de quem estava perdida. No ano anterior, uma idosa com Alzheimer</p><p>saíra de casa no seu carro e fora encontrada morta de hipotermia</p><p>dois dias mais tarde no parque de estacionamento de um</p><p>supermercado. Por esse motivo, Eli tinha voltado ao local que as</p><p>raparigas lhe tinham indicado. Mas quem quer que elas tivessem</p><p>visto já tinha entretanto desaparecido, e Eli estava atrasado mais de</p><p>vinte minutos.</p><p>Sentou-se à frente de Jimmy Madigan e Knott Quinn. Estavam</p><p>refastelados nas suas cadeiras, com as suas t-shirts de heavy metal,</p><p>calças de ganga rasgadas e botas pretas. Eram rapazes que tinham</p><p>desistido de estudar e andavam à margem da sociedade. Para terem</p><p>entrado numa esquadra de livre vontade, deviam ter apanhado um</p><p>valente susto.</p><p>— Então, vocês dizem que viram alguma coisa na propriedade</p><p>Pike?</p><p>— Sim — disse Jimmy. — Há três noites. Fomos até lá, por causa</p><p>do que as pessoas dizem que anda a acontecer. E foi nessa altura</p><p>que vimos a criatura.</p><p>— A criatura?</p><p>Jimmy olhou para o amigo.</p><p>— Vimo-la os dois. Era mais alta do que nós os dois juntos. E</p><p>tinha umas presas…</p><p>— Dentes — concordou Knott. — Todos serrilhados, como uma</p><p>faca de caça.</p><p>— E essa criatura falou convosco?</p><p>Os rapazes entreolharam-se.</p><p>— Isso foi o mais estranho. Parecia que nos ia matar, mas</p><p>quando abriu aquela bocarra chorou como um bebé.</p><p>— Chorou? Com lágrimas?</p><p>Knott abanou a cabeça.</p><p>— Não, pareciam vagidos. Uá, uá.</p><p>— E depois desapareceu — acrescentou Jimmy. — Como fumo.</p><p>— Fumo — repetiu Eli. — Interessante.</p><p>— Meu, eu sei que pensa que estamos a inventar isto tudo, mas</p><p>não estamos. Vimos os dois, tanto eu como o Knott. Deve contar</p><p>para alguma coisa, não?</p><p>— Mas eu acredito que viram. Por falar em ver coisas, alguma</p><p>vez viram isto?</p><p>Eli tirou do bolso do peito um pequeno saco de fecho hermético</p><p>cheio de cogumelos ressequidos.</p><p>Knott ficou lívido.</p><p>— Hum, trufas?</p><p>— Sim, trufas — disse Eli. — É isso que anda a cultivar em casa,</p><p>Knott? É porque não foi isso que um dos clientes do Jimmy me</p><p>disse.</p><p>— Mas que merda é esta, meu? Não sei do que está a falar —</p><p>disse Jimmy.</p><p>— Ótimo — disse Eli, pondo duas folhas de papel em cima da</p><p>mesa. — Então, não se importam que passemos revista aos vossos</p><p>quartos. Porque, se não encontrarmos nada, não vamos poder</p><p>acusá-los de posse de droga com intenção de distribuir. — Inclinou-</p><p>se para a frente, de braços cruzados. — Talvez exista um fantasma</p><p>na propriedade Pike, e talvez não exista. Mas ficar pedrado antes de</p><p>ir à procura dele é capaz de aumentar as probabilidades de vê-lo</p><p>mesmo.</p><p>Naquela noite, Ross tinha levado equipamento, não só a câmara</p><p>de vídeo, mas também uma que tirava fotografias digitais e um</p><p>scanner térmico, tudo encomendado pela Internet com o cartão de</p><p>crédito de Shelby, algo que ainda não revelara à irmã. Ethan teria</p><p>ficado encantado com as maquinetas, mas estava em casa.</p><p>Aparentemente, a permissividade de Shelby tinha atingido o limite.</p><p>Passava pouco das onze, cerca de meia hora antes de o fantasma</p><p>ter aparecido a Ethan da última vez. Ross acocorou-se, à espera. O</p><p>que ele queria era simplesmente ter tanta sorte como o sobrinho.</p><p>Montara o equipamento numa clareira atrás da casa, que lhe</p><p>proporcionava uma boa vista do quintal das traseiras. Rod van Vleet</p><p>tinha conseguido demolir metade da casa. Isso significava que o</p><p>espírito teria mudado de lugar, e havia oito hectares de terra para</p><p>cobrir. Ross disse a si mesmo que o facto de começar no mesmo</p><p>sítio onde encontrara Lia Beaumont algumas noites atrás era apenas</p><p>uma coincidência.</p><p>Durante algum tempo, escutou as sonatas dos grilos e o canto de</p><p>acasalamento das rãs. Tinha estrelas no pescoço, picadas</p><p>minúsculas, e a lua insinuava-se-lhe na região lombar. Não fazia</p><p>ideia que horas eram quando ouviu passos perto</p><p>da casa. Olhou</p><p>para o scanner térmico, mas a temperatura não tinha descido o</p><p>suficiente para atestar a chegada de um espírito. Porém, passado</p><p>um momento, sentiu o coração disparar quando uma figura entrou</p><p>no seu campo de visão.</p><p>O segurança da pedreira não tinha o uniforme vestido, mas Ross</p><p>reconheceu-o de imediato; não havia assim tantos índios centenários</p><p>a passearem por Comtosook. Segurava o que parecia ser uma rosa</p><p>branca.</p><p>— Você? — disse Az, franzindo o sobrolho.</p><p>Ross encolheu os ombros.</p><p>— Tendo a ir para onde o espírito me leva.</p><p>O índio riu desdenhosamente.</p><p>— Então, desta vez, levou-o a trabalhar para aquelas</p><p>sanguessugas.</p><p>— Estou a trabalhar por conta própria — corrigiu Ross. — Eles</p><p>não me pagam um tostão.</p><p>O ancião pareceu achar isso admirável, embora continuasse de</p><p>semblante carregado.</p><p>— Anda outra vez à procura de fantasmas?</p><p>— Ando.</p><p>— O que faria se desse de caras com um?</p><p>— Com um fantasma? Não sei. Nunca encontrei nenhum.</p><p>— Acha que esses construtores têm algum plano?</p><p>Ross pensou em Van Vleet.</p><p>— Imagino que queiram que eu tente livrar-me dele.</p><p>Az cerrou os lábios.</p><p>— Sim, juntá-los a todos e enfiá-los na reserva. Se os mudarem</p><p>para suficientemente longe, é fácil acreditar que nunca aqui</p><p>estiveram. A lei da usucapião não significa nada, pois não?</p><p>Ross não respondeu. Não sabia se o ancião estava à espera de</p><p>que respondesse e receava dar a resposta errada.</p><p>— Mora aqui perto? — perguntou, mudando de assunto.</p><p>Az apontou para um acampamento que mal se via, do outro lado</p><p>da estrada.</p><p>— Às vezes, venho aqui à noite. Os velhos não dormem muito —</p><p>disse secamente. — Para quê perder tempo a fazer algo que irei</p><p>fazer dentro em breve para todo o sempre? — E começou a afastar-</p><p>se, mas depois voltou-se para trás quando chegou à ponta da</p><p>clareira. — Se encontrar um fantasma, não se livre dele, por mais</p><p>que o Van Vleet queira.</p><p>Ross levantou um ombro.</p><p>— Isso é um grande se.</p><p>— Nem por isso. Toda a sua vida tem estado rodeado de</p><p>fantasmas. Só não sabe que está a vê-los — disse Az. — Adio,</p><p>senhor Wakeman.</p><p>Desapareceu na esquina da casa, ao mesmo tempo que o vento</p><p>se levantava. Ross vestiu o casaco. Engoliu repetidas vezes, mas não</p><p>conseguiu livrar-se do gosto da deceção. Disse para consigo que</p><p>devia ser por causa de Az ter aparecido, quando ele estava à espera</p><p>de um fantasma. Que não tinha a ver com o facto de ter aparecido</p><p>Az, quando ele estava à espera de Lia.</p><p>— Estou farta! — gritou a enfermeira, largando a bandeja dos</p><p>comprimidos. — Não tenho de aguentar ser tratada assim por um</p><p>doente!</p><p>Spencer Pike observava da sua cadeira de rodas, com as mãos</p><p>entrelaçadas no colo. Quando era preciso, fazia muito bem de louco</p><p>decrépito. Olhou fixamente para a telenovela que estava a passar na</p><p>televisão, fingindo interesse, enquanto a supervisora se aproximava.</p><p>Era uma mulher grande com o cabelo pintado da cor dos</p><p>alperces. Spencer chamava-lhe mentalmente enfermeira Ratchet.</p><p>— Há algum problema, Millicent?</p><p>— Sim, há um problema — disse a enfermeira mais jovem, em</p><p>tom irritado. — Os abusos verbais do senhor Pike.</p><p>Ratchet suspirou.</p><p>— O que é que ele disse desta vez?</p><p>O lábio inferior de Millicent começou a tremer.</p><p>— Disse… disse que eu sou uma idiota.</p><p>— Se me permitem a interrupção, não foi isso que eu disse. —</p><p>Spencer virou-se para Ratchet. — Disse-lhe que ela descendia de</p><p>uma família de imbecis, e não de idiotas. Há uma diferença, embora</p><p>subtil.</p><p>— Está a ver? — disse Millicent, ofendida.</p><p>— Eu só perguntei se ela era da família dos Cartwrights de</p><p>Swanton. É sabido que quase metade dessa árvore genealógica</p><p>cresceu em instituições para débeis mentais.</p><p>E não disse o que tão educadamente se abstivera de dizer,</p><p>mesmo a Millicent Cartwright: que, dado o número de vezes que ela</p><p>o confundira com um dos outros utentes da casa de repouso,</p><p>parecia geneticamente predisposta a seguir as pisadas da família.</p><p>Millicent despiu a bata de algodão que usava enquanto</p><p>empregada da casa de repouso.</p><p>— Demito-me — anunciou, e saiu da sala de convívio, com os</p><p>saltos dos seus tamancos brancos a deixarem um arco-íris de</p><p>comprimidos esmagados atrás de si.</p><p>— Senhor Pike — disse Ratchet —, isto era escusado.</p><p>Spencer encolheu os ombros. As pessoas nunca queriam</p><p>reconhecer os seus próprios defeitos. E ele que o dissesse.</p><p>Meredith sentia-se como um gigante no consultório do doutor</p><p>Calloway: demasiado grande para as cadeiras e mesa minúsculas,</p><p>demasiado desproporcionada para caber na casinha de brincar com</p><p>o escorrega de madeira, demasiado desastrada para segurar os</p><p>cotos dos lápis para colorir entre os dedos. Mas Lucy encaixava na</p><p>perfeição. Estava do outro lado da sala, onde não os podia ouvir,</p><p>deitada de barriga para baixo em cima de um enorme sapo de</p><p>peluche, a vestir uma das amigas anoréticas da Barbie.</p><p>— Uma alucinação visual isolada é rara — disse o psiquiatra. —</p><p>Os sintomas psicóticos apresentam-se mais frequentemente como</p><p>alucinações auditivas ou comportamento agitado. — Olhou para</p><p>Lucy, que brincava tranquilamente. — Ela manifestou alguma</p><p>mudança brusca de atitude?</p><p>— Não.</p><p>— Violência? Atitudes descontroladas?</p><p>Meredith abanou a cabeça.</p><p>— E alterações nos padrões de alimentação ou sono?</p><p>Lucy mal comia. Por ser tão escanzelada, Meredith costumava</p><p>brincar, dizendo que a filha recorria antes à fotossíntese. E quanto</p><p>ao sono, bem, não dormia uma noite seguida havia muito tempo.</p><p>— O sono é um problema — admitiu. — Ela deixa-se levar pela</p><p>imaginação. Normalmente, deixa a luz acesa e fica tão enervada</p><p>com o que está dentro do roupeiro ou debaixo da cama, que só</p><p>adormece porque acaba por ceder à exaustão.</p><p>— É possível que a Lucy sofra das mesmas ansiedades que</p><p>qualquer criança de oito anos pode ter à hora de deitar — disse o</p><p>doutor Calloway. — Mas também é possível que esteja mesmo a ver</p><p>alguma coisa no roupeiro e debaixo da cama.</p><p>Meredith engoliu em seco. A filha não podia ser psicótica, não</p><p>podia. Não Lucy, que preferia saltar a andar; que lia livros ilustrados</p><p>aos seus peluches; que já dominava todas as palavras da canção</p><p>«Miss Mary Mack». Na cabeça de Meredith, ecoava uma verdade,</p><p>tão afiada e azul como uma chama: Em tempos, não a quiseste, e</p><p>este é o teu castigo.</p><p>— Que posso fazer? — perguntou.</p><p>— Lembre-se apenas de que oito anos é a idade do Pai Natal,</p><p>dos amigos imaginários e do faz-de-conta. As crianças com a idade</p><p>da Lucy estão a começar a separar a fantasia da realidade, e é muito</p><p>provável que aquilo que ela visualiza faça parte desse processo.</p><p>— E se persistir?</p><p>— Nesse caso, recomendo que comece por medicá-la com uma</p><p>dose fraca de Risperdal, para ver se faz alguma diferença. Vamos</p><p>esperar e logo se vê.</p><p>— Está bem. — Meredith observou Lucy, que começava a</p><p>entrançar o cabelo da boneca. — Está bem.</p><p>Ross não tinha fome; por isso, não percebia muito bem porque</p><p>tinha entrado no restaurante, um estabelecimento tão antigo quanto</p><p>Comtosook, transmitido como uma praga a uma sucessão de</p><p>proprietários mal-humorados e com peso a mais que acreditavam</p><p>todos que a gordura era um condimento gourmet. Não que isso</p><p>parecesse afetar o negócio: quando ele chegou, todas as mesas e</p><p>bancos ao balcão estavam ocupados. Encostou-se a uma parede</p><p>espelhada, à espera, e tirou o maço de cigarros.</p><p>— Desculpe — disse a empregada de mesa, virando-se quando</p><p>ele acendia o isqueiro. — Aqui, não se pode fumar.</p><p>Parecia ridículo que um estabelecimento cuja ementa fomentava</p><p>ataques cardíacos precoces fosse tão hipócrita, mas Ross limitou-se</p><p>a enfiar o maço de Merits novamente no bolso.</p><p>— Eu já volto — disse à empregada. — Pode guardar-me uma</p><p>mesa?</p><p>— Isso depende — disse ela sorrindo. — Guarda-me um cigarro?</p><p>Cinco minutos depois, Ross ainda estava encostado ao contentor</p><p>de lixo nas traseiras do restaurante, deixando o fumo enrolar-se na</p><p>garganta como um ponto de interrogação. Entortou ligeiramente os</p><p>olhos para ver a ponta do cigarro a brilhar.</p><p>Devia ter levado o casaco. Cá fora, estavam menos dez graus, à</p><p>vontade. As flutuações de temperatura começavam a tornar-se uma</p><p>constante na vila e os seus habitantes pareciam ter ultrapassado</p><p>a</p><p>situação: em vez de recearem tais anomalias, iam buscar as botas</p><p>de inverno e as luvas de lã e deixavam-nas ao lado das toalhas de</p><p>praia e do protetor solar, porque nunca sabiam do que iriam precisar.</p><p>Ross pensou que o que os naturais da Nova Inglaterra tinham de</p><p>melhor era que, quando acabavam de se lamuriar, engoliam o</p><p>destino como uma dose de remédio: sabia mal, mas era algo que se</p><p>ultrapassava e que acabava por lhes fazer bem. Encostou os ombros</p><p>à parede metálica do contentor, aproveitando o calor que ele</p><p>conservara. De cabeça baixa, deitou fora o resto do cigarro.</p><p>— Nem sequer o acabou.</p><p>Virou-se.</p><p>— Lia!</p><p>Teria sabido que era ela atrás de si, mesmo que não tivesse</p><p>falado; havia um perfume a flores no ar. Ela apagou a beata com o</p><p>mocassim, com os dedos a adejarem ao lado do corpo. Trazia o</p><p>mesmo vestido às bolinhas, mas desta vez com um casaco de malha</p><p>com contas bordadas, como se tivesse vergonha de ser vista com a</p><p>mesma roupa e quisesse dar-lhe um ar diferente.</p><p>— Tenho andado à sua procura — disse Lia.</p><p>As suas palavras não condiziam com a sua postura; parecia</p><p>pronta para fugir. Havia alguma coisa nela, um ar indefeso e</p><p>encurralado, que soava familiar a Ross.</p><p>— Também tenho andado à sua procura.</p><p>Quando o disse, apercebeu-se de como era verdade. Tinha</p><p>procurado Lia no reflexo das montras das lojas, nos carros que</p><p>paravam ao lado dele nos semáforos, na fila da farmácia.</p><p>— Já encontrou o seu fantasma?</p><p>— Não é o meu fantasma — esclareceu Ross. — É um fantasma.</p><p>— Endireitou-se, a sorrir. — Porque é que andava à minha procura?</p><p>Lia falou depressa.</p><p>— Porque… não cheguei a dizer-lhe na outra noite… mas também</p><p>ando à procura de fantasmas.</p><p>— A sério?</p><p>Era uma afirmação de tal modo entusiástica e sem precedentes,</p><p>que apanhou Ross de surpresa. A maior parte das pessoas que</p><p>acreditavam em fenómenos paranormais admitiam-no com</p><p>relutância.</p><p>— Mas suponho que seja uma amadora em comparação consigo.</p><p>— Encontrou alguma coisa? — perguntou Ross.</p><p>Ela abanou a cabeça.</p><p>— Será que alguém encontrou?</p><p>— Claro. Quer dizer, além da fotografia de espíritos e dos</p><p>médiuns, tem sido feita investigação em Princeton e na Universidade</p><p>de Edimburgo. Até a CIA efetuou estudos válidos sobre PES e</p><p>telepatia.</p><p>— A CIA?</p><p>— Exatamente — confirmou Ross. — O governo até concluiu que</p><p>as pessoas podem obter informação sem usarem os cinco sentidos.</p><p>— Isso não prova que haja vida depois da morte.</p><p>— Não, mas sugere que a consciência é mais do que algo físico.</p><p>Talvez ver um fantasma seja apenas uma forma diferente de</p><p>clarividência. Talvez os fantasmas nem sequer estejam realmente</p><p>mortos, mas vivam algures no passado, e… — A voz de Ross</p><p>morreu-lhe nos lábios. — Desculpe. É que… a maioria das pessoas</p><p>pensa que o que faço é uma loucura.</p><p>— Também me acontece muito. — Lia sorriu um pouco. — E não</p><p>peça desculpa. Nunca conheci um cientista que não fique todo</p><p>excitado com o seu trabalho.</p><p>Um cientista. Alguma vez o tinham chamado de cientista? Aquilo</p><p>desencadeou um fogo de artifício de sentimentos no seu íntimo:</p><p>orgulho, espanto, fascínio. Certo de que qualquer coisa que fizesse</p><p>iria estragar aquele momento, pegou num cigarro como tática</p><p>dilatória e ofereceu um a Lia. A mão dela elevou-se como um colibri</p><p>e depois desapareceu rapidamente atrás das costas. Porém, tinha</p><p>pairado tempo suficiente para Ross reparar na fina aliança que ela</p><p>usava.</p><p>E o mundo dele voltou a desabar.</p><p>— Ele não vai saber — disse Ross, olhando-a nos olhos.</p><p>Lia fitou-o. Depois tirou um cigarro do maço e deixou Ross</p><p>acender-lho. Fumava como se estivesse a engolir um segredo: aquilo</p><p>era um tesouro a guardar. Fechou os olhos e levantou o queixo,</p><p>expondo a linha do pescoço.</p><p>Naquele momento, não importava que ela fosse esposa de outro</p><p>homem, que continuasse a olhar constantemente por cima do</p><p>ombro, que os minutos que Ross tivesse na sua companhia fossem</p><p>um simples empréstimo. Aquilo podia ter sido o início de um</p><p>equívoco, mas nem mesmo isso impedia Ross de não querer deixá-la</p><p>ir já embora.</p><p>— Deixe-me pagar-lhe um café — disse ele.</p><p>Ela abanou a cabeça.</p><p>— Não posso…</p><p>— Ninguém irá saber.</p><p>— Toda a gente vem a este restaurante. Se ele souber que estive</p><p>consigo…</p><p>— E depois? Nesse caso, diga-lhe a verdade: que somos dois</p><p>amigos a falar sobre fantasmas.</p><p>Resposta errada. Lia empalideceu visivelmente e Ross viu</p><p>novamente a sua fragilidade.</p><p>— Eu não tenho amigos — disse ela baixinho.</p><p>Não tem amigos, não pode tomar um café e tem de se escapulir</p><p>na calada da noite. Ross nem sequer conseguia conceber um tirano</p><p>que dominasse Lia tão completamente. No mundo de hoje, qual era</p><p>o marido que faria uma coisa dessas? E que mulher se teria em tão</p><p>pouca conta para deixar que isso acontecesse?</p><p>— E se eu lhe tapar a cabeça com um saco de papel e disser a</p><p>toda a gente que tem lepra?</p><p>Ela lutou contra um sorriso.</p><p>— Não posso beber café através de um saco de papel.</p><p>— Eu peço uma palhinha. — Lia estava a ceder, ele conseguia ver</p><p>isso no balançar dos seus joelhos. — Só um café — implorou.</p><p>— Está bem — anuiu ela. — Um café. — Deu uma longa passa</p><p>no cigarro, com a garganta a contrair-se enquanto os seus olhos o</p><p>fitavam. — Já nos conhecíamos?</p><p>— Conhecemo-nos há duas noites.</p><p>— Antes disso, quero eu dizer.</p><p>Ross abanou a cabeça.</p><p>— Não me parece — disse ele, mas sentia que a conhecia desde</p><p>sempre.</p><p>Ou talvez quisesse conhecê-la desde sempre. Haveria diferença?</p><p>Queria perguntar-lhe porque tinha medo do marido. Queria</p><p>perguntar-lhe o que a levara ao restaurante naquele dia,</p><p>precisamente no momento em que ele lá fora. Mas receava que, se</p><p>dissesse alguma coisa, ela desaparecesse como as espirais de fumo</p><p>que pairavam entre ambos.</p><p>— Acha mesmo que há lá um fantasma? — perguntou Lia.</p><p>— Na propriedade Pike? Talvez. Se for um cemitério índio.</p><p>— Um cemitério índio? — Parecia espantada com a ideia. — Não</p><p>me parece.</p><p>— Sabe muito sobre a área?</p><p>— Morei aqui toda a vida.</p><p>— E nunca houve nada que sugerisse que, em tempos, a terra</p><p>podia ter feito parte de uma aldeia de índios?</p><p>— Quem lhe disse isso está a inventar.</p><p>Ross ficou a pensar. Era perfeitamente possível.</p><p>— Mas este índio… não é o seu primeiro fantasma — disse Lia.</p><p>— Será, se chegar a aparecer.</p><p>— Não, o que quero dizer é que não foi ele que o fez querer</p><p>procurar. — Ela baixou a cabeça e o cabelo pendeu para a frente,</p><p>tapando-lhe o rosto. A risca estava torta na parte de trás, como se a</p><p>sua mão tivesse saltado enquanto segurava o pente. — A minha</p><p>mãe morreu no dia em que nasci. É ela que às vezes tento</p><p>encontrar.</p><p>Ele percebeu nessa altura que o modo como Lia aceitava os</p><p>fenómenos paranormais não se devia à sua abertura de espírito, mas</p><p>ao desespero, tal como sucedia com ele; e que aquilo que</p><p>reconhecia nela era, muito simplesmente, a mesma dor que via em</p><p>si mesmo.</p><p>Lia estendeu o antebraço, arregaçando a manga e deixando ver a</p><p>teia de cicatrizes que lhe marcava a pele.</p><p>— Às vezes, tenho de me cortar — confessou —, porque tenho a</p><p>certeza de que não vou sangrar.</p><p>Fazia tanto tempo que ninguém compreendia aquilo que ele</p><p>sentia.</p><p>— O meu fantasma chama-se Aimee — disse Ross, num tom</p><p>túrgido que ele não reconheceu.</p><p>Depois de começar, já não foi capaz de parar. Falou das coisas</p><p>que amava em Aimee: das coisas banais, como o seu sorriso largo, e</p><p>das outras, como o ponto do seu cotovelo que estava sempre áspero</p><p>e a forma como não conseguia pronunciar a palavra «persiana».</p><p>Falou do choque e da violência do acidente, sem nenhum dos</p><p>pormenores que o fariam ir-se abaixo uma vez mais. Falou da</p><p>sensação de aprender que havia erros que se escreviam com tinta</p><p>indelével. Falou até sentir a garganta em carne viva e ter deposto</p><p>toda a sua dor aos pés de Lia, como uma oferenda.</p><p>Quando terminou, ela estava a chorar.</p><p>— Acredita sinceramente que podemos amar muito, mas mesmo</p><p>muito alguém, apesar de estarmos em mundos diferentes?</p><p>As palavras foram-lhe arrancadas; Ross era suficientemente</p><p>sensato para acreditar que aquela pergunta derivava apenas da dor</p><p>que ele sentia.</p><p>— Como é que posso não acreditar?</p><p>Ela começou a afastar-se.</p><p>— Tenho de ir.</p><p>Instintivamente,</p><p>ele esticou a mão para a segurar, mas, de forma</p><p>igualmente rápida e automática, Lia pôs-se fora do seu alcance.</p><p>— Lia, conte-me o que é que ele lhe fez.</p><p>— Ele adora-me — sussurrou ela. — Ama uma mulher que na</p><p>realidade não existe.</p><p>O que quer que Ross estivesse à espera como prova de maus-</p><p>tratos, não era seguramente aquilo. Seria possível amar tanto uma</p><p>pessoa que a magoávamos, mesmo sem querer?</p><p>Lia tocou-lhe ao de leve na borda da manga, e as lágrimas que</p><p>ela tinha nas pontas dos dedos provocaram-lhe uma sensação de</p><p>frio.</p><p>— Quando encontrar a Aimee — disse suavemente —, diga-lhe a</p><p>sorte que ela tem.</p><p>Quando Ross levantou a cabeça, já ela se ia embora. Tinha</p><p>perguntas dentro de si: o que podia ela ter feito para se sentir tão</p><p>indigna do afeto do marido? E, se o amava, porque parecia isso</p><p>partir-lhe o coração?</p><p>Não pretendera perturbá-la. Só queria que ela compreendesse</p><p>que não estava sozinha.</p><p>— Lia — chamou, apressando-se a segui-la, mas ela limitou-se a</p><p>olhar uma vez para trás e a caminhar mais depressa.</p><p>A beata do seu cigarro ardia no passeio.</p><p>— Psiu! — A empregada de mesa com quem ele falara enfiou a</p><p>cabeça pela porta das traseiras do restaurante. — Ainda quer uma</p><p>mesa?</p><p>Ross seguiu-a até ao interior e foi encaminhado para um</p><p>compartimento que ainda não tinha sido limpo. Enquanto se</p><p>sentava, entregou-lhe um cigarro, como prometido.</p><p>Ela riu-se, enfiou-o na manga e limpou o tampo da mesa.</p><p>— Está sozinho?</p><p>Ele espreitou pela janela.</p><p>— Pois, parece que sim.</p><p>A empregada pegou na gorjeta. Embolsou a nota e as moedas de</p><p>vinte e cinco cêntimos, resfolegando desdenhosamente diante da</p><p>moeda de um cêntimo.</p><p>— Fico sempre pior do que estragada quando as pessoas acham</p><p>que sou um porquinho-mealheiro — murmurou. — Quero tanto isto</p><p>no meu bolso como elas.</p><p>— Com uma centena, já pagava um café.</p><p>A empregada fez tilintar o avental.</p><p>— E uma hérnia. — Fez deslizar a moeda em direção a Ross. —</p><p>Cara. Fique com ela, para lhe dar sorte.</p><p>Quando ela desapareceu para ir buscar a louça e o café, Ross</p><p>agarrou na moeda. Atirou-a ao ar, apanhou-a e fê-la rodar sobre si</p><p>mesma. Só depois de a moeda cair novamente de cara voltada para</p><p>cima é que ele reparou que tinha sido cunhada em 1932.</p><p>Naquela tarde, Ross listou mentalmente o que sabia acerca de</p><p>Lia:</p><p>De todas as vezes que ela o encontrara por acaso, parecia</p><p>aflitivamente tímida. Andava fascinada pelo sobrenatural, mas tinha</p><p>medo da própria sombra. Para ela, a liberdade chegava à noite. Era</p><p>casada com um homem cujo amor a guardava numa caixa.</p><p>Ah, e algo a destroçara! Escondia-o bem, mas Ross sabia por</p><p>experiência própria que, depois de voltarmos a juntar os pedacinhos,</p><p>muito embora pudéssemos parecer intactos, não voltávamos a ser</p><p>como éramos antes.</p><p>Fez avançar a fita que gravara noites antes, reproduzindo a</p><p>conversa que tivera com Az Thompson. O problema era que estava</p><p>mais interessado no mistério de Lia Beaumont do que em saber se a</p><p>propriedade estava ou não assombrada.</p><p>Nunca lhe cobrara aquele café que ela concordara em tomar com</p><p>ele.</p><p>Coçou a barba por fazer do queixo com o comando à distância.</p><p>Não havia uma única coisa que valesse a pena na gravação. O que ia</p><p>ele dizer a Rod van Vleet?</p><p>O telefone tocou, arrancando-o aos seus devaneios. Levantou o</p><p>auscultador antes que o barulho acordasse Shelby ou Ethan.</p><p>— Estou?</p><p>Não havia ninguém do outro lado, mas a ligação tinha sido</p><p>estabelecida. Ross conseguia ouvi-la, traduzida numa estática suave.</p><p>Segurou o auscultador com o ombro.</p><p>— Lia? — murmurou.</p><p>Era ela; teria apostado tudo o que tinha em como era ela. Podia</p><p>não conseguir ir ter com ele, mas sabia onde encontrá-lo. Esta era a</p><p>maneira que tinha de lho dar a saber.</p><p>Ross não desligou. Adormeceu com o telefone encostado ao</p><p>ouvido, o primeiro sono a sério que dormiu em muitos dias, a pensar</p><p>que não tinha percebido até que ponto estava exausto.</p><p>Havia milhares de anos, os Abenaki tinham-se deslocado do</p><p>noroeste do Vermont para sudeste, assim como para o oeste do</p><p>Massachusetts, partes do New Hampshire e até para o Quebeque.</p><p>Chamavam a toda essa área Nd’akina, que significava Nossa Terra. O</p><p>seu nome tribal, Abenaki, significava Povo do Amanhecer. Referiam-</p><p>se a si mesmos como Alnôbak, ou seres humanos. A dada altura,</p><p>eram quarenta mil.</p><p>Viviam da agricultura, e as suas aldeias localizavam-se nas</p><p>várzeas dos rios. A caça e a pesca completavam a sua dieta. Durante</p><p>a maior parte do ano, viviam em bandos dispersos de famílias</p><p>alargadas, mas durante o verão juntavam-se. Não tinham uma</p><p>autoridade central, o que significava que, em tempos de guerra, os</p><p>Abenaki podiam abandonar as suas aldeias, separar-se em grupos</p><p>mais pequenos e voltar a surgir algures, num lugar distante, para</p><p>contra-atacar. Muitas vezes, durante a guerra, retiravam para o</p><p>Quebeque, o que levou muitos colonos da Nova Inglaterra a pensar</p><p>neles como índios canadianos e lhes deu uma desculpa para ficarem</p><p>com a maior parte das suas terras no Maine, no New Hampshire e</p><p>no Vermont, sem qualquer compensação.</p><p>Em 2001, restavam cerca de dois mil e quinhentos Abenaki no</p><p>Vermont.</p><p>Mas saber se algum deles chegara a viver na propriedade Pike</p><p>continuava a ser um mistério para Ross, embora tivesse</p><p>experimentado seis motores de busca diferentes na Internet e</p><p>consultado praticamente todos os livros de referências históricas que</p><p>a Biblioteca Pública de Comtosook tinha para oferecer.</p><p>Deitou a cabeça em cima da secretária, frustrado. Shelby</p><p>apareceu por trás dele e começou a massajar-lhe os ombros.</p><p>— Tiveste sorte?</p><p>— É este o teu trabalho? — suspirou Ross.</p><p>— Vou partir do princípio de que isso significa que não</p><p>descobriste nada. — Sentou-se na cadeira ao lado dele, olhando</p><p>rapidamente para o balcão de atendimento para se certificar de que</p><p>Ethan continuava entretido com o seu Game Boy. — O Vermont não</p><p>é propriamente conhecido pela sua precisão na manutenção dos</p><p>registos. A maior parte dos documentos antigos estão a ganhar</p><p>bolor no chão do gabinete do arquivista do município. E mesmo</p><p>esses são basicamente a história dos ingleses que colonizaram a</p><p>área. Não creio que os nativos americanos vissem necessidade de</p><p>fazer escrituras de propriedade há um milhar de anos.</p><p>— Pois, e vê onde é que isso os levou.</p><p>— Então, vais desistir?</p><p>— Não. — Olhou para o ecrã, luminoso e a zunir. — Vou ler com</p><p>atenção o que alguns desses ingleses escreveram e ver se os seus</p><p>relatos mencionam alguns acampamentos índios.</p><p>— Tu é que sabes. Eu vou levar o Ethan para casa.</p><p>Ross viu a irmã ao longe, a conversar com a bibliotecária que a</p><p>viera render, a pôr a mala ao ombro e a tocar na cabeça de Ethan</p><p>enquanto falava, como se a sua mão tivesse sido atraída</p><p>simplesmente para ali, como um íman.</p><p>— Shel — gritou, quando ela lhe dizia adeus da porta. — Alguma</p><p>vez ouviste falar em alguém chamado Beaumont?</p><p>— É um desses colonizadores ingleses?</p><p>— Não.</p><p>Ross deu por si a digitar o teclado, como se as suas mãos</p><p>tivessem vontade própria. O motor de busca que abriu não tinha</p><p>nada a ver com documentos históricos. Era a muito mais trivial lista</p><p>telefónica da vila de Comtosook.</p><p>A bibliotecária que acabara de entrar ao serviço olhou para ele</p><p>por cima das suas lentes bifocais.</p><p>— Há uma biblioteca de biologia na Universidade do Vermont que</p><p>tem o nome de um Beaumont. Às vezes, pedimos-lhes livros</p><p>emprestados.</p><p>— Desculpa, Ross — disse Shelby, abanando a cabeça. — A mim,</p><p>não me diz nada.</p><p>E empurrou Ethan para o exterior enquanto Ross digitava o nome</p><p>no computador.</p><p>BEAUMONT, ABEL. 33 Castleton Rd.</p><p>BEAUMONT, C. RR 2, Caixa 358</p><p>BEAUMONT, W. 569 West Oren St.</p><p>Não estava à espera de encontrar o nome de Lia listado; o</p><p>marido não parecia ser o tipo de pessoa que atribuísse a mesma</p><p>importância à mulher. Não havia forma de encontrar o Beaumont na</p><p>Rural Route, mas os outros dois endereços eram locais. Desligou o</p><p>computador e recolheu as suas coisas.</p><p>— Sucesso? — perguntou a bibliotecária, a sorrir.</p><p>Ele deu por si a assobiar.</p><p>— Pode dizer-se que sim.</p><p>Az ficava extremamente frustrado por precisar de uma porcaria</p><p>de documento para pescar em águas que não</p><p>pertenciam a</p><p>ninguém. Quem pensava que era um guarda-florestal qualquer para</p><p>lhe dizer que precisava de uma licença devidamente carimbada para</p><p>poder sentar-se nas margens do lago e apanhar tantas trutas</p><p>quantas conseguisse comer ao jantar?</p><p>Mas ele tinha-a na mesma consigo, enfiada no bolso da camisa,</p><p>não fosse aparecer alguém às seis da manhã. Recostou-se, pôs o</p><p>peixinho no anzol e depois lançou para uma área na água que</p><p>parecia mais escura do que as outras.</p><p>Deixou a asa do carreto aberta, para que o vairão pudesse nadar</p><p>para longe. A linha de pesca era um equador em néon que dividia o</p><p>lago em dois. Az fechou os olhos e equilibrou a cana entre os</p><p>joelhos. Envelhecer continuava a ser uma surpresa para ele; era</p><p>engraçado como não conseguia lembrar-se do que tinha comido no</p><p>dia anterior ao jantar, mas sabia descrever com todos os pormenores</p><p>a constelação de pintas no dorso da primeira truta que apanhara.</p><p>Nem sempre lhe ocorria o nome de um amigo, mas havia rostos do</p><p>passado que conhecia tão bem como se ele próprio os tivesse</p><p>esculpido. A sua coluna curvara-se nos últimos anos, ao ponto de Az</p><p>se perguntar se acabaria literalmente por formar um círculo</p><p>completo antes de morrer, mas a sua mente era tão clara, que ele às</p><p>vezes até sentia os seus bordos serrilhados nos momentos em que</p><p>descontraía e mergulhava no sono.</p><p>Resmungou contra a total ausência de atividade na sua linha de</p><p>pesca. Era preciso paciência, tinha sido isso que o pai lhe ensinara,</p><p>assim como quais as águas que davam o melhor isco e como lançar</p><p>com tanta suavidade, que o peixe ouvia o chape do anzol apenas</p><p>como uma memória. Mas Az já não tinha muita paciência. A</p><p>paciência exigia tempo, e isso era coisa que já pouco lhe restava.</p><p>O sol, qual olho raiado de sangue, iluminava a borda do lago. De</p><p>repente, houve uma chuva de fogo no céu. As explosões erguiam-se</p><p>como fogo de artifício, transformando a noite em dia.</p><p>O chão tremeu por baixo de Az quando uma segunda série de</p><p>cargas de dinamite explodiu na Pedreira dos Anjos, desalojando mais</p><p>granito para ser transformado em bancadas de cozinha e lápides. A</p><p>linha começou a desenrolar-se quando uma truta mordeu o isco. Az</p><p>contou um, dois, e a seguir fechou a asa do carreto e começou a</p><p>enrolá-la com firmeza.</p><p>O peixe debatia-se no cesto, com todas as cores do arco-íris</p><p>refletidas nas suas escamas. Uma nova detonação produziu</p><p>pequenas ondas no lago e, desta vez, Az conseguiu ver percas a</p><p>saltarem em pequenos círculos surpreendidos, desesperadas por</p><p>fugir ao terramoto inesperado.</p><p>Pôs outro isco no anzol. Às vezes, só era preciso agitar um pouco</p><p>as coisas.</p><p>Meredith inclinou-se sobre o seu microscópio, examinando uma</p><p>única célula de um embrião que tinha sido concebido recentemente</p><p>num tubo de ensaio. Não parecia destinado a herdar fibrose quística</p><p>— um pequeno milagre, dado que as outras quatro tentativas do</p><p>casal para conceber uma criança saudável tinham fracassado.</p><p>Meredith arqueou as costas e sorriu: esta ia ser bem-sucedida. Esta</p><p>seria uma sobrevivente. E sabia do que estava a falar.</p><p>Lucy tinha sido um desses bebés que fora avante contra ventos e</p><p>marés. Não por causa de uma doença genética, mas simplesmente</p><p>devido às circunstâncias. Oito anos antes, Meredith tinha posto um</p><p>ponto final numa relação com o seu mentor, um professor de</p><p>engenharia biomédica que estivera demasiado ocupado para a</p><p>acompanhar ao funeral da mãe, no Maryland. A mãe estava ainda na</p><p>casa dos cinquenta e sofrera um ataque cardíaco, inesperado e</p><p>muito rápido. Por mais destroçada que Meredith tivesse ficado, a avó</p><p>ficara ainda pior, e coube a ela, então com vinte e seis anos, tratar</p><p>dos pormenores relacionados com o funeral. Ainda se lembrava da</p><p>viagem surreal à agência funerária, onde lhe pediram para escolher</p><p>a cor do cetim que iria forrar o caixão da mãe, assim como a lápide,</p><p>a partir de um catálogo de lápides feitas em granito do Vermont.</p><p>Lembrava-se do serviço religioso junto à sepultura, onde a avó Ruby</p><p>se apoiara nela, obrigando-a a manter-se firme e de cabeça erguida</p><p>para aguentar o peso da velha senhora.</p><p>Tomou a decisão de ir para Boston, defender a sua dissertação e</p><p>depois voltar para Silver Spring para morar com a avó Ruby. Mas</p><p>quatro noites sem dormir tinham deixado estragos; passadas várias</p><p>horas de viagem em direção a norte, perdeu o controlo do seu Civic.</p><p>Acordou no hospital com a perna esquerda engessada,</p><p>equimoses por todo o corpo e uma enfermeira ao lado que não</p><p>parava de lhe dizer que o bebé estava bem. Bebé?, pensara ela, ou</p><p>talvez o tivesse dito em voz alta. Que bebé? Deram-lhe as respostas</p><p>como se fossem analgésicos: uma ecografia para ver se tinha lesões</p><p>internas revelara uma gravidez de oito semanas, o bater do coração</p><p>de uma borboleta.</p><p>Ela não quisera ser mãe solteira. Não quisera ser mãe, ponto</p><p>final. A única coisa que queria era a sua mãe de volta. Por isso, tinha</p><p>marcado consulta para fazer um aborto.</p><p>Mas não comparecera.</p><p>Meredith conhecia a ciência por detrás da conceção;</p><p>compreendia o que os pais podiam transmitir, ou não, aos filhos. Mas</p><p>não conseguia deixar de se perguntar se os intangíveis se</p><p>transmitiriam, de alguma forma, por osmose. Se ela tivesse querido</p><p>ter o bebé assim que descobrira, em vez de passar as noites a</p><p>desejar um aborto, será que Lucy teria sido mais segura? Agora,</p><p>amava a filha e não conseguia imaginar a vida sem ela. Mas, para</p><p>ser brutalmente sincera consigo mesma, oito anos antes, poderia ter</p><p>decidido o contrário com toda a facilidade.</p><p>A vida tinha tudo a ver com estar no lugar certo à hora certa.</p><p>Oh, Lucy!, pensou. Se pudesse fazer tudo de novo! Trabalharia</p><p>menos e levaria antes a filha a fazer montanhismo. Ensinar-lhe-ia</p><p>uma arte marcial. Admitiria que não sabia todas as respostas e que</p><p>era capaz de nunca vir a descobri-las.</p><p>Com um suspiro, voltou a concentrar-se. Dentro de dois dias,</p><p>aquele embrião seria implantado no útero da mãe. A ironia não lhe</p><p>passou despercebida: ela, que não quisera um bebé mas acabara</p><p>com um, era frequentemente a última esperança de pais que</p><p>queriam um bebé mais do que tudo, mas não conseguiam gerá-lo.</p><p>Aquela criança não teria fibrose quística, mas isso não significava</p><p>que não pudesse contrair meningite. Nunca se sabia o que nos</p><p>calhava em sorte. Mesmo fechando a porta, continuava a entrar uma</p><p>brisa pela janela.</p><p>Nem a Castleton Road nem a West Oren Street ficavam perto da</p><p>propriedade Pike, mas isso não impediu Ross de localizar os</p><p>itinerários num mapa que tinha comprado no posto de combustível e</p><p>de descobrir as casas. No entanto, Lia Beaumont não morava na</p><p>pacata casa vitoriana cuja cerca precisava desesperadamente de ser</p><p>pintada, nem na casa de madeira guardada por um pastor-alemão</p><p>chamado Armageddon. Era possível que morasse no endereço não</p><p>listado, mas ele perguntar-lhe-ia da próxima vez que a visse.</p><p>Se a visse.</p><p>Ross tinha comido todas as suas refeições no restaurante da vila</p><p>e estado de vigília à propriedade nas duas últimas noites, mas Lia</p><p>Beaumont não se materializara. Tinha visto Az Thompson a andar</p><p>novamente por ali, dois guaxinins a acasalarem, e por várias vezes,</p><p>e o seu equipamento de vídeo captara alguns glóbulos</p><p>extraordinários, grandes como uma bola de basquetebol e de um</p><p>branco-pérola, a passarem pelo ecrã.</p><p>Gostaria de mostrá-los a Lia.</p><p>Queria perguntar-lhe se ela achava que a mãe estava à espera de</p><p>ser encontrada, por mais anos que levasse. Queria perguntar-lhe se</p><p>ela amava o marido da mesma forma como ele amava Aimee. Queria</p><p>saber que diferenças entre eles podiam parecer tão irreconciliáveis</p><p>quanto a morte.</p><p>Também receava que o marido tivesse descoberto que ela se</p><p>encontrara com ele no restaurante e a tivesse castigado. Não sabia o</p><p>que isso implicava: maus-tratos físicos? Maus-tratos psicológicos?</p><p>Era igualmente possível que Lia — que admitira cortar os braços</p><p>para sentir alguma coisa, qualquer coisa — tivesse simplesmente</p><p>desaparecido porque decidira que a melhor maneira de encontrar a</p><p>mãe era transformar-se ela própria num fantasma.</p><p>Ross dava por si a ler os obituários e a suspirar de alívio quando</p><p>não</p><p>via o nome dela. Começou a fazer apostas ridículas consigo</p><p>mesmo: Se for capaz de suster a respiração durante três minutos,</p><p>ela vai aparecer esta noite. Se conseguir chegar àquele semáforo</p><p>antes de cair o vermelho, ela vai lá estar.</p><p>Na propriedade Pike, algumas noites eram mais ativas do que</p><p>outras. Havia grandes oscilações de temperatura e minúsculos</p><p>clarões de luz azul por entre os ramos das árvores, e às vezes o</p><p>cheiro a cicuta parecia suficientemente forte para o sufocar. Ross</p><p>tinha ouvido o choro sincopado de um bebé por duas vezes.</p><p>Na terceira noite, cerrada como um colete de forças, estava</p><p>sentado junto à clareira que servia de base à sua investigação</p><p>quando a pedra caiu do céu. Era aproximadamente do tamanho de</p><p>um prato e igualmente achatada, e caiu com velocidade suficiente</p><p>para se partir contra a sua canela.</p><p>— Merda! — gritou, pondo-se em pé de um salto.</p><p>Sentiu a dor a latejar perna acima e ficou com um vergão até ao</p><p>joelho. Perscrutando a árvore mais próxima com a lanterna, não</p><p>conseguiu ver nada. Não estava em estado de trepar. Por isso,</p><p>pegou na mesma pedra e arremessou-a contra a árvore com força</p><p>suficiente para a fazer abanar.</p><p>— Eh! — gritou. — Quem está aí?</p><p>Esperava um animal — uma cria de urso, ou alguma espécie de</p><p>esquilo mutante —, mas não estava lá nada. Partiu um ramo e usou-</p><p>o para bater nos outros. Continuou a fazer isso durante algum</p><p>tempo, não porque pensasse que iria encontrar alguma coisa, mas</p><p>porque queria a sua dose de vingança. Foi só quando parou,</p><p>exausto, que ouviu escavar.</p><p>Era um som desmaiado, como uma marmota a abrir um buraco</p><p>num jardim. Ross mancou em direção à outra ponta da clareira, com</p><p>o som a tornar-se mais forte. A sua lanterna iluminou cerca de trinta</p><p>montinhos de terra, dispostos sem qualquer ordem particular.</p><p>Diferentes especialistas em arqueologia e equipas de escavação</p><p>tinham arrasado partes da propriedade, mas aquele local estava</p><p>intacto quando Ross chegara ao lusco-fusco. Agora, tinha sido tirada</p><p>terra suficiente de cada buraco para formar um montículo, mas,</p><p>quando ele se inclinou e tentou escavar um pouco mais fundo com</p><p>um pau, o solo continuava tão gelado e coberto de neve como</p><p>antes.</p><p>Ross nunca tinha visto um cemitério índio primitivo, mas</p><p>imaginava que fosse algo parecido com aquilo.</p><p>Tirou a câmara digital do bolso e fotografou de vários ângulos.</p><p>Depois inclinou-se para o minúsculo visor de LCD para ver como</p><p>tinham ficado as fotos. Porém, em todas elas, o solo estava</p><p>completamente plano, coberto por uma camada de gelo intacta.</p><p>Confuso, Ross apontou a lanterna para o mesmo pedaço de terra.</p><p>Onde minutos antes havia inúmeros montinhos de terra, não se via</p><p>agora nenhum.</p><p>— Eu sei o que vi.</p><p>Bateu os pés com força na pequena área, mas o solo não deu de</p><p>si; continuava congelado.</p><p>Teria imaginado tudo aquilo? Inclinou-se e enrolou a perna das</p><p>calças para cima: não, o vergão estava maior agora e ganhara um</p><p>tom violáceo. Aquela pedra tinha caído. Aquele som era de alguém a</p><p>escavar. Aqueles montes de terra estavam ali.</p><p>Outra razão para sentir saudades de Lia: se ela tivesse aparecido</p><p>naquela noite e presenciado aquilo, Ross não teria pensado que</p><p>estava louco.</p><p>Naquela semana, a força da corrente do rio Winnooski abrandou,</p><p>deixando peixes a nadar em círculos e levando-os para as margens,</p><p>confusos. Famílias que tinham sistemas de televisão por satélite</p><p>deram com toda a programação em norueguês, com as bocas dos</p><p>atores desfasadas das palavras, como nos filmes antigos do Godzilla.</p><p>No supermercado de Comtosook, as quatro caixas registadoras</p><p>eletrónicas — compradas a partir de um catálogo industrial e</p><p>chegadas recentemente — começaram a somar mal, de tal forma</p><p>que as uvas podiam aparecer registadas a quarenta e cinco dólares</p><p>o cacho e as meloas a um cêntimo o quilo, enquanto as ratoeiras e</p><p>os douradinhos eram completamente grátis. As pessoas que se</p><p>atreviam a falar destas coisas descobriam que perdiam o fio do</p><p>pensamento a meio de uma frase e encontravam antes na língua o</p><p>gosto doce de açúcar ou o picante amargo da chicória, dependendo</p><p>do que se preparavam para dizer.</p><p>Era uma chatice ter de ir ao dermatologista.</p><p>Não só lembrava a Ethan a aberração que ele era, como também</p><p>significava que tinha de ficar levantado todo o dia, porque as horas</p><p>de consulta eram durante o período em que habitualmente dormia.</p><p>E depois de realizada a intervenção, fosse ela qual fosse, ainda tinha</p><p>o prazer acrescido de ver a mãe esboçar um sorriso forçado,</p><p>tentando desesperadamente olhar para ele como se fosse</p><p>perfeitamente normal.</p><p>Naquele dia, tinha retirado três lesões pré-cancerígenas do rosto.</p><p>O médico pegara numa cotonete, mergulhara-a num copo de azoto</p><p>líquido e depois pressionara-a contra a testa e o nariz de Ethan.</p><p>Doeu-lhe o suficiente para ficar com lágrimas nos olhos, e agora</p><p>fazia-lhe comichão.</p><p>A mãe parou o carro no caminho de acesso. O tio Ross tinha</p><p>saído, pois o carro não estava lá. Ethan podia ter soltado o cinto de</p><p>segurança, mas esperou que a mãe desse a volta até ao lado do</p><p>passageiro e o fizesse por ele.</p><p>— Estás bem? — perguntou ela baixinho, e ele disse que sim com</p><p>a cabeça e saiu do carro.</p><p>Enfiou a mão na dela enquanto subiam para o alpendre, algo que</p><p>não fazia havia meses, porque, quando se tem menos tempo do que</p><p>os outros, isso significa que é preciso crescer mais rapidamente.</p><p>No seu quarto, puxou pela roupa como se desembrulhasse um</p><p>caramelo. Passou o pijama pela cabeça e depois olhou para o</p><p>espelho. As bolhas ainda não se tinham formado, isso seria só no dia</p><p>seguinte. Mas o seu rosto já parecia um globo, com manchas</p><p>semelhantes a continentes onde as excrescências tinham sido</p><p>queimadas.</p><p>Antes mesmo de perceber o que estava a fazer, levantou o punho</p><p>e partiu o vidro. O sangue escorreu-lhe pelo braço, mas o único</p><p>pensamento que lhe vinha à cabeça era que já não precisava de se</p><p>ver ao espelho.</p><p>— Ethan? — chamou a mãe. — Ethan! — Entretanto, já estava</p><p>atrás dele, a enrolar-lhe o pulso num lençol arrancado da cama. — O</p><p>que aconteceu?</p><p>— Desculpa — disse Ethan, balouçando-se para a frente e para</p><p>trás. — Desculpa.</p><p>— Agora, estás a ser aprazível…</p><p>— Apra… quê?</p><p>— Significa estares a ser agradável, o que na verdade és sempre,</p><p>depois de fazeres asneira.</p><p>Ethan afastou a mão, com um puxão.</p><p>— Então, porque é que não dizes isso? — berrou. — Porque é</p><p>que usas sempre essas palavras estúpidas que ninguém percebe?</p><p>Porque é que nunca ninguém me diz a verdade nua e crua?</p><p>A mãe olhou para ele.</p><p>— O que queres ouvir, Ethan?</p><p>Ele estava a chorar e tinha o nariz a pingar.</p><p>— Que sou um monstro. — Levou as mãos abertas ao rosto,</p><p>deixando manchas de sangue no queixo e nas faces. — Olha para</p><p>mim, mãe! Olha para mim!</p><p>A mãe forçou um sorriso.</p><p>— Ethan, querido, estás cansado. Já passa muito da tua hora de</p><p>dormir.</p><p>A voz dela entrou em modo calmante, com a consistência de mel</p><p>quente, rolando-lhe sobre os ombros e obrigando-o a lutar contra a</p><p>vontade de ceder. Sentiu a mãe a examinar-lhe a mão e a levá-lo à</p><p>casa de banho para limpar os cortes.</p><p>— Não me parece que precises de pontos — disse, e envolveu-</p><p>lhe a mão em gaze.</p><p>Depois levou-o de volta ao quarto. Ethan subiu para a cama e</p><p>ficou a olhar para a moldura na parede, onde costumava estar o</p><p>espelho.</p><p>— Vais sentir-te melhor depois de dormires um bocadinho —</p><p>disse a mãe, e Ethan não sabia se ela estava a falar com ele ou</p><p>consigo mesma. — Quando acordares, vamos fazer alguma coisa</p><p>maravilhosa: tiramos o telescópio para fora e tentamos encontrar</p><p>Vénus… ou vemos os vídeos d’A Guerra das Estrelas de uma ponta à</p><p>outra… já andas a querer fazer isso há algum tempo, não é?</p><p>Enquanto falava, agachou-se no chão, apanhando os estilhaços</p><p>do espelho. Ele perguntou-se se ela saberia que estava a chorar.</p><p>Embora estivesse exausto, Ethan não adormeceu. Sentia a mão a</p><p>latejar, e o rosto também. Esperou até já não ouvir a mãe lá em</p><p>baixo e depois saiu da cama e enfiou-se debaixo da secretária, onde</p><p>a mãe deixara escapar um triângulo de espelho.</p><p>Levou-o ao rosto. Só conseguia ver um bocadinho de cada vez: a</p><p>ponta do nariz,</p><p>uma sobrancelha, uma sarda. Assim, era possível</p><p>acreditar que todos esses reflexos juntos eram capazes de constituir</p><p>um rapaz normal. Assim, era possível ser alguém completamente</p><p>diferente.</p><p>Eli acordou sobressaltado e sentou-se na cama, aflito para</p><p>respirar. O quarto cheirava a maçãs, um aroma tão forte que ele</p><p>olhou para o lado da cama para se certificar de que não havia um</p><p>lagar de sidra por perto. Esfregou os olhos, mas não conseguiu</p><p>afastar a imagem que bailava à sua frente, para onde quer que se</p><p>virasse: era aquela mulher, outra vez.</p><p>Conhecia a voz dela, embora nunca a tivesse ouvido falar. Sabia</p><p>que ela tinha uma cicatriz por baixo do lóbulo da orelha esquerda e</p><p>que a sua boca sabia a baunilha e a infortúnio.</p><p>A mãe dele acreditava no poder dos sonhos. Quando Eli era</p><p>criança, ela contara-lhe uma história sobre o avô, um homem santo</p><p>que tinha visualizado a sua própria morte. Tinha adormecido e visto</p><p>uma montanha coberta de neve, com um falcão no cume. O falcão</p><p>baixou-se e puxou uma cobra pelo pescoço — puxou e continuou a</p><p>puxar —, e por fim, agarrada à cauda do réptil, vinha a concha vazia</p><p>de uma tartaruga. Quando abanava, fazia um som parecido com o</p><p>estertor da morte. Passados três meses, numa cerimónia ritual, uma</p><p>tempestade de neve inesperada deixou o avô de Eli e outros três</p><p>homens presos no topo de uma montanha sagrada. Os outros</p><p>encontraram-nos dias depois, congelados. Os seus corpos podiam</p><p>nunca ter sido recuperados, se não fosse o crocitar de um falcão que</p><p>levou o grupo de busca a aproximar-se cada vez mais.</p><p>«Quando estamos acordados», costumava dizer a mãe de Eli,</p><p>«vemos o que precisamos de ver. Quando estamos a dormir, vemos</p><p>o que realmente existe.»</p><p>Ele costumava perguntar-se se a mãe teria alguma vez sonhado</p><p>com o seu casamento com um homem branco; ou com a diabetes</p><p>que a matava lentamente. Perguntou-se se ela saberia que o seu</p><p>único filho mais depressa cortaria o próprio braço do que</p><p>concordaria com a crença índia de que os sonhos eram mais do que</p><p>alguns neurónios a dispararem à toa.</p><p>A mulher que vinha ter com ele na escuridão tinha os olhos da</p><p>cor do pedaço de vidro marinho que Eli encontrara em tempos numa</p><p>praia, em Rhode Island, e que ainda tinha sobre o parapeito da casa</p><p>de banho.</p><p>Puxou os cobertores até ao queixo e acomodou-se novamente</p><p>nas almofadas. Provavelmente, estava excitado. Andava a sonhar</p><p>com beldades porque não tinha ação a sério.</p><p>Se bem que, se fosse esse o caso, admitiu enquanto se deixava</p><p>adormecer de novo, fazia mais sentido imaginá-la de biquíni ou,</p><p>melhor ainda, nua numa sauna, e não como a via, completamente</p><p>vestida e agachada no chão, a chorar enquanto encaixava aquilo que</p><p>pareciam ser as peças de um puzzle impossível.</p><p>O grito ecoou, agudo e histérico, enquanto Meredith corria para o</p><p>quarto de Lucy. Não, não, não, pensou ela. As coisas tinham estado</p><p>tão normais.</p><p>A avó já lá estava, a afastar o cabelo húmido da testa de Lucy e</p><p>a murmurar que estava tudo bem.</p><p>— Ela não para — disse a avó Ruby em pânico. — É como se não</p><p>conseguisse ouvir-me.</p><p>Meredith bateu as palmas de ambos os lados do rosto da filha e</p><p>aproximou-se mais.</p><p>— Lucy, escuta! Tu estás bem. Não há nada aqui que possa</p><p>fazer-te mal. Compreendes?</p><p>O olhar de Lucy tornou-se mais vivo, como o levantar de um véu,</p><p>e ela calou-se. Enquanto percebia onde estava e o que tinha</p><p>acontecido, enroscou-se em posição fetal e aproximou-se mais da</p><p>cabeceira da cama.</p><p>— Não conseguem vê-la? — sussurrou. — Ela está mesmo aí.</p><p>Apontou para um sítio entre Meredith e Ruby, um sítio onde não</p><p>havia nada. Depois enfiou-se debaixo dos cobertores.</p><p>— Ela quer que eu a ajude a procurar.</p><p>— A procurar o quê? — perguntou Meredith.</p><p>Mas Lucy recolhera-se na sua concha e não respondeu. Meredith</p><p>sentiu uma dor no peito; o seu coração mais parecia uma pedra.</p><p>— Avó — disse, numa voz que não era a dela —, pode olhar por</p><p>ela?</p><p>Sem esperar pela resposta, entrou novamente no seu quarto.</p><p>Pegou no telefone e no pequeno cartão de visita que tinha guardado</p><p>na gaveta da mesinha de cabeceira. Esperou pela série de bipes e</p><p>depois contactou o doutor Calloway através do pager. Uma</p><p>capitulação.</p><p>Quando Ross chegou à propriedade Pike às onze da noite, Lia</p><p>estava à espera.</p><p>— Estou atrasado? — perguntou ele, como se estivesse à espera</p><p>de encontrá-la.</p><p>Enquanto montava o equipamento, observou-a pelo canto do</p><p>olho. Tinha qualquer coisa de diferente — uma frágil determinação,</p><p>que Ross não queria comprometer aludindo às circunstâncias em</p><p>que se tinham separado da última vez. Portanto, em vez disso,</p><p>mostrou-lhe os sítios onde vira os montículos de terra duas noites</p><p>atrás. Deixou-a ver o seu novo medidor de campo eletromagnético,</p><p>que tinha chegado pelo correio naquela tarde. Se quisesse caçar</p><p>fantasmas com ele, não se importava. Era um ponto de partida, e</p><p>sempre era melhor do que nada.</p><p>Lia passou a mão ao de leve pela câmara de vídeo montada no</p><p>tripé e apontada para longe.</p><p>— O meu pai tem uma câmara — disse ela —, embora a dele</p><p>seja um bocadinho maior. Mais volumosa.</p><p>— Esta é digital. — Ross olhou para a clareira. Já estava a captar</p><p>sensações fortes vindas dali. — Se nos sentarmos e esperarmos,</p><p>talvez tenhamos sorte.</p><p>— Posso… ficar?</p><p>— Pensava que era para isso que tinha vindo.</p><p>Lia não respondeu, mas instalou-se ao lado dele no solo</p><p>congelado. A apreensão que sentia mantinha alguma distância entre</p><p>os dois, como um pau de cabeleira. Ross perguntou-se o que</p><p>alimentaria o seu medo: se a possibilidade de ver um fantasma ou a</p><p>de o marido vir à sua procura.</p><p>— Sente-se bem? — perguntou.</p><p>Ela acenou afirmativamente. À exceção de uma pequena</p><p>lanterna, estavam sentados completamente às escuras. Lia abraçou</p><p>os joelhos, com a saia esticada até aos tornozelos. Olhou de relance</p><p>para o medidor de campo e para o respetivo ponteiro parado.</p><p>— Então, esta bússola — disse ela — dispara se estiver aqui um</p><p>fantasma?</p><p>— Tecnicamente, dispara quando um fantasma está a</p><p>materializar-se. É a transição entre estados que perturba o campo</p><p>eletromagnético.</p><p>Ela franziu a testa.</p><p>— Não compreendo.</p><p>— Se o espírito estiver invisível e depois começar de repente a</p><p>ganhar forma, ou vice-versa, vamos ouvir um crepitar.</p><p>Remeteram-se a um silêncio sociável cheio de perguntas que</p><p>nenhum dos dois queria ser o primeiro a fazer. A dada altura, Ross</p><p>parou de prestar atenção à potencial atividade paranormal e</p><p>começou antes a ouvir o som de Lia a respirar entre os espaços da</p><p>sua própria respiração. Estava perfeitamente ciente da distância</p><p>entre o seu ombro e o dela. Se encolhesse os ombros, tocava-lhe.</p><p>Que diabo, até mesmo se respirasse fundo…</p><p>Havia quase uma década que Ross não sentia aquilo: uma</p><p>consciência física tão intensa, que parecia monopolizar toda a sua</p><p>atenção, uma prece fugaz por algo que escapasse ao seu controlo,</p><p>como um terramoto ou um tsunami, e que fechasse o espaço que</p><p>havia entre eles. Andava havia tanto tempo à procura do fantasma</p><p>de uma mulher, que era inquietante sentir-se fascinado por outra</p><p>que estava sentada mesmo ao lado dele. Mas Lia era casada, e</p><p>Aimee era quem ele realmente queria.</p><p>E se o estranho apelo que sentia ao pé de Lia não fosse a</p><p>necessidade de salvá-la, mas sim a possibilidade de ela poder salvá-</p><p>lo? E se o que ele devia encontrar em Comtosook não fosse um</p><p>fantasma, mas antes aquela mulher?</p><p>A Aimee partiu. A Lia está aqui…</p><p>O pensamento ardiloso insinuou-se na sua mente, perturbando-o</p><p>de tal forma que ele deu por si a ir fisicamente na direção oposta, a</p><p>sair do círculo amarelo da lanterna e a afastar-se de Lia.</p><p>— Aconteceu alguma coisa? — perguntou ela, sem fôlego.</p><p>Não, pensou Ross, graças a Deus. Levantou-se e começou a</p><p>andar à volta da clareira.</p><p>— Sente alguma coisa?</p><p>— Não — respondeu Ross. Sim.</p><p>Ela pôs-se em pé, entrando na penumbra.</p><p>— Eu sinto — murmurou Lia. — Como se tudo estivesse a ficar</p><p>mais… vivo. Mais sólido.</p><p>Ao passar por Ross, ele sentiu uma brisa. A orla da saia vaporosa</p><p>roçou-lhe na mão e, antes que pudesse evitar, ele agarrou-a, mas</p><p>esta fugiu-lhe por entre os dedos como vento.</p><p>Sentiu o coração bater descompassado,</p><p>a querer saltar-lhe do</p><p>peito. Ele, que não tinha deixado o seu amor morrer com a morte da</p><p>amada, estava subitamente desorientado com algo tão mundano</p><p>quanto uma covinha no joelho de uma mulher.</p><p>Disse para consigo que tinha construído um mundo com Aimee;</p><p>que ela o conhecera melhor do que ninguém. Mas a verdade era que</p><p>agora Aimee não o reconheceria. A dor mudara-o, desde o tom de</p><p>voz ao modo como percorria uma rua movimentada. Aimee tinha</p><p>compreendido o que fazia Ross feliz.</p><p>Mas Lia parecia compreender o que o destruíra.</p><p>De repente, ouviu-se nitidamente o choro de um bebé.</p><p>— Ouviu isto? — sussurrou Lia, esticando o braço para Ross e</p><p>fechando a mão à volta do seu pulso.</p><p>Ele tinha ouvido. Mas percebeu que Lia já não estava</p><p>concentrada no som longínquo e pegara na lanterna, apontando-a</p><p>diretamente para as cicatrizes que Ross tinha no braço.</p><p>— Oh! — exclamou ela, deixando cair a lanterna e mergulhando-</p><p>os a ambos na escuridão.</p><p>Embora não a pudesse ver, Ross sabia que ela estava a tocar nas</p><p>suas próprias feridas antigas, por baixo das mangas.</p><p>— Porque é que não me contou?</p><p>— Não perguntou. — Ross tirou um cigarro do bolso e acendeu-</p><p>o, fazendo o seu rosto emergir das sombras.</p><p>— Quando? — inquiriu ela simplesmente.</p><p>— Há algum tempo. Quando eu achava que já não havia nada</p><p>para mim neste mundo. — Olhou-a nos olhos, e depois pegou no</p><p>cigarro incandescente e encostou-o ao braço, desafiando-a a sentir</p><p>pena dele. — Continuo a achar o mesmo.</p><p>Para sua surpresa, Lia não tentou impedi-lo. Esperou até ele</p><p>deitar fora a beata, até ter a pele empolada da queimadura.</p><p>— Eu não vim cá esta noite para procurar um fantasma —</p><p>admitiu ela. — Vim porque, enquanto estou consigo, não estou</p><p>sentada em casa a pensar se devia usar uma faca, comprimidos ou</p><p>veneno.</p><p>Ele sentiu os pelos finos dos braços eriçarem-se todos quando ela</p><p>encostou os lábios ao seu ouvido.</p><p>— Ross — sussurrou —, diga-me o que há do outro lado.</p><p>Ele já se sentira assim uma vez: tonto, angustiado e com todas</p><p>as células do corpo ao rubro. Depois disso, quando veio a si, três</p><p>médicos disseram-lhe que tinha sido atingido por um raio. Levou a</p><p>mão ao queixo de Lia. Se consegue ver-me com tanta clareza,</p><p>pensou, então, devo ser real.</p><p>A poucos passos de distância, o medidor de campo começou a</p><p>crepitar. A eletricidade estática fez-se ouvir primeiro lentamente,</p><p>acabando por tornar-se tão intensa, que Ross conseguia ouvi-la</p><p>dentro da sua cabeça. Nunca tivera uma resposta tão forte, vinha aí</p><p>alguma coisa importante. E fazia todo o sentido: o espírito estava a</p><p>usar a energia que surgira entre Ross e Lia para se materializar.</p><p>Afastou-se, agarrando no medidor e semicerrando os olhos, num</p><p>esforço para ver as leituras.</p><p>— A lanterna — gritou ele para Lia.</p><p>Mas, passado um momento, sentiu o pé bater na lanterna. O</p><p>medidor já estava a decair, o crepitar, a perder intensidade. Era a</p><p>prova mais significativa da existência de um espírito que alguma vez</p><p>testemunhara e, no entanto, Ross achava que, naquele momento,</p><p>lhe era indiferente se o fantasma fosse ter com ele e se</p><p>apresentasse. Precisava de encontrar Lia, para ver o que estava</p><p>escrito no seu rosto.</p><p>Ligou a lanterna e fez girar o feixe de luz, mas ela tinha</p><p>desaparecido.</p><p>Não seria a primeira vez que Ross via uma pessoa fugir durante</p><p>uma investigação paranormal. Porém, o medo de Lia não tinha nada</p><p>a ver com o aparecimento de fantasmas. Aquilo que a assustara</p><p>tinha sido a mesma coisa que assustara Ross e que, mesmo agora, o</p><p>fazia continuar a tremer: saber que, pela segunda vez na sua vida,</p><p>queria alguém que não podia ter.</p><p>4</p><p>Os habitantes de Comtosook começaram a adaptar-se a um</p><p>mundo que já não podiam tomar por garantido. Andavam com o</p><p>guarda-chuva nas mochilas ou malas para se protegerem da chuva</p><p>que caía vermelha como sangue e deixava uma camada de pó</p><p>vermelho ao secar. Havia pratos de porcelana que se partiam ao</p><p>bater do meio-dia, por mais cuidado que se tivesse ao embrulhá-los.</p><p>As mães acordavam os filhos para poderem ver as rosas a florirem à</p><p>meia-noite.</p><p>Passado um tempo, as bainhas das calças começaram a desfazer-</p><p>se e as palavras não paravam quietas nas páginas dos livros. A água</p><p>nunca fervia. As pessoas da vila descobriram que acordavam sem</p><p>história — ao saírem de casa para ir buscar o jornal da manhã,</p><p>tropeçavam nas suas próprias memórias desenroladas como</p><p>ligaduras no passeio. As mulheres abriam as máquinas de secar e</p><p>descobriam que a roupa branca se tinha transformado em penas. A</p><p>carne estragava-se no congelador. A cor azul parecia completamente</p><p>deslocada.</p><p>Algumas pessoas atribuíam os acontecimentos ao aquecimento</p><p>global ou ao azar. Porém, quando Abe Huppinworth entrou no Gas &</p><p>Grocery e encontrou todos os artigos inclinados para trás e de</p><p>pernas para o ar nas prateleiras, perguntou-se em voz alta se o tal</p><p>fantasma índio do Otter Creek Pass não teria alguma coisa a ver com</p><p>aquilo. E os três clientes que andavam às compras na altura</p><p>contaram aos vizinhos, e antes do cair da noite já todos os</p><p>habitantes de Comtosook especulavam se não seria melhor deixar</p><p>aquele bocado de terra em paz.</p><p>Havia uma grande parte de Rod van Vleet que não queria ouvir o</p><p>que Ross Wakeman tinha para lhe dizer. Se existisse mesmo um</p><p>fantasma, por mais ridículo que isso parecesse, o que podia ele</p><p>fazer? A casa tinha sido demolida; as equipas estavam a pôr o</p><p>entulho em contentores. O Grupo Redhook ia construir, por mais</p><p>assinaturas e petições que os habitantes lhe deixassem na</p><p>secretária. Talvez precisasse de chamar um padre para exorcizar a</p><p>maldita loja de bagels que seria construída ali, ou talvez não. A</p><p>questão é que o fantasma era negociável, mas o empreendimento</p><p>não.</p><p>Todavia, Rod queria mesmo saber se estava a desalojar um</p><p>espírito. Se a razão para as refeições lhe saberem a serradura e para</p><p>a escova de dentes desaparecer todas as noites tinha alguma coisa a</p><p>ver com a sua presente ocupação.</p><p>— Estas coisas… — Apontou para o ecrã da televisão, onde uma</p><p>imagem com grão de uma floresta à noite era cortada por linhas</p><p>azuis e bolas de luz flutuantes. — Está a dizer-me que estas coisas</p><p>são um fantasma?</p><p>Sentiu-se descontrair interiormente. Não estava à espera de nada</p><p>assim. Umas quantas faíscas e bolhas não podiam fazer mal a</p><p>ninguém. E seguramente não fariam fugir um potencial negócio.</p><p>Ross Wakeman era pura e simplesmente um charlatão. Tinha</p><p>visto uma oportunidade de chamar as atenções sobre si e</p><p>embarcado na proposta de Rod para o fazer.</p><p>— Não é um espírito em si mesmo — explicou Wakeman. — É o</p><p>efeito de um espírito sobre o equipamento. Lanternas que se</p><p>apagaram quando eu estava na propriedade, este tipo de registo de</p><p>interferências e leituras muito altas em máquinas que medem</p><p>campos magnéticos.</p><p>— Patranhas — disse Rod. — Não há nada de concreto.</p><p>— Lá porque se trata de algo que não se deixa medir, não</p><p>significa que não esteja aqui. — Wakeman encolheu os ombros. —</p><p>Pense na diferença entre o valor patrimonial e o valor de mercado.</p><p>— Ah, mas é possível medir o valor patrimonial. É aquilo que as</p><p>pessoas estão dispostas a pagar para adquirirem uma coisa.</p><p>— Também pode medir um fantasma por aquilo em que as</p><p>pessoas estão dispostas a acreditar.</p><p>De repente, a porta do atrelado abriu-se. Van Vleet virou-se e</p><p>deu de caras com três operadores de equipamento furiosos a</p><p>entrarem de rompante, deixando as suas escavadoras tão inativas</p><p>quanto dinossauros adormecidos.</p><p>Um deles, o cabecilha, espetou um dedo no peito de Van Vleet.</p><p>— Apresentamos a demissão.</p><p>— Não podem demitir-se. Ainda não acabaram o trabalho.</p><p>— Que se lixe o trabalho! — Tirou o capacete e atirou-lho à laia</p><p>de desafio. — Estão a dar connosco em doidos.</p><p>— Quem?</p><p>— As moscas.</p><p>Outro dos operários deu um passo em frente, continuando a falar</p><p>com um cerrado sotaque franco-canadiano.</p><p>— Vêm direitas aos nossos ouvidos e sussurram. — Descreveu</p><p>pequenos círculos com as mãos dos dois lados da cabeça. — Tzi-</p><p>tzi.Tzi-tzi.</p><p>— E quando as tentamos enxotar — acrescentou o primeiro —</p><p>não está lá nada.</p><p>O terceiro operário, que continuava calado, fez o sinal da cruz.</p><p>Ross tossiu; Van Vleet lançou-lhe um olhar furibundo.</p><p>— Tenho a certeza de que não é nada — assegurou-lhes. — Um</p><p>truque do vento. Talvez seja um vírus.</p><p>— Então, deve ser contagioso como tudo, porque os Abenaki que</p><p>estão lá fora também ouviram. E o mais velho pronunciou a palavra</p><p>que nós ouvimos. C-H-I-J-I-S. Significa bebé, na língua dele.</p><p>— É claro que ele vos diz isso! — gritou Van Vleet. — Ele quer</p><p>que se vão embora. Quer que fiquem tão assustados, que façam o</p><p>que estão a fazer agora: abandonar as máquinas e parar de</p><p>trabalhar.</p><p>Os homens entreolharam-se.</p><p>— Nós não estamos assustados. Mas, enquanto não se livrar do</p><p>fantasma, pode arranjar outra equipa.</p><p>Despediram-se com um aceno de cabeça e começaram a sair do</p><p>estaleiro.</p><p>— O que é que estava a dizer? — perguntou Ross.</p><p>Van Vleet pegou no telefone.</p><p>— Tenho de encontrar outra equipa — disse ele. — Não tenho</p><p>tempo para isto agora.</p><p>Ross encolheu os ombros.</p><p>— Se precisar de mim, sabe onde encontrar-me — disse, e foi-se</p><p>embora.</p><p>Rod marcou o número e esperou enquanto ouvia a mensagem</p><p>gravada. Os seus olhos vaguearam até ao ecrã de televisão, que</p><p>tremeluzia com estática. Wakeman esquecera-se de levar a</p><p>gravação. Ou talvez não, pensou ele ao ver um risco de luz.</p><p>O sangue atingiu-a no rosto.</p><p>Meredith ainda mal saíra do edifício e já o líquido lhe salpicava o</p><p>cabelo, escorrendo-lhe pela face e pescoço.</p><p>— Quantos bebés matou hoje? — gritou o manifestante.</p><p>Limpou os olhos. Não era sangue a sério, mas refrigerante ou</p><p>algo do género, pelo cheiro adocicado. O seu empregador não</p><p>costumava ser tão visado como as clínicas de aborto da área, mas a</p><p>objeção era a mesma — parte do trabalho de Meredith consistia em</p><p>escolher quais os embriões que iam avante e quais os que seriam</p><p>incinerados, e aqueles que pugnavam pelo direito à vida não</p><p>conseguiam aceitar isso.</p><p>— Venham ter comigo quando forem inférteis — murmurou</p><p>Meredith para o pequeno grupo de manifestantes, e caminhou um</p><p>pouco mais depressa até ao carro.</p><p>O que ela queria dizer, o que nem sequer se permitiu pensar até</p><p>estar em segurança, confortavelmente instalada atrás do volante</p><p>com o ar condicionado ligado no máximo, era que sabia mais acerca</p><p>daqueles manifestantes do que qualquer um deles podia alguma vez</p><p>saber sobre ela. Nove anos antes, tinha passado por uma fila deles,</p><p>todos com a mesma expressão que exibiam agora, como se a</p><p>integridade não passasse de uma máscara de Halloween. Na altura,</p><p>cancelara as consultas de aconselhamento genético durante o dia,</p><p>porque, embora se sentisse suficientemente bem para trabalhar</p><p>durante a tarde, achava que não iria conseguir sentar-se a uma</p><p>secretária e conversar com outras pessoas sobre os seus filhos, não</p><p>depois de ter feito um aborto.</p><p>Meredith lembrava-se de que a clínica cheirava a aço e a elixir</p><p>bucal; que as cadeiras da sala de espera estavam cheias de</p><p>raparigas tão jovens, que as suas barrigas dilatadas pareciam uma</p><p>impossibilidade; que já tinha atado as duas primeiras fitas na parte</p><p>de trás da bata antes de decidir que não conseguia fazer aquilo.</p><p>E se estar grávida não fosse o erro colossal que ela pensava? E</p><p>se a altura não fosse má, mas extraordinariamente certa: uma</p><p>espécie de alerta, uma mensagem? Qual era o mal de o bebé não</p><p>ter pai? O de Meredith saíra de casa quando ela tinha quatro anos, a</p><p>seguir ao divórcio, e só o vira um punhado de vezes depois disso. E,</p><p>no entanto, ela era a prova viva de que uma pessoa podia sair-se</p><p>muito bem tendo apenas a mãe, desde que fosse a mãe certa. Se</p><p>Meredith não podia trazer Luxe de volta, pelo menos tinha a</p><p>oportunidade de lhe mostrar o que aprendera com ela. Ia criar um</p><p>porto seguro para a filha e enchê-la de amor.</p><p>Depois de se vestir, de reaver o dinheiro e de sair porta fora, um</p><p>dos manifestantes atirara-lhe com um balde de sangue a fingir. Essa</p><p>foi a última gota: Meredith agarrou o homem pelos colarinhos e</p><p>gritou-lhe na cara que não tinha levado aquilo por diante. Quando o</p><p>desconhecido a abraçou, foi-se abaixo e desatou a soluçar.</p><p>Deram-lhe bolachas e chocolate quente de um termo. Deixaram-</p><p>na sentar-se numa pilha de cobertores. O homem que a tinha</p><p>encharcado ofereceu-lhe a sua própria camisa. Durante toda a tarde,</p><p>foi uma heroína.</p><p>Quase uma década depois, Meredith avaliava agora os</p><p>manifestantes pelo retrovisor. Quem lhe dera ter coragem para lá</p><p>voltar e perguntar se algum deles já tivera de fazer uma escolha que</p><p>lhe mudasse o futuro. Quem lhe dera poder levá-los ao seu</p><p>laboratório, onde havia tantos embriões saudáveis à espera. Quem</p><p>lhe dera poder explicar-lhes que havia algumas vidas que não valiam</p><p>a pena ser vividas. Que ajuizar isso não era ser cruel, mas sim</p><p>revelar humanidade.</p><p>Tirou o carro do lugar de estacionamento e rumou em direção a</p><p>casa, onde encontraria a filha deitada no sofá, atordoada e letárgica</p><p>por causa dos antipsicóticos. Serpenteou perigosamente por entre o</p><p>trânsito da hora de ponta. Atravessou-se à frente de camiões.</p><p>Carregou no acelerador, andando a mais de cem numa zona de 50</p><p>km/h, como se a pura imprudência pudesse convencê-la de que,</p><p>passados tantos anos, ainda tinha o que era preciso para salvar</p><p>Lucy.</p><p>Ross estava sentado nas Urgências, a observar os rostos dos</p><p>feridos e doentes que entravam pelas portas automáticas. Sempre</p><p>que não era Lia, ia ficando gradualmente mais tranquilo. Estava ali</p><p>havia dois dias, tempo suficiente para travar amizade com o pessoal</p><p>da triagem e para se assegurar de que ninguém chamado Lia</p><p>Beaumont ou, já agora, alguma mulher de identidade desconhecida</p><p>dera entrada no hospital. Era isso que mais o preocupava: pensar</p><p>que ela podia atentar contra a própria vida ou ser magoada pelo</p><p>marido antes de ter oportunidade de falar com ela.</p><p>Queria dizer-lhe que não conseguia lembrar-se da forma dos</p><p>olhos de Aimee. De início, talvez isso não parecesse algo que ela</p><p>precisasse de ouvir. Mas havia oito anos que Ross via essa forma</p><p>com tanta clareza como se Aimee estivesse a centímetros dele: as</p><p>linhas ovais viradas para cima nas pontas, a cor de canela no centro,</p><p>as pestanas que projetavam sombras nas suas faces quando ela</p><p>estava a dormir. Porém, desde a noite em que Lia encostara os</p><p>lábios ao seu rosto e lhe sussurrara ao ouvido, não conseguia pensar</p><p>no rosto de Aimee sem que se transformasse no de Lia.</p><p>Mudava de roupa três vezes por dia, e continuava a cheirar a</p><p>rosas.</p><p>Desejava beijá-la.</p><p>Desejava, ponto final.</p><p>Ross sabia que não havia um final feliz para aquilo. Não iria</p><p>acabar com o casamento de Lia, nem pô-la numa situação em que</p><p>fosse obrigada a escolher. Mas precisava de saber que ela estava</p><p>bem. Precisava de acreditar que não estava naquele momento</p><p>algures em Comtosook, com uma lâmina equilibrada sobre o pulso.</p><p>De repente, uma mulher dirigiu-se apressadamente para o posto</p><p>da enfermeira, arrastando uma criança atrás dela como um</p><p>brinquedo.</p><p>— Ando à procura de um doente — disse ela. — O nome dele é</p><p>Ross Wakeman.</p><p>A cabeça de Ross levantou-se ao ouvir a voz de Shelby. Chamou-</p><p>a.</p><p>Ethan virou-se primeiro, seguido da mãe.</p><p>— Ross!</p><p>Shelby correu na sua direção, com o rosto contorcido de medo.</p><p>Ethan, atrás dela, vestia o seu equipamento diurno, enfaixado da</p><p>cabeça aos pés para impedir o sol de lhe tocar na pele. As partes do</p><p>rosto que Ross conseguia ver estavam manchadas e em carne viva.</p><p>Shelby desviou os olhos do rosto de Ross para os seus braços,</p><p>para os seus pulsos.</p><p>— O que se passa? Há quanto tempo aqui estás? Meu Deus,</p><p>Ross, porque é que não me telefonaste?</p><p>E então viu a queimadura de cigarro que ele tinha feito no</p><p>antebraço quando estava com Lia. A pele estava agora empolada e a</p><p>purgar, e Shelby não teve coragem para lhe tocar. Talvez lhe</p><p>lembrasse Ethan.</p><p>— Shel, eu estou bem.</p><p>— Estás num hospital!</p><p>— Eu sei. Tenho andado a tentar encontrar uma pessoa. Pensava</p><p>que ela podia estar ferida.</p><p>— Tu também estás ferido.</p><p>— Isto não é nada. Foi um acidente.</p><p>Ela não acreditava, era óbvio, mas disse:</p><p>— Estás bem? Tens a certeza?</p><p>— Absoluta.</p><p>— Ótimo — replicou Shelby, e deu-lhe uma bofetada com toda a</p><p>força.</p><p>Ver a cabeça de Ross ser lançada para</p><p>ou</p><p>não, mas os adolescentes locais pareciam pensar que a incapacidade</p><p>de Winnie para se manter morta era razão suficiente para levar</p><p>embalagens de seis garrafas de cerveja e erva para o cemitério. Eli</p><p>desdobrou o seu comprido corpo, saindo da carrinha.</p><p>— Vens? — disse para o cão, que em resposta se afundou no</p><p>banco.</p><p>Abanando a cabeça, ele esgueirou-se pelo cemitério até chegar à</p><p>sepultura de Winnie, onde quatro miúdos demasiado bêbedos e</p><p>pedrados para ouvirem os seus passos estavam amontoados à volta</p><p>da chama azul de um bico de gás.</p><p>— Buh — disse Eli, sem inflexão.</p><p>— É a polícia!</p><p>— Porra!</p><p>Ouviu-se o som de ténis a resvalar no chão e o tinido de garrafas</p><p>a baterem umas nas outras enquanto os adolescentes tentavam</p><p>escapar. Eli podia tê-los agarrado a qualquer momento, claro, mas</p><p>desta vez optou por deixá-los ir. Apontou o foco da lanterna à última</p><p>figura que batia em retirada e depois virou-o para baixo, para o meio</p><p>da confusão. Tinham deixado atrás de si uma nuvem vaga de fumo</p><p>adocicado e duas garrafas de Rolling Rock por abrir, de que Eli se</p><p>poderia servir quando saísse de serviço.</p><p>Baixando-se, arrancou um dente-de-leão da base da lápide de</p><p>Winnie. Como se o movimento a tivesse desalojado, uma palavra</p><p>veio-lhe subitamente à cabeça: chibaiak… fantasmas. Era o idioma</p><p>que a sua avó falava e que ardia na língua de Eli como um rebuçado</p><p>de mentol.</p><p>— Não existe tal coisa — disse ele em voz alta, e voltou para o</p><p>carro para ver o que mais lhe reservaria aquela noite.</p><p>Shelby Wakeman tinha acordado exausta depois de um dia</p><p>inteiro a dormir. Tivera outra vez aquele sonho, em que Ethan estava</p><p>ao seu lado num aeroporto, e depois ela virava-se e descobria que</p><p>ele tinha desaparecido. Desesperada, corria de terminal em terminal</p><p>à procura dele, até que por fim saía por uma porta para a pista e</p><p>encontrava o filho de nove anos na trajetória de um jato que</p><p>aterrava.</p><p>Aquilo deixava-a apavorada, por mais que dissesse a si mesma</p><p>que isso nunca aconteceria: ela nunca estaria num aeroporto com</p><p>Ethan a meio do dia, e muito menos o perderia de vista. Mas o que</p><p>mais a assustava era a imagem do filho com os braços esticados e o</p><p>rosto leitoso levantado para o sol.</p><p>— Terra chama mãe… Estás aí?</p><p>— Desculpa — disse Shelby, sorrindo. — Estava a sonhar</p><p>acordada.</p><p>Ethan acabou de passar o seu prato por água e pô-lo na</p><p>máquina.</p><p>— Se o fizermos de noite, achas que é na mesma sonhar</p><p>acordado? — Antes que ela pudesse responder, pegou no skate, um</p><p>apêndice tão importante como qualquer dos seus membros. —</p><p>Encontramo-nos lá fora?</p><p>Ela assentiu, vendo-o sair disparado para o jardim da entrada.</p><p>Por mais que lhe dissesse para não fazer barulho, uma vez que às</p><p>quatro da manhã a maior parte das pessoas estava a dormir e não a</p><p>andar de skate, Ethan normalmente esquecia-se disso e,</p><p>normalmente, Shelby não tinha coragem de lho lembrar.</p><p>Ethan sofria de XP, xeroderma pigmentoso, uma doença</p><p>hereditária incrivelmente rara que o deixava extremamente sensível</p><p>aos raios solares ultravioletas. Só havia mil casos conhecidos de XP</p><p>em todo o mundo. Quem tinha essa doença, tinha-a desde que</p><p>nascia até morrer.</p><p>Shelby notara pela primeira vez que havia alguma coisa de</p><p>errado quando Ethan tinha seis semanas de vida, mas foi preciso um</p><p>ano de exames até ele ser diagnosticado com XP. Os médicos</p><p>explicaram que a luz ultravioleta provoca danos no ADN humano. A</p><p>maioria das pessoas consegue reparar automaticamente esses</p><p>danos, mas quem sofre de XP, não. Os danos acabam por afetar a</p><p>divisão celular, o que leva ao cancro. Disseram ainda que Ethan era</p><p>capaz de viver o suficiente para chegar à adolescência.</p><p>Mas Shelby achou que, se a luz do sol ia matar o filho, só</p><p>precisava de fazer com que estivesse sempre escuro. Passava dias</p><p>seguidos em casa. Lia histórias para adormecer a Ethan à luz da</p><p>vela. Tapava as janelas da casa com toalhas e cortinas que o marido</p><p>arrancava todas as noites quando chegava do trabalho.</p><p>— Ninguém é alérgico à porcaria do sol — dizia ele.</p><p>Quando se divorciaram, Shelby já tinha aprendido muita coisa</p><p>sobre a luz. Sabia que havia mais coisas a recear além do ar livre.</p><p>Os supermercados e os consultórios médicos tinham lâmpadas</p><p>fluorescentes, que emitiam radiação ultravioleta. O protetor solar</p><p>tornou-se tão comum quanto o creme para as mãos, aplicado dentro</p><p>e fora de casa. Ethan tinha vinte e dois bonés, e punha-os do</p><p>mesmo modo mecânico com que as outras crianças vestiam a roupa</p><p>interior.</p><p>Naquela noite, usava um que dizia RODEADO DE ESTÚPIDOS. A pala</p><p>estava enrolada como um caracol, forma que Ethan cultivava</p><p>prendendo a pala debaixo da fita ajustável na parte de trás. Quando</p><p>Shelby via os bonés guardados daquela maneira, pensava em cisnes</p><p>a enfiarem a cabeça debaixo da asa ou nos minúsculos pés</p><p>enfaixados das chinesas.</p><p>Acabou de arrumar a cozinha e depois instalou-se com um livro</p><p>no lancil do caminho de acesso. O seu cabelo escuro e comprido</p><p>tinha sido domado numa trança da grossura de um pulso, e mesmo</p><p>assim ainda sentia calor… Como conseguia Ethan andar a correr</p><p>daquela maneira? Ele fez deslizar o skate numa rampa de madeira</p><p>improvisada e fez um «Ollie kickflip».</p><p>— Mãe! Mãe? Viste isto? Foi tal qual o Tony Hawk.</p><p>— Eu sei — concordou Shelby.</p><p>— Então, não achas que ia ser o máximo se nós…</p><p>— Não vamos construir aqui um half-pipe, Ethan!</p><p>— Mas…</p><p>— Credo! Nem quero saber.</p><p>E lá se foi ele outra vez por entre o barulho das rodinhas.</p><p>Shelby sorriu interiormente. Adorava a atitude que parecia</p><p>insinuar-se na personalidade de Ethan, como se um bonecreiro lhe</p><p>pusesse palavras na boca. Adorava a forma como ele ligava a</p><p>televisão no Late Night with Conan O’Brien quando pensava que ela</p><p>estava noutro ponto da casa, para tentar captar todas as indiretas.</p><p>Isso tornava-o tão… normal. Se não fosse o facto de a lua os</p><p>acompanhar lá em cima e de o rosto de Ethan ser tão pálido que as</p><p>veias sob a sua pele brilhavam como estradas que ela conhecia de</p><p>cor… se não fossem essas pequenas coisas, Shelby quase conseguia</p><p>acreditar que o seu mundo era exatamente como o de qualquer</p><p>outra mãe solteira.</p><p>Ethan executou um «shifty pivot» e, em seguida, um «Casper big</p><p>spin». Shelby apercebeu-se de que tinha havido uma altura em que</p><p>não sabia distinguir um «helipop» de um «G-turn». E também tinha</p><p>havido uma altura em que olhava para Ethan e para ela própria e</p><p>sentia pena. Mas agora mal conseguia lembrar-se de como era a sua</p><p>vida antes de aquela doença ter sido lançada sobre eles como uma</p><p>rede de pesca; e, verdade fosse dita, a vida que vivera antes de</p><p>Ethan não podia ter sido grande coisa.</p><p>Ele fez derrapar o skate até parar à sua frente.</p><p>— Estou a morrer de fome.</p><p>— Ainda agora acabaste de comer!</p><p>Ethan pestanejou, como se fosse algum tipo de desculpa. Shelby</p><p>suspirou.</p><p>— Se quiseres, podes entrar e comer qualquer coisa, mas já está</p><p>a amanhecer.</p><p>Ele virou-se para o nascer do sol, uma garra presa na linha do</p><p>horizonte.</p><p>— Deixa-me ver cá de fora — implorou ele. — Só uma vez.</p><p>— Ethan…</p><p>— Eu sei — disse ele baixinho. — Só mais três «hardflips».</p><p>— Um.</p><p>— Dois.</p><p>Sem esperar pela autorização — ela acabaria por ceder, e ambos</p><p>sabiam disso —, Ethan voltou a ganhar velocidade. Shelby abriu o</p><p>seu romance, olhando para as palavras como vagões num comboio</p><p>de mercadorias: uma correnteza sem características individuais.</p><p>Tinha acabado de virar a página quando se apercebeu de que o</p><p>skate de Ethan já não estava em movimento.</p><p>Ele segurava-o junto à perna, com o desenho do super-herói</p><p>Wolverine salpicado de branco.</p><p>— Mãe, está a nevar? — perguntou.</p><p>Nevava com frequência no Vermont, mas não em agosto. Algo</p><p>branco rodopiou em direção ao livro e ficou preso na lombada; mas,</p><p>afinal, não era um floco de neve. Ela levou a pétala ao nariz e</p><p>cheirou-a. Rosas.</p><p>Shelby tinha ouvido falar de estranhos fenómenos meteorológicos</p><p>que faziam com que as rãs se evaporassem e chovessem sobre os</p><p>oceanos; uma vez, assistira a uma saraivada de gafanhotos. Mas</p><p>aquilo…?</p><p>As pétalas continuavam a cair, ficando presas no seu cabelo e no</p><p>de Ethan.</p><p>— Que estranho — disse ele, sentando-se ao lado da</p><p>trás com o impacto e a</p><p>marca da mão na sua pele foi o momento mais gratificante que</p><p>Shelby tivera em quarenta e oito horas, que era aproximadamente o</p><p>tempo em que o irmão tinha estado desaparecido. Passara esse</p><p>tempo a ligar para todo o lado, a tentar encontrar pessoas que o</p><p>tivessem visto. Mas eram muito poucos os habitantes de Comtosook</p><p>que o conheciam, e muito menos os que conseguiam identificá-lo de</p><p>vista. Tinha telefonado para a esquadra e falado com um tal detetive</p><p>Rochert, que lhe disse que só podia participar um desaparecimento</p><p>passados dois dias. Por isso, trouxera Ethan para a luz do dia,</p><p>guiado lentamente pela vila, rondado o restaurante e até exigido</p><p>uma reunião com Rod van Vleet, que tinha sido a última pessoa a</p><p>ver Ross, às dez da manhã do dia anterior.</p><p>— Credo, Shel — disse Ross, ainda a recompor-se. — Também</p><p>gostei de te ver.</p><p>— Filho da mãe! — exclamou a irmã, semicerrando os olhos. —</p><p>Fazes alguma ideia dos sítios onde fui? Isto é, depois dos lugares</p><p>habituais onde me dei ao trabalho de ir procurar o meu irmão, que</p><p>desapareceu sem deixar rasto ou, já agora, sem ter a delicadeza de</p><p>me deixar um bilhetinho a dizer onde ia ou quando voltava?</p><p>— Fomos debaixo do viaduto — disse Ethan. — Estava lá uma</p><p>gaivota morta. Foi brutal.</p><p>Shelby sentia a cabeça toldada com pensamentos de sucussão, a</p><p>ideia gratificante de abanar o irmão com tanta força a ponto de lhe</p><p>infligir danos.</p><p>— Sim, isso mesmo. Caso tivesses decidido saltar da ponte.</p><p>— Já te tinha dito — disse ele, num tom cansado. — Eu não vou</p><p>matar-me.</p><p>Ela agarrou-lhe o braço, junto à queimadura.</p><p>— Então, o que é isto?</p><p>— Uma forma muito ineficaz de cometer suicídio?</p><p>Ela sentia as lágrimas a aproximarem-se, e isso deixava-a ainda</p><p>mais zangada.</p><p>— Ainda bem que achas tanta graça a isto — disse Shelby. —</p><p>Sabes, eu é que devo ser idiota por presumir que as pessoas com</p><p>quem me preocupo têm alguma obrigação para comigo, pelo menos</p><p>de me dizerem que não jazem mortos numa valeta qualquer. —</p><p>Passou a mão pelos olhos. — Ainda bem que não te mataste, Ross,</p><p>porque estás a fazer um ótimo trabalho a dar cabo de mim.</p><p>— Sabes uma coisa? A gaivota? — disse Ethan, puxando pela</p><p>manga de Ross. — Tinham-lhe tirado um olho.</p><p>— Deixa de te preocupar comigo, está bem? Nunca te pedi que o</p><p>fizesses — disse Ross.</p><p>— Isso é algo que não se escolhe.</p><p>— Então, porque não te preocupas com alguém que realmente</p><p>precise?</p><p>— Tu não tens os requisitos necessários?</p><p>— Não tanto como tu — ripostou Ross. — Por amor de Deus,</p><p>Shel, vives como um animal noturno. Fechaste-te para toda a gente,</p><p>à exceção do Ethan. Não tens uma única amiga que vá tomar café</p><p>contigo, pelo menos desde que cá estou. Não tens uma saída</p><p>romântica desde… Santo Deus, nos últimos dez anos, o papa tem</p><p>estado mais ativo do que tu! Tens quarenta e dois anos e ages como</p><p>se tivesses sessenta. Estás a fazer um ótimo trabalho a dar cabo de</p><p>ti, não precisas que o faça por ti.</p><p>Ela não queria ir-se abaixo agora, não no meio da sala das</p><p>Urgências, não em frente de Ross, e muito menos em frente de</p><p>Ethan. Esforçando-se por se controlar, pousou os punhos cerrados</p><p>no colo.</p><p>— Já acabaste? — perguntou secamente.</p><p>Ross pegou na mão da irmã e esperou que ela olhasse para ele.</p><p>— Shelby, eu não vou matar-me, prometo.</p><p>— Já prometeste antes, Ross — sussurrou ela. — E acontece que</p><p>estavas a mentir.</p><p>Depois da morte de Aimee, Shelby percebera que o irmão não ia</p><p>voltar daquele limbo. Tinha visto a forma como ele perdera o sono e</p><p>a forma como as roupas o tinham começado a usar, em vez de ser</p><p>ele a usá-las. Vira-o manter uma conversa sem estar realmente</p><p>presente. Por isso, tinha sido ela a dar-lhe o nome de um psiquiatra</p><p>e a marcar uma consulta. Nessa noite, ao jantar, ele contou que</p><p>tinha corrido bem; até lhe agradeceu. Quando Shelby o descobriu a</p><p>esvair-se em sangue dias mais tarde, Ross tinha articulado a palavra</p><p>«Desculpa» antes de desmaiar.</p><p>Claro que nunca chegara a ir à consulta com o psiquiatra.</p><p>— Diz-me lá porque hei de acreditar em ti agora — disse ela.</p><p>Ross desviou o olhar, de olhos fixos num cartaz que incitava as</p><p>pessoas a doarem órgãos. Começou então a contar à irmã a história</p><p>de uma mulher que tinha desaparecido. Assustada… frágil… linda…</p><p>curiosa: foi equilibrando os adjetivos uns sobre os outros até formar</p><p>um castelo de cartas que podia desmoronar-se a qualquer</p><p>momento; e, de repente, era como se Lia Beaumont estivesse ali</p><p>entre eles, trémula e insegura.</p><p>Houve uma palavra que ficou na cabeça de Shelby.</p><p>— Casada? — repetiu.</p><p>— Ela morre de medo dele.</p><p>— Ross…</p><p>Ele abanou a cabeça.</p><p>— Não é o que estás a pensar.</p><p>Shelby sabia que ele estava a mentir; só não tinha a certeza se</p><p>Ross também se apercebia disso.</p><p>— Estou preocupado com ela. Não tem para onde ir. Quer deixá-</p><p>lo, mas não consegue encontrar o caminho. Eu acho… acho que ela</p><p>pode tentar matar-se.</p><p>E o que achas disso?, pensou Shelby, mas antes de poder falar</p><p>reparou no rosto do irmão. Era uma expressão que conhecia tão</p><p>bem… Uma expressão que ela própria usara mil vezes, de cada vez</p><p>que olhava para cima e via o sol, ou fitava o rosto adormecido de</p><p>Ethan. Uma expressão que tinha visto Ross usar depois da sua</p><p>tentativa de suicídio. Às vezes, quando nos deparamos com o muro</p><p>da realidade, não há forma de o contornarmos. Apaixonou-se por</p><p>ela, pensou Shelby, e isso não vai alterar seja o que for.</p><p>A sua voz embalou-o suavemente:</p><p>— Ross, não podes salvá-las todas.</p><p>Ele lançou a cabeça para trás, como se Shelby tivesse voltado a</p><p>esbofeteá-lo.</p><p>— Uma vez — disse baixinho. — Uma vez já seria bom.</p><p>Levantou-se cambaleante e saiu do hospital a correr, afastando-</p><p>se o mais que podia daquela memória.</p><p>Assim que o tio saiu pelas portas de correr em vidro, o sol</p><p>engoliu-o como o bafo escaldante de um dragão. Ethan deu um</p><p>pontapé na parte de baixo da cadeira, o que fez abanar a fila inteira,</p><p>pois as cadeiras estavam presas umas às outras. A mãe sentou-se</p><p>ao lado dele, com o rosto escondido nas mãos, como fazia quando</p><p>assistiam aos filmes Sexta-Feira, 13 e ela não aguentava ver alguém</p><p>feito em bocados à machadada.</p><p>— O que se passa com o tio Ross? — perguntou Ethan. — Se a</p><p>tal senhora não está no hospital, isso não é bom?</p><p>A mãe pestanejou.</p><p>— Estavas a ouvir…</p><p>— Ora! Estava tipo a meio metro de vocês.</p><p>A mãe suspirou e Ethan percebeu que ela estava a fazer contas</p><p>de cabeça: a idade que ele tinha em termos cronológicos</p><p>multiplicada pela idade em termos emocionais, a dividir pelo valor de</p><p>referência para a inocência infantil.</p><p>— Uma vez, ele tentou salvar a vida a uma pessoa e acabou por</p><p>perder uma coisa muito importante para ele. — Apertou a mão do</p><p>filho com mais força. — Tu sabes que o tio Ross teve um acidente de</p><p>carro com a mulher com quem se ia casar. Ele foi quem ficou em</p><p>melhor estado. Tirou a Aimee do carro e levou-a para a berma. Mas</p><p>o condutor do outro carro, aquele que lhes bateu, continuava preso</p><p>no interior. Ele deixou a Aimee sozinha enquanto foi ver se a pessoa</p><p>estava bem.</p><p>— E ela morreu — disse Ethan, encaixando mentalmente a última</p><p>peça do puzzle.</p><p>— Hum, hum. À primeira vista, a Aimee não parecia estar muito</p><p>mal, e foi por isso que o tio Ross pensou que podia deixá-la sozinha</p><p>por um segundo… Mas ela tinha hemorragias nos órgãos. Levaram-</p><p>na para o hospital, mas os médicos não puderam fazer nada.</p><p>— Como eu — disse Ethan simplesmente.</p><p>A mãe virou a cara.</p><p>Ele balançou um pouco as pernas, fazendo a fila de cadeiras</p><p>mexer-se novamente.</p><p>— Mãe, a Aimee teria melhorado se o tio Ross tivesse ficado com</p><p>ela?</p><p>— Não, querido.</p><p>— Ele sabe disso?</p><p>— Acho que sim.</p><p>Ethan pensou naquilo por um segundo.</p><p>— Mas ela não morreu por culpa dele.</p><p>A mãe fitou-o como costumava fazer de vez em quando, como</p><p>que interrogando as suas feições.</p><p>— Às vezes, isso não faz diferença — afirmou.</p><p>Lucy dormia muito. Por vezes, sonhava que estava a dormir e</p><p>conseguia ver-se deitada na cama. Por vezes, sonhava que estava a</p><p>ser perseguida, mas as suas pernas já não se moviam com rapidez</p><p>suficiente. Certa ocasião, imaginou que um gigante a tinha comido e</p><p>que ela se enroscara numa cavidade</p><p>do seu molar mais recuado,</p><p>onde ficou a dormir indefinidamente.</p><p>Ainda gritava enquanto dormia, mas a sua garganta estava</p><p>demasiado cansada para deixar sair os seus gritos.</p><p>De vez em quando, uma voz cortava o silêncio como uma faca. A</p><p>mãe, a suplicar-lhe que se levantasse e comesse alguma coisa. A</p><p>avó Ruby, a dizer-lhe que estava com muito melhor aspeto, bastava</p><p>olhar para as rosetas que tinha nas faces… Ela ouvia-as ao longe.</p><p>Caíra num poço e estava a boiar de costas, a olhar para o sol.</p><p>Tinha rostos impressos por trás das pálpebras: o da mãe, o da</p><p>avó Ruby e o da senhora que vinha ter com ela. Aquela que estava</p><p>pendurada na árvore, aquela que aparecia junto à cama e estava</p><p>agora sentada a seu lado, no sofá, tão perto que Lucy sentia os pés</p><p>gelados.</p><p>Percebeu que era a mulher que entretanto já devia ter</p><p>desaparecido. Contudo, desde que começara a tomar os</p><p>medicamentos, a mulher estava mais nítida do que nunca — a aura</p><p>azul da sua pele e a forma como a tristeza se agarrava aos cantos</p><p>dos seus olhos, como bocadinhos de remelas. Já não a assustava</p><p>tanto. Na verdade, era como se ela soubesse. Compreendia o que</p><p>era estar em frente de pessoas que amávamos, embora elas não nos</p><p>pudessem ver.</p><p>Era a primeira vez que Eli se lembrava de ter sido chamado para</p><p>o oposto a uma queixa de vandalismo, mas Rod van Vleet tinha</p><p>ligado para a esquadra a queixar-se de que, de alguma forma, a</p><p>casa demolida estava a ser reconstruída. De um dia para o outro, a</p><p>estrutura do piso térreo tinha sido erguida novamente. Disse que era</p><p>óbvio que tinham sido os Abenaki e queria que a polícia de</p><p>Comtosook os apanhasse em flagrante.</p><p>Eli olhou para Watson, que aparentemente acreditava que os</p><p>químicos presentes na saliva canina podiam dissolver o vidro da</p><p>janela do passageiro, desde que fosse aplicada em grandes</p><p>quantidades. Já tinham estado no acampamento dos Abenaki. À</p><p>exceção de Az Thompson, toda a gente estava a dormir</p><p>profundamente. No entanto, momentos depois, quando ele e</p><p>Watson entraram na propriedade Pike, Eli percebeu por que motivo</p><p>estava Van Vleet preocupado: no interior da vedação de segurança</p><p>temporária, a casa demolida parecia estar a reconstruir-se sozinha.</p><p>Ao seu lado, Watson ganiu e recuou.</p><p>— Medricas — murmurou Eli, e puxou para baixo a rede da</p><p>vedação para poder passar para o outro lado.</p><p>A reconstrução fazia-lhe lembrar ossos fraturados — vigas de</p><p>suporte e traves do teto unidas de forma incorreta, mas que mesmo</p><p>assim conseguiam suportar o peso. Porém, o mais interessante é</p><p>que a casa já tinha passado a fase do esqueleto. Já havia estuque</p><p>aplicado de modo caótico nas paredes do piso térreo. Alguns pontos</p><p>já estavam revestidos a ripas. Uma equipa de construção teria</p><p>levado semanas a fazer aquilo; era impossível ter acontecido de um</p><p>dia para o outro.</p><p>Deslocou-se cuidadosamente sobre o entulho e os vidros</p><p>partidos, e Watson, ganhando coragem, seguiu-o. Como ainda não</p><p>havia degraus na entrada, Eli teve de trepar até à porta aberta.</p><p>Apontou a lanterna à sua volta, avaliando o que via. Lá dentro, havia</p><p>áreas de gesso cartonado em falta e portas fora de esquadria, mas a</p><p>estrutura era sólida e duradoura. Cheirava-lhe a tinta fresca.</p><p>— Macacos me mordam se foram os índios que fizeram isto —</p><p>disse ele baixinho para Watson.</p><p>Entrou cuidadosamente em cada divisão, sem saber se os</p><p>soalhos lascados aguentariam com o seu peso. Quando abanou o</p><p>corrimão da escada, ele caiu no chão. Os degraus cediam sob as</p><p>suas botas; inclinou-se e viu que não tinham sido pregados até ao</p><p>fim.</p><p>O primeiro andar da antiga casa estava menos completo. Havia</p><p>uma parede inteira aberta para a noite e o teto era um cobertor de</p><p>estrelas. Apenas duas divisões pareciam terminadas: um quarto</p><p>grande ao fim do corredor e a casa de banho ao lado. À medida que</p><p>avançava, Eli ia esmigalhando com os pés pedaços de estuque e</p><p>vidro. Olhou para Watson, preocupado com a segurança do cão.</p><p>O som de água a correr chamou-lhe a atenção, e virou em</p><p>direção à casa de banho. Pensou no sonho que tivera na noite</p><p>anterior. Novamente com a tal mulher. Desta vez, ela estava a abrir</p><p>uma porta e tinha um robe branco vestido e o cabelo enrolado numa</p><p>toalha azul, como se tivesse acabado de sair do chuveiro. Fitara-o</p><p>como se ele tivesse todas as respostas.</p><p>Watson acocorou-se e começou a ganir. Depois deu meia-volta e</p><p>desceu as escadas que nem uma seta, deixando um rasto de tábuas</p><p>soltas atrás de si.</p><p>— Mas que grande cão-polícia me saíste! — murmurou Eli,</p><p>entrando cautelosamente na casa de banho.</p><p>O barulho da água a correr tornou-se mais forte, embora o foco</p><p>da lanterna não revelasse quaisquer instalações sanitárias ou canos.</p><p>Quando o feixe de luz se refletiu nos seus olhos, Eli semicerrou-os;</p><p>depois aproximou-se e deu com um espelho fixado na parede. Era</p><p>um milagre algo tão frágil ter sobrevivido ao equipamento de</p><p>demolição, já que havia tanto vidro partido debaixo das solas dos</p><p>seus sapatos. A superfície estava embaciada, e ele tocou-lhe ao de</p><p>leve com o indicador, esperando limpar essa zona… mas nada</p><p>aconteceu. Se não fosse demasiado sensato, teria pensado que o</p><p>espelho se embaciara de dentro para fora.</p><p>Enquanto segurava a lanterna um pouco mais perto, para ver</p><p>como o espelho estava preso à parede, o vapor esfumou-se na</p><p>forma de duas mãos, com as marcas a surgir por trás do vidro. Eli</p><p>sacou imediatamente da arma, sem saber para onde apontar. À</p><p>parede? Ao espelho? Como é que se pode derrotar um inimigo</p><p>invisível?</p><p>Sentia o coração na boca. As duas mãos apoiaram-se com mais</p><p>força do lado de trás do espelho. E depois, da direita para a</p><p>esquerda, ao contrário, um dedo desenhou letras no vapor: S-O-C-</p><p>O-R-R-O.</p><p>— Caramba! — exclamou Eli, e logo a seguir o espelho ficou</p><p>subitamente limpo diante dos seus olhos, mostrando-lhe o seu</p><p>pânico.</p><p>Saiu da casa de banho e desceu as escadas instáveis para se</p><p>juntar a Watson. Com o cão a segui-lo, saltou pela porta aberta.</p><p>Tinha acabado de transpor a vedação temporária que rodeava a</p><p>estrutura quando a casa se iluminou de repente como uma árvore</p><p>de Natal, tão brilhante que Eli se virou, surpreendido pela beleza</p><p>incongruente de um farol no meio da floresta.</p><p>Tudo isto num edifício onde não havia eletricidade havia vinte</p><p>anos.</p><p>Ross conseguia sentir o cheiro a morte. Pairava nos corredores,</p><p>disfarçado pelo odor a amónia, a roupa de cama e a comprimidos.</p><p>Espreitava-o a cada esquina. Perguntou-se se os residentes olhariam</p><p>para trás ao entrar na casa de repouso, sabendo que não iriam sair</p><p>dali.</p><p>Tinha lá ido naquele dia com a intenção de investigar, na</p><p>esperança de que isso o fizesse deixar de pensar em Lia. Havia uma</p><p>semana que não a via nem tinha notícias dela. Em vez disso,</p><p>recebeu uma série interminável de telefonemas de Rod van Vleet.</p><p>Será que Ross sabia que a casa Pike estava a reconstruir-se sozinha?</p><p>E que havia um polícia que tinha apresentado um relatório no qual</p><p>dizia que todas as luzes no interior se tinham ligado, quando nem</p><p>sequer havia energia elétrica?</p><p>Ross acreditava firmemente que não era possível forçar as</p><p>circunstâncias. Podia pôr o cinto de segurança e mesmo assim bater</p><p>com o carro. Podia atirar-se para a frente de um comboio e</p><p>sobreviver, de alguma forma. Podia esperar anos para encontrar um</p><p>fantasma e ter um a aproximar-se furtivamente quando estava</p><p>demasiado ocupado a apaixonar-se por uma mulher para lhe prestar</p><p>atenção. Por isso, tomou a decisão consciente de deixar de esperar</p><p>por Lia. Ela iria aparecer quando menos esperasse.</p><p>Fora à casa de repouso sem aviso prévio, porque não sabia se</p><p>Spencer Pike concordaria em falar com ele. A única parte animada</p><p>de Pike são os seus olhos, de um azul vivo e arguto. O resto do seu</p><p>corpo estava desgastado, contorcido como as raízes de uma árvore</p><p>obrigada a crescer num espaço demasiado pequeno.</p><p>— Para o diabo com esse de canela e passas — disse Spencer</p><p>Pike.</p><p>— Como?</p><p>— É um péssimo pretexto para um bagel. Se me perguntar, não</p><p>que alguém o tenha feito, um bagel não deve ser doce. É como uma</p><p>sanduíche, por amor da santa! Alguém põe geleia numa sandes de</p><p>queijo e fiambre? —</p><p>Inclinou-se para a frente. — Você trabalha para</p><p>o Van Vleet, pode dar-lhe o recado.</p><p>— Tecnicamente, não trabalho para o Grupo Redhook — disse</p><p>Ross.</p><p>— Trabalha em seguros?</p><p>— Não.</p><p>— É advogado?</p><p>— Não.</p><p>— Tem uma cadeia de lojas de bagels?</p><p>— Hum, não.</p><p>Pike encolheu os ombros.</p><p>— Bem, o que quer saber?</p><p>— Segundo sei, a propriedade pertencia originalmente à sua</p><p>esposa… e passou para as suas mãos após a morte dela, porque não</p><p>tinham filhos.</p><p>— Não é verdade.</p><p>Ross levantou os olhos do bloco de apontamentos.</p><p>— É a informação que consta do testamento que ela fez.</p><p>— Bem, continua a não ser verdade. Eu e a Cissy tivemos um</p><p>bebé, mas nasceu morto.</p><p>— Lamento.</p><p>Pike passou as mãos pelo cobertor que tinha no colo.</p><p>— Foi há muito, muito tempo.</p><p>— A razão por que aqui estou, senhor Pike, é para saber se</p><p>conhece a história daquela terra antes de a ter adquirido.</p><p>— Pertencia à família da minha mulher e foi transmitida de mãe</p><p>para filha ao longo de várias gerações.</p><p>— Alguma vez pertenceu aos Abenaki?</p><p>Pike virou-se lentamente.</p><p>— A quem?</p><p>— Aos nativos americanos que têm protestado contra o projeto</p><p>de investimento imobiliário na propriedade.</p><p>— Eu sei quem são! — O rosto de Pike ficou vermelho como um</p><p>tomate e ele começou a tossir.</p><p>Uma enfermeira aproximou-se, olhou para Ross com ar</p><p>reprovador e falou baixinho com Spencer Pike até a sua respiração</p><p>ter voltado ao normal.</p><p>— Eles não conseguem apresentar nenhuma prova de que é um</p><p>cemitério índio, pois não?</p><p>— Algumas… circunstâncias — disse Ross cuidadosamente —</p><p>levaram à opinião de que a propriedade pode estar assombrada.</p><p>— Ah, é claro que está! Mas não por índios. A minha mulher</p><p>morreu nessa propriedade — disse Pike, num tom grave e</p><p>sincopado.</p><p>O nado-morto; a morte prematura de Cissy Pike; a possibilidade</p><p>de um espírito inquieto… Ross começava a juntar as peças.</p><p>— Morreu de parto?</p><p>Pike abanou a cabeça.</p><p>— Foi assassinada. Por um abenaki.</p><p>Durante a pausa do almoço, Shelby fez os cinco minutos de</p><p>caminho entre a biblioteca e o Gas & Grocery, onde comprava</p><p>habitualmente uma sanduíche. Mas, presentemente, graças ao</p><p>artigo do The New York Times, a pequena loja estava inundada de</p><p>repórteres que tentavam escrever a sua própria história sobre a</p><p>disputa da terra que nunca mais se resolvia. Olhou para Abe</p><p>Huppinworth, que a fitou a pestanejar enquanto varria as pétalas de</p><p>rosa omnipresentes, e virou abruptamente na direção oposta.</p><p>Deu por si a entrar no edifício da câmara municipal, antes mesmo</p><p>de perceber onde se dirigia. Lottie, a secretária municipal, estava</p><p>sentada no seu posto com um livro de dietas.</p><p>— Não percebo — disse ela, erguendo o olhar. — Eles dizem onze</p><p>frações, como se eu fosse comer um condomínio.</p><p>Lottie, que pesava mais de cento e dez quilos desde que Shelby</p><p>morava em Comtosook, fechou o livro e pegou num talo de aipo.</p><p>— Sabes quem inventou os vegetais, Shelby? O diabo. — Deu</p><p>uma dentada. — Devia ter a sensatez de não começar uma dieta</p><p>quando já estou de mau humor.</p><p>— Os repórteres andam a importunar-te?</p><p>— Andam por aqui a farejar sabe-se lá o quê. Acabei por tirar</p><p>fotocópias da escritura da propriedade Pike esta manhã, para ver se</p><p>não me interrompem. — Abanou a cabeça. — Imagino que contigo</p><p>ainda seja pior.</p><p>— Nós desligamos o telefone — disse Shelby, encolhendo os</p><p>ombros.</p><p>— Quem me dera que desaparecessem. Quem me dera que tudo</p><p>isto desaparecesse. O Myrt Clooney contou-me que o papagaio do</p><p>Wally LaFleur começou a cantar baladas da Edith Piaf, de um</p><p>momento para o outro. A máquina do café, aqui no escritório? Não</p><p>conseguimos que faça nada, a não ser limonada. — Sorriu de</p><p>repente para Shelby. — Mas tu não vieste aqui para ouvir as</p><p>lamúrias de uma velha gorda. O que posso fazer por ti?</p><p>Passados dez minutos, a pretexto de querer encontrar uma</p><p>informação para um cliente da biblioteca, Shelby estava sentada na</p><p>cave do edifício, rodeada de caixas de registos municipais. Tinham</p><p>elásticos a separá-los por ano, mas não estavam por ordem: pilhas</p><p>de fichas amarelecidas que registavam o nascimento e a morte dos</p><p>residentes de Comtosook desde 1877 até à atualidade.</p><p>Ross não lhe pedira ajuda. Talvez fosse por isso que ali estava…</p><p>Desde que o confrontara no hospital, ele fazia o possível por evitá-la,</p><p>mas com uma delicadeza que era como uma faca a perfurá-la: um</p><p>bilhete na bancada da cozinha a dizer que voltava entre as quatro e</p><p>as cinco da manhã; um pacote de leite no frigorífico para substituir o</p><p>que ele terminara. As conversas que não tinham sido varridas para</p><p>debaixo do tapete, tornando impossível andar pela casa sem medo</p><p>de tropeçar. Shelby gostava de ter coragem suficiente para obrigar o</p><p>irmão mais novo a sentar-se e dizer-lhe: Não percebes que só faço</p><p>isto por amor? Mas receava que ele pudesse responder-lhe da</p><p>mesma maneira.</p><p>O que ela queria para o irmão era um golpe de sorte que</p><p>invertesse a maré e o mandasse de volta aos braços dela. Mas,</p><p>como não conseguia encontrar maneira de lhe pedir desculpa por ter</p><p>duvidado dele, dar-lhe-ia aquela informação na esperança de que</p><p>fosse o suficiente.</p><p>A caixa dos registos de óbito de 1930 tinha sobrevivido a uma</p><p>inundação no final dos anos cinquenta, e muitos estavam tão</p><p>desvanecidos com marcas de água que Shelby não conseguia ler o</p><p>nome dos falecidos, muito menos algo mais circunstancial. O fundo</p><p>da caixa estava forrado com o Relatório Anual do Município,</p><p>publicado juntamente com um calendário de 1966. «Comtosook»,</p><p>leu ela na capa, «deriva da palavra abenaki “kôdtôzik”, ou “o que</p><p>está escondido”, referindo-se sem dúvida à riqueza de granito</p><p>encontrada nas profundezas da Pedreira dos Anjos.»</p><p>Sem dúvida, pensou Shelby.</p><p>Foi um bocadinho mais fundo e tirou a pilha de registos de óbito</p><p>referentes a 1932. Não estavam tão manchados, mas o elástico</p><p>estava tão ressequido, que se partiu nas suas mãos. As fichas</p><p>espalharam-se-lhe pelo colo, libertando um leve cheiro a enxofre e a</p><p>flores secas. Shelby começou a examiná-las rapidamente.</p><p>BERTELMAN, ADA. MONROE, RAWLENE. QUINCY, OLIVE.</p><p>Havia duas fichas que estavam coladas; Shelby reparou nisso</p><p>mais ou menos ao mesmo tempo que percebeu que ambas tinham o</p><p>nome «Pike». A primeira era a certidão de óbito de um bebé nado-</p><p>morto sem nome, às 37 semanas de gestação. Hora aproximada da</p><p>morte: 11h32. Colada nas costas desta, estava outra certidão de</p><p>óbito, a da senhora Spencer Pike. Hora da morte: 11h32.</p><p>Shelby tremeu de frio apesar do calor da cave. Não era apenas o</p><p>facto de aquela mulher, a tal senhora Spencer Pike, que morrera</p><p>quando tinha apenas dezoito anos, não ter vivido o suficiente para</p><p>segurar o seu bebé. Nem mesmo o facto de o bebé não ter chegado</p><p>a respirar. Tinha a ver com a substância que colara aquelas duas</p><p>fichas durante tantos anos. Shelby não era nenhuma especialista,</p><p>mas só podia ser sangue.</p><p>Ruby Weber não gostava de admiti-lo, mas estava a ficar velha.</p><p>Dizia a toda a gente que tinha setenta e sete anos, embora na</p><p>verdade tivesse oitenta e três. As suas ancas moviam-se como</p><p>dobradiças enferrujadas e os olhos ficavam enevoados quando ela</p><p>menos esperava. O pior de tudo era que às vezes adormecia a meio</p><p>do que estava a dizer, passando pelas brasas como… uma velhota.</p><p>Supunha que um dia iria acabar por adormecer e esquecer-se de</p><p>acordar.</p><p>Mas não até Lucy estar bem. Ruby sabia que o medicamento</p><p>estava a ajudar a bisneta, mas a um preço: os pesadelos de Lucy</p><p>tinham-se escapulido pelo corredor e alojado no seu próprio quarto.</p><p>Agora, onde e quando quer que dormisse, Ruby dava por si a reviver</p><p>o telefonema que lhe dera cabo da vida.</p><p>Tinha sido numa segunda-feira chuvosa, oito anos antes. Ela</p><p>tinha atendido, a pensar que era da farmácia, a dizer-lhe que o</p><p>medicamento para a sua artrite tinha chegado; ou que talvez fosse</p><p>Luxe, a sua filha, a ligar do mercado para a avisar de que iria chegar</p><p>uns minutos atrasada. Mas a voz do outro lado da linha pertencia a</p><p>um fantasma.</p><p>Ainda estava sentada com o telefone na mão, a tremer, quando</p><p>Luxe chegou com as mercearias.</p><p>— Nem queira saber o tempo que estive na caixa — disse Luxe.</p><p>— Parece que as pessoas andam a açambarcar</p><p>comida para encher</p><p>abrigos antiaéreos. — A seguir, olhou mais atentamente para o rosto</p><p>de Ruby. — Mãe? O que se passa?</p><p>Ruby tinha esticado a mão, tocado na pele da filha, lisa e cálida</p><p>como uma pedra. Como se dizia a uma pessoa que não éramos</p><p>quem ela pensava?</p><p>De volta ao presente, sentiu umas mãos sobre os ombros, a</p><p>abaná-la suavemente.</p><p>— Avó. Avozinha.</p><p>Ruby não conseguiu responder; a sua cabeça ainda estava</p><p>preenchida por Luxe, que tinha caído agarrada ao peito quando ela</p><p>lhe disse quem tinha telefonado; quem Luxe era na realidade; e</p><p>quem Ruby não era. Ainda conseguia ver o rosto de Luxe, pálido</p><p>como cera e imóvel, através da porta das Urgências, enquanto o</p><p>médico vinha cá fora dizer que a paragem cardíaca tinha sido fatal.</p><p>Que estúpida Ruby tinha sido. Mantivera o coração de Luxe em</p><p>segurança todos aqueles anos; olhando para trás, devolvê-lo parecia</p><p>insensato e irresponsável.</p><p>No dia em que a mãe morreu, Meredith estava a fazer uma pós-</p><p>graduação em Boston. Chegou ao hospital descontrolada, exigindo</p><p>um milagre. Ruby quase esperara que o obtivesse, tal era a sua</p><p>fúria. Imagine-se: Luxe a puxar para trás o lençol que a cobria na</p><p>maca e a sentar-se. Não era a primeira vez que acontecia um</p><p>milagre desses. A própria Ruby já o presenciara.</p><p>Nunca tinha contado a Meredith aquilo que contara a Luxe nos</p><p>momentos antes de o seu coração se ir abaixo. Mas agora… com</p><p>Lucy a sofrer… bem, Meredith era capaz de compreender como o</p><p>amor por um filho podia enlouquecer uma mulher.</p><p>— Querida — disse Ruby de repente, querendo contar-lhe tudo.</p><p>— Lembras-te de quando a tua mãe morreu?</p><p>— Oh, avó — suspirou Meredith. — Era com isso que estava a</p><p>sonhar?</p><p>A sua mão fria na face de Ruby foi quanto bastou para ela</p><p>compreender que não podia cometer o mesmo erro duas vezes.</p><p>Decidiu pôr um torniquete no passado de uma vez por todas, até</p><p>este mirrar e desaparecer. Esta era a sua vida agora. Spencer Pike</p><p>não voltara a telefonar e, se dependesse dela, podia ir para o</p><p>Inferno!</p><p>O cão deixou-o nervoso. Estava a pouco mais de um metro da</p><p>bota de Ross, uma grande confusão de pele completamente</p><p>relaxada à exceção dos olhos escuros, que se tinham cravado nele</p><p>no momento em que entrara no gabinete do detetive e que não</p><p>haviam pestanejado desde então.</p><p>— Senhor Wakeman — disse o detetive Rochert. — Ponha-se no</p><p>meu lugar por um minuto. Um tipo qualquer, um investigador</p><p>paranormal, entra aqui e diz-me para reexaminar o caso de um</p><p>homicídio não resolvido que aconteceu há setenta anos. Vou</p><p>recolher o depoimento de quem? De um fantasma? E, mesmo que</p><p>apanhe o criminoso, o mais provável é ele estar morto ou ter mais</p><p>de noventa anos. Nenhum procurador no Vermont vai aceitar um</p><p>caso desses.</p><p>Ross olhou para o cão, que arreganhou os dentes. O detetive</p><p>estalou os dedos e o cão deixou-se cair no chão, inerte.</p><p>— Pensei que, dada a disputa da propriedade, era capaz de achar</p><p>o caso mais oportuno do que parece. Eu só digo que há uma grande</p><p>diferença entre uma mulher morrer de parto e uma mulher ser</p><p>assassinada. Talvez o Spencer Pike esteja senil; talvez o registo dos</p><p>óbitos em 1932 não primasse pela exatidão. Mas, por outro lado,</p><p>talvez seja essa a peça que falta para perceber por que razão os</p><p>Abenaki acham que têm direito àquela terra.</p><p>Eli inclinou-se para a frente, com os olhos escuros</p><p>repentinamente duros como pedra.</p><p>— Você veio ter comigo, especificamente, porque sabe que sou</p><p>meio abenaki, não foi? Pensa que vou reabrir o caso porque lhes</p><p>devo isso.</p><p>Ross abanou a cabeça, surpreendido com aquela explosão.</p><p>— Vim ter consigo porque é o único detetive de serviço —</p><p>replicou.</p><p>Isto calou Rochert, mas por pouco tempo.</p><p>— Senhor Wakeman, acho que atuamos de forma diferente. O</p><p>seu trabalho tem tudo a ver com palpites; o meu baseia-se em</p><p>provas palpáveis.</p><p>Ross tinha aprendido havia muito tempo a não tentar converter</p><p>céticos. A verdade é que havia muita gente que acreditava em</p><p>fantasmas e, assim que alguém vivenciava uma experiência</p><p>paranormal, juntava-se às hostes. Os cínicos eram necessários, pois</p><p>limitavam o número de fraudes. Não ia tentar convencer Eli Rochert</p><p>da existência de espíritos, mas também não ia ficar ali e deixá-lo</p><p>caluniar a sua investigação.</p><p>— Acontece que o meu trabalho é mais parecido com o seu do</p><p>que pensa. Não é verdade que a ligação de um suspeito ao local do</p><p>crime se baseia na ideia de que a pessoa deixa lá sempre uma parte</p><p>de si?</p><p>— Os investigadores forenses podem recolher impressões</p><p>digitais. Podem recolher… — A voz morreu-lhe nos lábios, e Ross viu-</p><p>o franzir a testa, embrenhado nos seus pensamentos. Passado um</p><p>momento, voltou a falar. — Mesmo que este homicídio seja resolvido</p><p>setenta anos depois, isso não vai mudar nada. A esposa do Pike</p><p>continua morta. Ele continua a ser o proprietário legal da terra. E</p><p>continua a ter o direito de a vender.</p><p>— Isso depende — disse Ross.</p><p>— De quê?</p><p>— De quem cometeu realmente o homicídio naquela noite.</p><p>Eli não estranhava o facto de o Departamento da Polícia de</p><p>Comtosook ter guardado o processo relativo a uma investigação de</p><p>um crime de homicídio não desvendado efetuada havia tanto tempo.</p><p>Não se devia a nenhuma iniciativa para continuar a acompanhar</p><p>questões pendentes, mas antes à absoluta incompetência na</p><p>manutenção dos registos. Sinceramente, nunca ninguém tinha</p><p>pensado em fazer uma limpeza aos arquivos. Eli sacudiu uma teia de</p><p>aranha do cabelo e tirou a volumosa caixa de cartão da pilha</p><p>desordenada.</p><p>O chefe Follensbee não queria saber o que ele fazia nas horas</p><p>mortas. Enquanto subia as escadas para voltar à sua secretária,</p><p>disse a si mesmo que a razão para estar a fazer aquilo não tinha</p><p>nada a ver com a situação que vivera três noites atrás, na</p><p>propriedade Pike; nem com a dúvida persistente de que a mulher</p><p>que aparecia de forma recorrente nos seus sonhos o fazia por algum</p><p>motivo. Estava a reexaminar o caso porque nunca tinha sido</p><p>solucionado, e as técnicas forenses atualmente disponíveis poderiam</p><p>responder às perguntas que tinham ficado sem resposta em 1932.</p><p>Watson olhou para cima quando o dono entrou no gabinete e</p><p>depois decidiu que não valia a pena dar-se ao trabalho de se</p><p>levantar. Olhou desinteressado enquanto o dono despejava o</p><p>conteúdo da caixa em cima da secretária. Uma pasta de</p><p>documentos, um monte de fotografias do local do crime, um saco de</p><p>papel pardo, uma caixa de charutos e um nó corredio.</p><p>Eli tirou um par de luvas de borracha da secretária e pegou na</p><p>corda. Não tinha nada de especial: era como qualquer outra corda</p><p>industrial que ainda agora era possível encontrar na área. Quem</p><p>quer que tivesse investigado o caso na altura tinha sido</p><p>suficientemente esperto para deixar o nó feito; passados tantos</p><p>anos, continuava intacto.</p><p>Pegou em algumas das fotos do local do crime. Uma mostrava a</p><p>jovem mulher, deitada com a corda à volta do pescoço. O peito e o</p><p>pescoço tinham arranhões em carne viva, não da corda, mas das</p><p>unhas — ela tentara libertar-se. Noutra, via-se um alpendre do que</p><p>parecia ser um barracão. Eli olhou mais de perto: havia uma trave</p><p>no teto. Com base na poça daquilo que presumia serem fluidos</p><p>corporais nas tábuas do chão, devia ser o sítio onde o corpo estava</p><p>pendurado. Um instantâneo das pernas nuas da vítima, cheias de</p><p>hematomas.</p><p>Dentro do saco de papel pardo, havia uma camisa de noite</p><p>manchada e um par de sapatos de mulher. No interior da caixa de</p><p>charutos, estava uma pequena bolsa de couro, que pendia de um</p><p>cordão de couro cru partido, e um cachimbo de álamo com fornilho</p><p>de serpentina. Eli pegou no cachimbo e virou-o. O seu avô tinha</p><p>entalhado um igual. Inalou, cheirando o tabaco doce que associava</p><p>à infância.</p><p>Pondo-o de lado, abriu o relatório da investigação policial.</p><p>CASO NÚMERO: 32-01</p><p>AGENTE DE INVESTIGAÇÃO: Detetive F. Olivette</p><p>NOME DA VÍTIMA: Cecelia Pike (também conhecida como senhora Spencer</p><p>Pike)</p><p>DATA DE NASCIMENTO: 09-11-13</p><p>IDADE: 18</p><p>MORADA: Otter Creek Pass, Comtosook, Vermont</p><p>HORA/DATA DO INCIDENTE: 00h00-09h00, 19 de setembro de 1932</p><p>LOCAL DO INCIDENTE: Propriedade Pike, Otter Creek Pass, Comtosook,</p><p>Vermont</p><p>INCIDENTE:</p><p>A 19 de</p><p>setembro de 1932, às 09h28, o professor Spencer Pike (nascido a 13-</p><p>05-06) telefonou para o Departamento da Polícia de Comtosook e comunicou o</p><p>homicídio da sua esposa, Cecelia «Cissy» Pike. O professor Pike disse que a</p><p>morte da esposa tinha ocorrido na sua residência entre as 00h00 e as 09h00.</p><p>Eu e o detetive Duley Wiggs deslocámo-nos à propriedade Pike para investigar</p><p>o incidente.</p><p>Ao chegarmos à residência, fomos recebidos pelo professor Pike. Estava</p><p>visivelmente perturbado. Encaminhou-nos para o barracão do gelo1, onde o</p><p>corpo da esposa tinha sido encontrado. A vítima estava deitada de costas, em</p><p>frente do barracão. Verifiquei se a vítima tinha pulsação, mas não detetei</p><p>nada. O corpo estava frio ao toque. A seguir, chamei o médico-legista.</p><p>A vítima envergava um vestido às flores e botas e tinha um laço de corda à</p><p>volta do pescoço. O peito e o pescoço apresentavam arranhões profundos e</p><p>ensanguentados. O telhado do alpendre tinha sido construído usando grandes</p><p>vigas de sustentação. A inspeção inicial sugere que a vítima estava pendurada</p><p>de uma dessas vigas. Foram tiradas fotografias do corpo e do local.</p><p>A área foi examinada, em busca de provas. Na parte posterior esquerda em</p><p>relação ao corpo, foi encontrada uma bolsa de cabedal enfiada num cordão de</p><p>couro cru. Depois de inspecionada, verificou-se que o cordão estava partido. A</p><p>bolsa continha um preparado de ervas. Debaixo do alpendre, foi localizado um</p><p>cachimbo de álamo e serpentina. Note-se que não foram encontrados no local</p><p>quaisquer meios de que a vítima se tivesse servido para alcançar a trave</p><p>sozinha.</p><p>O professor Pike relatou que se tinha casado com Cecelia em 1931. Confirmou</p><p>a sua ocupação como professor de antropologia na Universidade do Vermont.</p><p>Declarou que a senhora Pike estava grávida de nove meses e tinha entrado</p><p>em trabalho de parto na noite de 18 de setembro. Segundo ele, a esposa foi</p><p>auxiliada pela criada e deu à luz um bebé nado-morto do sexo feminino, às</p><p>23h00. Disse ainda que a senhora Pike ficou simultaneamente deprimida e</p><p>exausta depois de dar à luz. Segundo ele, a esposa foi deitar-se perto da</p><p>meia-noite. Alegadamente, terá sido esta a última vez que a senhora Pike foi</p><p>vista com vida.</p><p>O professor Pike relatou que, depois de a esposa ter ido deitar-se, foi para o</p><p>escritório e bebeu uns copos. Estima ter ingerido seis uísques com gelo. Diz</p><p>que adormeceu na cadeira do escritório e só acordou por volta das nove da</p><p>manhã. Nessa altura, terá ido, alegadamente, ver como estava a esposa e</p><p>encontrou o quarto vazio e a janela partida. O professor Pike disse que tinha</p><p>corrido a propriedade à procura da esposa, antes de tê-la localizado</p><p>pendurada na trave do alpendre do barracão do gelo. Afirmou ter usado uma</p><p>faca para cortar a corda e baixar a esposa da trave.</p><p>O cachimbo e a bolsa recuperados foram mostrados ao professor Pike. Ele</p><p>reconheceu-os como sendo propriedade de um abenaki chamado Gray Wolf.</p><p>Afirmou ter tido de expulsar Gray Wolf à força da sua propriedade, no dia 18</p><p>de setembro, ao meio-dia. Disse que o tinha visto na companhia da esposa, a</p><p>assediá-la. Disse saber que o homem era um vagabundo que tinha sido</p><p>libertado recentemente da prisão, depois de cumprir pena por homicídio, em</p><p>Burlington. E também disse que tinha confrontado Gray Wolf e insistido para</p><p>que ele saísse da propriedade. Alegadamente, Gray Wolf teve de ser expulso</p><p>do local.</p><p>O professor Pike também não soube dar conta do paradeiro da criada, que</p><p>não estava presente quando ele acordou, às nove da manhã. Mas as coisas</p><p>dela continuavam na casa. O quarto não tinha sinais de luta. O professor Pike</p><p>disse que a criada, de catorze anos, não tinha força suficiente para poder ter</p><p>feito mal à sua esposa. Disse que a sua fraca constituição podia tê-la levado a</p><p>fugir depois de encontrar a patroa enforcada, e que isso não o surpreendia.</p><p>O médico-legista, o doutor J. E. DuBois, chegou às 10h00 e examinou o corpo</p><p>da vítima. As observações iniciais sugerem morte por asfixia, compatível com</p><p>enforcamento.</p><p>Eli folheou várias páginas. Descrições da casa e de vários objetos</p><p>no quarto de Cissy Pike. Sinais de entrada forçada e de luta. O</p><p>relatório do médico-legista. Um conjunto de impressões digitais,</p><p>tiradas à vítima post mortem. Uma entrevista com Pike e outra com</p><p>Gray Wolf, que se apresentara voluntariamente na esquadra para ser</p><p>interrogado. Uma declaração dos homens que constituíam o álibi de</p><p>Gray Wolf para essa noite. Um mandado de detenção para Gray</p><p>Wolf, emitido por um juiz um dia depois e que nunca tinha sido</p><p>cumprido porque Gray Wolf desaparecera, simplesmente.</p><p>Eli olhou para a corda, para a camisa de noite e para o cachimbo.</p><p>No mínimo, podia enviar aqueles objetos para análise de ADN, para</p><p>ver se Gray Wolf tinha deixado algum registo dos seus atos.</p><p>Afagou distraidamente a cabeça de Watson. Era possível que</p><p>Gray Wolf tivesse deixado a vila porque sabia que ia ser condenado</p><p>mais uma vez por homicídio. Mas também era possível que nunca</p><p>tivesse sido encontrado por estar na propriedade do Otter Creek</p><p>Pass, a sete palmos debaixo da terra, cortesia de Spencer Pike.</p><p>O que significaria, ironicamente, que a propriedade era um</p><p>cemitério índio.</p><p>Enquanto Ross via os relâmpagos causados pelo calor a ligarem</p><p>as estrelas como um desenho de ligar os pontos, pensou na primeira</p><p>vez que tinha morrido. Não conseguia lembrar-se de grande coisa, a</p><p>não ser do instante em que olhara para o céu tracejado, vira a sua</p><p>oportunidade e abrira os braços num gesto de boas-vindas. Se</p><p>fizesse um esforço, conseguia recordar o cheiro a queimado do seu</p><p>cabelo; a rigidez dos seus membros enquanto a corrente o percorria.</p><p>Gostaria de poder falar da travessia para o outro lado e da luz</p><p>branca e brilhante, mas, se tal acontecera, não se lembrava de</p><p>nada.</p><p>O céu voltou a rasgar-se, uma linha entrecortada que se manteve</p><p>visível por momentos depois de o raio ter desaparecido. Desta vez,</p><p>seguiu-se o som de um trovão. Ross sentiu o primeiro pingo de</p><p>chuva na testa.</p><p>Havia algumas regras universais para a investigação paranormal</p><p>efetuada no exterior, que tinham a ver com a temperatura e as</p><p>condições meteorológicas. De pouco valia tirar fotografias a</p><p>espectros que não passavam de geada provocada pela sua própria</p><p>respiração; pela mesma razão, a chuva e a neve deviam ser evitadas</p><p>a todo o custo. Ross tinha ignorado ostensivamente essas regras de</p><p>vez em quando, porque as tempestades elétricas providenciavam</p><p>tanta energia atmosférica, que os espíritos podiam materializar-se</p><p>com muito mais facilidade. Uma vez, os Warburtons tinham sido</p><p>chamados pelo estado do Connecticut a seguir a uma trovoada,</p><p>porque um camião municipal atropelara uma mulher que ia a</p><p>atravessar a rua. Embora houvesse seis testemunhas oculares do</p><p>acidente e uma grande amolgadela no guarda-lamas do camião, a</p><p>senhora atropelada desaparecera pura e simplesmente. Curtis</p><p>concluíra que era a energia que havia no ar que tornara aquele</p><p>espírito suficientemente sólido a ponto de deixar literalmente a sua</p><p>marca.</p><p>Ross instalara-se naquela pequena clareira desde a hora do</p><p>jantar, esperando que as suas discussões com Spencer Pike e Eli</p><p>Rochert o pudessem ajudar a conjurar o que andava a assombrar</p><p>aquela terra, mas a chuva ia estragar-lhe os planos. Despiu</p><p>bruscamente o casaco e enrolou-o à volta da câmara de vídeo para a</p><p>proteger. Um grande raio desceu dos céus e foi cair a poucos metros</p><p>de distância, fazendo o chão molhado assobiar.</p><p>A última coisa que ele queria fazer era ir-se embora; ainda só</p><p>eram oito da noite e já tinha sido bastante difícil entrar à socapa no</p><p>terreno. Tivera de ir pela floresta, uma vez que havia carrinhas das</p><p>notícias paradas ao longo da parte da frente da propriedade. Os</p><p>repórteres tinham-se multiplicado como baratas desde que o The</p><p>New York Times publicara a história sobre a propriedade em</p><p>Comtosook, e evitá-los estava a tornar-se um desafio cada vez maior</p><p>para Ross. Arrumar as coisas significava carregar o equipamento</p><p>pelo mesmo caminho por onde viera, desta vez no meio de um</p><p>dilúvio.</p><p>Pôs o saco da câmara ao ombro e enfiou a lanterna</p><p>nos calções,</p><p>depois baixou a cabeça e começou a caminhar em direção à floresta.</p><p>O solo congelado, agora molhado, escorregava debaixo dos seus</p><p>pés. Quando esbarrou numa pessoa que avançava pela floresta com</p><p>tanta pressa quanto ele tinha para sair de lá, praguejou baixinho.</p><p>Não tinha de revelar a sua identidade. Diria que também era</p><p>repórter; com a sua câmara, ninguém desconfiaria.</p><p>Ergueu o rosto, com um pedido de desculpa nos lábios, e</p><p>deparou-se com Lia.</p><p>Eli tinha notado que, ultimamente, havia um determinado</p><p>alimento para cão que cheirava a carne. Embora não fosse carne —</p><p>ele sabia disso, pois tinha lido os ingredientes no rótulo da lata —,</p><p>processavam-na de tal forma, que bastava aproximar o rosto para</p><p>lhe virem à cabeça imagens de costeletas e bifes, de assados e</p><p>hambúrgueres grelhados na chama. Watson parecia bastante feliz,</p><p>comendo tão avidamente que as suas orelhas estavam</p><p>constantemente a cair para dentro da tigela da comida. Talvez Eli</p><p>pudesse telefonar para o fabricante e descobrir qual o tipo de molho</p><p>que usavam. Talvez pudesse deitá-lo por cima do seu maldito tofu!</p><p>O telefone tocou, e ele esticou-se para pegar no auscultador.</p><p>— Eli — disse uma voz de mulher. — O que estás a fazer em casa</p><p>num sábado à noite?</p><p>Ele sorriu.</p><p>— E tu, Frankie, o que estás a fazer a trabalhar?</p><p>Frankie Martine era investigadora especializada em ADN e uma</p><p>velha amiga. Conhecera-a numa conferência forense, onde ela o</p><p>vencera a jogar Quarters. Agora, vivia no Maine e, embora Eli tivesse</p><p>dito inúmeras vezes que ia visitá-la, só o tinha feito dois dias antes,</p><p>quando lhe levara pessoalmente as provas do homicídio de Cissy</p><p>Pike. Na verdade, era a sua única opção, pois o seu chefe nunca</p><p>aceitaria gastar dinheiro dos contribuintes em testes de ADN que</p><p>não iriam dar em nada, e Frankie tinha concordado em fazê-los</p><p>como um favor pessoal.</p><p>— Estou a trabalhar porque quem se diz meu amigo faz-me ficar</p><p>aqui presa no laboratório — disse ela. — Esqueces-te depressa.</p><p>Eli sentou-se.</p><p>— Tens alguma coisa boa para mim?</p><p>— Depende da tua definição de boa. Consegui recolher ADN da</p><p>saliva que estava no cachimbo. Também consegui ADN na corda, a</p><p>partir das células epiteliais. Parecia ser uma mistura de dois perfis</p><p>distintos. O primeiro, retirado do laço, pertencia a uma mulher,</p><p>presumo que seja a tua vítima. O segundo veio da ponta da corda e</p><p>pertencia a um homem.</p><p>— Bingo!</p><p>— Nem por isso — corrigiu Frankie. — O ADN pertencia a um</p><p>homem diferente daquele cuja saliva está no cachimbo.</p><p>A cabeça de Eli entrou em turbilhão: partindo do princípio de que</p><p>o cachimbo pertencia a Gray Wolf e que tinha sido ele que enforcara</p><p>Cissy Pike, o seu ADN não deveria estar na corda? E, se não estava,</p><p>seria isso suficiente para o ilibar? E se o ADN que estava na corda,</p><p>juntamente com o da vítima, não era dele… de quem seria? Do</p><p>agente de investigação? De Spencer Pike?</p><p>— Eli, Eli. — A voz de Frankie arrancou-o ao seu devaneio. —</p><p>Consigo ouvir as engrenagens do teu pensamento.</p><p>— Desculpa. — Abanou a cabeça para desanuviar. — E a bolsa de</p><p>remédios?</p><p>— O quê?</p><p>— Aquela coisinha de couro.</p><p>— Ah, isso! — disse Frankie. — Continuo a obter resultados</p><p>errados. Acho que há qualquer coisa que está a falhar nos testes.</p><p>— Como é que sabes que os resultados estão errados, se ainda</p><p>não tens respostas?</p><p>— São esquisitos, apenas isso.</p><p>Eli franziu o sobrolho.</p><p>— Esquisitos do tipo: é ADN de extraterrestre… ou esquisitos do</p><p>tipo: não consegues obter resultados por ser tão antiga?</p><p>— Esquisitos do tipo: deixa-me em paz, para eu poder dizer-te</p><p>depois.</p><p>— Quando? — exigiu Eli.</p><p>— Dois minutos depois do que teria sido se me tivesses deixado</p><p>desligar o telefone.</p><p>— Obrigado, Frankie.</p><p>— Não me agradeças — disse ela. — Quando acabar, és capaz de</p><p>não querer fazê-lo.</p><p>Ethan enfiou a cabeça na casa de banho, onde a mãe estava a</p><p>tomar um banho de espuma.</p><p>— Entra — disse ela, e ele avançou devagar, mantendo</p><p>cuidadosamente os olhos no chão de mosaico. Ela estava coberta de</p><p>espuma do pescoço aos pés, mas mesmo assim. Era sua mãe… e</p><p>esta palavra parecia estranha quando associada à palavra nua.</p><p>— Eth — disse ela, a rir. — Estou perfeitamente decente.</p><p>Ele arriscou um olhar: estava mesmo. O rosto era a única parte</p><p>do corpo que a espuma deixava visível.</p><p>— Não consigo abrir isto — disse Ethan, estendendo-lhe um</p><p>frasco de manteiga de amendoim.</p><p>— Ah. — A mãe agarrou no frasco, desenroscou a tampa e</p><p>devolveu-lho. Os lados do frasco ficaram cheios de sabonete. — O</p><p>que andas tu a tramar?</p><p>— Estou a fazer «formigas no tronco». Para comer durante o</p><p>filme.</p><p>Tinham alugado uma fita chata e lamechas; Ethan tinha</p><p>esperança de conseguir convencer a mãe a ver antes Assalto ao</p><p>Arranha-Céus 2, que ia passar num dos canais por cabo. Olhou para</p><p>a janela, onde se via a chuva a escorrer.</p><p>— Que merda não podermos ir lá para fora.</p><p>— Ethan…</p><p>— Bem, não deixa de ser uma merda, mesmo que não deva dizê-</p><p>lo.</p><p>Quando a campainha da porta tocou, ambos deram um salto.</p><p>Não era apenas por não estarem à espera de que alguém passasse</p><p>por lá às nove e meia da noite de um sábado; a questão é que</p><p>nunca ninguém passava por lá. Ethan viu o rosto da mãe ficar tão</p><p>branco quanto a espuma que a rodeava.</p><p>— Aconteceu alguma coisa ao Ross — sussurrou, e fez um</p><p>movimento súbito para se pôr em pé na banheira.</p><p>Ethan virou a cara antes de ser obrigado a vê-la. Ela enfiou o</p><p>roupão, enrolou uma toalha azul à volta do cabelo e depois desceu</p><p>as escadas a toda a velocidade.</p><p>Ele podia ter ido atrás dela. O aipo e as passas estavam à espera,</p><p>na bancada da cozinha. Mas, em vez disso, deu por si a pensar na</p><p>única parte da mãe que vislumbrara antes de se virar: um pé a sair</p><p>do meio da espuma.</p><p>Não fazia ideia porquê, mas ver aquilo… fazia-lhe lembrar a noite</p><p>em que tinha ido caçar fantasmas com o tio.</p><p>Nem nos seus sonhos mais loucos Eli se imaginara a colaborar</p><p>com um investigador paranormal. Em sua opinião, as provas eram</p><p>algo que podia guardar na mão, e não na cabeça. Mas a chamada</p><p>de Frankie naquela noite tinha mudado tudo. O ADN do alegado</p><p>assassino não estava na corda, mas em contrapartida estava lá o</p><p>ADN de outra pessoa. Nenhuma destas circunstâncias por si só</p><p>determinava a condenação ou absolvição… mas, avaliadas no devido</p><p>contexto, poderiam fazê-lo. Eli precisava de falar com alguém que</p><p>pudesse preencher as lacunas históricas, e esse alguém era Ross</p><p>Wakeman.</p><p>Estava no alpendre, com a chuva a bater no telhado metálico por</p><p>cima dele, e tocou à campainha uma segunda vez. Wakeman</p><p>deixara-lhe o número de telefone e a morada, «para o caso», dissera</p><p>ele a Eli, «de mudar de ideias em relação a reabrir o caso». O olhar</p><p>atento de Eli já reparara no skate encostado à parede e no par de</p><p>socas de jardinagem amarelas ao lado. Isso surpreendeu-o. Ele tinha</p><p>um bom instinto, e Ross Wakeman não lhe parecera propriamente</p><p>um pai de família. Sabia que havia alguém em casa, pois o carro</p><p>estava parado no caminho de acesso e ele vira uma silhueta através</p><p>de uma janela iluminada no piso superior. Bateu à porta com força.</p><p>— Está alguém em casa?</p><p>Ouviu o clique sistemático dos fechos a serem abertos. Viu</p><p>qualquer coisa azul a passar pela janela lateral; uma manga de</p><p>veludo frisado. A porta abriu-se e uma voz apreensiva interpelou-o:</p><p>— Posso ajudá-lo?</p><p>Mas Eli não foi capaz de responder. Não conseguia deixar de</p><p>olhar atónito para a mulher com quem andava a sonhar.</p><p>Ethan mergulhou a mão na espuma e soprou-a ao de leve.</p><p>Quando as luzes se tinham apagado na casa assombrada, sentira um</p><p>cheiro parecido. Levantou-se e apagou a luz, mergulhando a casa de</p><p>banho na escuridão. Agora, com o aroma floral a envolvê-lo e a</p><p>humidade a entranhar-se, era precisamente como naquela noite.</p><p>O tio perguntara-lhe se tinha visto alguma coisa e ele dissera que</p><p>não, que estava escondido. Mas a verdade é que tinha espreitado</p><p>uma vez e vira alguma coisa. Um movimento no escuro. A princípio,</p><p>pensara que era o tio a voltar, mas não. Esforçara-se por ver o perfil</p><p>à sua frente, fino como linha de pesca. Um rosto, ou talvez não; não</p><p>conseguira captá-lo na altura, nem</p><p>conseguia agora.</p><p>Só havia uma coisa de que Ethan tinha a certeza, algo que o</p><p>espetava como uma faca lançada ao alvo: aquele cheiro a flores</p><p>estava presente e depois desaparecera. O que quer que fosse,</p><p>seguira o tio para o exterior, e não o contrário.</p><p>Um raio quebrou o feitiço.</p><p>— Voltou — disse Ross, sem reparar que Lia tinha os olhos</p><p>vermelhos e inchados, e que estava a abanar a cabeça.</p><p>Tinha voltado para ele, e só por esse pequeno milagre ele faria o</p><p>que fosse preciso para a manter ali. Naquele momento, tinha a</p><p>certeza de que era capaz de enfrentar uma centena de repórteres.</p><p>Era capaz de fazer frente ao marido dela. Era capaz de parar a</p><p>trovoada, se necessário.</p><p>— Vim despedir-me — replicou Lia.</p><p>Ross encaixou as palavras como um soco. Não conseguia explicar</p><p>porque se sentia assim ao pé daquela mulher; por que razão a sua</p><p>pele vibrava na presença dela e as pontas dos dedos ficavam frias.</p><p>Até certo ponto, acreditara que Lia sentia o mesmo. Havia anos que</p><p>andava à procura da resposta para a morte de Aimee; só</p><p>recentemente percebera que andava a fazer a pergunta errada.</p><p>Para poder agarrar algo diferente, tinha de soltar o que segurava.</p><p>— Não.</p><p>A chuva acachapava-lhe o cabelo e escorria-lhe pelo rosto. Não</p><p>sabia o que fazer para que Lia compreendesse que uma despedida</p><p>era uma decisão conjunta, que a pessoa não podia deixar-nos se</p><p>não estivéssemos dispostos a libertá-la. Portanto, em vez disso,</p><p>estendeu os braços para a agarrar.</p><p>Segurou-lhe o rosto entre as mãos e beijou-a. Saboreou a dúvida</p><p>na sua língua e a dor no céu da sua boca. Engoliu-as e voltou a</p><p>bebê-las. Assim consumida, ela não podia deixar de ver como ele</p><p>estava vazio por dentro e como, gole a gole, ela o preenchia.</p><p>A tempestade ganhou força, com as faíscas a descreverem arcos</p><p>azuis e os trovões a ribombarem sob os seus pés. Lia afastou-se</p><p>dele, de olhos arregalados e molhados.</p><p>— Espera — disse Ross, mas ela deu meia-volta e começou a</p><p>correr pela floresta.</p><p>Ele seguiu-a como um caçador, atento aos reflexos brancos da</p><p>sua gola. Ela atravessou rapidamente a clareira escorregadia e</p><p>coberta de neve onde Ross fizera a maior parte da sua investigação,</p><p>correndo como uma seta por entre os montinhos de terra que</p><p>tinham voltado a aparecer de um momento para o outro.</p><p>Desapareceu por entre as árvores.</p><p>Tanto quanto Ross se lembrava, ainda não tinha estado naquela</p><p>parte da propriedade. Sentia uma opressão nos pulmões, um aperto</p><p>de cada vez que respirava, mas não parou de correr. Lia enveredara</p><p>por um caminho estreito, cheio de pinheiros jovens e de matagal</p><p>coberto de gelo. Ross sentiu espinhos a prenderem-se nos seus</p><p>atacadores e a arranharem-lhe as barrigas das pernas, e depois, de</p><p>repente, eclipsaram-se milagrosamente. A terra descongelara</p><p>debaixo dos seus pés, deixando uma pequena parcela coberta de</p><p>dúzias de rosas brancas espezinhadas.</p><p>Lia também olhou para elas, mas não parou. E Ross, que não a</p><p>perdera de vista, viu as pernas dela passarem diante de duas</p><p>lápides, as mesmas em que ele bateu com a bota passado um</p><p>momento, fazendo-o estatelar-se na lama.</p><p>Sem fôlego e atordoado, esforçou-se por se pôr de joelhos. Foi</p><p>preciso outro relâmpago para conseguir ver os nomes que estavam</p><p>nas lápides. LILY PIKE, 19 SETEMBRO 1932. E na maior: CECILIA</p><p>BEAUMONT PIKE, 9 NOVEMBRO 1913-19 SETEMBRO 1932.</p><p>Ross ergueu o rosto e deu com Lia a olhar igualmente para as</p><p>sepulturas. Ela estendeu o braço devagar para tocar na lápide mais</p><p>pequena, e a sua mão atravessou-a. Olhou para Ross, espantada.</p><p>Cissy Pike. Cecilia. Lia.</p><p>Ross já tinha ouvido falar de fantasmas que não sabiam que o</p><p>eram. Conhecera investigadores paranormais que tinham sido</p><p>mordidos, espancados, esbofeteados e empurrados por espíritos.</p><p>Sempre presumira que o primeiro fantasma que visse seria</p><p>transparente, como um espectro num livro de histórias, mas quando</p><p>havia energia suficiente os fantasmas podiam ser tão sólidos quanto</p><p>qualquer pessoa.</p><p>Ele, que sofria de insónias, dormira como um bebé depois de ver</p><p>Lia. Tremera de frio na sua presença. Tinha sido atração física no</p><p>sentido mais elementar: o que sentira era um espírito a roubar-lhe o</p><p>calor.</p><p>— Ross — disse Lia, e ele ouviu a palavra na sua mente, sem que</p><p>fosse pronunciada. — Ross? — E estendeu-lhe a mão por cima da</p><p>lápide, da sua lápide.</p><p>Mesmo enquanto tentava alcançá-la, ele sabia que aquilo apenas</p><p>lhe traria sofrimento. Os dedos de Lia provocaram-lhe arrepios no</p><p>braço. As suas feições tornaram-se transparentes. Ross limpou a</p><p>chuva dos olhos e obrigou-se a ver, para que desta vez soubesse o</p><p>momento exato em que o tinham deixado para trás.</p><p>1 No original, icehouse. Sistema antigo para conservar o gelo recolhido no inverno durante</p><p>as estações quentes numa espécie de abrigo. (N. da T.)</p><p>SEGUNDA PARTE</p><p>1932</p><p>Há duas formas de ser enganado.</p><p>Uma é acreditar no que não é verdade;</p><p>a outra é recusar-se a acreditar no que é verdade.</p><p>SOREN KIERKEGAARD</p><p>5</p><p>4 de julho de 1932</p><p>A água corrente purifica-se a si mesma. O fluxo</p><p>de germoplasma não parece fazê-lo.</p><p>H. F. Perkins, Lições de Um Estudo da Eugenia no Vermont:</p><p>Primeiro Relatório Anual, 1927</p><p>No dia a seguir à minha tentativa de suicídio, Spencer diz-me que</p><p>vamos a umas comemorações em Burlington. Diz-me isto enquanto</p><p>está a ligar-me novamente o pulso, onde me cortei tão</p><p>profundamente, que por um momento conseguia dizer exatamente</p><p>onde me doía.</p><p>— Vai haver videntes, Cissy — diz ele. — Cuspidores de fogo e</p><p>reconstituições históricas. Todo o tipo de bugigangas à venda. —</p><p>Amarra a ligadura e depois diz a razão para irmos à cidade, para o</p><p>festival do Quatro de Julho. — O teu pai vai lá ter connosco.</p><p>Embora esteja tanto calor lá fora que os dentes-de-leão e as</p><p>margaridas amarelas estão todos pendurados, ele ajuda-me a vestir</p><p>uma blusa branca de mangas compridas, para as ligaduras não se</p><p>verem.</p><p>— Ninguém precisa de saber o que aconteceu — diz ele baixinho,</p><p>e eu fico a olhar para a parte cor-de-rosa do seu couro cabeludo até</p><p>o seu brilho me fazer virar a cara. — Tiveste um ataque de</p><p>sonambulismo, só isso. Não sabias o que estavas a fazer.</p><p>Para Spencer, a cara que se mostra ao mundo é mais importante</p><p>do que o que está por baixo. O fim justifica os meios. No fim de</p><p>contas, é isso que diz Darwin e, em minha opinião, Spencer rezaria</p><p>ao senhor Darwin se não achasse que isso faria com que as velhas</p><p>beatas da Igreja Congregacional o considerassem um idólatra. Os</p><p>seus longos dedos curvam-se à volta do meu queixo.</p><p>— Vá lá, Cissy — incita. — Não me desiludas.</p><p>Nem pensar nisso. Suavizo o rosto com um sorriso.</p><p>— Está bem — replico.</p><p>O que me apetece dizer é: Não me chames Cissy. Isso é nome de</p><p>cobarde1, uma profecia que se cumpre a si própria, e vê onde isso</p><p>me levou. O que me apetece dizer é: A minha mãe deu-me o nome</p><p>de Cecelia, que é um nome lindo, um rio de sílabas. Uma vez, com a</p><p>cabeça a andar à roda por causa do vinho de amora que bebericara</p><p>num jantar da faculdade, disse ao meu marido que queria que me</p><p>chamasse Lia. «Leah?», disse ele, interpretando-me mal e abanando</p><p>a cabeça. «Mas essa era a que Jacob não queria.»</p><p>Ele ajuda-me a levantar, pois a minha gravidez é algo que é</p><p>capaz de aceitar. É da outra aflição que não falamos. O trabalho de</p><p>Spencer, lidando como lida com higiene mental, impede-nos de</p><p>admitir que eu tenha alguma coisa em comum com as pessoas que</p><p>estão isoladas no hospital público em Waterbury.</p><p>Não posso explicar a alguém como Spencer o que é olhar para</p><p>um espelho e não reconhecer o rosto lá refletido. Explicar como</p><p>acordo em certos dias e preciso de toda a energia que tenho dentro</p><p>de mim para pôr uma máscara e fazer a minha vida como outra</p><p>pessoa qualquer. Já me tenho sentado ao lado dele e enterrado as</p><p>unhas na palma da mão, porque, se sangrar, então devo ser real.</p><p>Penso como seria fazer-me ao largo numa jangada em pleno</p><p>oceano e adormecer ao sol: transpirar, ficar queimada e nunca</p><p>acordar. Acreditem ou não, essa visão proporciona um alívio que</p><p>parece um lençol frio a pousar-me na pele. Se vou morrer, prefiro</p><p>escolher onde ou quando.</p><p>Após tantos anos a ser ignorada,</p><p>é fácil acreditar que o mundo</p><p>ficaria melhor sem mim. Spencer diz que é por causa do meu</p><p>estado, doses exageradas de químicos no meu corpo e no cérebro,</p><p>mas eu sei que não. Nunca me adaptei a esta vila, a este</p><p>casamento, a esta pele. Sou a criança que era a última a ser</p><p>escolhida para jogar à apanhada; sou a rapariga que se ria, embora</p><p>não percebesse a piada; sou aquela parte de vós que fingem não</p><p>existir, só que eu sou apenas isso, o tempo todo.</p><p>E no entanto… Há um bebé em mim que nunca pediu nada disto.</p><p>E se tirar a minha vida significa tirar igualmente a dele, nesse caso,</p><p>terei matado duas vezes alguém que devia ter tido a oportunidade</p><p>de amar.</p><p>Spencer é esperto; usa esta verdade como moeda de troca.</p><p>Provoca-me e namorisca, para que quando chegar a altura de sair</p><p>de casa e ir para a cidade eu já esteja ansiosa por essas</p><p>comemorações. Consigo sentir o cheiro a queimado do fogo de</p><p>artifício no ar; consigo ouvir o lento cerimonial de uma parada. O</p><p>meu bebé mexe-se como os peixinhos no lago Champlain e, sem</p><p>pensar, ponho a mão sobre a barriga. Spencer vê e tapa os meus</p><p>dedos com os dele, sorrindo. Durante todo o caminho até ao Otter</p><p>Creek Pass, penso na tal vidente, perguntando-me se ela encontrará</p><p>o rosto da minha mãe na sua bola de cristal, ou apenas o abismo</p><p>que vejo quando tento fazer o seu trabalho.</p><p>P: Qual é a coisa mais preciosa no mundo?</p><p>R: O germoplasma humano.</p><p>P: Como é que o germoplasma da pessoa se torna imortal?</p><p>R: Apenas quando é perpetuado pelos filhos.</p><p>P: Qual é o dever eugénico de uma pessoa para com a</p><p>civilização?</p><p>R: Zelar para que as suas boas qualidades sejam transmitidas às</p><p>futuras gerações, desde que excedam as más qualidades. Se, em</p><p>termos globais, a pessoa tiver um excesso de qualidades</p><p>disgénicas, estas deverão ser eliminadas deixando o</p><p>germoplasma extinguir-se com o indivíduo.</p><p>Sociedade Americana de Eugenia,</p><p>A Eugenics Catechism, 1926</p><p>O calor torna as ruas maduras como fruta, com o pavimento a</p><p>ficar com marcas debaixo dos meus sapatos. Há homens em fato de</p><p>verão e mulheres em elegantes vestidos de linho de mãos dadas. Há</p><p>pessoas a venderem gelados de limão e girândolas vermelhas,</p><p>brancas e azuis. Toda a gente parece exibir um sorriso demasiado</p><p>rasgado.</p><p>— Ouvi dizer que houve um espetáculo de boxe esta manhã —</p><p>diz Spencer. — Um soldado do forte levou uma tareia de um irlandês</p><p>de Nova Iorque.</p><p>Encaminha-me para uma grande multidão e estica o pescoço</p><p>para espreitar por cima da cabeça de toda a gente em direção à</p><p>colina onde o meu pai mora, agora que eu e Spencer nos mudámos</p><p>para a casa onde cresci.</p><p>— O Harry não é pessoa de se atrasar — murmura ele. —</p><p>Consegues vê-lo?</p><p>Mas Spencer tem quase mais um palmo do que eu e usa óculos.</p><p>Tento ver aquilo que ele vê, mas em vez disso reparo no rapazinho</p><p>descalço, ajoelhado ao lado de um monte de esterco para tirar um</p><p>punhado de cêntimos que caíram da carteira de alguém. Ele faz</p><p>parte de um mundo que não conheço: pessoas que vivem nas casas</p><p>de North End, a duzentos metros, mas a um mundo de distância.</p><p>— Querida — diz o meu pai atrás de nós, e beija-me a face. —</p><p>Desculpa, Spencer — diz ele, dando-lhe um aperto de mão. — Fui</p><p>ver o combate de boxe. Incrível! Se olharmos para a fisiologia de</p><p>alguns dos imigrantes…</p><p>A ciência era para mim uma língua estrangeira, embora tivesse</p><p>sido criada com ela. O meu pai, Harry Beaumont, é professor de</p><p>biologia na Universidade do Vermont. Spencer, professor de</p><p>antropologia, partilha muitas das suas convicções sobre a genética</p><p>mendeliana. São discípulos de um outro professor, Henry Perkins,</p><p>que foi mais ou menos a pessoa que deu a conhecer ao Vermont a</p><p>eugenia, isto é, a ciência do aperfeiçoamento humano através da</p><p>melhoria genética. O professor Perkins dirigiu em tempos o Estudo</p><p>da Eugenia no Vermont (EEV), um estudo das famílias daquele</p><p>estado financiado por privados. Agora, é voluntário sob o patrocínio</p><p>da Comissão sobre a Vida no Campo, tal como o meu pai e Spencer.</p><p>Ao longo dos anos, o seu Comité sobre o Fator Humano tem</p><p>trabalhado num estudo das famílias, que investiga as origens das</p><p>famílias degeneradas do Vermont para ver se o sucesso social e</p><p>económico de uma vila está relacionado com o tipo de pessoas que</p><p>aí se fixam. Os seus diagramas genealógicos estão à disposição de</p><p>assistentes sociais e funcionários da reinserção social, para os</p><p>ajudarem no seu trabalho. Entre isso e a nova lei da esterilização, o</p><p>Vermont está a juntar-se a outros estados que já são modelos para</p><p>o país.</p><p>É um movimento progressista de reforma, um movimento</p><p>empolgante. Spencer diz sempre que não se trata de fazer o</p><p>Vermont andar para a frente, mas sim para trás, para a paisagem</p><p>bucólica que toda a gente imagina quando diz a palavra Vermont:</p><p>uma vila verdejante, uma igreja branca, uma encosta pontilhada</p><p>com as cores do outono. O meu pai e Spencer foram dos primeiros a</p><p>perceber que esta imagem se esbate quando a raça forte dos</p><p>ianques é substituída por linhagens mais fracas. O estudo das</p><p>famílias que eles realizaram implicou a presença de trabalhadores no</p><p>terreno, enviados para vilas selecionadas, para ver se o estatuto</p><p>social e económico tinha alguma correlação com a qualidade das</p><p>suas famílias fundadoras. Não constituiu surpresa o facto de as vilas</p><p>em declínio estarem cheias de famílias cujos membros tendiam a ir</p><p>parar a hospitais psiquiátricos, reformatórios e prisões. É claro que</p><p>genes recessivos como a imbecilidade e as tendências criminosas</p><p>são transmitidos aos descendentes, como está bem patente nos</p><p>diagramas genealógicos que o meu pai costumava desenrolar em</p><p>cima da mesa da nossa sala. E, definindo essas populações como</p><p>alvo e intervindo antes que elas se propagassem, o Vermont poderia</p><p>recuperar a sua imagem pitoresca.</p><p>«A Família Ideal do Vermont», é o que Spencer diz sempre que</p><p>os trabalhadores no terreno andam à procura. «Pessoas como nós.»</p><p>Desde que me casei que tenho tentado fazer o meu papel. Fiz</p><p>parte da direção da Sociedade de Assistência às Crianças, sou</p><p>membro das Filhas da Revolução Americana e sou secretária das</p><p>Auxiliares Femininas na igreja. Mas estas mulheres, com os seus</p><p>puxos de cabelo, chumaços e meias com costura, dizem as mesmas</p><p>palavras; fazem as mesmas sugestões; às vezes, até as suas feições</p><p>se fundem. E eu não sou uma delas.</p><p>Por vezes, pergunto-me o que teria acontecido se não me tivesse</p><p>casado com Spencer e tivesse ido antes para a faculdade e</p><p>participado no estudo da eugenia, trabalhando no terreno, tal como</p><p>Frances Conklin e Harriet Abbott. Teria sido mais feliz? Essas</p><p>mulheres faziam parte de um movimento que levaria o Vermont para</p><p>o futuro. Elas faziam a diferença.</p><p>Spencer diz que há mulheres que estão destinadas a mudar o</p><p>mundo, enquanto outras estão destinadas a mantê-lo de pé. E</p><p>depois há aquelas, como eu, que não querem simplesmente fazer</p><p>parte dele, porque sabem que, por mais que se esforcem, nunca se</p><p>irão integrar.</p><p>O meu pai põe um braço sobre os meus ombros.</p><p>— Como está o meu neto? — pergunta, como se fosse possível</p><p>saber o sexo do bebé.</p><p>— Forte como um touro — diz Spencer. — Passa o dia a dar</p><p>pontapés à Cissy.</p><p>Toda a gente sorri. Ninguém fala na minha mãe, embora o seu</p><p>nome paire no ar enquanto conversamos. Será que eu também era</p><p>forte como um touro antes de nascer? Teria sido esse o problema?</p><p>O suor escorre-me pelos seios e pelas costas abaixo. Sinto</p><p>comichão no couro cabeludo, debaixo do chapéu. Ao longe, ouço o</p><p>zunido surdo das barcaças no lago, ansiosas por partir.</p><p>— Minha senhora — diz uma voz à minha esquerda. — Sente-se</p><p>bem?</p><p>É um jovem de fato, com um cravo branco e vermelho enfiado na</p><p>lapela. O cabelo, muito bem penteado para o lado, é da cor do</p><p>melaço. A sua mão segura-me o cotovelo.</p><p>— Está um bocadinho pálida — diz ele, sorrindo. — A coisa mais</p><p>encantadora que vi hoje aqui, mas a perder rapidamente a cor.</p><p>Antes que eu possa responder, Spencer interpõe-se entre nós.</p><p>— Tem alguma coisa a dizer à minha esposa?</p><p>O homem encolhe os ombros.</p><p>— Tenho alguma coisa a dizer a toda a gente — replica,</p><p>piscando-me o olho enquanto sobe para uma pequena</p><p>plataforma.</p><p>— Talvez para o ano possas ser tu a enfrentar o irlandês no</p><p>combate de boxe — diz o meu pai a Spencer.</p><p>— E é o que farei, se ele continuar a meter-se com a Cissy.</p><p>A seguir, a voz de Spencer foi abafada pela voz autoritária de</p><p>barítono do homem de quem estava a falar.</p><p>— Senhoras e senhores — anuncia o orador —, a Lenda de</p><p>Champlain!</p><p>A multidão reúne-se para ver a reconstituição histórica. Os</p><p>músicos tocam acordes indígenas enquanto quatro guerreiros se</p><p>passeiam por ali. São os iroqueses ameaçadores. Estão seminus, à</p><p>maneira de selvagens, com traços largos pintados no rosto e peito.</p><p>Quando Champlain chega com os seus guerreiros algonquinos, um</p><p>único tiro da sua espingarda mata todos os inimigos de uma só vez.</p><p>— Uma era tenebrosa de poder selvagem — entoa o orador —</p><p>terminou naquela mesma hora. Quando o poderoso Champlain</p><p>atravessou as águas… e criou ordem a partir do caos.</p><p>Há uma salva de aplausos enquanto os atores fazem as suas</p><p>vénias e toda a gente começa a dispersar.</p><p>— O que vamos fazer a seguir? — pergunta Spencer. — Há um</p><p>jogo de basebol e uma corrida de barcos a motor. Ou talvez a</p><p>exposição…</p><p>Por entre as pessoas em movimento, consigo ver o outro lado do</p><p>palco, onde um homem está a olhar para mim. Tem a pele tão</p><p>escura quanto os índios contratados para entrarem na reconstituição</p><p>histórica, e os seus olhos são tão negros que só podiam ser uma</p><p>armadilha. Ele não sorri nem finge educadamente que não está a</p><p>olhar. Não consigo virar costas, nem mesmo depois de Spencer me</p><p>tocar no ombro. Não sei dizer o que me fascina mais: se a sensação</p><p>de que aquele homem poderá fazer-me mal, se a sensação de que</p><p>não o fará.</p><p>— Cissy?</p><p>— A exposição — replico, esperando que seja uma resposta</p><p>apropriada.</p><p>Quando me viro para o lado oposto do palco, já ele desapareceu.</p><p>«Liberdade e Unidade»</p><p>Lema do estado do Vermont</p><p>Um antigo parque de estacionamento na Shelburne Street foi</p><p>convertido numa arena. Enquanto estamos sentados na tribuna</p><p>principal e assistimos aos Fabulosos Gatos Dançarinos de Bertie</p><p>Briggs, abano-me com o programa. Levanto o cabelo do pescoço</p><p>molhado e tento enfiá-lo debaixo do chapéu. Os círculos de</p><p>transpiração debaixo dos meus braços deixam-me envergonhada.</p><p>Spencer também deve estar a sentir o calor. Porém, no seu fato</p><p>de linho às riscas azuis e brancas, parece tão descontraído e calmo</p><p>como sempre. Ele e o meu pai observam alguns dos ciganos que</p><p>vieram vender o seu artesanato: cestos, raquetes de neve, tónicos à</p><p>base de ervas. Acampam ao longo das margens do rio e do lago</p><p>durante o verão, e muitos passam o inverno no Canadá. É claro que</p><p>não são ciganos a sério, apenas índios, mas chamam-lhes ciganos</p><p>porque andam sempre de um lado para o outro, têm pele escura e</p><p>criam famílias enormes que povoam regularmente as prisões e</p><p>instituições.</p><p>— Os ismaelitas ressuscitaram — murmura Spencer.</p><p>Aqueles ciganos são as pessoas que o professor Perkins incluiu</p><p>no seu estudo, juntamente com um clã atormentado pela demência</p><p>e uma prole depravada que morava em cabanas flutuantes,</p><p>alcunhados de piratas. A diferença entre estas famílias e, por</p><p>exemplo, a nossa é puramente genética. Um pai errante gera um</p><p>filho errante. Uma mãe promíscua transmite essa característica à sua</p><p>filha.</p><p>— Foram efetuadas mais três operações em Brandon — diz o</p><p>meu pai. — E duas na prisão.</p><p>Spencer sorri.</p><p>— Isso é maravilhoso.</p><p>— É sem dúvida o que desejávamos. Imagino que todos os</p><p>pacientes queiram oferecer-se como voluntários assim que</p><p>perceberem que um tratamento simples irá permitir-lhes viver como</p><p>quiserem.</p><p>Uma das gatas malhadas de Bertie Briggs começa a andar na</p><p>corda bamba. As suas patas tremem sobre a corda; pelo menos,</p><p>acho que estão a tremer… A minha visão tão depressa aparece como</p><p>desaparece. Olho para o meu colo, respirando fundo, tentando não</p><p>desmaiar.</p><p>A mãozinha que se precipita para o meu colo pela parte lateral da</p><p>tribuna pode estar suja ou ser apenas escura. Larga uma tira de</p><p>papel amarrotado, com uma lua e estrelas impressas. LEITURA GRÁTIS</p><p>— MADAME SOLIAT. Quando ergo os olhos, o rapazinho que me</p><p>deixou aquilo já desapareceu no meio da multidão.</p><p>— Vou ver se encontro a casa de banho das senhoras — digo,</p><p>levantando-me.</p><p>— Eu vou contigo.</p><p>— Sou perfeitamente capaz de ir sozinha.</p><p>Ele acaba por me deixar ir sem escolta, mas só depois de me</p><p>ajudar a descer a escada da tribuna e de me indicar o caminho.</p><p>Quando me apercebo de que já não está a olhar, viro na direção</p><p>oposta. Tiro um cigarro à socapa da mala — Spencer acha que as</p><p>mulheres não devem fumar — e entro na tenda de Madame Soliat. É</p><p>pequena e preta, com estrelas de tecido amarelo cosidas nas</p><p>cortinas. A vidente usa um turbante prateado e três brincos de prata</p><p>em cada orelha. Um cão-lobo arfa ao lado da mesa, com a língua</p><p>rosada como uma ferida.</p><p>— Vamos, sente-se — diz ela, como se a tivesse feito esperar.</p><p>Não tem folhas de chá nem bola de cristal. Não me pega na mão</p><p>para ver a palma.</p><p>— Não tenha medo — diz ela finalmente, com uma voz tão grave</p><p>como um homem, quando já estou prestes a levantar-me para ir</p><p>embora.</p><p>— Não tenho.</p><p>Apago o cigarro e levanto um pouco o queixo, para lhe mostrar</p><p>como posso ser corajosa.</p><p>Ela abana a cabeça e baixa os olhos para o bebé dentro de mim.</p><p>— Não tenha medo disso, quero eu dizer.</p><p>A minha mãe morreu durante o parto. Eu estou à espera de que</p><p>me aconteça o mesmo. Nesse caso, não chegarei a conhecer o meu</p><p>bebé… mas é muito provável que vá conhecer a minha mãe.</p><p>— Vai conhecê-lo — replica a vidente, como se eu tivesse falado</p><p>em voz alta. — Aquilo que não sabe está prestes a ficar claro, mas</p><p>isso irá turvar outras águas.</p><p>Ela está a falar por enigmas, seria o que Spencer diria. É claro</p><p>que Spencer nunca faria nada tão pouco científico como visitar uma</p><p>médium. Ela diz-me outras coisas que se podem aplicar a qualquer</p><p>pessoa: que vou herdar uma boa maquia; que vou ser visitada por</p><p>um desconhecido. Por fim, enfio a mão na mala para tirar uma nota</p><p>de um dólar, mas sinto os seus dedos cerrarem-se à volta do meu</p><p>pulso. Tento escapar, mas ela está a segurar-me com força suficiente</p><p>para eu conseguir sentir a minha pulsação.</p><p>— Tem morte nas suas mãos — diz ela, e depois solta-me.</p><p>Sobressaltada, levanto-me a cambalear e saio para o sol</p><p>abrasador. Oh, ela tem razão! Tenho mesmo, desde o momento em</p><p>que nasci e matei a minha mãe no processo.</p><p>Vou virando aqui e ali sem pensar duas vezes; abro caminho por</p><p>entre rostos sem feições. Quando dou por mim no meio de um</p><p>ajuntamento de rapazes, estudantes universitários, que convergem</p><p>em direção à entrada de um palácio de cristal, tento remar contra a</p><p>maré. Mas a impaciência deles impele-me para a frente e não tardo</p><p>a encontrar-me no interior desta sala de espelhos.</p><p>Spencer tinha-me falado do labirinto móvel cuja construção</p><p>custou vinte mil dólares. De trás das divisórias altas, vêm os gritos</p><p>dos universitários quando escolhem o caminho errado. O ar está</p><p>completamente saturado. Parece que não consigo fugir de mim</p><p>mesma; para onde quer que me vire, lá estou eu.</p><p>Sinto o calor a comprimir-me a nuca. Inclino-me em direção a um</p><p>espelho, passando a mão sobre a barriga onde este bebé se aninha.</p><p>Toco na face, no queixo. Parecerei assim tão assustada aos olhos</p><p>das outras pessoas?</p><p>Passando a mão pelos vidros espelhados, sigo o meu reflexo de</p><p>painel para painel… e depois o meu rosto transforma-se em algo</p><p>completamente diferente. Olhos pretos, cabelo mais preto ainda,</p><p>uma boca que se esqueceu de como sorrir. Estamos a centímetros</p><p>um do outro, suficientemente próximos para nos tocarmos. Eu e o</p><p>homem que me observava durante a reconstituição histórica.</p><p>Nenhum dos dois parece respirar.</p><p>Oh, este calor. É a última coisa que me lembro de pensar antes</p><p>de perder os sentidos.</p><p>O dever patriótico de qualquer casal normal é ter filhos</p><p>em número suficiente para manter a «boa e velha</p><p>linhagem do Vermont.»</p><p>Comissão sobre a Vida no Campo do Vermont,</p><p>Comité sobre o Fator Humano, «The People of Vermont»,</p><p>in Rural Vermont: A Program for the Future, 1931</p><p>— Calma, Cissy.</p><p>A voz de Spencer flutua</p><p>até mim ao longo de um túnel comprido.</p><p>Quando consigo focar a vista, procuro pontos de referência: a Sala</p><p>dos Espelhos, a tribuna, o vendedor de amendoins com sal. Mas, em</p><p>vez disso, vejo a bacia e o jarro antigos em cima da minha cómoda e</p><p>os pés dourados da nossa cama. Uma toalha fria estendida sobre a</p><p>minha testa pinga água no meu cabelo, passando para a almofada.</p><p>Ele segura-me a mão. Isso faz-me lembrar de quando era miúda</p><p>e dava a mão ao meu pai para atravessar a Church Street. Casei-me</p><p>com Spencer quando tinha dezassete anos; ele tornou-se o próximo</p><p>adulto a zelar pela minha segurança. Enquanto estou deitada de</p><p>lado, com o volume da barriga sobre as minhas coxas, apercebo-me</p><p>de que nunca tive a oportunidade de crescer.</p><p>— Estás melhor? — pergunta Spencer, e sorri tão docemente que</p><p>sinto qualquer coisa libertar-se dentro de mim.</p><p>Eu amo-o. Amo o cheiro do seu cabelo e o alto do nariz que</p><p>suporta os óculos; os músculos longos e esguios que ninguém</p><p>espera encontrar sob as suas camisas e casacos engomados. Adoro</p><p>o modo como olha para mim às vezes, como se o amor fosse uma</p><p>quantidade que ele não é capaz de medir cientificamente, porque se</p><p>multiplica com demasiada rapidez. Mas preferiria que nos tivéssemos</p><p>conhecido numa rua movimentada de Nova Iorque, ou no alpendre</p><p>de um vizinho no Iowa, ou mesmo durante uma travessia</p><p>transatlântica — em qualquer circunstância que desse para separar a</p><p>minha relação com ele da sua relação com o meu pai.</p><p>Spencer põe a mão na minha barriga e eu fecho os olhos. É</p><p>impossível não pensar no Comité sobre o Fator Humano de que ele</p><p>faz parte, e que advoga a seleção cuidadosa de um cônjuge. Mas eu</p><p>fui escolhida porque sou filha de Harry Beaumont, e não por ser</p><p>quem sou.</p><p>Pergunto-me como se sentirá Spencer por ter tomado uma</p><p>decisão informada e mesmo assim ter acabado com algo defeituoso.</p><p>— Como é que vim parar aqui? — indago, muitas perguntas ao</p><p>mesmo tempo.</p><p>— Desmaiaste na Exposição.</p><p>— O calor…</p><p>— Descansa, Cissy.</p><p>Sinto-me ótima. Apetece-me gritar isto, embora não seja</p><p>verdade. Houve alturas em criança em que subia ao telhado desta</p><p>mesma casa, abria os braços e as pernas e gritava até toda a vila de</p><p>Comtosook me ouvir. Não porque tivesse algo importante a dizer,</p><p>mas antes porque o meu pai queria que estivesse calada.</p><p>Vejo isto passar como uma espiral negra no meu sangue, que me</p><p>percorre o organismo e vem à superfície quando menos espero.</p><p>Como agora, com Spencer cheio de cuidados comigo. Quando estou</p><p>a fumar. Esta tarde, na tenda da vidente. Ou na noite passada,</p><p>quando me cortei.</p><p>Às vezes, pergunto-me se herdei isso da minha mãe.</p><p>— Vou dizer à Ruby para te fazer companhia — diz Spencer,</p><p>dando-me um beijo no alto da cabeça. — Vais ficar bem.</p><p>Se Spencer o diz, deve ser verdade.</p><p>Ruby está junto à porta, à espera de ser convidada a entrar. A</p><p>nossa criada tem catorze anos, idade suficientemente próxima da</p><p>minha para sermos amigas, e no entanto há um mundo a separar-</p><p>nos. Não é apenas por ela ser franco-canadiana. A verdade é que</p><p>sou muito mais velha do que ela, e não só em termos cronológicos.</p><p>Quando Ruby pensa que ninguém está a ver, dança entre os lençóis</p><p>brancos que estende na corda: piruetas, lindy hop e até um pouco</p><p>de charleston. Já eu nunca me esqueço de que pode haver alguém a</p><p>ver, em qualquer altura.</p><p>Ela traz uma caixa embrulhada em papel pardo.</p><p>— Miz Pike — diz —, veja o que chegou no correio.</p><p>Pousa o embrulho ao meu lado e faz uma tentativa frustrada para</p><p>ignorar a ligadura no meu pulso. É claro que Ruby sabe o que</p><p>aconteceu. Foi ela que segurou uma bacia com água morna</p><p>enquanto Spencer limpava o corte e o ligava com força, para sarar.</p><p>Ela faz parte da conspiração do silêncio.</p><p>Ruby desata o fio e desembrulha a caixa. Lá dentro, está uma</p><p>encomenda do Sears, em Roebuck: um par de botins como os que</p><p>Spencer me tirou dos pés. Estes são um tamanho acima e talvez não</p><p>me magoem tanto como todos os outros meus sapatos, agora que a</p><p>gravidez já está tão adiantada. Espreitando sobre a borda da cama,</p><p>olho para os sapatos de Ruby.</p><p>— Tu calças para aí um trinta e sete, não é?</p><p>— Sim, minha senhora.</p><p>— Porque é que não ficas com eles? Não creio que os meus pés</p><p>voltem a ficar mais pequenos.</p><p>Ruby segura os botins velhos como se fossem um tesouro.</p><p>— Eu costumava herdar coisas da minha irmã.</p><p>— Tens uma irmã?</p><p>Como podia ter vivido um ano com aquela rapariga e não saber</p><p>isso?</p><p>— Já não. Difteria.</p><p>Ruby trata de tirar o resto das coisas da caixa. Casaquinhos de</p><p>lã, meias minúsculas e camisolas interiores em miniatura em todos</p><p>os tons de branco espalham-se sobre a roupa de cama, numa</p><p>abundância liliputiana. Parecem roupas demasiado pequenas para</p><p>uma boneca, quanto mais para um bebé.</p><p>— Oh! — exclama Ruby, pegando numa touca de renda entre o</p><p>polegar e o indicador. — Alguma vez viu alguma coisa tão delicada</p><p>como esta?</p><p>Ruby quer mais este bebé do que eu. Não é que não esteja</p><p>satisfeita com a sua chegada; só que ninguém parece perceber que</p><p>não vou sobreviver a este parto. Spencer ensinou-me bem: o defeito</p><p>está no meu germoplasma. Se não conseguir matar-me primeiro,</p><p>então, o dia em que este bebé nascer é o dia em que irei morrer.</p><p>Spencer mostrou-me inúmeros textos obstétricos para me</p><p>convencer do contrário; obrigou-me a falar com os melhores</p><p>médicos. Eu aceno, sorrio, às vezes até os ouço. Entretanto, planeio</p><p>o meu suicídio. Mas depois sinto os pezinhos do bebé a percorrerem</p><p>as curvas das minhas costelas, como se ele soubesse instintivamente</p><p>onde encontrar o meu coração, e percebo que estou perdida.</p><p>— Oh, não, Miz Pike — diz Ruby; até essa altura, eu não tinha</p><p>percebido que estava a chorar. — Quer que vá chamar o professor?</p><p>— Não. — Uso a dobra do lençol para limpar as lágrimas. — Não,</p><p>estou bem. Apenas cansada. A sério.</p><p>Na noite passada, pensei que, se fizesse um corte</p><p>suficientemente fundo, conseguiria ver para lá do sangue, osso e</p><p>medula, o sítio onde sinto uma dor permanente. Quando me ligou o</p><p>pulso, Spencer disse que tenho de pensar no bebé. No fim de</p><p>contas, só faltam dois meses para dar à luz. Ele não compreende</p><p>que eu estava a pensar no meu filho. Estava a tentar poupá-lo ao</p><p>peso que carreguei toda a minha vida: saber que ele era a razão da</p><p>minha morte.</p><p>Sei que os meus atos não são lógicos; que atentar contra a</p><p>minha vida também põe o meu filho em perigo. Mas, de alguma</p><p>forma, quando só estou eu, a escuridão, a noite e uma lâmina, a</p><p>razão não conta. Tentei dizer isto a Spencer, muitas vezes. «Mas eu</p><p>amo-te», diz ele, como se isso devesse ser o suficiente para me</p><p>manter aqui.</p><p>Agora, com Ruby ao meu lado, tento encontrar palavras para</p><p>explicar o impossível.</p><p>— Alguma vez atravessaste uma sala apinhada de gente e te</p><p>sentiste tão sozinha, que mal tens forças para dar o próximo passo?</p><p>Ela hesita e depois acena devagar afirmativamente. Levanto a</p><p>cabeça, olho para ela e pergunto-me se afinal será assim tão</p><p>novinha quanto eu pensava.</p><p>— Miz Pike — sussurra Ruby timidamente. — Talvez possamos</p><p>fingir que somos irmãs.</p><p>Ruby, uma criada, e eu, a esposa de um dos cidadãos mais</p><p>importantes e considerados de Burlington.</p><p>— Talvez — replico.</p><p>PRINCÍPIOS DA HEREDITARIEDADE:</p><p>Professor H. F. Perkins.</p><p>Série de aulas com conferência e exercícios cobrindo</p><p>os princípios da embriologia elementar, a base física da</p><p>hereditariedade, os princípios de experiências</p><p>reprodutivas, e eugenia, a aplicação prática da</p><p>hereditariedade à humanidade. Texto usado: Readings</p><p>in Evolution,</p><p>Genetics, and Eugenics, de Newman.</p><p>University of Vermont Bulletin, 1923-1924</p><p>Há anos que me sinto fascinada por Harry Houdini. Li todas as</p><p>biografias escritas desde a sua morte, em 1926; tenho um álbum de</p><p>artigos de jornal sobre as suas espantosas façanhas. Não é apenas</p><p>pelas razões óbvias: o facto de, tal como ele, saber de laços que nos</p><p>amarram e correntes que nos mantêm presos a um determinado</p><p>lugar, ou de, tal como ele, sentir por vezes o desejo de desaparecer.</p><p>Não. Para mim, o mais intrigante é a obsessão de Houdini com o</p><p>mundo dos espíritos.</p><p>Acaso terei dito que Houdini também perdeu a mãe?</p><p>O novo</p><p>mãe para</p><p>testemunhar um capricho da natureza.</p><p>— Cêntimos. — Curtis Warburton virou a moeda que Ross lhe</p><p>entregara. — Mais alguma coisa?</p><p>Ross abanou a cabeça. Tinham sido três horas e, mesmo com a</p><p>forte tempestade lá fora a proporcionar um manancial de energia, a</p><p>atividade paranormal fora mínima, na melhor das hipóteses.</p><p>— Pareceu-me ver um glóbulo no ecrã a dada altura, mas afinal</p><p>era um alarme de incêndio pendurado ao fundo do sótão.</p><p>— Bem, eu não senti nada de nada — suspirou Curtis. —</p><p>Devíamos ter aceitado antes o caso em Buffalo.</p><p>Ross voltou a pôr a película usada na respetiva caixa e enfiou-a</p><p>no bolso.</p><p>— A esposa, Eve, falou numa irmã mais nova que morreu quando</p><p>ela tinha sete anos.</p><p>Curtis olhou para ele.</p><p>— Interessante.</p><p>Desceram ambos as escadas. Maylene estava sentada às escuras</p><p>no sofá da sala, com um termómetro de infravermelhos.</p><p>— Conseguiste alguma coisa? — perguntou Curtis.</p><p>— Não. Esta casa está tão ativa como um quadriplégico.</p><p>— Como é que está a correr? — interrompeu Eve O’Donnell, à</p><p>porta da sala, aconchegando a gola do roupão ao pescoço.</p><p>— Creio que é seguro dizer que não está sozinha nesta casa. Na</p><p>verdade, acabei de encontrar isto — disse Curtis, estendendo a</p><p>moeda que Ross lhe dera.</p><p>— Sim… às vezes, há moedas espalhadas por aí. Eu contei isso</p><p>ao Ross.</p><p>— Ah, sim?</p><p>Ross virou-se, franzindo o sobrolho. Contudo, antes que pudesse</p><p>perguntar a Curtis porque estava ele a fazer-se de parvo, o patrão</p><p>voltou a falar.</p><p>— Os fantasmas podem ser assim, traquinas. Sobretudo, o</p><p>fantasma de uma criança, por exemplo.</p><p>Ross sentiu o ar ficar mais pesado enquanto a confiança de Eve</p><p>O’Donnell em Curtis era posta à prova.</p><p>— Devo dizer-lhe — prosseguiu Curtis — que estou a ter algumas</p><p>sensações muito fortes aqui. Há uma presença, mas é alguém que</p><p>conhece, alguém que a conhece a si. — Inclinou a cabeça para o</p><p>lado e franziu a testa. — É uma menina… estou a ter a sensação de</p><p>que é uma menina, e estou a sentir um número… sete. Por acaso,</p><p>não teve uma irmã mais nova que faleceu?</p><p>Ross deu por si pregado ao chão. Tinha sido instruído para</p><p>considerar o facto de que 85 por cento dos casos que investigavam</p><p>eram embustes perpetrados por pessoas que queriam fazê-los</p><p>perder tempo, aparecer na televisão nacional ou provar que a</p><p>investigação paranormal era tudo menos uma ciência. Não tinham</p><p>conta as vezes que acabavam por descobrir um altifalante escondido</p><p>na parede que gemia, ou linha de pesca enrolada à volta de um</p><p>lustre que oscilava, mas nunca lhe ocorrera que os Warburtons</p><p>também pudessem encenar as coisas.</p><p>— Seria um encargo adicional, é claro — estava Curtis a dizer —,</p><p>mas não descarto a possibilidade de fazer uma sessão espírita.</p><p>Ross sentiu a cabeça a latejar.</p><p>— Curtis, posso dar-te uma palavrinha em particular?</p><p>Vestiram os casacos e saíram de casa, abrigando-se debaixo do</p><p>telheiro da garagem enquanto a chuva caía.</p><p>— É bom que valha a pena — disse Curtis. — Interrompeste-me</p><p>quando eu estava a conseguir convencê-la.</p><p>— Tu não achas que haja aqui um fantasma, e a única razão para</p><p>saberes da existência da irmã foi porque eu te contei.</p><p>Curtis acendeu um cigarro, cuja ponta brilhou como um olho</p><p>fendido.</p><p>— E daí?</p><p>— Daí que… não podes mentir àquela mulher só para ganhar uns</p><p>quantos dólares e filmar a sua reação.</p><p>— A única coisa que estou a fazer é a dizer aos O’Donnells o que</p><p>eles querem ouvir. Estas pessoas acreditam que há um fantasma</p><p>nesta casa. Querem acreditar que há um fantasma nesta casa.</p><p>Mesmo que não estejamos a captar muita atividade esta noite, isso</p><p>não significa que não haja um espírito a tentar passar despercebido</p><p>com visitas por aqui.</p><p>— Não se trata apenas de um fantasma — disse Ross, com a voz</p><p>trémula. — Trata-se de alguém que era importante para ela.</p><p>— Não te tomava por um purista tão categórico. Ao fim destes</p><p>meses todos, pensava que já sabias como é que as coisas se</p><p>processavam.</p><p>Ross não se considerava particularmente ingénuo. Já tinha visto</p><p>e feito coisas suficientes na vida para estar sempre à procura do que</p><p>era real, pois sentia muitas vezes que ele próprio não o era.</p><p>— Eu sei como as coisas se processam. Só não sabia que era</p><p>tudo uma farsa.</p><p>Curtis atirou o cigarro para o chão.</p><p>— Eu não sou charlatão. O fantasma do meu avô apareceu-me,</p><p>Ross! Tirei-lhe uma fotografia aos pés da minha cama, porra! Tira as</p><p>tuas próprias conclusões. Que diabo, não te lembras daquele</p><p>instantâneo que tiraste de um rosto a sair do lago? Também achas</p><p>que fui eu que encenei isso? Na altura, nem sequer estávamos no</p><p>mesmo estado! — Respirou fundo para se acalmar. — Escuta, eu não</p><p>estou a enganar os O’Donnells. Sou um homem de negócios, Ross, e</p><p>conheço os meus clientes.</p><p>Ele não foi capaz de responder. O mais provável era Curtis ter</p><p>conseguido introduzir à socapa a moeda que ele encontrara debaixo</p><p>do tripé. O mais provável era ele ter desperdiçado os últimos nove</p><p>meses da sua vida… Não era melhor do que os O’Donnells: apenas</p><p>tinha visto aquilo em que queria acreditar.</p><p>Mas talvez Maylene fosse mesmo médium, porque nesse</p><p>momento apareceu à porta.</p><p>— Curtis, o que se passa?</p><p>— É o Ross. Está a tentar decidir qual é o melhor caminho para</p><p>chegar a casa: se a Interestadual 81 ou a Via Rápida da Moralidade.</p><p>Ross avançou para o meio da chuva torrencial e começou a</p><p>andar. Eles que pensassem o que quisessem; sem dúvida que o</p><p>tinham incitado a fazer o mesmo. Não se deu ao trabalho de ir</p><p>buscar a sua câmara digital ou a mochila; eram coisas que podia</p><p>substituir, ao contrário da sua compostura, que estava em perigo</p><p>iminente de perder. Já no carro, ligou o aquecimento no máximo,</p><p>tentando livrar-se do frio que teimava em não o largar. Conduziu</p><p>durante quase dois quilómetros até perceber que não levava os</p><p>faróis acesos. Parou na berma da estrada e inspirou profundamente</p><p>várias vezes, tentando fazer com que o coração recomeçasse a</p><p>bater.</p><p>Ross sabia como registar cientificamente fenómenos paranormais</p><p>e como interpretar os resultados. Tinha filmado luzes a passar por</p><p>cima de cemitérios, gravado vozes em caves vazias, sentido frio em</p><p>locais onde era impossível haver correntes de ar. Durante nove</p><p>meses, pensara ter encontrado uma passagem para o mundo que</p><p>Aimee habitava… e, afinal, era apenas uma porta pintada numa</p><p>parede.</p><p>Bolas, estava a ficar sem ideias!</p><p>Az Thompson acordou com a boca cheia de pedras, pequenas e</p><p>lisas como caroços de azeitona. Cuspiu quinze para a pele engelhada</p><p>da palma da mão antes de se sentir confiante de que conseguiria</p><p>respirar sem sufocar. Girou as pernas sobre o rebordo da cama de</p><p>campanha. Tentou afastar a certeza de que aquelas pedras, se</p><p>enterradas na terra compacta sob os seus pés descalços, se</p><p>transformariam num bosque negro e maléfico, como os que cobriam</p><p>o castelo naquele conto de fadas do Homem Branco sobre uma</p><p>rapariga que não podia acordar sem que a beijassem.</p><p>Ele não se importava de acampar; desde sempre que se</p><p>lembrava de ter um pé na natureza e outro no mundo civilizado.</p><p>Enfiou a cabeça pela aba da tenda, junto à qual alguns dos outros já</p><p>se tinham reunido para tomar o pequeno-almoço. Os seus</p><p>estandartes de protesto — letreiros para pendurar ao pescoço e</p><p>cartazes presos a placas de madeira — jaziam amontoados como</p><p>bonecos de ventríloquo, inofensivos sem alguém que lhes desse</p><p>vida.</p><p>— Haw — resmungou, e dirigiu-se para a pequena fogueira,</p><p>sabendo que arranjariam um espaço para ele.</p><p>Os outros tratavam-no como se fosse Abe Lincoln a levantar-se e</p><p>a sair daquela tenda: com humildade e uma enorme reverência por</p><p>o verem vivo ao fim daquele tempo todo. Az não era tão velho</p><p>quanto Abe, mas não lhe ficava muito atrás. Tinha cento e dois ou</p><p>cento e três anos… Deixara de contar havia algum tempo. Como</p><p>conhecia a língua quase extinta do seu povo, era respeitado como</p><p>um professor. De qualquer forma, só por si, a idade fazia dele um</p><p>ancião tribal, o que teria grande significado se os Abenaki fossem</p><p>uma tribo federalmente reconhecida.</p><p>Az ouviu ranger todas as articulações da sua coluna ao instalar-se</p><p>numa cadeira dobrável. Pegou num par de binóculos que estava ao</p><p>lado</p><p>livro que estou a ler narra a longa guerra entre Houdini e</p><p>Margery, a médium de Boston. Durante as suas sessões espíritas, a</p><p>voz dela fazia-se ouvir vinda de diferentes partes da sala, havia uma</p><p>sineta que tocava, um megafone que costumava voar sobre a mesa,</p><p>tudo isto enquanto outras pessoas seguravam as mãos da médium.</p><p>Houdini, convencido de que aquilo era um embuste, construiu-lhe</p><p>uma espécie de grande caixa à prova de fraude e desafiou-a a</p><p>realizar uma sessão espírita a partir do seu interior. Mas, durante a</p><p>sessão, foi encontrado um metro articulado aos pés da médium, algo</p><p>que Margery e Houdini se acusaram mutuamente de lá ter posto. No</p><p>final, Houdini morreu a desacreditá-la e jurou que, se alguma vez</p><p>houvesse um espírito a voltar do Além, seria o dele.</p><p>Eis o que penso sobre o senhor Houdini: se ele não estivesse tão</p><p>desesperado por contactar a sua falecida mãe, não teria lutado tão</p><p>furiosamente contra Margery. Denunciou o mundo dos espíritos</p><p>porque receava ser o único espaço de onde não poderia fugir.</p><p>Sinto-me uma tola, escondida no roupeiro do meu quarto. Vim</p><p>para aqui à procura de privacidade, arrastando cá para dentro uma</p><p>pequena mesa de jogo que está encostada à minha barriga. As</p><p>chamadas mesas falantes são outro fenómeno sobre o qual já li; é</p><p>uma forma de contactar os espíritos. Devia ter mais pessoas ali</p><p>sentadas, de mãos dadas, mas não podia dizer a Spencer o que</p><p>estou a fazer e não sei o que Ruby pensaria disso.</p><p>As sedas dos meus vestidos roçam-me pelos ombros. Ponho as</p><p>palmas das mãos em cima da mesa e fecho os olhos.</p><p>— Mamã? — sussurro.</p><p>De repente, uma mão toca-me de lado. Dou um salto e depois</p><p>percebo que os dedos estão por dentro da minha pele: é o bebé, a</p><p>tentar empurrar com toda a sua força.</p><p>— Vá, sossega. Estamos a tentar falar com a tua avó.</p><p>Se conseguir encontrá-la, se conseguir abrir uma porta… então,</p><p>talvez consiga encontrar o caminho de volta, mesmo depois de</p><p>morrer.</p><p>Respiro fundo para me concentrar. Centro toda a minha energia</p><p>naquela mesa.</p><p>— Mamã, se me consegue ouvir, dê-me um sinal.</p><p>A mesa continua perfeitamente imóvel sob as minhas mãos. Mas</p><p>depois ouço um rangido. Abro os olhos a tempo de ver a maçaneta</p><p>da porta do roupeiro a rodar. Aparece uma luz intensa, que se vai</p><p>tornando cada vez mais ampla até deixar ver a silhueta de uma</p><p>mulher.</p><p>— Miz Pike, o que diabo está a fazer aí?</p><p>O meu coração bate com tanta força, que levo um momento para</p><p>responder. Fingindo que é perfeitamente normal ser encontrada</p><p>sentada dentro de um roupeiro, digo:</p><p>— O que queres, Ruby?</p><p>— O seu almoço com o professor… se não se despachar, não vai</p><p>chegar a tempo.</p><p>O meu almoço… tinha-me esquecido. Eu e Spencer temos um</p><p>compromisso de verão, um piquenique no parque da universidade</p><p>depois da sua aula de pós-graduação à quarta-feira de manhã.</p><p>Sentamo-nos debaixo dos carvalhos e falamos de coisas</p><p>importantes: da sua investigação, dos seus alunos mais promissores,</p><p>de nomes para o filho.</p><p>Ruby já arranjou um cesto com uvas e carnes frias, pãezinhos de</p><p>sésamo e salada de macarrão.</p><p>— Obrigada — digo, olhando uma última vez para dentro do</p><p>roupeiro antes de fechar a porta.</p><p>Hoje, Spencer foi a pé para o trabalho — quase cinco quilómetros</p><p>até à universidade — e deixou-me o carro. Um Packard Twin 6 com</p><p>um motor de doze cilindros, o seu orgulho e alegria. Tem portas</p><p>«suicidas», assim chamadas porque abrem para trás e podem</p><p>arrancar-nos do carro se forem destrancadas em andamento.</p><p>Já pensei nisso.</p><p>A aula de pós-graduação de Spencer está a ser dada numa</p><p>pequena sala que cheira a óleo de linhaça e a filosofia. Spencer está</p><p>em pé lá à frente, sem casaco e com as mangas da camisa</p><p>arregaçadas por causa do calor. Num ecrã atrás dele, foram</p><p>projetados slides de crânios.</p><p>— Reparem na diferença entre a dolicocefalia e a braquicefalia no</p><p>crânio negroide — diz ele. — O prognatismo mandibular, o nariz</p><p>achatado, as feições simiescas… são tudo sinais de uma raça</p><p>degradada.</p><p>Há uma mão que se levanta.</p><p>— Até que ponto são primitivos? — pergunta um aluno.</p><p>— Rudimentares — explica Spencer. — Pensem neles como</p><p>crianças. Tal como crianças, gostam de cores vivas. Tal como</p><p>crianças, são capazes de criar amizades básicas. — Olha de relance</p><p>para o relógio na parede e os seus olhos passam por mim,</p><p>iluminando-se por breves momentos. — Na próxima semana, vamos</p><p>sistematizar a classificação de toda a humanidade em cinco raças</p><p>distintas — promete, enquanto a turma arruma os livros e dispersa.</p><p>Spencer vem ter comigo, a sorrir.</p><p>— A que devo esta honra?</p><p>— É quarta-feira — recordo-lhe. — O nosso almoço. — E, em</p><p>jeito de ilustração, tiro o cesto de trás das costas, onde o mantivera</p><p>escondido.</p><p>Entre as sobrancelhas de Spencer, surge um pequeno V.</p><p>— Bolas! O Harry Perkins pediu para se encontrar comigo esta</p><p>tarde, Cissy. Não tenho tempo para almoçar.</p><p>— Eu compreendo — digo-lhe.</p><p>— Linda menina!</p><p>— Spencer? — chamo, quando ele já se vai embora. — Queres</p><p>que espere?</p><p>Mas ele não me ouve ou opta por não ouvir. Suspirando, pouso o</p><p>cesto de piquenique e vou até à parte da frente da sala de aulas. Os</p><p>saltos das minhas botas batem como dentes e, quando me</p><p>aproximo, o meu corpo projeta uma silhueta arredondada no ecrã</p><p>branco. Levanto a mão e faço uma sombra chinesa: um lobo. Depois</p><p>faço-o precipitar-se e mergulhar ao longo da testa saliente de um</p><p>espécime dolicocefálico.</p><p>— Senhora Pike?</p><p>Apanhada em flagrante, viro-me e dou com Abigail Alcott a olhar</p><p>para mim. Abigail, uma mulher de olhos grandes, é uma assistente</p><p>social de vinte e muitos anos presentemente contratada pelo</p><p>Departamento de Saúde Pública. Está vestida para trabalhar, com</p><p>uma elegante saia azul-escura e uma camisa branca plissada.</p><p>Ultimamente, tem-se reunido com Spencer para debater os registos</p><p>do EEV, que utiliza nas suas investigações. O seu trabalho implica</p><p>avaliar quais as famílias degeneradas que estão a melhorar e quais</p><p>as que irão beneficiar da nova lei de esterilização.</p><p>— Olá, Abigail — digo com o maior aprumo que consigo, dado</p><p>que ela é mais velha do que eu e tem uma formação a sério, em vez</p><p>de dois anos numa escola de boas maneiras.</p><p>— O professor está aqui? — pergunta ela, olhando para o relógio</p><p>de pulso. — Temos de ir a Waterbury esta tarde.</p><p>Pelos vistos, não sou a única pessoa que Spencer desilude.</p><p>Pergunto-me o que estarão a planear fazer no hospital psiquiátrico</p><p>estadual. Imagino-a a andar ao lado do meu marido, a tirar fios de</p><p>conversa científica da cartola e a fazer um ramalhete verbal para lhe</p><p>oferecer — um que, pelo seu próprio tema, Spencer ache irresistível.</p><p>Neste aspeto, sempre fui a intrusa. Não sei tanto sobre eugenia</p><p>como o meu pai ou o meu marido. Como seria estar sentada à</p><p>mesa, a jantar com eles, dizer algo relevante e vê-los olhar para</p><p>mim como alguém a ter em conta, e não como algo a descartar?</p><p>Sinto aquela doce espiral de insurreição vir ao de cima. Tenho</p><p>outra vez dez anos, estou a subir ao telhado e a gritar para a boa</p><p>gente de Comtosook.</p><p>— Ele não lhe disse?</p><p>— Não me disse o quê?</p><p>— Que ia encontrar-se com o professor Perkins? — Bem, pelo</p><p>menos, isso não era mentira. — O Spencer ia enviar-lhe uma nota a</p><p>explicar… mas depois as preocupações são tantas, sabe como é…</p><p>— Senhora Pike — interrompe Abigail. — Que nota?</p><p>— Uma nota a dizer que ia eu a Waterbury, em vez dele.</p><p>Abigail fica a olhar para mim, mas é demasiado educada para</p><p>dizer o que está a pensar: que eu nunca recebi formação em serviço</p><p>social, que o facto de ter nascido numa família de académicos</p><p>especializados em eugenia não faz de mim automaticamente um</p><p>deles. Os seus olhos pousam na minha barriga protuberante.</p><p>— O Spencer tinha a certeza de que era seguro — acrescento.</p><p>Isso acaba por ser o argumento decisivo: Abigail mais depressa</p><p>cortaria um braço do que questionaria uma opinião de Spencer. Os</p><p>seus lábios cerram-se numa linha fina, avalia-me e acena com a</p><p>cabeça.</p><p>— Bem, então vamos embora.</p><p>O Vermont precisa de um estudo de saúde mental que</p><p>localize todos os casos de deficiência mental dentro</p><p>das nossas fronteiras e instituições, para um exame</p><p>psiquiátrico</p><p>minucioso de todos os indivíduos</p><p>dependentes e delinquentes.</p><p>Asa R. Gifford, «Relatório do Presidente»,</p><p>Sociedade de Assistência às Crianças do Vermont,</p><p>Segundo Relatório Anual, 1921</p><p>O Hospital de Alienados do estado do Vermont foi construído em</p><p>Waterbury, em 1890, para aliviar a sobrelotação do Asilo em</p><p>Brattleboro. O doutor Stanley, o superintendente, tinha vindo jantar</p><p>uma vez a nossa casa, quando eu tinha treze anos, depois de ele ter</p><p>testemunhado a favor da lei da esterilização de 1927, que não foi</p><p>aprovada. Lembro-me dos círculos de suor à volta do colarinho, do</p><p>facto de ele não comer couves de Bruxelas e da forma como se</p><p>aproximava demasiado de mim enquanto fazia conversa.</p><p>— Seria de esperar que o grupo com maior representação em</p><p>Waterbury fosse a família da coreia de Huntington, por causa da</p><p>doença mental hereditária — diz Abigail, enquanto deixamos o lugar</p><p>de estacionamento e subimos a rua. Agora que está decidida a pôr-</p><p>me a par de tudo o que perdi até à realização desta reunião, mostra-</p><p>se conversadora, quase amigável. — Mas não, acontece que também</p><p>há muitos piratas e ciganos.</p><p>Entretanto, chegámos à porta do Edifício A, a nova ala onde se</p><p>encontram muitos pacientes do sexo feminino. Abigail vira-se para</p><p>mim, com os olhos a brilhar.</p><p>— Qual é a sensação de acordar ao lado de um homem que tem</p><p>tanta… tanta visão? — pergunta ela, e depois fica corada como um</p><p>tomate.</p><p>Uma memória: estou no Gabinete de Estudos da Eugenia na</p><p>Church Street e fui lá dizer a Spencer que vamos ter um bebé. Abro</p><p>a porta do escritório e encontro-o com Abigail, que está a rir-se de</p><p>qualquer coisa que Spencer disse. Ela está sentada na beira da</p><p>secretária e tem a mão no antebraço dele.</p><p>— Cissy! — exclama ele, e está a sorrir, e eu não sei se é porque</p><p>cheguei ou porque ela estava ali com ele.</p><p>De repente, a porta da instituição abre-se. Somos sugadas lá</p><p>para dentro, porque o Inferno é um vácuo. Enfermeiras com</p><p>chapéus brancos dobrados como origâmis movem-se</p><p>silenciosamente, aparentemente alheias à paciente que chora junto</p><p>à receção ou à que corre nua por um corredor, com o cabelo</p><p>molhado a pingar atrás dela. Uma rapariga imunda pouco mais velha</p><p>do que Ruby está sentada num banco, vestindo uma camisa que lhe</p><p>prende os braços às ripas de madeira atrás de si. Debaixo do banco,</p><p>está uma poça; acho que deve ser urina.</p><p>— Senhora Alcott! — O doutor Stanley aproxima-se, envergando</p><p>a sua bata de um branco imaculado. Pergunto-me como consegue</p><p>mantê-la tão limpa num ambiente como aquele. Vira-se para mim,</p><p>demasiado próximo para me sentir confortável. — Creio que não tive</p><p>o prazer…</p><p>— Teve, sim — digo, estendendo-lhe a mão. — Cecelia Beaumont</p><p>Pike.</p><p>— Cissy? Cissy? Não há dúvida de que cresceu. — Olha de</p><p>relance para a minha barriga saliente. — Em todos os sentidos, se</p><p>me permite acrescentar. Ao que parece, devo felicitá-la.</p><p>— Obrigada.</p><p>— A senhora Pike veio hoje em substituição do professor —</p><p>explica Abigail.</p><p>O doutor Stanley esconde bem a sua surpresa.</p><p>— Excelente. Bem, se me seguir, podemos falar com mais</p><p>privacidade no meu gabinete.</p><p>E segue corredor afora, à espera de que o sigamos. Abigail fá-lo</p><p>de imediato. O olhar vazio da mulher que está sentada no banco</p><p>deixa-me presa ao chão.</p><p>— Senhora Pike! — chama Abigail rispidamente, e eu obrigo-me</p><p>a desviar o olhar.</p><p>O doutor Stanley, vendo uma oportunidade de impressionar</p><p>Spencer por meu intermédio, decide ir pelo caminho mais longo. Há</p><p>sítios onde os corredores estão tão congestionados de doentes, que</p><p>temos de caminhar em fila indiana.</p><p>— A Câmara dos Representantes acabou de aprovar a construção</p><p>de um novo edifício para as pacientes gravemente perturbadas.</p><p>Podem ver como este está sobrelotado.</p><p>— Qual é a vossa população? — pergunta Abigail.</p><p>— Novecentos e noventa e sete — diz Stanley, e depois repara</p><p>numa enfermeira que acompanha uma rapariga de olhar furibundo</p><p>escadas acima, seguidas de um auxiliar que carrega uma pequena</p><p>mala.</p><p>— Novecentos e noventa e oito.</p><p>O médico gesticula em direção a uma porta que dá para uma</p><p>sala grande e soalheira, mais uma vez cheia de pacientes.</p><p>— Eu acredito no trabalho industrial. Mãos ociosas geram mentes</p><p>ociosas.</p><p>As mulheres estão sentadas às mesas a tecerem juncos em</p><p>cestos ou a montarem molas de roupa. Olham para mim e veem</p><p>uma senhora rica vestida com roupa elegante de grávida. Não</p><p>percebem que sou uma delas.</p><p>— Vendemos as coisas que elas fazem — diz Stanley</p><p>orgulhosamente. — Usamos os lucros para entretenimento das</p><p>pacientes.</p><p>E será que vêm com um selo na parte de baixo? Feito com</p><p>relutância, por um indivíduo que não conseguia enfrentar a vida real.</p><p>O superintendente leva-nos mais para o fundo do corredor, até</p><p>uma porta fechada.</p><p>— Infelizmente, nem todas as nossas pacientes estão dispostas a</p><p>cooperar — diz ele, e olha para mim. — Não sei se uma mulher no</p><p>seu estado devia…</p><p>— Eu estou bem.</p><p>E, para prová-lo, abro eu mesma a porta.</p><p>E a seguir desejo não tê-lo feito.</p><p>Dois homens corpulentos estão em lados opostos de uma</p><p>banheira cheia de água, com as mãos a empurrarem para baixo os</p><p>ombros de uma mulher nua. Antes de ela ficar submersa, reparo que</p><p>tem os lábios azuis e os seios enrugados como uvas secas numa</p><p>videira. Por cima da sua cabeça, uma torneira de onde sai um jorro</p><p>de água constante. Ao lado dela, outra mulher está deitada de</p><p>barriga para baixo sobre uma marquesa, com um lençol a tapar-lhe</p><p>a parte superior do corpo. Uma enfermeira bombeia um grande</p><p>volume de água através de um tubo enfiado no reto da paciente.</p><p>— A hidroterapia e a irrigação do cólon têm-se revelado muito</p><p>benéficas para os pacientes problemáticos — diz Stanley. — Mas eu</p><p>trouxe-vos aqui para verem outra coisa. Minhas senhoras, orgulho-</p><p>me de vos apresentar a primeira paciente a submeter-se a</p><p>esterilização voluntária na nossa instituição. Está mesmo aqui. —</p><p>Levou-nos para o fundo da sala. — A salpingectomia foi efetuada</p><p>quando ela deu entrada na enfermaria para ser tratada a um</p><p>problema de cólon irritável. Descende de uma das dez famílias</p><p>originais incluídas no estudo, uma família com um longo historial</p><p>genético de depressão e problemas comportamentais. Eu e o doutor</p><p>Kastler providenciámos as duas assinaturas necessárias.</p><p>Paramos noutra marquesa, ao lado da qual se encontra uma</p><p>assistente de bata branca, como o doutor Stanley. Deitada lá em</p><p>cima, está uma mulher, a tremer de frio.</p><p>— Ela já está bastante bem agora — diz o psiquiatra, em tom</p><p>entusiástico. — Todo este espalhafato — e agita o braço de forma</p><p>vaga — não tem nada a ver com a operação.</p><p>A assistente enrola um lençol ensopado em água fria à volta da</p><p>paciente, mumificando-a enquanto ela bate os dentes.</p><p>— As compressas húmidas tendem a resultar nos casos difíceis —</p><p>diz o doutor Stanley.</p><p>— O que é que ela fez? — ouço-me perguntar.</p><p>— Tentativa de suicídio. Pela terceira vez.</p><p>Vejo agora que os seus pulsos saem por entre o lençol e que</p><p>estão ligados. Podia ser eu… Se o meu pai não fosse Harry</p><p>Beaumont e o meu marido Spencer Pike, estaria eu deitada naquela</p><p>maca?</p><p>— Eu… peço desculpa…</p><p>Passando pelo doutor Stanley, saio para o corredor do hospital.</p><p>Passo apressadamente pela sala comum apinhada de gente e pela</p><p>rapariga amarrada ao banco e dobro a esquina às cegas, indo contra</p><p>uma paciente. É baixa e morena, com o cabelo apanhado em</p><p>tranças oleosas. Os seus braços estão arranhados do ombro até ao</p><p>pulso.</p><p>— Eles também vão tirar-te o bebé — diz ela.</p><p>Cruzo os braços sobre a barriga, para a proteger. Quando ela</p><p>estende a mão para me tocar, dou meia-volta e corro o mais</p><p>depressa que posso por aquele labirinto até à entrada do hospital.</p><p>Abrindo as portas, encho os pulmões de ar até mais não poder e</p><p>sento-me nos degraus de pedra. Passados uns instantes, levanto a</p><p>manga da minha blusa e desenrolo a ligadura que Spencer me pôs</p><p>no pulso. O corte continua com ar assanhado, como uns lábios</p><p>cerrados sobre a pele.</p><p>Afinal, é verdade o que Spencer diz: algumas mulheres foram</p><p>talhadas para ser assistentes sociais e eu não sou uma delas. Eu</p><p>estou destinada a ser a mãe dos filhos dele, e nem isso consigo</p><p>fazer bem.</p><p>É nestes preparos que Abigail me encontra, passados quinze</p><p>minutos. Não consigo olhá-la nos olhos, pois sinto-me envergonhada</p><p>do meu comportamento. Ela senta-se ao meu lado. Vejo-a a olhar</p><p>para a minha cicatriz, mas não faz comentários.</p><p>— Da primeira vez que assisti aqui a estas terapias — confessa</p><p>—, voltei para o escritório e apresentei a minha demissão, dizendo à</p><p>minha chefe que não tinha coragem para fazer carreira na saúde</p><p>pública. Sabe o que ela me disse? Que era exatamente por isso que</p><p>tinha de fazê-lo. Para que houvesse cada vez menos pessoas a</p><p>terem de sofrer.</p><p>Dito desta forma, até faz sentido. É a essência do serviço social:</p><p>faz o que puderes hoje para poderes mudar o mundo amanhã. E, no</p><p>entanto, pergunto-me se alguém terá perguntado à paciente porque</p><p>não queria continuar a viver, antes de a terem prendido com</p><p>correias. Pergunto-me se terá tido alguma coisa a ver com o facto de</p><p>ela já não poder ter filhos.</p><p>Acima de tudo, pergunto-me por que razão Abigail e o doutor</p><p>Stanley defenderam a esterilização daquela paciente, mas não</p><p>permitiram que ela tirasse a própria vida. Qualquer uma dessas</p><p>coisas a impediria de transmitir os seus genes a descendentes.</p><p>Assim sendo, porque não dar-lhe a escolher?</p><p>— Não desistiu — observo.</p><p>Abigail abana a cabeça.</p><p>— E a senhora também não vai desistir — diz ela, sem ser</p><p>indelicada, enquanto me puxa a manga para baixo. — Amanhã, é às</p><p>oito da manhã. Venha ter comigo ao meu gabinete, na Church</p><p>Street.</p><p>P: Porquê esterilizar?</p><p>R: Para livrar a raça de quem tem probabilidade de transmitir as</p><p>tendências disgénicas de que enferma. Para diminuir a</p><p>necessidade de certa caridade. Para reduzir os impostos. Para</p><p>ajudar a aliviar a miséria e o sofrimento. Para fazer o que a</p><p>natureza faria em condições naturais, mas de forma mais</p><p>humana. A esterilização não é uma medida punitiva, é</p><p>estritamente preventiva.</p><p>Sociedade Americana de Eugenia</p><p>A Eugenics Catechism, 1926</p><p>Quando volto de carro para casa, o Sol já está suficientemente</p><p>baixo para me bater de frente nos olhos e para agraciar as</p><p>margaridas amarelas que orlam o Otter Creek Pass com coroas</p><p>douradas. A necessidade de que chegue o dia de amanhã preenche-</p><p>me de tal forma, que sou capaz de rebentar.</p><p>Estaciono o carro e subo os degraus do alpendre. Quando me</p><p>apresso em direção à porta, a minha bota bate de lado em qualquer</p><p>coisa pequena e leve. Olho para baixo e vejo um cesto que não é</p><p>maior do que um punho fechado. Ao contrário do trabalho das</p><p>pacientes que vi hoje, este tem um padrão complicado e um</p><p>entrançado perfeito.</p><p>Enfio-o no bolso do vestido e entro em casa.</p><p>— Cissy? — A voz de Spencer atrai-me como um íman. Dou com</p><p>ele à porta do escritório, a segurar o seu uísque do final da tarde. —</p><p>Apresso-me eu a vir da universidade para casa, para pedir desculpa</p><p>à minha adorável esposa por não ter ido almoçar, e descubro que ela</p><p>se foi embora e me abandonou.</p><p>— Apenas temporariamente — digo, beijando-lhe a face.</p><p>— E o que é que te deixou tão bem-disposta?</p><p>Vejo Ruby, como uma peça de mobília ao longe, à escuta quando</p><p>não devia.</p><p>— A Sociedade de Assistência às Crianças — minto. — Tive uma</p><p>reunião.</p><p>Os olhos de Ruby desviam-se. Eu ter-lhe-ia dito, se houvesse</p><p>reunião; digo sempre. Informo-a sempre dos meus movimentos e</p><p>localização, para o caso de Spencer querer saber.</p><p>— Boas notícias? — pergunta ele.</p><p>— Está tudo a melhorar.</p><p>Ruby segue-me até ao quarto e começa a desabotoar-me as</p><p>costas do vestido, nos lugares que já não alcanço.</p><p>— Sei o que estás a pensar — digo.</p><p>Mas ela continua calada, enquanto me puxa o tecido por cima da</p><p>cabeça e me entrega um confortável vestido de algodão sem</p><p>mangas para usar ao jantar. O cesto cai do bolso onde o tinha</p><p>guardado.</p><p>Pego nele e ponho-o na gaveta da minha mesinha de cabeceira.</p><p>Vejo que aquilo também a deixa curiosa, mas finjo não notar. Não</p><p>lhe devo explicações — nem sobre o cesto nem sobre o meu</p><p>paradeiro. E, neste momento, estou demasiado excitada com a</p><p>perspetiva do dia seguinte para me preocupar com o que acontecerá</p><p>quando Spencer descobrir o que fiz hoje.</p><p>Nessa altura, reparo que Ruby está a usar as botas que lhe dei.</p><p>Ela entra no roupeiro para pendurar o vestido, o roupeiro de onde</p><p>eliminou os vestígios da minha sessão espírita, e depois vai até à</p><p>cama. Enfiando a mão por baixo da almofada, devolve-me a</p><p>biografia do senhor Houdini que escondeu por mim.</p><p>É a sua forma de me dizer que o meu segredo está a salvo de</p><p>Spencer. Os nossos olhos encontram-se.</p><p>— Obrigada — murmuro.</p><p>— Acredita nisso, Miz Pike? — sussurra Ruby acaloradamente. —</p><p>Acha que as pessoas podem voltar do Além?</p><p>Aperto-lhe a mão e aceno afirmativamente. No fim de contas,</p><p>sou a prova viva disso mesmo.</p><p>No nosso estudo da genealogia das famílias que têm</p><p>sido uma despesa para o Estado e para as cidades,</p><p>descobrimos uma série delas com antepassados</p><p>franceses e indígenas, às vezes com uma mistura de</p><p>raça negra.</p><p>H. F. Perkins, «Project #1», Arquivo do EEV,</p><p>«Projects-Old», 1926</p><p>Oxbury é uma vila minúscula nas margens do lago Champlain</p><p>que, com o objetivo de proteger os inocentes, foi rebatizada de</p><p>Fleetville nos relatórios de Abigail Alcott.</p><p>— Reconstituir a genealogia desta família em particular — diz-me</p><p>ela enquanto caminhamos em direção ao acampamento cigano —</p><p>deve ter sido um trabalho tão abrangente como reconstituir a</p><p>linhagem dos sapos no rio.</p><p>Depois de os trabalhadores no terreno terem identificado as</p><p>famílias a ser estudadas, tinham passado a pente fino os registos em</p><p>Waterbury, assim como na prisão estadual, na Escola Industrial do</p><p>Vermont e na Escola para os Deficientes Mentais em Brandon, para</p><p>ver quais os membros da família que por lá tinham passado. As</p><p>entrevistas com professores, pastores, vizinhos, e até parentes</p><p>distantes que tinham conseguido elevar-se acima do comportamento</p><p>delinquente dos seus familiares, tinham completado a história do</p><p>infortúnio da família, que foi compilada num relatório final.</p><p>Abigail deixou-me ler as suas notas de várias visitas à área: os</p><p>Delacours são um misto de sangue franco-canadiano e indígena,</p><p>descendentes de dois primos direitos que se casaram pela Igreja</p><p>Católica Romana e tiveram dezassete filhos, dez dos quais débeis</p><p>mentais e três que não tinham qualquer noção daquilo a que Abigail</p><p>chamava «decência sexual». As gerações subsequentes geraram</p><p>alcoólicos, criminosos e indigentes. Havia membros de várias</p><p>famílias que viviam juntos numa pequena cabana. Durante os</p><p>últimos seis anos, tinham-se mudado de Hinesburg para Cornwall,</p><p>Burlington, Weybridge e Plattsburgh, mas continuavam a regressar a</p><p>Fleetville durante o verão, onde vendiam o artesanato que faziam</p><p>durante o inverno e pescavam como forma de subsistência.</p><p>Enquanto grupo, o seu principal defeito era a debilidade mental, mas</p><p>também não se podia descurar a sua associação à criminalidade,</p><p>dependência e hábitos nómadas.</p><p>Nos papéis de Abigail, os Delacours são designados Moutons, o</p><p>nome do seu caniche de estimação, segundo ela me confidenciou. É</p><p>política das assistentes sociais manter a identidade de quem está a</p><p>ser investigado protegida da curiosidade pública.</p><p>— Nem queira saber como é fácil obter informação — diz Abigail.</p><p>— Vá a uma vila qualquer e comece a fazer perguntas. Todos os</p><p>lugares têm uma família que gera sempre a mesma reação: «Oh,</p><p>esses!»</p><p>Parece-me que, se toda a gente já conhece essas pessoas, não</p><p>vale a pena usar pseudónimos.</p><p>Enquanto caminhamos em direção ao lago, lembro-me de algo</p><p>que o meu pai me ensinou: quanto mais próximo da água uma</p><p>pessoa vive, menos sucesso tem. «Olha para os “ratos do rio”», dizia</p><p>ele, «e depois olha para mim.» Isto é, a sua casa no alto da colina</p><p>em Burlington, o mais longe possível do lago.</p><p>Quando Abigail se aproxima, é fácil ver que já ali esteve antes.</p><p>Crianças descalças correm para ela e enfiam as mãos nos bolsos da</p><p>sua saia para tirarem rebuçados. Um adolescente que está a talhar</p><p>um remo em madeira sorri-lhe timidamente.</p><p>— E eles sabem? — pergunto baixinho. — Quer dizer, sabem por</p><p>que razão está aqui?</p><p>Ela mantém o sorriso.</p><p>— Sabem que</p><p>estou interessada nas suas vidas. As pessoas como</p><p>eu normalmente não estão. E é precisamente por isso que eles</p><p>falam.</p><p>Paramos numa cabana e Abigail bate na estaca que serve de</p><p>ombreira, à falta de aldraba.</p><p>— A Jeanne está à nossa espera — diz ela.</p><p>E com efeito a aba que serve de porta abre-se. Uma mulher</p><p>baixa, pouco mais velha do que Abigail, manda-nos entrar com ar</p><p>hesitante e convida-nos a sentar a uma mesa que acabou de ser</p><p>levantada.</p><p>A cabana consiste num espaço único. Há um balde junto à porta</p><p>cheio de água limpa e uma pilha de pratos e copos sujos em</p><p>equilíbrio precário na bancada. Mas subsiste a sensação de que o</p><p>lugar foi limpo por nossa causa, e essa é a primeira nota que Abigail</p><p>toma no seu bloco.</p><p>— Jeanne — diz ela, com um sorriso que não lhe chega aos</p><p>olhos. — Estou tão feliz por conhecê-la. Esta é a senhora Pike.</p><p>Os olhos de Jeanne não sobem para lá da minha barriga.</p><p>— É o seu primeiro filho?</p><p>— É.</p><p>— Eu também tenho um filho — diz Jeanne com veemência. —</p><p>Um rapaz.</p><p>— Sim — replica Abigail. — A sua tia Louisa falou-me muito sobre</p><p>o Norman.</p><p>— Oh! — responde Jeanne, balançando a cabeça. — Ele era o</p><p>preferido dela. Costumava levá-lo quando ia à procura de plantas na</p><p>floresta, zimbro, abeto negro e sanguinária.</p><p>Por cima do ombro de Abigail, vejo as palavras que ela está a</p><p>escrever no bloco. Cabelo curto, saia presa com alfinetes-de-ama.</p><p>Meias enroladas abaixo do joelho. Parece perturbada.</p><p>— O filho da Jeanne frequenta a Escola para Débeis Mentais em</p><p>Brandon — explica-me Abigail. — A Louisa disse que a senhora</p><p>recebeu uma carta dele.</p><p>Pelo menos, isto parece animá-la. Enquanto se apressa a ir</p><p>buscá-la, Abigail aproxima-se mais de mim.</p><p>— O Estado teve um papel determinante para conseguir internar</p><p>o rapaz. Quando as assistentes sociais cá vieram, encontraram-no</p><p>sentado a comer carne crua. Carne crua!</p><p>Jeanne regressa passado um momento, segurando</p><p>orgulhosamente a carta.</p><p>— Que idade tem agora o Norman? — pergunta Abigail.</p><p>— Faz dez em outubro.</p><p>— Porque é que não me lê o que ele escreveu?</p><p>Jeanne hesita, mas apenas por um instante. Vai tropeçando na</p><p>caligrafia pouco legível do rapaz, corrigindo-se à medida que avança.</p><p>Analfabetos, escreve Abigail. Mãe e filho. Mas, a Jeanne, diz:</p><p>— Bem, parece um verdadeiro académico!</p><p>Os olhos de Jeanne tornaram-se mais brandos, pensando que</p><p>tinha encontrado uma amiga em Abigail.</p><p>— Senhora Alcott, a senhora trabalha para o Estado… importa-se</p><p>de perguntar quando é que o Norman volta para casa?</p><p>De repente, percebo porque estava esta mulher tão ansiosa por</p><p>convidar uma desconhecida a ir a sua casa. Ela quer arrancar tanta</p><p>informação a Abigail como Abigail está a tentar arrancar-lhe.</p><p>— Se me dão licença — digo —, vou só apanhar um bocadinho</p><p>de ar.</p><p>Caminho pelas redondezas, deixando as botas enterrarem-se na</p><p>lama macia. Há rapazes a jogarem com uma bola de trapos, com os</p><p>ângulos retos dos seus braços ossudos erguidos contra o azul do</p><p>céu, enquanto tentam apanhá-la bem. Eu devia estar a tentar saber</p><p>o máximo possível sobre aquela família.</p><p>Vejo uma velhota sentada à entrada de uma tenda com um</p><p>cachimbo na boca, com as mãos a mexerem-se agilmente sobre um</p><p>monte de juncos que começam a tomar a forma de um cesto.</p><p>Começo a aproximar-me dela com um sorriso no rosto, e ela levanta</p><p>a cabeça. Embora não fale nem mova um músculo, a expressão do</p><p>seu olhar é suficiente para me fazer mudar de direção. Em vez disso,</p><p>vou ter com um homem que está em pé, de costas para mim, a</p><p>pescar. Lança e recolhe a linha com ritmo e graciosidade, como se</p><p>fizesse parte de um bailado complexo. Usa calças presas por</p><p>suspensórios e o cabelo preto chega-lhe a meio das costas, fazendo-</p><p>me sentir arrependida de ter cortado o meu curto, como se usa</p><p>agora.</p><p>Mostre interesse no que eles estão a fazer, era a primeira regra</p><p>de Abigail.</p><p>— Olá. — Desço até à água e, mesmo assim, ele não se vira. —</p><p>Vejo que está à pesca.</p><p>Brilhante, Lia, penso. E a seguir vais dizer-lhe que é cigano?</p><p>Ele volta-se e tira um peixe de trinta centímetros do anzol verde</p><p>e preto. Apercebo-me de que é o homem que vi a observar-me nas</p><p>comemorações do Dia da Independência. Os seus olhos arregalam-</p><p>se e perscrutam-me o rosto como se nunca tivesse visto ninguém</p><p>como eu. E talvez não tenha. Talvez os ciganos convivam connosco</p><p>tão raramente quanto nós convivemos com eles.</p><p>Apreensiva, olho para o cesto que ele tem aos pés. Está cheio de</p><p>peixe a contorcer-se: percas, que reconheço, e grandes peixes-</p><p>agulha sarapintados, cujo nome desconheço.</p><p>— Olá — repito, decidida a pô-lo à vontade. — O meu nome é</p><p>Cissy Pike — digo, estendendo a mão.</p><p>Ele fica a olhar para ela durante um longo momento. Depois</p><p>agarra-a como quem está a afogar-se.</p><p>— N’wibgwigid Môlsem — murmura.</p><p>Analfabeto, escreveria Abigail. Mas tenho a sensação de que eu</p><p>não escolheria essa palavra.</p><p>— O meu nome é Gray Wolf — traduz ele.</p><p>— Fala inglês!</p><p>— Melhor do que a senhora fala alnôbak.</p><p>Ainda não me largou a mão. Retiro-a gentilmente, pigarreio e</p><p>inicio uma conversa educada.</p><p>— Vive aqui?</p><p>— Vivo em toda a parte.</p><p>— Mas com certeza que tem uma casa…</p><p>— Tenho uma tenda. — Os seus olhos fitam os meus, tal como</p><p>na Sala dos Espelhos. — Não preciso de muito.</p><p>Fosse qual fosse o discurso que tivesse planeado, varre-se-me da</p><p>cabeça.</p><p>— Eu vi-o — ouço-me dizer. — No Quatro de Julho. Andava a</p><p>seguir-me.</p><p>— E hoje? — pergunta ele. — É a senhora que anda a seguir-me?</p><p>— Oh, não! Nem sequer sabia que estava… isto é, vim com a</p><p>Abigail Alcott.</p><p>Perante isto, ele manifesta desalento. Começa a arrumar o</p><p>equipamento de pesca, de costas para mim.</p><p>— Então, veio aqui buscar mais rapazes nossos para levar para a</p><p>escola industrial? Ou dizer-nos que vamos para o Inferno porque</p><p>rezamos numa igreja diferente? Ou talvez descobrir quem se</p><p>embebedou na vila e desmaiou na Church Street?</p><p>Os seus comentários deixam-me sem palavras. Passei a vida a</p><p>ouvir falar destes ciganos, mas eram nomes em árvores</p><p>genealógicas, não homens que vão à pesca e cuja pele é tão cálida</p><p>quanto a minha.</p><p>— Nem sequer me conhece.</p><p>Uma sombra perpassa-lhe o rosto.</p><p>— Tem razão — admite. — Não conheço.</p><p>— Talvez eu não seja como a Abigail.</p><p>Estamos separados por trinta centímetros.</p><p>— E talvez eu não seja um cigano qualquer — responde.</p><p>As palavras construíram um muro entre nós, e não consigo</p><p>pensar numa forma fácil de o derrubar a não ser retirá-lo tijolo por</p><p>tijolo. Por isso, aponto para a água.</p><p>— Que nome dá àquilo?</p><p>— Um lago.</p><p>— Não. Quero saber que nome dá àquilo — repito.</p><p>Ele olha-me atentamente.</p><p>— Pitawbagw.</p><p>— Pitawbagw. — Aponto para o Sol. — E àquilo?</p><p>— Kisos.</p><p>Baixando-me, apanho uma mão-cheia de terra.</p><p>— Ki — diz Gray Wolf, estendendo a mão para me ajudar a</p><p>levantar. Leva a mão ao de leve à minha barriga. — Chijis. Bebé.</p><p>— Senhora Pike!</p><p>Ouço Abigail a chamar-me ao longe.</p><p>— Parece que a sua boleia se vai embora — diz Gray Wolf.</p><p>— Sim… — Ponho a mão em pala sobre os olhos, tentando</p><p>encontrar Abigail, mas não consigo.</p><p>— É melhor ir. Não vai querer ver-se obrigada a passar cá a</p><p>noite.</p><p>— Não — admito, e depois apercebo-me do que disse. Corando,</p><p>olho-o nos olhos. — Como é que se diz «eu volto»?</p><p>É um desafio, e ele aceita-o.</p><p>— N’pedgiji.</p><p>— Bem, então, n’pedgiji.</p><p>Ele desata a rir.</p><p>— Acabou de me dizer que vai dar um peido.</p><p>Se possível, fico ainda mais corada.</p><p>— Obrigada pela aula, senhor Wolf.</p><p>— Wli nanawalmezi, Lia.</p><p>— Que quer isso dizer?</p><p>Ele sorri devagarinho.</p><p>— Tenha cuidado consigo.</p><p>Subo a colina o mais depressa possível, carregando o peso do</p><p>meu bebé. Chijis. Na viagem de regresso, ouço Abigail contar-me</p><p>histórias de primos em segundo grau que mataram outros em rixas</p><p>de bar e de um surto crescente de doenças venéreas entre um ramo</p><p>dos Delacours.</p><p>— Ficou a saber alguma coisa? — pergunta ela finalmente,</p><p>quando já não tem mais nada para dizer.</p><p>Fiquei a saber falar a língua deles. E talvez a saber ouvir.</p><p>— Nada que a Abigail considere importante — replico, e calo-me</p><p>durante o resto da viagem até casa.</p><p>John Delacour, também conhecido como Gray Wolf,</p><p>tem particular má fama, mesmo para este clã.</p><p>Tem um</p><p>historial de consumo excessivo de álcool, crimes</p><p>sexuais, nomadismo e criminalidade, e sabe-se que</p><p>mudou de nome por várias vezes. Foi detido em 1913</p><p>por ter batido com um tijolo na cabeça de um homem.</p><p>Em 1914, foi preso por um crime de homicídio. Há</p><p>vários familiares que falam nos seus filhos ilegítimos.</p><p>John é um mentiroso rematado e muito evasivo. Por</p><p>esta razão, é absolutamente impossível arrancar-lhe a</p><p>verdade.</p><p>Extraído dos processos de Abigail Alcott,</p><p>assistente social do Departamento de Saúde Pública</p><p>Quando chego a casa, Ruby está à espera à porta, com o coração</p><p>nas mãos, e Spencer está um passo atrás.</p><p>— O que diabo pensas que andas a fazer? — brada ele, batendo</p><p>a porta atrás de mim.</p><p>Agarra-me pelos braços com tanta força, que sei que vou ficar</p><p>com nódoas negras.</p><p>— Posso explicar…</p><p>— Explica, Cissy. Explica porque é que recebi um telefonema da</p><p>minha secretária, a dizer que foste lá ter com a Abigail Alcott.</p><p>Explica porque é que a minha esposa, que está grávida de sete</p><p>meses do meu primogénito, seria suficientemente estúpida para</p><p>visitar um hospital psiquiátrico estadual de onde podia ter saído</p><p>gravemente magoada. E, por amor de Deus, para andar a passear</p><p>por um acampamento cigano qualquer…</p><p>— Não é um acampamento cigano qualquer, Spencer, e eu estou</p><p>bem. — Tento libertar-me, mas ele não me larga. — Queria ver o</p><p>que é que vos prende tanto, a ti e ao meu pai. É pecado?</p><p>— Não estás em condições de…</p><p>— Estou grávida, Spencer, não sou nenhuma débil mental!</p><p>— Ah, sim? — explode ele. — Santo Deus, Cissy, como é que</p><p>podes esperar que confie no teu bom senso quando tentas matar-te</p><p>numa noite e no dia seguinte vais visitar um asilo de alienados?</p><p>— Isso é injusto — digo, já com os olhos a arder.</p><p>— Injusto? Tenta imaginar como é estar aqui sentado, a pensar</p><p>que a minha mulher pode ter sido ferida ou morta por algum</p><p>lunático. A Abigail tem formação para fazer o que faz; tu não! E vais</p><p>ficar nesta casa até eu te dizer o contrário!</p><p>— Não podes fazer-me isso.</p><p>— Não? — Agarra-me os pulsos com força suficiente para me</p><p>fazer chorar. Puxa-me escadas acima. O único quarto da casa que</p><p>fecha por fora é o nosso, e Spencer arrasta-me lá para dentro. —</p><p>Estou a fazer isto para teu próprio bem.</p><p>— Para o bem de quem? — pergunto em tom de desafio.</p><p>Spencer empalidece, como se eu o tivesse esbofeteado.</p><p>— Às vezes, Cissy — sussurra —, não te conheço.</p><p>O meu marido sai do quarto, com ar rígido. Dentro de mim, o</p><p>bebé enrosca-se ainda mais.</p><p>— Desculpa — murmuro, e a única resposta que recebo é o som</p><p>da porta a ser trancada.</p><p>P: O que conta mais, a hereditariedade ou o meio?</p><p>R: São interdependentes. Essa pergunta é quase o equivalente a:</p><p>«O que é mais importante, a semente ou a terra?»</p><p>Sociedade Americana de Eugenia,</p><p>A Eugenics Catechism, 1926</p><p>A meio da noite, ouço a chave rodar. Mesmo de onde estou,</p><p>consigo sentir o cheiro a álcool em Spencer. Ele enfia-se na cama e</p><p>encosta a testa às minhas costas.</p><p>— Meu Deus, eu amo-te! — diz ele, e as suas palavras pousam</p><p>na minha pele como vapor.</p><p>Na nossa lua de mel, fomos às Cataratas do Niágara. Uma noite,</p><p>acampámos numa tenda e fizemos amor sob o céu estrelado. A água</p><p>batia como o meu sangue e, quando ele se mexeu dentro de mim,</p><p>podia jurar que as estrelas se ligaram para formar as nossas iniciais.</p><p>Agora, Spencer levanta a minha camisa de noite e encaixa-se</p><p>entre as minhas coxas. Estamos ambos a chorar e a fingir que não.</p><p>Quando ele ejacula dentro de mim, encosta o rosto molhado às</p><p>minhas costas e eu imagino as suas feições a ficarem lá gravadas,</p><p>numa versão de uma máscara mortuária que estará sempre um</p><p>passo atrás de mim.</p><p>Adormece com os braços à volta do perímetro da minha barriga,</p><p>sem que as mãos se toquem, como se já não conseguisse conter-</p><p>me.</p><p>Creio que podemos dizer com segurança que nas</p><p>sessenta e duas famílias que estudámos […] «o</p><p>sangue falou», e há todos os motivos para acreditar</p><p>que continuará a fazê-lo nas futuras gerações.</p><p>H. F. Perkins, Lessons from a Eugenical Survey of Vermont:</p><p>First Annual Report, 1927</p><p>Chove sangue de nuvens negras. Florescem rosas à meia-noite. A</p><p>água não ferve; as palavras fogem das páginas dos livros. O céu tem</p><p>a cor errada. E, enquanto caminho por este mundo estranho, o solo</p><p>está congelado debaixo dos meus pés.</p><p>— Cissy. Cissy!</p><p>Umas mãos nos meus ombros. Uma respiração no meu pescoço.</p><p>— Spencer? — digo, com voz rouca e sonolenta.</p><p>Aos poucos, vou tomando consciência das corujas que</p><p>testemunham a cena nas árvores, da lama nos calcanhares e na</p><p>fímbria da camisa de dormir, da agitação de uma noite estival. Estou</p><p>na floresta atrás da nossa casa e não faço ideia de como aqui</p><p>cheguei.</p><p>— Tiveste um episódio de sonambulismo — explica Spencer.</p><p>Sonambulismo, sim, deve ser isso. E, no entanto, aquele outro</p><p>lugar que visitei… parece que ainda consigo passar os dedos pela</p><p>lembrança dele. Spencer abraça-me e suspira junto à minha pele.</p><p>— Cissy, eu só quero que sejas feliz.</p><p>Fico com um soluço preso na garganta.</p><p>— Eu sei.</p><p>E sou um fracasso; ter tudo isto — uma boa casa, uma gravidez</p><p>saudável, um homem como Spencer — e ainda assim sentir que</p><p>falta alguma coisa.</p><p>— Eu amo-te — diz o meu marido. — Nunca amei mais ninguém.</p><p>— Eu também te amo — digo-lhe. Quem me dera que fosse</p><p>assim tão fácil.</p><p>— Porque é que não voltamos para a cama — sugere Spencer —</p><p>e esquecemos tudo isto?</p><p>Tal como esquecemos tudo o resto. Porque, se não admitirmos</p><p>em voz alta que aconteceu uma coisa horrível, quem irá dizer que</p><p>aconteceu?</p><p>Mas é difícil escapar ao hábito. Por isso, anuo e sigo Spencer de</p><p>volta a casa. Estou sempre a olhar para trás; não consigo afastar a</p><p>sensação de que há ali alguma coisa para eu descobrir. Depois de</p><p>subirmos para o alpendre, ele segura a porta para eu entrar, fazendo</p><p>tábua rasa do passado.</p><p>Só quando já estou na casa de banho, a lavar a terra dos meus</p><p>pés, é que percebo que seguro alguma coisa na mão esquerda. Esta</p><p>abre-se como uma flor: macios, flexíveis e cor de mel, são os</p><p>mocassins mais pequeninos que alguma vez vi.</p><p>1 Alusão à palavra «sissy», cujo significado pode também ser «cobarde». (N. da T.)</p><p>6</p><p>21 de agosto de 1932</p><p>Extraído de uma exposição no Terceiro Congresso</p><p>Internacional de Eugenia:</p><p>ESTA LUZ PISCA A CADA 31 SEGUNDOS.</p><p>A cada 31 segundos, os contribuintes pagaram 100</p><p>dólares para manter alienados, débeis mentais,</p><p>epiléticos, cegos e surdos em instituições públicas, e</p><p>isto só em 1927.</p><p>A meio da noite, sinto uma cãibra na parte de baixo da barriga,</p><p>que me acorda e faz olhar para o outro lado do colchão, para</p><p>Spencer, que dorme como se aquela cama de hotel fosse mesmo à</p><p>sua medida. Tento ignorar os dentes que me roem por dentro.</p><p>Mas depois sinto um rasgão, e o choque é tão grande que nem</p><p>consigo chorar. Vejo o sangue ensopar a parte da frente da minha</p><p>camisa de noite e o canino que corta como uma faca. Um focinho</p><p>coberto de escamas sai pelo buraco que fez na minha pele; a seguir,</p><p>uma pata com garras, a barriga de um réptil, uma cauda. O jacaré</p><p>que finalmente aparece entre as minhas pernas olha para cima e</p><p>sorri.</p><p>— Miz Pike…</p><p>É a voz de alguém que veio ver-me ser devorada inteira. O</p><p>maxilar do jacaré fecha-se sobre a minha coxa.</p><p>— Miz Pike… Lia!</p><p>É isto, o meu nome secreto, que faz com que o jacaré</p><p>desapareça. Quando pestanejo, vejo Ruby em camisa de dormir à</p><p>minha frente, e estamos no meio do átrio do Plaza Hotel. Os seus</p><p>olhos estão tão tristes como um desfiladeiro.</p><p>— Precisa de voltar para a cama.</p><p>Tive outro ataque de sonambulismo. E Ruby tem estado de</p><p>atalaia, já que foi por isso que veio nesta viagem. Conduz-me à</p><p>nossa suite, abre a porta e desvia os olhos de Spencer, que continua</p><p>a dormir tranquilamente na sua cama.</p><p>— Ninguém consegue ter uma noite descansada longe de casa —</p><p>sussurra Ruby, arranjando desculpas; depois puxa os cobertores</p><p>para trás e ajuda-me a deitar, como se fosse ela a mais velha de nós</p><p>as duas.</p><p>Engulo em seco e faço com que os meus olhos se adaptem à</p><p>escuridão. Mantenho as pernas dobradas, para o caso de aquele</p><p>jacaré ainda andar a nadar por entre os lençóis.</p><p>Extraído do programa do Terceiro Congresso</p><p>Internacional de Eugenia:</p><p>I. Apresentação e boas-vindas: Dr. H. F. Perkins, presidente da Sociedade</p><p>Americana de Eugenia</p><p>II. «A Análise Biológica das Populações Imigrantes»: Prof. Jap van Tysediik</p><p>III. «Prevenção do Colapso da Civilização Ocidental»: Dr. Roland Osterbrand</p><p>IV. «O Desaparecimento do Velho Americano: Um Estudo sobre a Melhoria</p><p>da Raça Humana»: Dr. Spencer A. Pike</p><p>O Terceiro Congresso Internacional de Eugenia realizou-se no</p><p>Museu de História Natural de Nova Iorque, e eu fui convidada por</p><p>defeito. Mesmo com o meu pai a assistir ao evento e Spencer como</p><p>orador convidado, podia ter ficado em casa entregue a mim mesma,</p><p>se não fosse o facto de há poucas semanas ter cortado os pulsos e</p><p>ter-me metido em problemas com Abigail Alcott.</p><p>Estamos sentados perto do salão de conferências, num espaço</p><p>que foi convertido numa sala de espera para os notáveis que vão</p><p>participar. Spencer está a preparar-se para a sua apresentação; o</p><p>meu pai lê as notas do programa. Ruby parece um fantasma a um</p><p>canto, com os lábios a mexerem-se silenciosamente enquanto</p><p>tricota.</p><p>Só estamos nós; os outros já saíram para fazer as suas</p><p>apresentações ou para se juntar à assistência. Até agora,</p><p>conhecemos o pioneiro do programa de esterilização no Michigan e</p><p>um fisiologista cubano que me abençoou na sua língua materna e</p><p>disse que era o dever de mulheres prendadas como eu salvarem o</p><p>mundo tendo mais filhos. Um médico nova-iorquino que cheirava a</p><p>alho passou uma hora com Spencer, a discutir sobre a despesa anual</p><p>de tomar conta dos descendentes de duas famílias com deficiência</p><p>mental (dois milhões de dólares) contra o custo único de esterilizar</p><p>os pais (150 dólares).</p><p>Descasco uma laranja e observo pela janela os visitantes do</p><p>museu que se apressam a subir os degraus de pedra. Um homem</p><p>perde o chapéu, levado pelo vento, que vai parar aos braços de um</p><p>mendigo. Uma criança pequena senta-se num degrau depois de</p><p>subir três quartos da escadaria e começa a espernear com tal força</p><p>que se veem as cuecas, cor-de-rosa como uma pétala. Isto</p><p>enquanto o meu pai e o meu marido discutem o que este devia</p><p>incluir exatamente na sua apresentação.</p><p>— Não sei, Harry — diz Spencer, andando à volta de um grande</p><p>diagrama estendido no chão como a língua de um cão. — Nós</p><p>afastámo-nos das genealogias no ano passado.</p><p>O sapato de Spencer toca na ponta do diagrama genealógico. É</p><p>um longo polvo genético, uma árvore com braços e pernas que se</p><p>enredam e cruzam, como os da maior parte das famílias</p><p>degeneradas. Está pejado de símbolos, legendados de lado. Um</p><p>círculo preto significa Alienado. Um círculo vazio significa Débil</p><p>Mental. Quadrados pretos para os que foram enviados para</p><p>reformatórios, quadrados brancos para os agressores sexuais. Este</p><p>diagrama em particular tem tantas pintas quanto um leopardo.</p><p>O professor Perkins tomou a decisão de deixar de proclamar os</p><p>diagramas genealógicos como o principal instrumento do movimento</p><p>eugénico no Vermont quando ele, Spencer e o meu pai estavam</p><p>sentados a jantar e perceberam que três membros influentes da</p><p>legislatura tinham aparecido involuntariamente nos seus diagramas,</p><p>descendendo de algumas das famílias mais degeneradas daquele</p><p>estado. Até o vice-governador estava ligado pelo casamento a uma</p><p>família de má reputação. Assim, concordaram em centrar-se antes</p><p>na melhor forma de incitar a boa raça do Vermont a reproduzir-se, e</p><p>em criar outra subdivisão da Comissão sobre a Vida no Campo — o</p><p>Comité para os Deficientes — para fazer o trabalho sujo, advogando</p><p>legislação para impedir essas pessoas de casarem e procriarem.</p><p>Deste modo, qualquer controvérsia que surgisse à volta da lei da</p><p>esterilização não seria associada pessoalmente a nenhum dos três.</p><p>Nessa noite, serviram-nos sopa de tartaruga ao jantar, o que me</p><p>deixou maldisposta, e tive de sair da mesa.</p><p>— Spencer, fizemos o que tínhamos a fazer para conseguir o</p><p>apoio público necessário para aprovar a lei da esterilização. Mas isso</p><p>já está feito. Está na altura de voltar aos princípios básicos. — O</p><p>meu pai vem ter comigo e tira uma rodela de laranja, que enfia na</p><p>boca, e depois agita os dedos em frente de Spencer. — Sentes o</p><p>cheiro? Já não vês a laranja, mas sabes que esteve ali. Não tens de</p><p>falar nos diagramas se não quiseres, Spencer. Que diabo, até podes</p><p>queimá-los, se isso te faz sentir melhor. Mas toda a gente naquela</p><p>sala se lembra do trabalho que fizemos para estudar aquelas famílias</p><p>há cinco anos. Toda a gente vai saber o que não estás a dizer.</p><p>E, com isto, saiu da sala.</p><p>Spencer olha para o diagrama.</p><p>— O que achas? — pergunta, e eu quase caio da cadeira.</p><p>— O que é que eu acho?</p><p>Estou tão chocada com o facto de me ter pedido opinião, que</p><p>tenho dificuldade em encontrar as palavras para a pronunciar. Penso</p><p>na cigana cujo filho lhe tinha sido tirado pelos serviços sociais. Em</p><p>Gray Wolf, a partir do princípio de que eu estava lá para lhe dar cabo</p><p>da vida, simplesmente por causa da cor da minha pele.</p><p>A fama, uma vez alcançada, precede-nos.</p><p>— Acho que o mal já está feito — replico.</p><p>Através da porta aberta, ouve-se o nome de Spencer, seguido de</p><p>uma salva de palmas.</p><p>Uma vez, quando era miúda, o meu pai tinha-me levado a uma</p><p>reunião de eugenistas semelhante, em São Francisco, onde sobrevivi</p><p>a um pequeno tremor de terra. Disseram-nos para nos pormos</p><p>debaixo da ombreira de uma porta até passar, e eu tentei conformar-</p><p>me com o facto de algo tão sólido quanto o chão debaixo dos meus</p><p>pés não ser afinal tão seguro quanto isso.</p><p>Quando quinhentas pessoas aplaudem ao mesmo tempo, parece</p><p>que a terra está a desintegrar-se à nossa volta. Spencer enrola o</p><p>diagrama, enfia-o debaixo do braço e encaminha-se para a sala de</p><p>conferências sob a ovação ruidosa.</p><p>— Minhas senhoras e meus senhores — começa ele, e não</p><p>preciso de continuar a ouvir para saber o que vai dizer.</p><p>Levanto-me e saio da sala, apressando-me a descer as escadas</p><p>até um dos salões de exposição. As crianças e as suas amas</p><p>parecem anãs ao lado da enorme recriação de um brontossauro. A</p><p>cabeça parece tão pequena e distante, que mal consigo divisar o</p><p>buraco da sua órbita. Creio que o seu cérebro não era maior do que</p><p>o meu punho fechado. A inteligência pertencia ao tiranossauro, com</p><p>as suas formidáveis maxilas e fiadas de dentes.</p><p>E, no entanto, ambas estas criaturas, o chamado herbívoro</p><p>inferior e o feroz carnívoro, se extinguiram devido a uma alteração</p><p>climática, ou pelo menos foi o que Spencer me contou. No final, não</p><p>importou qual era o mais inteligente, o mais forte, o melhor ou o</p><p>que conseguia reproduzir-se mais eficientemente. O mau tempo,</p><p>uma circunstância fora do seu controlo, levou a melhor.</p><p>Ouve-se um ruído surdo e prolongado, e apercebo-me de que</p><p>vem lá de cima, quando a assistência aplaude alguma coisa que</p><p>Spencer disse.</p><p>Viro-me para Ruby, que obviamente esteve sempre alguns passos</p><p>atrás de mim.</p><p>— Vamos dar um passeio — sugiro.</p><p>Rosabelle… responde… diz… reza, responde…</p><p>olha… diz… responde, responde… diz.</p><p>Código inventado por Harry Houdini e a sua esposa, com base</p><p>numa velha rotina de leitura da mente usada em espetáculos de</p><p>vaudeville, para provar que o seu espírito regressou depois da</p><p>morte.</p><p>Nova Iorque no verão não pode ser muito diferente do Inferno. O</p><p>cheiro a suor misturado com a salmoura dos barris de picles dos</p><p>vendedores ambulantes, a pressão de uma centena de pessoas que</p><p>nos olham como se fôssemos transparentes, os ardinas a venderem</p><p>tragédias por um níquel, o escape dos táxis que sobe no ar como um</p><p>espectro… Isto é um submundo, e qualquer pessoa que aqui esteja</p><p>nos pode indicar uma saída de emergência. Na verdade, é a menina</p><p>que vive com a mãe debaixo de um toldo que enrola a minha nota</p><p>de dólar como se fosse um cigarro, a enfia atrás da orelha direita e</p><p>depois nos leva, a mim e a Ruby, até uma casa de pedra a três</p><p>quarteirões de distância. Por cima da campainha, há uma pequena</p><p>placa gravada: HEDDA BARTH, ESPIRITUALISTA.</p><p>A mulher que abre a porta é ainda mais pequena do que Ruby,</p><p>com cabelo branco comprido que lhe cai abaixo dos ombros.</p><p>— Minhas senhoras — diz Hedda Barth, a Médium do Século. —</p><p>O que posso fazer por vocês?</p><p>Se ela é mesmo médium, devia saber. Estou prestes a dar meia-</p><p>volta quando sinto Ruby a empurrar-me por trás.</p><p>— Já agora, vamos até ao fim — sussurra.</p><p>Madame Hedda foi notícia nos jornais. Discutiu com Houdini;</p><p>invocou o espírito do tio-avô do presidente da câmara, Walker. A</p><p>possibilidade de eu voltar ali e poder encontrar-me com ela é</p><p>praticamente inexistente.</p><p>— Contávamos realizar uma sessão espírita, com a sua ajuda —</p><p>digo.</p><p>— Mas não têm marcação.</p><p>— Não.</p><p>Levanto o queixo, como costumava ver o meu pai fazer, para</p><p>fazê-la sentir que o lapso era mais dela do que meu. E,</p><p>infalivelmente, ela chega-se para o lado para nos deixar entrar.</p><p>Faz-nos subir umas escadas estreitas e estica a mão para abrir a</p><p>porta. Pergunto-me se serei a única que repara que os seus dedos</p><p>não chegam a tocar-lhe e que a maçaneta gira de moto próprio.</p><p>Uma mesa hexagonal espera por nós na escuridão.</p><p>— Há a questão do pagamento — diz Hedda.</p><p>— O dinheiro não é problema — replico.</p><p>Por isso, Hedda manda-nos sentar e dar as mãos. Perscruta o</p><p>meu rosto e o de Ruby.</p><p>— Ambas sofreram muito — anuncia.</p><p>Uma vez, li uma crítica ao movimento espiritualista, em que um</p><p>cientista parisiense oferecia leituras de horóscopo gratuitas aos</p><p>transeuntes. Noventa e quatro por cento daqueles que foram</p><p>brindados com essa leitura consideraram-na pessoalmente exata. Na</p><p>verdade, cada pessoa tinha recebido o mesmo horóscopo, que</p><p>pertencia a um dos assassinos em série mais famosos de França.</p><p>Acreditamos naquilo que queremos acreditar; ouvimos o que</p><p>queremos ouvir. Aquilo que Hedda Barth me disse qualquer pessoa</p><p>podia ter adivinhado; por que outro motivo eu e Rubi estaríamos ali?</p><p>Mas, de repente, a mesa começa a tremer e a abanar, ficando</p><p>levantada sobre duas pernas como um cavalo empinado. Hedda</p><p>revira os olhos e a sua boca abre-se. Olho para Ruby sem saber o</p><p>que fazer, se aquilo será normal.</p><p>— Ma poule.</p><p>A voz é mais aguda do que a de Hedda, com um certo ceceio. O</p><p>meu coração começa a bater no céu da boca e o bebé esperneia</p><p>para se libertar.</p><p>— Simone?</p><p>A palavra que Ruby pronuncia é a exclamação abafada de um</p><p>choque. Reconheço agora onde já ouvi aquela cadência: é o francês</p><p>que a própria Ruby fala e que lhe sai quando não tem cuidado ou</p><p>está cansada, ou ambas as coisas.</p><p>— Chérie, diz à tua amiga que não precisa de ter medo. Estamos</p><p>todos aqui de vigia.</p><p>— É a minha irmã — diz Ruby, muito agitada. — A Simone. É a</p><p>única pessoa que me tratava por ma poule. Minha pintainha.</p><p>A que morreu de difteria. Mas a mensagem dela perde-se na</p><p>tradução. «De vigia» podia significar tanta coisa. Será que estão a</p><p>cuidar da minha mãe? Ou estarão à minha espera?</p><p>De repente, o bebé fica inerte dentro de mim. Os meus braços</p><p>caem junto ao corpo e as minhas preocupações dissolvem-se na</p><p>língua. Deve ser assim que as pessoas se sentem antes de o seu</p><p>automóvel embater numa árvore. Esta é a luz branca de que</p><p>ouvimos falar; a chegada serena da morte.</p><p>Algo que a minha própria mãe sentiu.</p><p>Tenho tantas perguntas: Chegarei a ver o meu filho, ou será</p><p>pedir muito? Será que ele vai lembrar-se de mim? Será que vai doer?</p><p>Saberei quando vai acontecer? Mas, neste momento, basta ter a</p><p>confirmação, saber que os meus instintos estavam certos.</p><p>Madame Hedda está a sair do transe. Um fio de baba escorre-lhe</p><p>do canto esquerdo da boca, como uma vírgula. Ponho uma nota de</p><p>dez dólares em cima da mesa, uma nota que direi a Spencer que</p><p>perdi.</p><p>— Volte — diz ela, e eu percebo que se refere ao Além.</p><p>Um estudo detalhado da eugenia precisa, primeiro, de</p><p>localizar os incapazes no estado e, em segundo lugar,</p><p>descobrir, se possível, porque é que eles existem.</p><p>Excerto de uma carta datada de 8 de outubro de 1925,</p><p>de H. H. Laughlin, diretor do Serviço de Registos de Eugenia,</p><p>a Harriet Abbott</p><p>O consultório do doutor Craigh fica na Park Avenue e, enquanto</p><p>acabo de abotoar a minha blusa, espreito pela janela para aquela</p><p>rua que tenta ser algo que não é. Aquelas árvores não enganam</p><p>ninguém; continua a ser o centro da cidade, um lugar onde o asfalto</p><p>levou a melhor sobre a relva. O obstetra seca as mãos numa toalha,</p><p>tão reticente em estabelecer contacto visual comigo depois de me</p><p>ter examinado como eu com ele.</p><p>— Senhora Pike — diz ele bruscamente —, porque é que não vai</p><p>ter connosco ao consultório quando terminar?</p><p>Quando regressei ao museu, onde Spencer continuava nas suas</p><p>sete quintas a receber elogios dos colegas, não lhe contei onde eu e</p><p>Ruby tínhamos ido. Nem sequer fiz espalhafato quando ele me disse</p><p>que tinha marcado consulta para aquele médico, o melhor do</p><p>Nordeste para acompanhar uma gravidez de alto risco. É tão simples</p><p>como isto: a decisão já não estava nas minhas mãos. Eu sei o que</p><p>vai acontecer; portanto, não há razão para lutar contra isso.</p><p>Quando era miúda, o meu pai convidou o médico-legista para</p><p>jantar. Lembro-me de o ver cortar jovialmente o peito de um frango</p><p>para ilustrar a natureza do afogamento. O horror, disse ele,</p><p>apontando com uma faca para o meio das costelas, chega no</p><p>momento em que a pessoa sente que os pulmões vão rebentar. Mas</p><p>depois tenta respirar, submerge e inala água. Depois disso, já só</p><p>sente paz.</p><p>Eu submergi pela terceira vez. Vou deitar-me de costas no fundo</p><p>arenoso e ver o pôr do sol ao longo do mar.</p><p>— Senhora Pike — diz a enfermeira, enfiando a cabeça pela</p><p>porta. — Eles estão à sua espera.</p><p>— Claro. — Quando me viro, tenho o sorriso que tirei da manga.</p><p>Ela acompanha-me pelo corredor fora.</p><p>— A senhora tem aquele brilho…</p><p>Talvez o esplendor da gravidez não venha da alegria da</p><p>maternidade. Talvez todas pensemos que vamos morrer.</p><p>O consultório do doutor Craigh é escuro, forrado a painéis de</p><p>madeira, masculino; uma cabina intemporal que poderíamos</p><p>encontrar num veleiro, cheia de fumo de charuto.</p><p>— O Gomez deixou o adversário a zeros ontem à noite — está</p><p>Craigh a dizer. — Entre o Lefty, o Ruth e o Gehrig, este ano está</p><p>ganho!</p><p>Spencer, que não gosta de basebol, surpreende-me.</p><p>— Os Athletics estão outra vez em boa forma, se quer a minha</p><p>opinião.</p><p>— O Gehrig terminou a última época com 184 RBI. Não pode</p><p>estar a falar a sério se acredita… Oh, senhora Pike. Sente-se ali —</p><p>diz ele, apontando para a cadeira ao lado do meu marido.</p><p>Spencer dá-me a mão e ambos nos viramos, na expectativa,</p><p>como crianças chamadas ao diretor.</p><p>— Boas notícias — anuncia Craigh. — A sua gravidez é tão</p><p>saudável quanto seria de esperar.</p><p>Ao meu lado, Spencer descontrai.</p><p>— Estás a ver, Cissy?</p><p>— Compreendo perfeitamente as suas preocupações, dada a</p><p>experiência da sua mãe com o parto. Mas, com base nos registos</p><p>médicos que o seu marido tomou a liberdade de me enviar, as</p><p>complicações que ela teve estiveram relacionadas com uma</p><p>compleição demasiado esguia e com o tamanho do bebé. A senhora</p><p>pode ser pequena, mas as suas ancas foram feitas para ser mãe.</p><p>Felizmente, deve sair ao seu pai.</p><p>Penso no facto de o meu pai ser alto e magro, de compleição</p><p>estreita; nada parecido comigo. Mas retribuo o sorriso.</p><p>— Não só vai dar à luz este bebé em segurança e sem incidentes</p><p>— prossegue o doutor Craigh —, como espero que o traga cá para</p><p>me conhecer.</p><p>Pergunto-me quanto Spencer lhe terá pago antecipadamente</p><p>para me mentir.</p><p>Levantamo-nos e começamos a trocar apertos de mão. Spencer</p><p>ajuda-me a descer os três lanços de escadas.</p><p>— O Craigh é considerado um especialista — diz ele. — Toda a</p><p>gente, e é mesmo toda a gente, conhece o nome dele. Dizemos a</p><p>palavra bebé e há sempre alguém que fala no Craigh. Por isso, acho</p><p>que podemos sentir-nos bastante reconfortados com o seu</p><p>diagnóstico.</p><p>Dá-me um beijo rápido na face. O seu braço desliza em torno da</p><p>minha cintura de grávida; a outra mão abre a porta, para que a</p><p>cidade nos engula novamente. O sol está demasiado luminoso; não</p><p>consigo ver nada. Tenho de pôr a mão em pala para proteger os</p><p>olhos; tenho de deixar Spencer levar-me para onde vou.</p><p>Sabemos o que é a debilidade mental, e acabámos por</p><p>suspeitar que todas as pessoas incapazes de se</p><p>adaptar ao meio em que vivem</p><p>e de respeitar as</p><p>convenções sociais ou de agir de forma sensata são</p><p>débeis mentais.</p><p>Henry Goddard, Feeblemindedness: Its Causes and</p><p>Consequences, 1914</p><p>Afinal, quero fazê-lo num local familiar. Penso nisso durante a</p><p>longa viagem de comboio, de regresso a casa. Sinto-me quase zonza</p><p>com o que está para vir.</p><p>— Eu sabia — diz Spencer ao meu pai na nossa carruagem</p><p>privada. — Sabia que esta viagem ia ser boa para ela.</p><p>Quando chegamos a casa, já é quase meia-noite. Os sapos das</p><p>árvores cantam quando saímos do Packard e os olhos amarelos de</p><p>um gato em fuga observam-me do alpendre do barracão do gelo.</p><p>Quando Spencer abre a porta da nossa casa, parece um selo de</p><p>lacre a ser quebrado.</p><p>— Ruby, podes desfazer a mala amanhã de manhã — diz</p><p>Spencer, enquanto subimos as escadas para o segundo piso. —</p><p>Querida, tu também. Já devias estar na cama.</p><p>— Preciso de tomar um banho — digo-lhe. — Uns minutinhos</p><p>para descontrair, sozinha.</p><p>Ao ouvir isto, Ruby vira-se devagar. A sua boca arredonda-se</p><p>numa pergunta que não a deixo fazer.</p><p>— Ouviste o professor — digo rispidamente.</p><p>Após semanas de camaradagem, estas palavras frias e duras são</p><p>uma arma para a afastar. Ela sobe apressadamente as escadas para</p><p>os aposentos dos criados, baixando a cabeça e tentando perceber o</p><p>que correu mal entre nós.</p><p>No nosso quarto, tiro uma camisa de dormir e um penteador</p><p>muito bem dobrados do meu armário. Espero à porta da casa de</p><p>banho até Spencer sair.</p><p>— Pus o banho a correr — diz ele, e sorri olhando para a minha</p><p>barriga. — Tens a certeza de que, se entrares na banheira, vais</p><p>conseguir sair?</p><p>Estou a gravar na memória o seu sorriso, o desenho dos seus</p><p>ombros. Sinto um nó na garganta ao recordar todas as razões por</p><p>que me apaixonei por ele, de tal forma que não consigo dizer nada</p><p>por um momento.</p><p>— Não te preocupes comigo — respondo finalmente, e quando o</p><p>digo estou a pensar para todo o sempre.</p><p>Uma casa sossega como um homem gordo que adormece:</p><p>primeiro, há um leve contorcer das paredes e do soalho, o teto</p><p>suspira e,finalmente, há o respirar pesado da atmosfera, e depois</p><p>tudo para. A casa de banho está cheia de vapor; dispo a roupa e</p><p>deixo que aquela neblina me envolva. O meu coração bate tão</p><p>depressa, que tenho a certeza de conseguir vê-lo debaixo da pele —</p><p>mas, quando olho, o espelho está embaciado. Em vez de limpá-lo,</p><p>ponho as mãos no vidro, deixando uma marca. Com um dedo,</p><p>rabisco uma única palavra: S… O… C… O… R… R… O. Imagino o que</p><p>acontecerá quando me encontrarem, imóvel e branca como uma</p><p>estátua de mármore. Imagino que todos dirão coisas agradáveis</p><p>sobre mim; que irão olhar para mim cheios de tristeza e amor.</p><p>À uma da manhã, a água do banho já está fria. As minhas pernas</p><p>estão ao alto, de ambos os lados da minha barriga empinada; os</p><p>meus pulsos estão equilibrados nos joelhos.</p><p>A lâmina de barbear de Spencer está pousada na borda da</p><p>banheira.</p><p>Agarro-a com cuidado e faço um corte mesmo por baixo do</p><p>cotovelo. O sangue aparece e toco nele com o dedo; esfrego-o na</p><p>boca como se fosse batom. É viscoso e salgado, como uma moeda</p><p>na língua. Não me surpreende descobrir que me tornei amarga até à</p><p>medula.</p><p>Quando aquele corte deixa de doer, volto a pressionar a lâmina,</p><p>um centímetro mais abaixo.</p><p>Duas linhas paralelas. A minha vida e a do meu filho. Elas vão</p><p>salvá-lo deste meu casulo, e terá uma vida melhor. Caso contrário,</p><p>assim que deixar o meu corpo, vai pertencer a outras pessoas: a</p><p>Spencer e ao meu pai. E, um dia, vai olhar para mim da mesma</p><p>maneira que eles e ver uma pessoa que não compreende a ciência</p><p>que eles criam; uma pessoa suficientemente ingénua para acreditar</p><p>que uma quantidade tão incomensurável como o amor pode ter o</p><p>mesmo poder combustível que a dinamite.</p><p>E, se por algum milagre este bebé for uma rapariga, acho que</p><p>será pior. Terei fracassado, porque Spencer está à espera de um</p><p>rapaz. Não só terei de vê-lo a tratá-la como me trata… como terei de</p><p>vê-la a cometer os mesmos erros que eu: apaixonar-se por um</p><p>homem que a ama pelo que ela é, e não por quem ela é; casar para</p><p>ter companhia e perceber que isso ainda a faz sentir-se mais</p><p>sozinha; ter um filho e dar-se conta de que nunca estará à altura do</p><p>que ele merece.</p><p>Mais um corte, e mais outro. O sangue rodopia na água da</p><p>banheira, etérea e rosada. Tenho um caminho de ferro no meu</p><p>braço. Vou finalmente para algum lado, pois já não há nada para</p><p>mim aqui.</p><p>O meu último corte, no pulso, é o mais profundo. O padrão para</p><p>este golpe já lá está, uma linha azul sob a pele.</p><p>Haverá mais uma faca, a cortar-me ao meio para salvar este</p><p>bebé. Os médicos vão terminar o trabalho que comecei aqui,</p><p>abrindo-me. Vão parar e coçar a cabeça, espantados por descobrir</p><p>como estou vazia por dentro.</p><p>Ouço o zunido de alguém a bater. Manter a cabeça ereta já</p><p>requer demasiado esforço. O meu corpo, grande como está, afunda-</p><p>se debaixo de água.</p><p>Nessa altura, a porta abre-se e Ruby inclina-se sobre a banheira,</p><p>gritando junto ao meu rosto, pedindo-me que aguente. Segura-me</p><p>quando não consigo agarrar-me a ela. O meu sangue deixa-a</p><p>escorregadia, mas lá consegue levantar-me sobre a borda da</p><p>banheira, de forma que caio no chão da casa de banho, molhada,</p><p>nua e a sangrar, enquanto ela grita por Spencer. Ele aparece à porta</p><p>e avança rapidamente na minha direção.</p><p>— Meu Deus, Cissy, não! — Enrola-me uma toalha ao pulso e,</p><p>quando esta fica imediatamente ensopada, fica lívido e sai dali a</p><p>correr. — Fica aqui com ela, estás a ouvir? — grita ele para Ruby,</p><p>que está demasiado aterrada para se mexer.</p><p>Ao longe, ouço-o a berrar ao telefone, a chamar o médico.</p><p>Com a força que me resta, estico a mão para Ruby e faço-a</p><p>aproximar-se, fechando os dedos sobre a sua camisa de dormir.</p><p>— Salva o bebé — imploro em voz rouca, mas ela está a chorar</p><p>demasiado alto para conseguir ouvir-me. Por isso, ponho a mão boa</p><p>à volta do pescoço dela e beijo-a nos lábios, para que ela possa</p><p>sentir o gosto do meu sofrimento. — Salva o meu bebé — sussurro.</p><p>— Promete!</p><p>Ruby acena com a cabeça, de olhos fixos nos meus.</p><p>— Prometo.</p><p>— Então, está bem — digo, e deixo aquelas vagas fecharem-se</p><p>sobre a minha cabeça.</p><p>Os direitos do indivíduo não podem estar totalmente</p><p>salvaguardados quando ele está a ser obrigado a</p><p>sustentar no seio da sua comunidade aqueles que não</p><p>cumprem a lei, os imorais, os degenerados e os débeis</p><p>mentais.</p><p>H. F. Perkins, Lessons from a Eugenical Survey</p><p>of Vermont: First Annual Report, 1927</p><p>É tudo branco. O teto, a luz, as tatuagens na parte de trás dos</p><p>meus olhos. As ligaduras, enroladas com tanta força do ombro até à</p><p>mão, que consigo sentir a pulsação sob a pele, como se precisasse</p><p>que me lembrassem de que estou viva, apesar de tudo.</p><p>O quarto está demasiado quente. A janela está emperrada desde</p><p>sempre; temos de contentar-nos com uma ventoinha elétrica. Mas</p><p>nem isso ajuda, e é quando atiro os cobertores para trás que os</p><p>vejo: Spencer e o doutor DuBois, em frente à porta.</p><p>— Joseph — diz Spencer —, sei que isto vai ficar entre nós.</p><p>O doutor DuBois é o médico mais eminente de Burlington. Foi ele</p><p>que fez o meu parto e sem dúvida será ele a fazer o parto do meu</p><p>bebé.</p><p>— Spencer…</p><p>— Por favor. Estou a pedir como amigo.</p><p>— Sabe que há casas no campo onde ela seria bem tratada.</p><p>Rodeadas de prados e com cadeiras de balouço em verga… Não</p><p>estamos a falar de Waterbury.</p><p>— Não. Não posso fazer-lhe isso.</p><p>— À Cissy? Ou a si? — O doutor DuBois abana a cabeça. — Desta</p><p>vez, não tem a ver consigo, Spencer — diz ele, e depois vai-se</p><p>embora.</p><p>Spencer senta-se na borda da cama e olha-me fixamente.</p><p>— Lamento — consigo dizer a custo.</p><p>— Pois lamentas — replica ele, e apesar do calor brutal que se</p><p>faz sentir no quarto sinto um arrepio a percorrer-me a espinha.</p><p>Spencer apanhou-me em falta, mais uma vez.</p><p>P: O que significa eugenia negativa?</p><p>R: Tem a ver com a eliminação dos elementos disgénicos da</p><p>sociedade. A esterilização, a imigração, a legislação, as leis que</p><p>impedem os incapazes férteis de se casar, etc., enquadram-se</p><p>nessa classificação.</p><p>Sociedade Americana de Eugenia,</p><p>A Eugenics Catechism, 1926</p><p>Passa uma semana inteira até</p><p>Spencer me deixar em casa</p><p>sozinha com Ruby, e mesmo assim só porque os seus alunos</p><p>voltaram.</p><p>— Já sabes que podes telefonar-me a qualquer hora — diz ele.</p><p>Levanto os olhos do scone que estou a barrar com manteiga.</p><p>— Está bem.</p><p>— Talvez possamos sair logo à noite, para comer um gelado. Se</p><p>te sentires com forças para isso.</p><p>Esta é a forma de Spencer me dizer para estar viva quando ele</p><p>voltar para casa.</p><p>— Bem, vou andando.</p><p>Está tão bem-parecido, com o seu fato leve, o cabelo penteado</p><p>para trás e o laço tão direitinho como os pratos da balança da</p><p>justiça. Sei que está a olhar para a faca da manteiga que tenho na</p><p>mão, a pensar se poderá causar estragos. Lambo a lâmina embotada</p><p>diante dos seus olhos, só para ver a sua reação.</p><p>— Vou chamar a Ruby para ficar ao pé de ti — diz ele, e foge.</p><p>Ruby, que tem feito o possível por me evitar, arrasta-se até à</p><p>cozinha enquanto o carro de Spencer desce em direção à estrada.</p><p>— Miz Pike — diz ela.</p><p>— Menina Weber.</p><p>— Se fosse minha amiga — explode Ruby —, tinha-me dito que</p><p>ia fazer isso.</p><p>Os seus olhos fitam as ligaduras no meu pulso.</p><p>— Mas, nesse caso, tu não terias deixado — respondo baixinho.</p><p>Sou salva de ter de dizer mais alguma coisa por uma confusão lá</p><p>fora.</p><p>— Guaxinins — diz Ruby, indo buscar a caçadeira que temos</p><p>atrás da porta da despensa para estas situações.</p><p>— Então, devem estar com raiva. Estamos em pleno dia.</p><p>Passo por Ruby, tirando balas do açucareiro que está no armário.</p><p>Saímos pela porta das traseiras e olhamos em volta, mas o único</p><p>movimento visível vem de duas libelinhas que brincam à apanhada.</p><p>Ruby bate com a coronha da caçadeira no chão.</p><p>— O que quer que fosse já se foi embora.</p><p>Estou prestes a concordar com ela quando vejo que a porta do</p><p>barracão de gelo está aberta. Trata-se de um pequeno anexo que</p><p>ficou do tempo em que a minha avó morava naquela casa, antes de</p><p>ter passado para as minhas mãos de acordo com o testamento da</p><p>minha mãe. No inverno, de poucos em poucos dias, iam entregar</p><p>blocos de gelo cortados do lago Champlain, que eram guardados no</p><p>barracão envoltos em serradura, até partirmos um bocado para levar</p><p>para o frigorífico, na cozinha. Spencer é muito meticuloso no que</p><p>toca a deixar aquela porta bem fechada.</p><p>«Se quisesse água no uísque», diz ele, «podia tirá-la da</p><p>torneira.»</p><p>Arranco a caçadeira das mãos de Ruby.</p><p>— Fica aqui — digo, mas é claro que virá atrás de mim.</p><p>Subimos até ao alpendre do barracão do gelo e entramos,</p><p>deixando os nossos olhos adaptarem-se à falta de luz. Só alguém</p><p>que passou tanto tempo a deambular por entre a escuridão, como</p><p>eu, seria capaz de sentir aquela terceira presença.</p><p>— Saia daí! — grito, com mais coragem do que sinto.</p><p>Nada.</p><p>— Eu disse para sair daí!</p><p>Entretanto, já imagino assaltantes, violadores, ladrões. Como não</p><p>tenho nada a perder, levanto a caçadeira e disparo contra o bloco de</p><p>gelo mais próximo. Este explode, Ruby grita, e ouço um homem</p><p>berrar atrás do meu ombro esquerdo:</p><p>— Caramba!</p><p>Gray Wolf sai do seu esconderijo, de mãos no ar, como nos</p><p>filmes. O seu rosto está contorcido numa estranha combinação de</p><p>orgulho e choque.</p><p>— O que está aqui a fazer? — Agora que tudo acabou, tenho as</p><p>mãos a tremer. Ruby encolhe-se contra a entrada do barracão. —</p><p>Não faz mal — digo-lhe. — Eu conheço-o.</p><p>— Conhece-o? — Ruby abre a boca num O perfeito.</p><p>É possível que ele tenha vindo roubar-nos, ou fazer-me mal. Teria</p><p>sido bastante fácil seguir-me até casa depois daquele dia no</p><p>acampamento. Mas fazia mais sentido se nos tivesse assaltado a</p><p>casa enquanto estávamos em Nova Iorque. E isso não explica os</p><p>mocassins, que tenho a certeza de que deixou ali para eu encontrar.</p><p>Mais do que tudo, não quero que este momento seja aquele em</p><p>que me revelo como o tipo de pessoa que ele me acusou de ser da</p><p>última vez que nos encontrámos.</p><p>— Gray Wolf — digo —, esta é a Ruby. Ruby, Gray Wolf.</p><p>Apresento-os um ao outro como se fôssemos todos nobres</p><p>ingleses num baile. Desafio qualquer um deles a dizer seja o que for.</p><p>— Vou ligar ao professor — murmura Ruby baixinho.</p><p>Agarro-a pelo cotovelo.</p><p>— Não faças isso.</p><p>Esta pequena semente de confiança passa da palma da minha</p><p>mão para a dela.</p><p>Mas Ruby tem vivido em casa de um eugenista. E nem mesmo as</p><p>suas origens franco-canadianas parecem tão sinistras, em</p><p>comparação com as de um cigano.</p><p>— Miz Pike — diz ela, com os olhos a desviarem-se para o rosto</p><p>dele. — Ele… Ele…</p><p>— Está com fome — sugiro. — Talvez pudesses ir buscar alguma</p><p>coisa à cozinha…</p><p>Ela engole o que se preparava para dizer, acena afirmativamente</p><p>e dirige-se para casa. Quando ficamos sozinhos, Gray Wolf levanta-</p><p>me o braço e passa um dedo pela ligadura enrolada.</p><p>— Magoou-se.</p><p>Eu digo que sim com a cabeça.</p><p>— Foi um acidente?</p><p>Desviando o olhar, abano a cabeça.</p><p>Ele continua a examinar a gaze, visivelmente transtornado.</p><p>— Trouxe-lhe uma coisa para a manter a salvo. Mas parece que</p><p>não cheguei a tempo.</p><p>Tira uma bolsa de cabedal da algibeira, que está presa a um</p><p>longo fio de couro cru. Cheira ligeiramente a verão e a ele.</p><p>— Freixo negro, cicuta, manjerona. — Os olhos de Gray Wolf</p><p>precipitam-se para a minha barriga. — Para vocês os dois. —</p><p>Pendura a bolsa ao meu pescoço e dou por mim a inclinar-me para</p><p>ela, a sentir o couro a queimar-me a pele. — Kizi Nd’aib nidali.</p><p>— O que significa isso?</p><p>— «Já passei por isso.»</p><p>Olho para o rosto de Gray Wolf e acredito nele. Este homem sabe</p><p>como é ser atirado para um lugar que pode muito bem matá-lo, se</p><p>não for ele próprio a fazê-lo. Está ali, nos seus olhos — pretos, a cor</p><p>que fica quando todas as outras cores são engolidas.</p><p>— Qual é a palavra para «obrigada»? — pergunto.</p><p>— Wliwni.</p><p>— Wliwni, então. — Toco nas contas da bolsa, com o desenho</p><p>complicado de uma tartaruga. — Como sabia onde encontrar-me?</p><p>Isso fá-lo finalmente sorrir.</p><p>— Toda a gente em Burlington sabe onde mora o seu marido.</p><p>— Deixou os mocassins no alpendre para mim.</p><p>— Deixei-os para o bebé.</p><p>E encosta-se à viga de sustentação do alpendre do barracão. O</p><p>seu cabelo espalha-se sobre os ombros.</p><p>— Não devia ter vindo — digo.</p><p>— Porquê?</p><p>— O Spencer não vai gostar.</p><p>— Eu não vim por causa dele, Lia — replica Gray Wolf. — Vim por</p><p>si.</p><p>Não sei o que dizer, mas não faz mal, pois alguma coisa lhe</p><p>chama a atenção. É Ruby, que pôs um tabuleiro com limonada e</p><p>scones no alpendre da casa. Enquanto nos dirigimos para lá, sinto a</p><p>bolsa de remédios balançar junto ao corpo. Eu e Gray Wolf somos as</p><p>únicas pessoas no mundo que sabem que ela aqui está. Pergunto-</p><p>me como e por que razão me tratou duas vezes por Lia, quando</p><p>nunca me apresentei a ele dessa forma.</p><p>A vida social dos antigos bons americanos define o</p><p>tom social da comunidade. Eles são os membros</p><p>fundadores da sociedade, e as regras que criam para</p><p>governar as relações sociais são as regras que todos</p><p>os outros seguem.</p><p>Elin Anderson, We Americans: A Study of Cleavage</p><p>in an American City, 1937</p><p>Os garfos tinem contra a fina porcelana e o som dos copos de</p><p>cristal a vibrar faz-me pensar que é capaz de haver anjos nas traves</p><p>do telhado. Eu, o meu pai e Spencer temos a melhor mesa do Ethan</p><p>Allen Club — aquela que é unanimemente considerada o melhor</p><p>local da sala de jantar para ver o pôr do sol. Através das rosas e das</p><p>capuchinhas do centro de mesa, vejo o meu pai elogiar a esposa de</p><p>Allen Sizemore, diretor do Departamento de Ciências.</p><p>— Então? — pergunta Allen, a sorrir. — É para quando, o grande</p><p>dia?</p><p>A princípio, não percebo que ele está a falar do bebé.</p><p>— Aposto que quanto mais depressa, melhor — diz a esposa. —</p><p>Lembro-me de, para o fim, me sentir tão gorda como uma carraça</p><p>cheia.</p><p>Eu gosto da senhora Sizemore, que diz exatamente o que pensa.</p><p>Ela estica o braço por cima da mesa para me dar umas palmadinhas</p><p>na mão.</p><p>— Aguente firme, Cissy. Quando der por isso, já acabou.</p><p>— Acabou? — diz Allen a rir. — Está apenas a começar. Bem, o</p><p>Spencer vai começar a dormitar a meio das conferências, depois de</p><p>ter trocado fraldas durante toda a noite. E Harry, talvez ponhamos</p><p>uma placa a dizer «Avô» na porta do seu gabinete, para jogar pelo</p><p>seguro.</p><p>— Este bebé vai ser absolutamente perfeito — promete</p><p>o meu</p><p>pai. — Vai ter o cérebro do pai, o que significa que será</p><p>suficientemente inteligente para dormir a noite inteira; e vai ter a</p><p>beleza da mãe, o que significa que, se acordar, vai encantar a sua</p><p>ama exausta.</p><p>— Ama? — digo eu, virando-me para Spencer.</p><p>Ele fuzila o meu pai com o olhar.</p><p>— Era para ser uma surpresa.</p><p>— Mas eu não quero uma ama.</p><p>— Querida — graceja Spencer —, não é para ti.</p><p>Toda a gente que está à mesa se ri. Olho para o colo,</p><p>envergonhada. Levanto um pouco a manga para ter a certeza de</p><p>que se vê a ligadura e estico o braço para pegar no copo de vinho,</p><p>sem tirar os olhos de Spencer.</p><p>— Meu Deus, Cecelia… Magoou-se?</p><p>Tal como eu esperava, a senhora Sizemore tinha dado</p><p>imediatamente por isso.</p><p>— Na verdade… — começo, mas Spencer interrompe-me.</p><p>— Queimou o braço no fogão — diz ele, olhando para mim com</p><p>ar de quem não admite contestação. — Precisa de ter mais cuidado.</p><p>— Não me contaste — diz o meu pai, tentando segurar-me o</p><p>pulso.</p><p>— Não é nada.</p><p>Liberto-me e, ao fazê-lo, derrubo o meu copo de vinho. O</p><p>cabernet entorna-se sobre o meu colo, vermelho-vivo como o meu</p><p>sangue.</p><p>Toda a gente parece chamar o empregado de mesa ao mesmo</p><p>tempo. Ele sai da obscuridade com um monte de guardanapos</p><p>brancos como a neve. O seu rosto, largo e moreno, faz-me lembrar</p><p>o de Gray Wolf. Ele começa a enxugar as minhas coxas.</p><p>— Por amor de Deus! — explode Spencer. — Tire as mãos de</p><p>cima dela!</p><p>E toma o lugar dele e trata de limpar o vinho.</p><p>— É só um vestido, Spencer — digo. E, sem pensar, viro-me para</p><p>o empregado: — Wliwni.</p><p>Obrigada.</p><p>Os olhos dele voam para o meu rosto, tal como os de todos</p><p>quantos estão à mesa.</p><p>— Então? — interpelo o empregado, fazendo de conta que ele</p><p>ouviu mal. — Quem pensa você que é? — Viro-me para a mesa em</p><p>geral. — Deem-me licença enquanto vou aos lavabos.</p><p>Ao sair da sumptuosa sala de jantar, sinto o cigano a observar-</p><p>me. Quem me dera poder pedir-lhe desculpa. Quem me dera poder</p><p>dizer-lhe que compreendo: quanto mais alto sonhamos, maior é a</p><p>queda.</p><p>As estatísticas mostraram que o Vermont está quase</p><p>no topo da lista de deficiências físicas e mentais. Foi</p><p>sugerido que isso pode dever-se ao grande número de</p><p>franco-canadianos na população.</p><p>H. F. Perkins, Project #1, Arquivo EEV,</p><p>«Projects-Old», 1926</p><p>De alguma forma, Gray Wolf sabe quando aparecer. Encontro-o</p><p>no alpendre quando Spencer está a dar aulas e Ruby foi à vila, para</p><p>ir ao talho. Sai de trás de uma árvore quando vou passear pela</p><p>floresta, ao lusco-fusco. Quando não aparece pessoalmente,</p><p>encontro mais presentes no alpendre: um cestinho de palha, uma</p><p>raquete de neve em miniatura, o esboço de um cavalo a galope.</p><p>Quando estamos juntos, pergunto-me onde tem ele estado durante</p><p>toda a minha vida.</p><p>Sei que não devo encorajar isto. Ele vem das margens esfiapadas</p><p>da sociedade; está preso a ela por um fio. Eu cresci bem no seu</p><p>centro. Ele é escuro e calmo, e totalmente diferente de mim, e é</p><p>precisamente por isso que eu devia manter a distância entre nós.</p><p>Mas também é por esse motivo que o acho tão fascinante.</p><p>Se andarmos pelas ruas de Burlington, vemos todo o tipo de</p><p>pessoas — irlandeses, italianos, ciganos, judeus —, mas quando</p><p>crescemos nas colinas aprendemos a usar palas. Só reparamos nas</p><p>pessoas que são parecidas connosco: mulheres com as mesmas</p><p>ondas de permanente no cabelo e filhos com golas de marinheiro e</p><p>homens que cheiram a loção para a barba. Não perguntei a Gray</p><p>Wolf porque continua a procurar-me, mas imagino que seja pelo</p><p>mesmo motivo por que espero por ele: pelo risco, pela surpresa de</p><p>encostar o nariz ao vidro e encontrar alguém a olhar para nós do</p><p>outro lado.</p><p>O que diria Spencer se soubesse que a pessoa com quem mais</p><p>me identifico é um cigano que, tal como eu, não se encaixa neste</p><p>mundo?</p><p>Hoje, não espero ver Gray Wolf, e estou verdadeiramente</p><p>dececionada. Não vou estar em casa durante o dia, pois vou à</p><p>reunião mensal do Klifa Club. É o primeiro clube social para</p><p>mulheres em Burlington; a minha filiação foi um dado adquirido,</p><p>com base na minha posição social na comunidade.</p><p>Spencer incitou-me a ir hoje até à vila. Com mangas compridas a</p><p>tapar as ligaduras, ninguém notaria. «Além disso», sugeriu ele</p><p>durante o pequeno-almoço, «um bocadinho de entretenimento</p><p>musical até seria relaxante.»</p><p>Por isso, passo duas horas a ouvir uma harpista e outra meia</p><p>hora a tentar não adormecer enquanto uma botânica discorre em</p><p>voz monocórdica sobre os jardins de Itália. Vou suportando aquilo</p><p>por entre limonadas e pequenas sanduíches, enquanto as mulheres</p><p>me apalpam discretamente a barriga protuberante e dizem aquilo</p><p>que já sei: que vou ter um rapaz. Abano-me com o programa e</p><p>esgueiro-me pelas escadas quando as senhoras estão a debater o</p><p>evento do próximo mês.</p><p>Gray Wolf está à minha espera debaixo do toldo verde do banco,</p><p>a fumar um cigarro, como se tivéssemos combinado um encontro.</p><p>Apenas por um momento, fico chocada por me ter encontrado,</p><p>mesmo na vila, mas ele limita-se a erguer as sobrancelhas escuras e</p><p>a oferecer-me um cigarro. Começamos a andar. A princípio, não</p><p>falamos. Não é preciso.</p><p>— O Klifa Club — diz ele finalmente.</p><p>— Sim.</p><p>— Como é?</p><p>— Sumptuoso, é claro. Comemos em pratos de ouro de catorze</p><p>quilates e temos audiências com reis de pequenos países europeus.</p><p>Por que outro motivo havia de ser tão exclusivo?</p><p>Ele ri-se.</p><p>— Não consigo perceber.</p><p>Quando chegamos a uma esquina, agarra-me pelo cotovelo e eu</p><p>paro instantaneamente. Embora já nos tenhamos encontrado muitas</p><p>vezes, posso contar pelos dedos de uma mão o número de ocasiões</p><p>em que Gray Wolf me tocou. Esta amizade, esta conversa fácil, é</p><p>uma coisa, mas há certos limites que nem eu posso ultrapassar.</p><p>Dando-se conta, ele larga-me e preenche o espaço entre nós com</p><p>palavras.</p><p>— Mas o que vem a ser um Klifa?</p><p>— Um erro. Devia ser Klifra, que é a palavra islandesa para</p><p>trepador.</p><p>— No sentido de trepar socialmente?</p><p>— Não, estas mulheres não precisam de ascensão social. Já</p><p>reivindicaram a sua parcela de território bem lá no alto. — Encolho</p><p>os ombros. — O que há num simples nome? — cito, antes de me</p><p>lembrar que Gray Wolf não deve conhecer Shakespeare.</p><p>— Pergunte à Julieta — responde ele secamente, perfeitamente</p><p>ciente do que estou a pensar. — E, para responder à sua pergunta,</p><p>um nome pode significar tudo. Às vezes, é tudo o que temos.</p><p>— Porque é que me chama Lia? — indago.</p><p>Ele faz uma pausa.</p><p>— Porque não tem ar de «Cissy».</p><p>— Como seria o meu nome na sua língua?</p><p>Ele abana a cabeça.</p><p>— Já ninguém usa a minha língua.</p><p>— O senhor usa.</p><p>— Isso é porque já não tenho nada a perder. — Olha de relance</p><p>para mim, mas eu não vou desistir tão facilmente. — Não há uma</p><p>tradução literal. Nem sempre é possível pegar numa palavra inglesa</p><p>e vertê-la em alnôbak. — Acena em direção à minha pregadeira, um</p><p>pequeno relógio preso à minha blusa branca. — Por exemplo, isso é</p><p>papizwokwazik. Mas não significa relógio. É «a coisa que faz</p><p>tiquetaque». Um castor pode ser chamado tmakwa, cortador de</p><p>árvores, ou abagôlo, cauda achatada, ou awadnakwazid,</p><p>transportador de madeira… dependendo da maneira como o vemos.</p><p>Adoro a ideia de um nome poder mudar em função de quem</p><p>somos numa dada altura.</p><p>— Awadnakwazid — repito, fazendo rolar as sílabas na minha</p><p>língua. As consoantes ficam agarradas ao céu da boca. — Quem me</p><p>dera ter um nome como Gray Wolf.</p><p>— Então, arranje um. Foi o que eu fiz. — Encolhe os ombros. —</p><p>O meu nome é John… Azo. Mas Gray Wolf descreve-me melhor. E</p><p>pensei que, se toda a gente me via como índio, devia ter um nome</p><p>que lhes desse razão.</p><p>Virámos entretanto para a College Street, que é muito</p><p>movimentada e está cheia de gente. Sei que a mulher que passeia</p><p>com a filha, o homem de negócios que usa uma bengala de marfim</p><p>e os dois jovens soldados estão todos a perguntar-se o que estará a</p><p>fazer alguém como eu com alguém como Gray Wolf. Pergunto-me</p><p>quem mais nos verá. Faz parte da excitação.</p><p>— Costumava ir para o telhado da casa do meu pai e pensar em</p><p>saltar — digo.</p><p>— A casa do seu pai — repete ele.</p><p>— Bem, agora é nossa, mas sim. Uma vez, cheguei mesmo a</p><p>fazê-lo. Parti um braço.</p><p>— Porque</p><p>da fogueira e observou a terra, um lote situado no cruzamento</p><p>noroeste da Montgomery Road com o Otter Creek Pass. No topo,</p><p>estava o casarão branco, agora uma monstruosidade. Ele sabia que</p><p>seria a primeira coisa a desaparecer, tal como sabia tudo acerca</p><p>daquela propriedade, desde o levantamento topográfico ao número</p><p>de registo da escritura. Sabia quais os locais onde o solo gelava</p><p>primeiro no inverno e qual a zona onde a vegetação não crescia.</p><p>Sabia quais as janelas da casa abandonada que tinham sido partidas</p><p>por miúdos que andavam por ali à solta; qual o lado do alpendre que</p><p>ruíra primeiro; quais as tábuas das escadas que tinham apodrecido.</p><p>Também sabia a matrícula de todos os veículos que o Grupo</p><p>Redhook tinha estacionado no perímetro. Dizia-se que Newton</p><p>Redhook queria construir o primeiro centro comercial de Comtosook.</p><p>Num dos locais de enterro da tribo.</p><p>— Ouve o que te digo — disse Fat Charlie. — É o El Niño.</p><p>Winks abanou a cabeça.</p><p>— Está tudo de pernas para o ar, é o que é. Não é normal chover</p><p>rosas. É como um relógio começar a andar para trás ou água do</p><p>poço a transformar-se em sangue.</p><p>Fat Charlie riu-se.</p><p>— Winks, tens de voltar a ver o Letterman. Esses filmes de terror</p><p>andam a perturbar-te.</p><p>Az olhou em volta, reparando na leve camada de pétalas de rosa</p><p>que cobria o chão. Enrolou a língua na caverna da sua boca,</p><p>sentindo novamente o sabor daquelas pedras.</p><p>— O que achas, Az? — perguntou Winks.</p><p>O que ele achava era que tentar explicar pétalas de rosa que</p><p>caíam do céu era não só infrutífero, mas também inútil, uma vez que</p><p>as coisas que iam acontecer já tinham sido postas em marcha. O</p><p>que ele achava era que pétalas de rosa eram o menor dos seus</p><p>problemas. Focou o binóculo num buldózer que subia lentamente a</p><p>estrada.</p><p>— Acho que é impossível escavar o solo sem desenterrar alguma</p><p>coisa — disse ele bem alto.</p><p>Ross tinha conhecido Aimee na esquina da Broadway com a</p><p>112th, à sombra da Universidade de Columbia, quando esbarrara</p><p>literalmente nela, fazendo cair todos os livros que ela trazia numa</p><p>poça de água castanha e turva. Aimee era estudante de medicina,</p><p>andava a preparar-se para o exame final de anatomia e quase</p><p>começara a hiperventilar ao ver todo o seu trabalho árduo ir por</p><p>água abaixo. Sentada no meio da rua, em Nova Iorque, era também</p><p>a mulher mais bonita que Ross já vira.</p><p>— Eu ajudo-te — prometeu Ross, embora não soubesse distinguir</p><p>um perónio de uma falange. — Dá-me apenas uma segunda</p><p>oportunidade.</p><p>E foi esse o mote para Ross pedir Aimee em casamento: um ano</p><p>depois, pagou a um taxista para os levar ao longo da Broadway e da</p><p>112th, a caminho do restaurante onde iam jantar. De acordo com as</p><p>instruções, o homem parou junto ao passeio e Ross abriu a porta e</p><p>ajoelhou-se no chão imundo. Abriu a caixinha do anel e fitou os</p><p>olhos arrebatadores de Aimee.</p><p>— Casa comigo — disse ele, e depois desequilibrou-se e o</p><p>diamante caiu pela grelha do esgoto.</p><p>Aimee ficou boquiaberta.</p><p>— Diz-me que isso não acabou de acontecer — conseguiu ela</p><p>finalmente dizer.</p><p>Ross olhou pela grelha preta e para a caixa vazia. Atirou-a</p><p>também para o esgoto. Depois tirou do bolso outro anel, o</p><p>verdadeiro.</p><p>— Dá-me uma segunda oportunidade — disse.</p><p>Agora, num parque de estacionamento deserto, inclinou a garrafa</p><p>para cima e bebeu. Às vezes, queria coçar-se até ficar sem pele,</p><p>para ver o que estava do outro lado. Queria saltar de pontes para</p><p>mares de betão. Queria gritar até deixar a garganta a sangrar;</p><p>correr até as solas dos pés gretarem. Em alturas como aquela,</p><p>quando o falhanço era como um tsunami, a sua vida tornava-se uma</p><p>linha finita cujo término, por alguma espécie de ironia do destino,</p><p>ele não conseguia alcançar.</p><p>Ross pensava em suicídio da mesma forma como algumas</p><p>pessoas faziam listas de compras: metodicamente, com grande</p><p>atenção aos pormenores. Havia dias em que estava bem. E depois</p><p>havia outros em que inventariava as pessoas que pareciam felizes e</p><p>as que pareciam estar a sofrer. Havia dias em que fazia todo o</p><p>sentido beber água a ferver, sufocar fechado no frigorífico ou andar</p><p>nu pela neve até simplesmente adormecer.</p><p>Tinha lido sobre suicídios, fascinado pela criatividade: mulheres</p><p>que enrolavam o cabelo comprido à volta do pescoço para formar</p><p>uma corda; homens que injetavam maionese; adolescentes que</p><p>engoliam petardos. Porém, de cada vez que se preparava para testar</p><p>o peso que uma trave suportaria, ou fazer aparecer uma gota de</p><p>sangue com um x-ato, pensava na confusão que ia deixar para trás.</p><p>Não sabia o que a morte lhe reservava, mas sabia que não seria</p><p>vida, e isso já era o suficiente. Não sentia nada desde o dia em que</p><p>Aimee morrera. O dia em que ele tinha escolhido armar-se em herói,</p><p>como um idiota, arrastando primeiro a sua noiva para longe dos</p><p>destroços e depois regressando para salvar o condutor do outro</p><p>carro momentos antes de ele irromper em chamas. Quando voltara</p><p>para junto de Aimee, ela já tinha partido. Morrera sozinha, enquanto</p><p>ele estava longe a fazer de Super-Homem.</p><p>Que grande herói se revelara, a salvar a pessoa errada.</p><p>Atirou a garrafa vazia para o chão do jipe e pôs o carro a</p><p>trabalhar, saindo disparado do parque de estacionamento como um</p><p>adolescente. Não havia polícias por perto — nunca havia, quando</p><p>eram precisos —, e Ross acelerou, até ir a mais de cento e trinta na</p><p>estrada de faixa única.</p><p>Parou junto à passagem de nível, onde as cancelas de aviso</p><p>piscavam à medida que baixavam, lentas como uma bailarina.</p><p>Limpou a cabeça de tudo, concentrando-se apenas em avançar com</p><p>o carro até partir a cancela e o jipe ficar imobilizado nos carris, como</p><p>uma oferenda sacrificial.</p><p>O comboio vinha a toda a velocidade. Os carris começaram a</p><p>cantar uma sinfonia de aço. Ross rendeu-se à morte, articulando</p><p>uma única palavra entre dentes antes do impacto: Finalmente!</p><p>O som era impressionante, ensurdecedor. E, no entanto, passou</p><p>por ele, tornando-se cada vez mais longínquo até Ross arranjar</p><p>coragem para abrir os olhos.</p><p>O carro tinha fumo a sair do capô, mas continuava a andar.</p><p>Rolava de forma irregular, como se um dos pneus tivesse pouco ar. E</p><p>estava virado na direção oposta, de volta ao ponto de onde viera.</p><p>Não havia nada a fazer: de lágrimas nos olhos, Ross tomou o</p><p>volante nas mãos.</p><p>Rod van Vleet não regressaria a casa sem um contrato assinado.</p><p>Em primeiro lugar, Newton Redhook encarregara-o de adquirir os</p><p>oito hectares em que consistia a propriedade Pike. Em segundo</p><p>lugar, tinha levado mais de seis horas para chegar àquela casa de</p><p>repouso situada em Nenhures, Vermont, e não tencionava voltar ali</p><p>no futuro mais próximo.</p><p>— Senhor Pike — disse ele, sorrindo para o idoso, que era</p><p>suficientemente horrível para lhe provocar pesadelos durante uma</p><p>semana.</p><p>Caramba, se ele próprio tivesse aquele aspeto aos noventa e</p><p>cinco anos, só queria que alguém o pusesse a dormir com morfina e</p><p>o deitasse sete palmos abaixo da terra. A cabeça calva de Spencer</p><p>Pike estava cheia de sinais e as suas mãos retorciam-se em nós; o</p><p>seu corpo parecia ter adotado a postura permanente de uma vírgula</p><p>humana.</p><p>— Como pode ver aqui, o Grupo Redhook está preparado para</p><p>depositar hoje um cheque em seu nome no valor de cinquenta mil</p><p>dólares, como sinal de boa-fé durante o processo de transferência</p><p>de propriedade.</p><p>O velhote semicerrou os olhos leitosos.</p><p>— E para que raio quero eu saber de dinheiro?</p><p>— Bem, podia fazer umas férias. O senhor e uma enfermeira —</p><p>disse Rod, sorrindo para a mulher que se mantinha de braços</p><p>cruzados atrás de Pike.</p><p>— Não posso viajar. Ordens do médico. O fígado podia… não</p><p>aguentar.</p><p>Rod sorriu com algum desconforto, pensando que um alcoólico</p><p>que tinha sobrevivido durante quase cem anos devia era meter-se</p><p>num avião para as Fiji e estar-se nas tintas para as consequências.</p><p>— Bem…</p><p>— Já tinha dito isso. Está senil?</p><p>— Não, senhor Pike. — Rod pigarreou. — Segundo sei, esta terra</p><p>estava nas mãos da família da sua mulher há várias gerações, certo?</p><p>— Sim.</p><p>— É nossa convicção, senhor Pike, que o Grupo Redhook pode</p><p>contribuir para o crescimento de Comtosook urbanizando a sua</p><p>propriedade de forma a impulsionar</p><p>é que queria saltar?</p><p>Nunca ninguém me tinha feito aquela pergunta. Nem o meu pai,</p><p>depois do sucedido, nem os médicos do hospital que trataram a</p><p>fratura.</p><p>— Porque podia. — Viro-me para ele e faço o trânsito desviar-se</p><p>à nossa volta. — Dê-me um nome.</p><p>Ele fita-me durante um longo momento.</p><p>— Sokoki — diz. — Alguém que se afastou.</p><p>De repente, atrás de mim, ouço chamar pelo meu nome.</p><p>— Cissy? — A voz de Spencer é carregada pelos ombros dos</p><p>transeuntes. — És tu?</p><p>Talvez quisesse ser descoberta; talvez estivesse à espera disso.</p><p>Mas quando Spencer se detém em frente de Gray Wolf as minhas</p><p>entranhas liquefazem-se e as minhas pernas começam a tremer.</p><p>Cairia, se Spencer não me amparasse.</p><p>— Querida?</p><p>— Estou só um bocadinho tonta, depois da reunião no Klifa Club.</p><p>Spencer olha com desdém para Gray Wolf.</p><p>— Chefe, pode ir andando.</p><p>— Não sou chefe.</p><p>Com o coração nas mãos, pego na carteira e tiro uma nota de um</p><p>dólar.</p><p>— Está bem — interrompo, como se eu e Gray Wolf estivéssemos</p><p>a meio de um negócio —, mas só estou disposta a pagar isto.</p><p>Ele alinha, mas a desilusão tolda-lhe os olhos.</p><p>— Obrigado, minha senhora.</p><p>Entrega-me um pequeno volume embrulhado num lenço, a</p><p>primeira coisa que consegue encontrar no bolso para simular uma</p><p>transação. Depois desaparece entre o aglomerado de gente que se</p><p>dirige para a universidade.</p><p>— Já te disse para não falares com mendigos — diz Spencer,</p><p>dando-me o braço. — Assim que virem que és um alvo fácil, não te</p><p>deixam em paz.</p><p>— É caridade cristã — murmuro.</p><p>— E que diabo conseguiu ele impingir-te?</p><p>Espreito para dentro das dobras do lenço e fico novamente tonta.</p><p>— Uma bugiganga — digo, e enfio o retrato em miniatura na</p><p>mala, antes que Spencer reconheça o rosto, uma réplica perfeita do</p><p>que está em cima do meu toucador para me ajudar a recordar a</p><p>minha mãe.</p><p>Nas fileiras dos antigos bons americanos, há muitos</p><p>indivíduos que transcendem o padrão do grupo, que</p><p>questionam o statu quo, pensam de forma criativa</p><p>sobre a comunidade ou os problemas sociais e</p><p>consideram mesmo a possibilidade de uma Burlington</p><p>diferente e até melhor. Desde que não levem</p><p>demasiado longe esse questionamento, o grupo apoiá-</p><p>los-á; e eles raramente o fazem, sabendo o preço que</p><p>teriam de pagar.</p><p>Elin Anderson, We Americans: A Study of Cleavage</p><p>in an American City, 1937</p><p>No meu sonho, até consigo tocar-lhe: o seu corpo quadrado e o</p><p>mostrador branco com uma pequena escala numérica e um ponteiro</p><p>trémulo. Há qualquer coisa escrita na base portátil: Medidor de</p><p>Campo Eletromagnético TriField. Um homem com o cabelo tão</p><p>comprido como o de uma mulher explica os parâmetros: magnético,</p><p>soma, elétrico, rádio/micro-ondas, teste de bateria. Usa uma t-shirt</p><p>desbotada e calças de ganga, como um trabalhador do campo.</p><p>O que é um telemóvel?</p><p>Acordo a transpirar. Nem a ventoinha que gira por cima da cama</p><p>consegue compensar o facto de as janelas estarem fechadas. O</p><p>outro lado da cama está vazio. Inquieta, vou à casa de banho e</p><p>molho a cara com água. Desço as escadas e tento encontrar</p><p>Spencer.</p><p>Ele está no escritório. As luzes estão todas apagadas, à exceção</p><p>de um pequeno candeeiro na sua secretária. Vários dos seus</p><p>diagramas genealógicos estão desenrolados sobre o chão de</p><p>madeira como estradas antigas, e os sapos chamam pelo seu nome</p><p>através das janelas abertas. Quando levanta a cabeça, percebo que</p><p>esteve a beber.</p><p>— Cissy. Que horas são?</p><p>— Já passa das duas. — Dou um passo hesitante. — Devias vir</p><p>para a cama.</p><p>Ele esconde o rosto entre as mãos.</p><p>— O que é que te acordou?</p><p>— O calor.</p><p>— Calor.</p><p>Pega no copo e bebe até à última gota. Uma formiga passeia</p><p>pela secretária e, com um simples movimento, ele esmaga-a com a</p><p>base do copo.</p><p>— Spencer?</p><p>Ele limpa o copo com o lenço e olha para mim.</p><p>— Achas que elas sentem? — pergunta baixinho. — Achas que</p><p>sabem o que lhes vai acontecer?</p><p>Abano a cabeça, confusa.</p><p>— Precisas de ir dormir.</p><p>Antes de eu perceber o que está a acontecer, já Spencer me</p><p>puxou para o seu colo. Segura-me rapidamente no braço e toca no</p><p>sítio onde a ligadura está presa com adesivo, junto ao cotovelo.</p><p>— Sabes o que me custaria perder-te? — sussurra ele</p><p>acaloradamente. — Fazes alguma ideia do que significas para mim?</p><p>Os meus lábios mal se mexem.</p><p>— Não.</p><p>— Oh, Cissy! — Enterra o rosto entre os meus seios, respirando</p><p>sobre o nosso bebé. — Tu és a razão para fazer o que faço.</p><p>O pequeno grupo de antigos bons americanos foi</p><p>ajudado a manter a sua posição dominante pela força</p><p>do sentimento tradicional de superioridade racial dos</p><p>anglo-saxónicos.</p><p>Elin Anderson, We Americans: A Study of Cleavage</p><p>in an American City, 1937</p><p>É Ruby quem vem dizer-me que ele está à espera.</p><p>— O Spencer está em casa — digo, entrando em pânico assim</p><p>que vejo Gray Wolf no nosso alpendre, com o sol matinal a bater-lhe</p><p>nos ombros, como a capa de um matador.</p><p>— Pergunte — exige ele.</p><p>Olho para dentro de casa. Spencer está na banheira. E eu tenho</p><p>tantas perguntas.</p><p>— Conheceu a minha mãe?</p><p>Não fico surpreendida quando ele diz que sim.</p><p>— Como é que ela era?</p><p>O seu olhar torna-se mais doce.</p><p>— Igual a si.</p><p>Não há palavras no ponto a que cheguei.</p><p>— Mais — lá consigo dizer.</p><p>Por isso, ele conta-me como ela era, naquele mesmo alpendre,</p><p>na casa onde cresceu antes de se casar com o meu pai. Descreve a</p><p>cor do seu cabelo, e é igual à minha. Conta-me como ela conseguia</p><p>assobiar mais alto do que qualquer rapariga que ele conhecesse e</p><p>que a sua roupa cheirava sempre a limão. Ele tinha trabalhado para</p><p>o pai dela em atividades agrícolas sazonais, no tempo em que</p><p>aquela propriedade se dedicava à produção, antes de aquela parcela</p><p>de terra ter sido vendida aos atuais vizinhos.</p><p>Conta-me que, uma vez, talvez por causa de algum desafio, a</p><p>minha mãe levou um trator para o relvado da Universidade do</p><p>Vermont à meia-noite.</p><p>Conta-me que ela queria uma filha mais do que tudo, para poder</p><p>voltar a crescer.</p><p>Encosto-me à parede exterior da casa e fecho os olhos. Esperei</p><p>toda a minha vida por este momento. Será que o meu filho vai ter</p><p>tanta sorte como eu? Haverá alguém, daqui a alguns anos, para lhe</p><p>falar sobre mim?</p><p>Pestanejo ao olhar para Gray Wolf.</p><p>— Eu vou morrer.</p><p>— Lia, todos nós vamos — diz ele.</p><p>A porta abre-se de repente. O cabelo de Spencer ainda está</p><p>molhado e há pequenas zonas húmidas na sua camisa de algodão</p><p>através das quais se vê a sua pele rosada.</p><p>— Pareceu-me ouvir-te falar com alguém — acusa ele, e eu</p><p>pergunto-me se Gray Wolf se aperceberá de como as suas palavras</p><p>são afiadas como uma lâmina.</p><p>— Este é o Gray Wolf — anuncio. — Estou a contratá-lo.</p><p>Spencer fica a olhar para ele, tentando descobrir porque lhe</p><p>parece o rosto tão familiar… mas não é capaz. Naquele dia, na rua,</p><p>quisera apenas livrar-se de um cigano. Para Gray Wolf lhe vir à</p><p>memória, teria de ter sido suficientemente importante para lá ter</p><p>ficado gravado.</p><p>— O telhado precisa de ser reparado. Tanto aqui como no</p><p>barracão do gelo. Disseste-me para contratar um faz-tudo para</p><p>tratar disso. Pois bem, Gray Wolf, este é o meu marido, o professor</p><p>Pike.</p><p>Spencer olha uma última vez para Gray Wolf e para mim.</p><p>— Há uma escada na garagem — diz ele finalmente. — Vá lá,</p><p>então. Pode começar pelos canos de escoamento.</p><p>— Sim, senhor.</p><p>Gray Wolf nada deixa transparecer. Avança em direção ao</p><p>barracão, para fazer um trabalho que não pediu.</p><p>Spencer fica a vê-lo afastar-se.</p><p>— Onde é que o descobriste?</p><p>— Nos Hardings — minto.</p><p>— O Cal Harding? — Isto há de impressionar Spencer, já que o</p><p>nosso vizinho é uma pessoa muito picuinhas. — E eles verificaram as</p><p>referências dele?</p><p>— Spencer, ele vai consertar o telhado, não vai ser contratado</p><p>como ama.</p><p>Ao longe, ouve-se o barulho de coisas a serem mexidas num</p><p>espaço demasiado exíguo.</p><p>— Não gosto dele — diz Spencer.</p><p>— Bem, eu gosto — replico.</p><p>A eugenia é a projeção científica do nosso sentido de</p><p>autopreservação e dos nossos instintos parentais.</p><p>O. F. Cook, «Quenching Life on the Farm: How the Neglect of</p><p>Eugenics Subverts Agriculture and Destroys Civilization», segundo</p><p>crítica de E. R. Eastman no Journal of Heredity, 1928</p><p>Em criança, costumava ir para o gabinete do meu</p><p>a economia local.</p><p>— Querem usá-la para construir lojas.</p><p>— Sim, é verdade.</p><p>— Vão construir alguma loja de bagels?</p><p>Rod pestanejou, desorientado.</p><p>— Creio que o senhor Redhook ainda não sabe.</p><p>— Construam-na. Eu gosto de bagels.</p><p>Rod voltou a empurrar o cheque sobre a mesa, desta vez</p><p>juntamente com o contrato.</p><p>— Não poderemos construir nada até termos aqui a sua</p><p>assinatura, senhor Pike.</p><p>Pike fitou-o durante um longo momento e depois pegou numa</p><p>caneta. Rod soltou a respiração que tinha sustido.</p><p>— O título de propriedade está em nome da sua esposa, Cecelia</p><p>Pike?</p><p>— Era da Cissy.</p><p>— E esta… esta reivindicação dos Abenaki… tem algum</p><p>fundamento?</p><p>Os nós dos dedos de Pike ficaram brancos com a pressão que ele</p><p>fazia.</p><p>— Não há nenhum cemitério índio nessa propriedade. — Olhou</p><p>para Rod. — Não gosto de si.</p><p>— Também tenho essa sensação.</p><p>— A única razão para assinar isto é porque prefiro abdicar desta</p><p>terra a vê-la ir parar às mãos do Estado.</p><p>Rod enrolou o contrato assinado e bateu com ele na mesa.</p><p>— Bem! — disse novamente, e Pike ergueu uma sobrancelha. —</p><p>Vamos fazer as devidas diligências e esperamos concluir o negócio o</p><p>mais brevemente possível.</p><p>— Antes de eu morrer, quer você dizer — replicou Pike</p><p>secamente, enquanto Rod vestia o casaco. — Não quer ficar para</p><p>jogar às adivinhas? Ou para almoçar… disseram-me que vai haver</p><p>gelatina de laranja. — Riu-se, e o riso soou como uma serra nas</p><p>costas de Rod. — Senhor Van Vleet… o que vão fazer com a casa?</p><p>Rod sabia que aquela era uma questão delicada, aliás como</p><p>sempre para o Grupo Redhook, que normalmente demolia todos os</p><p>imóveis existentes nas propriedades antes de construir os seus</p><p>empreendimentos comerciais.</p><p>— Na verdade, não está nas melhores condições — respondeu</p><p>cautelosamente. — Somos capazes de ter de fazer… algumas</p><p>adaptações. Para arranjar mais espaço para a sua pizaria.</p><p>— Bagels — disse Pike, franzindo o sobrolho. — Portanto, vão</p><p>deitá-la abaixo.</p><p>— Sim, infelizmente.</p><p>— Melhor assim — disse o velhote. — Tem demasiados</p><p>fantasmas.</p><p>O único posto de combustível em Comtosook ficava junto ao</p><p>armazém geral. Havia duas bombas de gasolina dos anos cinquenta</p><p>no parque de estacionamento e Rod levou uns bons cinco minutos</p><p>até perceber que não existia ranhura para o cartão de crédito. Enfiou</p><p>a pistola da mangueira no depósito e puxou do telemóvel, premindo</p><p>um número pré-programado.</p><p>— Pedreira dos Anjos — respondeu uma voz de mulher.</p><p>Rod afastou o telefone do ouvido e desligou a chamada. Devia</p><p>ter-se enganado a marcar; estava a tentar contactar a sede para</p><p>informar Newton Redhook de que o primeiro obstáculo já tinha sido</p><p>ultrapassado. Franzindo o sobrolho, voltou a premir as teclas.</p><p>— Pedreira dos Anjos. Em que posso ser-lhe útil?</p><p>Rod abanou a cabeça.</p><p>— Estou a tentar ligar para o 617 569…</p><p>— Bem, enganou-se no número. — Clique.</p><p>Desconcertado, enfiou o telemóvel no bolso e pôs mais uns litros</p><p>no depósito. Pegou na carteira e encaminhou-se para a loja, a fim de</p><p>pagar.</p><p>No alpendre, estava um homem de meia-idade com cabelo cor de</p><p>cenoura, a varrer o que pareciam ser pétalas de rosa. Rod olhou de</p><p>relance para a placa do edifício, ABE’S GAZ & GROCERY, e depois</p><p>voltou a olhar para o comerciante.</p><p>— O senhor deve ser o Abe…</p><p>— Bom palpite.</p><p>— Há algum telefone público por aqui?</p><p>Abe apontou para o canto do alpendre, onde se via uma cabina</p><p>telefónica inclinada contra o gradeamento, mesmo ao lado de um</p><p>velho bêbedo que não parecia disposto a desviar-se. Rod marcou o</p><p>número, sentindo o olhar do comerciante cravado nele o tempo</p><p>todo.</p><p>— Pedreira dos Anjos — ouviu, passado um momento.</p><p>Bateu com o auscultador e ficou a olhar para ele. Abe varreu</p><p>uma, duas, três vezes, abrindo caminho entre Rod e ele próprio.</p><p>— Algum problema? — perguntou.</p><p>— Deve haver alguma avaria nas linhas telefónicas — disse Rod,</p><p>tirando uma nota de vinte dólares da carteira para pagar o</p><p>combustível.</p><p>— Sim, deve ser isso. Ou então talvez seja verdade o que os</p><p>índios andam por aí a dizer: que se não recuperarem a sua terra</p><p>toda a vila ficará amaldiçoada.</p><p>Rod revirou os olhos. Já ia a meio caminho para o carro quando</p><p>se lembrou do comentário de Spencer Pike acerca dos fantasmas.</p><p>Deu meia-volta para inquirir Abe sobre o assunto, mas o homem</p><p>tinha desaparecido. A vassoura estava encostada ao gradeamento</p><p>lascado do alpendre e, a cada sopro de brisa, o montinho de pétalas</p><p>espalhava-se como desejos.</p><p>De repente, um carro parou do lado oposto às bombas de</p><p>gasolina. Um homem com cabelo castanho pelos ombros e uns</p><p>inquietantes olhos verde-mar apeou-se e esticou-se até as costas</p><p>estalarem.</p><p>— Desculpe — interpelou ele —, sabe indicar-me o caminho para</p><p>a casa de Shelby Wakeman?</p><p>Rod abanou a cabeça.</p><p>— Eu não sou daqui.</p><p>Não soube o que o fez olhar pelo espelho retrovisor depois de</p><p>entrar no carro. O homem continuava ali especado, como se não</p><p>soubesse o que fazer a seguir. Subitamente, o telemóvel começou a</p><p>tocar. Rod tirou-o do bolso do peito e abriu-o.</p><p>— Van Vleet.</p><p>— Pedreira dos Anjos — disse a mulher do outro lado, como se</p><p>tivesse sido ele a ligar; como se aquilo fizesse algum sentido.</p><p>— Sim, já vou — murmurou Shelby, à medida que as pancadas</p><p>na porta se tornavam mais fortes.</p><p>Ainda só eram onze da manhã. Se aquele idiota acordasse o</p><p>Ethan… Apanhou o cabelo num rabo de cavalo, compôs o pijama e</p><p>franziu os olhos por causa do sol ao abrir a porta. Por um momento,</p><p>iluminado em contraluz, não o reconheceu.</p><p>— Shel?</p><p>Havia dois anos que não via Ross. Continuavam parecidos: a</p><p>mesma compleição esguia, os mesmos olhos claros e intensos de</p><p>que as pessoas tinham dificuldade em desviar-se. Mas Ross perdera</p><p>peso e deixara crescer o cabelo. E as olheiras que tinha eram ainda</p><p>mais fundas do que as dela.</p><p>— Acordei-te — disse ele, em tom de desculpa. — Podia…</p><p>— Anda cá — atalhou Shelby, abraçando o seu irmão mais novo.</p><p>— Vai dormir — incitou Ross, depois de Shelby ter passado quase</p><p>uma hora de roda dele. — O Ethan vai precisar de ti.</p><p>— O Ethan vai precisar de ti — corrigiu Shelby. — Assim que</p><p>descobrir que estás cá, podes esquecer o descanso. — Depôs um</p><p>monte de toalhas aos pés da cama do quarto de hóspedes e</p><p>abraçou-o. — Escusado será dizer que podes ficar o tempo que</p><p>quiseres.</p><p>O irmão enterrou o rosto na curva do seu ombro e fechou os</p><p>olhos. Shelby sentiu o cheiro da infância dele.</p><p>De repente, afastou-se.</p><p>— Oh, Ross! — murmurou, e enfiou a mão por entre o colarinho</p><p>da camisa, tirando para fora o fio comprido que ele escondia por</p><p>baixo.</p><p>Dele, pendia um solitário com um diamante, uma estrela</p><p>cadente. O punho de Shelby cerrou-se sobre ele.</p><p>Ross recuou com um safanão e o fio partiu-se. Agarrou o pulso</p><p>de Shelby e sacudiu-o até ela largar o anel, até este estar em</p><p>segurança na sua mão.</p><p>— Não faças isso — avisou, com ar determinado.</p><p>— Já foi há…</p><p>— Achas que eu não sei há quanto tempo foi? Achas que não sei</p><p>exatamente?</p><p>Virou as costas à irmã. Porque é que ninguém falava de como a</p><p>bondade podia ferir tanto quanto uma faca?</p><p>Quando Shelby lhe tocou no braço, não reagiu. Ela não insistiu.</p><p>Limitou-se a estabelecer aquele pequeno contacto e depois saiu do</p><p>quarto.</p><p>Shelby tinha razão — ele devia dormir —, mas Ross também</p><p>sabia que isso não iria acontecer. Habituara-se à insónia; durante</p><p>anos, deitara-se debaixo dos lençóis com ele e pressionara todo o</p><p>seu corpo com uma indecisão suficientemente agitada para o fazer</p><p>olhar para o mostrador de um relógio digital até os números</p><p>justificarem ter de se levantar.</p><p>Deitou-se na cama e olhou para o teto. Segurava o anel com</p><p>tanta força, que conseguia sentir os recortes do engaste a cortarem-</p><p>lhe a pele. Tinha de arranjar qualquer coisa — uma fita, um cordão</p><p>de couro — para poder voltar a usá-lo. Completamente desperto,</p><p>concentrou-se no relógio. Viu os números fundirem-se uns nos</p><p>outros: 12:04, 12:05, 12:06. Contou as rosas da capa do edredão.</p><p>Tentou lembrar-se da letra de «Waltzing Matilda».</p><p>Quando acordou sobressaltado às 17h58, nem queria acreditar.</p><p>Pestanejou. Havia meses que não se sentia tão bem. Rodou os pés</p><p>sobre o lado da cama e levantou-se, perguntando-se</p><p>se Shelby teria</p><p>uma escova de dentes extra.</p><p>Foi a ausência do ligeiro peso contra o seu peito que o fez</p><p>lembrar-se do anel. Abriu a mão e entrou em pânico. Do diamante</p><p>que ele segurava quando adormecera, nem sinal: não estava</p><p>debaixo da roupa de cama, não estava no tapete, nem mesmo atrás</p><p>da cama, que Ross desarredou freneticamente. Perdi-a, pensou,</p><p>olhando sem perceber para aquilo que de facto segurava ao acordar:</p><p>um cêntimo de 1932, liso como um segredo e ainda quente do calor</p><p>da sua mão.</p><p>2</p><p>Para uma miúda de oito anos, Lucy Oliver sabia muita coisa.</p><p>Sabia dizer as capitais de todos os estados; sabia explicar como se</p><p>formava uma nuvem de trovoada; sabia soletrar BÚSSOLA na ordem</p><p>correta e de trás para a frente. Também sabia outras coisas, mais</p><p>importantes, coisas que não tinham a ver com a escola. Por</p><p>exemplo, sabia que a bisavó tinha ido ao médico um mês atrás e</p><p>voltado para casa com uns comprimidinhos brancos que escondia na</p><p>biqueira de um sapato ortopédico, dentro do roupeiro. Sabia que,</p><p>quando os adultos baixavam a voz, isso significava que era preciso</p><p>ouvir com mais atenção. Sabia que mesmo a pessoa mais inteligente</p><p>do mundo podia ficar assustada com aquilo que não compreendia.</p><p>E também sabia, com grande convicção, que era apenas uma</p><p>questão de tempo antes que um deles a apanhasse.</p><p>Mudavam de forma de uma noite para a outra. Às vezes, tinham</p><p>o aspeto inconstante do padrão das suas cortinas. Outras vezes,</p><p>eram um sítio frio no chão quando Lucy corria para a cama sobre as</p><p>tábuas largas do soalho. Outras vezes ainda, eram um cheiro que a</p><p>fazia sonhar com folhas, escuridão e esqueletos.</p><p>Naquela noite, estava a fingir que era uma tartaruga. Nada podia</p><p>penetrar a sua concha dura; mesmo nada. Nem sequer a coisa que</p><p>ela tinha a certeza de ouvir respirar naquele preciso instante dentro</p><p>do seu roupeiro. Mas, mesmo de olhos bem abertos, Lucy conseguiu</p><p>ver a noite a mudar. Em alguns sítios, tornou-se mais saliente;</p><p>noutros, recuou… até ela ficar diante do rosto translúcido de uma</p><p>mulher tão triste, que lhe fez doer a barriga.</p><p>Eu vou encontrar-te, disse a senhora dentro da cabeça de Lucy.</p><p>Reprimiu um grito, pois isso iria acordar a bisavó, e tapou a</p><p>cabeça com os cobertores. O seu peito magro arfava intensamente e</p><p>a sua respiração tornou-se húmida. Se aquela mulher podia</p><p>encontrá-la onde quer que fosse, onde poderia esconder-se? Será</p><p>que a mãe ia saber que ela tinha sido raptada, só pelas marcas do</p><p>seu corpo no colchão?</p><p>Pôs uma mão de fora e esticou-a o suficiente para agarrar no</p><p>telefone que tinha posto na mesinha de cabeceira, e premiu a tecla</p><p>de marcação automática para o laboratório da mãe. Lucy imaginou</p><p>uma linha invisível a ligá-la daquele telefone ao que a mãe segurava,</p><p>um umbigo sem fios, e ficou tão grata por essa imagem, que não</p><p>conseguiu articular o que quer que fosse.</p><p>— Oh, Lucy! — suspirou a mãe, perante o seu silêncio. — O que</p><p>foi agora?</p><p>— É o ar — sussurrou ela, detestando a sua voz. Saiu-lhe sumida</p><p>e descontrolada, como ratos a fugir. — Está demasiado pesado.</p><p>— Usaste o inalador?</p><p>Sim, usara. Já tinha idade suficiente para saber o que fazer</p><p>quando sofria um ataque de asma. Mas não era esse tipo de peso.</p><p>— Vai esmagar-me!</p><p>Pronto, tinha piorado ainda mais. Lucy deitou-se sob o peso da</p><p>noite, tentando respirar em pequenos sopros, para o oxigénio do</p><p>quarto durar mais tempo.</p><p>— Querida… — A mãe falava num tom que a fez pensar em</p><p>frasquinhos de vidro frios e compridas bancadas brancas. — Tu</p><p>sabes que o peso do ar não pode mudar assim, não dentro do teu</p><p>quarto. É tudo imaginação tua.</p><p>— Mas… — Lucy enrolou-se, distanciando-se do roupeiro, pois</p><p>conseguia sentir a senhora a observá-la. — Mãe, eu não estou a</p><p>inventar.</p><p>Houve uma pausa que durou precisamente o tempo que a mãe</p><p>levou a perder a calma.</p><p>— Lucy, os fantasmas não existem, nem os duendes maléficos,</p><p>nem os demónios, nem… nem entidades invisíveis que adensam o</p><p>ar. Volta para a cama.</p><p>Ela continuou agarrada ao auscultador depois de a mãe desligar.</p><p>Quando a voz metálica da operadora surgiu a pedir-lhe que</p><p>desligasse caso quisesse fazer outra chamada, Lucy enfiou o</p><p>telefone debaixo da almofada. A mãe tinha razão: de um ponto de</p><p>vista racional, ela sabia que não havia nada no quarto a persegui-la;</p><p>que os monstros não se escondiam nos roupeiros nem debaixo das</p><p>camas, que senhoras a chorar não apareciam do nada. Se o ar</p><p>estava tão denso quanto sopa de ervilhas, tinha de haver uma</p><p>explicação perfeitamente lógica, baseada em princípios físicos e</p><p>químicos.</p><p>Mas, ainda assim, quando Meredith Oliver chegou a casa horas</p><p>depois, encontrou a filha a dormir na banheira, forrada a almofadas</p><p>e cobertores, e a casa de banho iluminada como se fosse dia.</p><p>Ross viu o sobrinho desafiar a gravidade uma vez mais e o skate</p><p>a elevar-se no ar debaixo dos seus pés equilibrados.</p><p>— Este é um «fifty/fifty» — informou-o Ethan, com as faces</p><p>coradas do esforço e o cabelo húmido por baixo da pala recurvada</p><p>do boné.</p><p>Ele fingiu tentar levantar-lhe o tornozelo.</p><p>— De certeza que não tens os pés presos ao skate com fio de</p><p>pesca?</p><p>Ethan sorriu e encaminhou-se novamente para a sua rampa,</p><p>depois deu meia-volta e veio ter com ele.</p><p>— Tio Ross? — disse. — É superfixe que estejas aqui!</p><p>Sentada sobre o cobertor ao lado de Ross, Shelby brincava com a</p><p>relva.</p><p>— É o maior elogio que podias receber!</p><p>— Já calculava. — Ross deitou-se, descansando a cabeça nas</p><p>mãos. Uma estrela cadente passou no seu campo de visão, pintando</p><p>o céu com a sua cauda prateada. — Ele é fantástico, Shel.</p><p>Os olhos dela seguiam o filho.</p><p>— Eu sei.</p><p>Ethan desceu a rampa de madeira com estrépito.</p><p>— Suficientemente fantástico para ir caçar fantasmas contigo? —</p><p>perguntou ele por cima do ombro.</p><p>— Quem é que te disse que eu caço fantasmas?</p><p>— Tenho as minhas fontes. — E fez girar a prancha, saltando</p><p>dela ao mesmo tempo, de tal forma que esta pareceu ir parar-lhe à</p><p>mão. — Sou rápido, vês? E não fico cansado à noite… e consigo ser</p><p>tão silencioso que nem ias acreditar…</p><p>— Pois não — replicou Ross, a rir.</p><p>— Não, estou a falar a sério, tio Ross, porque é que não me</p><p>levas?</p><p>— Deixa-me ver… Primeiro, porque a tua mãe me esfolava vivo e</p><p>depois porque estou retirado.</p><p>— Retirado? — disse o rapaz, passando a língua pela palavra. —</p><p>Isso significa que te fartaste?</p><p>— De certa forma, sim.</p><p>Ethan pareceu ficar aturdido.</p><p>— Bem, mas que grande merda!</p><p>— Ethan! — Shelby abanou a cabeça, em jeito de aviso.</p><p>— Assim, és apenas como qualquer outro parente normal —</p><p>murmurou o rapaz.</p><p>Ross viu-o afastar-se no skate.</p><p>— Aquilo foi um insulto?</p><p>Shelby ignorou-o e olhou atentamente para ele.</p><p>— Então, estás bem?</p><p>— Estou — respondeu ele, sorrindo. — Estou ótimo.</p><p>— É que eu fico preocupada quando não telefonas, sabes?</p><p>Durante seis meses…</p><p>Ross encolheu os ombros.</p><p>— Tenho andado de um lado para o outro com os Warburtons.</p><p>— Não sabia que tinhas deixado de fazer investigação</p><p>paranormal.</p><p>— Eu também não, até o ter dito. Mas estou farto de não ver o</p><p>que quero ver.</p><p>— Há uma diferença entre ser paleontólogo e não encontrar</p><p>aquilo que se procura e ser caçador de fantasmas e não encontrar</p><p>aquilo que se procura — disse Shelby. — O que quero dizer é que há</p><p>ossos de dinossauro por aí, mesmo que a pessoa não tenha a sorte</p><p>de os desenterrar. Mas fantasmas… bem, se estão por todo o lado,</p><p>como é que ainda ninguém conseguiu provar que existem?</p><p>— Estive num quarto onde a temperatura caiu sete graus em</p><p>poucos segundos. Gravei coros de igreja a cantarem em espaços</p><p>vazios e fechados à chave. Vi torneiras a abrirem-se sozinhas. Mas</p><p>nunca vi um espírito aparecer diante dos meus olhos. Caramba,</p><p>tanto quanto sei, qualquer dessas coisas pode ter uma explicação.</p><p>Talvez seja Deus, talvez sejam gnomos, talvez seja algum génio da</p><p>tecnologia a cinco quilómetros de distância que as aciona por</p><p>controlo remoto.</p><p>Shelby sorriu.</p><p>— Estarei a falar com o mesmo miúdo que acreditou no Pai Natal</p><p>até aos quinze anos?</p><p>— Dez — corrigiu Ross. — E não foste tu quem montou a</p><p>armadilha no telhado e obteve a prova.</p><p>— Uma ripa de madeira…</p><p>— Com a marca de um casco. —</p><p>Ross enfiou a mão no bolso</p><p>para tirar um cigarro, mas depois olhou para Ethan e mudou de</p><p>ideias. — Já devia ter desistido há muito tempo.</p><p>— De fumar?</p><p>— De caçar fantasmas.</p><p>— E porque é que não o fizeste?</p><p>Ross pensou em Curtis Warburton: Metade deste negócio é dizer</p><p>às pessoas aquilo que elas querem ouvir. Pensou no anel de noivado</p><p>de Aimee, que desaparecera durante a noite, embora ele tivesse</p><p>revirado o quarto à procura dele.</p><p>— Porque aconteciam coisas que eu não compreendia… e pensei</p><p>que, se prestasse a devida atenção, seria capaz de perceber o</p><p>porquê.</p><p>— Então, talvez devesses ter ido para física!</p><p>Ross encolheu os ombros.</p><p>— A ciência não explica tudo.</p><p>— Estás a falar de Deus?</p><p>— Nada de tão profundo. O que é que te faz passar por trinta mil</p><p>pessoas sem olhar uma segunda vez para elas, e depois ver a</p><p>seguinte e saber que nunca mais vais tirar os olhos dela?</p><p>— O amor pode não ser racional, Ross, mas não é paranormal.</p><p>Quem disse?, pensou ele.</p><p>— A questão não é essa. O que importa é que, mesmo quando</p><p>não consegues ver alguma coisa à tua frente, sente-la na mesma. E,</p><p>se estás disposta a confiar nos teus sentidos num caso, porque não</p><p>hás de estar no outro? — Levantou-se e sacudiu as calças. — Sabes,</p><p>eu ia àquelas casas… e só precisava de estar disposto a ouvir, que as</p><p>pessoas começavam a falar. E nem todas eram médiuns, Shel. Havia</p><p>professores doutorados e diretores-gerais incluídos na Fortune 500.</p><p>É como se, depois de ver um fantasma, passassem a fazer parte de</p><p>um clube e estivessem ansiosos por encontrar alguém que não os</p><p>considere loucos por admitirem que o que os pais lhes diziam não</p><p>era verdade.</p><p>Era nisso que Ross quisera acreditar. Tinha conhecido alguns</p><p>médiuns que afirmavam que mal podiam virar-se sem dar de caras</p><p>com um espírito; e que os fantasmas estavam constantemente a</p><p>tentar captar a sua atenção. Mas agora ele tinha as suas dúvidas.</p><p>Agora, começava a pensar que, quando morríamos, acabava-se</p><p>tudo.</p><p>— Até mesmo os doutorados e os diretores-gerais podem ser</p><p>mentirosos. Ou loucos — disse Shelby.</p><p>— E crianças de quatro anos? — Ross virou-se para a irmã. — O</p><p>que dizer do miúdo que vai ter com a mãe a meio da noite e lhe diz</p><p>que está um velhote no quarto dele que lhe disse que têm de</p><p>desocupar a oficina, para ele poder fazer uma mesa? E depois</p><p>vamos à biblioteca e descobrimos que a casa foi construída no local</p><p>onde existia uma marcenaria há duzentos anos?</p><p>— Isso… aconteceu?</p><p>O miúdo de quatro anos tinha começado a bater na própria</p><p>cabeça para deixar de ouvir a voz do fantasma; tinha esgatanhado</p><p>os olhos para não o ver.</p><p>— Bem, suponho que os miúdos também podem enlouquecer. O</p><p>que interessa é que, para mim, isso acabou.</p><p>Mas Ross perguntou-se se estaria a tentar convencer a irmã ou a</p><p>ele mesmo.</p><p>Shelby deu-lhe umas palmadinhas no ombro.</p><p>— Para que conste, Ross, se houvesse alguém capaz de</p><p>encontrar provas concretas da existência de um fantasma, não tenho</p><p>a menor dúvida de que essa pessoa serias tu.</p><p>Hesitando, ele olhou para ela e depois enfiou a mão no bolso.</p><p>Tirou a carteira e depois uma fotografia guardada no interior.</p><p>— Vais dizer-me que isso parece uma boca e uns olhos. — Shelby</p><p>semicerrou os olhos. — E uma mão.</p><p>— Eu não te disse nada. Foste tu que disseste.</p><p>— Então, o que é isso?</p><p>— O Curtis Warburton diria que é um ectoplasma. Quando tirei</p><p>esta fotografia, não havia nada naquele lago… nem nevoeiro, nem</p><p>uma brisa, nada. Mas foi isto que apareceu no negativo. A película é</p><p>suficientemente sensível para captar luz, calor e energia magnética…</p><p>que são as mesmas fontes de energia que os espíritos utilizam para</p><p>se materializar. — Voltou a enfiar a foto na carteira. — Por outro</p><p>lado, também pode ter sido alguma porcaria que entornaram no</p><p>laboratório de fotografia.</p><p>Não disse que, na altura em que tirara a foto, o ar arrefecera de</p><p>tal maneira, que ele tinha ficado com os pelos dos braços e das</p><p>pernas todos em pé. Não disse que tinha passado o resto do dia de</p><p>mãos trémulas e sem conseguir focar a vista em nada.</p><p>— Não havia neblina quando tiraste a fotografia? — perguntou</p><p>Shelby.</p><p>— Não.</p><p>Ela franziu o sobrolho.</p><p>— Se visse isso num jornal, iria pensar que tinha sido</p><p>manipulada. Mas…</p><p>— … mas eu sou teu irmão e por isso tens de confiar em mim?</p><p>Ethan parou à frente deles com estrépito.</p><p>— Há uma pedreira na vila onde um tipo foi assassinado há</p><p>muito, muito tempo. Toda a gente diz que está assombrada.</p><p>Podíamos lá ir e…</p><p>— Não — disseram Ross e Shelby em simultâneo.</p><p>— Credo — murmurou Ethan, voltando a afastar-se.</p><p>Ross olhou para a linha do horizonte, onde o azul da noite</p><p>começava a ficar avermelhado.</p><p>— Não está na hora de irmos para dentro?</p><p>Shelby assentiu e começou a juntar os restos do piquenique.</p><p>— Então, o que vais fazer agora?</p><p>— Localizar óvnis. — Olhou para ela. — Estou a brincar.</p><p>— Podias fazer de babysitter enquanto estou a trabalhar. Se bem</p><p>que tomar conta do Ethan possa ser ainda mais assustador do que a</p><p>tua última ocupação.</p><p>— Os fantasmas não são assustadores — disse Ross, antes de se</p><p>lembrar de falar hipoteticamente. — São só pessoas. Bem, pelo</p><p>menos eram.</p><p>Shelby parou de dobrar o cobertor.</p><p>— Mas nunca viste nenhum.</p><p>— Não.</p><p>— Embora quisesses ver.</p><p>Ross forçou um sorriso.</p><p>— Pois, também nunca vi uma nota de dez mil dólares, mas</p><p>sempre quis ver uma.</p><p>Fazia sentido retirar-se. Era simplesmente uma questão de se</p><p>convencer disso. A verdade era que, em nove meses, não tinha</p><p>encontrado o que procurava. Não testemunhara nenhuma aparição</p><p>porque não havia nada ali.</p><p>Por outro lado, tinha uma fotografia assombrosa a queimar-lhe o</p><p>bolso de trás, um espírito que era capaz de ter ido buscar força ao</p><p>calor, à luz, ou mesmo às pilhas da máquina para poder projetar-se</p><p>e ser visto. Para Ross, isso era perfeitamente lógico. No fim de</p><p>contas, Aimee tinha sido a pessoa que lhe incutia energia. Sem ela,</p><p>ele próprio não era melhor do que um fantasma, levando a sua vida</p><p>sem ser visto.</p><p>— Eu não passo com o buldózer por cima dele! — gritou o</p><p>capataz da obra, com o rosto lustroso e corado como uma ameixa, e</p><p>lançando um olhar furioso a Eli do alto da cabina, de braços</p><p>cruzados sobre a barriga saliente.</p><p>— Senhor Champigny…</p><p>— Winks. — O tipo que estava deitado de costas no chão sorriu</p><p>corajosamente para Eli. — É como todos me chamam.</p><p>O cão de Eli apareceu de repente e pôs as patas dianteiras em</p><p>cima do peito de Winks.</p><p>— Sai daí, Watson — ordenou Eli. — Senhor Champigny, vou ter</p><p>de lhe pedir para se levantar. A companhia Redhook tem autorização</p><p>contratual para efetuar as devidas diligências nesta propriedade.</p><p>— Ele está a falar inglês? — gritou Winks para um grupo de</p><p>manifestantes nas proximidades.</p><p>— Não pode prendê-los? — perguntou Rod van Vleet.</p><p>— Eles ainda não causaram distúrbios. Isto é desobediência civil,</p><p>nada mais.</p><p>Pelo menos, eram essas as ordens que tinha recebido do chefe</p><p>Follensbee, que não queria fomentar algo que podia transformar-se</p><p>rapidamente num violento desentendimento racial. Eli sabia que os</p><p>Abenaki não iriam pressionar mais se não se sentissem</p><p>pressionados. De qualquer forma, não estava com disposição para</p><p>aquilo. Tivera de ir buscar Abbott Thule, o bêbedo da vila, ao Gas &</p><p>Grocery e pô-lo a curar a bebedeira numa cela. Precisava de arranjar</p><p>qualquer coisa de comer para Watson. Não queria meter-se agora</p><p>com um monte de índios com arrogância suficiente para encher o</p><p>lago Champlain.</p><p>Esfregou a nuca. Em alturas como aquela, perguntava-se porque</p><p>não se mudara para a Florida depois do falecimento da mãe. Tinha</p><p>trinta e seis anos, e trabalhava demasiado. Bolas, podia estar lá</p><p>agora com o pai, a jogar uma partida de golfe. Podia estar sentado</p><p>debaixo de uma palmeira. Ao seu lado, Watson sorriu para ele.</p><p>— Há restos mortais nesta terra — insistiu Winks.</p><p>— Isso é verdade? — perguntou Eli.</p><p>O rosto de Rod ensombrou-se.</p><p>— Ainda não encontraram nada. Apenas um medalhão de</p><p>estanho, alguns fragmentos de cerâmica e um cêntimo de 1932.</p><p>— E uma ponta de flecha — gritou Az Thompson, embora Eli</p><p>tivesse pensado que o velhote estava demasiado longe para ouvir a</p><p>conversa. — Não</p><p>se esqueça da ponta de flecha.</p><p>O promotor imobiliário revirou os olhos.</p><p>— Sim, está bem, encontraram a ponta de uma flecha. O que</p><p>não prova absolutamente nada, a não ser que andou por aqui algum</p><p>miúdo a brincar aos índios e cowboys.</p><p>Az Thompson veio ter com eles.</p><p>— Nós também não queremos saber das pontas de flecha. Só</p><p>dos nossos antepassados. Não viram o Poltergeist? Se escavarem a</p><p>sepultura deles, é evidente que aquilo que construírem aqui não vai</p><p>ter paz.</p><p>Eli perguntou-se de onde viria o apego do velhote à propriedade.</p><p>Tanto quanto sabia, Az tinha vindo de algures no Oeste para</p><p>Comtosook. É verdade que vivia na vila havia quase tanto tempo</p><p>quanto Eli, mas não tinha qualquer ligação especial àquele local.</p><p>Aparentemente, as suas queixas em relação ao projeto de</p><p>construção tinham mais a ver com uma questão de princípio do que</p><p>com uma questão pessoal.</p><p>— Isso é uma ameaça — disse Rod a Eli. — Ouviu o que ele</p><p>disse.</p><p>Az riu-se.</p><p>— E ameacei-o com quê?</p><p>— Com uma maldição. Um… enguiço qualquer.</p><p>O velho índio pôs as mãos em concha à volta de um cachimbo e</p><p>acendeu as folhas no fornilho.</p><p>— É preciso acreditar nessas coisas para elas nos afetarem. —</p><p>Inalou o fumo e as suas palavras saíram envoltas nele. — Acredita</p><p>nessas coisas, senhor Van Vleet?</p><p>— Ouça — suspirou Eli. — Eu sei o que todos vocês sentem em</p><p>relação a esta empresa de construção, Az. Mas, se têm razões de</p><p>queixa, o melhor é irem para os tribunais.</p><p>— Da última vez que o sistema jurídico disse que sabia o que era</p><p>melhor para os Abenaki, fez um ótimo trabalho em levar-nos quase</p><p>ao extermínio — replicou Az. — Não, detetive Rochert, não me</p><p>parece boa ideia recorrer aos seus tribunais.</p><p>— Aos tribunais dele? — desdenhou Winks, agora de pé,</p><p>enquanto sacudia as calças de ganga. — Eli, quem é que lhe disse</p><p>que esse uniforme azul todo janota faz a sua pele parecer menos</p><p>vermelha?</p><p>Eli nem pensou. Precipitou-se sobre Winks, agarrando o homem</p><p>mais pequeno pelas lapelas e empurrando-o violentamente contra a</p><p>parte lateral do buldózer. Watson seguia-o de perto, de dentes</p><p>arreganhados. Eli ouviu o som gratificante da cabeça de Winks a</p><p>bater na estrutura metálica, mas depois recuperou o sangue-frio.</p><p>Conseguia sentir Az Thompson a observá-lo; conseguia sentir o ar</p><p>preso nos seus próprios pulmões.</p><p>Ao virar-se para aquietar o cão, lembrou-se de ter ido pescar com</p><p>os familiares da mãe durante um mês de verão ao longo das</p><p>margens do lago. Os miúdos, morenos e descalços, brincavam tanto</p><p>à apanhada, que tinham acachapado as ervas altas numa área de</p><p>mais de um quilómetro. Ele tinha dez anos quando percebeu que o</p><p>lago que conhecia como Pitawbagw — a água que está no meio —</p><p>vinha assinalado num mapa como lago Champlain.</p><p>Com um aceno de cabeça ao condutor do buldózer, Eli deu</p><p>autorização para começar a escavar. Afastando-se intencionalmente</p><p>dos índios, dominou-se para manter a paz.</p><p>Uma semana depois de chegar a Comtosook, Ross caminhava</p><p>vagarosamente pela beira do lago, ignorando as pedras que lhe</p><p>arranhavam os pés nus. A água estava fria — demasiado fria para</p><p>agosto —, mas ele não se importava. Era bom sentir alguma coisa,</p><p>para variar, mesmo que fosse desconforto.</p><p>O lago Champlain era tão comprido, que não era possível vê-lo</p><p>de uma ponta à outra, embora os montes Adirondack se perfilassem</p><p>como soldados distantes na margem oposta. Aimee tinha nascido do</p><p>outro lado, no norte do estado de Nova Iorque. No dia em que o céu</p><p>desabou, iam os dois no carro a caminho de casa dos pais dela.</p><p>Certa vez, na livraria em Manhattan onde Ross trabalhara, foi lá</p><p>um autor dar uma palestra sobre rituais de morte. Nos funerais</p><p>tibetanos, um monge tratava de separar a carne dos ossos do</p><p>cadáver e cortava o corpo em pedaços para que os abutres</p><p>pudessem devorar os seus restos mortais. Em Bali, o corpo era</p><p>sepultado durante os anos que levava a planear a espetacular</p><p>cerimónia de cremação. Mas, antes do enterro, faziam girar o</p><p>defunto numa colorida torre de bambu e abanavam-no, para que o</p><p>seu espírito não pudesse encontrar o caminho de volta.</p><p>Ross estava a trabalhar nessa noite, o que implicava dispor as</p><p>cadeiras para a assistência, colocar os livros a autografar numa</p><p>mesinha e pôr no pódio uma garrafa de água à disposição do autor.</p><p>Era um público refinado: sociólogos envergando casacos de tweed</p><p>lado a lado com góticos de cabelo espetado e sobretudo preto.</p><p>Enquanto se desenrolava a palestra, Ross ficou a assistir lá atrás,</p><p>espantado com a quantidade de modos que havia de dizer adeus.</p><p>Aimee tinha chegado sensivelmente a meio. Ainda trazia o</p><p>uniforme hospitalar, e o primeiro pensamento de Ross foi que devia</p><p>estar com frio; tinha sempre frio quando o usava como pijama, e no</p><p>entanto ali estava ela a calcorrear as ruas da cidade em dezembro.</p><p>O seu segundo pensamento foi que havia alguma coisa de muito</p><p>errado.</p><p>— Olá — disse, apanhando-a quando ela se encaminhava para as</p><p>estantes da loja, quase passando por ele sem o ver.</p><p>Aimee lançou-se nos seus braços e desatou a chorar. Houve</p><p>vários membros da assistência que se viraram e o próprio orador</p><p>ergueu o olhar, distraído.</p><p>Ross puxou-a pela mão para a secção de jardinagem, onde</p><p>ninguém em Nova Iorque se dava ao trabalho de procurar fosse o</p><p>que fosse. Tomou-lhe o rosto nas mãos, com o coração aos pulos:</p><p>ela tinha um cancro; estava grávida; já não o amava.</p><p>— O Martin morreu — disse Aimee, com a voz embargada.</p><p>Ross abraçou-a, tentando situar o nome. Aos poucos, a história</p><p>acabou por lhe ocorrer: Martin Birenbaum, cinquenta e três anos,</p><p>tinha sido vítima de um incêndio numa fábrica de produtos químicos,</p><p>ficando com queimaduras de terceiro grau em 85 por cento do</p><p>corpo. Enquanto aluna de medicina do terceiro ano colocada no</p><p>Serviço de Urgência, Aimee fora encarregada de mantê-lo o mais</p><p>confortável possível, procedendo à desbridação das feridas,</p><p>mantendo-as limpas e aplicando pomada. Quando ele lhe tinha</p><p>perguntado se ia morrer, ela olhara-o nos olhos e dissera que sim.</p><p>Era o primeiro paciente que perdia e, por esse motivo, o rosto</p><p>dele tinha ficado gravado na sua mente.</p><p>— Fiquei com ele porque sabia que não podia fazer mais nada</p><p>para ajudar — confessou. — Talvez vá ficando mais fácil de cada vez</p><p>que acontecer. Mas também pode ser que não fique, Ross. Talvez</p><p>não devesse ter ido para medicina. — De repente, olhou-o</p><p>fixamente. — Quando eu morrer, tens de lá estar. Como eu estive</p><p>hoje.</p><p>— Tu não vais morrer…</p><p>— Santo Deus, Ross! Acabei de passar por uma experiência</p><p>profundamente perturbadora… Será que não podes prometer-me</p><p>isso?</p><p>— Não — disse ele terminantemente. — Porque eu vou primeiro.</p><p>Ela ficou calada por um momento, mas depois deixou escapar</p><p>uma pequena risada.</p><p>— Já reservaste o bilhete?</p><p>— Os guei, ou fantasmas famintos — dizia o orador nesse preciso</p><p>momento —, são as almas dos chineses que morreram de forma não</p><p>natural. Em resultado disso, vagueiam pela terra, criando problemas</p><p>aos vivos.</p><p>Ao ouvir isto, Aimee olhou para Ross.</p><p>— Mas que diabo estás tu a ouvir?</p><p>— Pois — respondeu ele. — Andaste lá perto.</p><p>Depois disso, nunca mais tinham falado de Martin Birenbaum.</p><p>Ross fora com ela ao funeral. Ao longo do internato, houve mais</p><p>pacientes que morreram aos seus cuidados. Mas ele não se</p><p>lembrava de tê-la visto fraquejar. Aparentemente, como a maioria</p><p>dos médicos, Aimee acabara por compreender que a morte era</p><p>apenas o fim da vida.</p><p>Atirou uma pedra ao lago Champlain, que se afundou ainda antes</p><p>de a segunda pedra que atirou ter aflorado a superfície. Aimee tinha</p><p>sido cremada. As suas cinzas estavam algures, do outro lado</p><p>daquele lago, com os pais dela. Ross não sabia o que tinham feito</p><p>com elas; após os primeiros três anos, deixara de retribuir os seus</p><p>telefonemas e cartas, simplesmente porque era demasiado doloroso.</p><p>Pegou nos sapatos, decidido a voltar para o carro. Enquanto se</p><p>sentava ao volante, lembrou-se de mais uma história que o orador</p><p>contara na livraria. Os mexicanos acreditavam que, durante um dia</p><p>por ano, o véu era levantado e as almas antigas podiam regressar</p><p>para visitar as pessoas que tinham deixado para trás.</p>