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32FGV DIREITO RIO INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO I As reforMAs do reI rex [tradução livre e adaptação, para fins didáticos, feita pelo núcleo de organização do estado e do direito 1 da edesP, a partir do texto “eight Ways to fail to Make law”, de lon louvois fuller, constante do capítulo II de the Morality of law, Yale university Press, 1969, Cap.II.] Rex subiu ao trono munido com as pretensões de um grande reformador. Não tendo sofrido o sistema ju- rídico de seu pequeno reino, por várias gerações, nenhuma simples reforma, ele considerou que a maior falha de seus predecessores havia se dado no âmbito do direito: os procedimentos jurídicos eram enfadonhos, as regras do ordenamento redigidas no tom arcaico de uma era passada, a justiça era cara e os juízes desleixados e corruptos. Rex estava determinado a remediar todos esses males e escrever seu nome na história como um grande jurista. Seu destino infeliz, entretanto, estava marcado pelo fracasso de suas boas intenções. Seu primeiro ato oficial foi dramático: anunciou a seus súditos a imediata revogação de todas as leis vigen- tes, passando, então, a escrever um novo código. Infelizmente, por ter sido criado como um príncipe solitário, sua educação tinha sido bastante deficiente. Em particular, ele se viu incapaz de realizar as mais simples genera- lizações. Embora não lhe faltasse confiança quando se tratava de decidir controversas específicas, o esforço para apresentar as razões gerais que o levavam a tomar qualquer conclusão estava além de suas capacidades. Não con- seguia mesmo falar genericamente de pessoas sem mencionar seus nomes, nem tampouco caracterizar situações sem a necessidade de recorrer à história. Estando a par de suas limitações, Rex abandonou o projeto do novo código e anunciou a seus súditos que dali em diante agiria como juiz em qualquer disputa que pudesse surgir entre eles. Estimulado pela variedade de casos, ele esperava que seus poderes latentes de generalização se desenvolvessem gradualmente caso a caso, podendo, assim, colecionar um sistema de regras que conseguiria, no futuro, incorporar em um novo código. Como as funções de criação e aplicação do direito não eram separadas, mas concentravam-se inteiramente na pessoa de Rex, o monarca também não as distinguia em sua prática diária: criava novas regras para julgar casos complexos e julgava em desconformidade às regras vigentes quando convencido de que estas precisavam de reparo. Rex havia agora encontrado o caminho correto para sua reforma: seguia inteiramente suas intuições de justiça sem precisar se preocupar com a redação de textos técnico-legais, os quais não se acomodavam com suas deficiências de generalidade e abstração. Sem dar espaço a uma burocracia que, nos reinados anteriores, era responsável pelo vagar e pela corrupção do Direito, Rex, a um só tempo, criava e aplicava a norma sempre que um conflito necessitava de reparo. Seus súditos, entretanto, não tinham a mesma opinião sobre o sucesso das reformas: as regras que Rex utilizava em suas decisões não eram públicas e quase sempre eram aplicadas a acontecimentos ocorridos antes de sua criação. Além disso, era impossível encontrar qualquer padrão em suas decisões. Nos dias em que acordava calmo e bem humorado, tinha julgamentos benevolentes e parcimoniosos. Do contrário, era rigoroso e deter- minava penas cruéis. Ninguém sabia como agir em conformidade ao seu Direito. Diante desses fatos, os súditos de Rex, que tradicionalmente eram pacatos e desinteressados sobre os assuntos do reino, passaram a contestar as reformas iniciadas pelo rei. Rex, diante de constantes manifestações populares, percebeu que não havia escapatória para a publicação de um código declarando as regras a serem aplicadas em futuras disputas. Dessa forma, trabalhou ferrenhamente na elaboração de um novo código revisado e anunciou que seria publicado em breve. Este anúncio foi recebido com um entusiasmo geral. Entretanto, o humor dos súditos de Rex mudou quando o novo código foi publica- do e descobriu-se que se tratava de uma obra-prima da obscuridade. Especialistas em Direito que o estudaram declararam que não havia nele uma frase sequer que poderia ser bem compreendida tanto por cidadãos comuns quanto por advogados treinados. A indignação era generalizada e logo apareceu um protesto perante o palácio real levando um cartaz com os dizeres: “como seguir regras que não podem ser compreendidas?” 33FGV DIREITO RIO INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO I O código foi rapidamente descartado. Reconhecendo pela primeira vez que precisava de ajuda, Rex mon- tou uma equipe de peritos para realizar uma revisão. Ele os instruiu a esclarecer a expressão de suas normas, mas ordenou que deixassem sua substância intocada. O código resultante era um modelo de clareza, mas, conforme era estudado, sua nova clareza revelou ser o documento uma fonte de contradições. Foi informado de que não havia uma disposição sequer do código que não pudesse ser considerada anulada por uma outra em sentido oposto. Outro protesto apareceu perante a presidência real com os dizeres: “desta vez o rei se fez entender, em ambas as direções.” Mais uma vez o código foi retirado para revisão. A essa altura, no entanto, Rex tinha perdido a paciência com seus súditos e com a atitude negativa que pareciam adotar perante tudo o que ele tentava fazer em benefício do reinado. Ele então decidiu dar-lhes uma lição e pôr um fim aos protestos. Ele instruiu seus peritos a varrer do código suas contradições e, ao mesmo tempo, enrijecer drasticamente todas as exigências nele contidos, acrescentando ainda uma longa lista de novos crimes. Dessa maneira, onde antigamente o cidadão chamado ao trono tinha dez dias para se apresentar, na revisão o tempo havia sido reduzido para dez segundos. Foi tornado um crime punível com a forca o ato de espirrar, tossir, ou soluçar na presença do rei. A publicação do novo código quase resultou em uma revolução. Alguns líderes do povo declararam suas intenções de sabotar suas disposições. Alguém descobriu em um autor antigo uma passagem que parecia apta: “obrigar o que não pode ser feito não é fazer o Direito, mas desfazê-lo; pois obrigar o que não pode ser obedecido não serve a nenhum fim a não ser à confusão, ao medo e ao caos”. Logo essa passagem estava sendo citada em centenas de petições ao rei. O povo pedia, outrossim, direitos que os resguardassem de penas cruéis e de abusos do poder real. O código foi novamente descartado e uma equipe de peritos encarregada de sua revisão. As instruções de Rex aos peritos eram de que quando encontrasse uma regra que representasse uma impossibilidade, deveria ser revisada para torná-la possível. Percebeu-se que para se chegar a esse resultado, todas as disposições do código deveriam ser substancialmente reescritas. O resultado final foi um triunfo do trabalho, quase que artesanal, dos peritos. O novo código era agora claro, consistente consigo mesmo e não demandava dos súditos o impossível. O código foi impresso e distribuído gratuitamente em cada esquina. No entanto, antes de chegar a data em que o novo código entraria em vigor, descobriu-se que havia pas- sado tanto tempo entre as revisões sucessivas e o texto original de Rex que a substância do código havia sido seriamente alterada por novos eventos. Desde que Rex assumiu o trono, houve uma suspensão do processo legal ordinário e isso trouxe consigo importantes alterações econômicas e culturais no reino. O povo pedia que seus novos valores e interesses fossem refletidos na legislação e, para que isso ocorresse, exigia a participação popular na elaboração das novas normas. Os clamores democráticos foram parcialmente abafados com a promessa do rei de elaborar emendas à legislação que a tomaria adequada à nova conjuntura do reinado - e que beneficiaria, principalmente, uma nova classe de comerciantes que investia num produto que se tomava cada dia mais rentável. A adaptação às novas condições exigia váriasmudanças substanciais ao direito. Assim que o novo código entrou em vigor, ele foi sub- metido a emendas diárias. Novamente houve descontentamento popular; um panfleto anônimo apareceu nas ruas com charges irônicas sobre o rei e um artigo com o título: “o direito que muda todo dia é pior que direito algum”. O descontentamento com as reformas do Direito tomou-se, por fim, escandaloso ao se descobrir que as novas regras criadas não eram elas próprias seguidas pelo rei e seus oficiais. As regras materiais e procedimentos rigorosos criados por Rex não eram respeitados pelas autoridades reais, o que fez com que a população se sentisse desobrigada do ônus de seu cumprimento. Os líderes do povo passaram a ter reuniões privadas para decidir o que fazer. As teses democráticas ganha- ram mais vozes e o número de descontes crescia cada vez mais. As praças passaram a ficar cheias e os interessados em discutir a organização do Estado e do Direito não mais ficavam sem interlocutores. 34FGV DIREITO RIO INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO I Diante de tais movimentações, o rei Rex sofre uma grave crise nervosa e, em função disso, seus médicos e terapeutas aconselham-no a se afastar temporariamente da política e, principalmente, do Direito. Cumprindo as determinações médicas, Rex vai passar uma temporada em sua residência no campo, onde tem dias bem mais calmos e pode se dedicar a hábitos antigos como a caça a gatos selvagens. Com a ausência do rei, a repressão aos opositores fica fragilizada e uma nova reforma, mais radical, parece amadurecer. Comentário de fuller: A atrapalhada carreira de Rex como legislador e juiz ajuda a demonstrar como se pode fracassar --- de, pelo menos, oito maneiras --- na tentativa de criar e preservar um sistema de regras jurídicas. (…) A primeira e mais óbvia dessas falhas consiste na (1) incapacidade de criar regras que sejam dignas do nome, com a conseqüência de que todas as decisões continuam a ser tomadas na base do caso-a-caso (ou, como se diz, casuisticamente). As outras falhas são: (2) não tornar públicas, ou pelo menos não tornar disponíveis à parte afetada, as regras que ela deve obedecer; (3) o abuso das leis retroativas (isto é, que valem para casos anteriores a ela), que não apenas não são capazes de nortear as decisões das pessoas, mas minam o valor das regras em vigor, pois as colocam sob ameaça constante de ser retrospectivamente alteradas; (4) não tornar as regras inteligíveis; (5) estabelecer regras de conteúdo contraditório; (6) estabelecer regras que exigem ações acima das capacidades da parte afetada; (7) fazer mudanças tão freqüentes nas regras existentes que os indivíduos não conseguem nortear suas ações por elas; e, finalmente, (8) a inexistência de congruência entre as regras tais como anunciadas e sua efetiva aplicação. Não é que a falha em qualquer dessas direções resulte simplesmente num sistema jurídico ruim. A conseqüência é que não podemos nem chamar uma tal coisa de sistema jurídico
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