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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte História da Arte Moderna Márcia Victória Elisio Barbosa Costuras epistemológicas: Percepções decoloniais sobre a arte moderna São Paulo 2024 Márcia Victória Elisio Barbosa Costuras epistemológicas: Percepções decoloniais sobre a arte moderna Monografia apresentada à disciplina de História da Arte Moderna, do Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, sob a orientação da professora Cristina Costa. São Paulo 2024 Márcia Victória Elisio Barbosa Costuras epistemológicas: O papel da História da Arte Moderna Monografia apresentada à disciplina de História da Arte Moderna, do Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, sob a orientação da professora Cristina Costa. Data da aprovação: / 07 / 2024. RESUMO A partir do estudo da História da Arte Moderna, como fonte de formação artística, cultural e de territorialidade, a contribuição dos temas discutidos na disciplina, o propósito deste trabalho é apresentar e definir teoricamente conceitos epistemológicos importantes, entrecruzando a pesquisa entre o campo da História da Arte e História Oral, repensar suas intencionalidades e sobretudo, refletir a partir do pensamento decolonial, o modo como olhamos o passado no presente, para que possamos rever erros, solucionar problemas encontrados, com atenção aos processos de identificação das relações sociais. Os paradigmas e relações da linguagem estética entre modernidade e colonialidade, são discutidas ao revisitar a História da Arte Latino-Americana e a arte decolonial, onde se estabelecem paralelos com a performance enquanto prática que possibilita o resgate de tradições orais e ancestrais. As contribuições da disciplina são introduzidas a partir das reflexões e discussões dos seminários apresentados e das aulas expositivas, em especial o desenvolvimento da pesquisa do Movimento Dadaísta elaborado para apresentação. Keywords: Decolonial Art. Corpoterritoriality. History of Modern Art. Oral History. Performance. ABSTRACT From the study of the History of Modern Art, as a source of artistic, cultural and territorial formation, the contribution of the themes discussed in the discipline, the purpose of this work is to present and theoretically define important epistemological concepts, intertwining research between the field of History of Art and Oral History, rethink their intentions and above all, reflect from decolonial thinking, the way we look at the past in the present, so that we can review errors, solve problems encountered, with attention to the processes of identifying social relations. The paradigms and relationships of aesthetic language between modernity and coloniality are discussed when revisiting the History of Latin American Art and decolonial art, where parallels are established with performance as a practice that enables the rescue of oral and ancestral traditions. The contributions of the discipline are introduced based on the reflections and discussions of the seminars presented and the expository classes, in particular the development of research on the Dadaist Movement prepared for presentation. Palavras-chave: Arte Decolonial. Corpoterritorialidade. História da Arte Moderna. História Oral. Performance. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1 – “El Norte es el sur” ................................................................. 25 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO 9 2 COSTURAS EPISTEMOLÓGICAS ENTRE HISTÓRIA ORAL E HISTÓRIA DA ARTE: UMA PERSPECTIVA DECOLONIAL 12 3 TRANSGRESSÃO EPISTÊMICA E ESTÉTICA: COLONIALIDADE E MODERNIDADE 18 3.1 Arte decolonial, rupturas e contradições dialéticas: Da Margem ao Centro 22 4 ARTE MODERNA: AS VANGUARDAS NA AMÉRICA LATINA 27 4.1 Paralelos entre Performance e História Oral 31 5 CONSIDERAÇÕES 34 REFERÊNCIAS 35 BIBLIOGRAFIA 37 9 1 INTRODUÇÃO Existem muitas formas de narrar uma história, desde a perspectiva do locutor, à interpretação do interlocutor, captada de forma exclusivamente objetiva ou subjetiva. Levando em consideração o repertório individual e coletivo, a localização geográfica, dentre outras características, é de suma importância refletir sobre o que é História, o que ela representa socialmente, além de apresentar algumas definições e conceitos importantes para a pesquisa. Dito isso, em linhas gerais podemos compreender que a história é a construção de uma ou mais narrativas, que utiliza dados e fatos temporais, acerca de saberes, fazeres, crenças, valores e pensamentos, em determinado contexto e consequencialidade, de uma comunidade específica ou da humanidade como um todo. Retomando a discussão feita nas aulas iniciais, acerca da história como metodologia e trabalho arqueológico, é citado o pensamento de Michel Vovelle (2004)1, que apresenta a história enquanto relações dialéticas entre as condições objetivas do ser humano, como a narram e vivem a partir das mentalidades que constituem um determinado padrão de pensamento e sensibilidade, que muda lentamente, formando uma estrutura de longa duração, na relação das formas de sociabilidade e pertencimento. Ainda sobre relações dialéticas, Thomas Kuhn (1998) aborda o tema sob a perspectiva dos paradigmas da epistemologia histórica, visíveis dentro de um momento (ou contexto) histórico enquanto conjunto de saberes e fazeres que determinam as limitações do paradigma. Os diferentes autores e conceitos apresentados em sala foram fundamentais para refletir o cerne da pesquisa e aprofundar o diálogo das temáticas aqui costuradas, com atenção especial ao campo da história da arte moderna. No texto “História e conhecimento:uma abordagem epistemológica” de Ciro Flamarion Cardoso (2012), encontramos conceitos importantes sobre as “modalidades básicas da epistemologia da história”, utilizando uma afirmativa de Munslow (1997): 1 O conceito de “História das Mentalidades" passou a predominar na historiografia francesa em meados da década de 1960. Para Vovelle, o conceito de mentalidade integra o que ainda não foi formulado, e que em primeiro momento permanece como algo “não significante”, conservando – mesmo oculto – a construção das motivações inconscientes. (VOVELLE, 2004, 14-15). 10 Não é possível afirmar que existam apenas três posturas epistemológicas diante da história, mas as modalidades básicas ou principais – de que dependerão as escolhas teórico-metodológicas centrais – são somente três, que podemos denominar reconstrucionista, construcionista e desconstrucionista. (CARDOSO apud MUNSLOW, 2012, p.3). Explicando ainda, que as três modalidades epistemológicas, apresentam trocas e influências que agem umas sobre as outras “e, em função das trocas e debates, afastam-se do que seria, em cada uma delas, um estado mais “puro” (ou, caso se prefira, “ortodoxo”).” (CARDOSO, 2012, p.3). No decorrer do capítulo, o autor aprofunda cada uma das modalidades em torno das regras do método que se deveria aplicar na geração do conhecimento histórico, em torno das regras — metodológicas — que deveriam ser aplicadas na geração do conhecimento histórico, sendo elas, o Reconstrucionismo, o Construcionismo e o Desconstrucionismo. Além de aplicá-las a partir do Marxismo, Weberianismo e da “Escola” dos Annales. (CARDOSO, 2012, p.3-18). Este ensaio surge como proposta da disciplina História da Arte Moderna, orientada pela Prof. Dra. Cristina Costa e ofertada pelo Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo, no primeiro semestre de 2024. O referencial teórico é direcionado a partir da crítica decolonial, e pretende questionar a construção da história da arte, bem como suas intencionalidades, isto é: quem a escreve, como escreve e para quem escreve. Com isso, o objetivo é discutir sobre a contribuição dos temas discutidosCentral-IESCO, Siglo Del Hombre editores, 2007. MARIÁTEGUI, José Carlos. MIGNOLO, Walter.D. Colonialidade: O Lado Mais Escuro Da Modernidade. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 32, n. 94, 2017. MORAIS, Frederico. Reescrevendo a história da arte latino-americana. In: I Bienal do Mercosul. Porto Alegre, FBAAVM, 1997, p. 12-20 [Catálogo]. NOCHLIN, Linda. Por que não houve grandes mulheres artistas?. São Paulo, 2016. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/mod/resource/view.php?id=3279095&forceview=1. Acesso em: 20 jun. 2024. OYERONKE, Oyewumi. A invenção das mulheres: construindo um sentido africano para os discursos ocidentais de gênero. Bazar do Tempo, 2021. QUIJANO, Aníbal. 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Especificamente, busca investigar a relação entre colonialidade e modernidade, e o papel da arte decolonial nessa conjuntura. Deste modo, a pesquisa foi estruturada no desenvolvimento de três capítulos que visam contextualizar e apresentar a definição de conceitos importantes para a construção do projeto, com auxílio de autores nas três áreas principais, da História Oral, História da Arte e Performance, onde a discussão é ampliada e embasada a partir dos paradigmas entre colonialidade e modernidade em cada capítulo. 11 O segundo capítulo é a base para a reflexão dos demais capítulos, visa apresentar e explicar os seguintes conceitos: o que é história oral e o que é história da arte, em uma breve contextualização acerca de percurso, problemáticas, principais definições e características, a partir do pensamento de pesquisadores da área. Seguindo por fazer ponte entre história e memória — teoria e prática —, interligando ambos os campos, com a proposta de servir como base teórica para pesquisa e análise nas artes visuais e na história da arte. O terceiro capítulo além de complementar o anterior, é direcionado a refletir sobre a relação entre colonialidade e modernidade a partir das expressões estéticas e não estéticas, bem como as implicações na produção artística e construção da história da arte. São retomados conceitos trabalhados anteriormente, para desenvolver a análise do papel da linguagem estética, especificamente nos embates da conjuntura política e cultural, com direcionamento para pensar a arte decolonial à luz do papel sociocultural (e também político) da arte. O quarto capítulo traz um panorama geral sobre as vanguardas modernistas, unindo os pontos abordados nos capítulos anteriores e estabelece relações da pesquisa sobre performance com o resgate de tradições orais e saberes ancestrais, com o discurso direcionado para o corpo-território enquanto possibilidade de interpretação e investigação contra-colonial. Seguindo por utilizar a pesquisa sobre o movimento Dadaísta desenvolvida e apresentada em seminário na disciplina, como base para a reflexão. Por fim, o último capítulo traz as considerações sobre as etapas desenvolvidas na pesquisa, deixando clara a necessidade de sua continuidade e aprofundamento, para então servir como proposta de base teórica que auxilie outras pesquisas no campo das artes visuais e história da arte. 12 2 COSTURAS EPISTEMOLÓGICAS2 ENTRE HISTÓRIA ORAL E HISTÓRIA DA ARTE: UMA PERSPECTIVA DECOLONIAL As costuras epistemológicas permitem corporificar a construção do saber, através da reflexão crítica e contínua, revisitando conceitos científicos e também memórias, para que, a partir de sua análise, seja possível relacionar a materialidade com a subjetividade. Como sugere o título do capítulo, relacionar a história oral com a história da arte, a partir do pensamento decolonial, tem o objetivo de apresentar uma proposta para entrecruzar a pesquisa de ambos os campos em análises teórico-práticas, e consequentemente repensar a história da arte, com olhar decolonial além de objetivos de pesquisa acadêmica, como instrumento de mobilização política e social. Dada a ousadia da proposta, a primeira pergunta que podemos fazer é: o que é história oral? Ao adentrar na pesquisa, encontramos três principais respostas para essa pergunta, a primeira a define como uma técnica, a segunda, uma disciplina e a terceira, uma metodologia, todas com importantes diferenças de posicionamento para nos atentarmos3. (FERREIRA, 2012, p.169-170). [...] o testemunho oral representa o núcleo da investigação, nunca sua parte acessória, o que obriga o historiador a levar em conta perspectivas nem sempre presentes em outros trabalhos históricos, como as relações entre escrita e oralidade, memória e história, ou tradição oral e história; o uso sistemático do testemunho oral possibilita à história oral esclarecer trajetórias individuais, eventos ou processos que às vezes não têm como ser entendidos ou elucidados de outra forma: são depoimentos de analfabetos, rebeldes, mulheres, crianças, miseráveis, prisioneiros, loucos... São histórias de movimentos sociais populares, de lutas cotidianas encobertas ou esquecidas, de versões menosprezada, característica que permitiu, inclusive, que uma vertente da história oral se tenha constituído ligada à história dos excluídos. (FERREIRA, 2012, p.171, grifo nosso). Como reiterado por Marieta Ferreira (2012), é necessário se atentar ao fato de que a história oral funciona como ponte entre teoria e prática (por isso seria difícil classificá-la unicamente como prática) e as soluções para as perguntas por ela formuladas, “devem ser buscadas na historiografia e na teoria da história, em que se 3 As contradições, especificidades e implicações dos posicionamentos estão detalhadas em (FERREIRA, 2012, p.169-172). 2 Segundo Bunge (1980), “ a Epistemologia, ou Filosofia da ciência, é o ramo da Filosofia que estuda a investigação científica e seu produto, o conhecimento científico” (BUNGE, 1980, p. 5), em outras palavras, a Ciência que estuda a Ciência, é o estudo crítico dos princípios, das hipóteses e dos resultados das diversas ciências, com a finalidade de determinar seus fundamentos lógicos, seu valor e sua importância objetiva. 13 agrupam conceitos capazes de pensar os problemas metodológicos gerados pela pesquisa histórica.” (FERREIRA, 2012, p.170), reiterando ainda, que “apenas a teoria da história é capaz de fazê-lo, pois se dedica, entre outras coisas, a pensar os conceitos de história e memória, assim como as complexas relações entre ambos.” (FERREIRA, 2012, p.170). Nos lembrando também de uma das problemáticas que se sobressai, segundo Marieta, acerca da história oral como fonte válida de pesquisa4 (sob os olhares acadêmicos): “A consolidação da disciplina da história e a profissionalização do historiador no século XIX impuseram o domínio absoluto dos documentos escritos como fonte, em detrimento da tradição oral, expulsando a memória em favor do fato.” (FERREIRA, 2012, p.172). O embasamento trazido por Marieta Ferreira, indica a complexidade do tema, e através de diferentes autores revisitados a seguir, traçamos possíveis percursos na construção da proposta de pesquisa e análise apresentada neste ensaio. Segundo Ana Mae Barbosa (2008) história e memória caminham juntas no cenário temporal. A história formal possui caráter intelectual acadêmico, já a memória, não segue regras e metodologias, percorre um caminho afetivo revivendo cada lembrança (BARBOSA, 2008). A relação entre história e memória abordada por Ana Mae Barbosa, nos introduz aos conceitos sobre história oral apresentados por Paul Thompson (2017): [...] entendo por “história oral” a interpretação da história e das mutáveis sociedades e culturas através da escuta das pessoas e do registro de suas lembranças e experiências. Não creio que se possa avançar muito tentando definir história oral de modo estreito, como um processo de habilidades com regras fixas, ou como uma subdisciplina separada. (THOMPSON, 2017) A partir disso, podemos observar duas linhas de trabalho que possuem abordagens distintas, e que podem se complementar em muitos casos. A primeira utiliza a denominação “história oral", com foco nos depoimentos orais como instrumentos para preencher lacunas deixadas pelas fontes escritas. Como segunda abordagem, o trabalho privilegia o estudo das representações e atribui o papel central às relações entre memória e história, e busca realizar uma discussão mais refinada dos usos políticos do passado. 4 Marieta Ferreira,aponta como problemas metodológicos, que entre os anos 1960 e 1970 de modo geral a história oral despertava pouco interesse dos historiadores. Enquanto na virada para o século XXI, notava-se grande resistência dos especialistas em utilizar fontes orais como parte de seu universo de pesquisa.(FERREIRA, 2012, p.172). 14 Os possíveis e diversos caminhos que a história oral pode fazer enquanto metodologia, auxiliam não somente na reflexão de como entendemos o subjetivo e o objetivo, ou como fazemos [re]interpretações das experiências do passado sob pontos de vista específicos de um indivíduo ou grupo. Portanto, nos possibilita revisitar (e encontrar caminhos para redefinir) a história geral e a história da arte, com olhares atentos para as nuances das cosmoperceopções culturais, patrimoniais, além do academicismo, complementando as narrativas de forma contra hegemônica, claro que tendo em mente a relação entre pesquisa e realidade social, dada a tendência política da pesquisa. Partindo desta breve contextualização, é possível analisar outras formas de comunicação, novas visões, interpretações e conexões, se atentando à metodologia que será aplicada para estabelecer os paralelos entre a interpretação da história das sociedades, às especificidades culturais, e seus processos de transformação, a partir da escuta alinhada ao registro dessas memórias evocadas, como nos diz Oyeronke, “As conexões entre identidade social, experiências pessoais e a natureza da pesquisa e abordagem são complexas; muitas vezes as ligações são imprevisíveis e não lineares.” (OYĚWÙMÍ, 2021, p.24), Ainda segundo Oyewumi, “O contexto inclui a identidade social de quem pesquisa, a localização espacial e temporal da pesquisa e os debates na literatura acadêmica.” (OYĚWÙMÍ, 2021, p.24), o que reforça a importância entre teoria e prática e a forma de relacionar a materialidade com a subjetividade na pesquisa. Sendo fundamental ter em mente quais os valores implantados em uma sociedade, refletindo a padronização e normalidade instituídas através das classes sociais, para entendermos como a oralidade vai operar metodologicamente — para a recuperação de tradições —, as trocas de informação e formas de sociabilidade irão ocorrer, bem como a noção de pertencimento pode variar, de acordo com suas cosmopercepções5. Ao olhar a história da arte a partir de óticas decoloniais, vemos que o encontro das culturas transcende a ideia de temporalidade e “descobrimento”, com diferentes caminhos para conhecer as especificidades ao que diz respeito à arte. 5 Termo abordado por Oyeronke Oyewumi (2021), no livro “A invenção das mulheres: construindo um sentido africano para os discursos ocidentais de gênero”. É uma forma mais inclusiva de descrever a concepção de mundo por diferentes grupos culturais. (OYĚWÙMÍ, 2021, p. 29). 15 Na reflexão decolonial, é importante lembrar dos lugares impostos às minorias, à classe trabalhadora, postos em um lugar de esquecimento e apagamento histórico, visto que o sistema capitalista atua como face mono-idiomática na economia e como representante financeiro da colonialidade, exercendo influências comportamentais, filosóficas, dentre outras formas de dominação e manutenção ideológica. E nessa complexa correlação entre o pensamento ocidental com o pensamento das sociedades e comunidades marginalizadas, é claro que a concepção de arte, de obra de arte e da narrativa para contar a história da arte, em uma terminologia ocidental, podemos dizer que a história da arte é uma área de estudo que acompanha o desenvolvimento da história social, se relacionando com a cultura dos povos em seus períodos, vertentes sociais, políticas e religiosas, sendo narrativas majoritariamente contadas com viés linear, eurocêntrico e colonialista, que silencia outras formas subjetivas de existir e de expressão. Portanto, para solucionar os problemas de ordem técnica e epistemológica, e encontrar formas de contar história da arte evitando as associações e definições ocidentais, podemos utilizar os “gestos de aproximação e de reconhecimento”, citados por Ailton Krenak, pois “eles podem se expressar também numa abertura efetiva e maior dos lugares na mídia, nas universidades, nos centros de estudo” e também nos “estudos antropológicos que deveriam nos ajudar a entender melhor a diversidade, conhecer um pouco mais dessa diversidade e tornar mais possível esse contato.” (KRENAK, 1999, p.28). Os apontamentos evocados por Krenak em “O eterno retorno do encontro”, permitem uma reflexão crítica acerca dos possíveis embates para análises decoloniais, encontrados no campo da história da arte, e são justamente esses caminhos decoloniais — de reflexão, crítica e prática — que buscamos com essa pesquisa. Os movimentos e avanços para novas avaliações da história da arte e o viés ao qual foi construída — na monocultura — é tarefa que vem sendo desempenhada por pesquisadores no campo das artes (historiadores da arte, artistas, curadores, etc) com intuito de dar vizibilidade à outras narrativas, silenciadas, que ao longo de todo processo da colonização, tiveram apagamento histórico, expropriação artística e cultural. A diversidade de pensamentos e análises enriquece a discussão, poderia dizer até, que em um “mundo ideal”, utilizaria apenas escritos latino-americanos para a construção dos pensamentos apresentados neste trabalho, porém rever as 16 fontes de autores consagrados na historiografia da arte é de extrema importância para entender a cronologia e ideia do que conhecemos como estudo em história da arte, partindo do conceito geral para a arte moderna e ademais, a arte latino-americana. Para isto, ao revisar os escritos de Argan, no livro “Arte Moderna: Do iluminismo aos movimentos contemporâneos” é possível identificar que a abordagem de sua teoria é feita a partir de aspectos do marxismo, em que combina a questão artística, às investigações ligadas à dinâmica da produção e da economia, evitando o reducionismo com um amplo contexto histórico. Logo, nessa revisão cronológica acerca dos termos utilizados para descrever as fases da história da arte, segundo Giulio Carlo Argan (1992): Quando se fala da arte que se desenvolveu na Europa e, mais tarde, na América do Norte durante os séculos XIX e XX, com frequência se repetem os termos clássico e romântico. A cultura artística moderna mostra-se de fato centrada na relação dialética, quando não de antítese, entre esses dois conceitos. Eles se referem a duas grandes fases da história da arte: o “clássico” está ligado à arte do mundo antigo, greco-romano, e àquela que foi tida como seu renascimento na cultura humanista dos séculos XV e XVI; o romântico, à arte cristã da Idade Média e mais precisamente ao Românico e ao Gótico. (ARGAN, 1992, p.11). A partir dessa formulação, estabelecer vínculos entre a produção artística, os aspectos sociais, éticos, históricos e cognoscitivos, pode ser possível sem privilegiar as instâncias envolvidas na análise das problemáticas, com objetivo de evidenciar a decolonialidade e compreender as diversidades culturais. E ainda com o pensamento de Krenak (1999): O encontro com nossas culturas, ele transcende a essa cronologia do descobrimento da América, ou das circunavegações, é muito mais antigo. Reconhecer isso nos enriquece muito mais e nos dá a oportunidade de ir afinando, apurando o reconhecimento entre essas diferentes culturas e “formas de ver o mundo” [...]. (KRENAK, 1999, p. 28). Esse movimento de análise traz consigo necessariamente uma temporalidade de ordem histórica, em que passado, presente e futuro se conectam com o intuito de discutir os fundamentos da concepção de arte com as esferas sociais. E atento à questão da alteridade, que se originou com o encontro, em desencontro, de nossos ancestrais no passado, e com a memória que buscamos encontrar no presente, nos processos de autodeterminação e discussão sobre a estrutura histórica. 17 Com ressalva ao apontamento de Rodrigo Naves(1992), no prefácio da obra, para uma problemática no sistema de Argan, que “nos revela diz respeito, fundamentalmente, a uma época em que o artesanato era o sistema dominante de produção, e no qual a obra de arte de fato podia aparecer como objeto por excelência e modelo das outras atividades.” e que “Com a industrialização esse sistema entra em crise, e a Arte moderna é a própria história dessa crise.” (NAVES, 1992, p. XXI apud ARGAN, 1992). Nessa citação, é possível ampliar a discussão para refletir as relações e contradições — de significado e prática — entre arte e artesanato, que surgiram no mundo moderno, a partir da ascensão da burguesia e do sistema capitalista: a indústria cultural, a cultura de massa e indústria de bens simbólicos (temática discutida em aula expositiva), visando a comercialização, o lucro, e a ideia de que o trabalho artesanal se torna “inferior” e da arte enquanto “experiência separada” na sociedade e a necessidade de atribuir valor funcional à arte, e que tornou possível o aparecimento de categorias como “objetos artísticos, artista, colecionador de arte, marchand e assim por diante” (KRENAK, 1999, p. 21). A história crítica da arte visa dar conta de uma análise que aborda a singularidade do fazer artístico e de conduzir esse fazer no contexto em que se deu a sua projecção no devir histórico, para refletir a relação de dados e formular então hipóteses interpretativas, especialmente com a proposta decolonial — evitando o olhar unidirecional e reducionista — em complementar e dar vez a outras percepções epistêmicas e metodológicas da história oral. Portanto, essa proposta atravessa muitas nuances na esfera artística, desde sua estrutura à sua transformação ao longo das histórias, das narrativas, dos territórios, das instituições, dos corpos sociais, das interpretações e a que propósito servem, e de acordo com Linda Nochlin (2016), reforçamos que a respeito do campo da história da arte: [..] na realidade, como todos sabemos, as coisas como estão e como estiveram, nas artes, bem como em centenas de outras áreas, são entediantes, opressivas e desestimulantes para todos aqueles que, como as mulheres, não tiveram a sorte de nascer brancos, preferencialmente classe média e acima de tudo homens. (NOCHLIN, p. 9). E nessa tessitura, uma breve ressalva para o recorte das diferenças de gênero, como abordado por Nochlin (2026), abre a discussão das relações estéticas e contradições entre colonialidade e modernidade, trazidas no próximo capítulo. 18 3 TRANSGRESSÃO EPISTÊMICA E ESTÉTICA: COLONIALIDADE E MODERNIDADE Modernidade é uma palavra utilizada em diferentes contextos, com a ideia de referenciar algo inovador. A partir da análise e revisão histórica apresentada neste capítulo, observamos que a modernidade se baseia na colonialidade para justificar sua existência, e “matriz colonial de poder”6, ou a base sobre a qual a sombra da modernidade, a colonialidade, foi e segue sendo forjada. Mignolo ressalta em sua crítica os resultados e efeitos da expansão colonial europeia, em particular na América, onde observa que “ambas são a representação dos projetos imperiais e dos desígnios para o mundo criados por atores e instituições europeias que os levaram a cabo”.(MIGNOLO, 2007, p. 31). E com isso, fica claro que as relações de dependência histórico-estrutural entre colonialidade-modernidade são intrínsecas, do apagamento das identidades à expropriação cultural. Além dos apontamentos para esse panorama histórico, é importante lembrar que a modernidade em uma América Latina emergente, composta por diversas nações que haviam acabado de obter a independência da Espanha e de Portugal, estabeleceram padrões econômicos, políticos e epistemológicos. (MIGNOLO, 2003, p.93). Segundo Walter Mignolo, “a “modernidade” é uma narrativa complexa, cujo ponto de origem foi a Europa, uma narrativa que constroi a civilização ocidental ao celebrar as suas conquistas enquanto esconde, ao mesmo tempo, o seu lado mais escuro, a “colonialidade”.” (MIGNOLO, 1997, p.2), argumentação que explicita o padrão de dominação do colonizador sobre o colonizado, por exemplo, em outorgar legitimidade às relações de dominação impostas pela conquista, através da ideia de raça (QUIJANO, 2005, p.117). Dito isso, para desenvolver a análise estética, é fundamental compreender a diferença entre “colonialismo” e “colonialidade”, tendo em mente que se trata de uma discussão complexa, que demanda tempo e espaço específico para o devido aprofundamento de suas especificidades e desdobramentos. 6 “El patrón colonial de poder”, ou matriz colonial de poder – MCP. Segundo Quijano (2005), é um modelo criado no eurocentrismo e no sistema capitalista, que, sendo estrutural, e prática da violência física e epistêmica, descrito com quatro domínios inter-relacionados: controle da economia, da autoridade, do gênero e da sexualidade, e do conhecimento e da subjetividade. 19 O conceito de colonialidade foi introduzido pelo sociólogo peruano Aníbal Quijano, no final dos anos 1980 e no início dos anos 1990, em “Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina”, onde atribui novos sentidos e reflexões ao conceito de colonialismo e caminhos para repensar criticamente o sistema mundial colonial/moderno7. Maldonado-Torres (2007) esclarece a distinção entre esses dois conceitos da seguinte maneira: O colonialismo denota uma relação política e econômica, na qual a soberania de um povo está no poder de outro povo ou nação, o que constitui a referida nação em um império. Diferente desta ideia, a colonialidade se refere a um padrão de poder que emergiu como resultado do colonialismo moderno, mas em vez de estar limitado a uma relação formal de poder entre dois povos ou nações, se relaciona à forma como o trabalho, o conhecimento, a autoridade e as relações intersubjetivas se articulam entre si através do mercado capitalista mundial e da ideia de raça. Assim, apesar do colonialismo preceder a colonialidade, a colonialidade sobrevive ao colonialismo. Ela é, mantém viva em textos didáticos, nos critérios para o bom trabalho acadêmico, na cultura, no sentido comum, na auto-imagem dos povos, nas aspirações dos sujeitos e em muitos outros aspectos de nossa experiência moderna. Nesse sentido, respiramos a colonialidade na modernidade cotidianamente. (MALDONADO-TORRES, 2007, p. 131). Ou seja, com essa distinção dá-se um conceito mais amplo e complexo ao processo da descolonização, ficando claro que a colonialidade sobrevive ao fim do colonialismo, e como o processo de emancipação das colônias latino-americanas, asiáticas e africanas, que ao longo de suas lutas, foi encontrando novos desafios de combate ao sistema capitalista, que propulsiona a engrenagem da colonialidade, inclusive sobre a visão estética desenvolvida pela hegemonia cultural, que incide diretamente sobre a produção artística. Para abordar os paradigmas entre modernidade e colonialidade, é necessária breve contextualização sobre o debate teórico anticolonialista. Sabe-se de maneira geral que o termo abrange múltiplas acepções e reflexões acerca da dominação eurocêntrica, o qual enfatiza o caráter racista das políticas coloniais, em denúncia à violência do colonizador e a condição de desfiguração do colonizado. Com ênfase ao momento político e social de término da Segunda Guerra Mundial, em que as relações de poder, subordinação e dependência intrínsecas e enviesadas 7 De acordo com Quijano (2005) o sistema mundial colonial/moderno, nasceu ao longo século 16, visto que a criação da entidade geo social das Américas, foi o constitutivo desse sistema. Enfatizando ainda sobre o controle da força de trabalho, ao genocidio dos povos originários e legislações para justificar a tutela dos mesmos. 20 das tensões acumuladas entre países colonizados, dariam força para movimentos e lutas de emancipação, libertação e independência dos povos oprimidos (como a independência da China e da Índia, colônias de domínio inglês,ou as lutas de libertação de Angola, Moçambique e Argélia, no continente africano). Segundo Alfredo Bosi (1992) “A colonização é um projeto totalizante cujas forças motrizes poderão sempre buscar-se no nível do colo: ocupar um novo chão, explorar os seus bens, submeter os seus naturais.” (BOSI, 1992, p.), o que reforça a ideia de que a colonialidade está socialmente engendrada, sendo processo que tem grande influência na sociedade moderna. Deste modo, podemos correlacionar as rupturas estéticas das vanguardas, apresentadas a partir do próximo capítulo, utilizando também reflexões sobre o processo fenomenológico discutido em aula, a capacidade da linguagem em comunicar os padrões — e de repercussão dos signos — culturais e visuais produzidos pela hegemonia cultural. A expressão estética, por exemplo, não é algo que pertence exclusivamente a uma cultura, ou como utilizado em termos ocidentais às culturas civilizadas em um determinado período. A estética precede a história. Para isso, a análise de Oyeronke (2021), nos ajuda a dar o primeiro passo na reflexão sobre o papel da linguagem, como um dos fatores determinantes nas relações, tradições e organização social, em diferentes âmbitos, ao dizer que “a linguagem é uma instituição social e, no nível do indivíduo, afeta o comportamento social. A linguagem de um povo reflete seus padrões de interações sociais, linhas de status, interesses e obsessões”. (OYERONKE, 2021, p. 233). Bem como a entender as entrelinhas da relação — estética — entre colonialidade e modernidade, enquanto discussão sociopolítica, suas implicações na produção artística, na construção da história da arte, da história oral e da própria história geral, enquanto campos de estudo. Sendo o título do capítulo uma provocação, derivada da análise que reflete a relação do papel da arte (e também sua intersubjetividade) enquanto ferramenta de transgressão estética e epistêmica, com caráter anticolonial, com a ideia de ação unida ao pensamento na conjuntura sociopolítica, como ferramenta para a revolução. Na análise dessa relação estética, definir “O que é Arte” é sempre um trabalho desafiador, mas em linhas gerais podemos dizer que ela possibilita criar formas de ressignificar e transformar a linguagem, através da intersubjetividade. 21 Como abordado por Nochlin (2016) no texto “Por que não houve grandes mulheres artistas?”, pautar uma definição para a arte, “[...] na equivocada concepção compartilhada com o senso comum do que seria arte: a ingênua ideia de que arte é a expressão individual de uma experiência emocional, a tradução da vida pessoal em termos visuais.” (NOCHLIN, 2016, p.7). Logo, podemos compreender que a linguagem estética trabalha com a sensibilidade, sendo uma forma de comunicação que visa atingir a subjetividade e emoção, para além da nacionalidade e formalidade. Nos pondo a refletir sobre quais interpretações temos sobre a mensagem passada pela linguagem estética, sendo possível a costura entre a ressignificação, poéticas, signos e significações, além de analisar as relações estéticas da colonialidade implicada na modernidade através das relações de dominação do sistema capitalista. Inclusive ao relembrar do percurso filosófico do materialismo histórico, em que artistas e críticos marxistas colocaram a questão estética, especificamente seu sentido histórico, de diferentes maneiras, foi possível encontrar diferentes tendências estéticas dentro do materialismo histórico, uma delas sendo o estímulo ao engajamento político do escritor/artista e a crença no potencial artístico/intelectual do proletariado, por exemplo. A reflexão de Mignolo (2007), observa que a construção da ideia de América Latina — inclusive a criação desse termo: América, América Latina — é uma questão que ultrapassa a terminologia de referência, com agentes sociais e políticos que participaram de sua criação, e explica: Em meados do século XIX, a ideia da América como um todo começou a se dividir, não de acordo com os estados-nação que surgiam, mas segundo as diferentes histórias imperiais do Hemisfério Ocidental, o que resultou na configuração da América saxã, ao norte, e da América Latina, ao sul. Naquele momento, "América Latina" foi o termo escolhido para nomear a restauração da "civilização" da Europa meridional, católica e latina, na América do Sul e, simultaneamente, reproduzir as ausências (dos indígenas e dos africanos) do primeiro período colonial. [...] A "ideia"de América Latina é a triste celebração, por parte das elites crioulas, de sua inclusão nos tempos modernos, quando, na realidade, elas submergem cada vez mais na lógica da colonialidade. (MIGNOLO, 2007, p. 81). Com este panorama, podemos iniciar a discussão sobre a arte decolonial e os movimentos de ruptura e crítica à modernidade, com o olhar direcionado à arte Latino-Americana, em especial atenção para o diálogo com a arte indígena e afro-brasileira. 22 3.1 Arte decolonial, rupturas e contradições dialéticas: Da Margem ao Centro Revisitar a História da Arte Latino-Americana é um passo importante para a análise da arte decolonial, problematizando o “colecionismo do outro”, nas concepções da arte dita “tradicional” que pressupõe à um povo, um estilo, desconsiderando os fluxos, transformações e apropriações entre diferentes culturas, bem como a criatividade e autoria dos artistas. Em diálogo com a ideia de sistema mundial colonial/moderno introduzida por Quijano (2005), a respeito das relações de dominação cultural, entendemos que a lógica da colonialidade incide diretamente sobre a História da Arte Latino-Americana. Com esse apontamento, podemos datar a formação das primeiras coleções de arte latino-americana, desde os tempos coloniais, a exemplo dos gabinetes de curiosidades até a lenta estruturação de museus nacionais — acompanhados ou impulsionados pelas descobertas arqueológicas da época —, em que a evolução da crítica de arte latino-americana, a qual percurso de legitimação artística e divulgação de ideias e manifestos, se deu principalmente com a literatura no século XIX, a imprensa no início do século XX e as revistas especializadas a partir da década de 20, Quanto à colonização do conhecimento, lembre-se que, ao mesmo tempo em que a Europa acumulava dinheiro por meio da extração de ouro e prata no século XVI e por meio da exploração das plantações caribenhas e do comércio de escravos em massa no século XVII, a Europa também acumulava significado. (MIGNOLO, 2017, p.310). O acúmulo de significados citado por Mignolo (2017), aponta que as violências epistêmicas reforçam a ideia de que o caminho da historiografia e crítica de arte latino-americana, esteve sempre oscilando entre duas visões opostas: a arte como “vítima da tradição” e dominada por modelos estrangeiros, e uma visão idealista do que a arte deveria ser, o que chama a atenção para refletir sobre a fetichização da arte e artistas, tanto no meio mercadológico, quanto do imaginário do senso comum, em uma linha do exótico ou folclórico, consideravelmente mais operantes até o começo dos anos 90, especialmente em 1992 com o período da dissolução da União Soviética e a queda do muro de Berlim (COUTO, 2017, p.129). Nessa construção, é importante citarmos, que desde os anos 1990, houve grande aumento do número de exposições sobre arte e artistas latino-americanos no circuito internacional, com mostras e retrospectivas realizadas em museus europeus e norte-americanos, com propostas menos estereotipadas da arte 23 latino-americana. No entanto, mesmo com “o crescente interesse dos centros culturais hegemônicos e dos mercados mundializados por obras e propostas antes completamente à margem da história da arteocidental.” (COUTO, 2017, p.131), devemos nos atentar às diferentes razões pelas quais o interesse ocorre e esses eventos reaparecem8, questionando a exclusão e os estereótipos de consumo do exotismo, para rever então as narrativas e o cânone do moderno, instituídos e reforçadospela hegemonia. Nesse sentido, a busca por definir o que é, e como se configura a arte latino-americana, podemos observar esforços tanto no contexto “local”, como também advindo do “centro hegemônico”, com viés comumente estereotipado. O pensamento de Aracy Amaral (1975)9 discute sobre essa “questão identitária” de classificação da arte latino-americana, e nos diz que: Não existe arte latino-americana como uma expressão artística unitária, que represente como um todo os diversos países que constituem esta área geográfica. Por outro lado, existe, sem qualquer dúvida, latente, um desejo de integração cultural não-resolvido, mas inequívoco, nos artistas, ou em significativa parte dos que fazem arte neste continente. (AMARAL, 1975). A problemática das definições e configurações que nos são impostas pelo centro é latente em todo cenário artístico, cultural e inclusive no imaginário cotidiano popular, como reiterado por Aracy Amaral (2006): Mas, que sabem os europeus ou norte-americanos da realidade latino-americana? De fato, quase nada, ou nada. Configuram-nos como um todo harmônico em meio às ditaduras por eles próprios apoiadas,corrupção, ou no exotismo, dentro de um universo tropical que, na realidade, somente existe parcialmente na América Latina, da qual ignoram a cultura urbana que convive contraditoriamente com diversos graus de miséria e com a realidade rural no universo violento em que fomos criados. (AMARAL, 2006, p. 44) Dada a diversidade das expressões artísticas latino-americanas, entendemos que esses debates sobre territorialidade — enquanto espaço de práticas culturais —, emergem com a modernidade (desde os processos de independência política), e a partir da memória coletiva criam-se os mecanismos identitários de representação, visando compreender a si, estabelecendo os limites que o separam do outro, vista a 9 Conferência no Simpósio de Artes Plásticas e Literatura, realizado na Universidade do Texas, em Austin, Estados Unidos, no ano de 1975. 8 Seria necessário um espaço específico para apresentar e refletir sobre as principais mostras, eventos e Bienais, por exemplo, abordando suas principais características, contradições, idas e vindas e congruências de forma aprofundada. Como a I Bienal de Arte Latino-americana (São Paulo, 1978) ou Mulheres Radicais: arte latino-americana 1960-1985, de Andrea Giunta e Cecilia Fajardo-Hill (Pinacoteca, São Paulo, 2018). 24 ambiguidade dos sentimentos com relação a esse outro, o colonizador. (BULHÕES; KERN, 2002, p. 9-11). A construção da modernidade latino-americana, pode ser refletida enquanto um conjunto de identidade(s) pluriversal(s) de resistência além das configurações cartográficas e geográficas, de importantes diálogos com a subjetividade das memórias e fazeres coletivos. Até onde se pode falar de “resistências da arte” se as interpretações e análises, são majoritariamente produzidas por centros de estudos norte-americanos ou europeus? Uma possível resposta para essa pergunta, está nas dinâmicas da matriz colonial de poder que incide sobre a arte, e como reiterado por Frederico Morais (1997): Desde os tempos da colonização europeia, a principal marca da nossa marginalização é a ausência da América Latina na história da arte universal. Segundo uma perspectiva metropolitana, nós, latino-americanos, estaríamos fatalizados a ser eternamente uma «cultura de repetição», reproductora de modelos, não nos cabendo fundar ou inaugurar estéticas ou movimentos que poderiam ser incorporados à arte universal. (MORAIS, 1997, p.). Morais defende também, a necessidade de questionar os critérios hegemônicos de historização artística, e uma recorrente persistência de estereótipos interpretativos nas exposições internacionais sobre a arte latino-americana, onde cabe citar as contradições dialéticas e disputas presentes no campo da arte, levando em consideração suas características, ao que diz respeito à grande fetichização e mercantilização das obras de arte e a conversão de mercadorias em obras de arte, evidenciando uma alienação cultural.10 Logo, pensar a arte decolonial, é pensar em processos de libertação e transgressão, para superar os déficits e ambiguidades da relação entre colonizado e colonizador, em um ato antropofágico como processo capaz de “deglutir o outro para a transformação e eliminação das diferenças entre o colonizador e o colonizado.” (BULHÕES; KERN, 2002, p. 11), com atenção para o papel social da arte e seus desdobramentos para a construção da autonomia latino-americana. Como exemplo de transgressão, crítica e proposta de ruptura com os estereótipos citados, utilizo aquí a obra “El Norte es el sur” de Joaquín 10 Que segundo Karl Marx em O Capital, há grande fetichização da mercadoria, com dois aspectos principais: o “valor-de-uso” e o “valor-de-troca”, isto é, quando a mercadoria entra no mundo da circulação, todo e qualquer produto derivado da força do trabalho humano adquire o seu valor de troca. Este tópico foi discutido anteriormente por Adam Smith, em "A Riqueza das Nações", volume I, Nova Cultural, 1988, Coleção "Os Economistas", pág. 17-54). 25 Torres-García, que a partir da inversão do mapa da América Latina, propôs uma visão de mundo onde o Sul não seja mais dependente ou inferiorizado, com o questionamento da cartografia clássica na posição do Sul — quase sempre referido enquanto territórios subdesenvolvidos —, em relação ao Norte, ilustra uma necessidade latino-americana de buscar caminhos próprios de resistência aos poderes hegemônicos. Figura 1 - El Norte es el sur América Invertida, Joaquín Torres García,1943. Fonte: História das Américas (2022). “El Norte es el sur”, e outras obras de Torres-García, além de criticar a condição colonial, se colocam como estratégias para configurar uma arte latino-americana estruturada na geometria e valorização das artes indígenas, e sobretudo, busca romper com a dependência cultural e com a ideia de “outro” no imaginário europeu e norte-americano. Portanto, a modernidade na América Latina, carrega essa busca por uma construção identitária (visual-cultural) é uma das características de pluralidade cultural na arte latino-americana, e onde podemos observar as configurações e reconfigurações para recuperar raízes e tradições territoriais, como alternativa ao etnocentrismo europeu. Mas de fato rompemos com uma cultura de repetição? São 26 inúmeros os esforços, em articulação no campo das artes e das lutas sociais, e fica claro que essa discussão está longe de acabar e percorre até a contemporaneidade. Na tessitura da arte decolonial, a discussão entre centro-periferia está no cerne do contexto de questionamento das visões eurocêntricas do mundo e como “arte engajada" politicamente com a ruptura de valores simbólicos e resistência às relações de poder. E como dito por Torres-garcía: He dicho Escuela del Sur; porque en realidad nuestro norte es el Sur. No debe de haber norte, para nosotros, sino por oposicion a nuestro Sur. Por eso ahora ponemos el mapa al reves, y entonces ya tenemos justa idea de nuestra posicion, y no como quieren en el resto del mundo. La punta de America, desde ahora, prolongandose, senala insistentemente el Sur, nuestro norte. Igualmente nuestra brujula: se inclina irremisiblemente siempre hacia el Sur, hacia nuestro polo. Los buques, cuando se van de aqui, bajan, no suben, como antes, para irse hacia el norte. Porque el norte ahora esta abajo. Y levante, poniendonos frente a nuestro Sur, esta a nuestra izquierda Esta rectificacion era necesaria; por esto ahora sabemos donde estamos. (TORRES GARCIA, 1935). De modo geral, ao analisar e debater a arte decolonial, é importante adotar uma posição crítica que considere as especificidades tanto de sua forma quanto de sua função. Com atenção ao direcionamento escolhido para a análise, como exemplos simples: a análise de uma obra específica; análise da relação entre vida-obra; e ao analisar eventos, mostras ou exposições, verificar qual sua função, seusobjetivos e as estratégias de comunicação com o público e o território. Neste panorama, por exemplo, falar da produção artística e manifestações estéticas das culturas indígenas é desafiador, devido à sua pluralidade e ao analisar uma etnia específica. Entretanto, podemos evidenciar seu caráter de apreensão coletiva de saberes, de transformação, em que a representação envolve os aspectos da emoção e conhecimento, indicando uma integração ativa e participante na experiência formativa, por se relacionar com profunda sensibilidade à vida social e interceptar a subjetividade e significação social e cultural.11 Para concluir, reconhecer-se enquanto latino-americano pode ser entendido como uma ferramenta para a afirmação de identidade cultural e gesto simbólico para evidenciar a relação intrínseca entre as divisões geopolíticas e os interesses econômicos em torno do aspecto de pluralidade cultural da América Latina. 11 As especificidades e complexidade dessa discussão, será aprofundada no projeto de pesquisa que está sendo desenvolvido para o processo seletivo de ingresso ao mestrado em Artes Visuais, a qual, pesquisa está sendo produzida desde 2022. Onde o estudo aborda a corpoterritorialidade e cosmopercepções culturais do povo Katukina (território Rio Biá, Amazonas) especialmente a espiritualidade, ao que tange o conceito de Sagrado Feminino na vivência dessa etnia, a partir das relações com a performance enquanto análise e prática poética. 27 Segundo Dária Jaremtchuk, surge como uma forma de “reconhecimento de uma realidade opressora e injusta”. (JAREMTCHUK ,2007, p. 134). 4 ARTE MODERNA: AS VANGUARDAS NA AMÉRICA LATINA Neste capítulo, as costuras epistemológicas centram-se em abordar paralelos entre as pesquisas no campo da performance e história oral, sendo o ponto chave, a comparação com a pesquisa acerca da vanguarda dadaísta elaborada para a disciplina. Além de um panorama geral das vanguardas, com foco nos principais pontos de semelhanças e diferenças, em específico os aspectos de desenvolvimento na América Latina, ainda que brevemente. Ao longo das aulas, os seminários, pesquisas e apontamentos trazidos pelos colegas, contribuíram para a análise, de que nem todos os vanguardistas se preocuparam apenas com o aspecto formal da arte com a oposição aos valores e modelos do passado (em especial ao conceito grego de beleza) e aos cânones artísticos estabelecidos pela burguesia do século XIX e início do XX, as vanguardas artísticas possuíam diferenças entre si ao que tange às preocupações e posicionamentos sobre as questões sociopolíticas e a função social da arte. A questão da “arte engajada” estava se tornando ponto forte nos movimentos, em decorrência dos processos da indústria cultural e as tecnologias da imprensa, que impulsionam o início do modernismo e vemos na arte moderna, a introdução da arte como parte de uma ação contemplativa na sociedade burguesa. A exemplo do expressionismo alemão, e o surrealismo francês, que apesar de seus diferentes aspectos, tinham em comum a preocupação social. Dos posicionamentos contra os horrores da Primeira Guerra na produção dos expressionistas, fizeram os dadaístas ainda que através de outros processos, também motivados por intencionalidades filosóficas niilistas; ou os surrealistas que defendiam a transformação do homem por meio da libertação das formas do inconsciente. Para compreender algumas especificidades e repercussões dos movimentos modernistas no cenário latino-americano, Belluzzo (1990) enfatiza a necessidade de analisar a modernidade como uma categoria cultural, com atenção à reflexão estética na prática dos movimentos das vanguardas artísticas internacionais: A modernidade nascente de Baudelaire e a modernidade crítica das vanguardas artísticas internacionais do século XX comportam distinções certamente úteis à melhor compreensão do teor próprio 28 das vanguardas dos países da América Latina. (BELLUZZO, 1990, p.14). E mesmo que sujeitos ao mesmo processo histórico, possuem estruturas diferentes de desenvolvimento nos países centrais e periféricos, onde tradições se entrecruzam nos centros urbanos e a diversidade cultural é evidente com o encontro dessas culturas, com a coexistência dos processos de renovação artística aos sistemas de patronato de Estado. Diz ainda que “as vanguardas artísticas dos anos 20 e 30, na América Latina, exercitadas em possibilidades abertas pelas vanguardas europeias, condensam aspirações ditas românticas e novos processos de atualização de linguagem.” (BELLUZZO, 1990, p.16), com isso destaca a necessidade de análise e reflexão da coexistência de diversas etapas artísticas, que ajustam-se aos modelos autoritários europeus, “considerando-se a dependência como processo histórico da América Latina” (BELLUZZO, 1990, p.17), e a partir do seu desenvolvimento, se estabelece uma nova consciência e busca por estabelecer a identidade cultural latino-americana, com desafios novos métodos de trabalho artístico, subordinação ao ponto de vista subjetivo e de ação política impulsionada pela ideia de transformação social e revolução. Como por exemplo, os painéis de Portinari, o muralismo mexicano12, em especial de Diego Rivera, o Universalismo Construtivo de Torres García, em que são consideradas um conjunto raro na produção dos países latino-americanos na discussão e produção da arte não-figurativa. (BELLUZZO, 1990, p.23). Segundo Belluzzo (1990), podemos citar que “a produção artística dos anos 20 e 30, no Brasil, não escondem, entretanto, a pouca intimidade com as poéticas abstratas, a incompreensão das possibilidades não-figurativas e construtivas”, como a influência no movimento modernista, sobretudo após a Semana de Arte Moderna. Já na literatura, a influência foi mais expressiva em algumas manifestações dos escritores Mário de Andrade e Manuel Bandeira; o surgimento do "Teatro de experiência" de Flávio de Carvalho13 e as pinturas de Ismael Nery. 13 CARVALHO, Flávio de. Manifesto do III Salão de Maio. Revista Anual do Salão de Maio, dc 1939, publicado em: DAHER, Luis Carlos. Flávio de Carvalho e a volúpia da forma. São Paulo: KMWM, 1984, p. 89-90. LOURENÇO, Maria Cecília França. A maioridade do moderno em São Paulo, anos 30 e 40. Tese de Doutorado FAU-USP, São Paulo, Inédita. 12 “Dispondo dos novos meios de percepção e expressão, e estimulado pela revolução política, o muralismo mexicano participou de um projeto de emancipação social.” (BELLUZZO, 1990, p.24). 29 É importante ressaltar que essas “sutis” influências Dadás, abriram caminho nos anos 50 para as experiências concretistas — que combatem o naturalismo, expressionismo e surrealismo e o abstracionismo hedonista, de acordo com Waldemar Cordeiro — e neoconcretistas, com o estudo da linha, da cor plana, e as experiências que seriam classificadas posteriormente como performance, a partir dos espaços penetráveis de Hélio Oiticica e os seus parangolés, bem como as experiências-limites do corpo de Lygia Clark. E ressalva para a importância da consolidação do moderno circuito artístico com a formação dos Museus de Arte Moderna e da I Bienal Internacional de São Paulo, em 1951. Nos apontamentos a respeito da arte concreta brasileira, Belluzzo (1990) reflete que as experiências desenvolvidas nas décadas de 20 a 50, subsidiaram a superação do modernismo, enfatizando a importância do neoconcretismo para as pós-vanguardas: A crítica do objeto, a supremacia do tempo vivido, o corpo como totalidade simbólica fornecem as linhas gerais da nova vanguarda brasileira, amadurecida no debate estético no interior do país. A radical autocrítica artística e a supressão dos contornos de um campo próprio da arte, que passa a se misturar no fluxo da vida, desconstroi as conquistas das vanguardas históricas, indicando seus limites e a superação do modernismo. (BELLUZZO, 1990, p.28-29). Após a breve reflexão sobre as vanguardas no contexto da América Latina, serão estabelecidos os paralelos entre a pesquisada performance e história oral com o dadaísmo, com apontamentos voltados especificamente na construção do diálogo de apresentação do seminário, o qual foi direcionado majoritariamente para a apresentação de sua concepção e desenvolvimento na Europa, e aqui tratando com mais detalhes de sua repercussão no Brasil. O movimento foi fundado em 1916, pelo escritor alemão Hugo Ball e pela poetisa e performer Emmy Hennings, com a inauguração do Cabaré Voltaire, em Zurique, Suíça. Com o objetivo de repensar a práxis artística, — através da Antiarte — marcado pela recusa às heranças culturais e ao racionalismo dos valores da cultura burguesa. Propunha uma ruptura entre o gosto, a experiência estética (ao se apropriar dos resíduos do mundo moderno como material para as suas criações) e crítica à passividade do público, que pode interpretar e experimentar esteticamente de forma livre, indo por um caminho oposto à finalidade utilitária que é atribuída para a obra de arte e para a experiência estética. (ARGAN, p.358). Sobre essa visão que se 30 tinha, tanto do espectador quanto da crítica de arte, Mariátegui (1924) nos diz o seguinte: As pessoas comuns não consideram que a arte dadaísta seja uma arte defeituosa ou uma arte equivocada. Creem, radicalmente, que ela não é arte. Ela nega todo o direito de ser qualificada e classificada como arte. O gosto público está adaptado a uma concepção mais ou menos clássica de arte: e a arte de vanguarda brota de uma concepção absolutamente diversa. (MARIÁTEGUI, 1924, p.1). A narrativa Dadá estrutura-se diante das tensões entre a herança cultural do passado e a consolidação das instituições sociais no presente, visando desconstruir a noção de modernidade apresentada pela arte e colocar em xeque o “valor da novidade”, baseado na destruição como criação, criticando os seguintes tópicos: Qual seria a função da arte? Entreter, divertir, relaxar? Um recurso para ostentação de privilégio social? Em renúncia ao senso comum das interpretações explícitas e da cultura imagética, com reflexões dirigidas à alienação do corpo e do sujeito, visando romper com a estética de “obras de museu”. Em seu desenvolvimento, a fala de Hugo Ball, um dos artistas idealizadores do movimento, enfatiza as intenções de ruptura com a produção estética com relação às questões políticas e sociais da época: Ball escrevia sobre um tipo de arte que estava cada vez mais impaciente por pôr em prática: "Numa época como a nossa, em que as pessoas são agredidas diariamente pelas coisas mais monstruosas, sem que possam registar as suas impressões, impõe-se o caminho da produção estética. Toda a arte viva, contudo, será irracional, primitiva, complexa: falará uma língua secreta e deixará documentos não edificantes, mas paradoxais.” (GOLDBERG, 2006, pág. 70). Apesar das experiências dadás se aproximarem do nonsense e seus próprios idealizadores afirmarem o caos, todos estavam muito engajados nos processos políticos e sociais da época, inclusive, muitos deles se filiaram a partidos comunistas na Alemanha e na França, como por exemplo, André Breton, que de 1927 a 1935 foi membro do Partido Comunista Francês14, e assina com Diego Rivera em 1938 o manifesto “Por Uma Arte Revolucionária Independente”15. 15 Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/breton/1938/07/25.htm. 14 Rompeu com o PCF pela discordância à orientação Estalinista e sob o impacto dos "Processos de Moscou". Permaneceu, porém, marxista e se aproximou das posições de Leon Trotsky, com quem teve numerosos encontros e trocou importante correspondência. Em 1938, o mestre do surrealismo, fundou com Leon Trotsky, então no México, a Federação da Arte Revolucionária Independente. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/breton/index.htm. https://www.marxists.org/portugues/breton/1938/07/25.htm https://www.marxists.org/portugues/breton/index.htm 31 Portanto, é indispensável falar sobre os ready-mades. Que atuam como um gesto que poderia transformar tanto os objetos quanto a imagem do próprio artista. E a isto, uma ressalva aos happenings, considerado um dos precursores diretos da performance16 Os princípios de subversão mobilizados pelos ready-made podem ser também observados nas máquinas antifuncionais de Picabia e nas imagens fotográficas de Man Ray. O DaDandy, por exemplo, teve forte relação com a performance, o travestimento e a discussão de gênero, através da subversão da linguagem da moda.17 Tzara e os dadaístas pensam no presente e pensam a arte no presente mesmo da história, fazem uma obra pensante que está em constante diálogo (atividade pensante), dão um lugar no presente e na história da arte. O Dadá de Nova York, por exemplo, foi impulsionado pelo grupo Stieglitz, formado pelos fotógrafos Man Ray, Alfred Stieglitz, pelo pintor espanhol Francis Picabia e pelo francês Marcel Duchamp18. Além de ser considerado o movimento artístico mais radical, dentre as vanguardas modernas, de acordo com Argan (1992): Com suas intervenções inesperadas e aparentemente gratuitas, o Dadaísmo propõe uma ação perturbadora com o fito de colocar o sistema em crise, voltando contra a sociedade seus próprios procedimentos ou utilizando de maneira absurda as coisas a que ela atribuía valor. (ARGAN, 1992, p. 356). 4.1 Paralelos entre Performance e História Oral Sabemos que a performance utiliza o corpo como um instrumento de comunicação, o corpo como obra, é uma uma linguagem híbrida que transita entre as artes plásticas e as artes cênicas, refletindo sobre o papel do corpo na arte, bem como os desafios da arte na modernidade. As possibilidades de experimentação são muitas, como citamos anteriormente com os ready-mades ou com os happenings. Contudo, a performance só é reconhecida como expressão artística independente na década de 70, momento de apogeu da arte conceitual — uma arte 18 No segundo capítulo do livro “Dadá: Arte e Antiarte”, de Hans Richter, é abordado detalhadamente como ocorreu a produção dadaísta em Nova York, especificando as relações entre os artistas do movimento. 17 O DaDandy propunha o travestimento identitário a fim de exprimir uma experiência corporal semelhante àquela produzida pela práxis do ready-made com os objetos, centralizados em ações de anti-moda e contra-gênero. 16 Na pintura, o surgimento do conceito de “action painting” (“pintura instantânea”) do artista americano Jack Pollock e as “assemblages” e os “environments” de Allan Kaprow. 32 em que as ideias, conceitos, se sobrepunham aos produtos, uma arte não comprável ou vendável —. A partir da pesquisa e análise da performance no movimento dadaísta, foi possível adquirir novas percepções sobre as ideias-ações que a performance pode representar e produzir, onde cria-se um paralelo com a história oral, ao que tange o resgate de tradições e saberes ancestrais, e reflexão na construção de ações de pertencimento e coletividade. Portanto, a performance é abordada com direcionamento central ao resgate de tradições orais e saberes ancestrais e o corpo-território como possibilidade de interpretação e investigação contra-colonial e meio para disputa sociopolítica e cultural, as relações de dominação e exclusão social, de emancipações intelectuais que formam esses corpo-territórios de memória. O conceito de território de memória se apresenta como fator intrinsecamente relevante e essencial para o estudo da performance, e dos referidos “corpo-territórios”. A pesquisa de Maurice Halbwachs, contribuiu significativamente para correlacionar a prática artística da performance com a história oral, pois considera a memória um fenômeno coletivo, individual e social, mutável e sujeito às mais diversas transformações, de forma constante, trazendo reflexões acerca da territorialidade (HALBWACHS, 1990, p. 96). As aproximações apresentadas entre esses campos desaguam em análises voltadas à Antropologia, visto a complexidade e potencial do discurso que os integram, neste momento, vamos nos ater somente na “primeira camadadessa discussão”, da performance enquanto interpretação e investigação contra-colonial, utilizando da história oral como metodologia. Com os conceitos abordados no segundo capítulo, a contribuição da pesquisa da performance dadaísta e as reflexões sobre as vanguardas apresentadas em sala durante os seminários, foi possível criar essas costuras. Incorporando a performance como possibilidade de ação decolonial, de transgressão e resistência. Para definir o que é performance, Richard Schechner (2003),aponta que o “ser” performance é um conceito que indica eventos previamente delimitados por contexto, convenção, uso e tradição. Contudo, nessa perspectiva, todo tipo de evento, ação ou comportamento pode ser analisado como “um tipo de performance”, estando presente no nosso cotidiano, mostrar-se fazendo é performar. Diz ainda, que a performance traz meios de contar histórias, ritualísticas ou artísticas, em que 33 aprendizados cotidianos e fazeres artísticos requerem, atenção, prática, ensaios e estudos específicos para suas realizações, e são essas redundâncias do cotidiano que se tornam familiares para nós. Logo, um exemplo para a relação proposta entre a prática artística da performance com a história oral, é a vivência nas ritualísticas de um Xirê de Candomblé19, em que o resgate das tradições e saberes ancestrais são construídos, aprendidos através da prática cotidiana, também da reflexão sobre o papel sociocultural dessa religião de Matriz Africana. Portanto, nesse contexto, a performance possui uma dimensão política, com o corpo sendo o centro desta circunstância. Entretanto, as dimensões políticas também podem se fazer presentes em outros momentos, em manifestações Sobre a multiplicidade de possibilidades que a performance pode ter, Lucio Agra nos diz que: A performance nas artes do corpo é uma área de liberdade, creio eu. Os corpos que ali trafegam podem desfrutar de uma multiplicidade que estamos longe de ver encerrada. Isto também cria situações paradoxais sobretudo quando se passa ao cotidiano das atividades enquanto profissão, quando as exigências sociais ainda pensam nos termos do início do século XX mas as práticas se realizam na aurora do século XXI. (AGRA, 2011, p. 218). Por esse motivo, encontrei a relação com a história oral, enquanto metodologia para construir um projeto de performance ou para embasar as análises de performances em diferentes contextos, além de direcionar tanto a análise, quanto a prática por um caminho crítico e decolonial. Com a possibilidade de participação do público e da integração entre vida e arte, pensando a corpo-territorialidade para resgate e análise das manifestações culturais populares. Ao entrecruzar a performance com a história oral, dentro da “grande área” das artes plásticas, foi fundamental partir das reflexões abordadas com a disciplina de História da Arte Moderna, para aplicar essas relações complexas em uma direção decolonial, além de entender os pontos que necessitam de maior aprofundamento, na continuidade da pesquisa entre poéticas visuais e crítica de arte neste ensaio, como outros textos em andamento. E sempre com o intuito de explorar as multiplicidades e potencialidades da pesquisa no campo das artes. 19 Xirê é uma palavra iorubá que significa "roda" ou "dança". Na tradição do candomblé, a ritualística do Xirê Orixá é conduzida para celebrar o nascimento de um filho de santo (ou adepto) ou para homenagear um orixá específico. 34 5 CONSIDERAÇÕES Os temas tratados no ensaio, são individualmente extensos, dar conta dessas reflexões de forma sintética é desafiador e demanda estudo aprofundado. O percurso aqui proposto teve como foco apresentar conceitos e os inter-relacionar com as ideias centrais da pesquisa, a reflexão acerca da arte decolonial, com análise voltada a história oral e a performance, temas recorrentes em pesquisas teóricas durante a graduação em Artes Visuais, no técnico de Biblioteconomia e nas práticas artísticas. Vale a ressalva, de que foi necessário estabelecer uma intencionalidade na linha discursiva seguida, direcioná-la adequadamente ao interlocutor e adaptar a linguagem de acordo com a necessidade, para que o conhecimento vá além do campo acadêmico, apesar de apresentar muitos termos teóricos — ainda que fundamentais para explicar a linha de raciocínio —, com uma tônica historiográfica. A visita à exposição “Arte Subdesenvolvida”, em exibição no Centro Cultural Banco do Brasil, em São Paulo, também foi de extrema importância para pensar nos limites da arte moderna e na construção da arte contemporânea, principalmente a contribuição no direcionamento à arte decolonial latino-americana, foco deste ensaio. O percurso da exposição segue o olhar e leitura do curador Moacir dos Anjos, em que enfatiza o viés econômico dos anos 1930, especificamente o contexto pós Segunda Guerra Mundial (1939-1945), criticando o conceito de subdesenvolvimento em quatro eixos/blocos divididos por décadas20. A disciplina contribuiu significativamente para repensar as metodologias de pesquisa e formas de relacionar os campos de estudo, não somente utilizando percepções historiográficas, mas também em como aplicar essas análises estéticas, seja de obras nas artes plásticas, ou literárias, a partir de novas formas de interpretação e investigação. Outro ponto de grande contribuição, foi dar continuidade às pesquisas sobre performance, retomando conceitos iniciados durante a graduação, agora com outra visão para a construção deste ensaio, servindo como uma base para o desenvolvimento das pesquisas sobre história oral e tradições ancestrais. 20 Mostra em cartaz de 29 de maio a 05 de agosto de 2024. Com curadoria de Moacir dos Anjos. Disponível em: https://ccbb.com.br/sao-paulo/programacao/arte-subdesenvolvida/. https://ccbb.com.br/sao-paulo/programacao/arte-subdesenvolvida/ 35 REFERÊNCIAS AGRA, Lúcio. O corpo “da” performance e as Artes do Corpo. Sala Preta, São Paulo, Brasil, v. 10, p. 215–219, 2010. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/salapreta/article/view/57450. Acesso em: 05 jul. 2024. ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna: Do Iluminismo aos movimentos contemporâneos. 2 ed. Tradução Denise Bottmann e Federico Carotti. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. BARBOSA, Ana Mae. Ensino da arte: memória e história. 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