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Formas de violência contra as crianças e os adolescentes Violência física A violência física, no inciso I do artigo 4º, é descrita como: “A ação infligida à criança ou ao adolescente que ofenda sua integridade ou saúde corporal ou que lhe cause sofrimento físico”. Ela é classificada por Madalena e Falcke (2020) como uma forma de maus-tratos de caráter ativo devido à postura adotada pelo agressor ao realizá-la. Ao pensar nessa forma de violência, entende-se que ela é a mais facilmente evidenciada por deixar marcas físicas no corpo. Apesar disso, percebe-se que, no Brasil, há uma naturalização dos maus-tratos, que são reproduzidos pela cultura e transmitidos em família. Isso ocorre porque a violência é um fenômeno transgeracional, ou seja, ela se torna um padrão de comportamento transmitido entre as gerações, o que facilita a sua reprodução e a manutenção desse ciclo. Em pesquisa realizada por Guimarães e Villela (2011), os autores analisam dados coletados em entrevistas com crianças e adolescentes vítimas de violência e encaminhados ao IML de Maceió para exame de corpo de delito no período de agosto de 2008 a fevereiro de 2009. A partir da análise desse material, os autores destacam alguns índices importantes apontados pela amostra: Em casos de violência física contra crianças A violência ocorreu dentro do ambiente familiar, sendo os agressores pessoas da família ou que têm amplo acesso ao ambiente doméstico. Em casos de violência física contra adolescentes A violência ocorreu em vias e espaços públicos. Observou- se um índice maior de agressores externos do que no ambiente familiar. Ressaltamos a prática de violência intrafamiliar como a propagação de atos de violência entre os membros da família. Trata-se, portanto, de prática extremamente prejudicial às vítimas, considerando que a família é compreendida como um dos sistemas sociais mais fundamentais para a promoção do senso de segurança e pertencimento de seus membros. Assim, a falta do sentimento de segurança, seja ela física ou emocional, dentro do grupo familiar pode ser extremamente desestruturante para o indivíduo, principalmente para as crianças e adolescentes em desenvolvimento. Outro estudo realizado por Martins e Jorge (2009), com o objetivo de construir o perfil epidemiológico da violência contra menores, foi realizado a partir do estudo de casos com sujeitos com idade inferior a 15 anos residentes em Londrina, Paraná, a partir das notificações efetuadas em 2002 e 2006 nos conselhos tutelares. A violência física foi a mais predominante nos casos explorados, com 52,9% de notificações em 2002 e 48,2% em 2006. Além disso, os dados apontam para a sua ocorrência por um período de 1 a 2 anos antes da notificação, sendo o lugar de agressão predominantemente na casa das vítimas. Isso corrobora os dados apontados pelo estudo anteriormente discutido. Sobre esse contexto, as pesquisadoras apontam que: Grande parte dos casos apresentou lesão corporal, afetando mais múltiplas regiões, e houve registros de efeito de privação, nos quais as vítimas apresentaram desnutrição severa. Quase que a totalidade das vítimas apresentou sequelas, sendo a sequela física a mais comum. Violência psicológica São três as espécies de violência psicológica: o bullying, a alienação parental e a exposição de crianças e adolescentes a crimes violentos contra membros de sua família. Vamos ver agora mais detalhadamente cada uma delas. Bullying A primeira espécie de violência psicológica é o bullying (previsto no art. 4º, inciso II, alínea “a”). Compreende-se que ele é uma forma de abuso emocional, podendo se dar por meio da agressão verbal, isto é, dos ataques à autoestima e da promoção da humilhação por meio da comunicação, ou pela manipulação emocional, em que o agressor acomete a criança a realizar ações ou a expõe a situações contra sua vontade com o objetivo de promover sentimentos negativos, como vergonha e medo (MADALENA; FALCKE, 2020). Em estudo realizado por Malta (2019), a autora faz um panorama em relação aos dados coletados pela Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE) nos anos de 2009 e 2012. Os dados coletados apontam que o índice de bullying aumentou 25% nesse período em alunos do 9º ano do ensino fundamental de escolas brasileiras. A terceira aplicação da PeNSE em 2015 identificou a associação entre as vítimas de bullying e sentimentos, como, por exemplo, “solidão, ansiedade, insônia, tristeza, além de depressão, estresse pós-traumático e pensamentos suicidas” (MALTA, 2019, p. 1366). Desse modo, compreende-se o bullying como um fenômeno relacional violento que tem se tornado cada vez mais frequente no contexto escolar. Alienação parental A segunda espécie de violência psicológica prevista na Lei nº 13.431/2017 é a alienação parental (artigo 4º, inciso II, alínea “b”). O legislador repetiu aqui o conceito do ato de alienação parental ora previsto na Lei nº 12.318/2010, conhecida como Lei da Alienação Parental: "Considera-se ato de alienação parental a interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente, promovida ou induzida por um dos genitores, pelos avós ou por quem os tenha sob sua autoridade, guarda ou vigilância, que leve ao repúdio de genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculo com este”. Dessa forma, em uma família na qual existe uma dinâmica de alienação parental, observa-se a presença de comportamentos praticados por um familiar que detém poder de autoridade ou influência sobre a criança e tem como objetivo afastar ou comprometer a relação da criança com um membro da família, seja o outro genitor ou família extensa. Sua finalidade é, em suma, gerar dificuldades na criação ou na manutenção do vínculo de afeto entre a criança e outras figuras da família, em muitos casos promovendo uma fissura do vínculo parento-filial. O ato de alienação parental tem natureza jurídica de coação moral contra a criança e o adolescente e de violência psicológica contra ambos nos termos respectivos do art. 3º da Lei nº 12.318/2010 e do art. 4º, inciso II, alínea “b”, da Lei nº 13.431/2017. Daí justifica-se a necessidade da intervenção do Estado-Juiz para coibir os atos de alienação de modo a proteger o desenvolvimento psicológico da criança em respeito ao direito constitucional de convívio familiar e comunitário. A Lei nº 12.318/2010 trouxe, no art. 6º, um rol exemplificativo de medidas protetivas que o Juízo deve aplicar aos pais que utilizam o filho como objeto de vingança a fim de dar limites às parentalidades abusivas. Exposição de crianças e adolescentes a crimes violentos contra membros de sua família A terceira e última forma de violência psicológica descrita na Lei nº 13.431/2017 é a exposição de crianças e adolescentes a crimes violentos contra membros de sua família. Trata-se de casos em que a criança ou o adolescente é vítima indireta de crimes praticados no âmbito familiar. Nesses casos, a lei orienta que a criança deve ser ouvida em sede de depoimento especial, projeto estratégico do Conselho Nacional de Justiça desde a Recomendação 33/2010, que se fundamenta na necessidade de uma escuta acolhedora e diferenciada daquela oferecida ao adulto. Em sala reservada, conectada à sala de audiências por vídeo e áudio, o técnico capacitado (dispensa-se a qualificação profissional: a exigência é apenas ele que seja capacitado) conversa com a criança ou o adolescente vítima nas hipóteses de crime ou violência reguladas pela Lei nº 12.341/2017. Além do mais, o procedimento viabiliza o contraditório em tempo real: as perguntas são encaminhadas pelo juiz por ponto eletrônico utilizado pelo técnico capacitado, sendo que esse juiz já está na sala de audiências com os demais operadores. Idealmente, isso ocorrerá somenteapós a entrevista do técnico com a criança. Violência sexual A violência sexual é descrita pela Lei nº 13.431/2017 como: “Qualquer conduta que constranja a criança ou o adolescente a praticar ou presenciar conjunção carnal ou qualquer outro ato libidinoso”. Ela é dividida em três subgrupos: abuso sexual, exploração sexual comercial e tráfico de pessoas. Segundo informações divulgadas pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (2020), dos 159 mil registros feitos pelo Disque Direitos Humanos ao longo de 2019, 86,8 mil foram de violações de direitos de crianças ou adolescentes, um aumento de quase 14% em relação a 2018. Dessas denúncias, 11% referiam-se à violência sexual contra crianças, correspondendo a cerca de 17 mil ocorrências. Nos casos de violência intrafamiliar, entende-se que houve a instalação de um funcionamento confuso e perverso da família, em que não há delimitações claras das funções familiares e limites em relação ao incesto. Além do sofrimento pelo ato libidinoso em si, existe também um sofrimento das vítimas relacionado à sensação de abandono. A negligência dos responsáveis legais estaria relacionada, portanto, a uma falha das funções parentais em suprir as necessidades das crianças, sejam elas emocionais ou físicas. Trata-se de uma forma de violência pautada na falta de apoio e reconhecimento dos cuidadores. As duas faltas, por sua vez, estão relacionadas a uma omissão que reforça o sentimento de desamparo, apontam Madalena e Falcke (2020). Violência institucional Descrita no item IV da Lei nº 13.431/2017, a violência institucional é entendida como: “Aquela praticada por instituição pública ou conveniada, inclusive quando gerar revitimização”. Qualquer agente da rede pública ou privada de atendimento a crianças e adolescentes pode ser o autor do ato de violência. Além disso, suas hipóteses sempre serão casuísticas. Por exemplo, quando uma criança comparece ao IML a fim de fazer o exame físico e aguarda horas para ser examinada, estando em um lugar onde são feitas necropsias ou exames de pessoas que sofrem acidentes, ela muitas vezes é examinada por médicos que nunca fizeram um exame físico em criança, já que, para ser médico legista do Estado, não há exigência da especialidade em Pediatria. O tempo de um processo judicial também pode ser uma violência institucional contra a criança, porque ela passa a vida dentro do tribunal e perde um tempo precioso da vida: a infância. Outro debate em relação à violência institucional diz respeito à realização de testemunho de crime por criança e adolescente por meio da técnica de depoimento especial. Entende-se que o ato de testemunhar, mesmo no contexto de depoimento especial, pode levar à violência institucional contra a criança se: • A criança é vítima de alienação parental ou outra forma de coação moral e está testemunhando uma falsa ocorrência ou falso crime. Isso se dá porque a reprodução de falsa memória ou falso testemunho, nos casos em que a mentira é consciente pela criança ou pelo adolescente, é algo que produz grande sofrimento. A criança ou o jovem acredita que, caso ele ou ela não realize o depoimento, poderá perder o amor e a aprovação do genitor alienador. Com isso, os dois principais objetivos do depoimento especial, que são trazer a prova do fato e proteger a criança, são frustrados. • A técnica adotada e a falta de capacitação do operador também podem gerar sugestionabilidade, pois ela pode ser praticada pelo terceiro que faz parte do sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente, e não apenas pelo adulto cuidador. No caso da alienação parental, a sugestionabilidade é praticada por um terceiro que detém a criança sob sua autoridade e faz parte da família, gerando o fruto de prova não fidedigna. No caso de a sugestionabilidade ser praticada pelo terceiro que faz parte do sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente, o fruto será violência institucional. Compatibilizar o direito de a criança testemunhar uma vivência traumática no Tribunal e, ao mesmo tempo, fazer a prova do fato é a ratio do artigo 4º, II, “c”, da Lei do Depoimento Especial. Deve-se estar atento para que o Judiciário não pratique violência institucional no momento do depoimento da criança, de modo a não revitimizá-la. É fundamental acreditar e qualificar todos os envolvidos no depoimento especial para que haja o implemento e a efetivação da proteção. Violência contra o idoso Os direitos da pessoa idosa são apontados pelo Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741, de outubro de 2003) e têm como objetivo: “Regular os direitos assegurados às pessoas com idade igual ou superior a 60 anos”. Segundo os artigos 2º e 3º, devem ser garantidos ao idoso seus direitos fundamentais, ressaltando sua condição de liberdade e dignidade perante a sociedade e a efetivação “do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária”. Já o Artigo 4º aborda o tema de violência conta o idoso, classificando-a como “qualquer tipo de negligência, discriminação, violência, crueldade ou opressão, e todo atentado aos seus direitos, por ação ou omissão”. De forma semelhante - e tendo em vista a definição de maus tratos contra o idoso pelo Ministério da Saúde -, Sanches, Lebrão e Duarte (2008) apontam algumas das principais formas de violência contra o idoso: abuso físico, abuso sexual, abuso emocional ou psicológico, exploração financeira ou material, abandono, negligência e autonegligência. Destacam-se no presente artigo os aspectos da violência emocional e psicológica praticados contra essa população. Tais violências são vivenciadas principalmente nas relações familiares. Entre elas, encontra-se presente o fenômeno previamente abordado na esfera de violência psicológica contra criança e adolescente, mas que também tem se evidenciado nas relações com idosos: a alienação parental. Caracterizada como alienação parental inversa por Calmon (2020), essa forma de alienação ocorre em situações em que um dos filhos aliena pai ou mãe idosa em detrimento do resto da família com o objetivo de “obter o controle exclusivo sobre o patrimônio do ascendente” (CALMON, 2020, p. 90). O termo “inversa” representa a vítima idosa em vez da criança. A autora ainda acrescenta que nem sempre os filhos são os agressores dessa forma de violência, mas que ela pode ser praticada por qualquer pessoa que exerça autoridade ou influência em face do idoso, ocorrendo de forma similar aos casos de alienação parental contra crianças e adolescentes. Calmon (2020) destaca ainda que as similaridades entre os fenômenos se dão devido ao caráter vulnerável presente nas duas populações (idosos e crianças). Contudo, nos casos de alienação parental inversa, a autora pontua que, além do objetivo de afastamento da pessoa idosa dos familiares, caracterizando a violência psicológica e emocional, também é costume encontrar uma violência de caráter de exploração financeira ou material: O idoso é, de certo modo, vítima em duplo aspecto, tanto nos atos de alienação quanto nos atos que se derivam desse ato inicial, como, por exemplo, na manipulação da sua vontade para a realização de negócios jurídicos gratuitos em benefício do alienante. Portanto, se em um primeiro momento haveria uma violência emocional/psicológica, em um segundo ocorreria uma violência patrimonial, derivada do ato inicial. Fala-se, então, que o idoso é vítima de alienação parental em primeiro e segundo graus. A alienação parental inversa em primeiro grau consistiria nos atos de alienação propriamente ditos. Já a alienação parental em segundo grau versaria sobre os atos decorrentes dessaalienação inicialmente praticada e apenas perpetrada como derivação do ato de primeiro grau. Essa alienação parental em “dois tempos” traz à luz características importantes relacionadas à vulnerabilidade do idoso, que não deve ser retratado como incapaz ou de forma infantilizada, e sim como parte da população que deve ter os seus direitos resguardados. O Estatuto do Idoso prevê um rol de medidas protetivas (previstas no art. 45), que deverão ser aplicadas pelo Estado-Juiz sempre que houver violação dos direitos da pessoa idosa. Violência contra a mulher No cenário brasileiro atual, entende-se a violência contra a mulher como um dos fatores sociais mais preocupantes, tendo em vista o número de casos apontados nos últimos anos. A OMS (2021) alerta para um alto índice de casos de violência: uma em cada três mulheres sofre violência, ou seja, 736 milhões de mulheres são submetidas à violência física ou sexual. Do total, cerca de 641 milhões são vítimas de violência por seus parceiros, sendo somente 6% dos casos em que ela é realizada por outros agressores. Companheiros, ex-companheiros ou parentes são os principais agressores das mulheres que sofreram violência física (52,4%), psicológica (32,0%) e sexual (53,3%), sendo o domicílio o principal local da agressão. Segundo dados apresentados pelo IBGE, 95% dessas mulheres também foram vítimas de violência psicológica paralelamente a outro tipo de violência. Tendo em vista a predominância da violência psicológica, a Lei nº 14.188, de julho de 2021, teve como objetivo regular o programa de cooperação Sinal Vermelho contra a Violência Doméstica como uma das medidas de enfrentamento da violência. Essa lei também visa a classificar o crime de violência psicológica contra a mulher, descrito no art. 147-B como: “Causar dano emocional à mulher que a prejudique e perturbe seu pleno desenvolvimento ou que vise a degradar ou a controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, chantagem, ridicularização, limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que cause prejuízo à sua saúde psicológica e autodeterminação”. A pena instituída pela lei é de seis meses a dois anos de reclusão. Ainda está prevista a multa caso a conduta não constitua crime mais grave. Reconhecida como um grande avanço e fruto de uma árdua luta das mulheres, a penalização da violência psicológica representa uma conquista e um avanço em relação à proteção dessa população. Isso foi possível a partir do reconhecimento de determinados comportamentos que passavam impunes pelo sistema de Justiça e pela sociedade. Como apontam De Souza e Cassab (2010): Muitas pessoas nem sequer conhecem as expressões da violência psicológica. Tal condição é resultado da ideologia romântica que possuem sobre família, ou seja, a família deve viver em harmonia, e os que não se enquadram a esse padrão são considerados “desestruturados”. Na efetivação da harmonia familiar, muitas vezes, há um processo de naturalização da ofensa verbal, ou seja, para muitos homens, “é normal” ofender verbalmente a mulher, tratando-a como propriedade, concebendo, por meio de uma perspectiva confessional, que foi para isso que ele foi criado, para ser o mantenedor da família e, consequentemente, o “dono” da mesma. Felizmente, essa concepção, posta na relação afetiva entre homem e mulher, está se alterando, apesar do lento ritmo em que isso procede, mas a perspectiva de mudança, por si mesma, já é um avanço considerável. Desse modo, a penalização possibilitou trazer à luz comportamentos já naturalizados pela sociedade a partir de um longo histórico de machismo e patriarcado enraizados nos valores sociais. Todavia, sabe-se que realizar a prova de violência psicológica pode ser um desafio, tendo em vista a falta de marcas e rastros observáveis nas vítimas. Sendo assim, o laudo de avaliação psicológica vem se tornando uma ferramenta fundamental para as mulheres vítimas dessa forma de violência. Esse laudo, afinal, serve como prova técnica da existência de abusos e marcas psíquicas e emocionais causadas pelos agressores. Escuta e avaliação psicológica no Judiciário Formas de escuta pelo Poder Judiciário A partir do que discutimos, já podemos determinar que a avaliação psicológica na Justiça é uma das formas de garantir a prova técnica contra diferentes formas de violência. O rito da perícia psicológica está previsto no art. 464 e nos artigos seguintes do Código de Processo Civil de 2015; no art. 159 do Código de Processo Penal; e no art. 151 do Estatuto da Criança e do Adolescente. O nome dado à equipe que auxilia o Juízo da Infância é “equipe interprofissional”. De acordo com o art. 1º da Resolução nº 09/2018, do Conselho Federal de Psicologia: “A avaliação psicológica é definida como um processo estruturado de investigação de fenômenos psicológicos, composto de métodos, técnicas e instrumentos, com o objetivo de prover informações à tomada de decisão, no âmbito individual, grupal ou institucional, com base em demandas, condições e finalidades específicas”. Nos casos de violência contra criança e adolescente, o Poder Judiciário dispõe atualmente de quatro modos de promover essa escuta: • Em sala de audiência presidida pelo juiz, com perguntas encaminhadas pelas partes e feitas por ele, estando presentes todos os operadores (prevalece em todo o país). • Em sala de audiências presidida pelo juiz com o auxílio de um especialista especificamente nas hipóteses de alienação parental ou abuso sexual (art. 699, CPC). • Em sala adequada, estando presentes a criança e o técnico facilitador habilitado em técnica de depoimento (regulada pela Lei nº 13.431/17, artigo 8) denominada depoimento especial. • Por intermédio do psicólogo, na sala do psicólogo do juízo, em avaliação psicológica, procedimento que abrange a escuta da criança e dos membros da família, sendo elaborado laudo ao final das entrevistas. Aqui vigora o princípio da autonomia técnica do psicólogo: ele escolhe o método de perícia e elabora laudo de acordo com as regras da profissão, sendo obrigado a constar no laudo quais instrumentos foram utilizados e a razão para tal (Resolução 06, de março de 2019, do Conselho Federal de Psicologia e outras). Nas ações de guarda, busca-se entender a criança como um sujeito-cidadão que está em meio ao conflito dos adultos, podendo tal ação se dar entre os pais ou entre outros membros da família biológica ou socioafetiva. O psicólogo precisa realizar uma escuta atenta e acolhedora na qual é dada à criança a oportunidade de testemunhar suas vivências e percepções. Isso é fundamental quando se trabalha com criança: que ela possa testemunhar os fatos ao seu modo. Testemunhar é permitir que ela relate aquilo que viu e sentiu sem ser julgada ou sem que o examinador espere dela uma posição acerca do litígio. A criança necessita de quem a escute com empatia e amor em um momento em que os pais estão em conflito e que a lógica adversarial do processo impõe uma ótica aos membros da família, limitando percepções e gerando, nos adultos e nas crianças, sentimentos de antagonismo e confusão mental. O conflito de lealdade também é um sintoma comum em crianças cujos pais estão em conflito, porque ela se une a um deles ou aos dois em momentos distintos para se proteger da ameaça do desamor. Tal ameaça pode ser explícita ou imaginária. Cabe ao psicólogo que atender a criança buscar identificar se existe a crença de que ela é abandonada ou não amada, sob pena de que as declarações feitas sejam equivocadamente tidas como prova dos fatos. Segundo Féres-Carneiro (1998), em casos de divórcio, também pode haver conflitos de lealdade intergeracionais, além de outras questões intergeracionais,como a cultura de padrões abusivos, sendo que, na escuta dos demais membros da família, o psicólogo que realiza a avaliação deverá colher o histórico e o modus operandi daquela dinâmica familiar que está sendo escutada. Destaca-se que, além das formas de escuta pelos tribunais, as crianças e os adolescentes dispõem da escuta feita pela rede de atendimento que faz parte do sistema de garantia de direitos, escutas realizadas por profissionais diversos, de modos diversos e com finalidades diversas em fases pré e/ou pós-processuais. Trata-se, afinal, de uma escuta voltada para a garantia de direitos humanos e para o desenvolvimento humano, não ficando concentrada apenas na produção de prova judicial. Formas de realizar a avaliação psicológica nos casos de disputa de guarda O método utilizado pelo psicólogo que realiza a avaliação é de livre escolha do profissional, tendo em vista o princípio da autonomia técnica que rege o Código de Ética Profissional (Resolução CFP nº 008/2010 do Conselho Federal de Psicologia). No entanto, ele está obrigado a informar no laudo quais procedimentos realizou para chegar à conclusão proposta nesse documento. Por isso, normalmente são realizados os seguintes procedimentos: Entrevista individuais com os pais Em momentos distintos e em conjunto se o grau de litigiosidade entre eles permitir que seja possível uma reunião na sala com o profissional. Entrevistas individuais com a criança e o adolescente Idealmente, elas são feitas com método aberto a fim de não induzir as declarações. Método aberto é aquele em que se aborda a questão com a criança de forma lúdica, sendo pedido a ela que conte como são sua vida e sua rotina. Comandos como “Me fale sobre você”, “Quero te conhecer” e “Me fale mais sobre isso” são exemplos de como fazer a abordagem nesse modo. Entrevistas das crianças na presença de ambos os pais Idealmente, elas ocorrem na presença dos pais, porém em momentos distintos. Exemplo: criança com pai, criança com mãe. A fim de evitar que ela compareça em mais de uma data ao tribunal, pode-se marcar a entrevista com ambos os pais na mesma data, solicitando que o adulto com quem a criança estiver no dia leve-a ao tribunal, e ela será primeiramente observada com esse adulto. Em seguida, solicita-se que ele saia da sala e que o outro adulto entre para que a observação tenha início. Nos casos de medidas protetivas de afastamento entre os cônjuges, por ocasião da ida ao tribunal, a eficácia fica suspensa durante a entrevista e o trajeto até o tribunal, pois se trata de um procedimento judicial com o intuito de formar a convicção do juízo de família. Observação livre da criança sozinha e na presença dos pais Consiste na observação livre da criança sozinha e na presença dos pais (o mesmo que foi dito para a entrevista tanto na presença deles quanto ao dia em que ela é observada). A diferença é a observação da entrevista, porque não há perguntas nem comandos feitos pelo psicólogo. Faz-se inicialmente uma ambientação da criança com os objetos lúdicos contidos na sala onde ela é atendida a fim de que relaxe e estabeleça um mínimo de vínculo com o psicólogo. Em seguida, pede-se ao adulto que entre para “brincar” com a criança. O psicólogo observa como é a interação, se há gestos de carinho ou repulsa, como a criança nomeia o adulto, como se dá a despedida, o que é conversado entre eles. Trata-se de um momento muito rico de experiências e informações para o avaliador. Testes psicológicos Tais testes não são muito utilizados, tendo em vista o volume de demanda atual em todos os tribunais do país e a finalidade da avaliação. Não se trata de psicodiagnóstico diferencial, que é individualizado, e sim de perícia feita em Vara de Família para indicar a dinâmica entre os membros da família. Em caso de utilização, o avaliador deve tomar o cuidado de averiguar se o teste utilizado foi aprovado para uso pelo Conselho Federal de Psicologia em relatório anual emitido pelo CFP em consonância com o SATEPSI (Sistema de Testes Psicológicos). Análise de materiais Procedimentos como a análise de documentos, relatórios escolares e psicológicos; contatos com os profissionais que atendem a família (médico, psicólogo, fonoaudiólogo) e fotos são válidos em avaliações psicológicas realizadas em ações judiciais, tendo em vista que a amplitude de atuação do expert foi dada pela lei federal que regulamentou a prova pericial, sendo a avaliação psicológica um tipo de prova pericial (que é gênero) que tem como espécies o exame, a vistoria e a avaliação. Prova judicial e escuta psicológica A escuta psicológica é um instrumento técnico utilizado pelo psicólogo para análise de situações vivenciadas pelo psiquismo de cada sujeito. Não necessariamente a realidade subjetiva está atrelada à realidade dos fatos. A prova judicial se atém aos fatos; portanto, entende-se que a escuta é mais ampla, pois abrange os fatos “reais” e os psíquicos, assim como o modo como cada sujeito experiencia e percebe a realidade. Por isso, ressalta-se a importância da existência, nos quadros dos Tribunais de Justiça, de profissionais aptos a contribuir com o juízo na sua expertise de análise de relatos e depoimentos de sujeitos envolvidos em processos judiciais. Destaca-se igualmente a importância de contextualizar os depoimentos a fim de evitar equívocos e distorções míopes pelo sistema de garantia de direitos. Então, seja na esfera cível, seja na penal, a verdade judicial é aquela produzida no bojo de um processo e legitimada por um terceiro (o juiz). Provavelmente, ela é uma das faces da verdade, entendida aqui como a verdade de cada parte envolvida em processo, já que nem tudo que acontece no mundo psíquico de cada sujeito vem ao mundo dos autos. Principalmente quando a prova carrega em si um universo de subjetividade, de experiências vivenciadas pelo sujeito e que dizem respeito ao seu modo de perceber a realidade. Uma coisa é o fato em si; outra coisa, como o fato foi vivido pelo sujeito. Esse é o objeto de estudo da Psicologia: o dizer. O dito é do campo do Direito. O dizer, ou seja, aquilo que foi dito sobre o dito, constitui o dizer. Então, hoje em dia, os tribunais do país e do mundo se estruturaram para colher a verdade judicial relativa a processos envolvendo crianças e adolescentes de modo a preservar o sujeito e a prova a ser trazida ao mundo dos autos. Grande é o compromisso do psicólogo do Juízo ou do assistente técnico contratado da parte, já que, além da elucidação da prova da verdade judicial, o profissional deve ter o compromisso ético de estar a serviço da dignidade da criança ou adolescente, zelando para a não violação de direitos humanos. Além da discussão sobre a legitimidade e a utilidade de cada maneira de ouvir crianças e adolescentes, entende-se que o mais importante é que, independentemente do instrumento utilizado e de quem ficará responsável por ouvir a criança ou o adolescente, o profissional esteja ciente do contexto da notícia dos fatos e das variáveis que interferem na fidedignidade do relato infantil a ser valorado como prova judicial. A criança e o adolescente são os grandes protagonistas nas ações que envolvem a discussão de convivência em que o afeto é um vetor das relações e das decisões. Daí a importância de ela ser respeitada em sua condição de criança, sem ter compromisso com a verdade judicial. A criança tem direito a ser escutada, e a escuta inclui o silêncio e a não palavra, assim como o direito de não ter de fazer prova judicial. Então, no laudo, o psicólogo vai indicar ao juiz que ela precisa ser criança e não ser levada tão a sério. O valor da não palavra tem de passar a ser visto com o mesmo valor da palavra. Somente assim a família poderá voltar a funcionar saudavelmente: o Estado-Juiz decidindoquando há conflito e a criança sendo recolocada no lugar de criança, em respeito à sua infância e ao seu direito de não ter compromisso com a verdade do processo. Fidedignidade do depoimento infantil A dificuldade da escuta está em avaliar a fidedignidade e em colocar em palavras escritas dentro de um documento do processo (o laudo) a subjetividade da criança, principalmente nos casos em que ela foi muito afetada pelo conflito dos pais. O profissional que a escuta tem de discernir se o fato vivenciado pela criança prejudicou sua capacidade de declarar sua vontade livremente a fim de indicar se a fala dela serve como prova judicial válida. Se a fala aparece viciada na vontade, isso significa que ela está eivada de vício de manifestações; por isso, deve ser relativizada e sopesada com outros meios de prova, sob pena de decisões judiciais equivocadas acaso elas sejam fundamentadas na literalidade do discurso infantil. Preocupam-se os pesquisadores com as diversas variáveis que colocam em xeque a fidedignidade do testemunho - entre elas, as falsas memórias e a alienação parental. Vejamos as características de ambas: Falsas memórias Segundo a professora Lilian Stein (2010): Falsas memórias são recordações de fatos que não existiram na realidade ou que até existiram nela, mas não do modo como o sujeito se recorda. A complexidade das falsas memórias, que são fruto de um funcionamento normal do organismo, podendo ser espontaneamente originadas, clama por uma escuta técnica, o que requer do sistema de valoração da prova judicial o cuidado e a cautela necessárias. Sabe-se que uma memória boa é falha e que, ao contrário do que leigamente se pensa, o relato não linear, incapaz de descrever um fato com toda a riqueza de detalhes, tem mais chance de ser fidedigno do que um permeado por detalhes e aparentemente com mais elementos mnemônicos. Em meio a esses mecanismos cognitivos e emocionais envolvendo a memória humana, as sugestões e as autossugestões, o testemunho infantil é valorizado dentro do sistema de justiça. Por isso, se propõe que, além de ser valorizado, ele precisa ser valorado. Alienação parental As hipóteses de alienação parental são igualmente variáveis a serem consideradas nas quais a criança ou o adolescente é vítima de pressões psicológicas geradas por: Pressões externas Interferência dos pais. Pressões internas Crenças e fantasias. Em tais casos, deve-se ter muita cautela na apreciação do discurso da criança, porque geralmente a declaração literal está eivada do vício da coação emocional. A criança pode chegar a mentir e a inventar por se sentir gravemente ameaçada de perder a própria vida ou a de alguém umbilicalmente ligado a ela por um vínculo emocional patológico - a chamada simbiose emocional, em que criança e adulto sentem como se fossem uma só pessoa, passando ela a ficar a serviço do desejo dele. Há muito tempo, a experiência com crianças revela que o mito de que criança não mente está ultrapassado, em que pese a resistência dos adultos em crer no que acabamos de afirmar. Os pais que alienam seus filhos também se utilizam desse argumento, insistindo que seus filhos não são capazes de mentir e se indignando com os técnicos que avaliam a criança e informam o fato: a senhora está dizendo que meu filho é um mentiroso? Crianças mentem, inventam, fantasiam e criam estórias para se defenderem de pressões psicológicas e/ou porque estão doentes psicologicamente. A doutrina especializada indica que, quando se trata de avaliar uma criança, não convém levá-la tão a sério. Isso significa que não se deve tomar como realidade, em um primeiro momento, as suas declarações literais. O avaliador tem de ter o cuidado de buscar o contexto em que a declaração é emitida. E isso só é possível se o profissional que avalia a criança tem a possibilidade de entender a dinâmica familiar dela, incluindo toda a família na avaliação. Não é crível que um profissional que avalie apenas a criança, sem incluir sua família, se valha do seu discurso literal para concluir pelo afastamento de quem quer que seja, pois, se assim fosse, o instrumento da interpretação seria inócuo.