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AYMÊ OKASAKI os trajes de um terreiro de candomblé paulista Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Social do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, da Universidade de São Paulo, como requisito para obtenção do título de Doutora em História Social. Orientadora: Prof.ª Dra. Marina de Mello e Souza Versão Corrigida São Paulo 2024 Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte. Catalogação na Publicação Serviço de Biblioteca e Documentação Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo OO41v Okasaki, Aymê O vestir do Axé Ilê Obá: os trajes de um terreiro de candomblé paulista / Aymê Okasaki; orientadora Marina de Mello e Souza - São Paulo, 2024. 527 f. Tese (Doutorado)- Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Departamento de História. Área de concentração: História Social. 1. CAMDOMBLÉ. 2. MODA. 3. CULTURA AFRO-BRASILEIRA. 4. TECIDOS (INDÚSTRIA TÊXTIL). 5. VESTUÁRIO. I. Souza, Marina de Mello e, orient. II. Título. UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS ENTREGA DO EXEMPLAR CORRIGIDO DA DISSERTAÇÃO/TESE Termo de Anuência da orientadora Nome da aluna: Aymê Okasaki Data da defesa: 13/05/2024 Nome do Profa. orientadora: Marina de Mello e Souza Nos termos da legislação vigente, declaro ESTAR CIENTE do conteúdo deste EXEMPLAR CORRIGIDO elaborado em atenção às sugestões dos membros da comissão Julgadora na sessão de defesa do trabalho, manifestando-me plenamente favorável ao seu encaminhamento ao Sistema Janus e publicação no Portal Digital de Teses da USP. São Paulo, 13/07/2024 _ __________________________________________________ (Assinatura da orientadora) Okasaki, Aymê. O vestir do Axé Ilê Obá: os trajes de um terreiro de candomblé paulista. Tese (Doutorado) apresentada à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Doutora em História Social. Aprovada em: treze dias do mês de maio de dois mil e vinte e quatro. Banca Examinadora Profa. Dra. Marina de Mello e Souza (presidente) Instituição FFLCH-USP Julgamento: não votante Profa. Dra. Solange Ferraz de Lima Instituição MP-USP Julgamento: aprovada Prof. Dr. Antonio Takao Kanamaru Instituição EACH-USP Julgamento: aprovada Profa. Dra. Maria Claudia Bonadio Instituição UFJF-externo Julgamento: aprovada Parecer da Banca Julgadora A pesquisa é original e a tese bem estruturada, traz temas candentes para a discussão em um campo multidisciplinar. A banca sugere a ampla divulgação da tese na sua integralidade. A tese tem potencial também para ser mobilizada em atividades de extensão tais como exposições, seminários, workshops. Dedico este trabalho ao meu pai, que hoje me orienta do Orum. À minha mãe, pela revisão e auxílio ao longo da escrita; ao meu irmão e toda minha família e amigos por todo o suporte ao longo de todos esses anos; ao meu corpo discente, especialmente mentorandes e orientandes, para quem eu espero que esta investigação seja colaborativa para um campo da moda mais decolonial, inclusivo e representativo; aos meus amigos do grupo de pesquisa Fayola Odara: José Roberto, Marcel Marques, Beatrice Rossoti, Eliany Funary, Maria Eduarda e Raphael Gonçalves, por toda a construção coletiva de saber. E minha dedicatória à Oxum, que embelezou, adoçou e fortaleceu esta pesquisa e a pesquisadora. Oore yèyé oò À Prof.ª Dr.ª Marina de Mello e Souza, pelo apoio e acolhida durante o processo de orientação, acreditando no potencial e importância da investigação desenvolvida. Ao Programa de História Social, pela acolhida na área e no curso, bem como as professoras de História da África do programa, professor Vagner Gonçalves da Antropologia, professor Fausto Viana da Escola de Comunicação, professora Isabel Italiano de Têxtil e Moda e professora Denise Dias Barros do Interunidades em Estética e História da Arte. Barbara Plankensteiner e Malika Kraamer, do MARKK museum, em Hamburgo, na Alemanha, pela conversa e visita na reserva técnica do museu. Professor Ulrich Mücke e ao programa de pesquisa em História da América Latina, da Universidade de Hamburgo, pelo intercâmbio realizado durante o mês de julho de 2022, que foi de extrema importância para o amadurecimento desta pesquisa e vislumbre de novas oportunidades de pesquisa. Agradecimento à Teleica Kirkland, diretora do CIAD – Costume Institute of Fashion, que me convidou a compartilhar esta pesquisa em 2022, na London College of Fashion; bem como ao professor Alejandro de la Fuente, do ALARI-Afro-Latin American Research Institute, que me recepcionou no Encontro Continental do ALARI, em Harvard, em dezembro de 2022. Ao professor Antonio Takao Kanamaru, que me orientou em minha iniciação científica (ponto de partida da pesquisa de doutorado), trabalho de conclusão de curso-TCC, mestrado e compôs minha banca examinadora de defesa de doutorado. Às professoras Solange Ferraz e Maria Claudia Bonadio, que tão ricamente me auxiliaram, compondo minha banca de defesa de doutorado. Ao Fayola Odara – Grupo de Pesquisas Estéticas Africanas e Afro-Diaspóricas (CNPq), pela construção coletiva de conhecimento, partilha em congressos, estudos e cursos. Agradecimento especial para Marcel Marques, meu ex-orientando de TCC de Bacharelado em Moda, na UNISO, que realizou as fotografias e ilustrações desta tese. Às comunidades tradicionais de terreiro, em especial aos ilês de São Paulo: Axé Ilé Obá e a ialorixá Paula de Iansã (e Telma Winter, assessora do Axé Ilê Obá), Centro Cultural Eyin Oxum, Ilé Afro-brasileiro Odé Lorecy; ao Ilé Oxumarê Aràká Axé Ògòdó e Ilé Axé Opô Afonjá, na Bahia pelas visitas e axé compartilhado. À Georgia Prado, Bianca Almeida, Luana Rampazi, Isabela Rezende, Anália Justino, Nayara Inajá pelas ricas entrevistas, bem como Roger Cipó, Ana Paula David, Silvio Martins Ferreira. Ao grupo Obìnrin Alágbára, que foi fotografado em seus trajes de candomblé por Marcel Marques, no LabCom – Estúdio de fotografia da Universidade de Sorocaba; para compor os materiais anexos desta tese. À Eduardo Cancissú e Felipe Marcondes pelas imagens fornecidas; Sabrina Sabris pelas conversas e informações sobre o Axé Ilê Obá; Celso Lima, Brunno Almeida Maia, Hanayrá Negreiros, Wanessa Yano, Cynthia Mariah, Raul Lody pelos cursos acerca de têxteis e vestuário; à Casa do Alaká, Mercadão de Madureira, Mercado Municipal de Belo Horizonte e Mercado de São Joaquim pelos materiais fornecidos; MARKK Museum (Museum am Rothenbaum - Kulturen und Künste der Welt), Museu Afro-Brasil, Museu Histórico Nacional e Acervo África pelas pesquisas nos acervos. Aos ateliês Sofia Magia, Orixá Chic, Onirà, Duas Coroas, Lojas Patuá, Okàn Rere, Odó Iná e Alaafia que produziram peças para esta pesquisa. Oxum, que antes gostava de vir à Terra brincar com as mulheres, dividindo com elas sua formosura e vaidade, ensinando-lhes feitiços de adorável sedução e irresistível encantos, recebeu de Olorum um novo encargo: preparar os mortais para receberem em seus corpos os orixás. Oxum fez oferendas a Exu para propiciar sua delicada missão. De seu sucesso dependia a alegria dos seus irmãos e amigos orixás. Veio ao Aiê e juntos as mulheres à sua volta, banhou seus corpos com ervas preciosas, cortou seus cabelos, raspou suas cabeças, pintou seus corpos. Pintou suas cabeças com pintinhas brancas, como as penas da galinha-d’angola.de Patrícia Ricardo Souza (2007). É necessário destacar que Souza foi orientada pelo professor na área de Sociologia da Universidade de São Paulo, José Reginaldo Prandi, pesquisador sobre os candomblés de São Paulo, que realizou um grande mapeamento dos terreiros do estado, ainda na década de 1990, e que teve muitas de suas obras, como Mitologia dos Orixás (2001), com presença influente não apenas na academia, mas também dentro dos próprios terreiros. Em minhas pesquisas de campo, pude ver os acervos de livros de terreiros que tinham esta obra, inclusive para conversar com as crianças da casa, sobre os mitos de cada orixá. A pesquisa de Patrícia Ricardo Souza traz três grandes eixos: os fios de contas, chamados ilequês (que são os colares rituais, que comunicam a hierarquia e tempo da pessoa dentro do terreiro, enredo de divindades que guiam o adepto e que servem para proteção da pessoa); os axó, que são as roupas (tanto dos adeptos no cotidiano e nas festas, quanto as roupas e ferramentas dos orixás) e o vestir do próprio terreiro de candomblé (laços colocados no barracão, identificando os momentos de cada rito e festa). Além dessa análise dos trajes, fios-de- contas, ferramentas e laços, a pesquisa também apresenta as pessoas que confeccionam esses trajes e quem cuida da manutenção das roupas dentro dos terreiros: as equedes. Equedes são mulheres iniciadas no candomblé que não incorporam 18 os orixás e durante o xirê, cuidam dos trajes que vestem as divindades, cuidando das amarrações de ataca de acordo com cada orixá, dos momentos de enxugar o suor das divindades com uma toalha, de retirar o pano de cabeça daquele que recebe o orixá, e cuidando para que durante a festa pública, todos os trajes dos que estão dançando na roda, estejam de acordo. Porém, antes das festas públicas e durante as funções internas de cada terreiro, as equedes tratarão da engomagem e passadoria e do cuidado das roupas. Existem cargos específicos para quem cuida dos trajes em um terreiro, a equede ialaxó, porém não são todos os terreiros que possuem esse cargo, podendo estas funções relacionadas às roupas serem divididas entre as equedes de maneira geral, ou mesmo entre outras filhas da casa. Atualmente, já existem passadorias de axé externas, ou seja, lugares que prestam serviço de lavagem, passadoria e engomagem, como a Engome & Passe de Oiá - Lavanderia do Axé, de Salvador/Bahia. Esta pesquisa foi realizada anos depois de outra investigação, também da FFLCH/USP. Eufrásia Santos (2005) foi orientada por outro professor importante nos estudos sobre candomblés paulistas, o antropólogo Vagner Gonçalves da Silva. Professor Vagner Gonçalves da Silva ministra disciplinas sobre as comunidades tradicionais de terreiro, tanto acerca de candomblés quanto de umbandas, e a relação dessas religiões para a formação das culturas e identidades nacionais. Na pesquisa, Eufrásia trata da estética do candomblé, com maior ênfase para os momentos dos ritos públicos, no qual essa visualidade se apresenta também para os visitantes, além dos filhos da própria casa. Nesta análise, engloba-se todos os elementos estéticos do barracão, as performances incluindo o canto, o toque, a dança e um tópico específico acerca 18 Este é um termo em debate, muitas vezes substituído por “excorporar”, se acreditando que o orixá já está na pessoa, e apenas se manifesta no momento do xirê, da festa pública, para dançar e reviver seus mitos ao som dos atabaques. das roupas. Pela pesquisa estar alocada no âmbito da antropologia e pelos estudos de seu orientador acerca das relações com as culturas nacionais, Eufrásia Santos (2005) também analisa algumas festas que extrapolam os terreiros e estão marcadas inclusive no calendário turístico nacional, como a Lavagem do Bonfim e a festa de Iemanjá na Bahia. É importante diferenciar a pesquisa de Eufrásia daquela realizada por Patrícia Ricardo Souza (2007). Eufrásia Santos possui um recorte nas festas como um todo, trazendo inclusive os conceitos de espetáculo e performance (que foram debatidos em outras investigações mais recentes, trazendo a teoria do teatro e das performances do cotidiano de Erving Goffman 19 ); enquanto a investigação de Patrícia Ricardo Souza (2007) trata dos trajes, fios de contas e peças têxteis do barracão do terreiro de candomblé. Nesta área de estudos de performances, a pesquisa de Paulo P. Lima (2014), na Universidade da Califórnia é uma das teses mais recentes sobre terreiros de São Paulo, Salvador e Cachoeira, feita em um programa de pós-graduação fora do Brasil, mas que também teve auxílio e sugestão de investigação do professor Vagner Gonçalves da Silva. Alguns dos terreiros investigados pelo professor Vagner e por seus orientandos reaparecem nesta pesquisa, como Ilê Afro-Brasileiro Odé Lorecy e Ile Axé Omo Oxé Ibalatan; isto porque para investigações nos terreiros de candomblés, é necessária uma rede de contatos e conhecidos. Muitas dessas pesquisas ocorrem em casa na qual o pesquisador já frequenta ou que seja estabelecida esta ponte por meio de outros pesquisadores. Além de trazer a ideia de performance, um importante debate sobre vestuário, gênero e raça também é apresentado; as noções heteronormativas de vestuário são rompidas, ao se pensar não apenas nos corpos vestidos dos adeptos, mas também nos trajes das divindades e suas relações de gênero que extrapolam o binarismo entre feminino e masculino. O trabalho se inicia com um levantamento histórico dos vestuários afro-brasileiros do Brasil colonial e a memória desse vestir que mantem seus traços nas roupas dos candomblés, em especial na roupa chamada traje de baiana. Entre terreiros de São Paulo e da Bahia, a pesquisa perpassa tanto o vestir nas festas, como os trajes de baianas, quanto os trajes das divindades, além de encerrar a tese também com as performances desse vestir para além dos terreiros, na Bahia. Apontando uma herança africana nas roupas da Bahia, apresentada nas festas, mercados, nos tabuleiros de acarajé, no samba, nas ruas e imagem exportada para o Brasil e todo o mundo, do que veste a baiana. Outra recente investigação que também possui um direcionamento (uma coorientação, neste caso) do professor Vagner Gonçalves da Silva, é Vestir o Santo: A estética da indumentária 19 Para mais informações sobre a pesquisa de Goffman, ver: Goffman, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. 3.ed. Petrópolis: Vozes, 1985. do Candomblé de São Paulo, de Paula Montes (2022). Montes investiga os trajes e paramentos dos candomblés de São Paulo em pesquisa de campo em terreiros, lojas de artigos religiosos, vendedores, sacerdotes e costureiras, para compreender as especificidades destes trajes na metrópole paulista. Contudo, um ponto importante nessa pesquisa é seu trajeto histórico, retomando os trajes femininos do século XIX (período de constituição dos primeiros terreiros de candomblé no Brasil), em especial do que a pesquisadora aponta como roupas das “sinhazinhas” 20 , no qual essa estética colonial seria a base material para o vestir nos candomblés, por representar o que haveria de melhor disponível, e isto seria “dado” aos orixás para vestirem. No entanto, a estética colonial eurocentrada estaria ressignificada, com distintas formas de uso e com a atribuição de novos significados dos cultos africanos no Brasil, fazendo com que o candomblé tivesse uma plástica entrelaçada africana, europeia e indígena. Outras duas dissertações que tratam de terreiros de São Paulo são as pesquisas de Hanayrá Negreiros (Pereira, 2017) e Roberto Santos (2022), ambas produzidas por pessoas pretas que possuem suas relações com o candomblé: Roberto Santos (2022) como iniciado no candomblé e Negreiros como candomblecista. Hanayrá Negreiros possui graduação na área de Moda e após a defesa de sua dissertação, atuou como colunista na revista de modaElle, com a coluna digital “Negras Maneiras”, e foi curadora responsável do acervo de vestuário do Museu Assis Châteaubriant (Masp). Ressalto essas informações acerca do trabalho de Hanayrá, pois a pesquisadora possui um espaço importante na área da moda, trazendo não apenas os trajes de terreiros, mas outras negras maneiras de vestir 21 em relação direta com a moda. Hanayrá Negreiros também traz um trabalho de pesquisa que se diferencia dos demais ao apresentar um estudo de caso de um terreiro de candomblé de nação angola. Historicamente, os pesquisadores na academia investigaram muito mais os terreiros de nação queto-nagô (tanto em estudos do século XX de Pierre Fatumbi Verger, até trabalhos mais recentes como os apresentados aqui sobre vestuário), gerando uma falácia de que a nação queto teria um culto mais “puro”, sem tantas mesclas e interferências culturais. Essa problemática foi chamada de “nagocracia” e ainda hoje é visível na quantidade de estudos com foco em uma determinada nação de candomblé em detrimento das demais. Hanayrá Negreiros apresenta um dos poucos estudos de trajes da nação angola, demonstrando também a importância das culturas do centro do continente africano, para a formação do candomblé brasileiro. Outro aspecto importante na pesquisa de Hanayrá 20 Tratamento colonial dado à mulher branca de posses, que era filha do “senhor” de escravizados. 21 Negras maneiras de vestir é um conceito que Hanayrá desenvolve, e que foi título de uma palestra ministrada pela pesquisadora na Semana de Moda da Universidade de Sorocaba, de 2019; também é o nome do curso livre online de Hanayrá ministrou no Instituto Adelina em 2020, bem como uma palestra que ministrou no mesmo ano na Faculdade Santa Marcelina. Negreiros é o conceito de estética do cuidado, especialmente em relação ao trabalho das makotas (seria equivalente às equedes dos candomblés de nação queto). As makotas vão demonstrar toda sua dedicação às divindades e a manutenção do axé, também por meio do cuidado das roupas, seja durante os ritos públicos, seja anteriormente: da confecção, lavagem, engomagem, ao vestir (Pereira, 2017). Já a investigação de Roberto Santos (2022), pude acompanhar de maneira mais próxima, pois o autor faz parte do mesmo grupo de pesquisa que participo, o Fayola Odara - Grupo de Pesquisas Estéticas e Culturais Africanas e Afro-diaspóricas, registrado no CNPq, sob liderança da professora de História da África, Marina de Mello e Souza, minha orientadora e coorientadora de Roberto Santos. É necessário destacar a importância de grupos de pesquisa 22 que conectem os pesquisadores e promovam os debates, com visões de diferentes áreas (o Fayola Odara possui investigadores das áreas de História, Teatro, Artes Visuais e Moda, por exemplo) e de locais diferentes (devido às possibilidades de encontros remotos, o grupo promove encontros de estudo semanais, reunindo pesquisadores da capital e interior de São Paulo e do Rio de Janeiro). Roberto Santos (2022) possui vivência em umbanda e é iniciado no candomblé, tem conhecimento na confecção de vestuário e de performance no carnaval, além de seu trabalho como arte-educador e dançarino, que contribui para sua atuação como pesquisador. Sua recém defendida dissertação de mestrado analisa os trajes, alinhavando os mitos performados nos ritos do candomblé de nação queto-nagô de São Paulo, com principal atenção para os terreiros (re)africanizados. Investigando confecções, produtores de trajes e terreiros, como o Ilê Afro- Brasileiro Odé Lorecy, Roberto Santos (2022) apresenta uma vasta pesquisa na qual um tópico importante ganha destaque, que é o processo de (re)africanização 23 dos terreiros de candomblé. Em São Paulo, após a década de 1980, os terreiros, principalmente de nação queto-nagô, passam a estabelecer uma ponte direta com a Iorubalândia 24 ; com viagens de sacerdotes do candomblé para a África, recebendo títulos, se iniciando nos cultos africanos, estabelecendo pontes comerciais, comprando tecidos e roupas que eram utilizados no continente africano. Esses terreiros deixaram de ter as casas baianas como intermediárias para a África e começaram a criar 22 Atualmente diversos grupos de pesquisa e estudos analisam trajes negros, estudos decoloniais na moda, trajes de comunidades tradicionais de terreiro, como o Rede de Estudos Decoloniais em Moda – REDeM; o grupo independente Núcleo de Pesquisas em Modas Africanas e Afro-diaspóricas com ênfase em moda Afro-Brasileira – NPMAA (grupo do qual Hanayrá Negreiros faz parte); Às Avessas - Coletiva de estudos de moda, gênero, sexualidades e decolonialidades; Grupo Terreiro de Investigações Cênicas: teatro, ritual, brincadeiras e vadiagens (registrado no CNPq, e grupo no qual Roberto Santos também faz parte), entre outros. 23 O autor Santos (2022) utiliza o termo reafricanização, mas opto aqui pela grafia (re)africanização, compreendendo que estes terreiros possuem múltiplos momentos de “africanização” desde suas constituições, sendo cada processo novo, introduzindo novos elementos e se diferenciando dos anteriores. 24 Região de aproximadamente 142,114 km² atualmente, no qual os povos de língua e cultura iorubá habitam. Região de planalto, limitado a norte e leste pelo rio Níger, situada entre a atual Nigéria, Togo e Benim. pontes diretas (a academia também estava envolvida neste processo, com o curso de língua e cultura iorubá na Universidade de São Paulo, por exemplo, que teve como alunos muitos sacerdotes de candomblé que viajaram ao continente africano). Roberto Santos (2022) ressalta a forte presença dos tecidos wax print nesses terreiros (re)africanizados, além dos conjuntos africanos. São tecidos estampados industrialmente, muitas vezes produzidos na Holanda, Inglaterra e até mesmo na China, que a partir do século XX, passaram a ser muito utilizados na África Ocidental, e comercializados no Brasil como tecidos africanos. O tecido costuma mudar seu nome dependendo do local de comercialização: Dutch wax ou wax hollandais (Holanda), fancy print (Inglaterra), ankara (Angola), capulana (roupa moçambicana, mas comercializada no Brasil como tecido), pagne (Togo), mummy cloth (Gana). Trata-se de um tecido com estamparia por reserva utilizando cera derretida, no qual empresas Holandesas e Inglesas mecanizaram a técnica artesanal javanesa do batik, e devido a rejeição dos tecidos industriais no mercado da Indonésia, passaram a comercializar a princípio para as elites de Gana e depois barateando e popularizando o tecido por quase todo o continente africano ao longo do século XX. O tecido costuma ser comercializado pelas chamadas Nana Benz ou Mama Benz - mulheres que ganharam este nome por conseguirem comprar carros Mercedes Benz, com a venda de tecidos – que atribuem nomes e simbolismos para as estampas, inserindo estes têxteis nas culturas locais. Desta forma estes tecidos adquirem identidades africanas atribuídas pelo seu uso e significações, sendo comercializados para fora do continente, com uma visualidade reconhecida como africana (Maia, 2019). O designer e pesquisador de têxteis, Celso Lima, aponta que estes tecidos chegaram ao Brasil no início da Segunda Guerra Mundial, quando o Brasil tem grandes mudanças em sua indústria têxtil, visto que muitas potências têxteis (como Inglaterra) estão com dificuldades na produção e exportação. Porém, a pesquisadora Anne Grosfilley (2023), aponta que o grande reconhecimento dos wax print fora do continente africano, com a imagem de um produto com identidade africana, se dá na década de 1960, com as independências dos países africanos (a partir dos anos 1990, no continente africano, algumas estampas começam a ganhar nomes de personagens de novelas brasileiras, conectando ainda mais o Brasil com os wax print). Todas essas peças e os tecidos utilizados em suas confecções mostram as encruzilhas estéticasque formam os trajes africanos que chegam nos terreiros. Isto porque são múltiplas influências: islâmicas, de diferentes grupos africanos, tecidos importados da Holanda (e atualmente da China também, como é o caso dos tecidos wax print), Áustria (como os tecidos industriais bordados presentes na Nigéria) e outros países europeus, entre outras influências. Isto é, o processo de (re)africanização das casas de candomblé, quando analisado pelo viés do vestuário, é, na realidade, uma (re)inserção do processo globalizado que é o comércio de trajes e tecidos na África. Para além das pesquisas realizadas dentro dos cursos de graduação e pós-graduação, ainda há um número reduzido de livros publicados sobre o assunto. Destaco um pequeno livro com ilustrações do pintor Hector Julio Paride Bernabó (7 de fevereiro de 1911, Lanús/Argentina - 2 de outubro de 1997, Salvador/Brasil) o Carybé, chamado O torço da Bahiana (Valladares, 1952), que de forma didática apresenta diferentes tipos de amarrações para o torço, pano de cabeça ou ọjá, seja a peça em formato triangular, retangular ou até mesmo a utilização de um pano da costa como torço. Outro destaque vai para o levantamento minucioso do pesquisador Flávio Santos (2013) sobre os objetos litúrgicos comercializados entre o continente africano e a Bahia, de 1850 até 1937. Levantando os documentos dos portos, alfândegas, os despachos de importação e exportação, os documentos e relatos dos mercados públicos, Flávio Santos apresenta uma longa lista de objetos comercializados, na qual algumas peças de tecidos são recorrentes: panos da costa de diferentes tipos, panos de algodão riscado, palha da costa, contas de madeira, conchas e outros materiais. Esta pesquisa é importante para ressaltar que essa troca material entre Brasil e África é antiga e constante (Santos, 2013). Contudo, outro autor tratou do tema em algumas publicações, o antropólogo carioca Raul Geovanni da Motta Lody, com livros como Pano da costa (1977), Pencas e Balangandãs da Bahia: um estudo etnográfico das joias e amuletos (1988), Joias de Axé (2001), A roupa de baiana (2003), Cabelos de Axé: identidade e resistência (2004), Moda e História: as indumentárias das mulheres de fé (2015), Indumentárias: roupas, adereços e costumes – Fotos de Pierre Verger (2015), entre outros livros que tratam da cultura afro-brasileira, em especial afro-baiana. Lody é um autor que traz muitas fontes imagéticas de Pierre Fatumbi Verger, muitas análises das obras de Gilberto Freire e de estudos folcloristas de áreas diversas como culinária, têxteis e cultura material afro- brasileira. Lody possui uma aproximação de instituições museológicas, culturais como FUNARTE, Memorial das Baianas, Casa do Alaká (projeto de tecelagem do pano da costa que funciona dentro do terreiro de candomblé Ilê Axé Opô Afonjá) entre outros, que permitiram a pesquisa e publicações sobre estes espaços e seus trajes. Lody se tornou uma referência na área, sendo um dos poucos autores com livros publicados há décadas (sem ser pesquisas de programas de pós-graduação ou publicações disponíveis apenas em meio digital) sobre trajes de candomblé. Contudo, nisto também reside uma problemática, ao se tornar um dos únicos autores com livros publicados sobre o assunto, enquanto as pesquisas acadêmicas recentes sobre trajes ainda não tiveram sua ampla divulgação e publicação em formato de livro. O acesso a textos em formato de livro, com vendas e distribuição em livrarias, ainda é maior se comparado ao acesso, mesmo que gratuito de forma on-line, às pesquisas científicas da academia. Isto também se verifica no contato que as próprias comunidades tradicionais de terreiro têm com esses textos e pesquisas. Seriam necessárias mais publicações recentes, para evitarmos as narrativas únicas, de poucos autores sobre o assunto. Apesar desta longa lista, alguns trabalhos ainda podem ser citados, como aqueles sobre toda a parte das contas e joalheria crioula: Ourivesaria Baiana (Machado, 1973), Balangandãs e figas da Bahia (Farelli, 1981), Círculo das Contas (Godoy, 2006), Joias de Crioula (Cunha; Milz, 2011). Deixo as publicações sobre joalheria separada das investigações sobre a produção têxtil das roupas, por alguns motivos: a produção de toda a parte de metalurgia e joalheria voltada aos candomblés é, na maioria, feita por pessoas (seja dentro dos terreiros ou ateliês/oficinas externas) diferentes daquelas que costuram, demandando técnicas específicas. Além disso, quando se trata da chamada joalheria crioula, que inclui das pencas de balangandãs, colares de alianças e de bolotas, pulseiras de copo etc., estas possuem seu uso por mulheres negras dos séculos XVIII e XIX, antes mesmo da estruturação dos terreiros (apesar do culto aos orixás, voduns e inquices já estarem presentes no Brasil) e hoje também estão presentes fora do candomblé, mesmo que fortemente relacionada ao culto de divindades africanas, proteção espiritual e à cultura afro- brasileira de maneira geral. É ainda necessário salientar a diferenciação dos fios de contas ou ilequês, para as peças de metalurgia, como as joias de crioula. Os fios de contas são sempre sacralizados dentro dos candomblés e indicam a posição da pessoa na hierarquia do terreiro, além da divindade que rege sua cabeça e demais divindades, ou possuem finalidades muito específicas. Enquanto as joias de crioula, atualmente possuem um uso mais amplo, e não de uso obrigatório nos ritos, como determinados ilequês. Ademais, temos trabalhos que perpassam os trajes do candomblé, mesmo que não se restrinja a eles. Uma recente pesquisa neste sentido é a tese em Artes Visuais: Nas cinzas da Coleção Perseverança, a memória arde: a mão afro-alagoana além da quebra do Xangô, de Anderson Diego da Silva Almeida (2021), defendida na Universidade Federal do Rio Grande do Sul; que trata sobre uma coleção de peças advinda do Xangô pernambucano em sua análise museológica e a trajetória dessa coleção após um ato de violência e racismo religioso que foi promovido por um grupo de milicianos em 1912. Reintegro a importância de tal pesquisa, pois muito da cultura material do candomblé e religiões de matriz africana que se encontram em museus na atualidade, também foram fruto de furtos e apreensões policiais, como é o caso do acervo de 521 peças denominado “Coleção de Magia Negra”, que estava em posse do Museu da Polícia Militar e Centro Cultural da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro desde 1938, que só foi para o Museu da República em 2020. Felizmente, com a patrimonialização de alguns terreiros de candomblé, tanto em nível nacional quanto estadual, e a estruturação de memoriais e museus das próprias casas, existem laudos técnicos e catálogos que registram parte desta cultura material – destaque para a recente publicação Terreiros Tombados em São Paulo (2021), do professor Vagner Gonçalves da Silva. As pesquisas sobre os candomblés no Brasil advêm desde o século XIX, contudo, as primeiras investigações realizadas na academia possuíam em sua maioria, um olhar “exotificador”, fetichista, e algumas vezes, racista. Mesmo nos estudos do século XX, existem problemáticas que ainda são debatidas (por exemplo os textos de Gilberto Freyre apontando a democracia racial no Brasil; ou as ilustrações das macumbas cariocas das décadas de 1920-1930, feita por Cecília Meireles, com traços muitas vezes caricaturais, principalmente na representação dos rostos das pessoas pretas). Apenas na contemporaneidade dos últimos anos, com as aproximações entre os terreiros e a academia, com intelectuais candomblecistas publicando sob suas próprias óticas, com as políticas de cotas e maior inserção da população preta no ensino superior, que há profusão de estudos sobre candomblé, com um olhar decolonial e emancipador. E dentre esses estudos, há aqueles que analisarão exclusivamente o vestuário,compreendendo seus códigos sagrados, hierárquicos, simbólicos, de resistência e luta cultural por meio do vestir. Este breve levantamento do estado da arte nas pesquisas de trajes de candomblé é importante para se traçar estudos históricos acerca desses trajes. Pois, apesar de cada terreiro possuir características singulares, apenas com tais análises é possível traçar quais elementos estruturadores de tais trajes, suas características ao longo do tempo histórico e como os trajes, como linguagens visuais de uma comunidade tradicional de terreiro, contam e reformulam suas histórias. Além destes autores específicos acerca da indumentária do candomblé, me utilizo de uma base para compreender o fenômeno da moda em si. A autora Gilda de Mello e Souza 25 , com a obra O espírito das roupas (1987), nos fornece princípios para compreender o fenômeno do gosto estético e sociológico da Moda. Gilda aponta a Moda como uma linguagem social e psicológica que comunica diversos fatores: as estruturas sociais (nos trajes do candomblé, podemos transpor isto diretamente às hierarquias e cargos dentro de um terreiro), a dicotomia controversa e também complementar entre o fator individualizador e coletivo das roupas (que no terreiro, aparece por meio dos elementos estéticos característicos de uma casa específica – o uso de um laço amarrado nas cinturas das ebomis do Axé Ilê Obá, por exemplo – porém, cada qual com um tecido diferente, em cores distintas, com aviamentos únicos). 25 Gilda de Mello e Souza foi assistente e orientanda do professor Roger Bastide, quem fez a sugestão da temática de pesquisa acerca de vestuário. Todos estes autores clássicos e contemporâneos no estudo do candomblé e seus trajes formam a bibliografia fundamental desta pesquisa, essencial para decodificar os signos estéticos do candomblé de nação queto, do Axé Ilê Obá. Ao longo da pesquisa, a tese foi reorganizada. Tal qual um estudo de corte em um tecido, foi necessário mudar a ordem e conteúdo dos capítulos, para que pudessem fazer mais sentido e para que o leitor compreendesse que o fio condutor da pesquisa é: entender o que são os trajes do candomblé do Axé Ilê Obá, percebendo suas mudanças nos trajes desde 1950 até os dias atuais (com alterações no vestir marcados em 3 períodos: enquanto Pai Caio era babalorixá, depois durante o período que Mãe Sylvia era a liderança religiosa, que o terreiro teve em sua história, e o quanto esses trajes dialogam com uma Moda Decolonial.. Para isso, o primeiro capítulo após a Introdução, é o “Candomblé e seus Axós”, no qual, partindo da hierarquia do candomblé, aponto quais são as roupas vestidas pelos candomblecistas do Axé Ilê Obá. Axós é o termo, em iorubá, que designa as roupas dentro do candomblé. Inicio falando sobre o que poderia ser o “regulamentado” dentro do vestuário em um terreiro, para demonstrar que cada casa possui suas próprias orientações acerca do que vestir, sendo as orientações aqui descritas referentes ao Axé Ilê Obá, dentro de seu contexto como terreiro de candomblé de nação queto, que veio da umbanda, localizado atualmente em uma região metropolitana da cidade de São Paulo, em sua terceira geração de liderança religiosa, com centenas de filhos. Neste capítulo compreendemos que as hierarquias, o tempo e a experiência dentro da religião, permitem uma vestimenta mais complexa e colorida; o que pode ser extrapolado para diversas casas de candomblé. Porém, são nos detalhes (tecidos, aviamentos) que residem as diferenças entre os terreiros. No capítulo “Montando o enxoval: composição dos trajes”, a distinção dos trajes deixa de ser no cargo de quem está vestindo, e passa a ser no momento. Se é uma roupa utilizada no cotidiano (roupa de ração), nos dias de festa pública (roupa de xirê) ou se é a roupa da divindade (roupa de orixá). Nesse capítulo, atenho-me a cada peça de roupa que compõe esses trajes, trazendo desenhos técnicos e croqui, para melhor compreensão de como são essas peças. Por fim, afunilo o texto no capítulo “A força da Casa do Rei: o terreiro de candomblé Axé Ilê Obá”, para tratar exclusivamente das roupas do Axé Ilê Obá, trazendo uma breve apresentação sobre a casa e separando a análise em três momentos: a fundação por Pai Caio de Xangô, a consolidação por Mãe Sylvia de Oxalá, e a continuidade por Mãe Paula de Iansã. A ideia de separar a análise em três momentos é perceber as permanências e mudanças com relação aos trajes e as influências que cada líder religioso exerceu no vestir dos demais da casa. Para além das influências do babalorixá e das ialorixás, os orixás desses três líderes também influenciaram na vestimenta da casa. Por isso, é analisado o traje do Xangô de Pai Caio, do Oxalufã de Mãe Sylvia e da Iansã de Mãe Paula. Devido ao período de Mãe Paula ter sido a época no qual pude realizar pesquisa de campo, neste tópico, apresento também recortes das entrevistas feitas com confeccionistas e filhas do Axé Ilê Obá. Na conclusão, busco retomar o quanto as mudanças no vestir do Axé Ilê Obá expressam cada período histórico que a casa vivia, a forte influência da liderança, as tecnologias têxteis disponíveis e influência da indústria têxtil e da moda no momento. Na costura desta tese, muitos textos e investigações seriam descartados, para que a escrita ficasse mais fluida, em uma narrativa mais focada e específica sobre os trajes do Axé Ilê Obá. Contudo, me utilizei dos anexos para que o leitor possa se aprofundar no tecimento desta investigação. Nos anexos trago um glossário com termos gerais sobre candomblé, sua cultura material, ritos, cargos etc. Outros anexos são as transcrições das entrevistas realizadas com fotógrafos de candomblé, confeccionistas e com Mãe Paula de Iansã. As entrevistas foram importantes para consolidar e refutar hipótese que eram criadas ao longo das observações nos xirês, ritos e visitas ao terreiro. Por fim, um importante tópico, fundamental para a construção das roupas, que são os tecidos, se transformaram em um anexo à parte. No anexo Roupas de Candomblé, contei com o trabalho do mestrando, meu ex-orientando de TCC e colega de grupo de pesquisa, Marcel Marques, para fotografias, ilustrações e diagramações. Nesse anexo, trago um ensaio fotográfico, conforme as hierarquias apresentadas no capítulo “Candomblés e seus axós”. O ensaio foi realizado na Universidade de Sorocaba, onde sou docente no curso de bacharelado em Moda atualmente; e contou com a presença da ebomi do Axé Ilê Obá, Georgia Prado, a Oiá Somikan. Nesse ensaio, trazemos imagens da abiã Eduarda de Paula Cunha, da iaô Thamires Ojúara, da equede Estella Magela e Babá Akinadê com seus próprios trajes, para visualizar em detalhes as diferenças destas roupas, conforme a hierarquia do candomblé. Como os trajes eram roupas de xirê, de festa, o texto continua com ilustrações dos trajes de orixás e entidades (pois no Axé Ilê Obá, entidades como exu e pomba-gira, caboclo, erê, preto-velho são cultuados também) e amostras de tecidos que são comumente utilizados. Em cada ilustração, trago amostras de tecidos que foram visualizados na pesquisa de campo ou em fotografias e vídeos antigos. Por atuar na área da Moda, entendo que há uma necessidade sensorial de tocar no tecido, para entender seu peso, caimento, textura. A cultura do candomblé também extrapola a visão, abarcando na cosmopercepção 26 em que o tátil traz uma percepção distinta da unicamente visual. Outra razão pelo qual trago amostras que possam ser tocadas, especialmente no tópico dos orixás, é para rememorar o momento dos xirês. Durante uma festa de candomblé, sempre muito lotada (tanto de filhos da casa quanto de pessoas como público), estar próximo dos orixás pode ser difícil, porém todos querem as bençãos das divindades. Estas bençãos podem ocorrer no simples gesto de tocar a barra da saia de uma iabá ou nos panejamentosde um orixá que se aproxima. Em alguns casos, a divindade ou entidade pode presentear uma pessoa, com algo que ela esteja vestindo, um idá (pulseira) por exemplo. Tal qual uma relíquia de terceiro grau, a roupa de um orixá também possui o axé daquela divindade. Tocar no tecido é tocar no próprio orixá. Por mais que os tecidos que trago nas amostras não tenham sido recortados de trajes de orixás, eles o representam, fazem alusão. E foi uma oportunidade de trazer alguns tecidos africanos artesanais que são representados nos trajes (muitas vezes por meio de estampas industriais, nos tecidos ankara). É o caso dos tecidos bogolã, kente e adire, tecidos que tive acesso por meio de intermediários europeus (meu agradecimento especial ao pesquisador Duncan Clarke, do antiquário Adire Textiles). O fato de esses tecidos terem sido adquiridos na Europa também denota o quanto tecidos africanos artesanais estão se tornando raros para o uso, em contraposição aos têxteis industriais, como é o caso dos ankaras (wax print). Destaquei alguns tecidos recorrentes que foram vistos, para contar um pouco sobre o seu histórico. Por ser docente em componentes práticos da construção das roupas, compreendo que é no tecido que reside a base de um traje. Por isso a necessidade de dar destaque aos têxteis e suas histórias, pois a história de uma roupa não começa no momento de seu uso, mas no fiar, tecer, cortar e costurar cada peça. No anexo, também abordo os paramentos (chamados de paramentas, no feminino, dentro dos terreiros) de cada orixá. O anexo não contém todos os orixás que são cultuados no Axé Ilê Obá, mas os que comumente são paramentados e aparecem nos xirês (por esta razão, não temos Euá nem Iroco, por serem divindades que não tive oportunidade de ver paramentados na pesquisa de campo ou em fotografias e vídeos). 26 Conceito abordado por Leda Maria Martins (1997), que considera a percepção de maneira mais ampla. O candomblé é uma religião afro-brasileira de culto a divindades africanas. Os terreiros se dividem em distintas nações, que possuem cosmogonias distintas: nação queto-nagô cultua os orixás, que são divindades na cultura iorubá; nação congo-angola reverencia os inquices, divindades do macro grupo bantu; nação jeje cultua os voduns, divindades do antigo Daomé; entre outras nações. As nações também vão diferenciar o idioma no qual os ritos são conduzidos, bem como características das roupas; contudo é importante ressaltar como as distintas culturas africanas, seus cultos e divindades também se mesclam e se modificam nos candomblés brasileiros, fazendo com que as nações também interajam entre si e se modifiquem de maneira recíproca, recebendo também influências dos cultos indígenas brasileiros, do catolicismo e de outras religiões. Na nação queto (que foi investigada nesta presente pesquisa) os cultos são feitos aos orixás, divindades veneráveis antropomorfizadas da cultura africana iorubá, fonte de energia vital correlacionada às forças da natureza. Quando tratamos dos povos iorubás, estes são um macro grupo linguístico, no qual, em cada região há o culto familiar de um orixá. Trata-se de um grupo que se estende para além da Nigéria, Benim e Togo, e que convive nesses países com os grupos islâmicos Hauçás, com os Nupes, Ewé, Ibo entre outros, conforme podemos ver no Mapa 1. Mapa 1 – Iorubalândia Fonte: Adaptado de Usman e Falola (2019). O candomblé possui uma estrutura bastante hierarquizada, com ritos iniciáticos e de passagem bem definidos, que vão marcar a posição da pessoa dentro do terreiro. O pesquisador Vagner Gonçalves da Silva (1995) aponta os seguintes cargos, dos mais novos na religião até os cargos de liderança: Vem da palavra iorubá abíyán, aquele que nasce eleito, escolhido. É o não iniciado, que veste apenas branco, em culto ao orixá da criação, Oxalá (Beniste, 2011; Silva, 1995). Em um xirê, na ordem de entrada dos filhos de um terreiro os abiãs entram por último, e formam a roda externa durante as danças; fazendo com que, em uma casa que tenham muitos filhos, eles sejam os mais visíveis pelo público. De acordo com Mãe Sylvia: Estas não pertencem ainda ao ritual severo do candomblé. São as forças de reserva, mas colaboram, naquilo que se adaptarem, com muita dedicação e zelo. Estão numa fase anterior à iniciação, e participam parcialmente dos rituais. São grupos de pessoas à parte, sob direção imediata do Babalorixá, ora e mais comumente de Iyá ou de uma filha mais velha, especialmente designada pelo Babalorixá. São os potenciais humanos e espirituais para o candomblé do futuro (Egydio, 1980, p. 38). O terreiro estudado, durante todo o período de pesquisa de campo (2017-2024), sempre contou com muitos abiãs. Eles, assim como todas as hierarquias, eram sempre citados nos discursos de agradecimentos de Mãe Paula, ao final de cada xirê, por entender como os filhos, mesmo ainda não iniciados, contribuem para a manutenção da casa. Vale ressaltar que existe a possibilidade de um abiã não se iniciar, não se tornar uma/um iaô (ou ser apontado como equede ou ogã), por diversas questões de ordem religiosa, financeiras, sociais etc. Por isso, é possível encontrar pessoas das mais diversas idades como abiãs, bem como pessoas que já são filhos de um terreiro há muitos anos. Durante as festas públicas, no Axé Ilê Obá, de acordo com Mãe Paula 27 , o abiã pode usar um tecido de renda simples, um laise pouco encorpado. Mãe Paula também aponta que esta gradação de um vestuário mais simples quando a pessoa adentra na religião, como abiã, até sua maioridade litúrgica, como ebomi, faz que com, pelo traje, seja visível também as maiores responsabilidades que os cargos possuem. Outro ponto importante na fala de Mãe Paula é a relação que ela faz com o continente africano e seus trajes. Compreendendo a multiplicidade estética, social e econômica do continente africano, Mãe Paula (assim como outras entrevistadas ao longo da pesquisa) reforça o comparativo com África e seus trajes: 27 EGYDIO, Paula Regina. Entrevista. [05 jul. 2023]. São Paulo. Entrevista concedida a Aymê Okasaki. Quando você é abiã, que você inicia, você tem uma roupa mais simples. É exatamente isso, porque você é um novato, você está aprendendo ainda. É um desabrochar de uma flor. Você ainda está no comecinho. Então, você não precisa estar que nem um pavão. Não que eu esteja que nem um pavão, não é isso. Tem terreiros que a gente sabe, que é uma coisa de ouro, ouro, eu fico olhando e falo: lindo, mas eu falo “será mesmo que o orixá mesmo em si, na África eles tinham isso?”. É claro que, na África, a gente vai ver que são reis, príncipes e rainhas, princesas, enfim. E aí tinham muita riqueza. Mas será que na África inteira, todas as pessoas se vestiam dessa forma? Certeza que não (informação verbal)28. Se a Moda eurocentrada está muito relacionada com uma luta estética entre classes sociais, com burguesia imitando o vestir da nobreza, e as consequentes mudanças por diferenciação e cópia; na Europa Gótica, o vestir com base em uma hierarquia (não apenas social, mas também religiosa) também aparece nos trajes do candomblé, inclusive tendo referências em distintas classes africanas (orixás reis e rainhas, por exemplo). 2.1.1. “Borizado” É o não iniciado (ainda é um abiã) que já passou pelo ritual do bori. Isto é, deu comida, fez as oferendas ao Orí, à cabeça (considerado o primeiro orixá; e que é o canal de conexão entre os planos divinos e terreno). Normalmente é um ritual que “acalma” os orixás, dando maior tempo para que a pessoa possa se organizar para uma possível iniciação. Porém, caso as divindades não queiram que a pessoa se inicie, ela pode permanecer como abiã ou “borizada” (Beniste, 2011; Silva, 1995). Quanto a trajes, estes seguem os mesmo de um abiã. Iaô 29 vem do iorubá Iyàwó, esposa. Nocandomblé é o iniciado, até o sétimo ano de iniciação (durante o primeiro ano de iniciado, a/o iaô é chamada/o, em alguns terreiros, de iaô de folha; além de cumprir os ritos de 3 anos de iniciado e, finalmente os 7 anos, passando para ebomi). Tanto os ritos de iniciação, quanto de 1, 3 e 7 anos são longos (podendo levar 21 dias recolhidos dentro do terreiro) e financeiramente custosos (são comuns os chamados barcos de iaô, para a iniciação de mais de uma pessoa, diminuindo um pouco os gastos, além do auxílio dos demais filhos da casa para compra das comidas, animais, do enxoval de roupas etc.), o que leva a muitos candomblecistas a realizarem os ritos em tempos maiores que o estabelecido. Após esse rito de iniciação a pessoa se torna um Ọmọ orixá, do iorubá “filho de orixá”, e Elegun, a 28 EGYDIO, Paula Regina. Entrevista. [05 jul. 2023]. São Paulo. Entrevista concedida a Aymê Okasaki. 29 Seja homem ou mulher, utiliza-se o termo iaô, ou seja, no candomblé, a palavra pode ser masculina ou feminina a depender do contexto da frase aplicada. pessoa entra em transe, recebendo a energia da divindade em seu corpo. Nas saias das mulheres, é possível encontrar fitas costuradas na barra, em que cada fita representa um ano de obrigação cumprida (podendo chegar até 7 fitas) (Beniste, 2011; Silva, 1995). A utilização do termo enxoval é significativa, pois é um termo comum para designar conjunto de roupas de noivas ou recém-nascidos. A tradução de iaô do iorubá é justamente noiva, noiva do orixá; mas é comum a relação da iniciação com o nascimento do elegun na religião, no candomblé. A cada hierarquia alcançada, novas responsabilidades são atribuídas àquele filho. Mãe Sylvia aponta que os filhos de um terreiro são também o visual daquela casa para o público, e se vestir de acordo com a casa e sua hierarquia faz parte do “vestir-se bem” de um candomblé, de seus códigos estético-visuais: A beleza exterior do candomblé do Aché Ile Obá está nas mãos das filhas, que devem apresentar-se bem vestidas, ornamentar o Abaçá, trazendo-o sempre limpo, atendendo aos convidados, dançando e cantando a contento, mantendo o respeito nas cerimônias públicas, e cozinhando-, além das oferendas aos Orixás as comidas sagradas para a distribuição entre os adeptos e convidados nas festas, são o presente e o futuro do Abaçá (Egydio, 1980, p. 37). No terreiro de candomblé Axé Ilê Obá, de acordo com Mãe Paula 30 , durante as festas públicas a/o iaô já pode vestir tecido de laise mais encorpado, com um pouco mais de brilho; depois de um ano de obrigação cumprida, as mulheres podem vestir saia colorida (mas o pano da costa ainda deve ser branco). A mulher iaô utiliza calçolão, quatro anáguas (ou saiotes), saia, camisu, pano da costa, pano de cabeça. Ebomi vem da palavra iorubá Ẹ̀gbọ́n, irmã(irmão) mais velha(o), com mais de sete anos de iniciação e que já deu obrigação (os ritos de 1, 3 e 7 anos). Mulheres ebomis podem ocupar os seguintes cargos, entre outros: iabassé (responsável pela cozinha ritual); jibonã ou mãe- criadeira (cuidando da educação ritual das/dos iaôs quando recolhidos); iamorô (responsável pelo padê, pela oferenda de Exu). Também é um Ẹlẹ́gùn (Beniste, 2011; Silva, 1995). No terreiro Axé Ilê Obá, de acordo com Mãe Paula 31 , as mulheres ebomis vestem a roupa de baiana completa, com bata de richelieu ou guipure, camisu, calçolão, ao menos seis anáguas, quebra- goma, saia colorida, laço na cintura, pano da costa no ombro e ojás coloridos (exceto preto). 30 EGYDIO, Paula Regina. Entrevista. [05 jul. 2023]. São Paulo. Entrevista concedida a Aymê Okasaki. 31 EGYDIO, Paula Regina. Entrevista. [05 jul. 2023]. São Paulo. Entrevista concedida a Aymê Okasaki. Equede vem do termo iorubá èkéjì, segundo. Mulher que não entra em transe. Assessora a mãe de santo durante os rituais e festas públicas, cuidando especialmente de vestir os orixás e garantir que suas roupas e insígnias estejam adequadas para que a divindade dance na festa pública (Beniste, 2011; Silva, 1995). Não passa pelo rito de iniciação, tal qual a/o iaô, mas é escolhida, sendo um cargo muito importante. De acordo com Mãe Sylvia de Oxalá, a função das equedes é: O seu trabalho consiste no cuidado das vestimentas e dos adornos com que se apresentam nas festas, cuidando das filhas de santo possuídas pelos Orixás, sendo uma árdua missão. Cabe-lhe acompanhar todos os passos de um Orixá durante as festas, tendo ao braço ou ombro uma toalha com que enxuga o suor do seu cavalo, sua atenção é concentrada para não deixar cair, não se cansar demais, nem desfazer ou destruir a harmonia da sua vestimenta. As Ekedes colaboram muito para o embelezamento das cerimônias, fazem verdadeiros desfiles de roupas de acordo com as saídas dos Orixás, geralmente dançam bem, e devido à sua dedicação em puxar (levar) o Orixá para as voltas no Barracão, com a leveza de uma pluma, transmite o bálsamo da segurança e da bondade a quem está servindo (Egydio, 1980, p. 38). Mãe Sylvia ressalta o quanto o trabalho das equedes está relacionado com o vestuário, não apenas os seus mas os trajes dos orixás, e o que a pesquisadora Hanayrá Negreiros (Pereira, 2017) chama de estética do cuidado, para que todos os trajes se mantenham em suas posições, mesmo durante as danças dos orixás (lembrando que boa parte dos trajes do orixás é composta por laços e panejamentos que são apenas amarrados e envoltos no corpo, além dos paramentos, que podem escorregar e cair, ou que o orixá pode desejar não segurar em dado momento do xirê, fazendo com que a equede tenha que estar atenta para segurar alguma insígnia, assim que um orixá solicitar). Alguns termos da citação de Mãe Sylvia, não estão mais em uso tão recorrente atualmente, como cavalo para tratar o Elegun-orixá. Por outro lado, vale destacar a escolha do termo desfile, para comparar com apresentações de roupas para um público. Durante as festas públicas, no Axé Ilê Obá, Mãe Paula 33 afirma que as equedes vestem o traje de baiana (com bata de richelieu ou guipure, camisu, calçolão, anáguas, quebra-goma, saia, laço na cintura, pano da costa, ojá), tal qual as ebomis, e apenas algumas equedes (equede Rosana e Vanessa) vestem atualmente um traje africano: o cafetã com calça, além do pano de cabeça. 32 Equedes e ogãs ao serem “levantados” ou “suspensos” passam diretamente para a categoria de ebomis, não passando pelo rito de iniciação como iaô. 33 EGYDIO, Paula Regina. Entrevista. [05 jul. 2023]. São Paulo. Entrevista concedida a Aymê Okasaki. Podem ter diferentes funções, com títulos distintos como a ialaxó (que cuidas das roupas). Este é um cargo importante para a pesquisa sobre trajes de candomblé. No entanto, o terreiro Axé Ilê Obá, durante as pesquisas de campo, não possuía nenhuma mulher neste cargo, conforme relata Mãe Paula, o Axé Ilê Obá: Já teve ialaxó, foi a Elizete [de Oiá]. Teve uma ialaxó e teve uma otum ialaxó, como se fosse braço direito da ialaxó. É uma secundária. Essa otum ialaxó é a Edna [de Oxumarê]. Ela está viva, mas ela já está mal de saúde e está bem velhinha. A ialaxó daqui faleceu, que é a equede Elizete. E por enquanto eu não repus. Porque é bem difícil você colocar uma pessoa específica, com um camarim. Pelo preparo das roupas, cuidar das roupas do orixá, da ialorixá (informação verbal)34. Ogã vem da palavra iorubá ga, ser alto ou promover, exaltar; e do fongbe gã, găn, chefe. Homem que não entra em transe. De acordo com Mãe Sylvia, os ogãs são conselheiros nos âmbitos jurídicos, financeiros e administrativos no terreiro, auxiliando o babalorixá/ a ialorixá. Eles também estão presente nas festas públicas auxiliando na manutenção da ordem, resolvendo “casos de rebeldia ou indisciplina” (isto é, chamando a atenção, caso alguma ordem esteja sendo descumprida, tanto pelos próprios filhos da casa quanto público externo; por exemplo, solicitandopara que visitantes não fotografem os xirês, ou evitando que sentem nos assentos errados etc.). Mãe Sylvia reforça que os ogãs são o braço direito do babalorixá nos assuntos que não são diretamente ligados à religião, contudo eles são essenciais nos ritos e manutenção do candomblé (Egydio, 1980, p. 35). Pode ocupar os seguintes cargos, entre outros: Axogum (aquele que realiza os sacrifícios rituais, que devem ser corretamente realizados, caso contrário, o sangue dos animais, o ejé, pode “coalhar” e as divindades não aceitarão o sacrifício – na ausência do pejigã, o babalorixá poderá realizar um sacrifício, dada a sua autoridade no terreiro); Alabê (tocador dos instrumentos rituais, como os atabaques); Pejigã (responsável pelo quarto dos orixás ou pejí, onde ficam os assentamentos, altares que representam/são as divindades de cada filho da casa e que recebem as oferendas rituais) (Beniste, 2011; Silva, 1995). Um ogã não passa pelo rito de iniciação, tal qual uma/o iaô, porém outros ritos são necessários. O babalorixá, ialorixá ou algum orixá pode levantar, escolher, ou seja, apontar que aquele homem receberá o título de ogã. Existe uma confirmação desta indicação. O ogã passará 34 EGYDIO, Paula Regina. Entrevista. [05 jul. 2023]. São Paulo. Entrevista concedida a Aymê Okasaki. por um período de reclusão dentro do terreiro (sem celular, sem relações sexuais, com uma alimentação específica etc.) realizando as oferendas necessárias e se preparando para suas funções. O ogã passará alguns dias dormindo no Sabaji (é possível verificar a localização do Sabaji do Axé Ilê Obá, no Mapa 3). Ao final dos ritos internos, o ogã é apresentado em uma festa pública, tradicionalmente de seu orixá. Nesta festa, o ogã se sentará em uma cadeira de braço que ele tenha comprado, e será levantado, carregado por todo o barracão, ao som dos atabaques, de saudações de seu orixá e de palmas e rojões (fogos de artifício na área externa). Conforme o ogã é apresentado, as filhas do terreiro jogam pétalas de rosas. O ogã, já sentado e vestindo exclusivamente branco, recebe os filhos da casa, que o saúda, pedindo as bençãos individualmente (Egydio, 1980, p. 35-36). Esse emblemático rito apresenta uma série de símbolos relacionados às realezas: a cadeira de braço (como um trono), a faixa, e na Figura 1, vemos até mesmo a coroa; demonstrando quão importante é o cargo de ogã para um terreiro de candomblé. Mãe Sylvia não os chama de reis, mas de cavalheiros (Egydio, 1980, p. 35) e podemos compreender também, tal qual a tradução indica, que eles seriam as adaptações dos cargos de chefes africanos, responsáveis pelas manutenções locais em âmbito administrativo, religioso e social. Está na mesma hierarquia que as equedes, e assim como os ebomis, de acordo com Mãe Paula 35 , pode vestir tecidos mais elaborados (guipure, richelieu, entremeios), coloridos, seja terno com camisa, gravata, faixa, sapato social e quepe, ou batas mais alongadas com calça, babuche e equeté ou filá etc. Na Figura 1, temos um grupo de ogãs do Axé Ilê Obá, vestidos com terno branco, sapato branco, faixas indicando de quais orixás são filhos e coroas adornadas com aplicações, que demonstram que são filhos de um terreiro de Xangô, de um orixá rei (a coroa é um símbolo recorrente no Axé Ilê Obá, tanto em sua identidade visual de papelaria, site, publicações impressas e digitais, quanto na forte presença de uma coroa de 75 quilos no ariaxé, no centro do barracão). 35 EGYDIO, Paula Regina. Entrevista. [05 jul. 2023]. São Paulo. Entrevista concedida a Aymê Okasaki. Figura 1 – Grupo de ogãs do Axé Ilê Obá Fonte: Egydio (1980, p. 34). Mãe Sylvia (1980, p. 35) ressalta que os ogãs são os protetores de um terreiro, que devem dar prestígio à casa, assessorando o babalorixá ou ialorixá na administração do terreiro e no seu bom andamento. O destaque do termo prestígio, é que este pode ser visualizado nas roupas dos ogãs, pois os ogãs são aqueles que estarão na entrada dos terreiros, no salão, recepcionando as pessoas em um xirê. Eles são as primeiras pessoas a serem vistas em um terreiro, em dias de festa pública: “São cavalheiros, acessíveis e conquistam as simpatias gerais da casa, seja pela sua liberdade, atração pessoal ou pela posição que desfrutam. É inadmissível que um ogã seja arrogante e antipático, são eles que lidam diretamente com o público” (Egydio, 1980, p. 35). Auxiliar direto do pai (babalorixá) ou mãe (ialorixá) da casa (Beniste, 2011; Silva, 1995). Também chamada de iaquequerê ou mãe-criadeira, ela participa dos processos iniciáticos dos filhos da casa de candomblé. A mãe pequena pode vestir o traje de baiana completa (com bata de richelieu ou guipure, camisu, calçolão, anáguas, quebra-goma, saia, laço na cintura, pano da costa, ojá). Na Figura 2 podemos ver a iaquequerê do Axé Ilê Obá, Toloquê, Antônia Pimenta (1929-2009), filha de Logun Edé. Ela foi iaquequerê no período de Pai Caio, sendo citada por Mãe Sylvia (1980) em seu livro sobre o Axé Ilê Obá, como uma mulher que era autoridade subsequente a Pai Caio: Toloké – Antonia Pimenta, substituta imediata do Babalorixá Caio é a nossa Iyá (mãe-pequena), está abaixo na hierarquia como administradora civil e religiosa do Candomblé. Pessoa de profunda amizade, a mãe-pequena foi agraciada com esta posição devido aos serviços constantes prestados à casa, juntando-se este fato ao seu tempo de feitura de santo, sendo por isso a autoridade subseqüente ao Babalorixá Caio, estando em contato direto com as filhas de santo, especialmente nas cerimônias religiosas e sendo responsável em iniciar as filhas que recorrem à casa. A nossa Iyá é uma pessoa enérgica quando necessário, autoritária conforme as ordens do Babalorixá, mas paciente com os filhos e adeptos da casa, transmite o bálsamo da bondade e da fé aos necessitados de caridade espiritual. O Babalorixá apenas fiscaliza, aconselha e dirige nestas ocasiões, enquanto que a Iyá é a executante acompanhando a evolução das cerimônias (Egydio, 1980, p. 33). Na Figura 2 podemos ver a iaquequerê vestindo um camisu com flores de tecido aplicadas (o que não é muito comum no terreiro, atualmente), bem como um pano da costa com faixas brilhantes e um pano de cabeça engomado com uma amarração com uma ponta, uma aba na lateral. Conforme o pesquisador e iaô Roberto Santos (2022, p. 137) aponta em sua pesquisa, as “orelhinhas” ou “asas de borboleta” vão indicar se a divindade ao qual a pessoa é iniciada é oboró (masculina) ou iabá (feminina), sendo duas orelhinhas para divindade feminina e uma, para oboró. Contudo, vale salientar que Mãe Toloquê era filha de Logun Edé, um orixá metá-metá 36 , que mescla em seu vestir características da iabá Oxum, sua mãe, e do oboró Oxóssi, seu pai. 36 Em iorubá Metá-metá significa três ao mesmo tempo, encruzilhada de três caminhos ou metade-metade. No candomblé, o termo designa orixás que trazem características tanto dos orixás oborós (considerados masculinos), quanto das orixás iabás (tidas como divindades femininas). Não se trata de divindades hermafroditas, mas não estão segmentadas binariamente como masculina ou feminina. Nos trajes destas divindades, é possível encontrar o uso de saias ou bombachas/calçolões. Além de Logun Edé, Oxumarê é uma divindade metá-metá, assim como Ossaim e Oxalufã (a depender do terreiro, estes orixás são considerados oborós ou possuem outros nomes para orixá iabá, como Ossanha). Figura 2 – Iaquequerê do Axé Ilê Obá, Mãe Toloquê Fonte: Egydio (1980, p. 32). Babalorixá vem palavra iorubá bàbá, pai, mestre. Ialorixá vem do termo iorubá ìyá, mãe. Ebomi que já iniciou outros adeptos e geralmente possui seu próprio terreiro (o mesmo que pai ou mãe de santo, respectivamente). Também é Elegun (Beniste, 2011; Silva, 1995). Existem uma série de funções que o babalorixá ou a ialorixá são responsáveis. MãeSylvia aponta que o babalorixá (bem como a ialorixá, porém, em seu livro, Mãe Sylvia se referia a Pai Caio de Xangô, babalorixá do Axé Ilê Obá), como autoridade absoluta em um terreiro, deve: Presidir sacrifícios; preparar e iniciar “filhos de santo” dentro do ritual próprio; preparar os Orixás e os assentamentos respectivos; resolver pelo jogo de Búzios ou pelo Opele Ifa qualquer questão surgida dentro do Abaçá ou de pessoas que a ele recorra; observar e corrigir a execução de todos os preceitos do ritual que pratica; marcar o ritmo a ser obedecido pelos tocadores de atabaque; ensinar, educar e corrigir os “filhos de santo” por ele feitos na prática e execução dos preceitos [...] (Egydio, 1980, p. 29). Segundo Mãe Paula 37 , a ialorixá pode utilizar o traje de baiana completa (com bata de richelieu ou guipure, camisu, calçolão, anáguas, quebra-goma, saia, pano da costa, ojá) ou traje africano (cafetã). O babalorixá pode utilizar o traje africano (boubou), bata, ou camisa, com calça. Esses diferentes cargos e funções são percebidos nos códigos visuais das vestimentas. Sendo uma religião que se pauta na tradição pela senioridade, quanto maior o tempo que se está no candomblé e mais ritos de passagem já tenha realizado, mais alto que se está na hierarquia. Seguindo esta hierarquia é possível utilizar roupas mais trabalhadas (tecidos coloridos, com brilho, uso da renda guipure, richelieu, entremeios, as mulheres podem vestir bata e costurar uma fita de cetim na barra da saia para cada ano após a iniciação), recebendo também outros colares rituais (fios de contas) etc. 37 EGYDIO, Paula Regina. Entrevista. [05 jul. 2023]. São Paulo. Entrevista concedida a Aymê Okasaki. Alguns ilês (terreiros de candomblé) possuem mais contato com antigas casas baianas, outros têm uma troca de informações constante com países africanos (especialmente Nigéria e Benin), ou até mesmo com terreiros cariocas ou de distintos estados enquanto outros possuem influência de diferentes religiões, como a umbanda e o culto ao Ifá. O terreiro Axé Ilê Obá, vindo da umbanda, demonstra conexões com os trajes dos caboclos, exus e pomba-giras e pretos-velhos da casa, encantados que foram preservados no terreiro, mesmo após sua mudança para uma casa de candomblé queto. Características dessas influências se acumulam e se somam nos trajes, que vão se adaptando conforme a década, a liderança no terreiro, as tecnologias de confecção e os ateliês que produzem as roupas para os filhos daquela casa. Foi possível identificar duas composições básicas: os trajes de estilo baiano e os trajes (re)africanizados. O comercialmente denominado estilo baiano está presente desde os primeiros terreiros de candomblé em São Paulo, após a década de 1950-1960, de acordo com Reginaldo Prandi (2020) em Os candomblés de São Paulo. Este estilo traz a influência do vestir das casas de matrizes baianas, marcado pelo traje social masculino com silhueta retangular (terno, gravata, sapato social). Para mulheres, o estilo baiano se apresenta na saia rodada com fitas de cetim costuradas na barra (para mulheres ebômis, no qual cada fita de cetim representa os anos de iniciada, chegando até sete fitas de cetim, ao todo), anáguas engomadas e segunda saia quebra- goma, camisu, bata, pano da costa e pano de cabeça, tudo em uma silhueta triangular. Esta é a base dos trajes do terreiro Axé Ilê Obá, contudo, isso não exclui a entrada de trajes africanos por alguns adeptos. Já os terreiros (re)africanizados, desde a década de 1980, trazem peças confeccionadas e tecidos do continente africano, atualizando trocas com a África contemporânea. Nesses terreiros estão presentes os abadás e boubou (mantos iorubá, como mostram os trajes de Pai Caio de Xangô, na Figura 3), bùbá (camisa), shokoto (calça) e filà (gorro) nos conjuntos masculinos e ìró (tecido enrolado como saia), bùbá, pano da costa e pano de cabeça nos trajes femininos ou os cafetãs. Esses estilos ainda se dividem entre as roupas de ração (mais simples, usadas para realizar as tarefas cotidianas), as roupas vestidas nas festas públicas e as roupas dos orixás (usadas no momento do transe ritual). Figura 3 – Pai Caio de Xangô no terreiro Axé Ilê Obá, vestindo mantos africanos. Apesar do boubou e filá indicar um traje (re)africanizado, na figura da direita Pai Caio de Xangô traz a cruz de Malta no peito, símbolo recorrente nas umbandas e candomblés, mas que costuma ser eliminado, por ser considerado um elemento sincrético, nos terreiros (re)africanizados Fonte: Acervo Axé Ilê Obá (Fotografia cedida por Telma Witter, assessora do Axé Ilê Obá). Na Figura 3, vale destacar que o longo comprimento do boubou (sendo o da imagem à esquerda, um brocado vermelho que remete a Xangô pela tonalidade) e seu formato mais quadrado, evita que o tecido tenha muitos recortes, o que valoriza o tecido em si, com seus bordados e aplicações. Nas imagens do centro e direita da Figura 3, Pai Caio calça um sapato em ráfia com búzios aplicados, única peça que contrasta ao branco do restante do conjunto. Apesar dos registros históricos limitados e os estudos específicos de trajes das casas paulistas ainda muito recentes, esta pesquisa busca demonstrar a importância desse elemento estético do vestir em traduzir visualmente, o axé dos povos de terreiro em São Paulo, em especial, do terreiro Axé Ilê Obá. É possível interpretar esses trajes como uma Encruzilhada Estética, na qual influências diversas se encontram e por vezes se confrontam. Ou seja, existem influências de culturas distintas, tanto nacionais quanto africanas e europeias, compartilhando uma mesma composição de traje; isso vai demonstrar o histórico colonial e escravagista do Brasil, mas também influências de moda de diversos períodos. Importante apontar que tomo como referência o conceito de Encruzilhada de Leda Maria Martins (1997, p. 25), quando a autora aponta as culturas negras nas Américas como um espaço/tempo de intersecções, inscrições, disjunções, fusões, transformações, confluências, desvios, rupturas, divergências, multiplicidades, origens e disseminações. São tradições e memórias africanas, muitas vezes orais, que se cruzam com códigos e símbolos outros, que se confrontam e dialogam nas formações das identidades afro-brasileiras. Esses sistemas são móveis e interagem continuamente, modificando uns aos outros mutuamente e tendo a Estética como um meio comunicativo, em suas encruzilhadas também se apresenta a dinamicidade da cosmopercepção do candomblé, trazendo a figura de Exu, senhor das Encruzilhadas. Utilizo esse conceito de Encruzilhada também para salientar a não-passividade na formação da Estética dos trajes dos candomblés. Assim como a própria figura de Exu reforça a questão dinâmica e comunicativa, é importante compreender que as diferentes culturas que convergem para a formação de tais trajes, por vezes trazem símbolos que representam poderes sociais assimétricos. Criadores de axós, as roupas de candomblé, já estão utilizando da expressão Moda de Terreiro (como aparece no catálogo do ateliê Obinrin – Figura 4 –, por exemplo; o catálogo foi veiculado digitalmente, porém teve algumas edições impressas, distribuídas no terreiro carioca Ilê Omolú Oxum) para designar esse segmento de vestuário. Contudo o debate acadêmico do que pode ser considerado Moda, ainda exclui os segmentos de criação afro-religiosas; o que vem sendo combatido com os debates acerca da Moda decolonial. O campo da Moda sob perspectiva decolonial ainda é uma área em construção, com autores pesquisando em todo o mundo e sugerindo novas terminologias que sejam menos dicotômicas, como é o caso do conceito Moda de Fusão, de José Teunissen (Jansen; Craik, 2018), que se aproxima da ideia de Encruzilhada, no sentido de compreender distintas vertentes que se somam. Contudo, gostaria deressaltar ao longo da investigação a Estética de Encruzilhada dessas roupas, em que a dicotomia entre a Moda fora do terreiro e dentro muitas vezes é quebrada, mesclando os espaços de visibilidade desse vestir afro-brasileiro; e expressando por meio de tecidos, costuras e do vestir, a fé, o axé de uma comunidade de candomblé. Figura 4 - Capa do catálogo digital de roupas Moda de Terreiro, do ateliê carioca Obirin Odara, lançado em maio de 2021 Fonte: Ateliê Obinrin Odara (Moda de terreiro, 2021). Nessa indumentária de candomblé, existem três tipos básicos de roupas: os trajes do dia a dia (roupa de ração), os trajes de festa (traje de xirê) e dos orixás. Essa divisão dos trajes diz respeito aos momentos e ritos no terreiro. As roupas de ração são trajes utilizados no cotidiano do terreiro, normalmente mais simples (que podem incluir inclusive camiseta de meia malha branca), e com menor diferenciação hierárquica, como mostra a Figura 5. Nela podemos ver a Iá Iká, Jaci de Oxum, usando um avental azul escuro, um traje mais funcional, se comparado com as demais vestimentas de um terreiro. São as roupas mais utilizadas, pois se trata dos trajes de cotidiano, as roupas das funções dentro do terreiro. Mãe Paula aponta como as funções (atividades internas do terreiro) são importantes e marcam uma diferença estética dos dias de festa e dias de função, na forma de se vestir, na seguinte fala: Na verdade, eu acho que não é só o dia da função; é o mês de função. Porque, na realidade, a festa que a gente faz para o orixá, que foi marcada nos calendários, é a festa que a gente fala que é folclore. Onde nós teremos as roupas bonitas, as roupas preparadas, os fios de conta, os filhos todos com roupas engomadas, todos vestidos de forma correta. Mas, na realidade a festa mesmo é para o orixá (Mãe Paula apud Rodrigues, 2019, p. 33). Figura 5 - Roupa de ração no terreiro Axé Ilê Obá, com a iá iká Jaci de Oxum, ao fundo Fonte: Fotografia cortesia de Eduardo Cancissú, 2019. As roupas de ração são aquelas utilizadas nos trabalhos e vivências cotidianas nos terreiros. A nomeação tem duas possibilidades de origem: a primeira vem do contato que esta roupa tem com o sangue de animais, com vegetais e com alimentos durante os ritos diários, como o preparo das oferendas para serem ofertados nos assentamentos dos orixás. Essa seria a roupa que come, isto é, que acabam encostando (por vezes manchando as roupas) com todos os alimentos que são oferecidos aos orixás, por isso ração. Esse traje recebe a energia, axé que vem destas oferendas durante os ritos. Se trata da roupa com a qual se realiza as atividades, por isso, devem ser trajes que permitam uma mobilidade. Uma segunda possibilidade para o nome reside no tecido utilizado para sua confecção: morim (tela de algodão de trama mais aberta, um tecido um pouco transparente, a depender da qualidade). É certo que, com a popularização das fibras sintéticas (o que é visível desde a segunda metade do século XX, nos terreiros), o morim foi substituído pelo tecido oxford, meia-malha e outros tecidos leves mais confortáveis. O morim, no entanto, é uma base para a estamparia da chita, e o tecido rústico utilizado em sacarias que embalavam alimentos como grãos, durante o Brasil no século XVIII. Os têxteis para sacarias de alimentos e algodões rústicos para vestimenta dos escravizados eram um dos poucos permitidos de serem tecidos no Brasil, após o alvará da rainha Dona Maria I, em 1785 (Souza, 2007). As roupas de ração de homens e mulheres costumam ser de tecidos mais baratos e que sejam fáceis de manter: lavar, passar. Quanto às cores, a roupa de ração costuma ser inteira branca (Souza, 2007). Mas qual o motivo de tais trajes serem brancos? O branco é a cor da criação, dentro do candomblé, utilizada tanto nas iniciações, quanto nos ritos fúnebres. É a cor do orixá da criação, cor de Oxalá (por este motivo, a expressão “vestir branco” das sextas-feiras, dia da semana do orixá Oxalá). Mãe Sylvia de Oxalá aponta isso em uma lista de deveres que os filhos do Axé Ilê Obá deveriam cumprir: “b) Vestir-se obrigatoriamente de branco nas sextas-feiras e demais dias que forem preceitos” (Egydio, 1980, p. 39). Também é a cor de todas as hierarquias dentro do candomblé. Esta é a razão litúrgica pela qual a cor branca está presente nos axós, razão pela qual seu uso foi mantido na forma de tradição vestimentar. Contudo, é possível encontrar sais de ração estampadas, com florais pequenos etc. Isto porque as roupas se adaptam às possibilidades da indústria têxtil de sua época. Já as razões históricas tecnológicas do uso do branco nesses trajes, nos fazem comparar as roupas brancas de ração, com as “roupas brancas”, isto é, os trajes interiores, utilizados nos séculos XVIII-XIX no Brasil. É possível visualizar como eram os trajes interiores femininos no Brasil do século XIX na obra Para vestir a cena contemporânea: traje interior feminino no Brasil do século XIX, de Fausto Viana; Isabel Italiano e Aglair Nigro Mello (2019). Esse movimento de trazer à vista roupas que ficavam escondidas como roupa interior, mas que eram peças que davam estrutura e base, serve como metáfora para o caráter decolonial da moda de candomblé. Trazer à vista a base e estrutura, toda a visualidade que representa o axé da religião em seu aspecto mais visual: nos axós. No século XVII, a roupa interior confeccionada em tecido branco revelava a limpeza dos trajes. Tal qual no início do século XX, as roupas brancas eram frequentemente decoradas com monogramas, inscrições, ornamentos e representações de elementos gráficos, o traje de ração também pode conter bordados e identificações em distintas cores. No Axé Ilê Obá, podemos encontrar peças com bordados com os nomes do filho da casa, quando as peças são confeccionadas sob encomenda, como é possível verificar na Figura 6, com a saia de laise branca de Mãe Paula de Iansã, com seu nome bordado, além de uma borboleta (animal relacionado à orixá Iansã, bem como a cor rosa). Isto facilita o reconhecimento das peças, especialmente quando são de enxovais, fazendo com que as roupas dos filhos da casa não se percam, quando estes estão recolhidos, dormindo por vários dias no terreiro. Figura 6 - Mãe Paula de Iansã com saia bordada com seu nome Fonte: Forganes (2022). Essa roupa que come, como aponta Raul Lody (2003), nos rituais de iniciação e nos ritos cotidianos individuais e coletivos (recolhendo folhas, cozinhando, limpando, costurando, passando, engomando, bordando, tecendo, fazendo fios de contas), é a roupa que também vai demonstrar, em seu tecido, todo esse processo. Pequenas manchas vão tornar visíveis o quanto a pessoa trabalhou, sinalizando sua importância para o grupo. É certo que para determinadas tarefas cotidianas, uma pessoa pode evitar se sujar e/ou trocar de roupa. Mas é a dimensão do sagrado de determinadas manchas que não se pode remover. Isto porque, por mais que estas roupas sejam lavadas, resquícios de sangue sacrificial, azeite de dendê, terra, folhas, entre outros elementos permanecerão (mesmo que fiquem invisíveis aos olhos) e impregnarão, confirmando o compartilhamento do axé nos ritos. Por exemplo, na cerimônia do ossé, na limpeza do assentamento, não se remove completamente o que foi ofertado, justamente para simbolizar que a divindade ali comeu, para demonstrar ali o axé presente (Souza, 2007). As manchas podem estar presentes, em alguns outros casos, em roupas compradas em grandes mercados, especialmente roupas importadas. Tanto manchas de transporte, como peças já utilizadas e revendidas, é algo que pode ocorrer. Por isso, revendedores nacionais que compram peças ou tecidos importados em containers, possuem um trabalho de higienizar estas peças, como contou em entrevista Nayara Inajá do ateliê de roupas para candomblé, Asó Lewá, e como podemosver no pano da costa, comprado na feira de São Joaquim (segundo os vendedores, esta seria uma peça africana, porém não há indicação de qual país teria sido importado) – Figura 7. Esse pano da costa em algodão cru, possui fios de lurex dourados e prateado formando listras. Trata-se de várias tiras de tecido plano costuradas umas às outras (costura à máquina). No canto direito inferior da Figura 7 é possível visualizar uma mancha mais escura, tal qual foi comercializada na Feira de São Joaquim (Salvador/Bahia). Figura 7 - Pano da costa, comprado da Feira de São Joaquim Fonte: da autora (2022). São roupas de ração que acompanharão o abiã em seu processo de aprendizado, no recolhimento dentro do terreiro, para se tornar uma/um iaô. Durante os dias de recolhimento para a iniciação, a pessoa estará dependente dos demais da casa, que a auxiliarão inclusive com a manutenção destas roupas (o que reforça serem trajes mais práticos). Vestir a roupa de ração indica que é o momento do trabalho duro dentro do terreiro, e como uma roupa de trabalho, ela deve ser ergonômica e confortável, na medida do possível. Isto porque a/o iaô que vestirá a roupa, irá fazer suas saudações, deitar-se no chão, além de todos os movimentos que as pessoas farão nos trabalhos. Isto não quer dizer que a roupa será “simplista”, sem detalhamentos, rudimentar ou de baixa qualidade, apenas que a ergonomia deverá ser considerada; a roupa deverá ser adequa aos movimentos a serem realizados (Souza, 2007). Podemos traçar um paralelo com o segmento de workwear, que não se caracterizam como uniformes, mas que vão produzir roupas de apelo utilitário, sem eliminar ou menosprezar a estética das peças. Assim como existem muitos fornecedores atualmente que vendem, tanto peças prontas, quanto por encomenda, ainda é possível encontrar (em menor quantidade) peças reaproveitadas (uma peça de um traje de festa que já tenha sido muito utilizado ou mesmo roupas de ração antigas). Independente da hierarquia, todos no terreiro vestem suas roupas de ração, no momento que chegam na casa, após tomarem um banho, limpando o corpo físico e deixando as sujeiras do exterior para fora do terreiro. Caso a pessoa não consiga tomar banho, ela deve ao menos trocar de roupa. Esse traje possui menos diferenciações de hierarquia, se comparado aos de festa, mas podemos notar que os trajes de ração das ialorixás e dos babalorixás são mais decorados, com mais detalhes e cores. Já a distinção de gênero costuma ser mais marcada, remontando à diferenciação de trajes negros do século XVIII e XIX e à formação do candomblé em si. 3.1.1. Roupa masculina Para os homens, a roupa de ração costuma ser uma camiseta de meia malha de algodão ou camisa e uma calça de algodão na altura do tornozelo ou um pouco mais curta, com um cordão passando por uma canaleta para amarrar na cintura/cós. Dentro do terreiro, dependendo dos trabalhos realizados, o homem utiliza torço ou fìlà (gorro africano). Existem casas de candomblé no qual os homens não podem usar torço, nem pano da costa, fazendo com que o uso dessas peças gere um debate acerca dos códigos de vestimentas e gênero. Em alguns terreiros, o torço para homens é mais simples, apenas para proteção da cabeça, do orí. A parte de cima também pode ser uma bata larga (camisolão), mais leve (Souza, 2007). A camisa masculina pode vir com uma gola redonda que no centro-frente possui um recorte em formato de “V”. Diferente de “camisas sociais” que possuem gola e colarinho, este formato com “V”, em muitos modelos, não vem acompanhado de botões. 3.1.2. Roupa feminina De acordo com Isabela Rezende, no terreiro de candomblé Axé Ilê Obá, as roupas de ração que as mulheres vestem seria: “uma camiseta ou um camisu, o pano da costa, uma saia, o calçolão e o ojá” (Rezende, informação verbal) 38 . 3.1.2.1. Calçolão Já as mulheres vestem um calçolão de algodão (Figura 8) ou bermuda, como roupa interior, isto é, como uma peça vestida por baixo de outras. As roupas interiores no século XIX eram nomeadas como roupas brancas, incluindo chemises e calçolões. No candomblé, o termo “roupa branca” se refere à conjunto de peças brancas, seja para os ritos cotidianos do terreiro, 38 RAMPAZI, Luana; REZENDE, Isabela. Entrevista. [12 mar. 2023]. Online. Entrevista concedida a Aymê Okasaki. para abiãs e iaôs, filhos e filhas de Oxalá, ou roupas utilizadas nos ritos dos orixás do branco, os orixás fun-fun. O calçolão costuma ser curto, na altura do tornozelo, com cordão ou elástico que se amarra, saindo por uma canaleta no cós. O ateliê baiano Vista Axé separa os comprimentos por hierarquia, sendo mais longos para abiã e iaô e mais curto para ebômi. A modelagem costuma ser larga, não justa no corpo; para permitir a movimentação, e os tecidos não possuem muita elasticidade (não costumam ser malhas, ter elastano e não são cortados no viés). O calçolão da roupa de ração não costuma ter entremeios ou bordados, sendo mais simples, com tecido de algodão ou Oxford (ou bordados muito sutis e pequenos, como de laise). O calçolão no traje das mulheres é usado por baixo da saia. Diferente da saia, o calçolão necessita de um maior conhecimento para corte do gancho, nos entrepernas (a cintura costuma ter a mesma circunferência do quadril, sendo ajustada apenas quando o cordão é amarrado, no cós). Figura 8 - Desenho técnico de calçolão, com renda de bico da barra Fonte: da autora (2023). 3.1.2.2. Saia As saias do candomblé (seja das roupas de ração ou de festa) trazem influências diretas dos trajes utilizados por mulheres negras no século XIX. Por este motivo, é necessário analisarmos, primeiramente, uma das poucas peças museais que foram vestidas por estas mulheres. Desta maneira, será possível compreender as aproximações tanto em modelagem quanto na estética visual dos tecidos empregados. O Instituto Feminino da Bahia é uma das poucas instituições museais do Brasil (Além do Museu Imperial de Petrópolis) que preserva trajes originais de escravizadas, como é o caso de três conjuntos de Florinda Anna do Nascimento (Figura 9), a Folô. As peças foram a leilão em 1946. Apesar das peças não terem uma data de uso, sabe-se que Folô “carregou o Dr. Ribeiro dos Santos, nascido em 1841”, e que ela faleceu em 11 de maio de 1931 (Peixoto, 2003). Figura 9 - Trajes de negras do século XIX, do Instituto Feminino da Bahia Fonte: Peixoto (2003, p. 41). Alguns dos trajes de mulheres negras do século XIX, que compõe o acevo do Instituto Feminino da Bahia, estiveram em exposição itinerante no Museu Afro-Brasil, de São Paulo, no qual pude visitar e registrar algumas imagens (Figura 10), e verificar algumas características: os tecidos estampados das saias, já eram tecidos industriais. As saias (que também foram pesquisadas por Aline Monteiro, em 2012, na pesquisa Para além do “Traje de Crioula”: um estudo sobre a materialidade e visualidade em saias estampadas da Bahia oitocentista), contavam com bordados de motivos florais e arabescos na barra e próximos à cintura, com pontos regulares e padrão com repetições regulares (raportadas) que possivelmente foram feitos à máquina. Estas características reforçam que seriam trajes produzidos na segunda metade do século XIX. Além de serem trajes da Bahia, local mais urbanizado na época. De acordo com os registros do Instituto Feminino da Bahia, as saias azuis e rosa, da Figura 10 pertenciam a pessoas diferentes, apesar de suas medidas serem muito próximas. As duas saias possuem uma parte superior franzida (que no candomblé é comumente chamada de pala, mesmo que tenha um franzido), o corpo da saia em si, e um babado franzido na barra. Ambas possuem diversos recortes verticais, que ficam pouco perceptíveis por conta das estampas. Estes recortes verticais auxiliam na união de vários tecidos para que se tenha um tamanho (e consequentementeVestiu-as belíssimos panos e fartos laços, enfeitou-as com joias e coroas. O ori, a cabeça, ela adornou ainda com a pena ecodidé, Pluma vermelha, rara e misteriosa do papagaio da costa. Nas mãos as fez levar abebés, espadas, cetros, e nos pulsos, dúzias de dourados indés. O colo cobriu com voltas e voltas de coloridas contas e múltiplas fieiras de búzios, cerâmicas e corais. Na cabeça pôs um cone feito de manteiga de ori, finas ervas e obi mascado, com todo condimento de que gostam os orixás. Esse oxo atrairia o orixá ao ori da iniciada e o orixá não tinha como se enganar em seu retorno ao Aiê. Finalmente as pequenas esposas estavam feitas, estavam prontas, e estavam odara. As iaôs eram as noivas mais bonitas que a vaidade de Oxum conseguia imaginar. Estavam prontas para os deuses. Reginaldo Prandi (2001, p. 527-528) Okasaki, Aymê. O vestir do Axé Ilê Obá: os trajes de um terreiro de candomblé paulista. 2024. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2024. O objetivo desta pesquisa é refletir acerca do vestuário do terreiro de candomblé Axé Ilê Obá, o primeiro a ser tombado como patrimônio histórico em São Paulo. A proposta é analisar os trajes presentes desde a fundação da casa, perpassando pela sucessão dos seus três líderes religiosos. Caio Egydio — Pai Caio de Xangô — iniciou o terreiro como Congregação Espírita Beneficente Pai Jerônimo, em 1950, assumindo como babalorixá (sacerdote líder de um terreiro de candomblé queto) até sua morte em 1985. Ele foi sucedido por sua sobrinha Sylvia Egydio — Mãe Sylvia de Oxalá – que esteve à frente de 1986 a 2014. Após a morte de Sylvia, sua filha Paula Regina Egydio — Mãe Paula de Iansã — assumiu, ocupando o cargo de ialorixá (sacerdotisa líder de um terreiro de candomblé queto) de 2015 até a atualidade. Para analisar o vestuário dos candomblecistas do Axé Ilê Obá destas três fases, tomarei fontes que partem dos próprios adeptos: o livro O perfil do Aché Ile Obá, de Sylvia Egydio (1980), dissertações produzidas pelos adeptos da casa; e o acervo de imagens produzidas pelos fotógrafos oficiais que me foram cedidas para a pesquisa. A análise irá distinguir as roupas utilizadas no cotidiano do terreiro, nas festas públicas e os trajes dos orixás. A importância de analisar as mudanças nestas três fases é verificar o impacto estético que o babalorixá e as ialorixás promovem no vestuário dos adeptos daquele terreiro, segundo seu gosto pessoal, o orixá deste sacerdote, e suas relações pessoais com costureiros e ateliês que produzem roupas para a casa. Nesta análise observou-se, por exemplo, um uso maior de tons pastéis, enquanto Sylvia de Oxalá era ialorixá. Percebeu-se também o início do uso do wax print, atualmente, devido aos ateliês que empregam este tecido, fortalecendo esteticamente um movimento de (re)africanização dos candomblés. No entanto, percebe-se uma continuidade na forma e nas silhuetas, mesmo com a mudança dos líderes religiosos. Assim, entende-se como babalorixás e ialorixás influenciam o mercado de vestuário do candomblé. candomblé; Axé Ilê Obá; vestuário. Okasaki, Aymê. Axé Ilê Obá's dressing: the clothes of a Candomblé terreiro in São Paulo. 2024. Thesis (Doctorate) – Faculty of Philosophy, Letters and Human Sciences, University of São Paulo, São Paulo, 2024. The aim of this research is to reflect upon the clothes of the candomblé terreiro (place of worship) Axé Ilê Obá, the first to be recognized as a historical heritage site in São Paulo. The proposal is to analyze the garments present since the foundation of the house, spanning the successions of its three religious’ leaders. Caio Egydio — Father Caio of Xangô — initiated the terreiro as the Beneficent Spiritist Congregation Father Jerônimo in 1950, assuming the role of babalorixá (the leader of a candomblé terreiro in the queto tradition) until his death in 1985. He was succeeded by his niece Sylvia Egydio — Mother Sylvia of Oxalá — who led from 1986 to 2014. After Sylvia's passing, her daughter Paula Regina Egydio — Mother Paula of Iansã — assumed the position of ialorixá (the leader of a candomblé terreiro) from 2015 to the present day. To analyze the attire of candomblé practitioners from Axé Ilê Obá in these three phases, I will draw upon sources originating from the devotees themselves: the book O perfil do Aché Ile Obá by Sylvia Egydio (1980), dissertations produced by members of the house, and the collection of images provided by official photographers for this research. The analysis will differentiate the clothing worn in the terreiro's everyday life, during public celebrations, and the clothes associated with the orixás. The significance of examining the changes across these three phases lies in understanding the aesthetic impact that the babalorixá and ialorixás have on the costume of the terreiro's followers, influenced by their personal preferences, the orixá of the priest, and their personal relationships with tailors and workshops producing clothing for the house. In this analysis, it was observed, for instance, a greater use of pastel tones during Sylvia of Oxalá's tenure as ialorixá. The initiation of the use of wax print was also noted, attributed to the workshops employing this fabric, aesthetically reinforcing a movement of (re)Africanization within candomblé. However, regarding forms and silhouettes, a continuity is noticeable, even with the change of religious leaders. Thus, the influence of the babalorixá and ialorixás on the candomblé clothes market is understood. candomblé; Axé Ilê Obá; clothing. Mapa 1 – Iorubalândia ............................................................................................................. 47 Mapa 2 – Califado Sokoto e Estados vizinhos, em 1850 ......................................................... 106 Mapa 3 – Planta do terreiro Axé Ilê Obá ................................................................................ 113 Mapa 4 – Vista aérea do terreiro Axé Ilê Obá ........................................................................ 115 Figura 1 – Grupo de ogãs do Axé Ilê Obá ................................................................................ 54 Figura 2 – Iaquequerê do Axé Ilê Obá, Mãe Toloquê .............................................................. 56 Figura 3 – Pai Caio de Xangô no terreiro Axé Ilê Obá, vestindo mantos africanos. Apesar do boubou e filá indicar um traje (re)africanizado, na figura da direita Pai Caio de Xangô traz a cruz de Malta no peito, símbolo recorrente nas umbandas e candomblés, mas que costuma ser eliminado, por ser considerado um elemento sincrético, nos terreiros (re)africanizados. ......... 60 Figura 4 - Capa do catálogo digital de roupas Moda de Terreiro, do ateliê carioca Obirin Odara, lançado em maio de 2021 ......................................................................................................... 62 Figura 5 - Roupa de ração no terreiro Axé Ilê Obá, com a iá iká Jaci de Oxum, ao fundo. ...... 63 Figura 6 - Mãe Paula de Iansã com saia bordada com seu nome .............................................. 65 Figura 7 - Pano da costa, comprado da Feira de São Joaquim .................................................. 66 Figura 8 - Desenho técnico de calçolão, com renda de bico da barra ....................................... 68 Figura 9 - Trajes de negras do século XIX, do Instituto Feminino da Bahia............................. 69 Figura 10 - Trajes do Instituto Feminino da Bahia, em exposição no Museu Afro-Brasil, em São Paulo ......................................................................................................................................... 70 Figura 11 - Desenho técnico de saia de ração, com renda de bico da barra ..............................um volume) maior de tecido, visto que as tecelagens do período não tinham a largura padronizada que encontramos hoje nas tecelagens. Cada saia possui um bolso lateral, para a mão direita, e o fechamento no centro-costas. Vale ressaltar, inclusive, que a característica dos bolsos ainda se apresenta nos axós contemporâneos. Figura 10 - Trajes do Instituto Feminino da Bahia, em exposição no Museu Afro-Brasil, em São Paulo Fonte: Foto: Aymê Okasaki. Acervo de Aymê Okasaki (2022). Nos axós de ração, as mulheres vestem saia comprida rodada (sem anágua), muitas vezes com renda simples costurada na barra, ou um babado do mesmo tecido, como vemos no desenho técnico da Figura 11. Para que a saia não fique levantando a barra, durante as danças e saudações, é comum que as barras sejam largas (cerca de 10cm) e pesadas. As saias de ração não costumam levar fitas de cetim costuradas na barra, indicando quantos anos de iniciação a iaô possui (isto ocorre nas saias usadas nas festas, pois simboliza um código, principalmente para aqueles que não são filhos da casa, e ali conseguem ter uma leitura dos códigos de hierarquia de cada um). A saia pode ser vestida subindo o cós para que fique acima do busto, e normalmente tem cordão ou elástico em uma canaleta no cós, para que possa ser ajustada para diversos tamanhos (é praticamente inexistente a presença de aviamentos de fechamento como zíperes, velcros, botões, colchetes ou ganchos nos candomblés). Um dos motivos é pela dificuldade de se movimentar, dançar etc., com tais aviamentos que podem quebrar, abrir ou se romper. Figura 11 - Desenho técnico de saia de ração, com renda de bico da barra Fonte: da autora (2022). A presença de canaleta, para ajuste na cintura com cordão é uma característica que se vê preservada nas saias, anáguas e calçolões de candomblé. As saias de candomblé mantêm esta semelhança de fechamento com os modelos utilizados por mulheres negras no século XIX. Manter o ajuste na cintura por meio de cordões auxilia que tais peças se ajustem a diferentes tamanhos de corpos. Na pesquisa de doutorado de Luís André do Prado (2019), acerca da produção do vestuário no Brasil, o historiador assinala que a produção de roupas prontas brasileiras se inicia para vestir os escravizados, no início do século XIX, como mostra o anúncio de jornal da época (Figura 12). Isto é, tais trajes precisavam ter tamanhos padronizados, e fechamentos que vestiam os diferentes corpos. Figura 12 - Jornal da Tarde, anno I, nº 138, Proprietário Angelo Thomaz do Amaral. Rio de Janeiro, 1869 Fonte: Prado (2019). É possível encontrar bolsos laterais nessas saias. Saias de mulheres negras no século XIX já tinham bolsos laterais (como os modelos do acervo do Instituto Feminino da Bahia), e isto pode demonstrar características interessantes de independência de movimentação. No terreiro, no cotidiano, essas mulheres estão desenvolvendo diferentes atividades, o que torna funcional a presença de bolsos (algo que infelizmente na moda casual não-religiosa feminina, ainda é uma questão em debate; diferenciando as calças masculinas, sempre com bolsos para guardar dinheiro, objetos e pertences). O bolso marca também a independência de quem veste a peça, para carregar seus próprios pertences. Marcas como Alaafia Moda Africana, em São Paulo, aplicam bolsos das saias de ração como um dos diferenciais de mercado. Outras marcas, como a baiana Vista Axé, não colocam bolsos nas roupas de iaô e abiã, demarcando a hierarquia também nos detalhes das peças. A modelagem dessas saias (e das utilizadas em dias de festas e também as saias das divindades) são cortadas na trama do tecido, apenas medindo qual seria a “roda” total (o tamanho é medido pelo urdume – como mostra a Figura 13), fazendo a canaleta acima da pala, para passagem do cordão (nomeio como pala, no entanto esta parte também é franzida pelo cordão, tendo medida superior que a circunferência da cintura), sendo o comprimento da saia basicamente a largura do tecido (dividido entre corpo da saia e pala). Por utilizar a largura do tecido, o comprimento da saia também é influenciado pelas larguras dos teares (as larguras foram se alterando, até uma quase padronização de 140cm para tecidos planos, atualmente). A partir deste ponto, vale ressaltar o uso do tecido no fio, unindo diversas partes de tecido para alcançar uma largura maior (como ocorreu nas saias da negra Folô, do século XIX, presentes no Instituto Feminino da Bahia). O corpo da saia costuma ser maior que a pala, sendo necessário fazer pregas ou franzidos (para saias de ração, anáguas e da umbanda, é mais comum o franzido, já nas saias de festa e das divindades, as pregas são mais recorrentes, mantendo a profundidade e distância entre as pregas faca, que são tombadas todas para um mesmo lado). Figura 13 - Estrutura de um tecido plano Fonte: da autora (2021). As pregas do corpo da saia costumam ser chamadas de pregas garfo, como ressalta a costureira de roupas de candomblé Anália Justino 39 : “Para santa mulher é prega, com preguinhas. E é preguinha com a medida de dois dedos, a medida do garfo. Às vezes eu faço com o garfo, mas eu nem preciso mais pois já sei a medida, eu já tenho a base” (informação verbal). Isto porque uma técnica que se encontra no meio termo das produções em série (que possuem calcadores de máquina de costuras que automatizam este processo) e as técnicas de dobra de cada prega individualmente (compatíveis com produções únicas, sem grande quantidade), é o “truque” de fazer a dobra de cada prega, enganchando o tecido com um garfo e virando-o. Isto garante que todas as pregas tenham o mesmo tamanho, sem a necessidade de dobrá-las individualmente. Trata-se de uma técnica que costureiras possuem, antes do uso de máquinas de costura complexas e/ou automatizadas (eletrônicas). São as tecnologias ancestrais que mulheres costureiras de axós preservam. 3.1.2.3. Zinguê Na composição feminina é comum o uso, por baixo do camisu, do zinguê (faixa longa de tecido, para enrolar o tronco, com uma volta e meia, e largura que cobre o tórax, deixando as 4 pontas soltas em um laço), que pode ser substituído por um top ou camiseta. Importante notar 39 JUSTINO, Anália. Entrevista. [21 nov. 2019]. Itaquaquecetuba Entrevista concedida a Aymê Okasaki. como uma peça da Moda Básica e Casual do cotidiano, a camiseta, adentra os terreiros, mas também tem sua presença reconhecida pelas marcas, como mostra a campanha da marca Hering, que traz Mãe Carmem de Oxum vestindo uma camiseta branca (Figura 14). Para além da camiseta branca, todas as demais peças (pano da costa de richelieu, pano de cabeça e saia, não são da marca, nem recebem as creditações de seus produtores. Figura 14 – Campanha da marca Hering, com Mãe Carmem de Oxum Fonte: Hering (2022). O zinguê é utilizado no cotidiano pelas mulheres e em algumas poucas obrigações para os homens (Souza, 2007). Faixas enroladas que deem sustentação para o busto durante atividades de grande movimentação, são antigas na história da indumentária e existiram em diversas civilizações. Um exemplo é o strophium, que pode ser visto no mosaico siciliano da Figura 15, do século III-IV A.E.C., que está na vila Piazza Americana. Era um tecido enrolado no busto para sustentá-lo durante atividades de ginástica (estrutura de peça que não permanece para as roupas das mulheres cristãs europeias da Idade Média, com uma peça voltada para cobrir apenas os seios, retornando apenas na Europa Gótica) (Braga, 2007). Este apontamento é apenas um alerta para que não seja generalizado que o traje do candomblé seria uma “cristalização” do traje europeu dos séculos XVIII-XIX. Peças de tempos e lugares distintos possuem semelhanças em formas, que se entrecruzam na estética do vestuário do candomblé. Figura 15 - Strophium, no mosaico siciliano,do século III-IV A.E.C., na vila Piazza Americana Fonte: João Braga (2007). Contudo, cabe ressaltar que o zinguê não é uma peça de uso comum para as mulheres no terreiro Axé Ilê Obá, conforme a própria ialorixá Paula de Iansã aponta em entrevista: “O zinguê a gente usa mais para o orixá. Porque você o coloca aqui no peito, como se fosse um top. E depois vem os laços. Então as pessoas geralmente usam sutiã mesmo. Mas também não vejo nenhum problema ter zinguê” (informação verbal) 40 . 3.1.2.4. Camisu O camisu ou camisa de crioula é uma peça com variações quanto à modelagem, porém um de seus modelos nos remete diretamente à “chemise” já utilizada no século XIX no Brasil. O termo camisu já era empregado no início do século XX para tratar dos trajes de mulheres negras, conforme esta citação de Donald Pierson: 40 EGYDIO, Paula Regina. Entrevista. [05 jul. 2023]. São Paulo. Entrevista concedida a Aymê Okasaki. Ainda em 1990, trabalhadores negros da Bahia continuavam a usar roupas brancas, de grosseiro tecido de algodão, que lembravam a Rodrigues os camisus Nagôs. A vestimenta baiana, de origem parcialmente africana, era largamente usada pelas mulheres negras, que costumavam também carregar seus filhinhos [...] às costas, comum grande pano (Pierson, 1945, p.131). De um traje interior, passamos a ver esta peça no terreiro como peça principal, externa. Cabe comparar como distintas peças de traje interior do século XVIII-XIX, as chamadas roupas brancas (cor base nas roupas do candomblé), se adaptaram tomando novas formas e estando presentes no traje de candomblé: camisu, anáguas, calçolão. A chemise ou camisola dos séculos XVIII e XIX, era uma peça de roupa confeccionada em algodão branco, com mangas curtas e justas, e uma bainha mais curta que o vestido. Era usada entre 1795 e 1820 para proteger as roupas externas da transpiração. As formas básicas de um camisu são quadradas e retângulos, com curva apenas no decote da gola cabeção. A peça é composta do corpo/parte principal (normalmente de rendas ou bordados vazados), recorte no ombro, uma fralda (parte inferior da camisa com tecido plano fechado, que pode ter largura maior e vir com pregas na junção com o corpo), mangas (com cabeça da manga reta e forçando uma cava também reta, podendo ter duas ou três pregas no final da manga, para ajustá-la ao braço), lenço ou taco (presentes também em camisas do século XVIII, um quadrado dobrado, que forma um triângulo, costura no encontro da cava, cabeça da manga e lateral do corpo da camisa, ampliando a cava e fornecendo maior anatomia a peça – alguns ateliês, como o ateliê baiano Vista Axé, aplicam os tacos no camisu feminino e também na bata masculina), gola cabeção com rendas ou bordados, como mostra a citação de Catarina, filha do terreiro baiano Axé Opô Afonjá, e Figura 16: [...] quanto mais tecido diferente você põe, mais bonita ela fica. Porque elas usavam retalhos de pano. Quando sua senhora dava, elas perguntavam se elas queriam, porque tinha senhora que era boa para os seus escravos. Eles eram escravos, mas elas tratavam eles com um pouco de respeito e dignidade, então elas davam. Quando não faziam os bordados, elas juntavam e aí colocavam os “pedacinhos” quando faziam uma camisa de crioula. O início é assim [...] (Nascimento, 2016, p. 80-81). Figura 16 – Desenho técnico de camisu tradicional Fonte: da autora (2022). O corpo e mangas do camisu, quando utilizados nas festas, normalmente são rendados ou com bordados e a gola é estruturada. A fralda costuma ser sempre com tecido plano não vazado, pois ela fica por dentro da saia, chegando até a altura do joelho. Devido ao fato do camisu ser rendado na parte superior (ficando transparente na região do busto), um zinguê pode ser utilizado por baixo, como roupa interior (roupa íntima), assim como alguma outra peça: regata, sutiã etc. Já no traje de ração, o camisu é com tecido plano simples, não vazado e por isso, não transparente (Nascimento, 2016). 3.1.2.5. Pano da costa Ainda é visível no traje de ração de algumas casas (não de todas), o uso dos panos da costa. Na Bahia, a casa matriz Axé Opô Afonjá coloca o pano da costa como peça obrigatória no traje de ração (o que se fortalece no fato de que o terreiro é um dos locais que possuem teares, do projeto Casa do Alaká, para confecção da peça). Segunda a antiga ialorixá do terreiro, Stella de Oxóssi, o pano é uma peça feminina de valor histórico, que faz referência, juntamente com o torço, ao vestir africano (Souza, 2007). O pano da costa ou pano de alaká, é uma espécie de xale, que pode ter diversas amarrações e usos. Este nome provém de dois significados, o primeiro se refere ao local de origem deste pano, confeccionado, a princípio, na região da Costa do Marfim. Ele veio exportado para o Brasil, onde ganhou tal designação. O comércio entre o Brasil e o continente africano, no século XVI, impulsionado pelos navegantes portugueses, trouxe, não apenas o pano da costa, mas diversos produtos provenientes da costa atlântica africana: inhame da costa, palha da costa, búzio da costa, a pimenta da costa (ataré) e o pano da costa (alaká ou pano de alaká), além de outros produtos que apesar de não receberem o nome “da-costa”, também participavam deste comércio transatlântico, como o obi (noz-de-cola). No final do século XVIII, a cidade de São Salvador, na Bahia, recebeu uma carga de 150 mil panos da costa, que reforçavam a identidade africana, por meio das formas e estilos, no vestir dos negros da colônia (Lody, 2015, p. 33). Segundo Patrícia Ricardo Souza (2007), o tecido de algodão de alta gramatura teria chegado ao Brasil, vindo da “Costa dos Escravos”, contudo, a autora Silvia Escorel (2000, p. 54) aponta alguns grupos específicos que teriam criado estes panos, os tecelões mandinga e fula; ademais dos tecelões jalofos, sonikés, biafares e sossos, que distribuiriam entre mercadores diulas (em sua maioria do grupo étnico mandinga). Contudo, é importante notar que a tecelagem em faixas estreitas estava presente em diversas áreas africanas, como entre os grupos iorubás e ashantes, além dos panos caboverdianos, muito comercializados pelos portugueses (Carreira, 1983). Cabo Verde se torna grande fornecedor deste tecido, cuja tecnologia foi comercializada pelos portugueses, que estimularam sua produção no arquipélago, por ser uma mercadoria lucrativa com boa demanda na Bahia. Já o segundo significado é referente à sua utilização, principalmente de xale, medindo aproximadamente 3m x 90cm, jogado nas costas. Essa utilização é significativa, pois exprime a altivez do ator social que a vestia no período. Isto porque o pano da costa não é preso por fivelas ou broches, ele é apenas colocado sobre um dos ombros, ou enrolado na altura do busto ou do ventre. Se o usuário trabalhasse na lavoura ou no engenho, o pano cairia durante as atividades, além do incômodo que seria manter um pano limpo sem o enroscar em algo ou sujá-lo no chão (Torres, 2004, p. 417-418). Tradicionalmente, eles eram feitos de algodão, lã, seda, ráfia ou da mistura deles; porém hoje existem panos da costa de diversas fibras, inclusive sintéticas. O pano tradicional era composto por cerca de seis tiras de aproximadamente 15cm de largura, reunidas pela ourela. Tanto na África como no Brasil, quem fosse usar a peça era quem unia as tiras. Por ser produzida em tear estreito, a tira poderia ter padronagens listradas, Madras (xadrez) e eventualmente motivos mais geométricos. Atualmente, podemos encontrar panos da costa de tecidos inteiros, visto que as larguras dos tecidos industriais permitem a utilização de uma única peça. Os panos da costa atuais podem ter tecidos, cores, texturas, apliques, rendas e bordados diversos (o que estiver ao alcance, dada a tecnologia da indústria têxtil). Já quanto a seus usos, tem funções mais delimitadas, apesar de numerosas(Souza, 2007). Quanto à padronagem listrada, cabe uma ressalva por seu significado ao longo do tempo. Apesar desta pesquisa ter um foco na análise dos trajes de ração, festa e dos orixás; as roupas dos encantados, que o Axé Ilê Obá preserva de seu tempo de terreiro de umbanda, também possuem características específicas, como é o caso das roupas de Exus, em particular a roupa de malandro. Como é possível visualizar na Figura 17, o traje de malandro traz alguns signos, como o chapéu panamá e a blusa listrada. As listras na horizontal fizeram parte de um grande estudo de Michel Pastoureau, no livro O Pano do Diabo (1947), no qual o autor relacionou o quanto esta padronagem esteve associada a grupos marginalizados: judeus e heréticos do medievo, calças listradas dos jovens africanos obrigados a trabalhar como servos do alto patriarcado veneziano do século XVI, uniformes dos escravizados pajens (jovens que acompanhavam nobres, faziam atividades de levar recados etc.) nos anos de 1500, presidiários. Apesar da padronagem sofrer alterações de leitura após o século XIX (diferenciando listras horizontais e verticais, e quais tipos não seriam “grades” simbólicas de exclusão), ela se mantém no imaginário social como uma demarcação visual de distintos grupos. A entidade Exu, e os povos de terreiro também sofrem com a marginalização da sociedade. Desta forma, o uso dessa padronagem se torna muito simbólica. Figura 17 – Malandro vestindo camiseta listrada na horizontal, na Festa de Exu 2023, no Axé Ilê Obá Fotografia: Marcondes (2023b) Retomando aos panos da costa em si, as mulheres instituíram uma função prática para eles, amarrando-os nas costas para carregarem os bebês, como se pode ver na Figura 18, já presente nos terreiros. Na Figura 18, novamente temos a presença das listras no pano da costa. Não se pode negar que esse tipo de utilização, chamada bamburo (termo mandinga para “trazer ao torso”), o qual o autor Antônio Carreira (1983) também denomina como pano de lambu ou bambu, também foi utilizado por muitas mulheres escravizadas no Brasil, para carregarem seus filhos ou crianças brancas que deveriam cuidar. Mas essa forma de utilização já existia na África (Torres, 2004, p. 430-431). Figura 18 - Equede de Mãe Sandra de Xangô, durante um toque, em um candomblé (re)africanizado. Foto de Vagner Gonçalves da Silva, de 1988 Fonte: Vagner Silva (1995, p. 283). Assim, o pano da costa é utilizado de acordo com a atividade. Para o trabalho cotidiano, nos terreiros, o pano pode ser enrolado como uma faixa na cintura, quando são desempenhadas tarefas em que precisassem de mais movimentação (Lody, 2015, p. 34). As iaôs utilizam o pano da costa enrolado junto ao peito, em caráter protetivo, especialmente porque estão no desenvolvimento de seu processo iniciático, no qual o corpo também está em aprendizagem acerca do funcionamento dessa conexão como sagrado, com as divindades. Esta amarração cobre, protegendo o corpo (seios, órgãos internos femininos), e tem um uso mais recorrente entre mulheres (também existe o uso da peça por homens, apesar de algumas casas reservarem o uso exclusivamente para mulheres) (Souza, 2007). 3.1.2.6. Ojá O torço, ojá ou pano de cabeça também é utilizado. É amarrado bem preso à cabeça, com pouco volume, muitas vezes em amarração em formato de rodilha, remetendo ao uso para carregar objetos sobre a cabeça, tal qual as negras de ganho 41 faziam. A forma na qual um ojá é amarrado também indica hierarquia. De acordo com o ateliê baiano Vista Axé, a abiã e a iaô precisam cobrir todo o cabelo com o ojá. O torço que é utilizado por todos os candomblecistas 41 Escravizadas e alforriadas africanas ou descentes, que trabalhavam como vendedoras nas cidades brasileiras, muito registradas em fotografias do século XIX. no traje de ração, é mais simples (normalmente lisos, mas caso tenha rendas ou bordados nas pontas, eles são estreitos) que o utilizado nas festas, sem ser engomado. O pano na roupa de ração costuma ser de algodão branco, mas pode ser de outros tecidos, desde que branco, e costuma ter um tamanho de 30cm-50cm de largura e 1,5m-3m de comprimento (a faixa deve ser suficiente para as amarrações). O uso do torço branco é um dos signos mais identitários das comunidades tradicionais de terreiro, servindo de proteção para o orí (cabeça). E esse é o meio de conexão e comunicação com o aiê. No entanto, como um signo polissêmico – como já apontava Silvia Escorel (2000), em sua pesquisa, ao analisar a leitura que associava à servidão feita pelos aristocratas portugueses, em contraste com o símbolo de distinção que era dado no antigo Oriente Médio –, este também é utilizado no Brasil como identificador para aqueles que cometem racismo religioso. O pano de cabeça utilizado como símbolo de resistência cultural e religiosa, também se torna um alvo da intolerância e racismo religioso, quando vestido pelos candomblecistas, especialmente quando estes são negros. São elementos do candomblé, que dialogam com outras esferas da(s) cultura(s) nacional(ais) movimentando um mercado 42 e produzindo simbolismos, que historicamente continuam a serem reprimidos e perseguidos; especialmente quando seu uso extrapola os muros dos terreiros (em diversos momentos de preceito, iniciáticos, é necessário o uso do torço, mesmo fora do terreiro). A repressão teve diferentes agentes ao longo dos anos, desde o Brasil Colônia 43 , Império e República. A repressão oficial governamental (com a proibição de templos não católicos em 1824, o crime de espiritismo em 1890 ou o artigo 284 do código penal, contra curandeirismo) como as reformas constitucionais foram substituídas por outros meios. Atualmente, igrejas neopentecostais e grupos do crime organizado são as instituições que realizam os ataques mais violentos. E sendo o pano de cabeça um meio visual identitário, o reconhecimento dos candomblecistas por meio de suas vestes tornou-se perigoso em diversos ambientes. São casos de violência como o da menina Kailane Campos, que foi agredida com uma pedra na cabeça, enquanto caminhava no Rio de Janeiro, com suas vestes litúrgicas, em 2015; ou a proibição de vestir branco, de usar o torço, em locais comandados por traficantes que não toleram as comunidades tradicionais de terreiro 44 . Por isso, o uso do pano de 42 Importante ressaltar a recente iniciativa em redes digitais, chamado #blemoney, tratando do mercado de produtos voltados ao candomblé, tendo casas como o Centro Cultural Eyin Osun apoiando o movimento. 43 Quanto ao vestuário, já havia proibições para negros (escravizados ou libertos), com a Pragmática de 24 de maio de 1749, capítulo IX, no qual se proibia o uso de joias e tecidos finos. 44 Esses casos são noticiados pela mídia há muitos anos: https://oglobo.globo.com/rio/traficantes-proibem- candomble-ate-roupa-branca-em-favelas-9892892; https://blogs.oglobo.globo.com/ancelmo/post/no-rio- traficantes-proibem-moradores-de-usar-branco-por-remeter-candomble-e-umbanda.html; cabeça, do traje de ração e vestes do candomblé como um todo continuam sendo uma corajosa declaração pública contra o racismo religioso 45 . O torço árabe que protegia a cabeça contra o sol, dentro dos candomblés ganha distintas amarrações (muitas delas comunicam a hierarquia na casa), formatos variados para além das faixas, ornamentos diversos (pontas de crochê, rendinhas finas de algodão, sintéticas ou de bilro; contudo, ainda mais simples que os torços utilizados nas festas públicas), sendo vestido não apenas para proteção do orí, mas como uma afirmação identitária e religiosa. Importante ressaltar que o pano de cabeça aparece também fora do candomblé, em outras manifestações culturais afro: no maracatu pernambucano, nos grupos congadeiros mineiros, nos blocos como Ilê Ayiê (que inclusive realiza oficinas de amarração de torços),entre tantas outras manifestações (Souza, 2007). A depender da amarração do ojá, são criadas formas e silhuetas (como mostra as distintas amarrações, desenhadas por Carybé na Figura 19). Aquelas mais volumosas e estruturadas, normalmente utilizadas por ialorixás e pessoas de altos cargos, podem ser vistas tanto nas festas dentro dos terreiros, quanto em aparições públicas, como símbolo identitário dos povos de terreiro. Nos ritos fúnebres, o torço deve cobrir toda a cabeça (devido a conexão da cabeça com o plano dos antepassados), formando uma silhueta triangular. Muitos terreiros adotam a amarração do pano de cabeça engomado com duas pontas levantadas (formato de “orelhinhas” ou asa de borboleta, símbolo da feminilidade) para pessoas que tenham orixás femininas como regentes; enquanto para aquelas que tenham orixás masculinos como regentes, o pano de cabeça fica com apenas uma ponta levantada (Souza, 2007). Figura 19 - Amarrações dos panos de cabeça, desenhados por Carybé Fonte: José Valladares (1952). http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/06/menina-vitima-de-intolerancia-religiosa-diz-que-vai-ser- dificil-esquecer-pedrada.html 45 Utilizo o termo racismo religioso, em contraste a intolerância religiosa, compreendendo que esse preconceito, no Brasil, possui uma incidência racializada, contra religiões de matriz africana; mesmo quando os ataques são direcionados a pessoas brancas nessas religiões. Essas composições do traje de baiana (saia com anáguas, camisu, pano da costa, pano de cabeça etc.) e suas silhuetas, têm maior permanência histórica, isto é, não tiveram tantas modificações quanto a quais peças eram utilizadas. Existem aproximações nas modelagens e formas das peças com o que é possível visualizar nos trajes de mulheres negras no Brasil do século XIX, que podemos ver nas fotografias dos chamados carte de visite (litogravuras e fotografias de Christiano Júnior, Marc Ferrez, Militão, Alberto Henshel, Victor Frond entre outros). Já outros elementos como os tecidos empregados e suas estampas, tipos de costura e aviamentos, estes se modificaram muito do que era encontrado nas fotografias do XIX, se comparado ao que temos nos trajes de baiana contemporâneos. 3.1.3. Cafetã e abadá Por fim, o abadá também pode ser utilizado como roupa de ração (independente do gênero), se for confeccionado em tecido mais simples, sem bordados. Sua estrutura é retangular e longa, como mostra a Figura 20, e é utilizada normalmente com calça ou calçolão. Figura 20 - Desenho técnico de cafetã longo Fonte: da autora (2023). As roupas utilizadas nas festas públicas ou xirês são trajes mais trabalhados, com forte marcação hierárquica, e que seguem as cores e estampas do orixá que se está cultuando naquele dia. São nas festas públicas, os xirês, que a demarcação hierárquica se mostra mais evidente e marcada. 3.2.1. Roupa feminina No traje feminino, chamado de traje de baiana (esquema com a composição do traje na Figura 21) tradicionalmente estão presentes o calçolão; as anáguas; saia longa pregueada, com pala e cordão no cós (normalmente estampada ou de tecidos coloridos nas cores dos orixás do dia daquela festa pública, ou branca para os não-iniciados); bata (para mulheres de alta hierarquia); camisu rendados ou bordados (os candomblés baianos mantêm golas mais altas e estruturadas); pano da costa (pano-de-alaká); banté amarrado no busto; torço (ojá ou pano de cabeça, no mesmo tecido que o pano da costa); chinelas ou mule; além dos fios de contas ou ilequês (Souza, 2007). A nomenclatura de baiana para a composição deste traje, advém do vestuário de mulheres negras na Bahia, e no século XIX é possível encontrar registros sobre tais trajes, como o relatado por Donald Pierson (1945): “e uma mulher vestida com “saia grande” [...] Grande saia bufante, ainda usada por muitas pretas baianas. A época, aproximadamente 1895” (Pierson, 1945, p 303). Figura 21 - Composição do traje de baiana Fonte: da autora (2021). Mules (como os que aparecem no centro da fotografia da Figura 22, no Axé Ilê Obá da década de 1980) são calçados femininos que não possuem a parte detrás, facilitando o momento de retirar os calçados. São calçados com ponta mais fina, e em uma festa, também demarcam hierarquia, sendo tradicionalmente utilizadas por equedes, ou por ebomis no momento de assistência no barracão. Figura 22 – Mule no centro da foto, do dia 8 de março de 1986, na posse de Mãe Sylvia de Oxalá, como ialorixá do Axé Ilê Obá Fonte: Acervo Axé Ilê Obá (Fotografia cedida por Telma Witter, assessora do Axé Ilê Obá). Isabela Rezende, do terreiro Axé Ilê Obá, aponta para a diferenciação hierárquica, e para as diferenças com outras casas: Já dentro da roupa de festa, que a gente chama de roupa de barracão, a gente tem as diferenciações entre gênero masculino e feminino, e pela hierarquia. Começando lá de cima, tem a roupa que a nossa Ialorixá utiliza, que seria a baiana completa, com: ojá, bata, saia... Na nossa casa por exemplo, a gente não tem o costume de uma utilização muito tradicional, que é o camisu com a bata por cima, mas isso é uma coisa que a gente tem conversado bastante. Por exemplo, a gente conseguiu produzir uma roupa recentemente que a pessoa utilizou assim e a gente ficou muito feliz de ver e esperamos que isso possa voltar. Mas, então, temos a saia, a bata, o pano de ombro que na verdade tem a mesma metragem de um pano da costa, mas fica a critério da pessoa se ela gostaria de usar como pano de ombro ou pano da costa, e o ojá (informação verbal)46. Um detalhe a se pontuar é que o traje feminino não possui blusas de manga longa, para os períodos de frio. Contudo, a cidade de São Paulo possui épocas do ano com frio extremo que faz com que as mulheres adaptem esta composição, acrescentando blusas de manga longa e gola alta brancas, por baixo do camisu. Em alguns casos, casacos aparecem nas roupas de ração ou enquanto essas mulheres não estão nas funções, contudo, sempre são blusas da Moda Casual, não feitas especificamente para candomblé, como as demais peças. 3.2.1.1. Anágua As saias, ojás, panos da costa entre outras peças, costumam ser muito engomadas. Alguns terreiros utilizam saiotes de materiais sintéticos para dar mais volume sem a necessidade de tanta goma (como o tule filó, lona sintética entre outros materiais, conforme Figura 23, com um saiote sintético), outros terreiros, como o Axé Ilê Obá, adotam várias anáguas (entre quatro e seis) de algodão bem engomadas. É aplicada uma mistura de água com amido de milho nos tecidos para que fiquem bem estruturados após a passadoria, um trabalho demorado que pode ser feito pela filha de santo, ou mesmo pelos ateliês que vendem roupas ou que trabalham apenas com lavanderia e passadoria de roupas de candomblé. 46 RAMPAZI, Luana; REZENDE, Isabela. Entrevista. [12 mar. 2023]. Online. Entrevista concedida a Aymê Okasaki. Figura 23 – Saiote de material sintético, no Mercadão de Madureira, Rio de Janeiro, em 2019 Fotografia: da autora (2019) A quantidade de saiotes pode variar também conforme a época. Atualmente, no terreiro Axé Ilê Obá, Luana Rampazi e Isabela Rezende apontam para o uso de quatro a seis anáguas. Georgia Prado ressalta que quando ela se iniciou no Axé Ilê Obá, em 2014: “Naquela época abiã não usava muito saiote, usava um ou dois no máximo” (informação verbal) 47 . Ou seja, a quantidade de anáguas dependerá na hierarquia e da época daquele terreiro de candomblé. Georgia Prado ainda aponta que iaôs utilizam quatro saiotes e ebomis mais que quatro, sendo os saiotes feitos de morim ou percal que é um tecido de grande largura, pois se utiliza para confecção de lençóis e roupas de cama, facilitando a confecção de peças com 4,5m de roda/largura total (ambos tecidos planos de algodão,sendo o percal um pouco mais caro e com trama mais fechada). As anáguas não precisam ter os mesmos comprimentos. Isto porque uma anágua mais curta auxilia no volume, quando combinada com uma anágua mais longa, conforme é possível visualizar na Figura 24, com as anáguas do ateliê Alaafia (a anágua maior está sobrepondo a menor). 47 PRADO, Georgia. Entrevista. [27 jan. 2023]. São Paulo. Entrevista concedida a Aymê Okasaki. Figura 24 – Saiotes do ateliê Alaafia, camisu Lojas Patuá Fotografia: Marcel Marques (2023). Mesmo sendo uma peça que não fica visível durante o xirê, as anáguas demandam muito cuidado e preparo, especialmente pelo processo de goma que elas devem passar. Mãe Paula ressalta o quanto este é um processo essencial e que demonstra todo o cuidado que se tem com os axós, fazendo com que a filha de santo, ao doar seu tempo na manutenção daquela roupa, doe também seu tempo aos próprios orixás que vestirão aquele traje: A dinâmica de hoje é surreal. Por exemplo, hoje a gente usa saiote de morim engomado com goma mesmo, de maisena. E já tentaram fazer com que eu mudasse e eu não mudo. Porque eu acho que é uma tradição da casa. Já me falaram: no terreiro tal tem entretela. Então você vai para o terreiro tal que é mais fácil. Mas aqui você vai ter que engomar, estender com Sol, passar porque aqui é assim que faz. Tem coisas que dá para ceder, mas tem outras que se eu cedo muito perco a essência e a característica da casa (informação verbal)48. A mestra em Ciências da Religião, Hanayrá Negreiros (Pereira, 2017), aponta esses trabalhos (quando uma equede auxilia os orixás a se vestirem, engomar as peças etc.) como a estética do cuidado. Hanayrá analisa as funções de macotas, pois pesquisou um terreiro de candomblé de nação angola. Makotas ou macotas são os mais velhos, chefes de linhagens, que 48 EGYDIO, Paula Regina. Entrevista. [05 jul. 2023]. São Paulo. Entrevista concedida a Aymê Okasaki. compõem os conselhos e confirmam o poder dos novos chefes, na região dos ambundos, atual Angola, antigo Dongo. No candomblé de nação angola, as macotas são o equivalente às equedes do candomblé queto; esse cuidado com as roupas se relaciona não apenas com o processo de engomar, mas com a confecção, lavagem e vestir das peças. Um cuidado muito associado às equedes, mas estendido a todos os filhos de terreiro, que dedicam seu tempo no cuidado desses aspectos estéticos, sejam eles visíveis aos demais em um xirê ou não. Por cima das anáguas há uma outra peça: o quebra-goma. Como as saietas de algodão são engomadas, existe o risco de elas repuxarem fios de tecidos mais delicados e impedir o caimento de saias rendadas. Por isso, por cima é colocada uma saia de cetim (podem ter outros materiais, porém o cetim é o mais comum) um pouco mais curta (cerca de 5cm), a chamada quebra-goma, que funciona como um fundo para a saia que é colocada por cima. Quebra-goma pode receber goma, desde que seja muito leve, sem enrijecer a peça. O quebra-goma não precisa de pala, apenas a canaleta para o cordão. Isto demonstra a quantidade de camadas que existe em um traje feminino de festa. 3.2.1.2. Bata Uma peça feminina importante, de forte demarcação hierárquica é a bata. Ela é vestida por cima do camisu e é mais alongada, sendo utilizada por mulheres com cargos, equedes, ebômis e pela ialorixá. A bata é tradicionalmente de renda ou bordados vazados, como richelieu ou guipure, mas quando produzida em tecidos mais simples (como algodão: percal, piquet) também é utilizada como roupa de ração, ou como também é chamada, roupa de função. Assim como o camisu, esta é uma peça confeccionada em branco, independente da hierarquia (não colorida), porém é possível encontrar alguns fios de bordado colorido como detalhes. A bata possui manga bem curta, apesar do formato ter variações (mais bufante, tulipa, japonesa ou de aba aplicada). E para que ela fique por cima das volumosas saias, sua modelagem tem formato de sino, sendo mais aberta na parte inferior. Para que a bata aumente a circunferência na parte inferior, são necessários recortes no corpo da peça. Um recorte recorrente é acima da linha do busto com a parte inferior podendo ser pregueada, franzida ou apenas cortada em evasê, conforme desenho técnico da Figura 25 e como aponta a confeccionista e ebômi do Axé Ilê Obá, Georgia Prado: Porque bata depende muito da altura do peito de cada mulher. Porque a bata não pode ficar embaixo [do peito]. As primeiras que eu fiz eu fiz embaixo. Eu olho hoje falo: que horrível. Quando ela é corte duplo. Agora quando ela é corte direto enviesado, é tranquilo. Mas eu não gosto de fazer desse jeito porque gasta mais tecido. E porque fica mais resíduo. Porque você a corta enviesada, então você inutiliza uma parte do tecido. Eu prefiro fazer a base aqui em cima, gasta menos, porque fica pouca coisa, só fazer ela dobradinha e cortar E depois fazer o resto franzido. [...] A bata feminina não [uso molde para cortar], porque ela é basicamente um recortinho aqui em cima, porque tem que fazer em cima do peito, até o final da cava (precisa ter a medida da altura da cava). E precisa saber até onde vai. Que elas, as mais velhas, falam que não pode ser muito grande. Quanto maior a bata, maior o tamanho da burrice (informação verbal)49. Figura 25 - Desenho técnico de bata feminina Fonte: da autora (2023). A fala acerca do comprimento reflete também outro ponto que costuma receber comentários dentro de um terreiro: ostentar mais do que a hierarquia permite (com mais tecido, com formatos distintos, ou tipos de tecidos que não sejam adequados às normativas da casa). Ou seja, deve-se vestir com cuidado e requinte dentro de limites, caso não queira ouvir comentários negativos ou repreendas de outras filhas da casa, da ialaxó, de mais velhas, ou mesmo da ialorixá ou babalorixá. Na Figura 25 é possível ver que a bata possui mangas mais curtas e cavas mais abertas, isso por ser uma peça utilizada por cima do camisu, em que as mangas do camisu e da bata demonstram esse efeito de camadas. Isto porque apesar do camisu ser uma peça interior nesta composição, ele também deve aparecer nos pequenos detalhes. 3.2.1.3. Banté, laços e atacãs Um destaque para as roupas de festa do Axé Ilê Obá é o banté, em formato de “cortina”, com um cordão para amarrar, muito utilizado pelas meninas crianças (Figura 26) e pelas mulheres abiãs. De acordo com a ebômi Georgia de Oiá: “até pode se usar pano da costa, mas 49 PRADO, Georgia. Entrevista. [27 jan. 2023]. São Paulo. Entrevista concedida a Aymê Okasaki. as mulheres têm o hábito de usar banté, que é aquela cortininha que você amarra. Quando é abiã só põe a cortininha, quando é iaô você amarra a cortininha e põe o laço em cima” 50 . Figura 26 – Banté de Maria Clara de Oxum, no Axé Ilê Obá Fonte: Instagram Egbomy Elaine de Oxalá (2023). A localização das amarrações dos laços/atacãs irá depender da hierarquia e do orixá da pessoa. De acordo com Georgia de Oiá: “para cada saia que eu faço eu tenho que fazer um laço, que é o laço da iaô que vem no peito, ou o pano de cabeça ou o laço que as ebômis usam na cintura, que fica meio caído” (informação verbal). A ialorixá Paula de Iansã reforça que esta é uma característica do traje feminino no Axé Ilê Obá, a utilização do laço amarrado na cintura 51 . Laços, atacãs e ojás, apesar de todos terem um formato de faixa longa, eles possuem pontas 50 PRADO, Georgia. Entrevista. [27 jan. 2023]. São Paulo. Entrevista concedida a Aymê Okasaki. 51 EGYDIO, Paula Regina. Entrevista. [05 jul. 2023]. São Paulo. Entrevista concedida a Aymê Okasaki. diferentes, sendo os laços com as pontas arredondadas e com babados (que podem ser de tecido, rendinhas etc., como mostra a Figura 27). Figura 27 – Desenho técnico de laço Fonte: da autora (2023). A ebomi Georgia Prado ainda ressaltaa diferenciação das pontas dos laços: No Axé Ilê Obá tem o lacinho na cintura. Se você é omó iabá você vai usar a ponta redonda, se você é omó curim você vai usar a ponta quadrada ou gravata. As iaôs, a mesma coisa, vai usar laço no peito se ela é filha de iabá, ela vai usar ponta redonda, se ela é filha de oboró vai usar ponta quadrada ou até a triangular, se for filha de Xangô (informação verbal)52 É importante destacar que os laços, atacãs e faixas também estão presentes nos trajes dos orixás, para além das composições dos candomblecistas. E suas amarrações identificam orixás oborós de orixás iabás. Os laços também estão presentes no que a ebomi Georgia Prado chama de axó ilê, a roupa que veste uma casa de candomblé. E têm uma roupa que a gente nunca fala, mas que é superimportante, que chamo de axó ilê, que é a roupa que vai na casa. As roupas, os laços que vão nos atabaques, que vai nas cadeiras, que vai em tudo. Onde dá para pôr laço a gente põe laço. O próprio alá, o alá é um grande ponto. As cortinas, porque tudo isso faz parte do ofício de uma costureira de axé. Costura tudo, toalha de mesa. Os ibás são todos vestidos. O quarto de santo é todo vestido. Tem roupa para tudo o que está no quarto de santo. A toalha que vai em cima do ibá para cobrir. É uma infinidade de roupa que vai em um terreiro (informação verbal)53. Os tecidos que vestem os ibás, os assentamentos, estão vestindo os próprios orixás, por isso carregam as mesmas características dos trajes das divindades paramentadas apresentadas nos xirês: mesmos materiais, cores, aviamentos etc., alterando suas proporções. Esta relação entre vestuário das pessoas e a casa em si, é uma teoria (teoria das cinco peles) já levantada pelo pintor e arquiteto austríaco Friedensreich Hundertwasser (Viena, Áustria, 15 de dezembro de 1928 - Queensland, Austrália, 19 de fevereiro de 2000). De acordo com Hundertwasser, todas as pessoas interagem com suas cinco peles: a epiderme natural, o vestuário, a moradia, a identidade social e o mundo. São camadas protetivas e comunicativas que se relacionam entre si. Ao longo da obra de Gilda de Mello e Souza (1987), a autora também reforça as relações da Moda com distintas linguagens artísticas e com a arquitetura, relacionando formas do vestuário do século 52 PRADO, Georgia. Entrevista. [27 jan. 2023]. São Paulo. Entrevista concedida a Aymê Okasaki. 53 PRADO, Georgia. Entrevista. [27 jan. 2023]. São Paulo. Entrevista concedida a Aymê Okasaki. XIX com formas de chaminés, tetos abobadados etc. Ou seja, o vestuário intervém e também sofre interferência da espacialidade e formas, da arquitetura; e no caso dos axós de candomblé, de toda a espacialidade do ilê. 3.2.2. Roupa masculina Já o traje masculino, como mostra a Figura 28, possui uma composição básica com equeté ou filá na cabeça, bata ou camisa (manga longa ou curta) ou camiseta, calça, sapato ou babuche para ogãs e ebômis. Ogãs e ebômis ainda poderiam vestir blazer, e em composições mais (re)africanizadas, encontramos o uso do boubou na parte superior. Acerca do equeté e filá, em entrevista com a ebomi Georgia Prado, do ateliê Odó Iná, ela aponta as diferenças estruturais das duas peças e como estas seriam divididas para o uso de ebomis ou de iaôs e abiãs, contudo, que isto não seria uma regra tão institucionalizada, sendo possível encontrar diferentes hierarquia utilizando as peças: A roupa de ração do homem: calça, bata e o equeté que é um grande conflito. Equeté no formato que a gente conhece é um adereço árabe. Quando a gente fala de tradição iorubá, a gente fala de filá. Se você vai no Axé Ilê Obá, você vai ver gente de equeté e gente de filá, aquele de ladinho. E isso acabou se tornando uma característica da casa. Os abiãs normalmente estão de equeté. Não uma coisa instituída de fato: abiãs precisam usar equeté e iaôs e ebomis de filá. Inclusive, até os iaôs usam equeté, quem usa o filá são mais os ebomis. Mas isso não está instituído como regra de hierarquia. Foi uma coisa que acabou ficando e tem muito a ver com o fato de conhecimento. O ebomi já tem conhecimento, ele já sabe que o equeté não serve, ele já sabe que é o filá. Então ele acaba aderindo o filá para a vestimenta dele. Não necessariamente passando isso para frente, mas aderindo esse adereço (informação verbal). Esta fala de Georgia Prado também reforça a conexão de muitas peças de roupa do candomblé, com descendência de povos islâmicos (importante salientar que no norte do continente africano, e em outras áreas da África, a religião islâmica não eliminou os cultos tradicionais, mas estes foram agregados, com diversos grupos étnicos unindo e mesclando tradições religiosas que aparecem no vestuário). Figura 28 - Composição do traje masculino Fonte: da autora (2023). 3.2.3. Conjunto africano Muitos terreiros de candomblé passaram a se autointitularem como (re)africanizados, ou passaram a incluir outras religiões africanas em seus espaços, como o Culto ao Ifá. Nos terreiros (re)africanizados, os trajes masculinos e femininos passam a ter outra composição: as túnicas grand bou bou, agbada ou riga; a blusa buba; as calças shokoto; o chapéu masculino filá ou equeté ou kufi; a blusa isiagu; a blusa dàńṣíkí; a túnica de influência islâmica jalabiya; os trajes com tecido iorubá axó oke; a saia feminina de tecido enrolado ao corpo iro; o pano de cabeça feminino gele; o pano feminino pele no ombro; o cafetã, o chapéu abeti-aja; entre outras peças (Santos, 2022). Estas roupas trazem influência dos trajes islâmicos utilizados no continente africano (bordados e modelagens de batas alongadas, tradicionais nos trajes africanos islâmicos), como mostra a Figura 29. Figura 29 - Conjunto africano masculino e feminino Fonte: da autora (2021). A autora Carmen Opipari (2009, p. 125), ao estudar os candomblés de São Paulo, ressalta a diferenciação do vestuário, e parafraseado a pesquisadora Rita Amaral (1992, p. 56) que diz que a festa do candomblé é uma “vitrine”, Opipari ressalta que o xirê é a vitrine da hierarquia: O público está em geral vestido normalmente; nota-se, contudo, certo lado de “roupa de domingo” ou “chique”, em razão da função de lazer assumida por essas festas. Os ebomis das outras Casas podem eventualmente estar vestidos de boubou, à maneira africana, com saias engomadas à baiana ou, simplesmente, de branco. Os clientes fiéis têm por vezes o cuidado de se vestir de branco ou usar alguma cor clara. Os ebomis se diferenciam dos iaôs pelo modo de prender o turbante (ojá ori) sobre a cabeça, deixando soltas as extremidades do tecido; usam igualmente um tecido (ojá) amarrado nas ancas ou na altura do peito. Em certas Casas, os iaôs e os abiãs, contrariamente aos ebomis que podem usar calçados, devem dançar descalços. Os abiãs que já realizaram o ritual do bori usam o colar de pérolas da cor de seu orixá (quele), enquanto os ebomis usam brajá, um colar composto de diversas voltas, cujas fileiras de pérolas, da cor de seu orixá, são presas a cada dez centímetros (Opipari, 2009, p. 127). Mesmo na cidade de São Paulo, diferentes casas de candomblé possuem códigos de vestimentas distintos, mas que apontam as hierarquias de cada terreiro. Quando o filho de uma casa, por desconhecimento ou não, desrespeita este código hierárquico, os mais velhos podem repreender verbalmente, ou comentar com outras pessoas do ocorrido. Este foi o caso, por exemplo de uma iaô do terreiro Axé Ilê Obá, que visitou outro terreiro de candomblé, com tecidos que deveriam ser utilizados por ebomis, segundo Mãe Paula de Iansã: Com uma filha eu tive alguns problemas, ela é iaô, a não ser que ela tenha feito sete anos antes dos sete. Ela foi em um terreiro, ela pediu para mim porque ainda era minha filha, eu pensei: [...] eu não vou precisar falar para ela que ela precisa ir com mocã, com os fios deleguns, com pano dacosta, ojá; porque se subentende que se ela faz as roupas, é meio óbvio. Menina, e ela não foi de guipure? E tirou foto e divulgou. E mídia e internet é assim. As pessoas falando para mim: Mãe, e a menina da Oxum? [...] Ela foi de ebomi (informação verbal)54. A hierarquia no candomblé é oficializada em seus trajes, durante os ritos de iniciação, nas obrigações pagas (ritos de passagem, de acordo com o tempo de iniciado), ritos de suspensão (para ogãs e equedes) e apenas fecha seu ciclo no rito fúnebre do axexê. Sendo a iniciação o primeiro rito público no qual o, agora iaô, “vestirá o santo”, isto é, será paramentado com as insígnias de seu orixá; esta cerimônia reserva uma complexa troca de trajes, em um mesmo rito público. 3.2.4. Trajes de iniciação Durante o rito público da iniciação, a/o iaô aparece no barracão, pela primeira vez após o tempo de reclusão, com seu corpo “vestido” por pinturas nos braços, pés, costas e cabeça (traços e círculos) em branco, feita com efum, pó branco (conhecido como pemba, giz de base de calcário, acrescido de água) que faz referência à criação e às padronagens da galinha D’angola, 54 EGYDIO, Paula Regina. Entrevista. [05 jul. 2023]. São Paulo. Entrevista concedida a Aymê Okasaki. etu. A galinha D’angola está presente no mito de criação iorubana, além de ser nome, Etu, também designar uma região em Enugu, na Nigéria, e um tecido tinto em índigo, com fios brancos que formam pequenos pontinhos, tal qual a padronagem da galinha D’angola (Adegbite; Ilori; Aderemi, 2011). De acordo com Duncan Clarke (1997), um provérbio iorubá diz que um homem que usa um chapéu Etu, nunca mais deveria carregar uma carga sobre a cabeça; lembrando que o orí (cabeça) é o meio que conecta os corpos humanos com as divindades iorubás (orixás), e a principal parte do corpo que recebe a pintura corporal durante o rito iniciático. Nesta primeira saída, em referência a Oxalá, a/o iaô vem vestido inteiramente de branco (Silva, 2008, p. 104). Quanto ao motivo da cor branca estar relacionada ao culto de Oxalá e orixás fun-fun 55 , a pesquisadora Rosiane Rodrigues (2012) destaca a possível influência dos sufistas islâmicos (de origem sunita) com negros no Brasil do século XVIII; trazendo a presença da cor branca nos trajes como um símbolo de pureza, tanto para o uso nas sextas-feiras, quanto nos ritos fúnebres com mortalhas brancas. Na Figura 30 temos a fotografia da roupa branca de primeira saída de uma/um iaô, no Axé Ilê Obá. Nessa primeira saída, independe a qual orixá a/o iaô está se iniciando, o traje deve ser completamente branco. Figura 30 – Iaô Janaina Ribeiro com pintura corporal com efum e a pena ecodidé na cabeça, Axé Ilê Obá Fonte: Duoclick Photos (2022a). 55 Branco, em iorubá. Designa os orixás que vestem a cor branca. Em uma segunda entrada no barracão, são acrescentadas pinturas corporais em azul (feita de waji) e vermelho (feita de osum) (Silva, 2008, p. 104), como mostra a Figura 31. O waji trata- se de um pó azul, em tom de índigo, porém ele é um material mineral (sódio, alumínio e silicato). Rememorando os mesmos fundamentos do índigo, suas propriedades evocadas também são de cura, além de limpeza e prosperidade. Já o osum é uma mistura de dois elementos: a casca da árvore Baphia nítida, conhecida como o sândalo africano ou camwood; e a serragem da árvore Pterocarpus osun. A Baphia nítida também é utilizada para tingimento têxtil na área iorubá, especialmente para tingir em tom avermelhado/vinho o tecido Axó Oke Alaari, muito utilizado em casamentos. A orixá Oxum faz parte de toda a mitologia de criação, e aparece na iniciação também por meio do pó que leva seu nome. Osun é um pó avermelhado, o que se relaciona ao tom de cobre, metal no qual a iabá Oxum era associada na Iorubalândia. Figura 31 – Pintura corporal com efum, waji e osum na iniciação de Janaina Ribeiro, em 2022, no Axé Ilê Obá Fonte: Duoclick Photos (2022b). Estas são as chamadas cores de nação. Tais cores se relacionam ao sistema cromático iorubá. Para os iorubás, existem três cores primárias: funfun (branco), dúdu (preto) e pupa (vermelho). Funfun se refere também a claridade, enquanto dúdu inclui cores escuras, além do preto. Cores escuras como o índigo e o vermelho escuro, são consideradas dúdu, por exemplo. Segundo Roland Abiodun (2014), preto e branco são cores complementares que se equilibram. O preto representa o inexplorado, a ser descoberto. O branco é a cor da senioridade, da sabedoria e que remete ao grisalho também; pupa ou vermelho são as cores quentes, da juventude, dúdu conecta o funfun e pupa, fechando o espectro. Este círculo cromático também é círculo de idades, demonstrando a circularidade da vida, seu renascimento contínuo (Abiodun, 2014). E conectando a relação cromática com as produções têxteis dos povos iorubás, estas três cores aparecem nos três tecidos principais produzidos pelos homens tecelões de axó oke: Etu (tecido em azul índigo), Alaari (tecido em vermelho, tinto com osun) e Sanyan (têxtil branco e bege, Figura 32). Figura 32 – Ao centro, antigo Sobalojú Fákáyòdé do Axé Ilê Obá, Douglas Carneiro, vestindo um equeté e um boubou de axó oke Sanyan Fonte: Carneiro (2017). Com a cabeça pintada, a/o iaô tem a pena de ecodidé amarrada em sua testa na terceira aparição no barracão, momento no qual a divindade apresenta seu nome (Silva, 2008, p. 104), como mostra a Figura 33. Figura 33 – Saída da iaô Rose de Iemanjá., 2022, no período de Mãe Paula de Iansã Fotografia: Marcondes (2023a) Por fim, o orixá aparece no barracão paramentado com suas insígnias e cores (Silva, 2008, p. 104), como é possível visualizar na Figura 34. Figura 34 – Iaôs paramentados com trajes dos orixás, no período de Pai Caio de Xangô, no Axé Ilê Obá Fonte: Acervo Axé Ilê Obá (Fotografia cedida por Telma Witter, assessora do Axé Ilê Obá). Estas trocas de roupas durante o rito público demarcam o quanto o vestuário é um grande expoente comunicador dentro do candomblé. São trajes que comunicam hierarquia, qual a divindade ali presente, qual etapa do rito está ocorrendo. Mas para além da comunicação litúrgica, há comunicações individuais: qual ateliê produziu o traje, ancestralidade rememorada quando há alguma peça ou tecido herdado, poder aquisitivo no acesso a materiais e trajes que sejam mais caros, dentre outras variantes que se apresentam nas roupas das saídas. Uma associação rápida que pode ser feita, são as exibições de trajes em festas ocidentais, de tradições eurocentradas; tópico bem explorado por Gilda de Mello e Souza (1987) ao tratar das roupas nas festas do século XIX. As festas, segundo ela, são momentos de exceção e de inversão. Gilda de Mello e Souza analisa a inversão de liberdade sexual nas festas das elites do século XIX, mas podemos pensar no momento de exaltação de grupos sociais que sofrem uma marginalização cotidiana pelo racismo religioso. Trazer trajes opulentos e muito adornados é um momento de ruptura social, que presentifica divindades, realeza e mitos africanos, no Brasil (Souza, 1987). É possível relacionar também com festas populares afro-brasileiras, como o carnaval, inclusive com a ala das baianas dos desfiles de escolas de samba. Esta é ala que muitas vezes é composta por ialorixás e mulheres do candomblé. O carnaval popular nacional é um festejo típico de inversões de papéis sociais, tanto de gênero quanto classe, no qual os comportamentos cotidianos que costumam ser proibidos pela sociedade brasileira como um todo, neste momento são tolerados e celebrados. Esta associação com as inversões de papéis foi levantada pela autora Marina de Mello e Souza, que também analisa festas populares na obra Paraty, a Cidade e as Festas (2008), e festejos afro no livro Reis negros no Brasil escravista: história da festa de coroação de rei congo (2002). No entanto, a utilizaçãode trajes como insígnias de poder e demarcação social, com troca de roupas em aparições públicas, também segue tradições africanas. No livro Cloth in West African History, de Colleen E. Kriger (2006) a autora traz um relato do século XVIII, no qual funcionários de uma empresa holandesa que estavam em missão, presenciaram o rei de Daomé em uma troca de trajes: Enquanto organizava um jantar formal para seus convidados na corte, o rei participou de um desfile de moda, realizando 3 trocas completas de trajes, desde seu casaco de estilo europeu de veludo vermelho bordado a ouro até outro casaco preto sob medida, também bordado em ouro, até um volumoso envoltório ou manto de brocado prateado ou bordado. Esta exibição pública certamente deve ter transmitido uma mensagem forte a todos os presentes, não apenas sobre as preferências e gostos pessoais do rei, mas sobretudo sobre sua importante posição no comércio internacional e sua habilidade em capitalizá- la (Kriger, 2006, p., 35, tradução nossa)56. Trata-se de exemplos de exibições públicas, em que as trocas de roupas demonstram suas simbologias, mas também o melhor a ser vestido por aquela realeza (ressaltando que muitos dos orixás são considerados realezas de determinadas regiões). Por fim, existem as roupas dos orixás (seguem as cores e emblemas de cada divindade, tendo o acréscimo dos paramentos/paramentas/ferramentas/insígnias - como adês/adornos de cabeça, pulseiras, bastões de mando etc. - que o orixá irá segurar ou vestir simbolizando determinados mitos daquela divindade; esta roupa é utilizada apenas no momento de transe, no qual a divindade dançará rememorando seus mitos). 56 Texto original: While hosting a formal dinner for his guests at court, the king engaged in a fashion parade, performing three complete costume changes, from his European-style coat of gold-embroidered red velvet to another tailored black dress-coat, also embroidered in gold, to voluminous wrapper or robe of silver brocade or embroidery. This public display certainly must have a strong message to all in the audience, not only the king's personal preferences and tastes, but above all about his important position in international trade and his skill in capitalizing on it (Kriger, 2006, p., 35). Quanto às cores e paramentos dos orixás mais cultuados no Brasil, a Tabela 2 a seguir exemplifica de modo geral as insígnias utilizadas (existem variações segundo as casas e segundo ao tipo de cada orixá e os mitos representados pela divindade): Tabela 2 – Orixás, suas cores e insígnias Orixá Patronato Cores Insígnia Características da insígnia Exu Discórdia, comunicação entre o os planos espirituais e terreno Preto e vermelho Branco Ogó Bastão em formato fálico Ogum Metalurgia, guerra, agricultura e estradas Azul escuro Alfange Espada Oxóssi Matas, caça, pesca e fertilidade Azul celeste, verde Ofá Arco e flecha Erukerê Espanta mosca de rabo-de- cavalo Omolu Vodun da família da palha. Saúde/doença, terra e transformação da natureza Marrom Azê Capacete feito de palhas que cobre todo o corpo Xaxará Cetro de fibras de folha de dendezeiro com búzios Ossaim Folhas Verde e branco Lança Três cabaças com as folhas sagradas Oxumarê Vodun da família da palha. Cobra. Arco-íris. Verde, dourado, branco e cores do arco-íris Alfange Espada Cobras de metal Xangô Fogo, trovão, relâmpago, pedreira, guerra, justiça Vermelho, marrom e branco, branco e azul claro Oxê Machado de dois gumes Xere Chocalho de metal Oxum Riqueza, águas doces, maternidade Amarelo (detalhes em azul, ou rosa), branco Abebê Leque com espelho Alfange Espada Logun Edé Caça, pesca, fertilidade Azul celeste e amarelo Ofá Arco e flecha Abebê Leque com espelho Oiá/ Iansã Ventania, relâmpago, guerra, céu rosado e borboletas Rosa, marrom, vermelho, branco Alfange Espada Eruexim Espanta-mosca Chifres Obá Guerra Vermelho e laranja Alfange Espada Escudo circular Nanã Vodun da família da palha. Pântano/Barro, ancestralidade, morte Roxo, lilás, branco (detalhes em lilás ou azul claro) e palha Ibiri Cetro em formato de arco, de fibra de folha de dendezeiro com búzios Iemanjá Mar, fertilidade Azul claro, branco e prata Abebê Leque com espelho Alfange Espada Oxalá Criação, vida/morte Branco e azul claro Pilão de prata ou material branco (para Oxaguiã, versão jovem de Oxalá) Opaxarô (para Oxalufã, versão idosa de Oxalá) Cajado prateado com pingentes representando a criação do mundo Adaptado de: Raul Lody (2001, p. 73) e Patrícia Souza (2007). Esta tabela traz um resumo que não deve ser lido como regra. Cada terreiro de candomblé estabelece regras vestimentares que podem ter pequenas alterações. No entanto, todos os terreiros terão seus códigos, que são tidos como deveres que os filhos devem seguir, tal qual aponta Mãe Sylvia de Oxalá nesta lista de deveres dos filhos do abaçá: “I) Devem usar roupas próprias do ritual, de acordo com as cores de cada Orixá e do seu próprio anjo da guarda, a fim de se apresentar vestido corretamente” (Egydio, 1980, p. 39). O traje de um orixá é uma composição construída a partir de muitas vozes, gostos, indicações, fundamentos religiosos etc. Antes de todo o processo iniciático, a ialorixá (ou babalorixá) fará a leitura dos búzios, para compreender não apenas o enredo da pessoa, a qualidade do orixá, mas também o que a divindade deseja, de maneira mais específica. Por exemplo, na festa de Oxalá do dia 10 de setembro de 2023, Mãe Paula falou sobre a importância de se escutar e atender os orixás, ao dar um exemplo de um orixá fun-fun (orixá que só veste, só come branco) Ogunjá que pedira, por meio do jogo de búzios, dendê (alimento interdito para orixás fun-fun). Tanto no jogo de búzios, no próprio momento do transe ou de maneiras mais subjetivas, como em sonhos etc. é possível que o orixá indique algum elemento que ele queira ou não em seu traje. Como os orixás não falam verbalmente no momento do transe, e no Axé Ilê Obá existem as entidades que verbalizam, também possível que um erê, por exemplo, fale sobre o que o orixá quer. A ebomi Georgia Prado aponta como, sua erê ou sua orixá Oiá, incentivou para que ela aprendesse a costurar e que tivesse paciência durante o longo processo desta aprendizagem: Foi através da costura que eu comecei a ter paciência com o processo. De entender que eu vou fazer uma e vou fazer e duas e vai ficar... não vai ficar feio. Para o meu olho de costureira eu vou bater o olho e vou falar: meu deus..., Mas quem não faz... Teve uma coisa que soprou na minha cabeça uma vez, não sei se foi minha erê ou se foi Iansã, mas depois de muito tempo, de uns dois anos costurando, enquanto eu estava em um outro terreiro, estava com uma saia que eu fiz, a primeira saia, eu usei muito essa primeira saia (informação verbal)57. Quanto aos trajes dos orixás, podemos separar uma composição básica de peças dos orixás oborós e das orixás iabás (orixás metá-metá podem trazer composições compostas ou tal qual as composições das iabás ou dos oborós). 3.3.1. Traje de orixá oboró Para os orixás masculinos temos o calçolão com saieta ou a bombacha (calça mais volumosa, conforme Figura 34), além de ojás e atacãs amarrados no peito de maneira cruzada. 3.3.1.1. Bombacha Interessante pensar nas calças largas, inclusive nas bombachas (Figura 35) utilizadas nos trajes de orixás oborós e suas influências. Isso porque, apesar de, em um primeiro momento, a 57 PRADO, Georgia. Entrevista. [27 jan. 2023]. São Paulo. Entrevista concedida a Aymê Okasaki. peça parecer transposta diretamente de um traje europeu, das calças bufantes e calções usados em modelos variados do século XV a XVII, podemos também fazer associações a calças largas, ajustadas no calcanhar, turcas,persas e argelinas. Figura 35 - Desenho técnico de bombacha Fonte: da autora (2024). Os hauçás, povos islamizados da atual região da Nigéria, também utilizam calças largas, costume advindo do período do califado Sokoto 58 , por contas das montarias a cavalos, que exigia um uso de calças amplas, com tornozeleiras justas e bordadas. No Mapa 2, é possível entender a extensão do califado de Sokoto em 1850. 58 Império muçulmano sunita na África Ocidental, fundado em 1804 por Usman dan Fodio. O califado foi fundado durante a jihad fula e durou até 1906. O califado incluía a maior parte do que hoje são as áreas Hauçá- Fulani na Nigéria e se estendia para o estado de Camarões. Mapa 2 – Califado Sokoto e Estados vizinhos, em 1850 Fonte: Lovejoy (2014). Sokoto também é o nome dado às calças que compõem o traje (re)africanizado, como podemos ver no esquema da Figura 29. Iorubás e Nupes também produziam tais modelos de calças, durante o século XIX e início do XX para todo o califado, para vender ao Norte (Kriger, 2006, p. 99). Além das calças sokoto, outro modelo de calças bufantes ajustadas na barra como um balonê, surgiu na Mongólia e Índia, entre os séculos XVI e XIX (Leventon, 2013). Isto para mostrar como peças diversas trazem semelhanças. O modelo apresentado na Figura 35 apresenta uma pala superior, porém isto pode variar. Para a pesquisa, adquiri uma bombacha com o ateliê Okàn Rere, que produz as roupas para o Axé Ilê Obá, para análise do modelo. A bombacha possui canaleta para o cordão grosso de algodão, de ajuste na cintura (canaleta feita a partir da própria dobra do tecido das pernas da peça). Isso permite que os 4m de tecido fiquem franzidos e façam volume (é importante que o tecido também seja mais estruturado, com uma gramatura mais alta para manter o volume desejado). Para o ajuste nas pernas, são feitas pregas equidistantes para serem costuradas ao tecido que irá ajustar no tornozelo. E para o melhor ajuste no tornozelo, existe uma abertura de velcro. Assim, a pessoa consegue abrir o velcro para vestir a peça e mantê-la bem ajustada no tornozelo. 3.3.1.2. Saieta Acerca das saietas dos orixás oborós, diferentes das saias, estas costumam ser um pouco mais curtas, fazendo com que o calçolão fique mais aparente. Existem algumas hipóteses para o uso das saietas. Em candomblés baianos antigos, homens não entravam em transe, tendo normalmente cargos como ogãs. Desta forma, a maioria dos corpos paramentados era feminina. Incorporando as saias do vestuário feminino, elas eram adaptadas e encurtadas no formato das saietas. Um meio termo entre o traje feminino da candomblecista e o traje do orixá oboró. As saietas podem parecer mais curtas, conforme as estruturas das anáguas sejam mais cheias e armadas (tanto por seus materiais, quanto pela goma aplicada). Quanto à nomenclatura, é importante diferenciar o que os ateliês chamam de saiote (que são as anáguas) das saietas, que são estas saias de orixás. Na Figura 36 temos o desenho técnico de uma saieta para o orixá Xangô, pois possui as gravatas sobrepostas. Gravatas são faixas com as pontas triangulares, típicas do traje de Xangô, e que podem vir bordadas, com aplicações etc. Por serem presas apenas na cintura, durante a dança do orixá, as gravatas se movimentam, tais quais movimentos de labaredas de fogo, visto que este é um elemento de Xangô. Figura 36 - Desenho técnico de saieta Fonte: da autora (2024). 3.3.2. Traje de orixá iabá A composição básica das orixás femininas é: calçolão, anáguas/saiote engomados, saia, pano da costa; e faixas com amarração em laço (“borboleta” amarração ligada à feminilidade) ou com pontas sobrepostas (“gravata”) na nuca, no busto e na cintura. Quando a divindade é guerreira, utiliza o laço do peito voltado para as costas, para não atrapalhar em suas danças (Souza, 2007). Antes dos laços no busto, pode ser utilizado um zinguê, em substituição ao sutiã, como aponta Mãe Paula: “O zinguê a gente usa mais para o orixá. Porque você o coloca aqui no peito, como se fosse um top. E depois vem os laços” (informação verbal) 59 . As iabás são importantes divindades no terreiro Axé Ilê Obá, tendo uma festa anual, um xirê no calendário litúrgico, especialmente em homenagem às iabás, que ocorre normalmente em dezembro. Na época de Pai Caio, em dezembro ocorria a festa de Oxum Miwá (divindade do rio Oxum, e das cachoeiras e regatos), que era seguida pela festa das iabás. Esta é uma celebração no qual os visitantes costumam levar flores para presentear as iabás. Esta é uma festa que costuma celebrar as seguintes iabás, no Axé Ilê Obá: a caçadora Euá, a idosa Nanã Buruque, a guerreira Obá, a divindade das brisas e tempestade Iansã, a vaidosa mãe Oxum e a feiticeira das águas Iemanjá. Em alguns terreiros de candomblé é possível encontrar iabás utilizando um camisu por baixo dos laços do busto, contudo o Axé Ilê Obá não possui esta tradição, como é possível visualizar nos trajes das iabás do período no qual Pai Caio era o babalorixá do Axé Ilê Obá, na Figura 37. Figura 37 – Oxum, Iemanjá, Iansã e Nanã no Axé Ilê Obá Fonte: Egydio (1980, p. 58-68). Na Figura 37 também é possível visualizar que apesar dos comprimentos das saias variarem (algumas um pouco mais curtas como a da Oxum), de maneira geral, as iabás possuem saias muito armadas, com diversas anáguas engomadas para estruturar uma forma estética que possui uma silhueta triangular (maior volume embaixo e menor volume em cima, sem camisu). 59 Egydio, Paula Regina. Entrevista. [05 jul. 2023]. São Paulo. Entrevista concedida a Aymê Okasaki. A forma triangular ainda é arrematada com adês (coroas) normalmente com pontas no centro, afunilando ainda mais esta silhueta na parte superior. 3.3.2.1. Joias de crioula e paramentos Para além dos panejamentos, uma importante característica dos trajes dos orixás são os paramentos, e no caso das iabás também estão presentes as pulseiras (indés), braceletes e peças que trazem inspiração na joalheria crioula, joias encontradas no uso das negras de ganho das grandes cidades brasileiras do século XIX. A compra e uso das joias de crioula era uma forma de acúmulo de pecúlio (para compra de alforrias e salvaguardar a parcela de dinheiro que conseguiam do trabalho de vendedoras). A pesquisadora Laura Cunha (Cunha; Milz, 2011) aponta a encruzilhada de culturas nesta joalheria, com os trabalhos de ourives negros, judeus e portugueses para as joias de crioula. Laura Cunha (Cunha; Milz, 2011) coloca a joalheria crioula do século XIX como um encontro de técnicas: filigrana, granulação, repuxo e estamparia. Por exemplo, nos medalhões dos braceletes de copo, as figuras eram estampadas com punção em um molde (não eram cinzeladas individualmente). Já a granulação e filigranas trazem a influência europeia (tendo os portugueses aprendido muito da técnica de filigrana na Índia, enquanto a granulação apresenta uma influência etrusca). Laura Cunha (Cunha; Milz, 2011) ainda aponta as influências espanholas, do comércio entre a Índia e Portugal, moçárabes e africanas. Mas, para Mariano Carneiro da Cunha (1983), os símbolos dos paramentos são continuidades africanas, que se mantiveram, como as pulseiras de copo das crioulas, por exemplo, que já apareciam na África Ocidental, e também eram produzidas pelos ourives nordestinos no Brasil. Podemos correlacionar peças como o bracelete em latão do reino iorubá de Ijèbú (século XV-XIX), que era feito para governantes, sacerdotes e membros da sociedade Osugbo (Figura 38, esquerda); com essas pulseiras de copo das joias de crioula citadas por Mariano Carneiro (Cunha, 1983), (Figura 38, centro) e, posteriormente, com os braceletes de folhas metálicas, no terreiro de candomblé Axé Ilê Obá (Figura 38, direita). Figura 38 - Bracelete do reino iorubá de Ijebu (século XV-XIX) em latão,14,9cm × 11,4cm (esquerda); pulseira de copo do Museu Carlos Costa Pinto (centro); impulsas de Oiá (direita) Fonte: Metropolitan Museum of Art (MET, 1966) - Esquerda; Laura Cunha; Thomas Milz (2011) - Centro; Axé Ilê Obá. Foto cedida por Eduardo Cancissú (2018) – Direita. Rowland O. Abiodun (2014) ressalta a importância desses metais preciosos, latão e bronze para os povos iorubá. De acordo com oríkìs, a própria divindade Orumilá usava uma coroa e um bastão de latão. Os sacerdotes dos cultos de Ifá seguiriam os padrões de vestimentas de acordo com Orumilá. Contudo, Roberto Conduru (2013) aponta uma distinção na joalheria afro-brasileira (mesmo nas joias de crioula dos séculos XVIII-XIX), na qual se é comum uma mistura de metais e as peças não são maciças; isto porque o volume é mais importante visualmente. Usar as filigranas e o cinzelamento eram uteis para aumentar o brilho, tornando as peças visualmente maiores e mais adornadas. Para além da tradição africana no trabalho do metal, presente nestes paramentos, outra matéria-prima importante que se mantém são as miçangas. Nos paramentos das iabás, o rosto das divindades femininas costuma ser cobertos por uma franja de miçangas chamado chorão ou filá, sendo esta franja presa no adê (coroa/adorno de cabeça). Segundo um ditado iorubá recolhido por Rowland O. Abiodun (2014), “Uma pessoa que se adorna com contas fez o máximo em auto-embelezamento”. Porém, o autor também aponta que as contas só teriam sido fabricadas pelos iorubás após o final do primeiro milênio. Em Ilé-Ifè estariam os primeiros registros desses usos pelos iorubá, pela realeza, chefes, líderes religiosos e aristocracia. As contas são a representação da longevidade e poder, são passadas por gerações. Algumas dessas seriam mais valorizadas, como o sègi (especialmente as tubulares azuis), as contas de coral, especialmente para os sacerdotes de Oxum, e a àkún, feita de cascas das nozes de palmiste. E a disposição das contas, de maneira seriada também é importante, pois organiza visualmente, para que possa exercer sua ação (Abiodun, 2014). No dia 24 de junho de 2017, tive contato pela primeira vez com o primeiro terreiro tombado como patrimônio cultural do estado de São Paulo, pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (CONDEPHAAT), em 1990, o Axé Ilê Obá, durante os festejos do orixá Xangô, o patrono desta casa. Os gestos e danças traziam muito da personalidade de cada orixá, e as roupas comunicavam as narrativas das divindades. A linguagem dos trajes não dialogava apenas com os iniciados, mas com todos os convidados nas festas públicas que partilhavam dos mesmos códigos. Essa foi a primeira vez que tive contato com o terreiro, o qual passei a investigar com mais a finco. O terreiro de candomblé, de nação queto, Axé Ilê Obá (termo em iorubá que significa a força da casa do rei) é atualmente uma casa paulista de grande importância, tanto por suas dimensões espaciais muito grandes para o contexto do estado de São Paulo (área total de 4 mil metros quadrados, com salão principal de 1,2 mil metros quadrados, conforme mostra o Mapa 3, com a planta do terreiro; e uma coroa para o orixá Xangô Airá, o ariaxé, no centro do barracão, que pesa 75 quilos), pela grande quantidade de filhos, e também pelo fato de ter sido o primeiro terreiro tombado como patrimônio histórico em São Paulo. Desta forma, o espaço atrai tanto adeptos do candomblé, quanto pesquisadores da cultura afro-brasileira paulista. Isso se reflete em muitos registros imagéticos e pesquisas sobre a casa e seus filhos, tornando possível analisar seus processos históricos. Mapa 3 – Planta do terreiro Axé Ilê Obá Fonte: Adaptado de Silva (2021, p. 56). Para o recorte deste capítulo, analisaremos os trajes do Abaçá (templo de Xangô) Axé Ilê Obá, desde sua fundação, perpassando pela sucessão dos seus três líderes religiosos; para compreender quais foram as principais mudanças no vestuário e como estas permanências e variações dos trajes podem registrar a contar a história da casa. Como muitos terreiros da cidade de São Paulo, a casa começou como terreiro de umbanda, religião afro-brasileira de maior presença no início da segunda metade do século XX. Em sua pesquisa o sociólogo Reginaldo Prandi (2020, p. 38) aponta que o Centro de Estudos da Religião Duglas Teixeira Monteiro (CER), coordenado por Lísias Nogueira Negrão e Maria Helena Concone (1987), ao consultar os cartórios de São Paulo não encontrou registros de terreiros de candomblé até o final da década de 1940; apenas um na década de 1950; e 2.500 candomblés na Grande São Paulo no final da década de 1980. Este aumento está relacionado, entre outros fatores, à vinda de migrantes nordestinos em busca de trabalho em São Paulo. Prandi (2020) aponta que entre as décadas de 1970 e 1980, cerca de um milhão de nordestinos chegaram na região metropolitana da Grande São Paulo. Contudo, isso não quer dizer que as religiosidades afro-brasileiras já não estivessem presentes na cidade antes desse período, pois a umbanda já tinha centros espalhados por toda metrópole. Dos anos de 1950 até as décadas de 1960 e 1970, uma classe média branca que estava na umbanda, passa a buscar os terreiros de candomblé. Jovens universitários, que formavam os movimentos de contracultura do período, passaram a compor parte da clientela dos candomblés. Essas classes abastadas de clientes de jogos de búzios, ebós e outros atendimentos, auxiliaram a impulsionar o aumento de casas. Isto é, da umbanda saiu grande parte dos adeptos que formariam as casas de candomblé em São Paulo, inclusive uma população mais pobre que também migrava para os candomblés. E assim, no dia 22 de julho de 1950 foi fundado o terreiro de umbanda Congregação Espírita Beneficente Pai Jerônimo, por Caio Egydio de Souza Aranha, o Pai Caio de Xangô, e um grupo de mulheres, em uma habitação coletiva entre as ruas Carneiro Leão e a Rua Maria Marcolina, no Brás, onde permaneceu até meados de 1958, interrompendo as atividades por motivos de saúde de Pai Caio (retomando na década seguinte). São Jerônimo é sincretizado com o orixá Xangô, em São Paulo, fazendo referência ao orixá de Caio Egydio. Uma das diversas diferenças da umbanda para o candomblé (em especial os candomblés de nação queto), é o culto de encantados como caboclos, pretos-velhos, exus (não o orixá), pombas-gira etc. De acordo com o pesquisador e filho do Axé Ilê Obá, Rafael da Costa Rodrigues (2019), nessa época, o terreiro tinha os toques de umbanda até determinado horário e depois se iniciava ritos que mesclavam o candomblé angola e queto. O terreiro de umbanda de Pai Caio manteve os toques desde sua abertura em 1950 até os dias atuais, já como terreiro de candomblé queto. No ano de 1960 o terreiro muda de espaço, indo para a Rua Macuri no bairro do Jabaquara, e passa por uma73 Figura 12 - Jornal da Tarde, anno I, nº 138, Proprietário Angelo Thomaz do Amaral. Rio de Janeiro, 1869 ............................................................................................................................. 73 Figura 13 - Estrutura de um tecido plano .................................................................................. 75 Figura 14 - Campanha da marca Hering, com Mãe Carmem de Oxum ................................... 77 Figura 15 - Strophium, no mosaico siciliano, do século III-IV A.E.C., na vila Piazza Americana .................................................................................................................................................. 77 Figura 16 - Desenho técnico de camisu tradicional ................................................................... 77 Figura 17 - Malandro vestindo camiseta listrada na horizontal, na Festa de Exu 2023, no Axé Ilê Obá ........................................................................................................................................... 79 Figura 18 - Equede de Mãe Sandra de Xangô, durante um toque, em um candomblé (re)africanizado. Foto de Vagner Gonçalves, de 1988 ............................................................... 80 Figura 19 - Amarrações dos panos de cabeça, desenhados por Carybé .................................... 82 Figura 20 - Desenho técnico de cafetã longo ............................................................................. 83 Figura 21 - Composição do traje de baiana ............................................................................... 85 Figura 22 - Mule no centro da foto, do dia 08 de março de 1986, na posse de Mãe Sylvia de Oxalá, como ialorixá do Axé Ilê Obá........................................................................................ 86 Figura 23 - Saiote de material sintético, no Mercadão de Madureira, em 2019 ........................ 88 Figura 24 - Saiotes do ateliê Alaafia, camisu Lojas Patuá ........................................................... 89 Figura 25 - Desenho técnico de bata feminina .......................................................................... 95 Figura 26 - Banté de Maria Clara de Oxum, no Axé Ilê Obá ................................................... 96 Figura 27 - Desenho técnico de laço ......................................................................................... 93 Figura 28 - Composição do traje masculino .............................................................................. 95 Figura 29 - Conjunto africano masculino e feminino ................................................................ 96 Figura 30 - Iaô Janaina Ribeiro com pintura corporal com efum e a pena ecodidé na cabeça, Axé Ilê Obá ...................................................................................................................................... 98 Figura 31 – Pintura corporal com efum, waji e osum na iniciação de Janaina Ribeiro, em 2022, no Axé Ilê Obá ......................................................................................................................... 99 Figura 32 - Ao centro, antigo Sobalojú Fákáyòdé do Axé Ilê Obá, Douglas Carneiro, vestindo um equeté e um boubou de axó oke Sanyan ................................................................................. 100 Figura 33 - Saída da iaô Rose de Iemanjá., 2022, no período de Mãe Paula de Iansã ............ 117 Figura 34 - Iaôs paramentados com trajes dos orixás, no período de Pai Caio de Xangô, no Axé Ilê Obá .................................................................................................................................... 101 Figura 35 - Desenho técnico de bombacha ............................................................................. 121 Figura 36 - Desenho técnico de saieta ..................................................................................... 122 Figura 37 - Oxum, Iemanjá, Iansã e Nanã no Axé Ilê Obá ..................................................... 125 Figura 38 - Bracelete do reino iorubá de Ijebu (século XV-XIX) em latão, 14,9cm × 11,4cm (esquerda); pulseira de copo do Museu Carlos Costa Pinto (centro); impulsas de Oiá (direita) ................................................................................................................................................ 127 Figura 39 - Reportagem sobre missa e inauguração no novo espaço do Axé Ilê Obá ............. 128 Figura 40 - Prancha 8: Negras novas a caminho da igreja para o batismo, Debret .................. 130 Figura 41 - Terreiro Rua Mucuri, destaque à esquerda Dona Antônia Pimenta com deleguns, fio de conta ................................................................................................................................... 132 Figura 42 – Caboclo da mãe pequena Antônia Pimenta. Axé Ilê Obá, São Paulo, SP, 1987 .. 133 Figura 43 - Pai Caio de Xangô em sua cadeira de veludo vermelha, com crucifixo na parede demonstrando o sincretismo católico da casa; com trajes em brocado metálico, muito característicos das vestimentas de Oxum, sua segunda orixá ................................................... 134 Figura 44 – Ogãs alabê, no Axé Ilê Obá. ................................................................................ 135 Figura 45 - Terreiro da Rua Mucuri, meados de 1960 ............................................................ 128 Figura 46 - Acabamento em richelieu no calçolão de Oxum (esquerda) e de Omolu (direita) 130 Figura 47 - Capa do LP de músicas de candomblé do Babalorixá Caio Aranha, de 1983 ...... 132 Figura 48 - Gravatas brancas sobreposta à saieta do orixá Xangô de Pai Caio, no Axé Ilê Obá ................................................................................................................................................ 144 Figura 49 - Orixás oborós, masculinos, paramentados: Ogum, Oxóssi e Logun Edé .............. 149 Figura 50 - Iansãs paramentadas, no Axé Ilê Obá, ainda na Rua Macuri. ............................... 152 Figura 51 - Oxum paramentada, no terreiro localizado na Rua Macuri, na década de 1960 ... 153 Figura 52 - Paramento com penas naturais para caboclo Rompe Mato, de Pai Caio, em 1982, no terreiro Axé Ilê Obá ................................................................................................................ 156 Figura 53 - Chapéus de penas de pássaros selvagens, usados por altos dignatários ou mesmo do fon (rei) de pequenos reinos das áreas de pastagens dos Camarões (os dois superiores à esquerda estão no avesso, como eram guardados para que as longas penas não quebrassem) ............... 139 Figura 54 - Mãe Sylvia de Oxalufã no dia de sua posse, com Pai Pérsio de Xangô à esquerda, em 1986 ........................................................................................................................................ 144 Figura 55 - Sylvia de Oxalufã com pano da costa em tecido axó oke, e usando insígnias que recebeu na Nigéria representando seu título de Ianifá ............................................................ 149 Figura 56 – Conjunto masculino (centro da fotografia) em tecido que faz referência a estamparia por reserva, artesanal iorubá em índigo chamada adire, no Axé Ilê Obá, álbum de fotografias do terreiro de 1980-1990 .............................................................................................................. 163 Figura 57 - Mãe Sylvia de Oxalá vestindo cafetã dourado no Axé Ilê Obá, álbum de fotografias do terreiro de 1980-1990......................................................................................................... 165 Figura 58 - Regina de Xangô possui paramentos de tecido. Axé Ilê Obá, álbum de fotografias do terreiro de 1980-1990 ..............................................................................................................transição, mudando para casa de candomblé queto, Axé Ilê Obá. A mudança de espaço se deu para se fixarem em um local maior, com mais contato com a natureza e mais afastado do centro da cidade e da polícia (nessa época a repressão policial contra os terreiros de religiões afro-brasileiras ainda era muito grande) (Rodrigues, 2019). Era tanta a repressão policial, que Pai Caio chegou a ser preso em 1962, acusado de charlatanismo. Em todo o Brasil, tamanha era a repreensão policial, que como parte memória de cultura material das religiões afro-brasileiras que compôs o primeiro acervo de peças tombadas como patrimônio histórico pelo IPHAN, foram as 521 peças, denominadas de “Coleção de Magia Negra”, que estavam em posse do Museu da Polícia Militar e Centro Cultural da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro desde 1938, e que só foram para o Museu da República em 2020. No ano de 2019, em visita ao Museu da Polícia no Rio de Janeiro, busquei ter acesso às peças para estudo, porém estas se encontravam guardadas, não acessíveis ao público. Cultura material dos terreiros (inclusive com paramentos) eram armazenas juntamente com objetos de crimes, como armas. A perseguição governamental certamente se iniciou muito antes, com a proibição de templos não católicos em 1824, com o crime de espiritismo em 1890, com o artigo 284 do código penal, contra curandeirismo, atribuindo novas faces para um mesmo racismo religioso. Em 1974, Pai Caio inicia uma nova mudança de espaço para a Rua Azor Silva, nº77 na Vila Facchini/Jabaquara, inaugurando as amplas instalações em 1977. No Mapa 4 é possível visualizar a localização do terreiro e seu fácil acesso a importantes avenidas do bairro do Jabaquara, bem como suas dimensões. A atual sede do terreiro está próxima à estação final do Metrô Jabaquara (1,8 km de distância do Metrô Jabaquara, na Linha Azul). Mapa 4 – Vista aérea do terreiro Axé Ilê Obá Fonte: Google Maps (2023). A inauguração das novas instalações da casa em 1977 teve impacto midiático, sendo inclusive publicada uma reportagem no jornal Folha de S. Paulo, no dia 13 de fevereiro de 1977, apontando informações como “maior terreiro de candomblé do Brasil”, em uma reportagem com quatro imagens e entrevista com ogãs e com Pai Caio (Figura 39). Como a reportagem sugere, nesse momento Pai Caio não apartava o terreiro de um sincretismo com outras religiões, aqui no caso com o catolicismo. Em entrevista à pesquisadora Cecília Negrão, a atual ialorixá da casa conta: Minha mãe (Mãe Sylvia) contava que decidiram colocar uma imagem de Jesus Cristo na parede do barracão porque alguns policiais vinham a nossa casa para perseguir Pai Caio, classificando-o como bruxo. Na época, um político influente sugeriu a ideia de colocar uma imagem do Cristo para que as autoridades verificassem que ali havia o bem e Jesus, sem prendê-lo (Negrão, 2018, p. 110). Figura 39 - Reportagem sobre missa e inauguração no novo espaço do Axé Ilê Obá Fonte: Xangô Não É… (1977). Para a inauguração, se buscava realizar uma missa católica na Igreja do Rosário (tradição comum até a contemporaneidade em casas matrizes de candomblé na Bahia), que foi proibida, tendo que realizar a missa dentro do terreiro por um bispo da Igreja Reunida. Apesar do pedido negado pela igreja católica, vemos o interesse na consolidação dos ritos, com esta encruzilhada de religiões. Na reportagem, se destaca que as filhas de santo vestidas à maneira baiana foram até o Largo Paissandú, ao Monumento da Mãe Preta, após serem impedidos de irem à igreja. O ogã José da Silva também ressaltava na entrevista: Eu acho isso uma falta de ética um desrespeito ao ser humano. Essa iria ser uma missa normal com os participantes trajados normalmente. É claro que se uma filha de santo, desejasse vir vestida de baiana, desde que decentemente trajada, nós não íamos impedir, mas o que não me conformo é de não termos nem a possibilidade de argumentar. Se o padre Rubens pudesse me explicar por que o catolicismo de São Paulo tem que ser diferente do da Bahia, que permite a realização de missas, eu seria capaz de entender. Agora, sem diálogo, não há condições de entendimento (Xangô Não É..., 1977). Na reportagem, o ogã ressalta a questão de as filhas estarem trajadas de baianas, desde que decentemente. O uso do termo “decentemente” se refere aos moldes católicos de vestes em missas católicas. Ele também compara com a presença que mulheres de candomblé tinham nas igrejas católicas baianas (vestidas com trajes de candomblé). Em realidade, se trata de distintas formas de cercear a presença de candomblecistas nos espaços públicos. Isto porque, em termos de pudor católico no vestir, o traje de baiana, que é mencionado, tem relações diretas com os trajes domingueiros, com os quais mulheres escravizadas que trabalhavam nos centros urbanos e nas casas dos senhores brancos, nos séculos XVIII e XIX, utilizavam para acompanhar às missas. Trago uma ilustração de Debret (Figura 40), que retratava o batizado das chamadas “negras novas”, que seriam mulheres ainda não católicas, no qual o senhor escravocrata branco seria responsável pelo batismo dos escravizados (no período retratado por Debret, não mais com peso de lei, mas como tradição). Ele também escreveu apontamentos sobre os trajes na cerimônia: Esta cena, embora bem cristã, deixa uma impressão de barbárie no estrangeiro já desconcertado com o colorido uniformemente prêto de todos os assistentes. Alguns desses negros, mais inteligentes ou simplesmente mais idosos e envergonhados com a sua fantasia, em que a calça contrasta de maneira ridícula com a elegante túnica que lhes cobre os rins, procuram o trajeto colar-se aos muros das casas, a grande distância de seus padrinhos. O padrinho vestido, nesta gravura, cerimoniosamente, usa uma calça de sêda herdada de seu senhor, chapéu e bengala, e se apresenta respeitosamente a seu compatriota capelão, grande amador de rapé, que o recebe com a dignidade do cargo (Debret, 1988, p. 154). Figura 40 – Prancha 8: Negras novas a caminho da igreja para o batismo, Debret Fonte: Debret (ed. 1988). A fala de Debret aborda mais o traje masculino da prancha (Figura 39), porém as críticas tecidas poderiam ser transpostas ao caso da proibição da missa aos filhos do Axé Ilê Obá. Debret se utiliza dos termos “barbárie”, “fantasia” e “ridícula” ao falar do vestir colorido dos negros, em oposição àqueles que se vestem com “roupa herdada” aos moldes brancos, católicos, com calca de seda, chapéu e bengala. No século XIX, vestir as rendas alvas, sedas, era considerado um vestir “respeitoso” aos moldes do olhar branco e católico. No ocorrido em 1977, quando as filhas do Axé Ilê Obá foram proibidas na missa, o vestir rendas claras, anáguas etc. já não simboliza o mesmo, por ficar associado a religiões afro-brasileiras. Ou seja, a problemática não estaria na maneira de se vestir em si, mas no que ela expressa: uma cultura afro-brasileira. Essa encruzilhada de religiões que ocorria no Axé Ilê Obá era visível pelos trajes utilizados, desde os tempos de terreiro de umbanda. A Figura 41 mostra o terreiro ainda na Rua Mucuri, com a Mãe Pequena, a iaquequerê Toloquê, Dona Antônia Pimenta, à esquerda utilizando deleguns, fio de contas do candomblé, nos anos 1960, quando o terreiro mesclava a umbanda com os cultos de candomblé de nação angola e queto. Outro destaque para esta imagem é o camisu da direita, no qual é possível ver que as mangas são em barafunda, uma técnica artesanal que é retomada por ateliês como Okàn Rere, nos trajes atuais do Axé Ilê Obá. Outra característica importante que é visível na fotografia são as fitas de cetim costuradas na barra das saias. Tradicionalmente, as fitas de cetim simbolizam os anos de obrigação paga. Estes trajes se diferenciam dos comumente encontrados nas umbandas, tantoem volumes amplos como os dos candomblés, tecidos e materiais empregados, quanto nos ilequês distintos das guias da umbanda. Apesar de existirem particularidades inerentes no vestir de cada terreiro, os presentes na casa de Pai Caio se diferenciavam dos chamados uniformes de muitos terreiros de umbanda, trajes mais padronizados. Importante ressaltar que também existe uma grande pluralidade no vestir das casas de umbanda, sendo impossível generalizar. Contudo, é possível comparar os trajes da Figura 41, com os trajes descritos e apresentados em ilustração na obra de Fausto Viana (2023, p. 27), Tenda de Umbanda Oca de Tupã do Caboclo Tuano, que possuem camiseta estampada com o símbolo do terreiro, padronizando o vestir da casa (homens e mulheres). Figura 41 - Terreiro Rua Mucuri, destaque à esquerda Dona Antônia Pimenta com deleguns, fio de conta Fonte: Correa (2014, p. 65). Caboclos da umbanda e divindades das matas costumam utilizar plumas e penas em cocares, e tecidos com estampas de folhas e flores, o que vem desde o período de Pai Caio, passando pela época de Mãe Sylvia, até os tempos atuais. Na Figura 42, podemos ver o caboclo da Mãe Pequena Antônia Pimenta, a Mãe Toloquê, em 1987, vestindo um cocar com longas penas coloridas, que possui búzios em sua base, para reforçar não apenas a associação com elementos indígenas, mas também africanos (é possível comparar este cocar da Figura 42 com os adornos de cabeça africanos que aparecem na Figura 53). Com os mesmos tons de verde, rosa mostarda e branco, que aparecem nas penas, temos o atacã, tecido amarrado no peito, com estampa de listras coloridas. A padronagem de listras era muito recorrente no período de Mãe Sylvia como ialorixá, e se mantém com os velhos no Axé Ilê Obá. O caboclo de Mãe Toloquê preserva a saia estampada com folhagens em tons azulados e branco, camisu branco de bordado vazado e bata branca rendada dos trajes femininos de xirê (sendo a bata uma peça hierárquica, vestida apenas por pessoas mais velhas, como ebomis). É interessante notar que alguns trajes das pessoas mais antigas do terreiro, ainda hoje preservam as características da época em que entraram na casa. Assim, pessoas mais velhas da casa possuem alguns trajes diferentes dos atuais (um maior uso do tecido de chita, por exemplo, no lugar dos tecidos estampados wax print, para os trajes dos caboclos). Figura 42 - Caboclo da mãe pequena Antônia Pimenta. Axé Ilê Obá, São Paulo, SP, 1987 Fotografia: Mudicarmo Ferretti. Fonte: Silva (1995). Caio Egydio de Souza Aranha nasceu na região do Lavapés em São Paulo, atual bairro do Cambuci. Conforme aponta o antropólogo Vagner Gonçalves da Silva, nos estudos de tombamento do Axé Ilê Obá (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado, 1988), aos sete anos de idade, Caio Egydio começa a ter suas primeiras experiências mediúnicas. Isto provoca desavenças com seu pai Antenor, que era católico da Igreja dos Remédios e que gostaria que Caio fosse padre. Aos doze anos de idade, ele teria entrado em transe pela primeira vez. Segundo Renato Correa, isto teria ocorrido durante uma reza, quando um trovão foi visto no quarto em que Caio estava. Esses elementos: número 12 (número relacionado a Xangô no jogo de búzios) e o trovão, seriam os indicativos de seu orixá, Xangô (Correia, 2014). Pai Caio cresceu na cidade de Campinas, com a avó, Cândida. A família Egydio Aranha se inicia com Felício e Eugênia, africanos que foram para Campinas no início do século XIX e que receberam esses sobrenomes por terem sido libertos pela família Egydio Aranha. No relato que Mãe Sylvia fez ao pesquisador Renato Correa (2014), ela ressalta que os cafeicultores Francisco Egydio de Souza Aranha e seu filho Joaquim Egydio de Souza Aranha (origem do sobrenome de escravizados, alforriados e libertos pela família Egydio Aranha) deram enxoval: “Egydio de Souza Aranha... esse nome é de quando eles vieram para cá. [Felício e Efigênia, pais de Cândida, a avó de Caio], a família Egydio de Souza Aranha, deu enxoval, deram profissão e aos poucos eles libertavam os escravos” (Egydio apud Correa, 2014, p. 57, grifo nosso). Vestuário, roupas de cama etc., os enxovais são um ponto de encruzilhada, pois se trata de vestes fornecidas por estes senhores brancos escravocratas, porém que serão usadas à maneira dos negros. A pesquisadora Beatrice Rossotti (2019), em sua investigação de mestrado, reforça o termo “vestir-se negra” para mulheres negras no século XIX do Rio de Janeiro. Aqui reforço para o caráter múltiplo desse vestir, ainda no século XIX, e que se desdobrará nos trajes de terreiro. Por múltiplo, tenhamos em mente que inclusive os trajes de escravizadas nos séculos XVIII-XIX no Brasil, também eram variados. Por esta razão, não devemos generalizar as roupas das escravizadas no Brasil colonial, sendo empregada uma variedade de tecidos, a depender de sua posição, ofício, e região em que estava: “As escravas, em geral, usavam uma saia de chita, riscado ou zuarte, camisa de cassa grossa ou vestido de linho rústico. Todavia, as ricas senhoras baianas do século XIX gostavam de exibir suas escravas bem arrumadas e enfeitadas de jóias” (Peixoto, 2003, p. 41), sendo importante destacar a agência africana e afro-brasileira na escolha destes tecidos para confeccionar as roupas. Caio Egydio sai de casa ainda na adolescência e passa a viajar muito, indo especialmente para a Bahia, em visita a terreiros. Pai Caio de Xangô foi iniciado no candomblé em 1941, em Salvador, por Maximiana Maria da Conceição, a Tia Massi, da Casa Branca do Engenho Velho (Ilê Axé Iyá Nassô Oká), na Bahia. Pai Caio recebeu o nome de Obá Inã, o Rei do Fogo. Pai Caio era filho de Xangô e tinha Oxum como sua orixá juntó, sua segunda orixá (Oxum é uma orixá feminina muito popular em Salvador, com muitas filhas; e sendo divindade relacionada ao ouro, traz muito brilho e dourado nos trajes, o que podemos ver na roupa de Pai Caio, na Figura 39, com tecido em brocado com fios metálicos, Lurex). Na época, a iniciação de homens era incomum no terreiro nas casas matrizes baianas, que são os primeiros terreiros de candomblé que se tem registro (Correia, 2014). Na Figura 43 é possível visualizar a primeira cadeira de babalorixá da casa, seu trono vermelho de veludo. Ele se encontra presente até os dias atuais no Axé Ilê Obá, pois a cada nova liderança, uma nova cadeira deve ser feita, específica para aquele líder religioso. A cadeira de Pai Caio traz a cor de seu orixá, Xangô, e um material que o associa ao rei de Oió. As ialorixás seguintes tiveram cadeiras com outros materiais e cores, distintos do de Pai Caio. O ebomi Felippe de Logun Edé cita, por exemplo, o momento de posse de Mãe Paula, como seu entronamento, tal qual a realeza: Tem toda a preparação durante um ano até que 2015 Mãe Paula foi entronada a atual ialorixá. Muito parecido com aquelas coisas monárquicas, porque a África também tem impérios. Eles também eram reis e rainhas, os orixás foram reis e rainhas, então tem todo um dandismo e tem toda uma preparação para nossa atual ialorixá hoje estar atuando (informação verbal)60. Esta fala traz dois importantes pontos a serem ressaltados e que marcam a estética do vestir no período de Pai Caio: realeza e dandismo. O dândi ao qual o ebomi se refere, é a figura masculina que possui um requinte expresso em seu vestir, para a sociedade. A figura mais lembrada como um dândi foi o inglês George Bryan Brummell, no século XIX. A pesquisadora Gilda de Mello e Souza (1987) ressalta que essa figura masculina se encontrava no que era chamada de “A grande Renúncia” de símbolos do vestuário, como grandes volumes de tecidos nas roupas, cores saturadas ou certos ornamentos, para vestir determinadas insígnias de poder que demonstravam suas posições sociais: chapéuse luvas; bengalas e guarda-chuvas; charutos; joias (anéis, abotoaduras, relógios). Estas insígnias também aparecem nos trajes do Axé Ilê Obá, 60 PIMENTA, Felippe. Palestra. [20 ago. 2023]. São Paulo. 9ª Jornada do Patrimônio. com destaque para as roupas dos encantados, como exus. Utilizar-se de insígnias eurocêntricas dominantes, como elementos de valorização da cultura ali cultuada, subvertendo estruturas sociais de dominação na maneira visual do vestir. Este ponto se conecta com as insígnias de realeza. No Axé Ilê Obá, durante a época em que Pai Caio era babalorixá, a coroa, a cor vermelha e o veludo foram elementos visualmente bem explorados (na identidade visual da casa, decoração, materiais impressos etc.), por serem elementos relacionados à realeza de Xangô. Xangô também possui outros elementos icônicos, como o oxê (machado de dois gumes), a pedreira, raios etc., mas que não eram tão marcantes na identidade visual da casa. Figura 43 - Pai Caio de Xangô em sua cadeira de veludo vermelha, com crucifixo na parede demonstrando o sincretismo católico da casa; com trajes em brocado metálico 61 , muito característicos das vestimentas de Oxum, sua segunda orixá Fonte: Egydio (1980, p. 29). 61 Sobre a fibra metálica de Lurex, muito presente na época, trata-se do nome comercial de uma marca, fibra muito fina de alumínio, prata ou ouro, recoberta por polímero sintético, registrada em 1946 (apesar de já existirem outras fibras metálicas) pela empresa Dobeckmun Company (EUA) (Lurex, 2023). O material foi muito popular nos anos 1970 e 1980, principalmente; no início da década de 1950, quando o Axé Ilê Obá foi fundado, a fibra não tinha tal popularidade. Em 1949, Pai Caio recebe seu Decá, a senioridade iniciática de 7 anos, representada fisicamente por um fio de contas, das mãos da reconhecida Menininha do Gantois. Assim ele se torna babalorixá, sacerdote líder de um terreiro de candomblé queto (Correia, 2014). Pai Caio era cantor popular de samba e operetas na Boate Feitiço, na Avenida São João em São Paulo nas décadas de 1950-1960, o que fez com que ele conhecesse muitas personalidades influentes, como Dercy Gonçalves (Correia, 2014). Esses contatos também auxiliaram no aumento de sua clientela de jogos de búzios e outras consultas e trabalhos espirituais. Este é um dado importante para demonstrar que o terreiro sempre esteve muito próximo de personalidades de São Paulo, seja pelo viés artístico, ou mesmo político, como veremos na fase de Sylvia Egydio. Isto auxiliou na continuidade da casa e em seu grande crescimento. Nesse período, é visível nas fotografias da época, a influência que as roupas dos terreiros baianos tinham sobre o traje do Axé Ilê Obá. Os homens, principalmente os ogãs (cargo masculino que não incorpora os orixás, e podem ter diversas funções como tocar o atabaque, organizar a sala nos dias de xirê, fazer as oferendas etc.) vestiam roupas com silhuetas retangulares e muitas vezes ternos brancos nas festas públicas, como podemos ver na Figura 44. Isto também se relaciona com os terreiros baianos, pois muitas casas matrizes, a princípio, não iniciavam homens, que usavam roupas não necessariamente confeccionadas para o candomblé, mas roupas “domingueiras” (os melhores trajes que, principalmente no século XIX, eram reservados para o uso nas missas católicas de domingo). Em entrevista com Mãe Paula de Iansã, ela aponta sobre o uso de terno branco pelos homens, como um meio de não deixar tão evidente que eles pertenciam ao candomblé, visto a perseguição que religiões afro-brasileiras tinham no período: Hoje os ogãs são mais despojados. Na época do Pai Caio ele não aceitava. Era terno, gravata e sapato branco de bico social. [...] E outra coisa, na época do Pai Caio candomblé era proibido. Então, estar de terninho é cristão. Então, talvez, era para mascarar, para não ficar muito em evidência que era religião de matriz africana. Tem toda essa questão histórica também (informação verbal)62. 62 EGYDIO, Paula Regina. Entrevista. [05 jul. 2023]. São Paulo. Entrevista concedida a Aymê Okasaki. Figura 44 - Ogãs alabê, no Axé Ilê Obá Fonte: Egydio (1980, p. 1). Já as mulheres aparecem com um traje comercialmente conhecido como baiana completa, em silhueta triangular, com maior volume nas saias com anáguas engomadas (Figura 45). As mulheres circulavam fora do terreiro com trajes de candomblé, mas em casos específicos (Mãe Sylvia era vista com seus trajes rituais, em aparições públicas, encontros com políticos, e momentos no qual estivesse como representante religiosa em algum evento público). No cotidiano, os trajes ritualísticos possuem uso restrito ao terreiro. Figura 45 - Terreiro da Rua Mucuri, meados de 1960 Fonte: Correa (2014). O Axé Ilê Obá seguia a composição tradicional de peças do chamado traje de baiana (esquema com a composição do traje na Figura 21). Importante destacar que, na Bahia, muitos terreiros só permitem o uso de sapatos com salto alto, maquiagem, brincos de argolas grandes e acessórios mais diferenciados, após sete anos de iniciado, ou seja, quando já se é ebomi. Como mostra a ilustração da Figura 21, as roupas femininas do estilo chamado de baiano, possuem saias volumosas, o que ocorria também para as roupas dos orixás. Inclusive os orixás oborós (masculinos) também costumavam utilizam saietas (isto porque nos candomblés antigos, só mulheres entravam em transe, e elas já vestiam saia/saieta) (Souza, 2007). No candomblé, as divisões no que tange aos gêneros não são apenas binárias. Orixás podem ser oborós (masculinos), iabás (associadas ao poder feminino: Oxum, Iansã, Obá, Euá, Iemanjá e Nanã), metá-metá (metade-metade, carregando ferramentas e roupas que mesclam insígnias dos oborós e das iabás, como é o caso de Oxumarê e Logun Edé). Além da diferenciação das divindades, existe o candomblecista em si; a religião recebe muitos filhos homossexuais, e agora adentra em outros debates sobre a vestimenta com candomblecistas trans. Neste aspecto, Luana de Oiá, do ateliê Okàn Rere, que produz roupas para o Axé Ilê Obá, traz uma fala que demonstra parte do pensamento atual de muitos terreiros de candomblé: Da mesma forma que a gente tem presente uma pessoa trans dentro na nossa casa, essa pessoa vai vestir de acordo com a identidade do gênero dela. Se essa pessoa chegou em casa como João ele vai se identificar como Maria, ele vai se vestir como Maria, vai utilizar o vestiário feminino, pessoas olhando torto ou não. Vai passar a se vestir como Maria de Iansã, assim como todas as mulheres de Iansã daquela casa e vai ser identificada daquela forma, com as roupas que ela se identifica, vai passar a entrar do portão para dentro de saia e não mais de calça. A pessoa já chega com a identidade dela firmada, já passada pelo processo de transição. Vai chegar no terreiro já de acordo com a vestimenta que sente confortável. Então, a gente não faz esse tipo de distinção. Por exemplo, se a pessoa tem como cargo de pessoa não rodante, ogã e equede, se a pessoa se identifica com o gênero feminino será equede de Iansã, se a pessoa se identifica com o gênero masculino será ogã de Oxalá. Então a gente tem essa abertura no nosso terreiro, porque, como a Isa disse, não tem como a gente estar em um espaço de acolhimento, em um espeço onde orixá é tão acolhedor, nos abraça de tal forma, e a gente não conseguir acolher as pessoas que entram ali pedindo ajuda (informação verbal)63. Isto é, para Luana Rampazi, os trajes dos candomblecistas devem seguir os gêneros com os quais se identificam, isso para além dos trajes das divindades, que possuem seus próprios códigos. Desta forma, as roupas e tecidos marcadores de hierarquia acabam sendo um fator de maior importância que os de gênero. Tecidos hierárquicos Podemos ver esses tecidos marcadores e diferenciadores de hierarquia, naépoca de Pai Caio, mas também nas fases seguintes de Sylvia de Oxalá e Paula de Iansã, com o uso do richelieu pelos altos cargos. Esse bordado aberto pode ter diversas figuras vazadas (folhas, flores, arabescos ou até mesmo letras e insígnias de orixás). Na Figura 46, é possível ver um acabamento na barra dos calçolões de orixás, em bordado richelieu. Isto porque as roupas dos orixás são os principais trajes vistos em um xirê. 63 RAMPAZI, Luana; REZENDE, Isabela. Entrevista. [12 mar. 2023]. Online. Entrevista concedida a Aymê Okasaki. Figura 46 - Acabamento em richelieu no calçolão de Oxum (esquerda) e de Omolu (direita) Fonte: Egydio (1980, p. 50, 58). Se na corte francesa de Luís XIII, o richelieu era voltado para roupas sacerdotais católicas 64 e da nobreza, nos candomblés o tecido também respeita uma hierarquia e momentos de uso, sendo mais voltado a trajes de festa, das divindades e a altos cargos (ialorixás, equedes, ebomis). Nos terreiros, o richelieu é feito em tecido de algodão encorpado, em peças que são engomadas; ou na cambraia de linho, ou na organza para tecidos mais finos (Lody, 2015). É uma técnica insígnia de hierarquia. Contudo, mesmo um tecido considerado tradicional nos ilês, também sofre alterações e por vezes substituições, como podemos notar na entrevista com Bianca Almeida, que produz os trajes para o Axé Ilê Obá: É... eu tive alguns amigos que foram em alguns terreiros de Candomblé na Bahia e eles me informaram que lá eles tentam ser mais tradicionais possível: richelieu, alguns usam guipure ainda, richelieu é colorido. Hoje em dia, aqui em São Paulo, você ainda acha casa que os ebomis usam richelieu, aqui mesmo alguns usam. Mas, se você começa a ver, por exemplo, de um ano ou dois anos para trás, antes, era só richelieu. Hoje, é guipure e entremeio. [...] Então, eu perguntei pro Péricles e ele falou que não [tinha uma confecção que fazia os trajes do terreiro], que, às vezes, era, por exemplo, a Jacira pegava e fazia porque tinha uma maquininha pequena, pessoas de dentro da casa mesmo ou ela mandava pra fora e falava: “ô, meu filho, faz aí em Salvador e eu pego” Tem roupas delas que é uns richelieu mais trabalhados assim que são roupas que na época eram caríssimas, tipo 8 mil reais. [...] E hoje é muito difícil você achar o richelieu para comprar. Assim, é muito difícil, só no Nordeste. Já fui pra Aracaju, numa feira que tem lá, que tem, mas é muito difícil. E quando você acha é mais caro que guipure, então [...] (informação verbal)65. Quanto mais complexo o desenho, mais caro será o tecido, bem como se ele for de bordado manual ou mesmo feito com máquina de costura no bastidor (e não em uma máquina de bordado). Mesmo com as máquinas de bordados possibilitando a produção de richelieu de 64 O uso do tecido pelo cardeal e duque de Richelieu Armand-Jean du Plessis (1585-1642), primeiro-ministro da corte francesa do rei Luís XIII, deu o nome ao têxtil. 65 ALMEIDA, Bianca Batista. Entrevista. [06 set. 2019]. São Paulo. Entrevista concedida a Aymê Okasaki. maneira mais rápida, o que se nota é que, sendo um bordado feito de maneira mais individual, em pequenas produções, quando o tecido é comparado às rendas e bordados industriais, como o tecido guipure, ele vem perdendo mercado (ao menos entre os de cargos mais baixos, que devem utilizar trajes mais simples que seus irmãos mais velhos na religião). Os tecidos signos de hierarquia nos terreiros necessitam ser visualmente atraentes, de qualidade, não necessariamente artesanais ou excessivamente dispendiosos; sendo o richelieu presente mais em trajes dos mais velhos ou de trajes de herança; ou em detalhes, para as cerimônias festivas (uma barra, punho, manga ou decote). 4.1.1. Roupa dos orixás e paramentos Outro tecido hierárquico, utilizado nas roupas de alguns orixás, é o veludo. O veludo utilizado por Xangô simboliza que este é oorixá Rei de Oió. Essa associação do tecido de veludo com o imaginário de realeza pode se conectar a duas referências: uma eurocêntrica (além dos mantos, símbolos como as coroas de modelo europeu também costumam ser utilizadas nos trajes de Xangô) e outra com referências aos têxteis de veludo de ráfia, presentes especialmente no centro do continente africano, dos povos Bakuba (ou Kuba). Realizo esta associação com o tecido Kuba, por ter presenciado este tecido no salão do terreiro de candomblé de Oxumarê (Bahia), e por ter visto, durante a pesquisa de campo, estampas de tecidos industriais que imitavam a padronagem dos tecidos kuba, sendo vestida por um filho do Axé Ilê Obá. A autora Colleen Kriger (2006) discorre sobre o apreço do tom escarlate em tecidos cerimoniais em regiões iorubás no século XVII. Tecidos importados eram desfiados e transformados em tecidos para ritos fúnebres e ritos das mascaradas ancestrais. O apreciado tecido de lã escarlate ododo é outro têxtil presente no Benin, advindo por meio de intermediários iorubás (antes da presença de fornecedores de lã vermelha importada por holandeses). A corte no Benin passou a utilizar e regular o uso do ododo (e de outros materiais que fossem da cor vermelho coral), no século XVII, no qual era preciso uma permissão oficial para utilizar tanto tecidos vermelhos, quanto contas em coral vermelho. Importante ressaltar que o apreço pelo uso da lã neste tingimento escarlate torna o tom de vermelho mais intenso do que em fibras celulósicas (Kriger, 2006). Um marcante traje de Xangô com veludo é o da Figura 47, fotografia de Pai Caio de Xangô que atualmente está estampando as paredes externas do terreiro e que também foi capa do disco de Pai Caio. Na imagem, temos o sacerdote com os paramentos vermelhos da divindade Xangô, orixá que representa a justiça na cosmologia do candomblé. Tradicionalmente nos terreiros de candomblé, esse orixá vem paramentado com uma coroa na cabeça, simbolizando sua realeza. Contudo, na imagem é possível ver um adorno, que faz referência ao capelo utilizados por juízes. Diferente dos quipás comumente utilizados pelos sacerdotes do candomblé, o capelo é mais alongado, mantendo a estrutura tubular (Prandi, 2020). Ao evocar o capelo, se evoca também um símbolo de justiça da sociedade civil ocidental. Figura 47 - Capa do LP de músicas de candomblé do Babalorixá Caio Aranha, de 1983 Fonte: Aranha (1983). O adê, adorno de cabeça, remete aos capelos que compõem as vestes talares dos juízes, do sistema de judicial ocidental (traje que deriva das roupas sacerdotais dos etruscos, mas que se estrutura mais fixamente no período da Idade Média, com influência da Igreja Católica e das universidades europeias do século XVIII, de acordo com a pesquisadora Katia Albuquerque, em seu livro A Toga e a Beca, de 2019). Ele indica esse senso de justiça da divindade, mas também outros desejos de Pai Caio, que sempre apontou que desejava que o terreiro fosse um Seminário e futuramente uma Universidade de Candomblé, um centro educativo que pudesse compartilhar os conhecimentos da religião. Assim como o capelo, o adê de pai Caio possui as plumas brancas, o veludo e formato tubular baixo. As cores brancas no traje também retomam a conexão mítica da divindade Xangô com o orixá Oxalá e sua cor branca (apesar da cor tradicional de Xangô ser o vermelho, alguns se vestem completamente de branco demonstrando essa relação de respeito). Por cima de um calçolão, o orixá Xangô pode usar saieta e/ou bombacha e as chamadas gravatas. Trata-se de uma sequência de laços, presos na região da cintura, e com pontas triangulares, como se pode observar na Figura 48. Conforme aponta José Roberto Santos (2022), o formato das gravatas no traje de Xangô também nos remete aos trajes dos Egunguns, ancestrais divinizados, tal qual o orixá Xangô, que em vida seria o quarto Alafim (o soberano da cidade de Oió), isto é, também um ancestral humano, mas que foi divinizadocomo orixá. Figura 48 – Gravatas brancas sobreposta à saieta do orixá Xangô de Pai Caio, no Axé Ilê Obá Fonte: Acervo Axé Ilê Obá (Fotografia cedida por Telma Witter, assessora do Axé Ilê Obá). As roupas dos orixás na época de Pai Caio mesclavam com grande intensidade referências africanas, europeias, do catolicismo, da umbanda, normalmente trazendo muito brilho (tecidos com fios de Lurex, uso de cetim, e paramentos visualmente parecidos aos que havia nos terreiros de candomblé da Bahia, feitos em folhas de flandres, latão, cobre, zinco niquelado, com couro, penas, búzios, rabo de boi ou cavalo, chifres e palha da costa, para remeter aos materiais naturais de cada orixá). Na Figura 49 podemos ver orixás oborós, na década de 1980, e é possível identificar elmos metálicos ao estilo dos soldados da Roma Antiga. O primeiro orixá à esquerda é um Ogum que veste saieta escura com faixas horizontais que refletem brilho, reforçando a características tanto dos brilhos quanto das listras (mesmo que essa possa ser da tecelagem do tecido ou mesmo uma montagem de faixas costuradas juntas). Tal qual o Ogum, o Oxóssi no centro da figura também utiliza saieta e paramentos de latão. Contudo, tanto o Oxóssi quanto Logun Edé trazem em seus elmos, as plumas no topo da cabeça. É importante pontuar que, apesar do imaginário popular remeter aos soldados greco-romano, ou às armaduras da Europa medieval, elmos com penachos ou cimeiras (para crinas ou até mesmo lã cardada) foram encontrados em diferentes civilizações na Antiguidade tanto no Ocidente quanto no Oriente. Apesar dos elmos, espada e impulsas metálicas, esses três orixás guerreiros da Figura 49 não trazem peitaça metálica ou de couro. Isto não quer dizer que as peitaças metálicas não eram utilizadas no Axé Ilê Obá (como podemos visualizar na Figura 50 com Iansãs guerreiras), mas é certo que elas pouco aparecem na atualidade, sendo substituídas pelas próprias amarrações de atacãs ou por materiais mais maleáveis, que permitam que o orixá dance mais livremente pelo barracão durante o xirê. Figura 49 - Orixás oborós, masculinos, paramentados: Ogum, Oxóssi e Logun Edé Fonte: Egydio (1980, p. 45; 48; 56). Nos paramentos dos orixás, se destaca também o sincretismo com os santos católicos. Devido às origens do terreiro na umbanda, símbolos católicos são vistos até a atualidade, como o grande crucifixo na parede no barracão. Mas nos trajes, é possível verificar na Figura 50, por exemplo a associação de Santa Bárbara com Iansã, por meio do adê em formato de coroa com as formas da torre, remetendo à mitologia de Santa Bárbara. De acordo com a tradição católica, Santa Bárbara era uma jovem presa em uma torre, pelo seu ciumento e viúvo pai, Dióscoro. Enquanto ele viajava, sua filha ficava presa na torre, que foi projetada com duas janelas. Contudo, Santa Bárbara pediu para que a construção tivesse três janelas, para que ela pudesse pensar na Santíssima Trindade, enquanto estava na torre (Tommasi, 2014, p. 13). Esta associação de Santa Bárbara com Oiá é confirmada com uma imagem da santa que está afixada na frente do quarto de Iansã, nas dependências internas do terreiro. Na imagem a torre está evidente, demonstrando essa associação que reaparece nos paramentos. Figura 50 – Iansãs paramentadas, no Axé Ilê Obá, ainda na Rua Macuri Fonte: Acervo Axé Ilê Obá (Fotografia cedida por Telma Witter, assessora do Axé Ilê Obá). Uma primeira fase estética de paramentos no Axé Ilê Obá, tem, além do brilho nos tecidos dos orixás – se pode ver na Figura 51, com a roupa de Oxum em tecido com brilho em padronagem de ondas com aplicação de pingentes transparentes em gota, saia muito estruturada e relativamente mais curta, assim como o laço de cabeça também muito estruturado –, a influência do metal marchetado, e com muitas padronagens. As insígnias utilizadas pelos orixás no momento das festas públicas ainda possuem uma materialidade muito próxima da que encontramos nos terreiros nordestinos. O trabalho no metal se mostra muito presente nas folhas de flandres, latão, cobre e zinco niquelado (abebê em formato de coração e adê com desenhos de flores, bem como pulseira de copo, idé/pulseiras, brinco de argola da orixá Oxum na Figura 51, à esquerda). Toda a perícia das metalurgias africanas é aplicada nos paramentos de base metálica, sempre muito bem adornada. Ainda na Figura 51, temos a imagem de Pai Caio, com uma camiseta de bordado vazado, semelhante a uma laise, calça e babuche. Interessante notar a presença dos tecidos com bordados vazados, como a laise, desde a época de Pai Caio até os tempos atuais e perceber o quanto este tecido permeia distintas hierarquias, sendo utilizado pelo babalorixá, até o abiã. Os iorubás possuem um trabalho têxtil que se assemelha ao efeito de bordados vazados, são os tecidos axó oke com eleya, nos quais fios flutuantes são acrescentados na trama, abrindo pequenos espaços vazados. Figura 51 – Oxum paramentada, no terreiro localizado na Rua Macuri, na década de 1960 Fonte: Arquivo Axé Ilê Obá. As matérias-primas naturais, que trazem a energia vital, também se apresentam nos adornos com penas (Figura 52), rabo de cavalo/boi, chifres além de materiais vindos do mercado africano como palha da costa e búzios. Na Figura 52, se vê o caboclo de Pai Caio, o Rompe Mato, que veio da umbanda e permaneceu no candomblé Axé Ilê Obá. Até os dias atuais a casa cultua as entidades da umbanda e trouxe muito da arte plumária nos cocares a adereços dos caboclos. Figura 52 – Paramento com penas naturais para caboclo Rompe Mato, de Pai Caio, em 1982, no terreiro Axé Ilê Obá Fonte: Arquivo Axé Ilê Obá - Esquerda; Cecília Negrão (2018), foto de Diário Popular (1982) – Direita. As penas e plumas remetem aos povos originários brasileiros, contudo distintas culturas africanas também possuem adornos de cabeça com arte plumária. Este é o caso das plumas de chapéus dos Camarões, da Figura 53. Adornos de cabeça, chapéus feitos de ráfia e algodão em crochê e cestaria possuem penas aplicadas e são utilizados em ritos funerários durante as danças. Penas vermelhas da cauda do papagaio cinzento africanos são utilizadas para os chapéus cerimoniais, porém existe uma substituição crescente desta por pena de galo e galinha tingida. As penas de aves selvagens têm sido substituídas por penas de aves que sejam criadas (Gillow, 2003, p. 208-209). Figura 53 – Chapéus de penas de pássaros selvagens, usados por altos dignatários ou mesmo do fon (rei) de pequenos reinos das áreas de pastagens dos Camarões (os dois superiores à esquerda estão no avesso, como eram guardados para que as longas penas não quebrassem) Fonte: Gillow (2003, p. 208-209). Algumas penas específicas que fazem parte dos ritos do candomblé remetem às culturas africanas. É o caso da pena de ecodidé, a pena do papagaio da costa. Esta pena vermelha da cauda do papagaio africano, papagaio Gabão ou papagaio do Congo, simboliza a fala. Ela aparece amarrada na cabeça (testa), do iniciado, mas também pode aparecer em outros ritos (em visita de campo, em 2023, pude presenciar uma Oxum paramentada, com uma pena de ecodidé presa na parte interna de seu adê; remete à importante presença de Oxum nos ritos iniciáticos, devido a sua relação com a fertilidade, o sangue menstrual e a própria gestação, com o nascimento de uma/um iaô). Importante ressaltar que a tradição baiana fez despontar diversos mestres, artesãos e artistas que trabalhavam com a produção de paramentos (tanto com matérias-primas naturais, quanto com as folhas metálicas), como o reconhecido Mestre Didi, Deoscóredes M. dos Santos (1917-2013). Para compreender a relação desses mestres com os materiais naturais, com axé, Mestre Didi, por exemplo, escreveu o livro Por que Oxalá usa Ekodide (1966), tratando apenas da mitologiado uso da pena ecodidé. Assim, muitos paramentos usados em São Paulo eram comprados de produtores baianos, ou seguiam a estética baiana, com muita matéria-prima natural. O terreiro ganhava importância e destaque na cidade, quando em 1984, Pai Caio morre por infarto, sem deixar filhos consanguíneos; o que gera muitos problemas legais para a casa. Primeiramente se inicia uma disputa sobre quem seria herdeiro do espaço físico do terreiro, e depois quem assumiria a liderança da casa. Dois anos antes da morte de Caio, em 1982, ele havia iniciado sua sobrinha, Sylvia de Oxalá. Apesar de ela não possuir a senioridade iniciática (isto é, ela era iaô, e não ebomi), tomou posse como ialorixá do terreiro, após a morte de Pai Caio. Esse é um dos motivos pelo qual a iaquequerê, Mãe Toloquê, assumiu provisoriamente a liderança do terreiro, antes de Mãe Sylvia. Os terreiros de candomblé possuem um período de luto de 1 ano, antes de retomarem as atividades públicas. Neste tempo, Sylvia fez uma série de consultas aos búzios em São Paulo e na Bahia, a fim de que fosse revelado se deveria ocupar o cargo de ialorixá do terreiro Axé Ilê Obá, ou não. Depois de muitas visitas e consultas, Sylvia de Oxalá assume o cargo de ialorixá. Além disso, estava em disputa judicial a posse do terreno, o que Sylvia conseguiria solucionar com uma ação até então inédita em São Paulo, pedindo o tombamento da casa como patrimônio histórico (Correa, 2014). A ialorixá que ficaria lugar de Pai Caio, após sua morte, Mãe Sylvia de Oxalá, já apontava em textos, que o mais importante naquele momento de Pai Caio, era que a casa fosse colorida, e que eles buscavam, dentro dos limites que um terreiro urbano possui, manter as tradições (importante entender que as tradições nesse momento se referem principalmente às que eram realizadas nos terreiros de candomblé da Bahia): Sem perder a simplicidade, traz luxo e beleza em suas acomodações. Tudo é muito bem-feito e cuidado, trazendo, num visual colorido, a real imagem dos deuses africanos. [...] ao adaptar-se à realidade de uma sociedade urbana, abrindo suas portas para o progresso entrar com suas tecnologias e benefícios, procurou fazê-lo sem alterar seus costumes e tradições (Egydio, 1980, p. 9-10). Após o falecimento de Pai Caio, quem deu continuidade às obrigações de formação que faltavam para Mãe Sylvia foi Mãe Glória, do terreiro mineiro de nação Angola, Lodé Apará. Aqui cabe ressaltar a influência das famílias de axé estendidas. Quando uma filha toma obrigações e cumpre ritos em outros terreiros, ela também passa a integrar aquela família de axé, recendo influências daquele terreiro. A estética das casas de nação Angola possui características distintas das casas queto (com mais volume, cores e brilho). A casa Lodé Apará reaparece em outro momento importante, que é a posse de Mãe Paula de Iansã, anos depois (Figura 63, com Tata Jalagbo). Sylvia Egydio nasceu em 15 de julho de 1938, na cidade de São Paulo, e morou no bairro da Liberdade (bairro negro entre os séculos XVIII-XIX, inclusive com vestígios materiais de religiosidade afro, como contas de vidro azuis, encontradas em ossadas do antigo Cemitério dos Aflitos, em 2018). Mãe Sylvia estudou no Colégio Caetano de Campos e entrou na Escola de Enfermagem da Cruz Vermelha. Morou no bairro de Pinheiros em São Paulo, e sofria com o preconceito, inclusive casos em que sua casa foi alvo de pedradas. Mãe Sylvia também teve uma saúde debilitada, sofreu com dois acidentes vasculares cerebrais – o primeiro em 1971 após a morte de sua mãe, o que a fez retomar seu contato com a religiosidade, e o segundo em 1981 (Queiroz; Cunha Junior, 2023, p. 9). Uma fala recorrente dentro dos terreiros é que muitas pessoas adentram a religião “pela dor”, no sentido de buscar auxílio para doenças. Após sofrer um AVC aos 32 anos de idade, no qual ficou 53 dias em coma, Sylvia Egydio buscou auxílio no terreiro de umbanda da Rua Turi (em Pinheiros) e retomou o contato com o terreiro de seu tio, Pai Caio, por meio de Maria Antunes, a antiga iamorô do Axé Ilê Obá. Devido às sequelas do AVC, Mãe Sylvia deixou de atuar com a enfermagem. Neste momento, Mãe Sylvia teve de tirar ebós (oferendas aos orixás) e fazer o ritual do bori (rito para dar comida à cabeça, ao orí) com Pai Caio, que pedia para que Mãe Sylvia se iniciasse, o que ela não gostaria de fazer no momento (Queiroz; Cunha Junior, 2023, p. 10). Em 1972, Sylvia Egydio se graduou na Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado em Administração, com ênfase em Comércio Exterior. E entre 1974 e 1975, ela se especializa em Comércio Exterior com o trabalho “O comércio dos árabes e os países Africanos”. Mãe Sylvia enfrentava problemas de saúde durante a redação da pesquisa e contou com o auxílio da antiga Iamorô do Axé Ilê Obá, Maria Antunes: Maria Antunes me ajudou muito, inclusive a escrever esse trabalho era tudo datilografado, era terrível fazer. Apresentei esse trabalho na Federação do Comércio, fui a primeira mulher a estudar sobre isso, lia muito, li muito até de cama eu lia. Já conhecia os países africanos porque logo após sai da Enfermagem trabalhei com o pessoal de Moçambique, ainda no período de guerra, trabalhei com comércio de materiais de limpeza eu ia para lá, via as necessidades e mandava daqui para lá. Fui pra Angola, Costa do Marfim, Senegal. Depois que me formei me estabeleci comercializando produtos de primeira necessidade (Egydio apud Correa, 2014, p. 90). Em 1981, quando Mãe Sylvia tem um segundo AVC e passa 59 dias em coma, ela se encontrava em plena atividade internacional, se preparando para uma viagem para a África, para dar sequência em sua pesquisa. Devido às sequelas, Mãe Sylvia passa a utilizar bengala e bota ortopédica. Pai Caio, que já sinalizava a necessidade de iniciação de Mãe Sylvia, tanto para sua saúde (especialmente sendo o AVC acometido na cabeça, região do corpo que é a morada dos orixás) quanto já pensando na continuidade do Axé Ilê Obá, inicia Sylvia Egydio, que recebe o nome de Alafurikã (Correa, 2014, p. 89-91). Neste ponto, gostaria de ressaltar um objeto que adentra os trajes de um terreiro, mas que possui simbolismos e funções distintas: a bengala. Como já apontado anteriormente, no século XIX, a bengala, para o uso masculino da elite, era considerada como uma insígnia de poder. Por isso, ela também aparece no vestuário de alguns exus (entidade). No entanto, outra entidade que usa a bengala com outra simbologia, é o preto-velho e a preta-velha. A bengala que auxilia no caminhar do ancião, tal qual o opaxorô também auxilia no caminhar de Oxalá, é o símbolo da senioridade. No candomblé, a senioridade é sinônimo da sabedoria de vida. Ao longo da escrita desta tese, vi a coleção de bengalas de meu pai se ampliar, compreendendo que tal elemento, para além de sua função simbólica, se torna uma extensão do corpo daquele que a necessita. No dia 8 de março de 1986, Sylvia Egydio toma posse como ialorixá do Axé Ilê Obá, em um rito com presença de sacerdotes das casas baianas: Pai Pérsio de Xangô (Figura 53), Pai Gitadê (ele também conduziu os ritos fúnebres de Pai Caio, o axexê dele; bem como jogou os búzios e apontou que Mãe Sylvia deveria reivindicar a posse jurídica do terreiro), e, para a condução até o cargo, Pai Air de Oxaguiã, babalorixá do terreiro Pilão de Prata que tem em comum com o Axé Ilê Obá, o fato de descenderem da Casa Branca do Engenho Velho (Correa, 2014, p. 97). Na Figura 54, podemos ver Mãe Sylvia vestida com o que é chamado de baiana completa, ou seja, o traje composto com anáguas e saia, para além de camisu e bata (panos da costa, ojá etc.). Este é um traje pesado que requer esforço de quem o veste. Por isso, ao longo dos anos no qual Mãe Sylvia esteve à frente do Axé Ilê Obá, conforme avanço da idade, foi mais evidente o uso dos cafetãs (conjunto com túnicalonga, ora com calça ou túnica um pouco mais curta com saia longa). Isto porque os cafetãs são mais leves para vestir, por não serem necessárias as várias anáguas. Outra característica que era específica do vestuário de Mãe Sylvia, é que na composição com cafetã, nem sempre Mãe Sylvia utilizava o laço amarrado na cintura. Figura 54 - Mãe Sylvia de Oxalufã no dia de sua posse, com Pai Pérsio de Xangô à esquerda, em 1986 Fonte: Correa (2014). A posse de Mãe Sylvia marca uma divisão estética forte nas roupas do terreiro, pois agora o regente da ialorixá é um orixá fun-fun, ou seja, do branco. É perceptível um clareamento nos tons das roupas e um uso maior de tons pastéis (o que foi apontado em entrevista com Bia de Oxum, da Patuá Confecção 66 ). Ademais, o orixá juntó, segundo orixá, de Mãe Sylvia, era 66 ALMEIDA, Bianca Batista. Entrevista. [06 set. 2019]. São Paulo. Entrevista concedida a Aymê Okasaki. Iemanjá 67 , que também costuma vestir cores claras, reforçando esta característica no vestuário da casa. Para as festas de Oxalá, Mãe Sylvia não aceitava que visitantes não estivessem vestindo branco. Em entrevista 68 , Mãe Paula comenta que: E chegava o mês de setembro, início do nosso ano litúrgico, e começa o mês do branco, orixá fun fun. Ela mandava um ogã ficar na porta, e se alguém estivesse de calça jeans ela mandava retirar a pessoa. Ela falava na festa: vai no Brás, compra saco, aqueles pano de saco, e faça blusa e calça e venham de saco, mas não desrespeitem a minha casa (informação verbal). O ogã de sala é aquele que realizava este controle dos trajes dos visitantes, nas festas. A sugestão de se comprar tecido de sacaria, não era indicado apenas por seu preço. Ele estava presente também em algumas roupas de ração e peças interiores como anáguas. O morim, tecido de algodão mais barato, era a sugestão que Mãe Sylvia dava para seus filhos, para confecção de anáguas a preço mais acessível, como é possível ver nesta fala de Georgia Prado: E aí conversando com ela [Mãe Sylvia] uma vez, eu estava querendo ajudar uma menina da casa que não tinha roupa e eu não costurava. Eu queria falar para ela, “mãe, como é que a gente vai fazer o saiote da menina, a menina não tem roupa, não tem dinheiro, não tem nada”. Ela falou “filha, compra morim e você vai fazer tal e tal coisa, aí você traz aqui e a gente franzi juntas” (informação verbal)69. Mãe Sylvia, mesmo não sendo costureira, detinha conhecimentos de costura para que pudesse auxiliar os filhos do Axé Ilê Obá, inclusive na construção de seus trajes e escolha de tecidos. Além disso, as mulheres mais velhas e com cargos também auxiliavam nesse cuidado do vestir. A ebomi Georgia Prado, a Oiá Somikan, traz um relato de um equívoco que cometeu, logo quando adentrou no terreiro Axé Ilê Obá, quando vestiu uma saia com várias fitas de cetim costuradas na barra, mesmo sem ter anos de iniciada cumpridos: 67 EGYDIO, Paula Regina. Entrevista. [05 jul. 2023]. São Paulo. Entrevista concedida a Aymê Okasaki. 68 EGYDIO, Paula Regina. Entrevista. [05 jul. 2023]. São Paulo. Entrevista concedida a Aymê Okasaki. 69 PRADO, Georgia. Entrevista. [11 jul. 2019]. São Paulo. Entrevista concedida a Roberto Santos e Aymê Okasaki. Passou uns dias, em uma próxima função… nós tínhamos uma senhora, equede Elizete, falecida equede Elizete70, que era nossa ialaxó. Ela era equede da mãe Sylvia. Ela era de Iansã. Ela era uma mulher finíssima, delicada, elegante, uma mulher demais. Muito além do que a gente entende de estereótipo de Iansã. Ela era de Iansã, Iansã quente, mas ela era uma mulher que falava baixo, uma coisa fina. Ela falou assim: “é porque tiveram até umas abiãs que entraram com saia com mais de uma fita e eu tomei bronca. Eu quero explicar para vocês”. Não tinha só eu nesse dia. Ela explicou: “Eu quero explicar para vocês que as roupas não são assim. Não se usa fita”. Eu entendi de fato depois que ela explicou como era. Ela falou tudo o que eu podia usar e o que eu não podia usar. Lembro como se fosse hoje, ela sentadinha na porta do quarto da falecida iaquequerê, sentada em mais de uma cadeira de plástico que estava empilhada. A gente sentada e ela falando, e eu pensando: “essa abiã sou eu”. Eu não sei se era só eu, mas eu entendi que era para mim porque eu sabia que era para mim. Eu até falei para essa Oiá: “mãe, eu não sabia. Me desculpa, eu fui orientada assim”. Ela falou: “tudo bem, agora já foi” (informação verbal)71. Vestir-se de maneira adequada dentro da hierarquia, perpassa por duas ideias muito presentes na Moda: se diferenciar dos demais, mas também se adequar a um certo grupo, trazendo a noção de pertencimento (no caso, pertencimento ao grupo de iaôs ou ebômis a depender das fitas na saia). Mãe Sylvia também destacava o vestir coletivo, como um pertencimento àquele terreiro: “Os filhos do Abaçá sabem que fazem parte de um todo, de uma grande corrente indivisível e inseparável, que está se formando cada vez maior através de seu próprio intermédio quando, por sua vez, fizerem outros filhos” (Egydio, 1980, p. 39). Por esta razão, também, terreiros de candomblé podem compartilhar estéticas próximas, quando pertencem à mesma família de Axé, isto é, filhos de uma casa que abriram seus próprios terreiros e que levam influências deste vestir para suas novas casas. É possível ver como a trajetória acadêmica de Mãe Sylvia auxiliou na condução do terreiro e nas conexões políticas tanto nacionalmente quanto internacionais, que auxiliaram na manutenção da estrutura do terreiro, especialmente durante o período de tombamento, que se iniciou em 1988, mas só foi alcançado em 1990. Para evitar a perda do terreno, Sylvia entrou com um processo de tombamento no CONDEPHAAT. Em 1990 o Axé Ilê Obá foi proclamado o primeiro terreiro tombado como patrimônio de São Paulo e terceiro do Brasil. Nos vídeos 72 da cerimônia dentro do terreiro é possível ver personalidades políticas que são atuantes até os dias atuais, como Eduardo Suplicy, que auxiliaram no processo com o CONDEPHAAT. 70 A postagem no site do Axé Ilê Obá cita brevemente a ialaxó (Yaquequerê do Axé…, 2015). 71 PRADO, Georgia. Entrevista. [27 jan. 2023]. São Paulo. Entrevista concedida a Aymê Okasaki. 72 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=KE_k9TMMqew Um detalhe, que demonstra a importância dos trajes do terreiro Axé Ilê Obá durante o processo de tombamento, é que, apesar de as roupas não constarem como bens também tombados, de maneira específica, os locais onde elas são armazenas e cuidadas sim. Na listagem de cômodos e objetos/móveis, há a citação do vestiário, bem como um armário para roupas, mesa para passar roupas e duas tábuas para passar roupas. Esse pequeno detalhe demonstra em realidade um cuidado com o vestir e com a proteção e perpetuação do modo de se cuidar dos trajes (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado, 1988). Outro episódio durante o processo do tombamento, são os relatos acerca da última reunião com o corpo técnico dos estudos do CONDEPHAAT. Tanto Mãe Sylvia, quanto o antropólogo Edgard de Assis Carvalho apontaram em entrevista ao pesquisador Renato Correa (2014, p. 106-107) que Mãe Sylvia foi “vestida de ialorixá” e que ela estava “vestida como deveria ser”. Estas falas são importantes pois demonstram também como se esperavam que uma líder religiosa de um terreiro de candomblé (dentro do processo de tombamento, e com o reconhecimento que o Axé Ilê Obá tinha) deveria se vestir, também externamente ao ilê. Isto é, vestir as roupas de ialorixá também demonstrava sua seriedade no cargo que ocupava, passando confiança para as pessoas externas ao terreiro. Um traje de poder para além daqueles envoltos na liturgia do candomblé. Além do contexto acadêmico, outro fator que auxiliou para que Sylvia conseguisse pediro tombamento do terreiro, foi sua atuação dentro do Movimento Negro de São Paulo – em 1980, Sylvia funda o Centro de Culturas Negras do Jabaquara (CCNJ), espaço com biblioteca, exposições, apresentações de teatro, dança, capoeira e música. Além das relações políticas que foram auxiliadas por sua atuação militante, relações religiosas com casas matrizes de candomblé na Bahia (terreiro Casa Branca, terreiro Gantois, terreiro Pilão de Prata etc.), influenciaram também na reafirmação do Axé Ilê Obá como uma casa de candomblé de nação queto. Este foi um movimento de muitos terreiros em São Paulo, como afirma o professor Reginaldo Prandi (2020): começarem como umbandas, migrarem para a nação angola do candomblé, e por fim transitarem para a nação queto do candomblé, como uma forma de ganhar mais notoriedade e visibilidade na comunidade 73 . E nesta confirmação como terreiro de nação queto, a busca por títulos na Nigéria se torna um elemento de diferenciação das casas de candomblé em São Paulo. 73 Este debate é complexo, visto que outras nações de candomblé como a jeje e mesmo angola, passam a ser preteridos (especialmente no meio acadêmico, que pouco estuda essas nações) e vistos como mais sincréticos. No entanto é preciso ressaltar que todos as nações de candomblé são brasileiras, possuindo mesclas nacionais em maior ou menor quantidade, não havendo no candomblé uma nação “pura” apenas africana. Em 1995, Mãe Sylvia vai para a cidade de Oxobô, na Nigéria, onde recebe o título de Ianifá, - mulher que tem conhecimento sobre o sistema divinatório oracular do Ifá (Correa, 2014). Esses títulos são marcados com roupas e trajes específicos, como é o caso do pano da costa amarelo (cor da orixá Oxum, divindade da cidade de Oxobô), o adê de cabeça, o bastão de mando e fios de contas que Mãe Sylvia utiliza na Figura 55, em seu retorno para o Brasil. O tecido amarelo de seu pano da costa é um axó oke 74 , tecido artesanal feito em tear estreito pelos homens iorubás, no qual se costura as faixas pelas beiradas para se formar um tecido mais largo que será utilizado como xale/pano da costa, ou pano de cabeça, saia etc.). Sua experiência profissional e acadêmica em relações e comércio exteriores auxilia nas viagens até o continente africano. O ebômi do Axé Ilê Obá, Felippe de Logun Edé, confirma que para além de trazer cultura imaterial, na forma dos conhecimentos e ritualística, Mãe Sylvia trouxe da viagem bens materiais, desde máscaras que estão presentes no barracão, elementos para os assentamentos, quanto roupas, conectando os cultos africanos aos afro-brasileiros do Axé Ilê Obá: Mãe Sylvia foi até a África, conviveu com as africanas para poder garantir a preservação e trazer para dentro do Axé Ilê Obá. Pai Caio já tinha buscado outros elementos da África. Mãe Sylvia trouxe: artes sacras, trouxe estatuetas, objetos ritualísticos, pedras. Mãe Sylvia trouxe uma série de artefatos da África para poder enriquecer nosso terreiro, dos nossos quartos de santos, os nossos assentamentos. Que são nossos objetos ritualísticos, enriquecer nossa mitologia. Mãe Sylvia teve a preocupação de ir à África buscar o que estava faltando aqui. Aquilo que por algum motivo não veio, ela foi buscar e trazer para cá. Porque ela era uma historiadora, uma pesquisadora, uma antropóloga, uma socióloga autodidata (informação verbal)75. Importante ressaltar que todo este processo de busca tanto das tradições africanas quanto os contatos e viagens para terreiros de outros estados, especialmente baianos, também auxiliavam a combater questionamentos de parte da comunidade interna, por ter assumido o terreiro, sendo ainda nova de iniciação no candomblé. 74 Axó significa roupa, tecido em idioma iorubá, e oke é superior, em iorubá. Roupa superior, de prestígio. 75 PIMENTA, Felippe. Palestra. [20 ago. 2023]. São Paulo. 9ª Jornada do Patrimônio. Figura 55 - Sylvia de Oxalufã com pano da costa em tecido axó oke, e usando insígnias que recebeu na Nigéria representando seu título de Ianifá Fonte: Peres (1997). Na Figura 55 que foi veiculada na revista Claudia, no ano de 1997, é possível ver também a roupa azul de seu filho, Péricles de Oxaguiã. No equeté de Péricles aparece um bordado vazado recorrente nos trajes adquiridos em África, com uma variação do bordado islâmico chamado “Nó de Salomão”. Estes bordados islâmicos em equetés, boubou e demais trajes, de acordo com o pesquisador Roberto Santos (2022), são derivações do sistema de escrita Lusona, presente na Angola, Nigéria, Togo e Benim, trazidos por colonizadores muçulmanos. Santos (2022) aponta que tal sistema era escrito na areia do chão, desenhando grades e pontos, para escrever narrativas, contos e mitos, por meio de um sistema com forte regramento matemático. O movimento de (re)africanização não é exclusivo deste terreiro. Já na década de 1980, os terreiros de São Paulo começam a buscar maior autonomia, se reafirmando como candomblé iorubá ou nagô (nações efã, nagô pernambucano, e principalmente queto), e buscando suas referências não mais com as casas matrizes baianas ou na umbanda, mas estabelecendo conexões diretas com a Nigéria e com o Benin. Essas buscas por uma certa “origem” e legitimidade africana é fundamentada dentro de diversos estudos etnográficos, que exaltavam uma “pureza” das culturas iorubá – a despeito do papel fundamental da cultura bantu no candomblé. Assim, em 1981, a Universidade de São Paulo implementa um curso de Língua e Cultura Iorubá, ministrado por discentes nigerianos, que ensina o idioma para diversos candomblecistas. Isto auxiliou para que muitos deles realizassem iniciações e recebessem títulos nas diversas viagens feitas para a Nigéria e para o Benin. Com títulos africanos, os terreiros ganhavam renome, atraindo clientela e ampliando suas casas. Trata-se de um processo de (re)africanização, que marca a identidade dos candomblés de São Paulo, os diferenciando das casas do Nordeste. Nessas viagens recorrentes à África, não são apenas títulos que são transportados, mas também tecidos (como os tecidos estampados industriais wax print e os tecidos axó oke), roupas e informações sobre cultura material. Os terreiros paulistas passam a acumular informações – não as eliminar – agregando à estética da umbanda e dos candomblés baianos também o que era encontrado em África no período. E as roupas são o expoente que demonstra essas mudanças, fases, adaptações dos candomblés aos contextos urbanos da cidade de São Paulo e ao movimento de (re)africanização. Este movimento de (re)africanização está dentro de um contexto maior, social e cultural, e não apenas religioso (na moda e roupas, por exemplo, começamos a ver a utilização de tecidos comprados na África, como símbolos de negritude e identidade nos movimentos negros). E mesmo em contextos religiosos, isto se expande para além do candomblé em si. Um exemplo na parte de vestuário são as missas católicas afro, que também empregam os mesmos tecidos; como a Missa Afro que ocorre no Dia da Consciência Negra, em novembro, na Basílica de Nossa Senhora Aparecida em São Paulo, com roupas, comidas, música, dança e instrumentos musicais de matriz africana e afro-brasileira 76 . Vale pontuar que o wax print, por exemplo, conhecido no Brasil como tecido africano, está vinculado às identidades africanas e afro-diaspóricas para além da religiosidade. Em julho de 2022, tive a oportunidade de estudar na Universidade de Hamburgo. Durante minha estadia na cidade, pude ver as mulheres negras que iam aos finais de semana para a Igreja Evangélica Luterana Afrikanisches Zentrum Borgfelde, vestindo seus gelés (turbantes mais estruturados e maiores), blusa e saia confeccionados em wax print. Se tratava do traje domingueiro, de ir para a igreja. O terreiro Axé Ilê Obá não se autointitula como um terreiro (re)africanizado, isto é, eles nãobuscam eliminar os elementos tidos como sincréticos (especialmente os elementos rituais católicos), em busca de um culto com ritos e elementos que sejam considerados exclusivamente africanos. Porém, todo o movimento de (re)africanização influencia no terreiro, no caso dos trajes, especialmente com a importação de tecidos vindos da África, e nos conjuntos de roupas masculinas, como podemos ver na Figura 56. Nesta figura temos outros elementos importantes como o traje de Ossaim, no lado esquerdo, com estampas de folhagens na saia e pano de cabeça (durante o período de pesquisa de campo não houve Ossaim paramentado em festa pública). Ao fundo, no canto esquerdo, também é possível visualizar duas iabás, possivelmente duas Oxum, uma vestindo amarelo e outra vestindo branco, ambas com tecidos cintilantes, possivelmente cetim. 76 Nos últimos anos, estas celebrações têm sofrido ataques virtuais em redes sociais, acusando de “abusos litúrgicos”, “profanações” e “desrespeito”, conforme é possível verificar nos endereços seguintes: https://www https://www.youtube.com/watch?v=UbtosfucJME.devocaoefeblog.com.br/2021/11/missa-afro-sintese-de-todos- os-abusos.html; http://b-braga.blogspot.com/2018/12/consciencia-negra-e-profanacao.html Figura 56 - Conjunto masculino (centro da fotografia) em tecido que faz referência a estamparia por reserva, artesanal iorubá em índigo chamada adire, no Axé Ilê Obá, álbum de fotografias do terreiro de 1980-1990 Fonte: Acervo Axé Ilê Obá (Fotografia cedida por Bia de Oxum). A partir de 1975, a pesquisadora Barbara Plankensteiner (2013, p. 18-25) aponta um maior uso de fios de Lurex dando mais brilho nos tecidos utilizados na Nigéria. Podemos fazer um paralelo com o que ocorria nos terreiros de candomblé, com os tecidos brilhantes, em partes também influenciado pelos trajes africanos. Na época de Mãe Sylvia, existe um grande uso do cetim, por ser um tecido muito acessível que conferia brilho aos trajes, e além de variações de tecidos mais brilhantes, como lamê, e a utilização de lantejoulas, como podemos ver nas roupas de Mãe Sylvia, na Figura 57. Um detalhe a ser observado nesta imagem é que tanto na época de Mãe Sylvia quanto na atualidade, o traje feminino de candomblé não possui uma peça específica para as épocas de frio (blusas de manga longa, por exemplo), o que faz com que outras peças sejam inseridas, desde que mantenham a cor branca, tal qual os camisus e batas. Figura 57 - Mãe Sylvia de Oxalá vestindo cafetã dourado no Axé Ilê Obá, álbum de fotografias do terreiro de 1980-1990 Fonte: Acervo Axé Ilê Obá (Fotografia cedida por Bia de Oxum). Vale destacar que cetim é um tipo de ligamento de um tecido plano, que possuí mais brilho pela disposição que os fios de trama e urdume se entrelaçam. Porém, ele pode ser mais caro ou mais barato a depender da matéria-prima empregada (desde seda para tecidos mais caros, até fios sintéticos para tecidos mais baratos). Enquanto o lamê é um tecido que possui uma lâmina brilhante aplicada por cima do têxtil, como acabamento; podendo ser uma lâmina metalizada ou apenas com brilho metálico. O lamê tal qual conhecido hoje, é o desdobramento do tecido laqueado desenvolvido por Jean Dunand (1877-1942), muito utilizado pela designer Madeleine Vionnet, na década de 1920; e popularizado na Moda entre as décadas de 1970-1980 (Iwamoto, 2016). O cetim já era uma presença de tecido percebida pelo pesquisador Roger Bastide (que o chama de seda artificial) na década de 1970 no candomblé, em substituição à chita/chitão/chitinha (tecido de produção nacional em morim de algodão, com estampa floral; muito utilizada para os caboclos, encantados e orixás com relação com as matas): No museu Nina Rodrigues conservam-se as antigas roupas das filhas de santo e é interessante compará-las com as que são utilizadas hoje. A grande diferença está na fazenda: o chitão de antigamente foi substituído pela seda artificial, porque hoje em dia a seda é mais barata que do que o algodão. Mas esse motivo econômico acarretou consigo outras modificações: a seda mais brilhante, mais luzidia à luz das lâmpadas de querosene ou de eletricidade, dá à festa religiosa um aspecto mais espetacular, acaricia os sentidos (Bastide, 1973, p. 280). A citação de Bastide quanto ao reflexo nos tecidos mais brilhantes também se relaciona com os horários nos quais eram realizados os ritos públicos. De acordo com Correa (2014), no Axé Ilê Obá, os ritos que ocorriam na primeira sede no Brás e na Rua Macuri, no Jabaquara, eram realizados após a meia-noite, para evitar chamar a atenção dos vizinhos e repreensões policiais. Ainda hoje, as festas públicas costumam ocorrer do período da tarde para a noite, porém terminando, normalmente antes da meia-noite. Uma das festas em que ainda se pode ver este reflexo dos tecidos brilhantes é a chamada Fogueira de Xangô, que ocorre no meio do ano, na qual os orixás vão até uma grande fogueira montada na calçada externa, colocar suas oferendas. O reflexo das chamas nos cetins, veludos, nas folhas de flandres dos paramentos, chatons e lantejoulas das roupas circundam a grande fogueira, na dança dos orixás. 4.2.1. Roupas dos orixás e paramentos Roupas com brilho são uma característica que varia conforme a região (terreiros do Rio de Janeiro, por exemplo, atualmente possuem roupas de orixás com mais brilho), a nação de candomblé, a hierarquia dentro do próprio terreiro (para cargos mais altos é permitido, enquanto para abiã, por exemplo, tendem a ser tecidos mais simples), a divindade ali presente (Oxum, por exemplo, sendo orixá do ouro, utiliza tecidos com mais brilho; enquanto os orixás da família da palha, voduns, como Omolu e Nanã, não costumam utilizar materiais muito brilhantes). No terreiro Axé Ilê Obá, os tecidos brilhantes e com lantejoulas, muitas vezes também apareciam como substitutos dos metais. Um exemplo é a roupa de Xangô de Regina, na Figura 58, na qual um veludo azul claro substitui a peitaça metálica, e os tecidos brancos com padronagens de arabesco prateados ganham volume com enchimentos, em substituição aos paramentos como coroa e impulsas metálicas. Em entrevista com a confeccionista Bia de Oxum, ela aponta que: “A paramenta sim porque o Xangô dela não deixa que ela use metal, então é só o pano, não pode ter nada de metal” (informação verbal) 77 , demonstrando que os materiais também sofrem influência dos próprios orixás que o utilizarão, para além de fatores como acesso e disponibilidade aos materiais no momento e local, e da ialorixá, do ilê, e do próprio candomblecista. 77 ALMEIDA, Bianca Batista. Entrevista. [06 set. 2019]. São Paulo. Entrevista concedida a Aymê Okasaki. Figura 58 - Regina de Xangô possui paramentos de tecido. Axé Ilê Obá, álbum de fotografias do terreiro de 1980- 1990 Fonte: Acervo Axé Ilê Obá (Fotografia cedida por Bia de Oxum). Na época de Mãe Sylvia, as insígnias e ferramentas dos orixás que utilizam metal, traziam ainda as folhas de flandres, latão e cobre, como havia na tradição baiana desde a época de Pai Caio. Porém no período dos anos 1980 ouve uma inserção de brilho por meio da aplicação de lantejoulas nas peças. Este era um material que barateava o custo, devido à novas matérias-primas sintéticas disponíveis, e no qual os próprios produtores de lantejoulas sabiam que havia um público consumidor nos terreiros, como mostra essa entrevista ao jornal O Estado de São Paulo (Faleiros, 2005, p. B6) de um diretor da Francotex (empresa que, com 450 funcionários, produzia cerca de 150 toneladas por ano, entre paetês, lantejoulas, brocal e fitas), Joaquim Silveira: “[para] festas dedicadas aos orixás vendemos bastante”. Outra característica já comentada é no que tange às cores de vestuário dos orixás, no período de Mãe Sylvia. Qualidades de orixás com fundamento com Oxalá, como Oxum Iê IêAlá (presente no processo de criação da vida, de acordo com as próprias legendas da pintura de Agnes, no barracão do Axé Ilê Obá), Xangô Airá (Figura 59), orixás que vestem branco se tornaram muito presentes neste período. Figura 59 – Pinturas de Agnes doSanto, que estão no barracão no Axé Ilê Obá, retratando os elegum orixás da casa (da esquerda para direita: Oxum e Xangô), de 2002, pinturas encomendadas por Mãe Sylvia de Oxalá Fonte: fotografia da autora (esquerda); fotografia cedida por Mirrah da Silva (direita). O Xangô Airá é um Xangô mais velho que acompanha Oxalufã, e que usa equeté no lugar da coroa. Ele veste branco e suas contas intercalam branco e vermelho. Orixá dos ventos e tempestades, como podemos visualizar na pintura de Agnes (Figura 59), no Axé Ilê Obá é cultuado como uma qualidade de Xangô. Ou, orixás relacionados aos mortos (eguns), como Oiá Balé (encarregada de separar os vivos dos mortos, domínio dos cemitérios, conforme as legendas da pintura de Agnes, no barracão do Axé Ilê Obá); as qualidades que vestem branco, se tornaram mais recorrentes. Esses orixás tiveram suas imagens eternizadas nas pinturas de Agnes doSantos (Figura 60), que em 2002 pintou diversos orixás presentes no terreiro, com seus trajes, inclusive um Exu, também vestido de branco, reforçando o quanto esta cor marcou a fase de Mãe Sylvia de Oxalá, no Axé Ilê Obá. Figura 60 – Pinturas de Agnes doSanto, que estão no barracão no Axé Ilê Obá, retratando os elegum orixás da casa (da esquerda para direita: Oiá e Exu), de 2002, pinturas encomendadas por Mãe Sylvia de Oxalá Fonte: Oyà Egunita ([2023]) (esquerda); fotografia cedida por Mirrah da Silva (direita). As pinturas de Agnes doSantos tiveram como objetivo dar maior visibilidade ao Axé Ilê Obá, também como um espaço cultural, visto que as obras ficam expostas na área pública do barracão, que é aberta para visitantes. Nas obras é possível visualizar os animais, alimentos para cada orixá, o cenário corresponde aos elementos de patronato, e, principalmente os trajes das divindades, sendo eles filhos do Axé Ilê Obá. Uma importante característica é que em todos os quadros, os personagens são negros. Os filhos da casa que foram retratados, mesmo que fossem pessoas brancas, foram retratados como negros. O ebomi Felippe de Logun Edé explica o motivo, nesta fala: Mas olha esta coroa, olha tudo isso daqui, olha estes quadros que estão a nossa volta, depois no momento do intervalo vocês podem olhar, olha estes quadros que foram pintados por artista plástica e estes quadros retratam todos os orixás cultuados aqui em casa. E Mãe Sylvia teve o cuidado, ela quis que nos quadros fossem pintados os próprios filhos de santo, manifestados nos seus orixás. Então, estas pessoas que estão pintados aqui são filhos da casa que foram pintados, manifestados pelos próprios orixás. Ela quis uma coisa, que todos eles fossem pintados como pessoas negras. E os filhos que eram brancos, ela quis que fossem pintados como pessoas negras. Porque ela queria que o negro fosse sempre o protagonista da história do candomblé e do Axé Ilê Obá (informação verbal) 78. Demonstrar o protagonismo negro no candomblé do Axé Ilê Obá. Esta é uma característica marcante, que influencia inclusive nos trajes do período. Uma grande pintura de Oxalá está presente na recepção, e mostra o traje do Oxalufã de Mãe Sylvia (Figura 61). A saia e panos em richelieu trazem a imagem dos pombos bordadas, bem como no topo da coroa, assim como no opaxorô existe imagens de pombos. Vale destacar o formato da coroa, que nos remete à coroas europeias. O fotógrafo de candomblé e também ogã Roger Cipó, em entrevista (Anexo A), já havia ressaltado a forte presença de elementos como coroas, elmos, peitaças de estilos europeus/ocidentais/branco, nos candomblés e a retroalimentação entre a literatura e pesquisas acadêmicas que influenciam nestes estilos. Contudo, o que se pode confirmar é a anterioridade destas influências, por meio da troca de objetos de prestígio, no continente africano. Cito a pesquisa de Ana Lucia Araujo (2024, p. 5- 8), na qual a autora investiga a troca de presentes entre europeus e africanos no período do tráfico negreiro. A pesquisadora aborda um objeto em específico, uma espada que foi produzida na França, para um dignatário em Cabinda; no entanto outros objetos de prestígio são citados, como é o caso de uma coroa da English Royal Company of Adventurers para o rei de Ardra, em 1664. A coroa segue a mesma estrutura que encontramos na de Oxafulã da figura, porém a pesquisadora Ana Lucio Araujo destaca sua materialidade, que substitui as pedras preciosas e ouro por vidro colorido e cobre. Essa troca de materiais indicaria que o rei de Ardra não deveria utilizar as mesmas matérias-primas que o rei inglês. Esse exemplo da coroa para a realeza de Ardra demonstra que as trocas destes símbolos de prestígio de poder são antecessoras aos trajes de candomblé, mas que para além da significação de realeza e prestígio, se trata também de negociações sociais de poder, que transparecem no vestuário. Evocar a figura da realeza, por 78 PIMENTA, Felippe. Palestra. [20 ago. 2023]. São Paulo. 9ª Jornada do Patrimônio. meio do símbolo da coroa em estilo europeu, no contexto do candomblé, também faz parte das negociações de reconhecimento, convivência, sobrevivência e ressignificações da religião na sociedade brasileira. Na pintura de Agnes doSantos, também é visível a presença das conchas de caramujo na coroa. Este elemento inscreve significados nesta forma, além do próprio uso, da trajetória da peça inserir suas próprias narrativas (atualmente a coroa metálica utilizada pelo orixá de Mãe Sylvia encontra-se no quarto de Oxalá, preservando seu axé). Quanto ao tecido do traje, o richelieu na roupa de Oxafulã se trata de um tecido hierárquico, de prestígio, que continua a ser usado no período de Mãe Sylvia, como aponta a ialorixá Paula de Iansã: eu não lembro da minha mãe com negócio de entremeio. E nem era guipure, era richelieu. E aqueles richelieu bem engomado, que você não podia nem se mexer que escutava um “crack”. Quantas e quantas vezes eu vi minha mãe vestida de richelieu, que fulana fazia. Ou renda renascença que trazia da Bahia ou de tal lugar (informação verbal)79. Figura 61 – Oxalufã de Mãe Sylvia em pintura de Agnes doSantos (esquerda) e fotografia (direita) Fonte: Horta (2019) - esquerda; Acervo Axé Ilê Obá (Fotografia cedida por Bia de Oxum) (direita). 79 EGYDIO, Paula Regina. Entrevista. [05 jul. 2023]. São Paulo. Entrevista concedida a Aymê Okasaki. Essa fala ainda ressalta o comércio com a Bahia. Trazer roupas, tecidos da Bahia, como rendas artesanais como a Renascença, ainda era algo presente no Axé Ilê Obá. Outro ponto a se destacar no traje de Oxalufã é a presença da saia longa. Um mito explica o uso da saia. Oxalufã se veste com saias como as das orixás iabás, pois, de acordo com um itã 80 , enquanto ele era esposo de Nanã, para ver o reino dos mortos, que Nanã comandava, ele se disfarçou e se vestiu como a mulher. Ao ser descoberto, como castigo por ter invadido o reino, ele teve de continuar a usar as roupas brancas de iabá (Sonnewend et al., 2016, p. 75). Nos paramentos há conchas de caramujos, tanto na coroa quanto nas impulsas e no opaxorô. Os animais símbolos da criação (detalhe para os pombos pintados no céu, por Agnes doSantos, e para a conexão entre céu e terra turva, aproximando simbolicamente estes planos) estão presentes na mitologia do orixá senhor do pano branco: Um dia Olorum chamou à sua presença Orixanlá, o Grande Orixá. Disse-lhe que queria criar terra firme lá embaixo e pediu-lhe que realizasse tal tarefa. Para a missão, deu-lhe uma concha marinha com terra, uma pomba e uma galinha com pés de cinco dedos. Orinxanlá desceu ao pântano e depositou a terra da concha. Sobre a terra pôs a156 Figura 59 - Pinturas de Agnes doSanto, que estão no barracão no Axé Ilê Obá, retratando os elegum orixás da casa (da esquerda para direita: Oxum e Xangô), de 2002, pinturas encomendadas por Mãe Sylvia de Oxalá ................................................................................ 157 Figura 60 - Pinturas de Agnes doSanto, que estão no barracão no Axé Ilê Obá, retratando os elegum orixás da casa (da esquerda para direita: Oiá e Exu), de 2002, pinturas encomendadas por Mãe Sylvia de Oxalá ......................................................................................................... 158 Figura 61 – Oxalufã de Mãe Sylvia em pintura de Agnes doSantos (esquerda) e fotografia (direita) ................................................................................................................................................ 173 Figura 62 - Mãe Paula de Iansã, em sua iniciação (esquerda). Pintura de Agnes DoSantos, da Iansã de Mãe Paula, que fica exposta no barracão do Axé Ilê Obá (direita) ........................... 163 Figura 63 - Traje de Iansã da ialorixá Mãe Paula, e Tata Jalagbo, na posse de Mãe Paula no Axé Ilê Obá .................................................................................................................................... 177 Figura 64 – Iansã vestindo tecido ankara vermelho, no Axé Ilê Obá, na Fogueira de Xangô, de 2023 ........................................................................................................................................ 178 Figura 65 - Robson Almeida vestindo conjunto em ankara, com estampa de adire, no Axé Ilê Obá, em 2023 ......................................................................................................................... 168 Figura 66 - Bordado de símbolo adinkra Sankofa, no equeté, no Axé Ilê Obá, em 2020 ....... 170 Figura 67 - Da esquerda para a direita: Xangô de Denise Silva (com saieta e gravatas), Xangô de Paulo Andrade, Xangô Baru de Douglas Carneiro, Xangô de Pauléo Martins e Xangô Airá de Edson, em 2019 ...................................................................................................................... 181 Figura 68 - Camisas em ankara da linha African, da Prata Moda Afro, com estampa de hibisco chamada Rolls Royce (esquerda) e estampa desenvolvida nos anos 1960 chamada Capacete, Cacho de bananas, Coquillage (concha), Asa da Garuda (pássaro sagrado da Indonésia), Caracol fora da concha (Togo) ou Abobo To Lé Gomè (no Benim significa paciência não tem limite, pois no vilarejo de Abobo, durante setembro ocorre o festival Abobozan, tendo o caracol como prato principal) (direita) .......................................................................................................... 175 Figura 69 - Traje da ialorixá Paula de Iansã, em richelieu, com motivo de pombo - esquerda; e traje também de Paula de Iansã com motivos de caracóis, ambos em festas de Oxalá, no Axé Ilê Obá ......................................................................................................................................... 177 Figura 70 - Da esquerda para a direita: Ia icá Jaci de Oxum, Xangô de Paulo Andrade, Iansã da ialorixá Paula, Xangô de Denise Silva e Douglas Carneiro - Baru, em 2019 ........................... 178 Figura 71 - Exemplo de pôster em alfaiataria de Gana, em 2019 ............................................ 179 Figura 72 - Homens vestindo roupas da confecção Patuá, com estampa kente ....................... 180 Figura 73 - Pano da Costa em Barafunda com variação do Ponto Percevejo, em tecido Etamine e bordado feito com Linha Cléa, com barra aplicada de Renda Paraíba; produzido por Luana Rampazi, filha de Oiá .............................................................................................................. 192 Figura 74 - Pano de cabeça e bata em crochê, de Mãe Paula, no Axé Ilê Obá, na festa de Erês, em 2023 .................................................................................................................................. 182 Figura 75 - Saias de tecido ankara, utilizadas por Mãe Paula e as filhas de Iansã, no Axé Ilê Obá, em 2022 .................................................................................................................................. 185 Figura 76 - Paramento de Oxum de Penha, com adê de corujas esculpidas fazendo referência às feiticeiras mães Iá Mi Oxorongá, e segurando uma cabaça, símbolo do feminino na cultura iorubá ................................................................................................................................................ 189 Figura 77 - Paramento de Oxóssi de Mãe Paula, produzido por Américo do Ateliê Duas Coroas, com capacete e impulsas de pulso, confeccionado em tecido de palha de buriti, lâmina de madeira freijó e acabamentos em folha de cobre e latão, búzios, palha da costa e sisal .......... 189 Figura 78 - Paramento de Xangô de Paulo, composto por coroa, machados e impulsas de pulso e braço, com acabamentos em folha de cobre, búzios africanos, resina imitando pedra e pedras do sol ....................................................................................................................................... 190 Figura 79 - Paramento de Nanã de Bárbara, composto por adê, impulsas de braço e pulso e ìbírí, confeccionado em cerâmica, palha da costa, fio de buriti, fio de juta, madrepérolas, búzios e miçangas .................................................................................................................................. 190 Figura 80 - Costa do Ouro, século XVII ................................................................................. 191 Figura 81 - Paramentos para Oxum banhada a ouro, com adê com chorão de bolotas, colar de crioula, produzidas por Diego de Oxóssi, no terreiro Axé Ilê Obá......................................... 192 Figura 82 - Mule feminino (esquerda) e babuche masculino (direita) da marca Onirà............ 193 AVC Acidente Vascular Cerebral CER Centro de Estudos da Religião Duglas Teixeira Monteiro CNPq Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico CONDEPHAAT Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico Covid-19 (Co)rona (Vi)rus (D)isease – 2019 EMATER-PI Instituto de Assistência Técnica e Extensão Rural do Piauí FFLCH Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas FUNARTE Fundação Nacional de Artes HOH Hofer Hecht Embroideries IBEP Instituto Brasileiro de Edições Pedagógicas L&Z Liliane e Zorro LGBTQIAP+ Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Transgêneros e Travestis, Queer, Intersexuais, Assexuais, Pansexuais e demais orientações sexuais e de gênero MARKK Museum am Rothenbaum – Kulturen und Künste der Welt MASP Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand MBA Master in Business Administration NPMAA Núcleo de Pesquisas em Modas Africanas e Afro-diaspóricas Pibic Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica PUC-SP Pontifícia Universidade Católica de São Paulo REDeM Rede de Estudos Decoloniais em Moda Senac Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial SENAI Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial SP São Paulo TCC Trabalho de Conclusão de Curso UCLA University of California, Los Angeles UCS Universidade de Caxias do Sul UERGS Universidade Estadual do Rio Grande do Sul UFBA Universidade Federal da Bahia UFPI Universidade Federal do Piauí UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro UnB Universidade de Brasília UNESP Universidade Estadual Paulista UNICAMP Universidade Estadual de Campinas UNISO Universidade de Sorocaba USP Universidade de São Paulo AGRADECIMENTOS .............................................................................................................. 7 RESUMO .................................................................................................................................pomba e a galinha e ambas começaram a ciscar. Foram assim espalhando a terra que viera na concha até que a terra firme se formou por toda a parte (Prandi, 2001, p. 502). Trago este trecho de Mitologia dos orixás, do pesquisador Reginaldo Prandi, pois este livro se encontra também dentro do terreiro. Em uma das visitas de campo, pude presenciar uma cena que mostrava essa retroalimentação entre pesquisadores e o terreiro: no dia 11 de maio de 2019, uma das mulheres da casa estava com um grupo de crianças que escolhiam e liam trechos do livro de Reginaldo Prandi, que estavam escritos em sulfites recortadas em formato de folha de árvore. A mulher falava da importância das folhas para o candomblé, depois de lerem um trecho sobre um mito de Ossaim. O livro escrito por Reginaldo Prandi teve como base as histórias orais dos terreiros pesquisados, e pude ver no Axé Ilê Obá a leitura de um destes textos. Esta aproximação do Axé Ilê Obá com a academia (dentro de limites religiosos e éticos) se inicia no período de Mãe Sylvia. Pois ela era uma mulher acadêmica, que foi para o terreiro, e que também estreitou os laços com pesquisadores para que o Axé Ilê Obá pudesse ser preservado, com o processo de tombamento. Mas, o traje de Oxalá de Mãe Sylvia demonstra também algumas permanências estéticas quanto à materialidade, se comparado ao período de Pai Caio. O brilho está presente nesse traje, por meio da saia de cetim prata que está por baixo da saia de richelieu. Mesmo com o branco de 80 Mito em iorubá. Oxalá, a prata se apresenta, demonstrando que o brilho dos tempos de Pai Caio permanece. Por fim, vale apontar que o opaxorô é metálico, com as folhas de flandres. Ressalto esta materialidade, porque veremos outros materiais surgindo na época da atual ialorixá, Mãe Paula de Iansã. Em fotografia (Figura 60), é possível ver a coroa e impulsas também metálicas do Oxalá de Mãe Sylvia. Mãe Sylvia não pôde ter filhos biológicos, e adotou Paula Egydio e Péricles Egydio. Sendo Paula a mulher mais velha, esta assumiu a casa como ialorixá, após a morte de Mãe Sylvia, e Péricles foi babaegbé da casa desde então, até 2022. Após a morte de Sylvia, em 2014, sua filha mais velha, Mãe Paula de Iansã toma posse aos 26 anos, estando como ialorixá (sacerdotisa líder de um terreiro de candomblé queto) de 2015 até a atualidade. Seguindo os caminhos de Mãe Sylvia, Mãe Paula também é uma acadêmica que passou a se dedicar ao candomblé (graduada em Fisioterapia e com MBA em Gestão Empresarial). Mãe Paula foi iniciada no candomblé com um ano de idade, conforme é possível visualizar na fotografia da Figura 62, na qual a Iansã de Paula é segurada no colo pela Oxum de Jacira (integrante mais antiga ativa no Axé Ilê Obá, que foi iniciada por Pai Caio). Ela é filha de Iansã e tem como juntó (segundo orixá) o caçador Oxóssi. Transições estéticas nos trajes ocorrem de maneira gradual. Figura 62 – Mãe Paula de Iansã, em sua iniciação (esquerda). Pintura de Agnes DoSantos, da Iansã de Mãe Paula, que fica exposta no barracão do Axé Ilê Obá (direita) Fonte: fotografia exposta no barracão do Axé Ilê Obá (esquerda); Oyá Onirá (2023) (direita). Por isso, vemos no primeiro paramento de Iansã de Mãe Paula, as características dos líderes anteriores: forte presença de lantejoulas para dar brilho e tons claros como o rosa bebê. No Adê é possível ver formato de raios, pois Iansã é a orixá das tempestades e o rosa faz parte da cartela de cores da iabá que é senhora do céu rosado. Seus paramentos, antes de sua posse como ialorixá, também mantinham o tom rosa bebê, assim como um adê não metálico. Os tons de dourado aparecem em pequenos detalhes, nas lantejoulas do adê de iniciação, e nos detalhes do bordado das saias e laços, quando a Oiá é retratada pela artista Agnes doSantos, em 2002 (Figura 62). A posse como ialorixá ocorreu em 29 de agosto de 2015 (Figura 63), na presença de um público composto por mais de 700 indivíduos. A data de posse também celebrou os 25 anos de tombamento do terreiro pelo CONDEPHAAT, tendo presentes na festa autoridades do Ministério da Cultura e da subprefeitura do Jabaquara. Mãe Paula de Iansã foi conduzida ao cargo por Tata Jalagbo, representante da Casa de Cultura Lodé Apará, situada em Santa Luzia, no estado de Minas Gerais. Vale destacar o traje de Tata Jalagbo, que vestia uma estola muito semelhante aos trajes dos sacerdotes católicos, porém toda rebordada com búzios e com uma padronagem geométrica de miçangas brancas, azuis e vermelhas nas pontas. As estolas também estão presentes nos trajes de Oxum e Iemanjá de muitos candomblés, porém são confeccionados em tecidos mais finos e delicados, tais como os laços destas iabás. Contudo, esta peça não faz parte da tradição de vestuário das iabás do Axé Ilê Obá. Figura 63 - Traje de Iansã da ialorixá Mãe Paula, e Tata Jalagbo, na posse de Mãe Paula no Axé Ilê Obá Fonte: Como Foi… (2015). Atualmente, os paramentos da Iansã de Mãe Paula continuam nos tons de rosa, mas desta vez o adê metálico e o leque trazem a figura de um búfalo desenhado, pois em um itã a orixá se transforma no animal (motivo pelo qual também carrega um chifre em seus paramentos). Tal qual o traje de Oxalá de Mãe Sylvia, a Iansã de Mãe Paula veste saia em richelieu, porém em um tom rosê. O richelieu de Iansã é mais fechado que o de Oxalá, desta forma o tecido que ganha destaque pelo brilho, se encontra por cima da saia (mesmo tecido do laço e ojá): tule bordado com pequenas flores e acabamentos com fios de lurex. Mesmo no richelieu existem alguns pontos de brilho no miolo das flores e alguns strass aplicados no barrado. Ou seja, o brilho tem permanência neste traje, no período de Mãe Paula, porém trazendo outros elementos para ter este efeito no têxtil (como o strass) e nos paramentos (aço/ferro no lugar do latão/folha de flandres ou das lantejoulas, como no paramento de quando era criança). Na atualidade, com Mãe Paula à frente do Axé Ilê Obá, é possível identificar que diversos ateliês atendem os filhos da casa, permitindo certa pluralidade, dentro da coletividade do vestir. Muitos abiãs e iaôs, homens vestem batas com fechamento com zíper, camisas de botão comuns e camiseta branca, demonstrando também peças, acabamentos e aviamentos da Moda Casual adentrando o terreiro. Uma mudança perceptível também foi a gradual entrada de mais cores nos trajes. Desde que comecei a frequentar e pesquisar o Axé Ilê Obá, em 2017, era visível uma grande quantidade de Iansãs vestindo rosa bebê, bem claro, tal qual a Oiá de Mãe Paula. Com o passar dos anos, mais Iansãs vestindo tons mais quentes e saturados apareceram, como mostra a Figura 64. Isso também se deve ao maior uso dos tecidos ankara (tecido utilizado no traje da Iansã, da Figura 64), os wax print (tecidos de algodão estampados, populares no continente africano e que chegam importados da África para o Brasil, como um símbolo de identidade estética afro). Figura 64 – Iansã vestindo tecido ankara vermelho, no Axé Ilê Obá, na Fogueira de Xangô, de 2023 Fonte: Axé Ilê Obá (2023). Fotografia: Fabio de Xangô. Os tecidos wax print, no candomblé mais conhecidos com o nome de ankara, adentram o Axé Ilê Obá, principalmente por meio de pequenos ateliês de roupa de candomblé, comandados pelas próprias filhas de santo. Esses tecidos, produzidos por empresas holandesas, inglesas, suíças e belgas do final do século XIX (mas que atualmente possuem versões mais baratas na China), imitam a estética dos tecidos artesanais da Indonésia, o batique. As empresas europeias, que tentaram vender seus tecidos para o mercado da Indonésia na década de 1870, escoaram seus produtos para o continente africano; aos poucos barateando e popularizando o uso do wax print em todo o continente, a ponto do tecido se tornar mundialmentereconhecido com o nome de tecido africano. Tecidos locais e artesanais africanos sofreram com a concorrências destes tecidos industriais, especialmente porque algumas estampas imitam os tecidos artesanais, como é o caso da Figura 65, no qual a padronagem simula uma estamparia por reserva adire, tradicionalmente feita por mulheres iorubás, com pigmento índigo vegetal. Devido ao processo de oxidação durante o tingimento, e às quantidades de banhos de tingimento, o azul do índigo pode tingir, desde uma tonalidade de azul claro, roxo, azul escuro até quase preto. Por essa razão, na teoria das cores iorubás, o azul índigo também recebe a nomenclatura de dúdu, que seria o mesmo que o preto. Figura 65 – Robson Almeida vestindo conjunto em ankara, com estampa de adire, no Axé Ilê Obá, em 2023 Fonte: Sena (2023). Os tecidos ankara tiveram grande adesão no Axé Ilê Obá neste período de Mãe Paula à frente do terreiro. Todas as confeccionistas entrevistadas apontam que utilizam o tecido em suas confecções. A ebomi Georgia Prado ressalta a identidade estética africana que o tecido possui, sendo um dos motivos de seu emprego nas peças: Hoje em dia minhas saias têm muito mais material africano, mesmo ankara. Faço bastante saias de ankara para as ebomis lá da casa. Que agora que o Axé Ilê Obá está começando a usar ankara. Quando eu voltei para a casa eu trouxe a ankara, porque lá não se usava ankara. Agora eles estão começando a trazer isso, as roupas dos ebomis, um elemento trás ankara (informação verbal).81 81 PRADO, Georgia. Entrevista. [11 jul. 2019]. São Paulo. Entrevista concedida a Roberto Santos e Aymê Okasaki. Bia de Oxum ressalta o uso do ankara em festas de caboclo o que demonstra uma distinção do forte uso da chita (especialmente no período de Pai Caio e Mãe Sylvia) para trazer as estampas florais e de folhagens, para as estampas dos ankara. Apesar de ser visível nas festas de caboclo, uma mistura nas formas de vestir, com as pessoas mais velhas ainda vestindo chita. Quanto à utilização do termo ankara, esta é a nomenclatura que o tecido possui em Angola, sendo um dos países exportadores para o Brasil, conforme aponta Bianca Almeida sobre seu fornecedor de tecidos: Que nem além do guipure, uma moda que está tendo entre o masculino, indo para o masculino, é... ankara. [...] É muito que sai. É incrível. [...] tem mais ou menos um ano e meio ou um ano no máximo. Porque se eu começo ver, uma estatística minha, se eu começo ver o que eu vendia de um ano para trás era raro as pessoas que falavam: “eu quero o ankara sim”. Hoje, tem festa de caboclo, você com certeza vai querer alguém com ankara. [...] E é um tecido que vai de várias hierarquias desde o iaô ao ebomi, né. [...] Eu tenho um contato com uma moça que vem da Angola e aí ela traz em massa para mim. Então, aí traz, eu escolho. Para trazer umas coisas diferentes, né. Para não ficar, por exemplo, é festa do caboclo, é azul, todo mundo está com ele ankara, entendeu? [...] Em São Paulo tem, mas só que é muito repetitivo. Então, a gente busca comprar diferentes. [...] É, eu acredito que seja por conta dos impostos, os impostos são muito caro. [...] E fica muito difícil, fica um pouco restrito porque, por exemplo, tem alguns lugares, aqui em São Paulo, que vendem o metro do tecido caríssimo. Tem lojas que vendem os cinco metros, entendeu? E varia muito, não tem um preço fixo. Por exemplo, o fulano vende a tanto, o ciclano vende a tanto. Ciclano vende metade do fulano, entendeu? [...] E o preço de lá, o material que vem de lá, que quando a gente compra direto com a moça lá da Angola. É preço de banana para eles, entendeu? (informação verbal)82 Isabela Rezende, do ateliê Okàn Rere, que também produz roupas em ankara para o Axé Ilê Obá, aponta a relação da entrada destes tecidos na atualidade para dois fatores: a influência das chamadas religiões tradicionais africanas (como o culto ao Ifá, no qual alguns filhos do Axé Ilê Obá também são praticantes) e as imigrações mais recentes de africanos para São Paulo. Este é um ponto importante, pois a revenda dos tecidos se dá, principalmente, com intermediários africanos e não diretamente com os fabricantes dos tecidos: Se hoje a gente consegue ver nas casas de candomblé a utilização dos ankaras, e outros tecidos africanos de outras origens, ou o bordado africano; isso chega mais com a influência já das religiões tradicionais africanas, com essa imigração, principalmente das pessoas da Iorubalândia (informação verbal)83 Isabela Rezende, nesta fala, também sinaliza a importância dos bordados africanos. Eles já estavam presentes nas fases anteriores à Mãe Paula (principalmente pelo fato de Mãe Sylvia 82 ALMEIDA, Bianca Batista. Entrevista. [06 set. 2019]. São Paulo. Entrevista concedida a Aymê Okasaki. 83 REZENDE, Isabela; RAMPAZI, Luana. Entrevista. [12 mar. 2023]. Online. Entrevista concedida a Aymê Okasaki. também conhecer sobre bordados, ao ter tido um ateliê de bordados) e permanecem, como pode ser observado na Figura 66, com o equeté bordado com um formato de coração. Figura 66 – Bordado de símbolo adinkra Sankofa, no equeté, no Axé Ilê Obá, em 2020 Fonte: Paiva (2020). No equeté que aparece na Figura 66 temos um importante símbolo adinkra (dos povos Akan, de Gana) bordado. Se trata do símbolo chamado Sankofa, que de acordo com Elisa Larkin Nascimento e Luiz Carlos Gá (2009), significa voltar para buscar o que foi abandonado, simbolizando sabedoria e valorização do passado (dos conhecimentos, das pessoas mais velhas, das tradições) para que se possa entender o presente e planejar o futuro (Sankofa pode aparecer como um coração, tal qual na imagem, e muito comum em ferragens de portões no Brasil; ou como um pássaro com corpos voltado para frente e cabeça virada para trás). É a conexão temporal de passado e futuro, o que torna a Figura 64 tão simbólica por ter duas crianças sentadas aos pés da ialorixá, e com duas importantes figuras mais velhas ao fundo, que já faleceram: Tio Silvino de Oxalufã e a iamorô Maria Antunes de Nanã. Ainda analisando a Figura 64, é possível visualizar que a iamorô veste um conjunto com cafetã, enquanto a ialorixá veste uma baiana completa. Mãe Paula, em entrevista, aponta que possui preferência por vestir as anáguas e saias, e que não costuma vestir cafetã (que teve de utilizar em uma festa de iabás em 2017, apenas porque havia feito uma cirurgia, que a impedia de vestir um traje muito pesado). Assim como a iamorô, quem utilizava muitos cafetãs era Mãe Sylvia, especialmente quando estava mais velha (e por sua saúde, pela mobilidade mais reduzida após os AVC). Nos conjuntos africanos, com cafetã, não é tão comum o uso do laço amarrado na cintura (algo tradicional no vestuário feminino do Axé Ilê Obá), por isso era raro ver Mãe Sylvia com laço na cintura. Mesmo vestindo outro tipo de traje, de baiana, Mãe Sylvia, por vezes também não utiliza o laço na cintura. Vemos aqui como o vestir de Mãe Sylvia influenciou nas roupas de Mãe Paula em certa medida (nos laços, por exemplo), mas também como elas também se diferenciam entre si (o cafetã de Mãe Sylvia e a baiana completa de Mãe Paula). Ainda que Mãe Paula busque demonstrar sua intenção, como é feito na fala a seguir, de manter os trajes tal qual como eram na época de Mãe Sylvia, dentro das possibilidades dos contextos atuais: Aqui no Axé Ilê Obá, você usa um laço na cintura, as mulheres. Na última festa, eu tive até um problema interno. Uma ebomi velha me chamou - velha de no mínimo 34 anos de santo, de Axé Ilê Obá, no mínimo trinta anos porque ela me viu bebê – ela me falou assim: fulana não está com a faixa, só que quem não usa a faixa aqui é só a senhora, porque a senhora pegou isso da Mãe Sylvia. Porque minha mãe se vestia assim. Eu falei: eu não quero errar nada, se eu errar alguma coisa, com certeza eu estou errando tentandoacertar, mas não é nada de propósito. Mantendo toda a tradição do Axé (informação verbal)84. Mãe Paula aponta para a preservação da tradição. O conceito de tradição dentro do vestuário de candomblé é um ponto a ser analisado. O filósofo anglo-ganês Kwame Anthony Appiah (1997, p. 93) aponta que as tradições também são inventadas, criadas em um dado momento e selecionadas historicamente nas narrativas para permanecerem. Isto não implica que uma tradição seja livre de influências externas de outras culturas. Isto é, manter tradições dentro desse vestuário também reside em escolhas do que será perpetuado e do que pode ser alterado, sem prejuízo litúrgico; escolhas essas, que, neste caso do laço na cintura, foram da ialorixá, por entender este símbolo como representativo da identidade visual do vestir da casa. 84 EGYDIO, Paula Regina. Entrevista. [05 jul. 2023]. São Paulo. Entrevista concedida a Aymê Okasaki. Por fim, vale ressaltar o impacto que a ialorixá possui no vestuário de toda a casa, influenciando também no uso do tecido ankara, por ser um têxtil democrático hierarquicamente (pois, sendo de algodão, Mãe Paula permite o uso do tecido para iaôs, ebômis, equedes, ogãs, todos, exceto abiã, por não poder vestir tecidos coloridos). Hoje eu uso, por exemplo ankara com barrado de guipure. [...] ankara até iaô eu deixo usar, porque ankara, é um pano simples, só que ele é mais colorido, estampado. [...] ele é até mais engomado, mas quando você lava ele cede. Então eu não vejo nenhum problema de iaô usar ankara (informação verbal)85 É possível verificar que estas mudanças são gradativas, analisando os trajes em um xirê, no qual se encontra tanto roupas claras, como do Xangô Airá (direita da Figura 67) quanto outras mais saturadas (Xangô Baru, por exemplo). Aqui vale um destaque para o traje do Xangô Airá, pois essa roupa, confeccionada por Americo Correa, do ateliê Duas Coroas, traz uma técnica que vem ganhando força atualmente: entremeios. Neste processo, o tecido é construído a partir da costura de fitas (tiras de guipure, cadarços de algodão, fitas de rendas etc.). Apesar de parecer moderna, essa técnica retoma a antiga construção dos panos da costa, feitas com tecidos artesanais de tear estreito, no qual, para se montar o pano da costa ou um pano de cabeça, era necessário que a pessoa unisse as tiras costurando uma à outra pela ourela. 85 EGYDIO, Paula Regina. Entrevista. [05 jul. 2023]. São Paulo. Entrevista concedida a Aymê Okasaki. Figura 67 – Da esquerda para a direita: Xangô de Denise Silva (com saieta e gravatas), Xangô de Paulo Andrade, Xangô Baru de Douglas Carneiro, Xangô de Pauléo Martins e Xangô Airá de Edson, em 2019 Foto cedida por: Eduardo Cancissu Apesar da entrada de cores mais saturadas, é especialmente no mês de setembro que lembramos da importância que o axé tem com os orixás fun-fun, no qual Mãe Paula já comunica aos visitantes, em um xirê anterior às comemorações de Oxalá (e via redes sociais do Axé Ilê Obá), que todos devem vestir branco, sem exceções, em respeito a Oxalá. Nesse dia, até mesmo uma equede que usa mais os conjuntos africanos, vestiu saia (mito de Oxalufã usar saia, por conta de Nanã). A festa de Oxalá do dia 10 de setembro de 2023 foi de transição estética dos trajes, pois foi a primeira festa de Oxalá (festa de Oxalufã, tal qual Oxalá de Mãe Sylvia) no qual a confecção Patuá não estava mais presente como ateliê principal/oficial da casa. Nesta festa foi interessante perceber a criatividade de outros ateliês, em trabalhar com os “tons de branco”: Oxalufãs vestindo saia com barras com tassel e faixas horizontais off-white e creme (não necessariamente branco óptico), Iemanjá de Isabela vestindo organza branca/furta-cor, do Ateliê Okàn Rere etc. Trata-se de encontrar possibilidades, diferenciações técnicas têxteis, dentro dos fundamentos que precisam ser seguidos. Os trajes de alguns outros orixás também chamaram a atenção, como um Oxalufã que não tinha a franja de filá cobrindo o rosto, mas uma coroa (tal qual o Oxalufã de Mãe Sylvia), demonstrando também uma relação com Xangô. Esse Oxalufã também carregava capangas metálicas com forma de elefante, animal totêmico do Oxalufã representando a sabedoria, grandiosidade e pureza (especialmente simbólica pelo marfim branco) do orixá. No dia 9 de dezembro de 2023, a primogênita de Mãe Paula é iniciada, Beatriz de Oxum, a ialodê e herdeira do Axé Ilê Obá. Beatriz de Oxum vestiu trajes confeccionados pelo ateliê Okàn Rere (com laços do rum de Oxum em lamê dourado com detalhes em sianinhas, entremeios e barrados de Guipure dourado e marrom) e paramentos da Ferramenteira. O que nos instiga a questionar como será a estética dos trajes da casa no futuro, com uma filha de Oxum à frente do Axé Ilê Obá. Na atualidade, a produção dos trajes para o Axé Ilê Obá se dá principalmente por meio de ateliês especializados, que podem ser de filhos da própria casa ou de produtores externos. Um ateliê externo que possui alguns clientes no Axé Ilê Obá é o Prata Moda Afro. Seu trabalho é marcante e bem identificável com entremeios, além de costurar etiquetas externas bordadas com o logo da marca (um símbolo A triangular estilizado, com uma silhueta de máscara africana por cima). Essa característica de etiquetar as roupas, inovação disseminada por Charles Frederich Worth, considerado o pai da Alta-Costura, torna as roupas uma criação diretamente associada à marca, fazendo com que o candomblecista que esteja vestindo aquele traje, também faça propaganda da marca. Nas redes sociais da Prata Moda Afro, a marca se apresenta como produtores de peças sob medida exclusivas, com corte de alfaiataria e alta-costura. Aqui vale uma ressalva, para apontar que Alta-Costura é um registro que maisons possuem na câmara dos costureiros, em Paris, que devem seguir uma série de pré-requisitos (sendo um deles a localização da Maison no chamado Triangulo de Ouro de Paris). A Alta-Costura que a Prata Moda Afro indica, em realidade, é o trabalho exclusivo e sob medida, o que torna cada peça confeccionada única, agregando também em seu valor comercial. Outra característica que vem do segmento de Moda é a criação de linhas/coleções que possuam características distintas: Unique (peças com bordados à máquina personalizados), Essencial (roupa de ração, peças para o uso cotidiano no terreiro), African (peças com tecido estampado ankara, como as camisas na Figura 68), Personalite (peças em renda de bilro, renda renascença, bordados manuais), Style (corte de alfaiataria e peças alongadas), Concept (fraque, meio fraque e ternos). Figura 68 - Camisas em ankara da linha African, da Prata Moda Afro, com estampa de hibisco chamada Rolls Royce (esquerda) e estampa desenvolvida nos anos 1960 chamada Capacete, Cacho de bananas, Coquillage (concha), Asa da Garuda (pássaro sagrado da Indonésia), Caracol fora da concha (Togo) ou Abobo To Lé Gomè (no Benim significa paciência não tem limite, pois no vilarejo de Abobo, durante setembro ocorre o festival Abobozan, tendo o caracol como prato principal) (direita) Fonte: Prata Moda Afro (2020a, 2020b). O ateliê, que nasceu em 2019, já produziu saias, panos da costa e panos de cabeça para a ialorixá Paula de Iansã, para outras filhas da casa, mas vale destacar o trabalho feito nos trajes masculinos com nervuras, ou as chamadas prega-palito. Nesta técnica, é costurada uma prega muito fina (3-4mm) o que fornece um relevo no tecido, especialmente quando as pregas são sequenciais. Esta técnica vem sendo utilizada por diversos ateliês de roupa para candomblé e funcionam como uma opção para adornar as roupas das hierarquias iniciais (abiãs e iaôs), pois não são adicionados outros aviamentos, podendo ser feita em tecido plano simples de algodão branco, respeitando a hierarquia, e ainda assim, diferenciando aquele traje. Se tratade um princípio do fenômeno social da Moda, no qual há um desejo de se diferenciar das demais pessoas, mas também pertencer a um grupo, respeitando suas regras. Pude entrevistar e acompanhar o trabalho de três pequenos confeccionistas que produziam trajes para o Axé Ilê Obá (especialmente roupas para a ialorixá e ebômis/equedes/ogãs, mas também para iaôs e abiãs): Lojas Patuá, Odó Iná e Okàn Rere. 4.3.1. Lojas Patuá Além da forte presença da ialorixá da casa, seu irmão mais novo, o baba Péricles de Oxaguiã, era outra pessoa de influência nos trajes do terreiro, especialmente por ele ser noivo da principal fornecedora de trajes da casa, Bianca Almeida, a Bia de Oxum do ateliê Patuá. Com a saída de baba Péricles de Oxaguiã no ano de 2022, as lojas Patuá deixaram de ser o ateliê da casa. Durante a época que o ateliê atendia o Axé Ilê Obá, eles também vendiam os chamados kits, como aponta Bia de Oxum: É que a gente costuma fazer para as pessoas, kit bori, kit feitura, que é um kit fechado com valor cheio [...] Porque a Mãe Paula fala para mim: “olha, cunhada, pro um bori, a pessoa precisa de tantas peças”. Ah, legal. Aí quer que eu veja que está faltando, eu pego e indico para a pessoa, falo: “acho que você vai precisar de um pano de cabeça assim porque vai acontecer coisas que vai precisar de um pano de cabeça assim”. Então, acabo indicando e faço um kit fechado e a pessoa acaba fechando [o kit básico é] Lençol. É, vou falar do bori, por exemplo, quatro lençóis, duas fronhas, pano de cabeça com toquinha porque vai fundamento. Toalha, vai saia você for mulher, ou então calça se for homem. Normalmente, eu faço kit de saia e kit de calça, um kit de ração completo. Que são três saias, três calças, três panos de cabeça, que é... se a pessoa vai fazer um bori vai durar para o bori, vai durar para ração depois, vai durar para sua feitura, vai... ração dura para sempre (informação verbal)86. Então, para além das roupas, havia o enxoval, com lençóis, fronhas etc. O kit recolhimento/feitura era composto por 8 saias, 8 calças, 8 ojás modelo touca e 8 camisus, e o enxoval com 8 lençóis, 4 fronhas, 30m de morim e 8 toalhas. Como muitas iniciações são feitas com várias pessoas (os chamados barcos), e pela vida dentro do coletivo em um terreiro, todas as peças dos kits eram bordadas com os nomes dos filhos, para que não fossem trocadas etc. De acordo com entrevista com Bia de Oxum, o baba Péricles aprendeu desde pequeno sobre os tipos de roupas de candomblé com Mãe Sylvia (Sylvia também tinha um conhecimento têxtil, pois sua mãe possuía um ateliê de bordados, que atendia clientes do Jardim Europa e Jardim Paulista), e orientava o que pode ou não ser feito nas roupas, segundo a tradição da casa, além de também auxiliar na Patuá Confecções, cortando as peças 87 . A experiência de Mãe Sylvia com um ateliê de bordado é interessante, pois a fez reconhecer, valorizar e transmitir esse conhecimento aos filhos, que perpetuaram o uso de peças bordadas entre gerações. É possível ver roupas em bordado richelieu que pertenciam à Mãe Sylvia, sendo vestidas por Mãe Paula de Iansã, como conta Bianca Almeida em entrevista, sobre uma bata de Oxalufã (Oxalá idoso), com figuras de pombos, que foi herdada pela atual ialorixá do terreiro, Paula de Iansã. Na Figura 69 podemos ver esse trabalho de motivos figurativos bordados e recortados. 86 ALMEIDA, Bianca Batista. Entrevista. [06 set. 2019]. São Paulo. Entrevista concedida a Aymê Okasaki. 87 ALMEIDA, Bianca Batista. Entrevista. [06 set. 2019]. São Paulo. Entrevista concedida a Aymê Okasaki. Figura 69 - Traje da ialorixá Paula de Iansã, em richelieu, com motivo de pombo - esquerda; e traje também de Paula de Iansã com motivos de caracóis, ambos em festas de Oxalá, no Axé Ilê Obá Fonte: Fotografia cortesia de Eduardo Cancissú (2019). O ateliê Patuá que atendia o terreiro trouxe características interessantes, como os conjuntos africanos slim para homens, isto é, mais ajustados ao corpo (como podemos ver no traje da direita da Figura 70). São batas curtas mais justas, confeccionadas em tecido wax print; com influência da alfaiataria, devido ao fato da mãe de Bia de Oxum, que faz parte da Patuá Confecções, já trabalhar com o segmento de moda festa/alfaiataria 88 . É importante notar o quanto os trajes masculinos no candomblé trazem inspirações da alfaiataria, com peças de corte ajustado, estruturados. Contudo, para além das influências dos ateliês de moda festa e alfaiataria, as Modas africanas também interferem, como aponta Bia de Oxum, em entrevista: Está seguindo, exatamente, a moda. Exatamente. Por exemplo, quando eu comecei fazer para o Baru [Douglas de Xangô] a blusa, é uma roupa de festa para ele, antigamente, era o que? Que antes era normal, bata mais solta, calça mais larga e acabou. Hoje, não. Hoje, pra ebomi masculino, as pessoas já começaram se identificar mais com a roupa do Péricles, por exemplo. A roupa do Péricles é o que? [...] A gente usa mais slim, a golinha mais alta, o botãozinho aqui, acinturado. E isso foi o modelo que ele viu de um africano na África, ele viu lá o homem, falou assim: “eu quero igual”. A gente começou a fazer e várias pessoas começaram procurar a gente por causa desse modelo. Que é um tradicional de lá (informação verbal). 88 ALMEIDA, Bianca Batista. Entrevista. [06 set. 2019]. São Paulo. Entrevista concedida a Aymê Okasaki. Figura 70 – Da esquerda para a direita: Ia icá Jaci de Oxum, Xangô de Paulo Andrade, Iansã da ialorixá Paula, Xangô de Denise Silva e Douglas Carneiro, em 2019 Foto cedida por: Eduardo Cancissu Na fala de Bia de Oxum, percebe-se que uma maneira de legitimar as mudanças no vestuário é remetendo à matriz africana, ao que se veste no continente africano. Na entrevista, Bia de Oxum aponta que tinha os moldes dos conjuntos de seus clientes recorrentes, como Douglas Carneiro, e que a cada festa, os clientes apenas escolhiam qual tecido gostariam de vestir, e um novo conjunto era confeccionado, sob medida. Este sistema de produção de roupa sob medida é algo muito recorrente no continente africano. A pesquisadora e curadora do MARKK museum, Malika Kraamer, na Alemanha, com quem pude conversar em 2022, estudou este sistema de produção de roupas sob medida em Gana. Em cada oficina há cartazes com os modelos das peças, como mostra a Figura 71, no qual o cliente escolherá o tecido no qual a roupa será confeccionada (Kraamer; Essel, 2021). Figura 71 – Exemplo de pôster em alfaiataria de Gana, em 2019 Fotografia: Osuanyi Quaicoo Essel (Kraamer; Essel, 2021, p. 197) Esta característica de possuir modelos de base, mas uma produção sob medida é um processo de confecção comum no segmento de moda festa, que muitos ateliês de roupas para candomblé também adotam, por proporcionar as características individuais necessárias de cada traje, sem ter que iniciar uma modelagem desde o início. No ateliê Patuá, para trajes feitos pela primeira vez para um cliente, eram realizadas três provas, para dar os ajustes necessários: No mínimo, três provas. [...] Dois já é o suficiente, mas eu gosto de fazer a terceira para já estar com todos os saiotes. Eu faço uma no início sem acabamento, sem nada, faço a segunda que é para ver como que vai ficar com o acabamento e a final com todos os saiotes engomado. Já fechado (informação verbal)89. O ateliê também trabalhava com tecidos wax print (conhecido como ankara), com um destaque para as roupas masculinas, retomando uma tradição de um determinado grupo (normalmente ogãs) usarem o mesmo modelo de roupa (dentro dos povos iorubás, essa tradição se chama axó ebi). No caso da Figura 72, se trata de um tecido com estampa que imita a tecelagem dos povos Ashanti, de Gana, os tecidos kente. Figura 72 – Homens vestindo roupas da confecção Patuá, com estampa kente Fonte: Patuá Confecções (2021).4.3.2. Okàn Rere Os ateliês de mulheres jovens no terreiro também trazem tecidos e técnicas têxteis específicos, como é o caso do resgate da renda barafunda, técnica artesanal de remover fios de um tecido plano, formando padronagens. Esse tecido já aparecia em fotografia de mulheres negras no século XIX, em imagens dos candomblés baianos na primeira metade do século XX, e na atualidade é uma técnica que tem sido retomada nos terreiros de candomblé de São Paulo, inclusive com filhas do Axé Ilê Obá aprendendo a técnica para produzir roupas para a casa. Um caso é a filha Luana Rampazi (Figura 73) e Isabela Rezende, uma das poucas filhas da casa que aprenderam os pontos de barafunda online, e atualmente produzem peças por encomenda ou para presentear pessoas mais velhas da casa, visto que na época das entrevistas, Luana ainda não 89 ALMEIDA, Bianca Batista. Entrevista. [06 set. 2019]. São Paulo. Entrevista concedida a Aymê Okasaki. podia utilizar tais peças mais trabalhadas e detalhadas por ser iaô (atualmente, cerca de duas outras filhas do Axé Ilê Obá produzem este tipo de trabalho, segundo Luana Rampazi 90 ). Figura 73 - Pano da Costa em Barafunda com variação do Ponto Percevejo, em tecido Etamine e bordado feito com Linha Cléa, com barra aplicada de Renda Paraíba; produzido por Luana Rampazi, filha de Oiá; e Isabela Rezende, filha de Iemanjá; do ateliê Okàn Rere Fonte: Rampazi (2022). Para além da barafunda produzida pelo ateliê Okàn Rere, é perceptível um resgate de técnicas artesanais nos trajes do Axé Ilê Obá, neste período de Mãe Paula. Um exemplo é o forte uso do crochê, tanto nos panos de cabeça, mas em outras peças como batas (Figura 74) e como foi possível visualizar na festa de Oxalufã de 2023, no qual um dos Oxalufãs vestia laços de crochê de pontos bem abertos. 90 RAMPAZI, Luana. Entrevista. [04 jul. 2022]. Online. Entrevista concedida a Aymê Okasaki. Figura 74 - Pano de cabeça e bata em crochê, de Mãe Paula, no Axé Ilê Obá, na festa de Erês, em 2023 Fonte: Okan Rere (2023). 4.3.3. Odó Iná As mulheres jovens do terreiro têm trazido outro tipo de tecido comprados no continente africano, os wax print. Outros dois tecidos que costumam ser importados do continente africano para os ateliês são os guipure africanos 91 e os tecidos em faixas axó oke. O ateliê Odó Iná, da ebomi Oiá Somikan (Georgia Prado 92 ), têm buscado fortalecer esteticamente um movimento de (re)africanização dos candomblés, empregando estes tecidos em suas confecções. 4.3.3.1. Axó Ebi No dia 20 de agosto de 2022, o ateliê Odó Iná apresentou saias e laços vestidos pelas filhas de Iansã, produzidos com um mesmo tecido estampado, na festa Ajodum de Oiá (festa que celebrava os 33 anos de iniciação da ialorixá Paula de Iansã); seguindo a tradição iorubá chamada axó ebi. 91 Guipure e as chamadas rendas africanas, em realidade são bordados industriais, comercializados no continente africano, em especial na Nigéria, porém que possuem produção austríaca e da Suíça, e atendendo a uma elite econômica nigeriana, após a década de 1960. Atualmente, esta produção também ocorre na China e outros países asiáticos, mas ainda costumam passar pelo continente africano para serem revendidos no Brasil como “rendas africanas” (Plankensteiner; Adediran, 2011). 92 PRADO, Georgia. Entrevista. [19 jul. 2019]. São Paulo. Entrevista concedida a Aymê Okasaki. Em tradução literal, aṣọ significa pano, e ẹbi é família, ou seja, se trata de “pano familiar”. É uma tradição vestimentar coletiva da cultura iorubá, no qual em cerimônias sociais, religiosas e/ou políticas, um grupo de pessoas veste o mesmo tecido em suas roupas, partilhando um senso de comunidade, expresso pela visualidade dos trajes (Nwafor, 2021). O especialista em têxteis africanos, Duncan Clarke (1998, p. 18) aponta que esta prática remonta ao uso de tecidos familiares do século VII, entre os iorubás. Já os autores Margaret e John Drewal (1984) atribuem o axó ebi aos pares que celebram os gêmeos (Ibeji) e às mascaradas Geledé. Em ambas as celebrações um grupo com vestuário uniformizado, demonstra os laços fraternos e maternos, por meio do uso de tecidos de mesmas padronagens. Em celebrações contemporâneas, especialmente em casamentos, as mulheres que vestem o mesmo tecido são chamadas de mulheres axó ebi. Essas mulheres compõem um grupo privilegiado em uma celebração, sendo identificadas para receberem presentes na festa em que estão. Contudo, os participantes do axó ebi devem pagar para participarem do grupo seleto, arcando com os custos de confecção das roupas. Isto, ao mesmo tempo que se trata da inclusão em um grupo seleto, se diferencia dos demais em uma celebração: inclusão X exclusividade. Por terem arcado com os custos de confecção, este grupo costuma receber contra presentes. Na Nigéria, a tradição do axó ebi movimenta uma rede de negócios de moda, alfaiates específicos, além de promover grandes volumes de venda de tecidos (os tecidos também são descritos como axó ebi ou pano para axó ebi, por terem grandes quantidades). Os designs e modelagens das roupas não são iguais, porém todos os celebrantes que fazem parte, precisam vestir o mesmo tecido; tornando visualmente expressiva a inclusão no grupo escolhido pelos noivos ou organizadores da celebração (Nwafor, 2021; Orimolade, 2014). Okechukwu (2011, p. 45-62, apud Orimolade, 2014) aponta que esta cultura têxtil floresceu e cresceu a partir do final da Primeira Guerra Mundial, 1918. Esta tradição partiu dos centros urbanos, como Lagos, para o interior, se expandindo até para grupos não iorubás. Isto porque Lagos, desde o século XV, é considerado um centro de referência para vestuário, com importantes rotas comerciais e fomentando uma rede de consumo (importante lembrar que atualmente, Lagos cedia uma importante Semana de Moda, de visibilidade internacional). Desde os anos 1700 já é popularizado o chamado “estilo lagosiano”. Após a independência da Nigéria em 1960, com instabilidade política e econômica, as demarcações de classes sociais se tornavam muito visíveis pelo vestuário. Desta forma, durante a era militar, a tradição do axó ebi é proibida (durante 1970 até 1990). Contudo, de modo ilegal, classes ricas continuam praticando o axó ebi, fazendo a tradição ter seu auge nos anos 1980, quando participar do axó ebi também era uma maneira de demonstrar status e medir riqueza por meio de sua rede de amigos e familiares. O axó ebi marca a cultura visual iorubá em movimentos complementares, mas também contraditórios de unificar e diferenciar os grupos, contestar e exercer influência. Esta influência marcava a visibilidade urbana que aquele grupo detinha, pois as fotografias populares e colunas sociais das revistas apontavam quais as festas marcantes, e o que as pessoas estavam vestindo nestes momentos (Nwafor, 2021; Orimolade, 2014). Na cultura iorubá, família não se restringe aos laços consanguíneos, mas uma ampla rede que inclui vizinhos e amigos. E no Brasil, os candomblés reconstroem laços familiares, com as famílias de terreiro. Na Iorubalândia, os cultos aos orixás eram realizados separadamente nas cidades, vilas e locais de mesmo nome (rios como Oxum e Obá), feitos a nível familiar. Nos candomblés, diferentes divindades são cultuadas de maneira conjunta, fazendo com que os trajes sirvam também para unificar a casa e determinados grupos, e diferenciar hierarquias, cargos, orixás. Contudo, o axó ebi não é uma tradição deliberadamente presentes nos candomblés. Terreiros de cultos africanos no Brasil, tal como o Ilê Axé Oduduwa (criado nos anos 1980, em São Paulo, pelo nigeriano e dr. em Sociologia pela FFLCH-USP, Síkírù Sàlámì) possuem a tradição do axó ebi. Mas no Axé Ilê Obá, esta não era uma prática deliberadamente presente até o dia 22 de agosto de 2022. Nessa data, ocorreu o ajodum (celebração)de Oiá, e o ateliê Odó Iná adaptou tal tradição, utilizando um mesmo tecido estampado wax print para as saias e laços das filhas da orixá Iansã, divindade das tempestades, divindade da atual Ialorixá, sacerdotisa líder do terreiro: Mãe Paula de Iansã. A ebomi Georgia Prado, a Oiá Somikan, que confeccionou as peças, aponta: “Eu fiz todas as saias listradas, menos a da Stéfanny! A ideia era uma coisa meio axó ebi. Eu que enfeitei o barracão também, com mais duas abiãs. Foi muito trabalhoso. A ideia era axó ebi para as filhas da celebrada [Oiá de Mãe Paula]” (informação verbal) 93 . Realizar o axó ebi foi uma proposta intencional da ebomi, após estudar e conhecer mais sobre esta tradição iorubá: Com contato com vocês mesmo [grupo de pesquisa Fayola Odara], com pessoas nigerianas, e vendo na atualidade, porque o axó ebi ainda é algo grandioso na atualidade, vendo a importância do axó ebi como um traço da cultura iorubá hoje, eu falei: seria legal fazer isso, quem sabe a moda pega. [...] Eu abri as portas para o axó ebi e é uma coisa que eu quero reforçar. Quero que seja algo que outros filhos de outros orixás se empolguem com a ideia. É uma diferenciação estética muito interessante que coloca as pessoas que estão sendo celebradas em destaque. Traz um senso de unidade também. Somos um grupo, temos uma unidade aqui. Somos um grupo específico de pessoas celebrados, os filhos de tal orixá (informação verbal)94. 93 PRADO, Georgia. Entrevista. [22 ago. 2022]. São Paulo. Entrevista concedida a Aymê Okasaki. 94 PRADO, Georgia. Entrevista. [18 out. 2022]. São Paulo. Entrevista concedida a Aymê Okasaki. Esta fala demonstra como as pesquisas sobre os trajes de candomblé também acabam retroalimentando as próprias confecções com informações, tanto de trajes e tradições afro- brasileiras, quanto africanas. As investigações sobre o movimento de (re)africanização, realizadas pelo grupo de pesquisa Fayola Odara (tanto esta minha pesquisa de doutorado, quanto de outros investigadores do grupo) foram compartilhadas e debatidas com confeccionistas, como Georgia Prado, Isabela Rezende e Luana Rampazi. Luana e Isabela, do ateliê Okàn Rere, produziram uma bombacha de Ogum, com a técnica de estamparia iorubá adire, processo que conheceram por meio desta minha pesquisa e da dissertação de Roberto dos Santos 95 . Ou seja, nossas pesquisas, do grupo Fayola Odara, sobre (re)africanização, também estão influenciando e contribuindo com mais elementos de (re)africanização, explorando técnicas, processos e tradições africanas nos trajes brasileiros. Se as revistas e fotógrafos nigerianos fazem a divulgação de quais as modas do axó ebi (quais tecidos são mais utilizados) na sociedade iorubá, no candomblé contemporâneo os fotógrafos oficiais dos terreiros e as redes sociais divulgam e impulsionam essa visualidade. O fotógrafo oficial do Axé Ilê Obá, Felipe de Oxaguiã, sabia que as filhas de Oiá se vestiriam com o mesmo tecido, mas não conhecia a tradição anteriormente (Figura 75). Figura 75 - Saias de tecido ankara, utilizadas por Mãe Paula e as filhas de Iansã, no Axé Ilê Obá, em 2022 Fotografia cedida por: Felipe Marcondes 95 O ateliê utilizou um tecido com técnica inspirada no adire iorubá, que foi produzido pela aluna Fernanda Souza (marca Nisi), que dei mentoria em seu TCC sobre a técnica, na Universidade de Sorocaba, em 2023. A peça pode ser visualizada na postagem disponível em: https://www.instagram.com/p/C3YyIQugACo/ Na Figura 75, fotografia de Felipe de Oxaguiã, é possível perceber que as barras das saias levavam aviamentos diferentes (acabamento em fita de guipure rosa para Mayara de Iansã, branca para a ialorixá Paula). As batas (usadas apenas pelas filhas ebomis ou de maiores cargos na hierarquia) e os camisus não faziam parte do axó ebi, nem as roupas das divindades em si, das orixás Iansãs. E nem todas as filhas de Iansã da casa participaram do axó ebi, apenas aquelas já iniciadas, que podiam usar roupas coloridas (mais de um ano de iniciação cumpridos). Desta forma, a função de visualidade da hierarquia do candomblé permaneceu, mesmo com o axó ebi unificando determinado grupo. A escolha do tecido, modelagem das saias e confecção foram feitas por Georgia Prado: A escolha do tecido foi minha. [...] Porque eu tive que ir à loja buscar um tecido que desse para todo mundo. [...] Porque nem sempre você encontra estampa o bastante para fazer saia para todo mundo. [...] Para fazer saia para a quantidade de filhas de Oiá em que éramos, precisaríamos que fosse umas 7 peças. [...] A escolha foi muito mais baseada na quantidade de tecido do que na relevância da estampa (informação verbal). É importante ressaltar que, mesmo a estampa não sendo escolhida necessariamente por seus significados, mas pela quantidade de tecido e cores relacionada à Oiá, a estampa do wax print selecionada é uma variação da padronagem chamada “Lápis de Nkrumah”. Kwame Nkrumah, foi o primeiro presidente de Gana, e era conhecido por fazer comentários e discursos fortes. Antes de proclamar algo, ele pensava no que iria dizer e colocava no papel, com lápis afiado, desenho no qual a estampa faz alusão (Gerards; Sho, 2012). Ou seja, a estampa representa o planejamento, tal qual foi necessário para a confecção das saias e laços para as roupas das filhas de Oiá no Axé Ilê Obá. As faixas horizontais amarelas, laranja e vermelhas também podem ser relacionadas aos formatos de zigue e zague dos raios, das tempestades de Oiá. Georgia Prado assinalou a intenção de diferenciar o grupo axó ebi, naquela festa em si. Importante ressaltar que o Axé Ilê Obá costuma ter festas nas quais recebe, além de um público de pessoas não-iniciadas, também candomblecistas de outros terreiros, vestidos com trajes completos, segundo os códigos de suas próprias casas. Assim, a roupa diferencia também, quem faz parte de um terreiro de candomblé ou de outro. A ideia de produzir as peças veio, porque eu queria fazer algo especial para a festa de Oiá e que se diferencia as filhas de Oiá de todas as outras pessoas da festa. Para que as pessoas entendessem quem são aquelas que estão sendo celebradas. [...] Acho que é uma coisa interessante de se exaltar. Entender o que significa. Eu tenho um amigo nigeriano que fala que o axó ebi serve porque em um casamento vai gente quase que desconhecida, aqueles convidados de última hora. A partir dessa estética você consegue saber quem são aqueles que você deve cumprimentar, a corte da noiva e a corte do noivo, a família em questão (informação verbal)96. 96 Prado, Georgia. Entrevista. [18 out. 2022]. São Paulo. Entrevista concedida a Aymê Okasaki. Contudo, apesar da produção ter sido realizada por Georgia Prado, a ialorixá da casa contribuiu para que as demais filhas de Oiá aceitassem a ideia, e se vestissem com o mesmo tecido em suas saias e laços. Apenas a partir do momento que Mãe Paula de Iansã aceitou o axó ebi é que as demais filhas concordaram em participar, demonstrando a influência que a ialorixá de um terreiro tem, no vestir de todo um candomblé: As mulheres do Axé Ilê Obá não conheciam a tradição do axó ebi, não toparam de primeira, teve uma resistência, uma coisa do tipo: aí, a gente vai ficar todo mundo igual? Não rolou uma aceitação de primeira. [...], mas eu tentei explicar a importância do significado disso. A Mãe de Santo topou de primeira, ela adorou a ideia e aí as outras pessoas toparam. [...] Ainda no dia da festa eu ouvi as meninas falando “todo mundo igual...”, mas depois, como gerou um impacto interessante, depois as pessoas gostaram (informação verbal). No momento, o terreiro Axé Ilê Obá passa por mudanças em suas estruturas de fornecedores de trajes, com a saída da confecção Patuá, em dezembro de 2022. Por isso, é complexo estabelecer se as mudanças realizadas recentemente se tornarão tradições e permanecerão no terreiro, como é o casodo axó ebi. Contudo é importante reconhecer as (re)criações de tradições e suas reinvenções no espaço do terreiro, com suas adaptações e modificações: O que ficou combinado é que nós, mulheres de Iansã faremos o axó ebi a cada dois anos. Porque é caro comprar tecido e fazer saias novas; para também não ficar uma coisa cansativa. [...] Vi gente falando que quer fazer igual. As mulheres de Oxum querem fazer (informação verbal)97. É preciso entender o axó ebi como uma tradição iorubana reinventada no candomblé Axé Ilê Obá, compreendendo que tradições são vivas e mutáveis (respeitando hierarquia), mesmo as religiosas. Os ateliês que atendem o terreiro Axé Ilê Obá possuem algumas características diferentes. A Patuá vestia a ialorixá Paula de Iansã até o ano de 2022 (atualmente, o ateliê Okàn Rerê que é indicado pela casa) e veste o antigo baba egbé Péricles de Oxaguiã. A Patuá é comandada por uma iaô, que veio da umbanda e que é filha de uma modista de ateliê para roupas de festa. Já o ateliê de Georgia Prado tem uma produção em menor escala. Georgia investiga a estética ancestral negra nas roupas de candomblé, participando de grupos de pesquisa, como os encontros do grupo Fayola Odara. Em entrevista com Georgia Prado, foi possível perceber também diferenças com outros terreiros de São Paulo, que trabalham com roupas com mais brilho, maior utilização de entremeios, muitos paramentos de orixás banhadas a ouro e com mais acessórios e até mais maquiagem: 97 Prado, Georgia. Entrevista. [18 out. 2022]. São Paulo. Entrevista concedida a Aymê Okasaki. É, menos é mais, principalmente no candomblé. Acho que o que tem que chamar a atenção é, de repente, a minha saia, não é se eu estou de lápis ou estou sem lápis, se eu estou de rímel, se estou sem rímel. Não que eu tenha nada contra isso, se quiser usar, usa. Tem que ser uma coisa muito pequena. Porque ali eu não sou eu, ali eu sou uma representante de Oiá. Eu sou uma representante de Oxóssi. Eu estou aqui de brinquinho pequeno, mas vamos supor, por exemplo que Oxóssi me pega. Orixá oboró não gosta de brinco, eles arrancam. Aí ele vai fazer o quê? Ele vai acabar com a minha orelha? Orixá oboró não gosta de maquiagem. Imagina eu virada no Oxóssi, com olhinho de rímel, blush e batom. E não estou falando sobre feminilidade ou não feminilidade, é sobre a energia em si. Então eu não gosto de usar, até na festa de Exu, nunca vão me ver na festa de Exu com rímel. Eu passo um batom, porque eu acho o batom simbólico para uma pomba-gira. Eu passo batom, só. Não vai ter rímel, não vai ter blush, não vai ter sombra, não vai ter nada. Porque não é sobre mim, é sobre a energia que me habita e é ela que tem que se sobressair e não a minha beleza (informação verbal).98 Esta fala também marca um ponto importante, que é quem utiliza as roupas. Apesar de estar no corpo do candomblecista, as roupas dos orixás são das divindades – na pesquisa de Patrícia Ricardo Souza (2007), a autora traz um relato de um orixá que não aceitou a roupa que recebeu – e eles, no momento do transe, vão demonstrar se aceitam a roupa ou não. Por isso, existem tipos de roupas, de tecidos, mais utilizados por alguns orixás, e menos utilizados por outros (orixás que aceitam mais brilho, ou cores etc.). Outro ponto dessa fala que é corroborado em alguns trajes é uma diferenciação dos orixás oborós. Na atual fase de Mãe Paula, há um maior uso de calções (também chamados de bombachas, por serem calças volumosas) sem o uso de saietas, pelos orixás oborós (na Figura 68 vemos as duas formas: calçolão usado por Xangô na esquerda de Mãe Paula, e saieta usada por Xangô na direita de Mãe Paula). 4.3.4. Paramentos Os paramentos com lantejoulas foram caindo em desuso nos anos de 1990, em São Paulo. Pessoas mais velhas na religião ainda possuem suas insígnias de quando se iniciaram. Ao mesmo tempo em que existe permanência de alguns elementos como o uso de materiais metálicos como folha de flandres e ferro, uso da madeira e cabaças (um exemplo é o opaxorô em madeira clara esculpida e cabaças, do Oxalufã de Marco Tuim, que foi possível visualizar na festa de Oxalá do dia 10 de setembro de 2023; e a Oxum da Figura 76), e dos tecidos. Isto não inviabiliza a inserção de outros materiais, como aço escovado, resina, cerâmica, chatons e peças banhadas a ouro. Aqueles que se iniciam nos anos 2000/2010 começam a trazer paramentos aramados com pedras (naturais ou artificiais, como chatons e os strass), para as iabás. O aramado traz suas referências das tiaras reais e de casamentos, mais delicadas e finas. 98 Prado, Georgia. Entrevista. [19 jul. 2019]. São Paulo. Entrevista concedida a Aymê Okasaki. Figura 76 - Paramento de Oxum de Penha, com adê de corujas esculpidas fazendo referência às feiticeiras mães Iá Mi Oxorongá, e segurando uma cabaça, símbolo do feminino na cultura iorubá Foto cedida por: Eduardo Cancissu Dois ateliês que trazem esses novos materiais são importantes para a estética recente da casa. Um deles é o Ateliê Duas Coroas, que confeccionou os paramentos do orixá juntó Oxóssi de Mãe Paula, presente na Figura 77, no qual o artista plástico Americo Correia mescla seu trabalho com materialidades citadas nos mitos das divindades, inserindo areia, conchas, palha, ouro, prata etc. Figura 77 - Paramento de Oxóssi de Mãe Paula, produzido por Américo do Ateliê Duas Coroas, com capacete e impulsas de pulso, confeccionado em tecido de palha de buriti, lâmina de madeira freijó e acabamentos em folha de cobre e latão, búzios, palha da costa e sisal Fonte: Oxóssi Paula (2023). O Ateliê Duas Coroas produziu paramentos para outros orixás no Axé Ilê Obá, como Oxóssi de Georgia, Oiá de Georgia, Iansã de Douglas, Nanã de Bárbara, Xangô Baru de Douglas, Xangô Airá de Edson, Xangô de Paulo (Figura 78) etc. Na casa do Rei, é interessante perceber as diferenças de materiais empregados pelo Ateliê Duas Coroas, para a confecção dos paramentos de Xangô, trazendo o cobre, madrepérola, madeira, entre outros elementos, tanto em tons amarronzados, avermelhados ou branco. Figura 78 - Paramento de Xangô de Paulo, composto por coroa, machados e impulsas de pulso e braço, com acabamentos em folha de cobre, búzios africanos, resina imitando pedra e pedras do sol Fonte: Xangô Paulo (2023). A Nanã de Bárbara (Figura 79) e o Xangô Airá de Edson são casos particulares, pois os trajes também foram confeccionados pelo Ateliê Duas Coroas, apesar deste ser mais reconhecido como um ateliê de paramentos. O que mostra como existe uma influência, inclusive com base na hierarquia, mas também de indicação entre os filhos da casa. Figura 79 - Paramento de Nanã de Bárbara, composto por adê, impulsas de braço e pulso e ìbírí, confeccionado em cerâmica, palha da costa, fio de buriti, fio de juta, madrepérolas, búzios e miçangas Fonte: Nanã Bárbara (2023). E a produção de Diego de Oxóssi, que se autointitula joalheiro dos orixás, fazendo peças banhadas a ouro, com referência à joalheria de crioula (pencas de balangandãs, pulseiras de copo, colares de bolotas e de alianças). A joalheria crioula apesar de antiga no Brasil, tem adentrado o conjunto dos paramentos de candomblé com estes novos criadores, joalheiros e designers. Arthur Ramos traça uma influência das culturas da região onde atualmente estão o Congo e Angola, nos balangandãs utilizados pelas mulheres negras no Brasil do século XIX (Ramos, 1971). Os paramentos do candomblé que se inspiram nas joias de crioula trazem também, esta encruzilhada de referências culturais. A penca de balangandãs, por exemplo, possui suas semelhanças estruturais tanto com o châtelaine utilizado pelas mulheres europeias nos séculos XVIII e XIX, quanto peças africanas, como podemos ver na obra do francês Jean Barbot que esteve na Costa do Ouro, entre 1678-1679 (Figura 80). Figura 80 - Costa do Ouro, séculoXVII Fonte: Jean Barbot (1732 99 ). Esses ateliês reforçam em suas propagandas e canais de venda, que seus trabalhos são exclusivos, o que é valorizado por suas clientelas. Em entrevista realizada em 6 de setembro de 2019 com Bia de Oxum, que encomendou o paramento na Figura 81, ela relata: “Ele faz assim: ele monta o desenho para você e aí ele faz um conselho de ética e fala que não vai vender igual para ninguém da mesma casa. Você assina, ele assina” (informação verbal). 99 Disponível em: https://wellcomecollection.org/works/xpr7gpz3/items?canvas=371 Figura 81 - Paramentos para Oxum banhados a ouro, com adê com chorão de bolotas, colar de crioula, produzidas por Diego de Oxóssi, no terreiro Axé Ilê Obá Fonte: Axé Ilê Obá (2019). Fotos cedidas por Eduardo Cancissú. Não se pode desconsiderar o acesso às novas tecnologias, mais práticas e rápidas para a produção, para a incorporação de novas matérias-primas; além da possibilidade de comprar paramentos prontos em lojas especializadas, caso não seja viável encomendar em um ateliê. Importante destacar as grandes lojas especializadas de São Paulo, como as lojas Flora Xangô, que vendem produtos para umbanda e candomblé desde 1960. A loja de atacado e varejo de artigos para umbanda e candomblé, Casa do Cigano, que se destaca pelo tamanho de uma das suas três lojas, com 1.200 m, e a loja Estrela Magia, que além da venda no atacado e varejo em suas duas lojas, possui seu site do e-commerce. Flora Xangô, Casa do Cigano e Zezinho Baiano são algumas das lojas que Mãe Paula 100 aponta como as mais usadas pelos filhos do Axé Ilê Obá para comprar trajes ou outros elementos dos ritos. Há também um último segmento, para além dos ateliês de trajes e paramentos, que são os acessórios, como os calçados. Nesse segmento, destaco o trabalho da L&Z e da Onirà Moda, que produz mules (calçado feminino) e babuches (sapato masculino), calçados de ponta mais afinada e com a parte posterior menor, como pode ser visto na Figura 82, para facilitar sua retirada (visto que em muitos momentos dos ritos, é necessário estar descalço). A Onirà Moda também produz sandálias, bolsas, sapatos masculinos em couro e tecido ankara. No Axé Ilê Obá, foi possível ver alguns ogãs e ebômis utilizando calçados Onirà, apesar de prevalecerem calçados produzidos fora do segmento específico para candomblé (sandálias/chinelos modelos da marca Havaianas e calçados Crocs são apenas alguns dos exemplos mais recorrentes). Figura 82 – Mule feminino (esquerda) e babuche masculino (direita) da marca Onirà Fonte: da autora (2024). Essas três fases estéticas dos trajes e paramentos do Axé Ilê Obá (fase de Pai Caio, Mãe Sylvia e Mãe Paula), são de estéticas acumulativas. Ou seja, a cada período novos materiais adentram o terreiro, não substituindo complemente os anteriores, mas somando-se a eles. Essa lógica de acúmulo, de extroversão, já presente nos candomblés, faz com que as peças variem não apenas quanto ao orixá apresentado, mas segundo sua qualidade, o terreiro, o sacerdote da casa, o filho que estará com o orixá na cabeça, o período que a ferramenta foi confeccionada e o poder aquisitivo da casa e do filho. Essas variantes são as particularidades de cada traje e paramento, dentro de uma estética religiosa coletiva, mostrando o equilíbrio básico do princípio de beleza para os iorubá e do próprio conceito ocidental de moda. 100 Anexo B. A moda tem um poder de diferenciação do indivíduo, o que podemos transpor para o paramento de um orixá particular, pois nenhum é igual a outro (alterando, principalmente os materiais e técnicas de produção). Babatunde Lawal (1974) afirma que os iorubá apreciam a novidade e a improvisação em suas criações, e isso é visto nos paramentos. O historiador Thompson (2011, p. 24), ao tratar da arte escultórica iorubá, também reforça que “os Iorubás apreciavam a novidade e a improvisação per se nas artes. Essas preocupações são especialmente evidentes no vasto e rico contexto das obras de arte que celebram a religião Iorubá”. Isto é, a cultura afro-diaspórica, que se apresenta no candomblé, não exclui a novidade e recriações. No entanto, a tradição nas cores e os símbolos em si, permanecem, criando o que Gilda de Mello e Souza (1987) chama de unidades estéticas básicas que são típicas de cada época, para determinado grupo. A ideia de unidades estéticas é derivada do conceito do filósofo alemão Johann Gottfried von Herder, Zeitgeist, o espírito de uma época, isto é, características relativas àquele momento. É o caráter socializador, que integra aquele que veste tal paramento em seu coletivo, seja esse grupo o dos que são regidos por um mesmo orixá ou que pertencem à mesma casa de candomblé. A manifestação estética no candomblé presentifica memórias coletivas negras, trazendo para as festas religiosas antigos símbolos das realezas iorubá, mitos das divindades e energias. Em um cenário urbano, paulista, esses símbolos se adaptam aos contextos, acessibilidades e aos gostos geracionais e individuais (de cada orixá, terreiro, ateliê). Isso ocorre porque cada iniciado irá buscar o que for mais adequado e belo para si e para sua divindade, em uma aproximação da fonte máxima da beleza, que no candomblé é associada à iabá Oxum. Sempre entendendo que a beleza não está apenas nas características superficiais, mas também nas funcionais; e que na estética iorubá, a beleza é uma busca por felicidade, aquilo que é agradável de se ver e de experimentar, e que todos têm a oportunidade de vislumbrar essa fonte de beleza e alegria, ao ver um orixá dançando, trajado e paramentado. Nas roupas de candomblé, existem elementos que são considerados imutáveis, relacionados aos fundamentos da religião e à relação hierárquica no terreiro. Contudo, uma parcela visual e estética está vinculada ao gosto efêmero e contemporâneo, às tecnologias têxteis atuais disponíveis e ao aspecto de (re)africanização que traz uma influência atualizada do continente africano. O autor Stallybrass (2008, p. 12) aponta que vivemos na chamada Sociedade das Roupas, sendo os valores da sociedade expressos também como a maneira como se veste. Entendendo essa expressividade do vestir, muito se aponta como as roupas refletem o poder social. Contudo, gostaria de reforçar o quanto o vestir dentro da coletividade de uma comunidade tradicional de terreiro também reflete o amor àquela comunidade, àquele ilê, ao candomblé em si. O respeito às regras suntuárias de uma casa de candomblé não deve demonstrar medo da hierarquia da casa, mas o amor à comunidade e vontade de fazer parte e integrar aquele coletivo que representa sua filosofia, ethos e forma de ser e de pensar. Conforme o conceito de Stallybrass, na Sociedade das Roupas, esta desempenha um papel tanto monetário/comercial quanto de instrumento de incorporação da persona social que veste aquele traje. Conforme uma roupa troca de mãos, ela enreda as pessoas em teias de obrigações. O poder singular da roupa em estabelecer essas redes está ligado a dois aspectos contraditórios: sua capacidade de ser formada e transformada tanto pelo confeccionista quanto por quem a veste; e sua habilidade de perdurar ao longo do tempo. Portanto, a roupa tende a ser alinhavada à memória (Stallybrass, 2008, p. 14), como no caso do traje em richelieu com bordado de pombos de Mãe Paula, que foi herdado de Mãe Sylvia de Oxalá. A transmissão de bens constitui não apenas uma transferência de riqueza, ancestralidade e conexões tangíveis, mas também de memória e do afeto entre gerações dentro de um terreiro (Stallybrass, 2008, p. 29). Essa memória relacionada às roupas também está presente no que Gilda de Mello e Souza (1987) chama de Caligrafia dos Gestos, que é a gestualidade física impregnada nas formas da roupa vestida, mas também como as roupas cerceiamou libertam os movimentos, modificando a gestualidade daquele que o veste. Quando um orixá é paramentado para o xirê, toda sua gestualidade se altera: movimentos rápidos e incisivos de um guerreiro Ogum, doces e delicados de uma Oxum, lentos do idoso Oxafulã etc. A gestualidade inscrita e tramada pelo vestir não é apenas do indivíduo, mas da energia, do axé do orixá ali paramentado. Contudo, o vestir de um terreiro se equilibra entre as permanências (sejam por meio de peças que resistem ao tempo e vestem diferentes pessoas, ou por modelagens e modelos que mantém a estrutura durante a confecção de novas peças) e mudanças (emprego de novos tecidos, técnicas de confecção distintas, desejo em vestir trajes novos para cada xirê etc.). As alterações no vestuário ocorrem, mesmo que para isso seja necessário consultar o jogo de búzios e pedir permissão aos orixás, como ocorre no terreiro Axé Ilê Obá (como nos apontou Bia de Oxum da Patuá Confecções em entrevista 101 ). Essas consultas para pedir permissões ocorrem porque o vestuário no candomblé é uma materialidade carregada de simbolismos e de uma imaterialidade, que é o axé, a energia e força vital. E sendo o axé uma energia presente também em todas as pessoas do terreiro, é necessário um equilíbrio entre as individualidades e a expressividade e identidade coletiva da casa e da religião em si, por meio do vestuário de todos. No caso do terreiro Axé Ilê Obá, temos um exemplo que também ocorre em outras casas de candomblé: o impacto de um babalorixá ou uma ialorixá na vestimenta de toda a casa, formando “fases estéticas” nos períodos que está na liderança do terreiro. A trajetória religiosa, maior ou menor inserção política e cultural nos movimentos de (re)africanização e afro- brasileiros, o gosto pessoal, o orixá desse sacerdote, suas relações com costureiros, confeccionistas de roupas de candomblé, todas essas características influenciam em como a(o) sacerdote conduzirá a estética do vestir daquela casa. Ao analisar os trajes de ração, de festa e de orixás do candomblé Axé Ilê Obá ao longo do período dos três líderes religiosos da casa, descobrimos as mudanças, tendências e estilos que compõem uma moda afro-atlântica, em uma conexão Sul-Sul entre África e São Paulo, por vezes tocando ou escapando da moda euro-ocidental. Segundo Hanayrá Negreiros (Pereira, 2017), ao analisar os trajes religiosos do candomblé, contornamos o perigo de uma narrativa de moda única e hegemônica. Pudemos, assim, observar no candomblé uma forma de se relacionar com o vestuário que se distancia do conceito eurocêntrico de moda proposto por autores tradicionais como Gabriel Tarde, George Simmel ou Gilles Lipovetsky, que pensavam a moda em oposição aos costumes e tradições, e que estabeleciam a imitação e a distinção como sua base reguladora para expressar individualidade, classe e poder. Autores tradicionais nos estudos de moda apontavam a impossibilidade de considerar trajes religiosos como moda, devido ao empecilho que as significações religiosas e sociais teriam para promover mudanças nestes trajes. Isso é, não seria permitido utilizar o conceito de moda para os trajes ditos tradicionais, por não se ver presente a efemeridade, desejo do novo e da troca dos trajes, em busca de diferenciação e 101 ALMEIDA, Bianca Batista. Entrevista. [06 set. 2019]. São Paulo. Entrevista concedida a Aymê Okasaki. pertencimento a um grupo. No entanto, essa ideia de moda como um fenômeno restrito a determinadas sociedades e em determinados períodos, que teria eclodido na Europa do século XIV, é criticada pelos novos debates acerca de uma moda decolonial, em que as roupas de candomblé se inserem. O gosto individual regula mudanças na produção, comercialização e uso de tecidos considerados tradicionais africanos há séculos, como é o caso da mudança de padronagens nos tecidos adire, no alto Níger, na primeira metade do século XVIII, provocado pela demanda de estampas por reserva específicas que reis iorubás e suas comitivas recebiam como presentes, que se diferenciavam das estampas dos tecidos utilizados para trocas comerciais. É o que Colleen Kriger (2006) aponta como preferências de moda individuais e gostos. Em conversa com a diretora do MARKK Museum, que pude ter em 2022, a autora do livro African Lace sugere outro termo para designar trajes menos efêmeros, seriam trajes clássicos e não tradicionais; o que indicaria que as mudanças existem, porém, apoiadas em determinadas bases. Ao trazer perspectivas decoloniais e negras para os estudos de moda no Brasil, como a da autora Hanayrá Negreiros (Pereira, 2017), para analisar os diferentes elementos que compõe os trajes (tecidos, formas, cores), é possível verificar a capacidade de inovação e recriação do candomblé no vestuário, mesmo que essas mudanças sejam sutis para quem está fora da religião. Isso reforça a importância de analisar essas roupas ao longo da história, tendo em vista a noção cíclica ou espiralar de tempo no candomblé. A vestimenta de terreiro tem expressão comunicativa e interage com a indumentária secular, refletindo o contexto brasileiro e influenciando sua vestimenta. ABIODUN, Rowland Olá. 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Salvador: Cavaleiro da Lua,10 ABSTRACT ............................................................................................................................. 11 ÍNDICE DE MAPAS ............................................................................................................... 12 ÍNDICE DE FIGURAS ........................................................................................................... 13 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS .............................................................................. 18 1 PRIMEIROS ALINHAVOS ............................................................................................ 23 1.1. Justificativa................................................................................................................. 26 1.2. Estado da arte ............................................................................................................ 27 1.3. Organização da tese................................................................................................... 43 2 CANDOMBLÉ E SEUS AXÓS ...................................................................................... 47 2.1. Abiã ........................................................................................................................... 48 2.2. Iaô ............................................................................................................................. 49 2.3. Ebomi ....................................................................................................................... 50 2.4. Equede ...................................................................................................................... 51 2.5. Ogã ............................................................................................................................ 52 2.6. Pai ou Mãe-Pequena ................................................................................................. 54 2.7. Babalorixá ou Ialorixá ............................................................................................... 56 3 MONTANDO O ENXOVAL: composição dos trajes .................................................... 59 3.1. Roupa de ração ......................................................................................................... 62 3.2. Roupa de festa ........................................................................................................... 84 3.3. Rum dos orixás ....................................................................................................... 102 4 A FORÇA DA CASA DO REI: trajes do terreiro de candomblé Axé Ilê Obá .............. 112 4.1. CAIO EGYDIO DE SOUZA ARANHA (25 nov. 1925 - 15 fev. 1985) ................ 123 4.2. SYLVIA EGYDIO (15 jul. 1938 – 08 ago. 2014) ................................................... 142 4.3. PAULA REGINA MARIA EGYDIO (1989-) ....................................................... 163 5 ARREMATES FINAIS ................................................................................................... 196 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................... 200 WEBGRAFIA ........................................................................................................................ 205 RITOS E CELEBRAÇÕES OBSERVADAS ....................................................................... 209 GLOSSÁRIO ......................................................................................................................... 215 ANEXO A – TRANSCRIÇÃO - FOTÓGRAFO ROGER CIPÓ ........................................ 238 ANEXO B – QUESTIONÁRIO MÃE PAULA DE IANSÃ ............................................... 239 ANEXO C – QUESTIONÁRIO EDUARDO CANCISSU ................................................. 242 ANEXO D – ENTREVISTA GEORGIA PRADO .............................................................. 245 ANEXO E – ENTREVISTA PATUÁ ................................................................................... 266 ANEXO F – TRANSCRIÇÃO RENDAS IPIRANGA ......................................................... 303 ANEXO G – QUESTIONÁRIO COM MARCONDESSAURO FOTOGRAFIA ............. 305 ANEXO H – ENTREVISTA ODÁ INÁ (GEORGIA PRADO) ......................................... 310 ANEXO I – ENTREVISTA OKÀN RERE .......................................................................... 339 ANEXO J - ENTREVISTA MÃE PAULA ........................................................................... 376 ANEXO K – 9ª JORNADA DO PATRIMÔNIO ................................................................ 390 Esta pesquisa possui como temática a indumentária, os axós do terreiro de candomblé Axé Ilê Obá, da cidade de São Paulo, e busca identificar fases estéticas no vestir da casa, desde 1950 quando o terreiro foi fundado, até a atualidade. Entendendo os axós 1 como primeiro exponente visual demonstrativo dessas alterações, eles podem diferenciar e evidenciar as alterações na casa, especialmente quando existe uma nova liderança à frente do terreiro. Objetiva- se compreender se tais trajes, por seguirem tradições litúrgicas, são “imutáveis” ou se ao longo dos anos, devido a contextos temporais distintos, elementos são alterados (e quais seriam estas alterações e as motivações de tais mudanças). Primeiramente é preciso compreender como se deu a costura desta temática em minhas linhas de pesquisa. Ainda no primeiro ano da graduação no curso de Têxtil e Moda, na Universidade de São Paulo, tive contato com os textos do antropólogo Pierre Fatumbi 2 Verger (4 de novembro de 1902, Paris/França - 11 de fevereiro de 1996, Salvador/Brasil). Analisar a Bahia pelas fotografias e textos do francês naturalizado baiano, era uma forma de retornar à minha ancestralidade nordestina (meus avós maternos são do pequeno município de Urandi, na Bahia). Mesclando as temáticas de Verger com a serigrafia têxtil, realizei uma iniciação científica, com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). No mestrado, foi realizada uma dissertação na área de educação e estamparia, no entanto, a investigação de pontos instigantes da cultura baiana não cessou. Aprofundando um dos capítulos da iniciação científica, foram publicados artigos 3 que tratavam da indumentária da baiana 4 , especificamente sobre o pano da costa e acerca do uso do tecido de renda nestes trajes. No dia 24 de junho de 2017, tive contato pela primeira vez com o primeiro terreiro tombado como patrimônio cultural do Estado de São Paulo, pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado (CONDEPHAAT), o 1 Termo em iorubá que designa roupa, pano (Negreiros, 2017). 2 Nome religioso que significa “Renascido pelo Ifá”, na língua iorubá. 3 Os artigos estão nos anexos da dissertação de mestrado, disponível em: http://https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/100/100133/tde-08112016-135837/publico/AnexoI_Artigos.pdf 4 Traje de baiana, no candomblé, se trata de um conjunto feminino normalmente na cor branca, composto por camisu, bata, calçolão, anáguas engomadas, contra gomas que ficará por cima das anáguas, saia rodada, pano de cabeça e pano da costa, além dos calçados à mourisca ou chinelas de ponta fina. É um traje que faz alusão `indumentária das negras crioulas do período colonial e imperial brasileiros, especialmente das mulheres negras mercadoras, muito registradas nas fotografias dos carte de visite do século XIX. terreiro 5 Axé Ilê Obá, durante os festejos do orixá 6 Xangô, o patrono desta casa. Neste dia ficou evidente qual rumo a pesquisa deveria tomar, dentro da ampla temática de roupas afro-brasileiras. Os gestos e danças traziam muito da personalidade de cada orixá, e as roupas comunicavam uma narrativa. Foi possível perceber1966. SANTOS, Eufrazia Cristina Menezes. Religião e espetáculo: análise da dimensão espetacular das festas públicas do candomblé. 2005. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005. SANTOS, Flávio G. Economia e cultura do candomblé na Bahia. Ilhéus: Editus, 2013. SANTOS, José Roberto Lima. Indumentárias de Orixás: arte, mito e moda no rito afro- brasileiro. 2022. 483 f. 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Em vista disso, iniciei uma busca comparativa do que se via nesse terreiro com o referencial teórico e me deparei com mudanças nos trajes litúrgicos que acompanhavam a indústria têxtil e a individualidade da casa, de sua liderança religiosa e dos praticantes. Rendas industriais, uso de elásticos nos panos da costa das crianças e banté (para dar maior liberdade durante as danças), estampas dos animais que representam os orixás, tecidos brocados em jacquard com fios metalizados que desenham os símbolos das divindades, entre outras tecnologias e processos têxteis e de moda que não eram utilizados na indumentária dos primeiros registros fotográficos do terreiro. Ademais, tive contato com todo um comércio e ateliês desses trajes, que mesclam tecnologia têxtil, processos artesanais, tradições do candomblé e moda. Me utilizei destas investigações para três artigos produzidos ainda no período do mestrado em Têxtil e Moda. Estes artigos foram apresentados em congressos, sendo um em Madri (Espanha) no ano de 2018: “The lace fabric of Bahia clothing: From artisanal to industrial” (Okasaki, 2018); e outro em Covilhã (Portugal) no ano de 2015, intitulado “O tecido de renda como signo no traje tradicional das baianas” (Paiva; Moura, 2015). No candomblé, roupas são representativas, tanto das divindades como das pessoas. Iniciei a pesquisa de doutorado já frequentando o terreiro estudado, porém como consulente, para além de pesquisadora. Ao longo da pós-graduação, final do mestrado e durante o doutorado, meu pai, Edelcio Okasaki, passou por diversas internações médicas, devido a uma doença autoimune chamada miastenia grave. Após um jogo de búzios com Mãe Paula de Iansã, a ialorixá do terreiro de candomblé Axé Ilê Obá, ela me indicou uma sequência de banhos e ebós, e um seria específico para afastar doenças e complicações para meu pai. Mãe Paula sugeriu que eu levasse 5 Terreiro, abaçá, casa de axé, roça são nomes dados ao local onde as cerimônias do candomblé ocorrem. 6 Divindades veneráveis antropomorfizados da cultura iorubá, fonte de energia vital correlacionada às forças da natureza. uma troca de roupas dele para o terreiro, para pedirmos intercessão para Omolu, orixá da doença. No dia 21 de março de 2019, levei uma bermuda e uma camiseta (roupas que ele chamava “de academia”, por serem mais confortáveis e fáceis de vestir, neste período no qual ele estava com dificuldade de locomoção e traqueostomizado) e elas representavam meu pai, devido a ele não poder ir presencialmente no terreiro, por estar hospitalizado na época. As roupas dele não apenas o representavam, mas eram ele no ilê, sua presença. Pois como ele vestia aquelas roupas, elas traziam sua energia (ou axé, energia vital do candomblé), ou o que o autor Peter Stallybrass (2008) irá apontar como uma memória corporal (no cheiro, nas dobras do tecido, manchas ou qualquer outro elemento físico que demonstre as experiências vividas pela pessoa com aquela roupa). Após os banhos e ebó, fui do terreiro para o hospital no qual ele estava internado. Meu pai não era candomblecista, mas não precisaria, pois o pedido para Omolu foi feito e atendido naquele momento. Omolu é o orixá que veste a palha para a cura de suas feridas (a depender do mito, também é para esconder sua beleza ofuscante). São trajes curativos, representativos, com energia, com axé depositados nas fibras, fios e tecidos, por meio do uso e da intencionalidade. Esta pesquisa não trata das roupas dos consulentes, nem das roupas dos candomblecistas fora do espaço do terreiro (como o branco que se veste nas sextas-feiras), contudo todas elas também carregam axé, e são simbólicas, devido ao candomblé ser um modo de vida, ethos que extrapola o terreiro. Esta pesquisa de doutorado seria finalizada entre os meses de agosto e setembro, quando se inicia o ano litúrgico no Axé Ilê Obá, marcando o encerramento desse ciclo de investigação. Contudo, em decorrência de acidente vascular cerebral, meu pai faleceu no dia 1º de agosto de 2023, e por isso, decidi realizar o trancamento do doutorado, e finalizar o curso no início de 2024. O processo do luto, dentro do modo de vida do candomblé, também envolve ritos específicos, como vestir branco, indicando não apenas o final daquele ciclo de vida no Aiê, no plano terreno, mas um novo início, marcando o movimento espiralar da vida. Mas, para além dos pontos que são específicos, que Rita Amaral chama de ethos do povo de santo, tive que revisitar uma obra de Peter Stallybrass (2008) para relembrar a ideia de corporificar por meio das roupas. No primeiro ensaio do livro Casaco de Marx, chamado “A vida social das coisas: roupas, memória, dor”, o autor fala sobre uma blusa herdada de um amigo que faleceu, e aponta o exato momento no qual sentiu sua presença, ao vesti-la. A memória presente no cheiro, nas formas do corpo que (de)formam o tecido, manchas que guardam lembranças, são todos detalhes que fazem dos trajes receptáculos e ativadores de memórias daqueles que partilharam experiências. Por esse mesmo motivo, trajes de candomblé que recebem ejé (sangue) ou alimentos durantes os ritos internos, não devem ser “esterilizados” ou limpos, de tal forma que removam completamente os sinais daquele rito, daquele momento, daquele axé. Se por um lado, roupas são o expoente da moda efêmera, como o auge do produto capital, é no momento do luto que a perpetuidade das roupas se apresenta; presentificando aquele que vestiu o traje, enquanto houver tempo de vida daquela roupa. Após o falecimento do meu pai, pude retornar ao Axé Ilê Obá, com suas cinzas em um colar prateado em formato de coração. No dia 12 de agosto de 2023, no Olubajé, presentificado nesse colar em forma de relicário, meu pai retornou ao Axé Ilê Obá, em agradecimento a Omolu pelos anos de vida e luta que teve em terra. Orixá da terra, Omolu é a divindade que compreende a perenidade da vida terrena, das cinzas que encerram uma volta desse ciclo da vida. A justificativa desta pesquisa reside em demonstrar o fator identitário de uma cultura, uma religião brasileira, por meio do vestuário. Os trajes deste candomblé extrapolam o signo litúrgico para representarem uma bandeira de luta contra o racismo estrutural e um meio de visibilidade étnico-racial e religiosa, isto porque são os trajes que corroboram de maneira mais rápida e direta a crença no candomblé. Apesar de o candomblé estar presente na cultura brasileira desde o século XIX (conforme analisa o professor Luis Parés (2018), em A formação do candomblé), a simbologia do culto aos orixás ainda é pouco conhecida, o que gera parte do preconceito social presente na atualidade. Ademais, a importância desta pesquisa se dá também na busca de comprovação de que, apesar das tradições presentes nos usos dos paramentos, o candomblé não é separado da vida social contemporânea, fazendo com que seus têxteis também sejam textos das lutas atuais, acompanhando as mudanças sociais e culturais. Ainda é importante salientar os motivos de escolha da investigação na História Social da Universidade de São Paulo. Minha formação e linhas de pesquisa partiram dos estudos em Têxtil e Moda. O ensino superior em Moda, no Brasil, é recente, iniciando no ano de 1988, na Faculdade Santa Marcelina/SP. Desde então, diversos cursos foram criados, a princípio com enfoque mercadológico e industrial têxtil. Tanto que os programas de mestrado mais específicos na área atualmente existentes se iniciaramem 2011 7 , justamente com o curso de Têxtil e Moda da USP, no qual pude entrar como aluna especial em 2012 e regular em 2013. Contudo, é uma área que ainda se estrutura na academia stricto sensu, vide a não existência de um curso de doutorado em Moda no país. Isto faz com que os alunos egressos dos cursos de mestrado, busquem áreas distintas para continuarem suas pesquisas. 7 O Senac São Paulo teve o mestrado acadêmico em moda da América Latina, Moda, Cultura e Arte em 2005, porém este foi desativado. Mesmo os cursos superiores sendo recentes, a primeira tese tratando dos processos da Moda data da década de 1950, justamente sob orientação do sociólogo Roger Bastide (1º de abril de 1898, Nimes/França - 10 de abril de 1974, Maisons-Laffitte/França) na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH/USP): “A Moda no século XIX: ensaio de sociologia estética” de Gilda de Mello e Souza (24 de março de 1919 - 25 de dezembro de 2005). Esta autora se tornou uma grande base para os estudos de Moda no Brasil, fazendo parte também de minha referência teórica com a obra O Espírito das roupas (1987). Após a defesa da tese, quatro anos depois, Gilda se torna professora de Estética (disciplina inaugurada por ela) no curso de Sociologia na USP, no qual ainda enfrentava certa oposição acadêmica, pela temática abordada, fazendo com que sua disciplina fosse chamada de “chá da Gilda” pelos corredores da universidade. Assim como a base de estudos em Moda reside na FFLCH, o embasamento teórico para as investigações dos candomblés de São Paulo também inclui docentes da escola, como Reginaldo Prandi e Vagner Gonçalves da Silva. Algumas das pesquisas que irei apontar foram feitas por egressas de bacharelados em Moda, como é o caso de Hanayrá Negreiros (Pereira, 2017) e Ana Maria B. do Nascimento (2016). Contudo, ainda existe uma lacuna de investigações sobre tais trajes nos programas dos cursos de Moda; seja pelo número reduzido de programas de pós-graduação em Moda, seja pelo debate se tais trajes estariam classificados como Moda, seja pela inserção ainda recente de pessoas pretas de axé 8 nestas linhas de pesquisa na academia. Neste recorte do capítulo não estou considerando pesquisas sobre roupas e coleções de moda inspiradas no candomblé, nem sobre trajes negros correlatos aos utilizados nos candomblés, mas que não são roupas de terreiro (trajes de crioulas dos séculos XVIII-XIX, trajes de baianas, trajes de folguedos e festividades afro- brasileiras, trajes da umbanda, roupas e modas africanas no continente africano). Além disso, gostaria de mencionar dois livros que tratam do âmbito da Moda e possuem capítulos sobre roupas do candomblé: O africano que existe em nós, brasileiros, de Júlia Vidal 9 (2015), e Imagens da Diáspora, da artista Goya Lopes e de Gustavo Falcón (2010). Em um capítulo do livro da carioca Vidal, a autora aponta as cores e insígnias/ferramentas utilizadas por cada orixá, de 8 Candomblecistas e adeptos de religiões de matriz africana. O axé é a energia vital presente nos assentamentos das divindades, na natureza, nos seres vivos. 9 Desde 2018 cursa mestrado em Relações Étnico-raciais no Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca, com a pesquisa Produção e comercialização de tecidos e estamparias étnicas no Brasil: elementos para a (re)valorização da identidade e cultura afro-brasileiras, orientada por Dyego de Oliveira Arruda, e coorientada por Maria Renilda Nery Barreto. maneira ilustrada e muito didática. Já o livro Imagens da Diáspora trás diversas estampas têxteis criadas pela artista baiana Goya Lopes, que além de trazerem a temática das religiosidades, também recriam os padrões presentes nas tecelagens africanas (como os tecidos kente, axó oke e outras faixas têxteis produzidas em teares estreitos), e os traços e cores de tecidos estampados utilizados no continente africano e nos terreiros de candomblé. Ressalto esse ponto para que esta análise consiga demonstrar que existe uma grande variedade de modelos de roupas dos candomblés, e que são roupas que possuem diferenças de acordo com as nações 10 de cada terreiro, a cidade/estado do candomblé, a época, além de particularidades do vestir de cada casa de candomblé em si. Compreender essa variedade de trajes nos permite sair de uma generalização e de um olhar cristalizador sobre tais roupas, para pensar que estas se alteram ao longo do tempo e variam de casa para casa; sempre respeitando tradições fundamentais, hierárquicas e sacras neste vestir atualizado. Para iniciar a análise desta bibliografia, apresento a Tabela 1, com o levantamento (que segue em construção) de trabalhos sobre os trajes dos candomblés, com suas respectivas áreas, autores e tipos de pesquisa (trabalhos de conclusão de curso de graduação, dissertações de mestrado, teses de doutorado, livros, artigos e capítulos de livros): 10 Os terreiros se dividem em distintas nações, que possuem cosmogonias distintas: nação queto-nagô cultuam os orixás, que são divindades na cultura iorubá; nação congo-angola reverenciam os inquices, divindades do macro grupo bantu; nação jeje cultua os voduns, divindades do antigo Reino do Daomé; entre outras nações. As nações também vão diferenciar o idioma no qual os ritos são conduzidos, bem como características das roupas; contudo é importante ressaltar como as distintas culturas africanas, seus cultos e divindades também se mesclam e se modificam nos candomblés brasileiros, fazendo com que as nações também interajam entre si e se modifiquem de maneira recíproca, recebendo também influências dos cultos indígenas brasileiros, do catolicismo e de outras religiões. Tabela 1 - Pesquisas sobre trajes de candomblés Tipo de publicação Área da pesquisa Título Autor(es/a/as) Orientador(a) Ano Instituição / Editora / Revista Tese de doutorado Artes Visuais O traje de Oiá Igbalé como oferenda para adiar a morte Marijara S. Queiroz Marcelo Mari 2021 UnB Filosofia no Teatro e Estudos em Performance Candomblé and Its Living Garments Paulo P. Lima Deborah N. Landis 2014 UCLA Artes Visuais Odara Kate L. C. de Paiva Rogério Medereiros 2014 UFRJ Antropologia Religião e espetáculo Eufrazia C. M. Santos Vagner G. da Silva 2005 USP Sociologia Axós e ilequês Patrícia R. de Souza Reginaldo Prandi 2007 Dissertação de mestrado Estética e História da Arte Vestir o Santo Paula N. H. de Montes Denise D. Barros. 2022 Artes Indumentárias de orixás José R. L. Santos Marianna F. M. Monteiro 2022 UNESP Letras, Cultura e Regionalidade A moda como linguagem Débora B. Bregolin Rafael J. dos Santos 2018 UCS Ciências da Religião O Axé nas roupas Hanayrá Negreiros de O. Pereira Ênio J. da C. Brito 2017 PUC-SP Antropologia Roupa de santo L’Hosana C. de M. Tavares Raimundo N. F. do Nascimento 2017 UFPI Artes Visuais Pespontos nos trajes de Candomblé Ana Maria B. do Nascimento Ana B.S. Factum 2016 UFBA Estudos Étnicos e Africanos Roupas de Axé Daisy C. Santos Marcelo N. B. da Cunha 2014 História Social Vestidos de realeza Andrea L. R. Mendes Robert W. A. Slenes 2012 UNICAMP Trabalho de especialização Arte e Patrimônio Cultural Axó Daisy C. Santos Ademir R. Júnior 2011 Faculdade São Bento da Bahia TCC de graduação História da Arte Mãe Rita Carla Michele S. Maciel Joana Bosak 2019 UERGS Livro Indumentárias Raul Lody 2015 IBEP São Paulo Moda e História Editora Senac SP A roupa de baiana 2003 Memorial das Baianas - Salvador Joias de Axé 2001 Bertrand Brasil – Rio de Janeiro Pano da Costa 1977 Cadernos de Folclore 15 - FUNARTE Economia e Cultura do Candomblé na Bahia Flavio G. dos Santos 2013 Editus - IlhéusO torço da bahiana José Valladares 1952 Prefeitura de Salvador. K. Paul Hebeiser Fonte: da autora, 2022 Gostaria de chamar atenção aos anos das publicações e cidades nas quais foram realizadas as investigações. O estado da Bahia ainda é primordial para se pensar em pesquisas históricas, por abrigar as chamadas casas matrizes, os primeiros de terreiros de candomblé que ainda estão em atividade até hoje, e que possuem parte de suas histórias registradas por pesquisadores internacionais e nacionais do final do século XIX e início do século XX (Pierre Fatumbi Verger, Manuel Querino, Nina Rodrigues, Artur Ramos, Édison Carneiro, Ruth Landes, Donald Pierson, Roger Bastide, entre outros), além de trajes expostos em museus e memoriais (Museu Afro Omon Ajagunan, Museu Afro-Brasileiro da Universidade Federal da Bahia, Museu da Cidade, Museu do Traje e do Têxtil, Memorial das Baianas, Memorial Mãe Menininha do Gantois, Museu Ilê Ohun Lailai, entre outros). Por isso, é possível encontrar mais pesquisas como Pespontos nos trajes de Candomblé: os trajes sagrados de Nolá de Araújo (Nascimento, 2016); Roupas de Axé: A coleção de indumentárias litúrgicas do Museu Afro-Brasileiro da Universidade Federal da Bahia (Santos, 2014), O traje de Oyá Igbalé como oferenda para adiar a morte: agenciamentos da coleção de trajes de candomblé da Casa Branca no Museu do Traje e do Têxtil (Queiroz, 2021) que tratam de acervos museológicos e trajes históricos não contemporâneos. Acerca das duas últimas pesquisas, ambas tratam de acervos museológicos, sobre as peças de Georgeta Pereira de Araújo, a Nolá de Araújo (1911-2004), que se encontram no Museu do Traje e do Têxtil do Instituto Feminino da Bahia. Já a pesquisa de Daysi Santos (2014) analisa 16 peças do Museu Afro-Brasileiro da Universidade Federal da Bahia, com peças advindas de terreiros do Recôncavo Baiano e de Salvador. Enquanto a pesquisa de Ana Maria B. do Nascimento (2016) perpassa pelo lugar da escritora descendente de portugueses, Nolá de Araújo, reconstituindo sua trajetória no candomblé e na Irmandade da Boa Morte, por meio das 81 peças de roupas do acervo; Daysi Santos (2014) pensa nessa produção coletiva baiana que foi doada ao museu, e seu processo de catalogação e registro. Na pesquisa de Daysi Santos, podemos observar que se trata de uma análise de uma pesquisadora que é uma mulher preta de terreiro (atualmente da Casa do Mensageiro) e formada em museologia e patrimônio cultural. Esse diálogo entre pesquisadores e as instituições museológicas não é importante apenas para preservação dos trajes, mas também para possibilitar uma exposição respeitosamente ética das peças. O acervo de Nolá de Araújo não estava em exposição até o momento da pesquisa de Ana Maria B. do Nascimento (2016), e como pesquisadora, também tive acesso, em 2019, a um conjunto de trajes de Iemanjá, no Museu Histórico Nacional do Rio de Janeiro, que nunca esteve em exposição, pois a equipe não tinha maiores informações sobre o traje e seu vestir. Tanto Daysi Santos (2014) quanto Ana Maria B. do Nascimento (2016) revisitam autores sobre candomblé que citaram os trajes (como Nina Rodrigues e Fatumbi), trazem composições básicas de tais trajes de terreiro, para, com esta base, analisar as peças dos acervos de museus. Um aspecto importante das pesquisas realizadas nos acervos é a possibilidade de análise minuciosa de costuras, tecidos, modelagens, já que as peças não estão vestidas no corpo, permitindo acesso aos avessos escondidos que compõem as histórias dos trajes de candomblés. A tese de Marijara S. Queiroz (2021) também analisa um traje de Nolá de Araújo do terreiro da Casa Branca (Salvador), em especial o traje de sua orixá, Oiá Igbalé; traje que foi doado para o Museu do Traje e do Têxtil em 2007. Marijara Queiroz analisa camisu, anágua 11 , saia, ọjá, pano da costa, bata, banté 12 , pano de axé 13 e adê (coroa) de Nolá, a primeira mulher branca iniciada no terreiro da Casa Branca. O que diferencia este trabalho da pesquisa de Ana Maria B. do Nascimento (2016), é o olhar voltado para a simbologia específica dessa Oiá, senhora dos mortos, e que por isto se veste completamente de branco. Um paralelo ao debate é relacionado a ser uma mulher branca como elégùn 14 orixá de Oiá Igbalé, a qualidade 15 de Oiá que veste branco, também chamada de Iansã Balé, ou Iansã das almas. A pesquisa analisa a figura dessa orixá e o papel feminino político também no terreiro de candomblé da Casa Branca, que é tradicionalmente matrilinear e no final retoma uma análise mais específica do traje museal de Nolá, se aproximando da pesquisa de Ana Maria B. do Nascimento (2016). Ainda tratando de acervos de trajes de contam a história de candomblecistas específicos, destaco as pesquisas Vestidos de realeza: contribuições centro-africanas no candomblé de Joãozinho da Goméia 1937-1967 (Mendes, 2012) e Mãe Rita: como símbolo de poder sócio- religioso a partir de seus axós e ilequês (Maciel, 2019). Enquanto a pesquisa de Andrea Mendes (2012) traz a imagem de uma das maiores celebridades do candomblé (personalidade que a pesquisadora continuou investigando em pesquisas contemporâneas), Joãozinho da Goméia; Carla Maciel (2019) apresenta uma análise fotográfica de uma das fundadoras do batuque de Porto Alegre, entre o final do século XIX e início do século XX, Mãe Rita. A pesquisa de Carla Maciel (2019) tem a difícil tarefa de contar a história de uma mulher preta, registrada pelas lentes do fotógrafo ítalo-brasileiro Virgílio Calegari. Neste aspecto, a investigação se assemelha muito às pesquisas dos carte de visite, do século XIX, no qual muitas mulheres pretas foram fotografadas por homens brancos europeus; e raríssimas vezes essas mulheres tinham seus nomes registrados, as fotografias eram exportadas para a Europa com títulos genéricos como “baiana”, “negra da 11 Anáguas são saias interiores que estruturam e dão volume para a saia principal. Costumam ser utilizadas de 3 a 7 anáguas de algodão engomado, tule ou filó, sacaria, entre outros materiais. A quantidade e volume dependem de cada terreiro, da divindade e da nação do terreiro de candomblé. 12 Bantè é um pano da costa amarrado na cintura por cima da saia de divindades femininas, com extremidade arredondada embaixo e os franzidos adornados por arremates que podem ser bordados. 13 Pano de axé é uma espécie de toalha retangular de algodão, com pregas palito no sentido da largura, também chamada de “sainha”, usada no assentamento (altar) da divindade ou nos ritos da festa Águas de Oxalá. 14 Iniciado no candomblé também chamado de “rodante”, são aqueles nos quais os orixás “excorporam” ou “incorporam”, e fazem suas danças rituais. 15 Cada divindade possui diferentes qualidades que representam mitos históricos específicos, e por isso possuem roupas e insígnias que representam este mito. Bahia” etc. A importância de identificar estas mulheres fotografadas é de resgatar e registrar seus nomes em pesquisas e literatura. Tanto na pesquisa de Carla Maciel (2019) quanto de Andrea Mendes (2012), a análise de fotografias não leva em consideração apenas as roupas, mas como estão sendo vestidas, por quem, a postura daqueles que as vestem e a agência dessas mulheres, o local da fotografia, quem está realizando o registro e com quais finalidades. Andrea Mendes (2012) trata em sua pesquisa de uma personalidade do candomblé de nação angola-bantu, que também era um artista do carnaval, dança e música: João Alves de Torres Filho (1914-1971), o Joãozinho da Goméia. Diferente da pesquisa de Carla Maciel (2019), que enfrentou dificuldades nas lacunas de informações acerca da fotografia, Andrea Mendes (2012) analisa 26 fotografias veiculadas em 1966 pela revista O Cruzeiro, nas quais Joãozinho da Goméia e suas filhas aparecem com os trajes das divindades. Esse editorial teve grande repercussão,visto que fotografias de terreiro possuíam restrições para serem realizadas 16 . Levar trajes de candomblé, especialmente das divindades, para um estúdio fotográfico, demonstrava também um desejo de Joãozinho da Goméia em exibir os trajes e a cultura de seu candomblé, da sua maneira, com autonomia. É a agência de um sacerdote do candomblé, em demonstrar sua religião, a seu modo, escolhendo o que mostrar ou não. Para além das pesquisas com foco em terreiros de candomblé da Bahia, outras importantes pesquisas investigaram seus recortes regionais: Odara: a construção do belo no candomblé carioca (Lane, 2014); A moda como linguagem: singularidades e códigos vestíveis no trânsito entre o profano e o sagrado do candomblé, que trata das comparações de trajes entre Salvador, Rio de Janeiro e Porto Alegre, demonstrando as regionalidades dos candomblés influenciando diretamente nos trajes (Bregolin, 2018) e Roupa de santo: marcadores identitários das religiões de matriz africana, que apresenta os trajes de um terreiro de umbanda e um de candomblé do Piauí, demarcando as diferenças entre as religiões da matriz africana (Tavares, 2017). A pesquisa de Kate Lane trata sobre a estética dos candomblés no Rio de Janeiro de modo mais amplo, porém um de seus capítulos trata especificamente sobre os trajes. Este capítulo gerou um artigo da Arte & Ensaios, revista do Programa de Pós-graduação em Artes Visuais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Lane, 2015). O destaque da pesquisa de Lane vai para sua análise sobre estética analisando os parâmetros de Belo/Beleza segundo a 16 Vide o caso das fotografias de uma iniciação no candomblé, registradas por José Araújo de Medeiros (1921-1990) e publicadas em 15 de novembro de 1951, para a mesma revista, com texto sensacionalista e pejorativo feito por Arlindo Silva (o título da reportagem foi “As noivas dos deuses sanguinários”); e as repercussões com as meninas fotografadas. Para maiores informações sobre esta fotorreportagem de Medeiros, ler: Tacca (2009). cosmogonia iorubá 17 . Lane analisa o vestuário de acordo com o conceito de odara, cultura iorubá. Kate Lane apresenta o conceito de odara como algo que deva ser belo, bom e útil. Isto se aplicaria tanto a ritos, pessoas, quanto à cultura material, como as roupas. Isto é, a beleza não está desassociada da sua funcionalidade (seja do ponto de vista ergonômico, do vestir bem determinado corpo, ou pelas suas funcionalidades simbólicas-comunicativas, de expressar uma mensagem por meio de determinada roupa) e do que seria bom. Isto é, as roupas não são apreciadas apenas pela estética, mas também pela ética, segundo o ethos daquela comunidade tradicional de terreiro, de acordo com o modo de vida e cosmopercepção de mundo do povo de axé. Esta análise pelo viés do conceito de odara, e não de beleza somente, é importante para uma prática decolonial não apenas nos temas a serem estudados na academia, mas também nos métodos e ferramentas de análise utilizados nas investigações. Já a dissertação de Débora Bregolin (2018) retoma os estudos comparativos, tendo Salvador e Rio de Janeiro como centro de referência, com antigas e tradicionais casas de candomblés, mas realizando uma comparação com o batuque de Porto Alegre. As três capitais possuem seus centros urbanizados, com importantes mercados públicos com venda de artigos afro-religiosos, contudo cada cidade possui características específicas nos trajes, que são analisadas por Bregolin (2018), em um estudo antropológico e semiótico. De todas as pesquisas levantadas, essa é uma das que mais analisa os entrelaçamentos da moda, especificamente a moda nessas três capitais, com o que se veste nos terreiros. Trazendo autores clássicos dos estudos de moda, como Simmel, Lipovetsky, Chataignier, João Braga, Bourdieu, Barthes, entre outros, Bregolin busca realizar esse paralelo com a moda para além dos terreiros, estabelecendo pontos em comum e suas distinções. A autora também lida com dois conceitos complexos de sagrado e profano, e como o vestuário transitaria entre a moda e o candomblé, sendo ressignificado e borrando essas fronteiras entre sagrado e profano. Assim como Bregolin faz um estudo comparativo com o batuque; a autora L’Hosana Tavares (2017) analisa, em sua dissertação, um candomblé de Teresina, o Ilé Axé Oloomi Wura, e um terreiro de umbanda, o Ilé Oiá Tade. Uma extroversão importante da pesquisa neste estudo, foi a confecção de trajes representativos dos 16 orixás mais cultuados no Brasil, mais um 17 Iorubá é um macro grupo linguístico. O idioma está presente nos terreiros de nação queto-nagô; ainda que de forma distinta do que é falado atualmente no continente africano. Porém, é preciso pontuar por uma cultura e tradições em comum, no continente africano suas organizações políticas são variadas; e com os cultos a cada orixá sendo realizado em separado em cidades e regiões específicas (cidade de Oió do orixá Xangô; Ogum com estado homônimo e a cidade de Irê; Oxum com um rio homônimo e as cidades de Ijexá e Oxobô; entre outras cidades e regiões), e não de forma conjunta como ocorre nos terreiros de candomblé brasileiros. Desta forma, existem tradições sobre o vestir em cada culto para cada divindade com suas particularidades no continente africano, que não são necessariamente as mesmas dos candomblés. traje de baiana, um traje de ração feminino e um masculino e um traje de sacerdote; todos confeccionados em miniaturas, para bonecas. As roupas confeccionadas pela autora e com atuação conjunta dos terreiros investigados, teve como foco uma comunicação científica de combate ao racismo religioso, com exposição em Teresina e um auxílio de edital do Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia do Piauí. Esse processo de confecção dos trajes seguiu as metodologias de desenvolvimento de coleção de moda: painel de inspiração, desenhos de croquis, construção de cartela de materiais com tecidos e aviamentos, moulage e planificação da modelagem, confecção dos trajes e das insígnias e acessórios. As peças tiveram uma primeira aprovação pela vereadora Maria do Rosário Bezerra, para a montagem da exposição na Câmara Municipal de Teresina, em 2016. A exposição foi itinerante, passando pela Biblioteca da UFPI, pela sede campestre do Instituto de Assistência Técnica e Extensão Rural do Piauí - EMATER- PI, pelo Instituto Federal do Piauí, pelo Mirante da Ponte Estaiada, pelo Teresina Shopping, pelo Parque da Cidadania e pelo terreiro Tenda Espírita de Umbanda Rainha de Iemanjá. Por meio de livro de visitas com algumas perguntas, a autora também pode ter um retorno dos visitantes acerca do conhecimento que eles tinham das religiões do candomblé e umbanda e seus trajes. Apesar dos importantes estudos baianos e de outros estados brasileiros, devido a meu recorte ser um terreiro de São Paulo, me deparei com pesquisas muito significativas realizadas nesse estado, sendo muitas delas com investigações contemporâneas em terreiros, nas quais as(os) investigadoras(es) visitaram (ou já faziam parte daquela comunidade tradicional de terreiro) festas públicas (xirê na língua iorubá) e o cotidiano dos terreiros, para trazer um mapeamento, tanto geral quanto de alguma casa de candomblé em específico. São pesquisas como O Axé nas roupas: indumentária e memórias negras no candomblé angola do Redandá (Pereira, 2017); Indumentárias de orixás: arte, mito e moda no rito afro-brasileiro (Santos, 2022); Vestir o Santo: A estética da indumentária do candomblé de São Paulo (Montes, 2022); Religião e espetáculo: análise da dimensão espetacular das festas públicas do candomblé (Santos, 2005); Axós e ilequês: rito, mito e estética do candomblé (Souza, 2007) e Candomblé and Its Living Garments (Lima, 2014). Nessas pesquisas em São Paulo, talvez uma das mais influentes (sendo citada em quase todas as demais) é a tese