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GOVERNANÇA CORPORATIVA E COMPLIANCE OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM > Identificar os principais marcos da evolução das práticas de compliance no cenário internacional. > Descrever a evolução histórica da legislação de combate à corrupção no Brasil. > Avaliar o impacto da Lei Geral de Proteção de Dados nas normas de proteção ao consumidor. Introdução O surgimento do compliance ocorreu no início do século XX, tendo como pano de fundo questões de cunho econômico. No entanto, com o passar do tempo, o compliance assumiu uma natureza bastante diversa e multidisciplinar. Atualmente, sua prática se relaciona diretamente com uma diversa gama de normativos legais e infralegais, como legislações, acordos internacionais e normas técnicas, que norteiam e regulamentam as práticas tanto na iniciativa privada quanto no setor público. Neste capítulo, você vai estudar a evolução histórica do compliance no arcabouço jurídico internacional. Em seguida, vai ver como se desenvolveu o combate à corrupção no ordenamento jurídico brasileiro. Por fim, vai identificar como se relacionam a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) e o Código de Defesa do Consumidor (CDC). Principais legislações relativas ao compliance Cláudia Regina de Sousa e Silva Evolução do compliance no arcabouço jurídico internacional O compliance se relaciona diretamente com a noção de conformidade em seus diversos aspectos, principalmente aqueles relacionados a normativos legais e princípios de integridade. Nesse sentido, de acordo com Mathies (2018), o compliance corresponde ao cumprimento de regras e regulamentos impostos, interna e externamente, a uma organização, forçando-a a observar as leis e normas do país onde está sediada. Segundo Lamboy, Risegato e Coimbra (2018), o compliance refere-se ao dever de uma organização de cumprir e estar em conformidade com diretrizes legais, normas e procedimentos definidos interna e externamente, a fim de mitigar riscos relativos à reputação e a aspectos regulatórios. Conforme Mathies (2018), o compliance é um mecanismo relativamente recente, que permite às organizações identificar e gerenciar riscos decorrentes da violação de legislações e normas. A observância das normas não se limita à esfera jurídica, incluindo todas as obrigações necessárias ao desenvolvimento da atividade da organização. A temática do compliance é bastante contemporânea, mas sua origem histórica ocorreu no início do século XX. De acordo com Carneiro (2019), o surgimento do compliance está atrelado ao nascimento das agências re- guladoras, e seu embrião teve origem em 1906, nos Estados Unidos, com a promulgação do Food and Drug Act, que levou à criação da Food and Drug Administration e estabeleceu um modelo de fiscalização centralizado como forma de regular as atividades relacionadas à saúde alimentar e ao comércio de medicamentos. Contudo, foi apenas devido às demandas das instituições financeiras que o compliance avançou. Para Nascimento (2019), outro marco inicial do compliance foi a Conferência de Haia de 1907, que criou uma corte internacional de justiça para averiguar conflitos internacionais e promoveu escopo para a fundação do Bank for International Settlements (BIS, ou Banco de Compensações Internacionais), que consiste na cooperação entre os bancos centrais para obter maior es- tabilidade financeira. No ambiente financeiro, onde o compliance deslanchou e ganhou robustez, destacam-se dois marcos históricos iniciais. O primeiro, conforme aponta Carneiro (2019), ocorreu em 1913, com a criação do Banco Central Americano (Board of Governors of the Federal Reserve), que buscou estabelecer um sistema financeiro mais seguro e estável. O segundo marco, de acordo com Silveira e Saad-Diniz (2015), abrange a crise econômica de 1929. Após a crise, Principais legislações relativas ao compliance2 o Estado identificou a necessidade de regular e controlar a ordem econômica, de modo a diminuir as consequências de eventuais desequilíbrios de mercado. Para tanto, ele promoveu a criação e a adoção de políticas e instrumentos de intervenção, regulação e monitoramento do sistema financeiro, como a Emergency Banking Act of 1933 (Lei Bancária de Emergência de 1933), Gold Reserv Act of 1934 (Lei da Reserva de Ouro de 1934) e a Banking Act of 1935 (Lei Bancária de 1935). Conforme Bertoccelli (2021) também vale destacar a criação da Securities and Exchange Commision (SEC, ou Comissão de Valores Mobiliários dos Estados Unidos) em 1934. Além de estabelecer diversas regras, como a elaboração e a divulgação de relatórios corporativos e padrões de integridade e ética a serem adotados, a SEC visava a supervisionar os valores mobiliários, os mercados e a conduta dos agentes do sistema financeiro. Posteriormente, na década de 1940, é possível destacar a criação das leis Investment Advisers Act (Lei dos Consultores de Investimentos) e Investment Company Act (Lei das Companhias de Investimentos), que visavam à pre- venção de fraudes. Essas leis estabeleceram a obrigatoriedade de registro de empresas e profissionais de consultoria em investimentos na Comissão de Valores Mobiliários dos Estados Unidos, bem como sua atuação em con- formidade com os regulamentos. Outro marco da década de 1940 se deu em 1944, com a Conferências de Bretton Woods, que resultou na criação do Fundo Monetário Internacional e do Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD), com o objetivo de zelar pela estabilidade do sistema monetário internacional. Pedro (2023) ressalta que a criação da Prudential Securities em 1950 insti- tuiu, para empresas do sistema financeiro, a obrigatoriedade de contratação de advogados, que acompanhariam o cumprimento da legislação e monitorariam atividades no mercado de valores mobiliários. A partir de 1960, a SEC passou a insistir na obrigatoriedade de contratação de compliance officers, aos quais caberiam a criação de procedimentos internos de controles, a formação de pessoal por meio de treinamentos e o monitoramento do cumprimento de procedimentos que minimizassem riscos pelos operadores do mercado de ações. É possível afirmar que o compliance ganhou destaque de verdade somente na década de 1970. Na época, teve como principal motivador o escândalo de corrupção ocorrido nos Estados Unidos entre 1972 e 1974 conhecido como caso Watergate. Segundo Blok (2018), o caso causou perplexidade no mercado mundial por causa da fragilidade dos mecanismos de controle do governo norte-americano, que se mostraram incapazes de evitar a incidência de mau Principais legislações relativas ao compliance 3 uso da máquina político-administrativa do país para propósitos particulares e ilícitos. Bertoccelli (2021) aponta que, em 1977, diante da repercussão do caso Watergate e da demanda por meios de punir a corrupção dentro e fora do país, e visando a proteger os negócios norte-americanos e seu mercado de capitais, foi a editada a Foreing Corrupt Practices Act (FCPA, ou Lei Sobre Práticas de Corrupção no Exterior). A FCPA foi a primeira lei anticorrupção do mundo, sendo um importante marco histórico para a área do compliance. A FCPA estabelece regras claras de competição para empresas norte-a- mericanas em outros países e abrange todos os atos de corrupção cometidos por pessoas físicas ou jurídicas, norte-americanas ou não, desde que estabe- lecidas nos Estados Unidos ou listadas na bolsa de valores norte-americana. Em 1988 a lei foi atualizada, elevando o padrão de prova para a descoberta de casos de suborno, e suas disposições anticorrupção também passaram a ser aplicadas a empresas estrangeiras (BERTOCCELLI, 2021). A década de 1980 marca a expansão da atividade de compliance para as demais atividades financeiras no mercado americano. Entre os marcos dessa década destaca-se, conforme Blok (2018), o primeiro Acordo de Capital da Basileia de 1988, que, entre suas ações, apresentou recomendações sobre as atividades de compliance dentro deinstituições financeiras. Outro fato relevante foi a criação, em 1989, do G7 da Financial Action Task Force (Força- -Tarefa de Ação Financeira), para examinar e desenvolver medidas voltadas para o combate à lavagem de dinheiro. De acordo com Blok (2018), nos anos 1990, o desenvolvimento do compliance foi marcado e influenciado por convenções internacionais, como a Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais, realizada em 1997 em Paris, na França, pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) e pela Convenção Interamericana contra a Corrupção, firmada em 1996 por países-membros da Organização dos Estados Americanos (OEA). Nos anos 2000, a ocorrência de diversos escândalos de fraude e corrupção ao redor do mundo culminou na criação de medidas e normas relacionadas à área do combate à corrupção e do compliance, como a aprovação, em 2003, da Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção. No entanto, o maior destaque é dado para a criação, em 2002, da lei norte-americana Sarbanes- -Oxley Act (SOx), ou Public Company Accounting Reform and Investor Protection Act, que disciplinou especificamente o mercado de capitais do país e visa a garantir a criação de mecanismos de auditoria e segurança confiáveis nas empresas (BERTOCCELLI, 2021; BLOK 2018). Principais legislações relativas ao compliance4 A SOx impôs a todas as empresas com valores mobiliários registrados junto à SEC a obrigatoriedade de adoção de mecanismos e protocolos de controle, gestão e transparência, de modo a promover a ampliação da credibilidade das escriturações contábeis das empresas, prevenir fraudes e fortalecer a confiança no mercado de capitais americano. Outra legislação importante a ser abordada é a Dodd-Frank Wall Street Reform and Consumer Protection Act (Lei de Reforma e Proteção ao Consumidor Dodd-Frank Wall Street), aprovada em 2010 como resposta ao ambiente de desconfiança em relação a emprés- timos efetuados em cadeia de origem imobiliária e que tiveram devedores insolventes, provocando a quebra de empresas e bancos nos Estados Unidos em 2008 (BERTOCCELLI, 2021; BLOK 2018). A Lei de Reforma e Proteção ao Consumidor Dodd-Frank Wall Street tem como objetivo promover a transparência e a qualidade geral dos serviços financeiros nos Estados Unidos ao prover maior proteção aos consumidores desses serviços. Por meio de um texto bastante extenso e descritivo, a lei realiza diversas mudanças em outros diplomas legais. Além disso, ela abrange as competências e os deveres do compliance officer, estabelece regras de proteção a whistleblowers e aborda a imposição de aplicação de sanções internas a integrantes da empresa que não tenham respeitado as normas de compliance. Seguindo a tendência americana, nos anos seguintes surgiram novas leis estrangerias voltadas para o combate à corrupção, como a UK Bribery Act (BA, Lei Antissuborno do Reino Unido), criada em 2010, e a lei anticorrupção francesa, chamada de Loi Sapin II, criada em 2016. Na América do Sul, é pos- sível destacar a legislação anticorrupção chilena, conhecida como Ley de La Responsabilidad Penal de Las Personas Jurídicas, criada em 2009, e a lei brasileira (Lei nº 12.846), promulgada em 2013 (BERTOCCELLI, 2021; WAGATSUMA; CATTAN; FERNANDES, 2020). Outra legislação instituída nos anos 2000 que vale destaque, conforme Blok (2018), é a americana Foreign Account Tax Compliance Act (Lei de Conformidade de Impostos de Contas Estrangeiras), editada em 2014, cujo objetivo é aplicar a transparência no que diz respeito às normas contábeis e tributárias das empresas. Ela passou a adotar condutas globais por meio da edição da norma ISO 19.600, da International Organization for Standardization (Organização Internacional para Padronização), que apresenta o roteiro para o estabele- cimento, a implementação, a avaliação, a manutenção e o aprimoramento de sistemas de integridade e compliance nas empresas. Principais legislações relativas ao compliance 5 Apesar de não ser uma legislação, deve-se mencionar que, em 2016, foi editada a norma ISO 37.001. Ela é considerada o primeiro padrão internacional de sistemas de gerenciamento antissuborno e estabeleceu uma linha de base comum, que deve ser utilizada pelas empresas para gerenciar seus riscos de suborno e implementar padrões de compliance. Mais ao final da década de 2010, vieram as legislações e normas relaciona- das à proteção e à privacidade de dados, como as leis de proteção de dados pessoais em vigor em muitos países do mundo, como a brasileira LGPD e a General Data Protection Regulation (GDPR) da União Europeia. Suas principais normas internacionais são a ISO 27.001 e a ISO 27.701, que abordam sistemas de gestão de segurança e de privacidade da informação. Recentemente tem sido bastante frequente a existência de estudos e normas relacionando o compliance à agenda ESG, sigla em inglês para environ- mental, social and governance (ambiental, social e governança), um conceito que vem se destacando desde 2015 devido à criação da Agenda 2030, que definiu os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Leis estrangeiras de combate à corrupção O combate à corrupção é o elemento basilar da área do compliance. Assim, as legislações que abordam a temática exercem considerável influência nas normas, diretrizes e práticas de compliance. Nesta seção, você vai ver algu- mas das principais leis anticorrupção já criadas, como a FCPA, a SOx, a BA e a Loi Sapin II. Foreing Corrupt Practices Act A primeira lei anticorrupção do mundo foi a FCPA, que desde sua edição tem orientado a criação de diversas outras legislações anticorrupção por diversos outros países. Editada em 1977 e alterada por meio de uma emenda em 1988, a FCPA aborda infrações relacionadas a atos corruptos e obrigações contábeis de empresas em relação à administração pública estrangeira. Em sua estrutura, a FCPA tem duas seções: uma anticorrupção, que trata de suborno efetuado a funcionários públicos estrangeiros, e uma ligada a controles contábeis (WAGATSUMA; CATTAN; FERNANDES, 2020). Segundo Oliveira (2020), a FCPA estabeleceu sanções de natureza cível, administrativa e penal que se aplicam a pessoas e empresas norte-americanas que se valem de corrupção junto ao poder público estrangeiro, quando atuam no exterior para a obtenção de vantagens ilícitas. Ainda, a lei estrutura um sistema de combate à corrupção em transações comerciais internacionais. Principais legislações relativas ao compliance6 As condutas puníveis na FCPA incluem oferta, pagamento, autorização e promessa para entidade estrangeira com intenção de influenciar em determi- nado ato ou negociação. Além disso, a alteração de registros contábeis para esconder atuação corrupta ou qualquer tipo de pagamento percebido para a corrupção são infrações. Caracteriza-se, nesse sentido, a corrupção ativa em si. Os ilícitos previstos na legislação, no entanto, referem-se à relação privada e estatal, não se aplicando às relações somente privadas, sendo necessária a presença de funcionário ou de entidades públicas para a tipificação do ato (GIN, 2016). Para Martins (2021), a FCPA pode ser considerada tanto um estatuto civil quanto uma lei penal, pois seu texto prevê sanções tanto cíveis quanto crimi- nais. Cabe à SEC a legitimidade para processar casos de suborno e violações de cunho contábil e cabe ao Department of Justice (DOJ, Departamento de Justiça) a responsabilidade pelas violações relativas à corrupção, como casos de violação de previsões antissuborno. Isso significa que ambas as organiza- ções ostentam autoridade persecutória e impõem sansões cíveis. No entanto, é de competência exclusiva do DOJ impor sanções criminais, enquanto à SEC também cabem as sanções administrativas. Sarbanes-Oxley Act De acordo com Cesarini (2018), além da FCPA, que apresenta caráter investi- gativo (punitivo), existem outras legislações estadunidensesque englobam o combate à corrupção e são igualmente relevantes, mas têm natureza de controle interno robusto. Entre elas destaca-se a SOx de 2002, que impõe às companhias com valores comercializados no mercado mobiliário norte- -americano a adoção de uma série de medidas internas direcionadas a uma maior transparência financeira e à prevenção de fraudes. De acordo com o autor (CESARINI, 2018, p. 119): A SOx foi aprovada em resposta às fraudes contábeis perpetradas pela Enron e WordCom nos anos 1990 e começo dos anos 2000. A finalidade da SOx é identificar, combater e prevenir fraudes que impactem o desempenho contábil das empresas, garantindo o compliance. Importante salientar que a SOx não é um conjunto de regras que indicam práticas de negócio; ela define quais registros financeiros da empresa devem ser armazenados e por qual período. Todas as empresas com ações registradas na SEC, americanas ou não, devem se submeter às regras de auditoria determinadas pela Sarbanes-Oxley. Principais legislações relativas ao compliance 7 Sobre as medidas estabelecidas pela SOx, Alencar e Varella (2021, p. 196) elencam que as principais foram: (i) a criação do Public Company Accounting Oversight Board, conselho não gover- namental e independente encarregado de inspecionar as empresas de auditoria; (ii) a exigência de um novo patamar de governança corporativa, de estruturação de controles internos e de gestão de riscos corporativos; (iii) a adoção de proce- dimentos de prevenção e de detecção de fraudes por parte das companhias; (iv) o estabelecimento de punições criminais e pecuniárias para os Chief Executive Officers (CEOs) e Chief Financial Officers (CFOs); e (v) a alteração nas formas de auditar as companhias. Bribery Act A edição da BA, do Reino Unido, se deu para, entre outras razões, atender às críticas da OCDE quanto ao cumprimento da convenção sobre o suborno de agentes públicos de 1997 e sanar deficiências em sua legislação anticorrup- ção. A BA é considerada uma das leis mais rígidas do mundo sobre suborno transnacional (VERÍSSIMO, 2017). Santos (2018) aponta que a lei do Reino Unido foi vanguardista em sugerir os programas de compliance de forma explícita dentro de seu texto normativo. Ela é mais severa, em alguns casos, do que a legislação americana. Além disso, a lei estabeleceu uma inovação que endossa a relevância dos sistemas de integridade (compliance) ao prever a possibilidade de não punição quando a empresa demonstrar que tem procedimentos adequados para prevenir o suborno. No que se refere a local e extraterritorialidade, a BA engloba empresas do Reino Unido que fazem negócio local e no exterior, empresas estrangeiras com operações no Reino Unido, funcionários públicos locais e estrangeiros e o setor público e privado de modo geral. Além disso, a lei prescreve quatro categorias de infrações distintas: o ato de oferecer vantagem indevida; o ato de aceitar vantagem indevida; o suborno de funcionário público estrangeiro; e a falha na prevenção de corrupção por uma pessoa jurídica (CARNEIRO, 2019). Loi Sapin II No ano de 1993, na França, foi aprovado o primeiro texto anticorrupção, denominado Loi Sapin I, que inaugurou relevantes normativas a respeito de Principais legislações relativas ao compliance8 combate à corrupção, transparência econômica e procedimentos públicos. Posteriormente, o normativo foi atualizado e, em dezembro de 2016, foi pu- blicada a Loi Sapin II, que trata da probidade administrativa na administração pública e privada e é fundamentada em três diretrizes principais: transparência, combate à corrupção e modernização dos negócios (NEVES, 2019). Essa legislação instituiu a expansão da legislação francesa para além do território francês e um novo instituto, um acordo a ser firmado em juízo por empresas e organizações investigadas e condenadas por corrupção, além de outros aspectos de menor importância. Ainda, a Loi Sapin II tornou obrigatória a implantação dos sistemas de compliance nas empresas nacionais e em suas subsidiárias que tivessem mais de 500 empregados e faturamento superior a 100 milhões de euros (NEVES, 2019). A Loi Sapin II também estabeleceu a instauração de uma nova agência de combate à corrupção: a Agence Française Anticorruption (AFA, Agência Francesa Anticorrupção), órgão vinculado ao Ministério da Justiça e ao Mi- nistério da Fazenda responsável por fiscalizar e aplicar multas às empresas que não procederem com a implementação do compliance, caracterizando ofensa criminal. Nesse sentido, Neves (2019) aponta que a AFA foi criada para assistir e orientar a administração pública e as empresas privadas, prevenir e detectar corrupção, fazer auditorias preventivas de qualidade e efetividade e supervisionar e monitorar as medidas determinadas pelos tribunais. Conforme Alencar e Varella (2021) a existência de várias convenções inter- nacionais que tratam do tema da corrupção exprime o esforço da comunidade internacional, entre a última década do século XX e a primeira década do século XXI, para criar tratados que induzissem os países a adotarem legis- lações anticorrupção. Nesse sentido, deve-se destacar a Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais, da OCDE, concluída em Paris em dezembro de 1997. Mesmo havendo certa resistência e demora inicial por parte dos paí- ses-membros para implementar legislações domésticas que refletissem os compromissos da convenção da OCDE nos primeiros cinco anos após a assinatura do tratado, essa situação foi se alterando, e hoje vários países já implementaram legislações desse tipo, conforme mostra o Quadro 1. Principais legislações relativas ao compliance 9 Quadro 1. Legislações de responsabilização de pessoa jurídica nos países signatários da convenção anticorrupção da OCDE (até 2020) País Título normativo Ano África do Sul Companies Act 2008 Argentina Régimen de Responsabilidad Penal Aplicable a las Personas Jurídicas Privadas 2017 Austrália Serious and Organised Crime Act 2010 Bélgica Loi du 11 mai 2007 Bulgária Law on Amendments and Supplements to LAOS 2013 Chile Responsabilidad Penal de las Personas Jurídicas 2009 Costa Rica Responsabilidad de las Personas Jurídicas sobre Cohechos Domésticos, Soborno Transnacional y Otros Delitos 2018 Eslováquia Criminal Liability of Legal Persons Act 2016 Grécia Ratification of the Convention of Strasburg on Corruption 2007 Islândia Criminal Responsibility of Legal Persons in Relation to Bribery and Terrorism 2003 Irlanda Prevention of Corruption Amendment Act 2010 Japão Unfair Competition Prevention Law Amendment 2005 México Ley General de Responsabilidades Administrativas 2017 Nova Zelândia Criminal Proceeds (Recovery) Act 2009 Polônia Act on Liability of Collective Entities 2003 Fonte: Adaptado de Alencar e Varella (2021). Nesta seção, você viu a evolução do compliance no cenário internacional ao longo dos anos, desde o início do século XX até a atualidade. Na próxima seção, você vai estudar como o combate à corrupção foi instituído no orde- namento jurídico brasileiro ao longo do tempo. Principais legislações relativas ao compliance10 Combate à corrupção no ordenamento jurídico brasileiro Nesta seção, você vai conhecer as principais normas legais brasileiras re- lacionadas ao combate à corrupção e, consequentemente, ao compliance. Segundo Santos (2018), no âmbito das revisões legislativas de combate à corrupção, o Brasil tem apresentado uma leva de leis direcionadas para uma política mais direcionada a esse combate. Essas leis ampliam os mecanismos de detecção e punição de atos lesivos praticados contra o patrimônio pú- blico. Como exemplos, o autor aponta a Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/92), a Lei Geral de Licitações e Contratos (Lei nº 8.666/93), a Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527/2011) e a criminalização da corrupção internacional no Código Penal. Blok (2018) apontaque as legislações que originaram e embasaram o combate à corrupção no Brasil surgiram a partir de 1940 por meio do Código Penal Brasileiro, que aborda os crimes contra a administração pública. Pos- teriormente, em 1950, foi publicada a Lei nº 1.079/1950, que dispõe sobre os crimes de responsabilidade. Após um considerável hiato, em 1985 ocorreu a publicação da Lei nº 7.492/1986, que aborda os crimes contra o sistema financeiro nacional. Na primeira metade dos anos 1990, é possível destacar a criação da Lei nº 8.137, de 1990, que aborda os crimes contra a ordem tributária e econômica e contra as relações de consumo, e da Lei nº 8.429, de 1992, chamada de Lei da Improbidade Administrativa, que abomina a conduta funcional dolosa do agente público devidamente tipificada em lei, revestida de fins ilícitos e que vise a obter proveito ou benefício indevido para si ou para outra pessoa ou entidade. Também foi criada a Lei nº 8.443, de 1992, conhecida como Lei Orgânica do Tribunal de Contas da União. No entanto, a lei de maior desta- que criada nesse período foi a Lei nº 8.666, de 1993, chamada de Lei Geral de Licitações e Contratos Administrativos, que define normas de licitações e contratos da administração pública e prevê sanções em incidências de irregularidades, como suspensão, declaração de inidoneidade e impedimento de licitar e contratar (BLOK, 2018; WAGATSUMA; CATTAN; FERNANDES, 2020). Em 1992, o Brasil foi palco de um grande escândalo de corrupção, quando o presidente Fernando Collor de Melo foi investigado após ser denunciado por seu próprio irmão. Devido à descoberta de várias práticas de corrup- ção, o político sofreu o primeiro impeachment da história do país. Entre os normativos legais que sustentaram as acusações está a Lei nº 1.079/1950, que dispõe sobre os crimes de responsabilidade. Principais legislações relativas ao compliance 11 Posteriormente, Wagatsuma, Cattan e Fernandes (2020) destacam que, em 1998, foi publicada a Resolução nº 2.554 do Banco Central do Brasil, que estabeleceu a regulação das instituições financeiras ao mercado internacional e embasou a implantação e implementação de controles internos. No mesmo ano foi editada a Lei nº 9.613, chamada de Lei de Combate aos Crimes de Lavagem de Dinheiro, que criou o Conselho de Controle de Atividades Finan- ceiras (COAF), instituiu a obrigatoriedade da adoção de controles internos e estabeleceu penalidades (BLOK, 2018). Com os grandes escândalos de corrupção ocorridos nos anos 2000, ganha destaque a Circular nº 3.461/2009, do Banco Central do Brasil, que aborda os procedimentos a serem aplicados para combater os crimes de lavagem de dinheiro previstos na Lei nº 9.613/1998, regulamenta as auditorias e institui as noções de transparências. Em 2010, vale ressaltar a promulgação da Lei Complementar nº 135/2010, chamada de Lei da Ficha Limpa, que visa a impedir a eleição de candidatos condenados por órgão colegiado a cargos políticos. Segundo Wagatsuma, Cattan e Fernandes (2020), no início da década de 2010 houve o advento da Lei nº 12.683/2012, chamada de Lei dos Crimes de Lavagem de Dinheiro, que modifica a Lei nº 9.613/1998, tornando-a mais severa. Também houve a edição da Lei nº 12.846/2013, denominada Lei Anticorrupção, que tem seu regulamento disposto no Decreto nº 8.420/2015. Posteriormente, houve a criação da Lei nº 13.303/2016 (Lei de Responsa- bilidade das Estatais), da Resolução nº 4.595/2017 (Política de Conformidade das Instituições Financeiras), da Portaria nº 1.827/2017 (Programa de Fomento à Integridade Pública, ou Profip) e do Decreto nº 9.203/2017 (Política de Go- vernança da Administração Pública Federal Direta, Autárquica e Fundacional) (BLOK, 2018; WAGATSUMA; CATTAN; FERNANDES, 2020). Por fim, é importante citar a LGPD, publicada em 2018. Em nível estadual e municipal também sur- giram normativos envolvendo programas de integridade e de compliance. Lei Anticorrupção ou Lei da Empresa Limpa A Lei nº 12.846/2013 (BRASIL, [2022a]), conhecida como Lei Anticorrupção ou Lei da Empresa Limpa, que dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoa jurídica pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira, foi criada, segundo Oliveira (2020), em decorrência da necessidade de atender a alguns compromissos internacionais de combate à corrupção firmados em convenções internacionais. Sobre o surgimento da lei, Blok (2014, p. 263) afirma: Principais legislações relativas ao compliance12 A Lei Anticorrupção nasceu de um projeto enviado pelo Executivo Federal, ainda em 2010. Diante dos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil como signatário da Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais da Organização para a Coo- peração e Desenvolvimento Econômico, todos os sócios da entidade (incluindo-se o Brasil) se comprometeram a criar legislações de combate ao suborno em países estrangeiros. O projeto permaneceu por cerca de três anos inerte até que um grupo de deputados conseguiu constituir uma comissão especial, que permitisse dar mais celeridade ao processo de tramitação, tendo sido sancionada em agosto de 2013 [...] A nova legislação tem abrangência nacional. Ela pode ser aplicada pela União, estados e municípios e pelos três poderes. Com a Lei da Empresa Limpa, o Brasil introduziu em seu ordenamento jurí- dico a possibilidade de se responsabilizar de forma administrativa e objetiva uma empresa brasileira ou uma sociedade estrangeira que tenha sede, filial ou representação no País, constituídas de fato ou de direito, ainda que tem- porariamente, por atos lesivos causados à administração pública estrangeira. Como exemplo, é possível citar o pagamento de propina a agentes públicos estrangeiros para obtenção das mais diversas vantagens em negócios a serem firmados ou executados no exterior. Para Lima (2018), além de prever a responsabilidade objetiva, civil e administrativa de empresas por práticas corruptivas, a Lei Anticorrupção também apontou o compliance como um importante instrumento jurídico para estimular a empresa a desempenhar suas atividades de forma íntegra e ética, afastada de práticas corruptas, prevendo, inclusive, a possibilidade de mitigação das responsabilidades nos casos de constatação de um pro- grama de compliance efetivo. De modo geral, segundo Gonçalves (2018), as características principais da Lei Anticorrupção são as seguintes. � Responsabilização administrativa e judicial das pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira. � Responsabilidade objetiva das empresas por atos lesivos que as beneficiem. � Possibilidade de imposição de elevadas multas, com base no fatura- mento anual. � Previsão da adoção de programas de conformidade para redução de multas. � Acordos de leniência. Principais legislações relativas ao compliance 13 Sobre a responsabilidade das pessoas jurídicas e naturais, ou seja, os sujeitos ativos na Lei nº 12.846/2013, Gonçalves (2018) aponta que a pessoa jurídica responde objetivamente pelos atos ilícitos que pratica contra a admi- nistração pública nacional ou estrangeira. Já os dirigentes, administradores e terceiros que participem dos ilícitos respondem subjetivamente (por dolo ou culpa). A Lei Anticorrupção exige, para a aplicação da responsabilidade objetiva, que haja nexo de causa e efeito entre a atuação da pessoa jurídica e o dano sofrido pela administração pública. Também exige que seja praticado ato lesivo e que este seja praticado por pessoas jurídicas. Ainda, exige que o ato lesivo cause danos à administração pública, nacional ou estrangeira. Segundo a Lei Anticorrupção, o sujeito passivo do ato lesivo pode ser a administração pública nacional ou estrangeira. No conceito legal de admi- nistração pública estrangeira estão os órgãos e as entidades estatais ou as representações diplomáticas de país estrangeiro,de qualquer nível ou esfera de governo, bem como as pessoas jurídicas controladas, direta ou indiretamente, pelo poder público de país estrangeiro, e a elas se equipa- ram as organizações públicas internacionais. No conceito de administração pública, compreende-se os entes integrantes da administração direta e da administração indireta. A Lei da Empresa Limpa também prevê a responsabilidade objetiva, in- dependentemente da comprovação de dolo ou culpa, das empresas que praticam os atos lesivos à administração pública nacional ou estrangeira. Entre eles estão os seguintes. � Prometer, oferecer ou dar, direta ou indiretamente, vantagem indevida a agente público ou a terceiros relacionados a ele. � Comprovadamente, financiar, custear ou patrocinar a prática dos atos ilícitos previstos na Lei. � Dificultar atividade de investigação ou fiscalização de órgãos, entidades ou agentes públicos ou intervir em sua atuação, inclusive no âmbito das agências reguladoras e dos órgãos de fiscalização do sistema financeiro nacional. De acordo Gonçalves (2018), a Lei da Empresa Limpa prevê que as empresas que cometerem atos ilícitos contra a administração pública estão sujeitas a sanções administrativas, cabendo a aplicação isolada ou cumulativa, de acordo com as peculiaridades do caso concreto e com a gravidade e natureza da infração, sem prejuízo do dever de reparação integral do dano. As sanções são as seguintes. Principais legislações relativas ao compliance14 I – multa, no valor de 0,1% a 20% do faturamento bruto do último exercício anterior ao da instauração do processo administrativo, excluídos os tributos, a qual nunca será inferior à vantagem auferida, quando for possível sua estimação; e II – publi- cação extraordinária da decisão condenatória (BRASIL, [2022a, documento on-line]). A responsabilização administrativa da pessoa jurídica não afasta a pos- sibilidade de responsabilização judicial que visa à aplicação das seguintes sanções às pessoas jurídicas infratoras: I – perdimento dos bens, direitos ou valores que representem vantagem ou pro- veito direta ou indiretamente obtidos da infração, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé; II – suspensão ou interdição parcial de suas atividades; III – dissolução compulsória da pessoa jurídica; IV – proibição de receber incentivos, subsídios, subvenções, doações ou empréstimos de órgãos ou entidades públicas e de instituições financeiras públicas ou controladas pelo poder público, pelo prazo mínimo de 1 (um) e máximo de 5 (cinco) anos (BRASIL, [2022a, documento on-line]). Conforme mencionado, entre as principais características da Lei Anticor- rupção consta o acordo de leniência, que tem como objetivo fazer com que as empresas colaborem efetivamente com as investigações e com o processo administrativo, devendo resultar na identificação dos demais envolvidos na infração administrativa, quando couber, e na obtenção célere de informações e documentos que comprovem a infração sob apuração. O prazo para a con- cretização do acordo de leniência é de 180 dias da ciência da existência do ato infracional. Os dias são prorrogáveis de acordo com o órgão responsável pela sua celebração (GONÇALVES, 2018). São requisitos cumulativos para o acordo: I – a pessoa jurídica seja a primeira a se manifestar sobre seu interesse em coope- rar para a apuração do ato ilícito; II – a pessoa jurídica cesse completamente seu envolvimento na infração investigada a partir da data de propositura do acordo; III – a pessoa jurídica admita sua participação no ilícito e coopere plena e perma- nentemente com as investigações e o processo administrativo, comparecendo, sob suas expensas, sempre que solicitada, a todos os atos processuais, até seu encerramento. [...] § 3º O acordo de leniência não exime a pessoa jurídica de reparar integralmente o dano causado. [...] § 5º Os efeitos do acordo de leniência serão estendidos às pessoas jurídicas que integram o mesmo grupo econômico, de fato e de direito, desde que firmem o acordo em conjunto [...] (BRASIL, [2022a, documento on-line]). Em contrapartida, o acerto poderá reduzir a multa em até dois terços, não sendo aplicável, à pessoa jurídica, outra sanção de natureza pecuniária decorrente das infrações especificadas no acordo. Além disso, ele isenta a pessoa jurídica da sanção de publicação extraordinária da decisão condena- Principais legislações relativas ao compliance 15 tória e das sanções restritivas ao direito de licitar e contratar previstas nas normas que tratam de licitações e contratos (SOUZA, 2018). Outro advento da Lei que merece destaque é a criação dos cadastros nacionais, que buscam dar publicidade às empresas punidas e consideradas inidôneas e suspensas. Eles são geridos pela controladoria-geral da União por meio de dados fornecidos pelos órgãos e entidades dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário nas esferas federal, estadual e municipal. O Cadastro Nacional de Empresas Punidas (CNEP) visa a consolidar o banco de dados com informações sobre as sanções impostas com fundamento na Lei nº 12.846/2013 e sobre o descumprimento dos acordos de leniência celebrados. Já o Cadastro Nacional de Empresas Inidôneas e Suspensas (CEIS) visa a dar publicidade à relação das empresas e pessoas físicas que sofreram as seguintes sanções: restrição (suspensão ou impedimento) ao direito de participar em licitações ou de celebrar contratos com a administração pública e declaração de inido- neidade para licitar ou contratar com a administração pública. Diante do exposto, fica evidente que a Lei Anticorrupção tem como objetivo não só punir, mas também motivar as empresas a adotarem medidas preven- tivas, a fim de evitar a incidência da prática de atos lesivos à administração pública, criando ou alterando, por exemplo, códigos de ética e conduta, o que mostra o comprometimento da empresa no combate à corrupção. Cesarini (2018) ressalta que, pensando no dever de cuidado extremo que o empresário deve ter ao tratar com a administração pública e visando a evitar a ocorrência de atos ilícitos, os programas de compliance surgem como fortes instrumentos de proteção da pessoa jurídica contra a prática de atos tipificados como de corrupção. O Decreto nº 8.420/2015, que regulamenta a lei, traz os parâmetros para a estruturação, aplicação e fiscalização do conjunto de mecanismos e procedimentos internos de integridade (BRASIL, [2022b]). Cabe destacar que a lei prevê o programa de compliance como fator redutor de aplicação de sanção administrativa. Nesta seção, vimos o desenvolvimento e a evolução dos normativos rela- cionados ao combate à corrupção no cenário nacional, com destaque para a Lei nº 12.846/2013. A seguir, você vai estudar a LGPD e sua relação com normas protetivas ao consumidor. Principais legislações relativas ao compliance16 Lei Geral de Proteção de Dados e Código de Defesa do Consumidor A LGPD (Lei nº 13.709/2018) estabeleceu, no ordenamento jurídico brasileiro, um conjunto de normas voltadas a regular o tratamento de dados pessoais em todas as atividades do cotidiano do cidadão, abrangendo todos os setores da economia (BRASIL, [2019]). A Constituição Federal de 1988 considera o direito do consumidor como um direito fundamental (BRASIL, [2020]). Nesse sentido, criou-se, em 1990, o CDC, visando a proteger o consumidor, considerado parte vulnerável das relações consumeristas (BRASIL, [2022c]). Nesta seção, vamos relacionar a LGPD e o CDC. Segundo Miragem (2019), o acesso e a utilização dos dados pessoais são um dos principais ativos empresariais na sociedade contemporânea. Ao mesmo tempo, expressam os riscos à privacidade frente às novas tecnologias da informação, repercutindo amplamente no mercado de consumo e, conse- quentemente, sobre o direito do consumidor. De acordo com Guimarães Filho, Ferneda e Ferraz (2020), a questão acerca da proteção, gestão e tutela de dados do consumidor, além de ser abordada na Constituição Federal,no CDC e na LGPD, é tratada em diplomas específicos para abordar a intersecção entre o Direito e a internet, como o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014). Os autores também apontam que a constituição da figura do consumidor está disposta na LGPD, dispondo que o titular é a pessoa natural a quem se referem os dados pessoais que são objeto de tratamento (DE LUCCA; MACIEL, 2020). A edição da LGPD cumpriu os requisitos apontados pela Organização das Nações Unidas, junto à United Nations Guidelines for Consumer Protection (2016), no sentido de que se recomenda que as ‘empresas devem proteger a privacidade dos consumidores por meio de uma combinação do controle apropriado, segurança, transparência e mecanismos de consentimento relacionados à coleta e ao trata- mento de dados pessoais’. Referida lei, portanto, representou um fortalecimento dos direitos individuais e coletivos dispostos no CDC (GUIMARÃES FILHO; FERNEDA; FERRAZ, 2020, p. 43). Nunes (2021) aponta que, a partir da LGPD, surgiu a possibilidade de que os dados fornecidos pelos consumidores necessitem de uma autorização expressa para serem utilizados. Assim, garante-se uma maior segurança aos consumidores que integram a relação de consumo. Ao garantir essa proteção, a lei busca alcançar a igualdade na relação entre o consumidor, o portador dos dados pessoais e o fornecedor. Principais legislações relativas ao compliance 17 Segundo Efing e Locks (2022), o CDC estabelece que deve haver um banco de dados referente a um cadastro de consumidores. Entretanto, isso com- porta riscos, pois as informações contidas no cadastro, quando repassadas ao fornecedor, ficam armazenadas por ele, como forma de segurança de informação. No entanto, isso nem sempre é respeitado pelo fornecedor, que, muitas vezes, utiliza os dados com outras finalidades, violando a segurança do consumidor. Dessa forma, como o CDC se mostra insuficiente para solucionar tal imbróglio, a LGPD surge para proteger o consumidor (EHRHARDT JÚNIOR; FALEIROS JÚNIOR, 2021). Guimarães Filho, Ferneda e Ferraz (2020) destacam que além dessa preo- cupação com a proteção do consumidor, a LGPD estabeleceu que o titular dos dados pessoais tem direito a obter do controlador, em relação aos dados do titular por ele tratados, a qualquer momento e mediante requisição, o acesso aos seus dados. Também é garantido ao titular a anonimização, o bloqueio ou a eliminação de dados desnecessários. Além disso, a LGPD garante ao titular dos dados pessoais o direito de peticionar, em relação aos seus dados, contra o controlador, perante a autoridade nacional. Ainda, ele tem o direito de se opor ao tratamento realizado, com fundamento em uma das hipóteses de dispensa de consentimento. Conforme Nascimento (2021), com o advento da LGDP, as relações jurídicas entabuladas entre consumidores e fornecedores reguladas pela aplicação do CDC, quando envolverem o tratamento de dados pessoais, também estarão sujeitas às disposições da LGPD. Nos termos estabelecidos na lei, a violação do direito do titular de dados pessoais, se ocorrida no âmbito das relações de consumo, vai permanecer sujeita às regras do CDC quanto à apuração de responsabilidade civil para fins de apuração de danos. Bioni e Dias (2020) apontam que as regras previstas no CDC estabelecem a responsabilidade objetiva dos fornecedores, ou seja, independentemente da existência de culpa. Assim, na sua aplicação, não se questiona a existência ou não de culpa do fornecedor em determinado evento danoso; somente se verifica a ocorrência de uma das hipóteses legais de desoneração dessa responsabilidade. Portanto, o fornecedor só não será responsabilizado se for comprovada a ausência de nexo de causalidade com o dano causado. Vale ressaltar que a responsabilidade civil mencionada LGPD, que poderá ser aferida em eventuais ações judiciais propostas por titulares-consumidores, não se confunde com a responsabilidade administrativa também prevista na lei, que é decorrente de infrações cometidas às normas previstas na própria LGPD. Portanto, os fornecedores que infringirem as disposições da LGPD ficarão sujeitos às sanções previstas na própria lei, as quais poderão ser Principais legislações relativas ao compliance18 aplicadas isolada ou cumulativamente, de forma gradativa, considerando as peculiaridades do caso concreto e de acordo com os parâmetros e critérios estabelecidos na própria lei (GUIMARÃES FILHO; FERNEDA; FERRAZ, 2020). A aplicação das sanções previstas na LGPD é de competência exclusiva da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), que é o órgão da admi- nistração pública federal que zela, implementa e fiscaliza o cumprimento da LGPD em todo o território nacional. No entanto, diferentemente das sanções previstas na LGPD que têm caráter administrativo e financeiro, a violação dos direitos dos consumidores constitui infração penal, tendo em vista que impedir ou dificultar o acesso do consumidor, bem como deixar de corrigir ou lhe entregar informações a seu respeito, configura crime com pena de detenção ou multa (DE LUCCA; MACIEL, 2020). Na prática, é possível perceber que a maior parte das relações jurídicas que serão impactadas pela LGPD também terão a influência de normas pro- tetivas do consumidor. É o caso das relações bancárias, dos planos de saúde e dos serviços públicos, entre outras situações. Do ponto de vista gerencial, as novidades trazidas com o advento da padronização mundial em proteção de dados podem trazer grandes prejuízos às empresas que não se adapta- rem à LGPD, especialmente quando falamos do Serviço de Atendimento ao Consumidor (SAC). De fato, é fundamental disponibilizar um apoio eficaz para atender às dúvidas dos clientes e manter a conformidade, evitando litígios e reclamações junto ao Procon e ao Poder Judiciário. Neste capítulo, você viu como aconteceu a evolução do compliance desde o início do século XX, com destaque para a influência política, econômica e jurídica dos Estados Unidos. Além disso, estudou as principais legislações nacionais relacionadas ao combate à corrupção no Brasil, como a Lei An- ticorrupção ou Lei da Empresa Limpa. Por fim, viu que a LGPD representa um avanço na tutela dos dados pessoais, uma vez que unificou o tema ao coordenar a proteção de dados pessoais em sistemas, direitos e obrigações, mas sem excluir o CDC. Referências ALENCAR, C. H. R.; VARELLA, M. D. Combate globalizado à corrupção: da gênese do modelo norte-americano à sua implementação internacional. Revista de Direito Internacional Econômico e Tributário (RDIET), v. 16, n. 2, p. 184-226, 2021. BERTOCCELLI, R. P. Compliance. 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Assim, os edito- res declaram não ter qualquer responsabilidade sobre qualidade, precisão ou integralidade das informações referidas em tais links. Principais legislações relativas ao compliance22