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assim, uma África imaginada apenas aos portugueses, mas irreconhecível às diferentes realidades afri- canas, sobretudo nos ambientes de exploração. Por isso, a seguir, outros discursos do período serão analisados, inicialmente a partir de algumas publicações na imprensa. Quantas são as referências culturais que conhecemos que nos apresentam o continente africano (ou mesmo o Brasil) de forma essencialista e com um teor precon- ceituoso? Uma sugestão de exercício: faça um pequeno levantamento de textos literários que ambientam essas visões. Serão muitos? Existem ainda textos contempo- râneos que trazem esses preconceitos? Para aprofundar a discussão: leia o trecho de uma re- portagem sobre a polêmica do livro infantil Bichinhos da Selva, da autora brasileira Beatriz Odriozola, publicado em 2003. Na discussão, reflete-se sobre a conduta racista no livro, comparando os negros a animais. Você pode ler a matéria, além da discussão, na tese de Nancy Helena Rebouças Franco, da Universidade Federal da Bahia, 2008, p. 207-210. Disponível em: https://repositorio. ufba.br/ri/bitstream/ri/11019/1/Nanci%20Franco.pdf. REFLITA https://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ri/11019/1/Nanci%20Franco.pdf https://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ri/11019/1/Nanci%20Franco.pdf 10 PRIMEIRAS DÉCADAS DO SÉCULO 20 E OS TEXTOS “PROTONACIONALISTAS” As primeiras produções discursivas na impren- sa africana de língua portuguesa iniciaram um processo que abalou as estratégias portuguesas ultramarinas. Para Wole Soyinka (2010), foram as literaturas africanas, publicadas principalmente no jornalismo, as mobilizadoras da imaginação literária contra o colonialismo (SOYINKA, 2010, pp. 651-652). Em 1891, a primeira gráfica foi fundada em Luanda, capital de Angola, iniciando, assim, o jornalismo de luta pela defesa da causa dos africanos, que se intensificou ao longo do século 20 (SOYINKA, 2010, p. 652). As críticas Tânia Macedo e Vera Maquêa (2007) afirmam que o jornal era “espaço privilegiado de divulgação dos textos” (MACEDO; MAQUÊA, 2007, p. 14). Dessa forma, a imprensa teve um papel fundamental no que Mário Pinto de Andrade (crí- tico literário, fundador e primeiro presidente do Movimento Pela Libertação de Angola – MPLA – grupo de resistência contra o colonialismo e que se tornou governo após a independência) vai chamar de “protonacionalismo” (ANDRADE, 1997, 11 p. 75), o início das manifestações protestatórias quanto à colonização. Para Andrade, o início do protonacionalismo se dá a partir de 1911, com a publicação do jornal O negro (ANDRADE, 1997). Em Angola, o estilo característico da chamada “prosa polêmica” (ANDRADE, 1997, p. 50) surge no início do século 20, com os artigos de Voz de Angola clamando no deserto (1901), como resposta aos conteúdos racistas publicados no jornal Gazeta de Loanda. Mário Pinto de Andrade afirma que esses textos marcam o nascimento da consciência nativista no território (ANDRADE, 1997, p. 53). Em Cabo Verde, também é possível encontrar periódicos, ainda que a imprensa seja mais forte em Angola. O jornal Independente, de 1877, já trazia algumas reivindicações autônomas. Toda- via, apenas a partir do século 20 um espírito mais “republicano” é perceptível (ANDRADE, 1997, p. 42), como no jornal A Alvorada, de 1902, trazendo os primeiros textos de um dos fundadores da literatura cabo-verdiana, o escritor Eugénio Tavares. Quanto a Moçambique, a tipografia chega em 1854. Para o crítico Valdemir Zamparoni (1998): 12 “Esta burguesia local, intermediária do tráfico e pilhagem mercantil é, amiúde, filha da terra, mas os seus ideais desenvolvem-se na esteira dos que acompanham o crescimento do sistema imperialista e colonialista português. Quando os seus interes- ses locais ou de acumulação e investimento são obstruídos pela ação colonial, desenvolve ideias independentistas, embora sem a perspectiva da Nação Moçambicana (ZAMPARONI, 1998, p.74).” Nesse ambiente, os irmãos João e José Albasini foram os pioneiros na imprensa moçambicana de negros e mestiços, juntamente com Estácio Bernardo Dias, pelas publicações de dois dos mais importantes periódicos, O Africano (1908-1918) e O Brado Africano (1918-1974), escritos em portu- guês e em ronga, além de algumas publicações em inglês e zulu (SOUZA, 2019). Os dois jornais denunciavam principalmente quatro abusos crônicos do período: o chibalo (trabalho forcado), as más condições de trabalho dos afri- canos livres, o tratamento preferencial dado aos imigrantes brancos e a falta de possibilidades de educação (DAVIDSON; ISAACMAN; PÉLISSIER, 2010, p. 829). 13 Figura 1: Capa do jornal O Brado Africano. Fonte: www.cecult.ifch.unicamp.br. O Brado Africano surgiu em 1918, como um im- portante jornal que atravessou décadas, possibi- litando a visibilidade de intelectuais e escritores fundamentais às histórias dos países africanos de língua portuguesa, até o ano de 1974, com o seu fim. Há muitos textos teóricos que tratam desse importante periódico, mas, infelizmente, poucas pesquisas são feitas na área literária. https://www.cecult.ifch.unicamp.br/noticias/jornais-africanos-1800-1922-disponiveis-site-sistema-bibliotecas-unicamp 14 Você pode encontrar alguns volumes do jornal O Brado Africano no Brasil, na biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, em Campinas. Também, há alguns volumes na Biblioteca Nacional, em Lisboa. Contudo, é possível encontrar todo o jornal apenas em Moçambique. Agora, vamos propor a você um pequeno exercício. Abaixo, segue o excerto de um trecho da crônica do jornalista e editor José Albasini, publicada no O Brado Africano, em 1934. Albasini viajou por diversos lugares de Moçambique à procura da cura para a sua doença, a tuberculose. Naquele período, a tuberculose afetava grande parte do continente africano, bem como outros continentes, e muitos foram aqueles que morreram em razão dessa moléstia. Em Moçambique, o sincretismo religioso favorecia, além das recomendações medicinais conhecidas, o tratamento através da medicina tradicional. Logo, José Albasini passou a percorrer Moçambique para entrar em contato com essas terapias, e acabou encontrando o ver- dadeiro território moçambicano, observando suas diferenças (SOUZA, 2018). Em uma dessas viagens, o jornalista discute uma situação com trabalhadores rurais quanto ao “imposto da palhota”, obrigatório a todos naquele período. Observe o excerto e SAIBA MAIS 15 aponte quais as perspectivas protonacionalistas que podem sem encontradas no discurso: “Cheguei a Manhiça às 13 horas e fui logo dolo- rosamente impressionado, com uma leva de presos por dividas do imposto da palhota. Contei 50, na sua maioria velhas de mais de 60 anos; as desgraçadas estão ali por um crime que não cometeram porque, todos sabem, o imposto é pago pelos homens. Não sei quem foi o Torquemada que inventou aquela tortura, a que não faço mais referencias por motivos que todos devem compreender […]. Oxalá alguém acabe este sistema, impróprio do século que atravessamos (ALBASINI, 1934 apud SOUZA, 2020, p. 28).” 1616 QUESTÕES ÉTNICO-RACIAIS E OS MOVIMENTOS DE RESISTÊNCIA Os movimentos de resistência ao colonialismo português se iniciaram, segundo Andrade (1970), a partir da década de 1940, haja vista as primeiras insurgências nos territórios africanos, bem como os surgimentos de textos com conteúdos mais explicitamente marcados pelas ideologias de libertação nacional. Para compreender melhor essas ações, contudo, é preciso saber que Portugal, naquele período, vivia o Estado Novo (1933-1974), uma ditadura que cer- ceava direitos dentro e fora de seu território, com o comando de Antônio Oliveira Salazar. Surgiam, portanto, alguns grupos de resistência dentro e fora do país, alguns deles formados por estudantes africanos em Portugal, como veremos. No âmbito macro, a luta pelas independências no continente africano seguia a todo o vapor. Inú- meros foramos territórios que as conquistaram, como resultado de movimentos anticolonialistas formados, principalmente, pelas ideologias da negritude e do pan-africanismo, fundamentais para as questões étnico-raciais. Mas o que eram esses movimentos? 1717 O pan-africanismo, segundo Eduardo Mondlane (líder do grupo de resistência Frente de Libertação de Moçambique – FRELIMO – e primeiro presiden- te do país), foi um movimento político-cultural do início do século 20 que teve como proposta uma “unidade entre todos os povos negros oprimidos do mundo” (MONDALANE, 1975, p. 112). O crítico Yves Benot (1981), porém, aponta que as ideias pan-africanistas foram elaboradas fora da África, nas Américas (BENOT, 1981, p. 195), a partir da I Conferência Pan-Africanista, em 1900, na cidade de Londres, e do I Congresso Pan-a- fricano, em Paris, em 1919. O pan-africanismo teve palco, principalmente, nos Estados Unidos, por conta dos movimentos de resistência que se iniciaram nas primeiras décadas do século 20 no bairro do Harlem, em Nova Iorque, mas que logo se disseminaram por vários países. A participação de artistas foi fundamental para a disseminação de suas ideias, a exemplo da poesia do escritor Langston Hughes. Quanto à negritude, esse foi um movimento mais relacionado à produção literária em língua fran- cesa, a partir de intelectuais africanos que viviam nas colônias francesas, a exemplo do martinicano Aimé Cesáire e do senegalês Leopold Senghor. O teórico Kabenguele Munanga, no estudo sobre a 1818 negritude, afirma que houve duas interpretações sobre o movimento: “A primeira chama a si, em função da desco- berta do passado africano anterior à colonização, a perenidade de estruturas do pensamento e uma explicação do mundo, almejando um retorno às origens para revitalizar a realidade africana, pertur- bada pela intervenção ocidental. A segunda propõe esquemas de ação, um modo de ser negro, impondo uma negritude agressiva ao branco, resposta a si- tuações históricas, psicológicas e outras, comuns a todos os negros colonizados (MUNANGA, 1986, pp. 50-51).” Ambos os movimentos foram compreendidos enquanto atitudes utópicas e pouco efetivas quanto às realidades dos negros que viviam no continente africano e nas diásporas. Assim, a ideia de solidariedade entre esses povos, fundamental discussão, foi questionada enquanto uma união artificial, visto as diferenças entre os povos e suas realidades. A partir de estudos mais recentes, po- rém, há um reconhecimento de suas importâncias, fundamentais, inclusive, para a construção dos nacionalismos nos territórios africanos. Após essa breve explicação sobre esses dois mo- vimentos, podemos compreender melhor como funcionou a inicial construção do nacionalismo 1919 nos territórios africanos de língua portuguesa, visto que os intelectuais dos cinco países que estamos estudando formaram alguns grupos de resistência que também se basearam nesses preceitos de liberdade e união entre os povos negros do mun- do. Isto foi uma força motriz para a produção da luta anticolonial que desencadeou nas Guerras de Libertação Nacional, na década de 1950, como também para a própria construção discursiva, principalmente no campo da poesia, como você verá a seguir. Conheça um pouco mais sobre o pan-africanismo e seus principais ideólogos em: https://super.abril.com. br/historia/africa-para-os-africanos/. Ouça o podcast sobre o filósofo e psiquiatra martinicano Frantz Fanon, um dos principais nomes da luta anticolonial no século 20, e as relações entre suas ideias e o nosso contexto brasileiro de racismo estrutural. Link disponí- vel em: https://www.brasildefato.com.br/2018/05/15/ obra-de-frantz-fanon-traca-paralelo-entre-colonialismo- -e-intervencao-militar-no-rio. SAIBA MAIS https://super.abril.com.br/historia/africa-para-os-africanos/ https://super.abril.com.br/historia/africa-para-os-africanos/ https://www.brasildefato.com.br/2018/05/15/obra-de-frantz-fanon-traca-paralelo-entre-colonialismo-e-intervencao-militar-no-rio https://www.brasildefato.com.br/2018/05/15/obra-de-frantz-fanon-traca-paralelo-entre-colonialismo-e-intervencao-militar-no-rio https://www.brasildefato.com.br/2018/05/15/obra-de-frantz-fanon-traca-paralelo-entre-colonialismo-e-intervencao-militar-no-rio 20 AS LITERATURAS NOS MOVIMENTOS REVOLUCIONÁRIOS Como trouxe Mário Pinto de Andrade, as primeiras décadas do século 20 já traziam perspectivas que feriam a condição colonial imposta por Portugal, através de textos como dos irmãos Albasini, mas não explicitavam, de fato, uma visão libertária para os territórios africanos, questionando apenas as condições impostas pela metrópole. Esses discursos mudarão a partir da década de 1940, quando as políticas coloniais se tornam mais acirradas com a ditadura salazarista. Além disso, a pressão estrangeira sobre Portugal, que ainda mantinha as suas colônias, era grande, num momento em que os outros países já questionavam a manutenção das mesmas. Por fim, a mudança se fez devido aos grupos de africanos que entra- vam em contato com todas essas discussões, nos espaços de diáspora, levando a seus países essas perspectivas. A resistência dos movimentos revolucionários se iniciou nesse período. Grande parte desses grupos era composto por estudantes que viviam em Portugal, no Brasil, na França ou em outros países. Em 1944, em Lisboa e em Coimbra, foi 21 criado pelo governo português um espaço de acolhimento aos estudantes que chegavam ao país, a Casa dos Estudantes do Império (CEI). O que, inicialmente, seria apenas um lugar para a recepção e cooperação mínima a esses jovens, além de uma estratégia para a disseminação dos ideais portugueses, logo se tornou um símbolo de resistência ao próprio colonialismo, até o ano de 1965, quando foi fechada pelo governo. Grandes figuras da construção do Nacionalis- mo Africano passaram por lá, como Agostinho Neto, dirigente do grupo de resistência angolano Movimento Pela Libertação de Angola (MPLA), e primeiro Presidente do país liberto; Amílcar Cabral, guineense e um dos principais nomes da luta an- ticolonial no continente africano, e tantos outros. Alguns deles, além de estudantes e intelectuais, eram também escritores. E, dessas experiências artísticas, os materiais produzidos pela CEI foram fundamentais documentos que contribuíram para a disseminação de uma literatura com engajamento político, contrária ao colonialismo. 22 Figura 2: Capa da Revista Mensagem, abril de 1963. Fonte: casacomum.org. Publicado pela primeira vez em 1948, o boletim Mensagem foi uma das mais importantes produções discursivas da CEI. Nele, além de ensaios com críticas sobre os problemas do colonialismo, trazendo as no- vas ideias com as quais esses estudantes entravam em contato, em diálogo com os movimentos pan-a- http://casacomum.org/cc/visualizador?pasta=11124.001.008 23 fricanistas e da negritude, bem como as construções dos nacionalismos em outros territórios africanos, também houve espaço para o texto literário. Muitos foram os estudantes que publicaram textos em prosa e, sobretudo, poemas nos materiais da CEI. Alguns deles seriam importantes figuras para a construção da própria historiografia literária de seus países, como a sãotomense Alda do Espírito Santo, os angolanos Luandino Vieira e Alda Lara, os moçambicanos Noémia de Sousa e José Craveiri- nha, o guineense Amílcar Cabral, o cabo-verdiano Agnaldo Fonseca etc. Além do boletim Mensagem, outros foram os mate- riais publicados pela CEI, como a revista Meridiano (1949), com os mesmos propósitos do primeiro material. Todavia, a revista Mensagem é o material mais estudado pela crítica, por trazer uma diversidade de questões e discursos políticos que espelham o momento político de contestação e o início de luta anticolonial nos espaços de língua portuguesa. Quanto às produções nos territórios africanos de língua portuguesa, a revista de arte e letras Clari- dade foi fundamentalespaço para a disseminação dessas novas ideias, com grande parte dos artistas da época inseridos no projeto. A revista teve a sua primeira publicação em 1936, contando com novos números até o ano de 1966, e com importantes 24 nomes do cenário literário, como Baltasar Lopes da Silva, Manuel Lopes e Jorge Barbosa. Como proposta, as inovações colocadas tinham relação com a importância da alfabetização nos territórios africanos, a condição dos trabalhadores, a impor- tância da preservação da língua crioula, além da procura por uma identidade cabo-verdiana, em contraponto à posição colonial imposta. Figura 3: Capa da revista Claridade. Fonte: claridade.org. http://claridade.org/temas/claridade/ 25 Portanto, é possível afirmar que as literaturas afri- canas de língua portuguesa nasceram na imprensa, principalmente através dessas publicações cole- tivas. Fundamentais para a disseminação dessas novas ideias, além dos primeiros discursos que particularizaram as vivências africanas, esses materiais marcam o período da construção do nacionalismo nesses territórios. Acesse o site da Fundação Mário Soares para conhecer um pouco mais desses materiais. Disponível em: http:// casacomum.org/cc/arquivos. Assista à reportagem sobre a Casa dos Estudantes do Império. Disponível em: https://www.youtube.com/ watch?v=8Y555udzX40. Baixe o e-book literaturas cabo-verdianas: leituras universitárias, com diversos textos que discutem a revista Claridade. Disponível em: http://www.unemat. br/reitoria/editora/downloads/eletronico/ebook_lite- ratura_cabo_verdiana.pdf. SAIBA MAIS http://casacomum.org/cc/arquivos http://casacomum.org/cc/arquivos https://www.youtube.com/watch?v=8Y555udzX40 https://www.youtube.com/watch?v=8Y555udzX40 http://www.unemat.br/reitoria/editora/downloads/eletronico/ebook_literatura_cabo_verdiana.pdf http://www.unemat.br/reitoria/editora/downloads/eletronico/ebook_literatura_cabo_verdiana.pdf http://www.unemat.br/reitoria/editora/downloads/eletronico/ebook_literatura_cabo_verdiana.pdf 2626 A POESIA COMO LUGAR DAS UTOPIAS NACIONAIS A poesia foi o campo literário privilegiado para a propagação da consciência anticolonial e da luta pela libertação dos territórios africanos de língua portuguesa. Houve alguns teóricos e militantes, como Eduardo Mondlane, que criticaram o posicio- namento dos intelectuais que escreviam, dizendo que eles não faziam parte dos movimentos de libertação de fato, mas apenas usavam as letras como armas (MONDLANE, 1975). Certamente, naquele período os debates eram acalorados. Contudo, atualmente se considera a literatura como uma das principais “armas” de luta, já que as ideias desses escritores se disseminaram não apenas em seus territórios africanos, como tam- bém em outros espaços de diáspora, contribuindo para os movimentos nacionais. Além disso, alguns desses intelectuais fizeram parte tanto das lutas de libertação como dos primeiros agenciamentos independentes. O escritor Agostinho Neto, por exemplo, tornou-se o primeiro Presidente de Angola; a escritora Alda do Espírito Santo fez parte do pri- meiro grupo de militantes de São Tomé e Príncipe, criando, inclusive, a letra do hino nacional do país. 2727 O texto poético se protagonizava não por acaso. Como grande parte das publicações eram coletivas, devido à dificultosa publicação pelo custo, além de muitos espaços africanos não terem gráficas, a poesia ocupava centralidade e poucas eram as obras em prosa publicadas, como os romances. Inseridas, portanto, nas revistas da CEI e na revista Claridade, grande parte da produção poética dos escritores dos cinco países foi salvaguardada. É possível, por exemplo, encontrar textos que apre- sentam ao leitor uma visão de união coletiva entre os povos negros para a construção das lutas de libertação, ao longo de todo o território africano, como no poema Presença, de Agostinho Neto: O oceano separou-se de mim enquanto me fui esquecendo nos séculos e eis-me presente reunindo em mim o espaço condensando o tempo Na minha história existe o paradoxo do homem disperso Enquanto o sorriso brilhava no canto de dor e as mãos construíam mundos maravilhosos John foi linchado o irmão chicoteado nas costas nuas 2828 a mulher amordaçada e o filho continuou ignorante E do drama intenso duma vida imensa e útil resultou certeza As minhas mãos colocaram pedras nos alicerceres do mundo mereço o meu pedaço de pão 1949 (NETO, 1982, p. 68) Nesse belo poema do escritor angolano, é possível observar alguns traços discursivos que dialogam com os movimentos da negritude e do pan-africanismo. Nele, o eu-lírico descortina a tragédia do homem negro pelo mundo, resultado dos processos colo- niais de escravização. Contudo, essas dolorosas experiências trouxeram uma “certeza”, a de que, se o mundo fora construído pelos braços, suores e sangue negro, é preciso que o próprio mundo repare essa dívida histórica. Logo, o eu-lírico dei- xa de lado a história contada para se colocar na própria narrativa: “mereço o meu pedaço de pão”. 2929 Figura 4: Fotografia de Agostinho Neto. Fonte: Wikipedia. Outra novidade foi a presença da literatura de autoria feminina, escassa até aquele momento devido a diversos fatores, tais como a cultura pa- triarcal portuguesa, que impossibilitava à mulher o estudo, bem como os espaços públicos, além de algumas culturas tradicionais que também eram construídas a partir de divisões de gênero que cerceavam a mulher. 3030 Um pequeno grupo de mulheres assim se destacou, a exemplo das escritoras Alda do Espírito Santo, Alda Lara e Noémia de Sousa. É preciso compre- ender, contudo, que essas mulheres eram exceção no período, vivendo em Portugal e realizando seus estudos acadêmicos em outros países, o que não representava a grande maioria de mulheres africa- nas nesses territórios. Noémia de Sousa talvez seja a escritora que hoje tenha maior visibilidade, haja vista sua poesia dialogar com os movimentos anticoloniais não apenas dos territórios africanos, bem como com as situações dos negros nos espaços de diáspo- ra. Nesse âmbito, vamos propor a você mais um exercício reflexivo: Analise o poema Deixa passar o meu povo (SOUSA, 2016, pp. 48-50), tentando compreender o diálogo que Noémia estabelece com os espaços para além de Moçambique. Além disso, perceba os elemen- tos do texto que apresentam uma perspectiva de união coletiva entre todos os negros do globo, característica que dialoga com os movimentos pan-africanistas e da negritude. Deixa passar o meu povo Noite morna de Moçambique E seus longínquos de marimbas chegam até mim – certos e constantes – 3131 Vindos não sei eu donde. Em minha casa de madeira e zinco, Abro e deixo-me embalar... Mas as vozes da América remexem-se a alma e os nervos. E Robeson e Marian canta para mim Spirituals negros do Harlém. “Let my people go” – oh deixa passar o meu povo, Deixa passar o meu povo! – Dizem. E eu abro os olhos e já não posso mais dormir. Dentro de mim, soam-me Anderson e Paul E não são doces vozes de embalo. “Let my people go”! Nervosamente, Eu sento à mesa e escrevo... Dentro de mim, Deixa passar o meu povo, “oh let my people go...” E já não mais sou um instrumento Do meu sangue em turbilhão Com Marian me ajudando Com sua voz profunda – minha irmã! Escrevo... Em minha mesa vultos familiares vêm se debruçar. 3232 Minha mãe de mãos rudes e rosto cansado E revoltas, dores e humilhações, Tatuando do negro o virgem papel branco. E Paulo, que não conheço, Mas é do mesmo sangue e da mesma seiva amada de Moçambique, E misérias, janelas gradeadas, adeuses de magaíças*, Algodoais, o meu inesquecível companheiro branco E Zé – meu irmão – e Saúl, E tu, Amigo de doce olhar azul, Pegando na minha mão e me obrigando a escrever Com o fel que me vem da revolta. Todos se vêm debruçar sobre o meu ombro, Enquanto escrevo, noite adiante, Com Marian e Robeson vigiando pelo olho luminoso do rádio– “let my people go Oh let my people go!” E enquanto me vierem do Harlém Vozes de lamentação E meus vultos familiares me visitarem Em longas noites de insónia, Não poderei deixar de embalar-me pela música fútil Das valsas de Strauss. Escreverei, escreverei, Com Robeson e Marian gritando comigo: 3333 Let my people go, OH DEIXA PASSAR O MEU POVO! 25-01-1950 (SOUSA, 2016, p.48-51) *Magaíças: homens moçambicanos que iam para a África de Sul trabalhar nas mineradoras, deixando mulheres e filhos em território nacional. Muitos foram os que não voltaram, outros, que consegui- ram, não fizeram fortuna. Figura 5: Fotografia de Noémia de Sousa. Fonte: www.escritas.org. https://www.escritas.org/pt/bio/noemia-de-sousa 3434 Ouça o hino nacional de São Tomé e Príncipe criado pela escritora Alda do Espírito Santo. Disponível em: https:// www.youtube.com/watch?v=4s_lr1Gpxyw. Ouça a música do cantor americano Paul Robeson “Go down moses” que dialoga com o poema de Noémia de Sousa. Link disponível em: https://www.youtube.com/ watch?v=w3OjHIhLCDs. SAIBA MAIS https://www.youtube.com/watch?v=4s_lr1Gpxyw https://www.youtube.com/watch?v=4s_lr1Gpxyw https://www.youtube.com/watch?v=w3OjHIhLCDs https://www.youtube.com/watch?v=w3OjHIhLCDs 35 CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste e-book você entrou em contato com as primeiras manifestações em que se inserem as literaturas africanas de língua portuguesa, observando a importância dos movimentos de resistência para a construção da historiografia literária nesses territórios. Você também estudou o papel da imprensa como promotora desses textos e a importância de revistas e jornais para a construção do Nacionalismo Africano. E, ainda, pôde conhecer alguns dos principais escritores e poemas do período. Referências Bibliográficas & Consultadas ANDRADE, M. P. de. Origens do nacionalismo africano. Lisboa: Dom Quixote, 1997. CONFORTO, M. O escravo de papel: cotidiano da escravidão na literatura do século XIX. Caxias do Sul: Educs, 2012. [Biblioteca Virtual]. CONRAD, J. O coração das trevas� Tradução: Albino Poli Jr. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2009. CUTI, L. S. Literatura negro-brasileira� São Paulo: Selo Negro, 2010. [Biblioteca Virtual]. DAVIDSON, A. B.; ISSACMAN, A. F.; PÉLISSIER, R. Política e nacionalismo nas Áfricas central e meridional, 1919-1935. In: História Geral da África VII. África sob dominação colonial, 1880- 1935. Brasília: UNESCO, 2010, p.787-832. FABRINO, A. M. J. História da Literatura Universal. 2. ed. Curitiba: Intersaberes, 2017. 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Lisboa: Augusto Sá da Costa, 1975. NASCIMENTO, E. L. A matriz africana no mundo. São Paulo: Selo Negro, 2008. [Biblioteca Virtual]. NETO, A. Sagrada esperança� Renúncia impossível� Amanhecer. Luanda: União dos Escritores Angolanos, 1982. PETTER, M. Introdução à Linguística Africana. São Paulo: Contexto, 2015. [Biblioteca Virtual]. RIBEIRO, M. C. Uma história de regressos: Império, Guerra Colonial e Pós-Colonialismo. Porto: Edições Afrontamento, 2004. SOUZA, L. da S. L. À procura de Moçambique: José Albasini e o corpus de um tuberculoso. In: Mulemba, Rio de Janeiro, v. 11, n. 20, p.49-61, 2019. SOUZA, L. da S. L. Utopias no universo distópico: a escrita de autoria feminina em Moçambique. 2020. Tese (Doutorado em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa) – Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, Universidade de São Paulo (USP), 2020. SOYINKA, W. As artes na África durante a dominação colonial. In: História Geral da África VII. 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Introdução O imaginário “tarzanístico” e as literaturas coloniais Primeiras décadas do século 20 e os textos “protonacionalistas” Questões étnico-raciais e os movimentos de resistência As literaturas nos movimentos revolucionários A poesia como lugar das utopias nacionais Considerações finais Referências Bibliográficas & Consultadas– “let my people go Oh let my people go!” E enquanto me vierem do Harlém Vozes de lamentação E meus vultos familiares me visitarem Em longas noites de insónia, Não poderei deixar de embalar-me pela música fútil Das valsas de Strauss. Escreverei, escreverei, Com Robeson e Marian gritando comigo: 3333 Let my people go, OH DEIXA PASSAR O MEU POVO! 25-01-1950 (SOUSA, 2016, p.48-51) *Magaíças: homens moçambicanos que iam para a África de Sul trabalhar nas mineradoras, deixando mulheres e filhos em território nacional. Muitos foram os que não voltaram, outros, que consegui- ram, não fizeram fortuna. Figura 5: Fotografia de Noémia de Sousa. Fonte: www.escritas.org. https://www.escritas.org/pt/bio/noemia-de-sousa 3434 Ouça o hino nacional de São Tomé e Príncipe criado pela escritora Alda do Espírito Santo. Disponível em: https:// www.youtube.com/watch?v=4s_lr1Gpxyw. Ouça a música do cantor americano Paul Robeson “Go down moses” que dialoga com o poema de Noémia de Sousa. Link disponível em: https://www.youtube.com/ watch?v=w3OjHIhLCDs. SAIBA MAIS https://www.youtube.com/watch?v=4s_lr1Gpxyw https://www.youtube.com/watch?v=4s_lr1Gpxyw https://www.youtube.com/watch?v=w3OjHIhLCDs https://www.youtube.com/watch?v=w3OjHIhLCDs 35 CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste e-book você entrou em contato com as primeiras manifestações em que se inserem as literaturas africanas de língua portuguesa, observando a importância dos movimentos de resistência para a construção da historiografia literária nesses territórios. Você também estudou o papel da imprensa como promotora desses textos e a importância de revistas e jornais para a construção do Nacionalismo Africano. E, ainda, pôde conhecer alguns dos principais escritores e poemas do período. Referências Bibliográficas & Consultadas ANDRADE, M. P. de. Origens do nacionalismo africano. Lisboa: Dom Quixote, 1997. CONFORTO, M. O escravo de papel: cotidiano da escravidão na literatura do século XIX. Caxias do Sul: Educs, 2012. [Biblioteca Virtual]. CONRAD, J. O coração das trevas� Tradução: Albino Poli Jr. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2009. CUTI, L. S. Literatura negro-brasileira� São Paulo: Selo Negro, 2010. [Biblioteca Virtual]. DAVIDSON, A. B.; ISSACMAN, A. F.; PÉLISSIER, R. Política e nacionalismo nas Áfricas central e meridional, 1919-1935. In: História Geral da África VII. África sob dominação colonial, 1880- 1935. Brasília: UNESCO, 2010, p.787-832. FABRINO, A. M. J. História da Literatura Universal. 2. ed. Curitiba: Intersaberes, 2017. [Biblioteca Virtual]. FERREIRA, M. O discurso no percurso africano I: contribuição para uma estética africana. Amadora: Plátano Editora, 1989. HALL, G. M. Escravidão e etnias africanas nas Américas: restaurando os elos. Petrópolis: Vozes, 2017. [Biblioteca Virtual]. LARANJEIRA, P. As literaturas africanas de língua portuguesa: identidade e autonomia. Scripta, Belo Horizonte, v. 3, n. 6, pp. 237-244, 2000. LOPES-FILHO, J.; CARVALHO, A. Almanach Luso- africano para 1899. Coimbra: Almedina CLEPUL, 2011. MACEDO, T.; MAQUÊA, V. Literaturas de Língua Portuguesa: marcos e marcas – Moçambique. São Paulo: Arte & Ciência, 2007. MARTINHO, A. M. M. Mulheres escritoras na África Lusófona. In: O rosto feminino da expansão portuguesa. Actas do Congresso Internacional. Cadernos condição feminina. n. 43. Lisboa: Comissão para a Igualdade e para os Direitos das Mulheres, 1995, pp. 259-265. MONDLANE, E. Lutar por Moçambique. Tradução do inglês por: Maria da Graça Forjaz. Lisboa: Augusto Sá da Costa, 1975. NASCIMENTO, E. L. A matriz africana no mundo. São Paulo: Selo Negro, 2008. [Biblioteca Virtual]. NETO, A. Sagrada esperança� Renúncia impossível� Amanhecer. Luanda: União dos Escritores Angolanos, 1982. PETTER, M. Introdução à Linguística Africana. São Paulo: Contexto, 2015. [Biblioteca Virtual]. RIBEIRO, M. C. Uma história de regressos: Império, Guerra Colonial e Pós-Colonialismo. Porto: Edições Afrontamento, 2004. SOUZA, L. da S. L. À procura de Moçambique: José Albasini e o corpus de um tuberculoso. In: Mulemba, Rio de Janeiro, v. 11, n. 20, p.49-61, 2019. SOUZA, L. da S. L. Utopias no universo distópico: a escrita de autoria feminina em Moçambique. 2020. Tese (Doutorado em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa) – Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, Universidade de São Paulo (USP), 2020. SOYINKA, W. As artes na África durante a dominação colonial. In: História Geral da África VII. África sob dominação colonial, 1880-1935. Brasília: UNESCO, 2010, p.626-657. ZAMPARONI, V. D. A imprensa negra em Moçambique: A trajectória de O africano 1908- 1920. In: Revista África, São Paulo, n. 11, pp. 73-86, 1988. ZINANI, C. J. A. História da literatura: questões contemporâneas. Caxias do Sul: Educs, 2010. [Biblioteca Virtual]. ZINANI, C. J. A.; SANTOS, S. R. P. dos. Trajetórias de literatura e gênero: territórios reinventados. Caxias do Sul: Educs, 2016. [Biblioteca Virtual]. Introdução O imaginário “tarzanístico” e as literaturas coloniais Primeiras décadas do século 20 e os textos “protonacionalistas” Questões étnico-raciais e os movimentos de resistência As literaturas nos movimentos revolucionários A poesia como lugar das utopias nacionais Considerações finais Referências Bibliográficas & Consultadas