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Disciplina | A Literatura Infantil e os Estados-Nação www.cenes.com.br | 1 DISCIPLINA LITERATURA INFANTO-JUVENIL BRASILEIRA Literatura Infanto-Juvenil Brasileira| Sumário www.cenes.com.br | 2 Sumário Sumário ----------------------------------------------------------------------------------------------------- 2 1 A Literatura Infantil e os Estados-Nação ------------------------------------------------------ 4 2 Ciência e Razão no Contexto da Literatura Infantil ---------------------------------------- 5 3 A Questão do Cânone e a Literatura Infanto-Juvenil ------------------------------------- 12 3.1 O Literário: Do Mundo Grego às Comunidades Imaginadas ---------------------------------------- 12 4 Literatura Infanto-Juvenil e os Ludos - De Aristóteles Ao Ludos ----------------------- 15 5 A Criança Como Personagem na Literatura Infantil -------------------------------------- 19 6 Literatura Infanto-Juvenil e a Reprodutibilidade Técnica ------------------------------- 21 6.1 A Literatura Infanto-Juvenil e Seu Estigma -------------------------------------------------------------- 21 7 A Literatura Infanto-Juvenil e a Formação do Estado Brasileiro ---------------------- 25 7.1 A Formação do Estado-Nação Brasileiro ----------------------------------------------------------------- 25 8 A Literatura Infantil e os Dados Conteudísticos -------------------------------------------- 27 9 A Leitura na Escola e na Sociedade: Papel e Importância da Literatura Infanto- Juvenil 30 9.1 Lobato, o Sítio e Muitas Histórias Por Contar ----------------------------------------------------------- 30 10 Leitura Como Prática Social------------------------------------------------------------------- 35 11 A Dimensão do Imaginário na Literatura Infanto-Juvenil ---------------------------- 38 12 Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Histórias e os Versos ------------------------- 39 13 Imaginário, Fantasias e Maravilhas -------------------------------------------------------- 42 14 As Estratégias Literárias e os Diferentes Suportes da Literatura Infanto-Juvenil 49 14.1 Conhecendo Alguns Autores e Pressupostos ------------------------------------------------------------ 49 14.2 A Literatura Infanto-juvenil, a Intertextualidade e Outras Estratégias Literárias ------------- 51 15 Livros, Mídias, Rede: Os Itinerários Abertos da Literatura Infanto-Juvenil ------ 55 16 Referências ---------------------------------------------------------------------------------------- 59 Este documento possui recursos de interatividade através da navegação por marcadores. Acesse a barra de marcadores do seu leitor de PDF e navegue de maneira RÁPIDA e DESCOMPLICADA pelo conteúdo. Literatura Infanto-Juvenil Brasileira| Sumário www.cenes.com.br | 3 Literatura Infanto-Juvenil Brasileira | A Literatura Infantil e os Estados-Nação www.cenes.com.br | 4 1 A Literatura Infantil e os Estados-Nação Para o Estado-nação, a língua nacional e o limite territorial eram vistos como elementos indispensáveis, capazes de imporem uma identidade à nação (RENAN, 1997). Entretanto, de acordo com Nelly Novaes Coelho, em Panorama Histórico da Literatura Infantil /Juvenil: Quando hoje falamos nos livros consagrados como clássicos infantis, os contos- de-fada ou contos maravilhosos de Perrault, Grimm ou Andersen, ou nas fábulas de La Fontaine, praticamente esquecemos (ou ignoramos) que esses nomes não correspondem aos verdadeiros autores de tais narrativas. São eles alguns dos escritores que, desde o século XVII, interessados na literatura folclórica criada pelo povo de seus respectivos países, reuniram as estórias anônimas, que há séculos vinham sendo transmitidas, oralmente, de geração para geração, e as transcreveram (COELHO, 1991, p.12). Estado-nação: quando se pensa em Estado-Nação, estamos longe de tratar de uma experiência político-institucional simples. Muitas vezes não paramos para indagar sobre o quanto o seu surgimento alterou as relações inter-humanas por todo nosso planeta. Em primeiro lugar, deve-se romper com qualquer linha de abordagem que insira a experiência histórica do Estado-Nação numa longa duração ligada aos Estados dos monarcas absolutos europeus. Contando de hoje, a experiência histórica do Estado-Nação ainda não completou dois séculos, tal como o Brasil mal tem 150 anos. Em segundo lugar, no rigor do conceito e da cronologia, a formação do Estado antecede ao surgimento daquilo que definimos como burocracia. Inicialmente, a experiência do Estado-Nação é circunscrita à Europa e às suas projeções coloniais no século XIX, sendo antecipada culturalmente pelos debates intelectuais e políticos do contexto do Iluminismo, quando houve a gradativa transformação no sentido que se dava à noção de Razão na prática administrativa, que passou da condição de mero cálculo/ratio para aquela de força constituidora das coisas. Nesse sentido, e somente nesse sentido, o Estado da Razão do final do século XVIII, diferentemente da Razão de Estado dos séculos XVI e XVII, não seria mais um simples mecanismo resultante da soma das partes através de um pacto, como pretendera Thomas Hobbes (1588-1679) em 1651 com seu “Leviathan”, mas a “coisa pública” em que os “objetivos públicos” deixavam de ter nos corpos estamentais de privilégios os suportes ou intermediários da ação político-administrativa estatal. Portanto, o Estado da Razão de finais do século XVIII pressupôs um tipo novo de poder/potência pública que aos poucos abandonou uma atitude jurisdicionalista (centrada na acomodação das partes de privilégio) e Literatura Infanto-Juvenil Brasileira | Ciência e Razão no Contexto da Literatura Infantil www.cenes.com.br | 5 tornou-se apenas disciplina (ou seja, atitude constituidora da natureza de suas partes). Tal mudança de paradigma é historicamente indissociável do processo de burocratização – formação de um corpo de agentes da administração separados patrimonialmente dos meios administrativos – e da uniformização legislativa e fiscal do Estado. 2 Ciência e Razão no Contexto da Literatura Infantil Além dessas informações, também podemos acrescentar os textos da tradição oriental e mesmo da grega, que foram trazidos pelos estados modernos, em forma de adaptação, como As Mil e Uma Noites, que chegou ao continente europeu no século XVIII; por Galland; da mesma forma que La Fontaine, ainda no século XVII, traduz as fábulas de Esopo, com a presença de animais falantes sempre com moralidade, como, por exemplo, A galinha dos ovos de ouro, A cigarra e a formiga, A Raposa e a Cegonha, entre outras. Leia mais sobre os escritores falados acima e sua importância para a Literatura Infantil do Ocidente. Galland: Antoine Galland, escritor francês nascido no século XVII, introduziu no Ocidente inúmeras histórias de tradição oral do Oriente. Galland nasceu em uma família de camponeses na província de Somme, em 1646, e morreu em 1715. Ele era especialista em História, manuscritos antigos, línguas orientais e moedas. Galland esteve no Oriente, a convite do rei francês Luís XIV, com várias personalidades da política, das letras e da ciência. Era um colecionador de manuscritos e, em sua passagem pela Síria, descobriu os originais de “As Mil e Uma Noites”, feitos entre 1704 e 1717. O escritor levou-os para a França, traduziu e publicou os contos mais importantes dessa obra e, ainda, acrescentou alguns outros, que circulavam oralmente – como o de “Ali Babá e os Quarenta Ladrões”. Para não chocar seus contemporâneos, Galland retirou do texto as passagens picantes. O sucesso foi imediato. Essa tradução de Galland não é a única, mas é a mais famosa. Especialmente nesse livro, a história de Ali Babá foi adaptada por Luc Lefort. Homem excepcional, seu diário testemunha a paixão pelo saber e pela verdade. Durante toda sua vida, Galland foi um homem simples.do folclore, da oralidade, ao mesmo tempo em que se efetivava uma ‘apropriação’ criativa dos valores estrangeiros. No caso da obra lobatiana, o autor concentrou a sua representação do que esperava do Brasil no espaço privilegiado do sítio de Dona Benta (LAJOLO; ZILBERMAN, 1985). Ali, por meio das tantas aventuras capitaneadas pela boneca Emília, por Narizinho, Pedrinho e muitos personagens que a eles se somam, refletiam- se os valores do autor, suas críticas ao que considerava o atraso da realidade brasileira, suas perspectivas de modernização. Em termos de estrutura das narrativas de Lobato, devemos considerar marcas de mudança e de conservação. Com relação às primeiras, é reconhecida a importância positiva de o autor ter dado espaço para o protagonismo infantil – as crianças do sítio são agentes de muitas histórias, são espertas e ativas como todas as crianças, não são um exemplo acabado de certo bom comportamento esperado pela “norma” social. Entretanto, as peraltices mais acentuadas ficam a cargo da boneca Emilia – e os brinquedos tudo podem fazer, já que pertencem ao mundo da fantasia, o que também significou uma importante estratégia narrativa a renovar essa literatura. Outro aspecto relevante, apontado por Lajolo e Zilberman (1985) refere-se à rejeição de Lobato à linguagem gramatical normativa, como se pode ver, no trecho abaixo, de “O irmão de Pinóquio”: A moda de Dona Benta ler era boa. Lia ‘diferente’ dos livros. Como quase todos Literatura Infanto-Juvenil Brasileira | A Leitura na Escola e na Sociedade: Papel e Importância da Literatura Infanto- Juvenil www.cenes.com.br | 32 os livros para crianças que há no Brasil são muito sem graça, cheios de termos do tempo da onça ou só usados em Portugal, a boa velha lia traduzindo aquele português de defunto em língua do Brasil de hoje. Onde estava, por exemplo, ‘lume’, lia ‘fogo’; onde estava ‘lareira’ lia ‘varanda’. E sempre que dava com um ‘botou-o’ ou ‘comeu-o’, lia ‘botou ele’, ‘comeu ele’. – e ficava o dobro mais interessante. A crítica do narrador desse texto é clara e ainda faz, com o uso da metalinguagem, uma referência positiva sobre suas próprias estratégias de contar histórias, ou seja, avalia as demais narrativas infantis brasileiras como sendo pouco interessantes por não falarem a linguagem das crianças, e explicita essa avaliação no próprio “corpo” de uma história infantil. Entretanto, há aspectos em que se verifica certa conservação dos modelos até então vigentes. Vejamos o caso de Dona Benta: a proprietária do sítio, se, por um lado, representa a avó afetuosa e encorajadora das aventuras dos netos, ao mesmo tempo, é a narradora que detém o conhecimento acabado, isto é, de uma mulher idosa, que possui o sentido apropriado das histórias que narra. Ainda que garanta a devida adaptação dos chamados clássicos infantis, ou da própria linguagem a ser utilizada, ela é a representante da elite branca e culta de um Brasil ainda marcado por altas taxas de analfabetismo. Já Tia Nastácia, por outro lado, é a serviçal negra, herança do tempo colonial e escravocrata, que detém o saber popular, ao mesmo tempo valorizado, ao adentrar no espaço do Sítio, e subalternizado pelas frequentes críticas que recebe quando se torna também contadora de histórias. Essas e outras problematizações são desenvolvidas por Marisa Lajolo, em “A figura do negro em Monteiro Lobato”, do qual extraímos os trechos abaixo: Tia Nastácia, [...] desfruta da afetividade da matriarcal família branca para a qual trabalha e, ao mesmo tempo, apesar de suas breves, mas muito significativas incursões pela sala e varanda, encontra no espaço da cozinha emblema de seu confinamento e de sua desqualificação social. Ao longo da obra infantil lobatiana, a exceção ao carinho brincalhão que a cerca vem sempre pela boca da Emília que em momentos de discussão e desentendimento desrespeita a velha cozinheira, como sucede em algumas passagens de Histórias de Tia Nastácia [1957, p. 30]: “Pois cá comigo - disse Emília- só aturo estas histórias como estudos da ignorância e burrice do povo. Prazer não sinto nenhum. Não são engraçadas, não têm humorismo. Parecem-me muito grosseiras e até bárbaras - coisa mesmo de negra beiçuda, como Tia Nastácia. Não gosto, não gosto, e não gosto!” Literatura Infanto-Juvenil Brasileira | A Leitura na Escola e na Sociedade: Papel e Importância da Literatura Infanto- Juvenil www.cenes.com.br | 33 Entretanto, segundo Lajolo, nesse mesmo texto, os xingamentos de Emília são verossímeis e, “portanto, esteticamente necessários numa obra cuja qualidade literária tem lastro forte na verossimilhança das situações e na coloquialidade da linguagem” (idem). Assim, o acirramento das contradições sociais está presente na obra lobatiana principalmente na situação em que tia Nastácia, como contadora de histórias de tradição oral, é subalternizada em relação aos seus ouvintes, detentores da cultura escrita. Isso porque Lobato, de acordo com Lajolo, [...] ao contrário de seus pares, não se limita a reproduzir, em forma de antologia asséptica, as histórias que Tia Nastácia conta. Lobato reproduz a história encenando a situação de narração e recepção, pondo, pois, em confronto o mundo da cultura negra do qual, no caso, Tia Nastácia é legítima porta-voz e o mundo da modernidade branca, à qual dão voz tanto às crianças quanto à própria Dona Benta, também ela ouvinte de Tia Nastácia e também ela insatisfeita com as histórias que ouve. Desse modo, para Lajolo (1998), num Brasil que se queria moderno, à Tia Nastácia apenas restava o papel de “informante, de fornecedora de histórias das quais as outras personagens lobatianas se apropriavam”, elevando o seu conteúdo à relevância do folclore de acordo com estética modernista. Podemos compreender, dessa maneira, que a literatura infantojuvenil, aqui exemplificada com os textos paradigmáticos de Monteiro Lobato, como toda arte, dialoga com o tempo histórico no qual está inserida, apresentando seus avanços e contradições, suas possibilidades e limites. Isso porque os autores, enquanto criadores de mundos, neles veiculam, de forma mais ou menos consciente, seus valores, sua conformação ideológica e sua posição de classe. Entretanto, precisamos considerar o problema de “julgarmos” os valores e perspectivas de uma época com os de outra – ou seja, numa leitura apressada, seria possível, hoje, acentuar um caráter racista na obra lobatiana, mas esse não é um caminho adequado de análise. O importante é compreendermos os impasses pessoais e sociais então vividos pelo autor, por seu tempo, como explicou Lajolo no texto selecionado. Além disso, em um conto não direcionado ao público infanto-juvenil, “Negrinha”, Monteiro Lobato aponta duras críticas à hipocrisia e à crueldade de certos setores sociais em relação à desumana condição dos negros, como podemos perceber no excerto abaixo: Negrinha era uma pobre órfã de sete anos. Preta? Não; fusca, mulatinha escura, de cabelos ruços e olhos assustados. Literatura Infanto-Juvenil Brasileira | A Leitura na Escola e na Sociedade: Papel e Importância da Literatura Infanto- Juvenil www.cenes.com.br | 34 Nascera na senzala, de mãe escrava, e seus primeiros anos vivera-os pelos cantos escuros da cozinha, sobre velha esteira e trapos imundos. Sempre escondida, que a patroa não gostava de crianças. Excelente senhora, a patroa. Gorda, rica, dona do mundo, amimada dos padres, com lugar certo na igreja e camarote de luxo reservado no céu. Entaladas as banhas no trono (uma cadeira de balanço na sala de jantar), ali bordava, recebia as amigas e o vigário, dando audiências, discutindo o tempo. Uma virtuosa senhora em suma — “dama de grandes virtudes apostólicas, esteio da religião e da moral”, dizia o reverendo. Ótima, a dona Inácia. Mas não admitia choro de criança. Ai! Punha-lhe os nervos em carneviva. Viúva sem filhos, não a calejara o choro da carne de sua carne, e por isso não suportava o choro da carne alheia. Assim, mal vagia, longe, na cozinha, a triste criança, gritava logo nervosa: — Quem é a peste que está chorando aí? Quem havia de ser? A pia de lavar pratos? O pilão? O forno? A mãe da criminosa abafava a boquinha da filha e afastava-se com ela para os fundos do quintal, torcendo-lhe em caminho beliscões de desespero. — Cale a boca, diabo! No entanto, aquele choro nunca vinha sem razão. Fome quase sempre, ou frio, desses que entanguem pés e mãos e fazem-nos doer... Assim cresceu Negrinha — magra, atrofiada, com os olhos eternamente assustados. Órfã aos quatro anos, por ali ficou feito gato sem dono, levada a pontapés. Não compreendia a ideia dos grandes. Batiam-lhe sempre, por ação ou omissão. A mesma coisa, o mesmo ato, a mesma palavra provocava ora risadas, ora castigos. Aprendeu a andar, mas quase não andava. Com pretextos de que às soltas reinaria no quintal, estragando as plantas, a boa senhora punha-a na sala, ao pé de si, num desvão da porta. — Sentadinha aí, e bico, hein? Negrinha imobilizava-se no canto, horas e horas. Literatura Infanto-Juvenil Brasileira | Leitura Como Prática Social www.cenes.com.br | 35 — Braços cruzados, já, diabo! Cruzava os bracinhos a tremer, sempre com o susto nos olhos. E o tempo corria. E o relógio batia uma, duas, três, quatro, cinco horas — um cuco tão engraçadinho! Era seu divertimento vê-lo abrir a janela e cantar as horas com a bocarra vermelha, arrufando as asas. Sorria-se então por dentro, feliz um instante. [...] Ao considerarmos esses diferentes enfoques e perspectivas de um mesmo autor, importa compreender que a leitura literária permite, como talvez nenhum outro tipo de discurso (ou seja, modo de linguagem que se concretiza em ato de comunicação tanto oral quanto escrita: discurso jornalístico, político, literário, entre outros), ampliar sentidos e perspectivas críticas em relação à realidade concreta da vida. Desse modo, qualquer imposição de um determinado sentido aos textos literários se torna descabida, empobrecedora e tão criticável quanto toda forma de censura. Aprofundar os sentidos da leitura e, especialmente, da leitura literária, como fonte de emancipação humana, é o nosso próximo assunto. 10 Leitura Como Prática Social Lendo, fica-se a saber quase tudo, Eu também leio, Algo portanto saberás, Agora já não estou tão certa, Terás então de ler doutra maneira, Como, Não serve a mesma maneira para todos, cada um inventa a sua, a que lhe for própria, há quem leve a vida inteira a ler sem nunca ter conseguido ir mais além da leitura, ficam apegados à página, não percebem que as palavras são apenas pedras postas a atravessar a corrente de um rio, se estão ali é para que possamos chegar á outra margem, a outra margem é que importa, A não ser, A não ser, quê, A não ser que esses tais rios não tenham duas margens, mas muitas, que cada pessoa que lê seja, ela, a sua própria margem, e que seja sua, e apenas sua, a margem que terá de chegar. Quando pensamos em leitura, partimos de uma concepção do ato de ler como atividade individual, capacitada pela alfabetização e progressiva escolarização das crianças e jovens. Consequentemente, como afirma Zilberman, em Leitura: História e sociedade, “ler não é inato ao ser humano, e essa circunstância - a de consistir em habilidade adquirida - denuncia, de imediato, a natureza social daquela atividade” Literatura Infanto-Juvenil Brasileira | Leitura Como Prática Social www.cenes.com.br | 36 Como prática social, o desenvolvimento da habilidade leitora, sobretudo em um mundo balizado pelo código da escrita, transforma-se em condição definidora do acesso mais ou menos facilitado (quando não do efetivo entrave) às prerrogativas do exercício da cidadania. Nesse processo, o papel da escola e do/a professor/a, como mediador/a de leitura, é fundamental: Somente quando se ensina o aluno a perceber esse objeto que é o texto em toda sua beleza e complexidade, isto é, como ele está estruturado, como ele produz sentidos, quantos significados podem ser aí sucessivamente revelados, ou seja, somente quando são mostrados ao aluno modos de se envolver com esse objeto, mobilizando os seus saberes, memórias, sentimentos para assim compreendê-lo, há ensino de leitura. O papel da escola nesse processo é o de fornecer um conjunto de instrumentos e de estratégias para o aluno realizar esse trabalho de forma progressivamente autônoma (KLEIMAN, 2002, p. 28). Entretanto, para Maria da Glória Bordini, em Literatura: a formação do leitor (1993, p. 13), se todos os livros favorecem a descoberta de sentidos, são os textos literários “que o fazem de modo mais abrangente. Enquanto os textos informativos atêm-se aos fatos particulares, a literatura dá conta da totalidade do real, pois, representando o particular, logra atingir uma significação mais ampla”. Por esse mesmo ângulo de abordagem, Eliana Yunes, em “Políticas públicas de leitura – modos de fazer” (2003), afirma que o processo de desenvolvimento da leitura deve começar pela literatura, [...] pela contação de histórias, pela narrativa, pois ela excita nosso imaginário e organiza nossa narratividade. Justamente aí, na formação de nossa capacidade de dizer e de nos dizer, está o extraordinário poder da linguagem [ao] nos ensinar a pensar com autonomia e criticidade [...] além de construir nossa história pessoal, nossa intersubjetividade e identidade (2003, p. 16). Quando se realiza o ato da leitura, portanto, sobretudo, no caso da leitura literária, efetiva-se uma integração entre texto-leitor que, abrindo-se a muitos possíveis sentidos, revela inumeráveis perspectivas de compreensão do indivíduo com o mundo e consigo mesmo. Vejamos um exemplo dessa questão: vamos retomar o texto do escritor português José Saramago em epígrafe, que faz parte do romance A caverna (2000). Em uma primeira leitura, o tipo de registro escrito que o autor realiza não nos permite facilmente reconhecer a alternância das vozes que compõe o diálogo. Porém, se prestarmos bem atenção, veremos que se trata de duas personagens cujas falas se alternam após as vírgulas seguidas de letra maiúscula. Percebemos mais facilmente esse registro se fizermos a leitura do trecho em voz alta: experimente. E siga esse exemplo: Literatura Infanto-Juvenil Brasileira | Leitura Como Prática Social www.cenes.com.br | 37 _ Lendo, fica-se a saber quase tudo, _ Eu também leio, _ Algo portanto saberás, _ Agora já não estou tão certa, _ Terás então de ler doutra maneira, _ Como, _ Não serve a mesma maneira para todos, cada um inventa a sua, a que lhe for própria, há quem leve a vida inteira a ler sem nunca ter conseguido ir mais além da leitura, ficam apegados à página, não percebem que as palavras são apenas pedras postas a atravessar a corrente de um rio, se estão ali é para que possamos chegar à outra margem, a outra margem é que importa, Vemos, assim, que não é difícil realizar a leitura se aceitarmos o desafio da abertura para novos códigos, para diferentes registros que, modificando nossa percepção imediata, exigem constante amadurecimento de nossa capacidade leitora e de interpretação. Esse desafio encontramos, com força e relevância, nos textos literários. No caso da literatura infanto-juvenil, essa tem a importante função de servir como uma espécie de chave inicial para o mundo da leitura que cria outros mundos possíveis. Entretanto, não podemos esquecer que o conceito de infância sofreu mudanças com o devir histórico. Vamos, então, relembrar duas passagens anteriores, da aula II e da III, respectivamente: nos séculos XVII e XVIII, durante o processo de afirmação da vida burguesa, “ambos, mãe e filho, são considerados infantis, vistos como menores, por isso, semvoz, uma vez que infantil é aquele que não é sujeito de sua própria enunciação”. Já a partir da segunda metade do século XIX, “A voz da criança, enquanto leitor, é levada em conta e a necessidade de impor um modelo comportamental vai sendo relativizado”. Portanto, conforme muda a concepção de infância, em função das circunstâncias histórico-sociais e culturais, altera-se a compreensão da importância da literatura direcionada a crianças e jovens. Isso também significa reconhecer a literatura infanto-juvenil “mais em termos do leitor do que das intenções dos autores ou dos próprios textos” (CECCANTINI, 2004, p. 21). Literatura Infanto-Juvenil Brasileira | A Dimensão do Imaginário na Literatura Infanto-Juvenil www.cenes.com.br | 38 Se concordarmos com essa última afirmação e considerarmos que é na escola que se efetiva institucionalmente o processo de formação de leitores, devemos ponderar sobre quais são os livros a serem encaminhados à leitura escolar: precisamos levar em conta, especialmente, o público a que se destina e, dessa forma, não podemos perder de vista a importância do reconhecimento de diferentes interesses por faixa etária, contexto histórico-cultural, entre outros elementos significativos no delineamento mais aproximado do grupo de leitores. De forma consequente, é responsabilidade do(a) professor(a) estabelecer os critérios para a adesão de seus alunos às atividades propostas, como avalia Marisa Lajolo, em Do mundo da leitura para a leitura do mundo (2004): Os projetos precisam abrir-se com a crítica da inevitável participação nos rituais de apropriação da literatura infantil pela escola e vice-versa: que os professores lutem por uma formação competente, regular e supletiva, que os liberte da tutela de cursos efêmeros e do paternalismo autoritário de receitas de leituras apostas a livros; que os autores se mobilizem no sentido de fazerem frente à escolarização de seus textos; e que os demais envolvidos - nós todos - discutamos nos circuitos, bastidores e arrabaldes da literatura infantil o caráter histórico da organicidade institucional dos livros infantis, refinando categorias para a compreensão dessa historicidade que também nos envolve, cumprindo, assim, de forma mais crítica, o papel que nos cabe, e que ninguém cumprirá por nós (2004, p. 74). Portanto, a potencialidade reflexiva que a leitura literária proporciona deve ser fruto do encantamento harmônico, que ocorre no decorrer de uma leitura. Esse envolvimento só será bem-sucedido se o(a) professor(a) fizer sua parte de motivador(a), selecionando os textos adequados aos interesses dos pequenos leitores em desenvolvimento, estimulando-os para o percurso de uma crescente complexidade de leituras. 11 A Dimensão do Imaginário na Literatura Infanto-Juvenil Em 1935, Jorge Amado, na Revista Brasileira, publicou o texto “Livros Infantis” (apud LAJOLO; ZILBERMAN, 1985, p. 313), no qual afirma a dificuldade de escrever para crianças, pois elas são leitoras muito exigentes: “Para satisfazer [aos] leitores adultos é bastante relatar a vida, o quotidiano dos homens e dos ambientes ou ensinar alguma coisa. Não é preciso fugir do plano da realidade. Porém, a criança exige mais do que isto: exige imaginação”. Literatura Infanto-Juvenil Brasileira | Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Histórias e os Versos www.cenes.com.br | 39 O imaginar, o plano do sonho e da fantasia são fundamentos dessa literatura, mas, como veremos, as relações entre o ficcional e o imaginário são, na verdade, as bases da arte literária em todas as suas variadas formas de expressão, quer em prosa, quer em verso, nas narrativas ou nos poemas para crianças e adultos. Isso porque, a partir dos avanços dos estudos literários, psicanalíticos, antropológicos, entre outros, consolidou-se a ideia de que os seres humanos necessitam de uma instância de “faz de conta”, durante todos os períodos da sua vida: por isso há sempre público para novelas de TV, para o cinema, para o teatro e, claro, para a literatura. 12 Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Histórias e os Versos Com os avanços da industrialização brasileira, com as novas perspectivas de crescimento econômico e modernização, a vida cultural do país também foi sofrendo mudanças significativas e a literatura infanto-juvenil acompanha esse processo. Um número maior de autores volta-se à escrita para crianças e jovens e são variadas as abordagens por meio das quais a vida rural, até então predominante em muitas histórias, perde terreno para o cenário urbano, em que são representadas situações da emergente classe média brasileira e seus novos hábitos de consumo (LAJOLO; ZILBERMAN, 1985). Com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 1961, a formação de leitores torna-se parte fundamental do currículo escolar. Entretanto, isso não significou exatamente um avanço nas perspectivas críticas sobre a literatura dirigida aos pequenos, pois as histórias lidas e estudadas nas escolas eram, muitas vezes, pretexto para o ensino da gramática ou da linguagem, de modo amplo (BITENCOURT, 2005; COELHO, 1991). Sem contar as “famigeradas” fichas de leitura, que apresentavam, na maioria das vezes, uma perspectiva unilateral dos textos, com respostas programadas e baseadas na memorização de certos aspectos básicos das histórias (por exemplo: pedir ao aluno que reproduzisse os nomes dos protagonistas; indicar, no melhor dos casos, sugerir, uma “mensagem” do autor que deveria ser encontrada no enredo etc.). De todo modo, a importância dada à leitura nessa época foi relevante para a institucionalização da literatura infanto-juvenil: [...] surgiram a Fundação do Livro Escolar (1966), a Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (1968), o Centro de Estudos de Literatura Infantil e Juvenil (1973), as várias Associações de Professores de Língua e Literatura, além da Academia de Literatura Infantil e Juvenil, criada em São Literatura Infanto-Juvenil Brasileira | Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Histórias e os Versos www.cenes.com.br | 40 Paulo, em 1979 (LAJOLO; ZILBERMAN, 1985, p. 123). Esse processo foi resultante das mudanças registradas nesse período sobre a própria concepção de infância e a imagem da criança não mais como tábula rasa (ou seja, o vazio anterior a toda experiência) nem passiva, mas como “sofrida, inquieta, crítica, participante”. São exemplos dessa nova concepção a narrativa A prefeitura é nossa, de Giselda Nicolelis, e A bolsa amarela, de Lygia Bojunga Nunes (LAJOLO; ZILBERMAN, 1986, p. 178), entre muitas outras. Giselda Laporta Nicolelis: nasceu em São Paulo, em 27 de outubro de 1938, publicou sua primeira história em 1972 e o primeiro livro em 1974. Foi então que descobriu seu verdadeiro caminho: a literatura infantil e juvenil, crianças e adolescentes. Hoje sua obra abrange mais de cem títulos, entre livros infantis e juvenis, ficção, poesia e ensaio, publicados por dezenas de editoras, com centenas de edições, e milhões de exemplares vendidos. Exerceu também o jornalismo, em publicação dirigida ao público infantil e juvenil, e trabalhou como coordenadora editorial, em duas coleções juvenis. Sócia-fundadora do Centro de Estudos de Literatura Infantil e Juvenil, cujo acervo se encontra atualmente na Universidade de São Paulo, da União Brasileira de Escritores, do Sindicato de Escritores do Estado de São Paulo e da Clearing House for Women Authors of America. É mãe do cientista Miguel Nicolelis. A bolsa amarela: publicado em 1976, é o terceiro livro da autora Lygia Bojunga Nunes. Nele, encontramos o ludismo que sempre esteve presente nos seus livros, mas que aqui atinge um perfeito equilíbrio entre a liberdade do imaginário e as restrições do real. A Bolsa é a história de uma menina que entra em conflito consigo mesma e com a família ao reprimir três grandes vontades (que ela esconde numa bolsa amarela)– a vontade de crescer, a de ser garoto e a de se tornar escritora. A partir dessa revelação – por si mesma uma contestação à estrutura familiar tradicional em cujo meio “criança não tem vontade” – essa menina sensível e imaginativa nos conta o seu dia a dia, juntando o mundo real da família ao mundo criado por sua imaginação fértil e povoado de amigos secretos e fantasias. Ao mesmo tempo em que se sucedem episódios reais e fantásticos, uma aventura espiritual se processa, e a menina segue rumo à sua afirmação como pessoa. Traduzido em vários idiomas, o livro foi encenado em teatros do Brasil, Bélgica e Suécia. Ilustrações de Marie Louise Nery. Os textos poéticos infantis igualmente ganharam, a partir dessa época, maior densidade imaginativa, um trabalho mais elaborado com a linguagem lúdica e criativa. Muitos foram os escritores que dedicaram livros de poesia aos pequenos leitores, dos Literatura Infanto-Juvenil Brasileira | Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Histórias e os Versos www.cenes.com.br | 41 quais, apenas a título de exemplo, citamos os seguintes: “Boa Noite. A zebra quis ir passear mas a infeliz foi para a cama - teve que se deitar porque estava de pijama.” O Peru “Glu! Glu! Glu! Abram alas pro Peru! O Peru foi a passeio Pensando que era pavão Tico-tico riu-se tanto Que morreu de congestão. O Peru dança de roda Numa roda de carvão Quando acaba fica tonto De quase cair no chão.” Também a poetisa Cecília Meireles (Rio de Janeiro, 1901/Rio de Janeiro, 1964) publicou títulos infantis, dentre os quais, se destaca o livro Ou isto ou aquilo (1964). A dimensão lúdica da poesia, a dimensão do jogo e do brincar encontram-se na análise de Odila Maria Ferreira Carvalho Mansur, em seu artigo “O imaginário na literatura infantil” a partir de um poema de Cecília Meireles: De acordo com Mansur: Poesia e jogo – é o que faz Cecília que, com poucas palavras, constrói o próprio ‘jogar’. Recorre ao movimento das vogais e dá colorido, faz da repetição das consoantes possibilidades de iconizar os pulos e os vaivéns das bolas coloridas: l, R, r associadas às oclusivas p e b, mais algumas consoantes cujo valor expressivo também é significativo, como o m e o z. Faz pelo princípio anagramático relações de pertença, bem como projeta o ritmo e constrói as rimas. A rima, um recurso para agradar o Literatura Infanto-Juvenil Brasileira | Imaginário, Fantasias e Maravilhas www.cenes.com.br | 42 ouvido, para mostrar requinte, elaboração, realça os planos de significação e facilita a memorização. Brincar com fragmentos sonoros é uma das primeiras tendências do ser humano e, como sabemos, muito próprio da criança, desde o momento em que ouve e que produz os primeiros sons. Brincar com a possibilidade da palavra, nomeando e re-nomeando objetos, experimentando o sabor e desmistificando o poder da língua faz parte dos processos de apropriação da linguagem falada, para posterior uso na cultura, e sociedade. Nessas primeiras descobertas da língua, a criança usa-a de maneira desinteressada, reproduz, associa, diverte-se. É comum a criança ligar-se à poesia, também, porque a expressão poética se faz por imagens, pelo raciocínio analógico – forma do pensar característica da criança. Atraída pela pluralidade de imagens, pela ambiguidade do sentido, pela fantasia, sensibilidade, afetividade, a criança abre os canais para a imaginação criadora e para o lúdico. Como toda forma de arte, a poesia é apreensão sensível. 13 Imaginário, Fantasias e Maravilhas E tudo era possível Na minha juventude antes de ter saído da casa de meus pais disposto a viajar eu conhecia já o rebentar do mar das páginas dos livros que já tinha lido Chegava o mês de maio era tudo florido o rolo das manhãs punha-se a circular e era só ouvir o sonhador falar da vida como se ela houvesse acontecido E tudo se passava numa outra vida e havia para as coisas sempre uma saída Quando foi isso? Eu próprio não sei dizer Só sei que tinha o poder duma criança Entre as coisas e mim havia vizinhanças E tudo era possível era só querer Ruy Belo, Homem de Palavra[s] Em “O fictício e o imaginário” (1999), Wolfgang Iser afirma que, de um modo geral, todas as pessoas sentem prazer em viver o “fingimento” propiciado pela Literatura Infanto-Juvenil Brasileira | Imaginário, Fantasias e Maravilhas www.cenes.com.br | 43 literatura. Como fenômeno humano, é na literatura que se encontram duas disposições antropológicas que, nos textos literários, desvinculam-se de qualquer sentido pragmático: o fictício e o imaginário. Segundo o autor: “Quando mentimos, temos um certo propósito. O tipo de fingimento que ocorre na literatura não tem relação direta com propósitos dessa ordem” (1999, p. 67). Por meio da literatura, a invenção, o fictício, “compele o imaginário a assumir forma, ao mesmo tempo em que serve como meio para manifestação deste” (ISER, 1999, p. 70). Devemos compreender, no caso dessa afirmação de Iser, que o imaginário se identifica com a fantasia, com a capacidade humana de imaginar. Quando os textos literários nos apresentam mundos que não existem, pessoas inventadas, por mais próximas que se encontrem de referências da vida real, estamos no terreno da invenção, do “como se” – e aceitamos essa possibilidade. Por isso a literatura é tão importante: ela nos permite ultrapassar os limites da realidade imediata, o que significa apontar para as outras formas de vivência que não conhecemos. Por isso, também, ela é uma forma de conhecimento – por meio da literatura, podemos experimentar situações que nunca viveríamos, que desejaríamos viver, que nem pensamos que poderiam ser vividas. Entretanto, essa forma de conhecimento não se dá por nenhuma argumentação racional ou moralista: aliás, qualquer atitude panfletária fere a obra artística, em qualquer de suas manifestações. Nem panfletária, nem como forma de inculcação de “ensinamentos”, a literatura, destinada a crianças, jovens e adultos, constitui-se em forma artística. Nesse sentido, é importante sabermos distinguir entre educar e ensinar, como estabelece Ieda Oliveira, em seu artigo “A maioridade da literatura infantil” (apud RAMOS, 2006, p. 207): [...] educar contém o prefixo latino e, variante de ex – ‘para fora’ – seguido do verbo ducere – ‘conduzir’. Significa, portanto, ‘conduzir para fora, ‘trazer para fora’. Ao passo que ensinar é in (‘dentro’) seguido de signare (‘colocar marca’ – signum é sinal, marca. Significa, por conseguinte, calcar de fora para dentro a mente do aluno, colocando nela informações. A conclusão da autora citada é que toda a arte está voltada para a educação, para o conhecimento humano que se processa para muito além da capacidade de reter “lições”. Nesse sentido, a literatura infanto-juvenil não estaria a reboque de uma literatura mais elaborada – pelo contrário, como já frisamos de diferentes modos, o público infantil é muito exigente. A sua especificidade há muito vem sendo estudada por várias Literatura Infanto-Juvenil Brasileira | Imaginário, Fantasias e Maravilhas www.cenes.com.br | 44 áreas científicas, como a Psicologia, a Antropologia, entre outras. Em 1976, Bruno Bettelheim publicou A psicanálise dos contos de fada, no qual defende a importância dos contos de fadas “tradicionais” (os que foram diretamente vertidos do folclore popular de diferentes países europeus) para a afirmação da psique infantil. Para o autor: A cultura dominante deseja fingir, particularmente no que se refere às crianças, que o lado escuro do homem não existe, e professa a crença num aprimoramento otimista. A própria psicanálise é encarada como tendo o propósito de tornar a vida fácil. Mas não é o que seu fundador pretendeu. A psicanálise Wolfgang Iser: nasceu em 22 julho de 1926, na cidade alemã de Marienberg, estado da Saxônia, que, após a SegundaGuerra Mundial, passou a integrar a zona russa. Seu trabalho começou a atrair a atenção internacional quando se tornou membro fundador da Universidade de Constança, na fronteira da Alemanha com a Suíça. Constance era uma “reforma universitária”, com a intenção de corrigir vários limites institucionais do sistema universitário alemão. Por exemplo, em outras universidades alemãs, o estudo da literatura era realizado de acordo com as tradições nacionais ou linguísticas. Recusando-se a essa vinculação, Iser e seus colegas criaram um Departamento de Literaturwissenschaft (Ciência da Literatura), que estudou a instituição da própria literatura. A pesquisa inovadora, levou à formação da “Escola de Constance” de teoria e crítica literária. Juntamente com Hans Robert Jauss e Striedter Jurij, Iser ajudou a mudar o foco da teoria literária alemã na década de 1960: do autor para o leitor. Ao invés de perguntar o que uma obra de literatura significa, eles voltaram sua atenção para os sentidos do “trabalho” do leitor. Se Jauss delineou um modelo de como estudar a recepção histórica da obra de literatura (Rezeptionsaesthetik = Estética da Recepção), Iser focou seus estudos no ato de ler uma obra de literatura (Wirkungsaesthetik). Faleceu em Constança, em 24 de janeiro de 2007. As figuras nos contos de fadas não são ambivalentes - não são boas e más ao mesmo tempo, como somos todos na realidade. Mas dado que a polarização domina a mente da criança, também domina os contos de fadas. Uma pessoa é ou boa ou má, sem meio-termo. Um irmão é tolo, o outro esperto. Uma irmã é virtuosa e trabalhadora, as outras são vis e preguiçosas. Uma é linda, as outras são feias. Um dos pais é todo bondade, o outro é malvado. As ambiguidades devem esperar até que Literatura Infanto-Juvenil Brasileira | Imaginário, Fantasias e Maravilhas www.cenes.com.br | 45 esteja estabelecida uma personalidade relativamente firme na base das identificações positivas. Então a criança tem uma base para compreender que há grandes diferenças entre as pessoas e que, por conseguinte, uma pessoa tem que fazer opções sobre quem quer ser. Esta decisão básica sobre a qual todo o desenvolvimento ulterior da personalidade se construirá, é facilitada pelas polarizações do conto de fada (BETTELHEIM, 1980, p. 17). Entretanto, não devemos perder de vista a seguinte observação de Bettelheim (1980, p. 20): “O conto de fadas não poderia ter seu impacto psicológico sobre a criança se não fosse primeiro e antes de tudo uma obra de arte”. Por sua dimensão artística, o conto de fadas permite variadas interpretações, de acordo com os diferentes momentos e interesses de cada criança. É o caso do seguinte exemplo: O motivo central de ‘Branca de Neve’ é a garota pré-adolescente superando de todos os modos a madrasta malvada que, por ciúmes, nega- lhe uma existência independente - simbolicamente representada pela madrasta tentando destruir Branca de Neve. O significado profundo da história para uma garota de cinco anos, em especial, estava, todavia, bem longe desses problemas de pré-adolescência. Sua mãe era fria e distante, tanto que ela se sentia perdida. A história reassegurava-lhe que ela não necessitava se desesperar: Branca de Neve, traída por sua madrasta, foi salva por homens - primeiro os anões e depois o príncipe. Essa criança, também, não se desesperou por causa do abandono da mãe, mas acreditou que o resgate viria dos homens. Confiante de que ‘Branca de Neve’ mostrava-lhe o caminho, ela voltou-se para o pai, que respondeu favoravelmente; o final feliz do conto de fadas tornou possível a esta garota encontrar uma solução feliz para o impasse existencial em que a falta de interesse de sua mãe a projetara. Assim, um conto de fadas pode ter um significado importante tanto para uma criança de cinco anos como para uma de treze, embora os significados pessoais que deles derivam possam ser bem diferentes (BETTELHEIM, 1980, p. 24-25). A base de partida para essas considerações de Bruno Bettelheim está, como dito, nos estudos de Freud, para quem “os primeiros traços da imaginação criativa aparecem na infância e se expressam por meio de jogos e brincadeiras. Brincar é uma necessidade fundamental da criança”, conforme Ana Maria Machado (apud RAMOS, 2006, p. 42). E a brincadeira é encarada como coisa muito séria, pois o contrário da brincadeira, na concepção freudiana, não é ser sério, “mas ser real. Porque a criança distingue perfeitamente seu mundo de brincadeira, imaginário, faz-de-conta, por Literatura Infanto-Juvenil Brasileira | Imaginário, Fantasias e Maravilhas www.cenes.com.br | 46 oposição a tudo aquilo que constitui a realidade” (MACHADO apud RAMOS, 2006, p. 43). Em linha de continuidade a essas diretrizes psicanalíticas, os psicólogos Mario e Diana Corso publicaram, em 2006, Fadas no divã: Psicanálise nas Histórias Infantis, no qual alargaram as concepções de Bettelheim, ampliando a análise dos contos infantis tradicionais para as atuais histórias publicadas para crianças e jovens, como a saga de Harry Potter ou os quadrinhos encenados pela turma da Mônica, de Maurício de Souza. Para tanto, os autores compreendem que “contos de fadas não precisam ter fadas, mas devem conter algum elemento extraordinário, surpreendente, encantador. Maravilhoso provém do latim mirabilis, que significa admirável, espantoso, extraordinário, singular” Desse modo, mesmo nas narrativas mais atuais, o elemento maravilhoso cumpre a função de garantir que se trata de outra dimensão, de outro mundo, com possibilidades e lógicas diferentes. “Assim fazendo, os argumentos da razão e da coerência já são barrados na porta, e a festa pode começar sem suas incômodas presenças, bastando pronunciar as palavras mágicas Era uma vez... como uma senha de entrada” Bruno Bettelheim: psicólogo austríaco nascido em Viena, de grande destaque histórico nos estudos sobre crianças com problemas mentais, sobretudo autistas. Discípulo de Freud, doutorou-se pela Universidade de Viena (1938). Logo em seguida foi internado pelos nazistas nos campos de concentração de Dachau e Buchenwald, ao ser libertado (1939), emigrou para os Estados Unidos. Nomeado pesquisador assistente da Progressive Education Association da University of Chicago, ganhou fama quando publicou um artigo de muita repercussão, sobre suas observações e experiências nos campos de concentração, individual and Mass Behaviour in Extreme Situations (1943). Revalidado seu doutorado da Universidade de Viena (1944), naturalizou-se cidadão estadunidense e tornou-se professor assistente de psicologia da University of Chicago e chefe da e University’s Sonia Shankman Orthogenic School. Iniciou, então, seus estudos com crianças vítimas de distúrbios emocionais graves, principalmente as autistas. Foi um dos especialistas que mais se debruçou sobre o estudo da influência dos contos de fadas. Para ele, a grande diferença entre este tipo de contos e os modernos é que os primeiros, ao contrário dos segundos, não remetem apenas para o encantamento, tratando também de problemas existenciais, algo que permanece inalterável com a passagem do tempo. Publicou importantes livros como Love Is Not Enough (1950) e Truants from Life (1954), Children of the Dream (1967) e The Uses of Enchantment (1976). Aposentado da escola (1973) morreu em 1990, por Literatura Infanto-Juvenil Brasileira | Imaginário, Fantasias e Maravilhas www.cenes.com.br | 47 suicídio, em Silver Spring, Md., U.S., possivelmente deprimido pela morte da esposa (1984) e após sofrer um derrame cerebral (1987). Destacamos, abaixo, outros relevantes estudiosos da infância em suas diferentes abordagens: Jacques-Marie-Émile Lacan: (1901-1980) nasceu na França em Orleans. Formou-se em medicina, atuando como neurologista e psiquiatra e se considerava um psicanalista freudiano. [...] Se Freudutilizou conhecimentos da física e da biologia nos seus trabalhos, Lacan utilizou a Linguística, a lógica matemática e a topologia. Lacan mostrou que o inconsciente se estrutura como a linguagem. A verdade sempre teve a mesma estrutura de uma ficção, em que aquilo que aparece sob a forma de sonho ou devaneio é, por vezes, a verdade oculta sobre cuja repressão está a realidade social. Jean Piaget: (1896-1980) foi um renomado psicólogo e filósofo suíço, conhecido por seu trabalho pioneiro no campo da inteligência infantil. Piaget passou grande parte de sua carreira profissional interagindo com crianças e estudando seu processo de raciocínio. Seus estudos tiveram um grande impacto sobre os campos da Psicologia e Pedagogia. Em seus estudos sobre crianças, Jean Piaget descobriu que elas não raciocinam como os adultos. Esta descoberta levou Piaget a recomendar aos adultos que adotassem uma abordagem educacional diferente ao lidar com crianças. Ele modificou a teoria pedagógica tradicional que, até então, afirmava que a mente de uma criança é vazia, esperando ser preenchida por conhecimento. Na visão de Piaget, as crianças são as próprias construtoras ativas do conhecimento, constantemente criando e testando suas teorias sobre o mundo. Ele forneceu uma percepção sobre as crianças que serve como base de muitas linhas educacionais atuais. De fato, suas contribuições para as áreas da Psicologia e da Pedagogia são imensuráveis. Lev S. Vygotsky: (1896/1934) foi professor e pesquisador, contemporâneo de Piaget, e nasceu e viveu na Rússia. Dedicou-se nos campos da pedagogia e psicologia. [...] Partidário da revolução russa, sempre acreditou em uma sociedade mais justa sem conflito social e exploração. Construiu sua teoria tendo por base o desenvolvimento do indivíduo como resultado de um processo sócio-histórico, enfatizando o papel da linguagem e da aprendizagem nesse desenvolvimento, sendo essa teoria considerada histórico-social. Carl Gustav Jung: (1875/1961) nasceu em Kesswil – Suiça, e faleceu em Zurique. As ideias de Jung abriram uma nova dimensão para compreender as diversas expressões da mente humana na cultura. Assim, “encontra, por toda parte, os elementos de suas pesquisas: em mitos antigos e em contos de fada modernos; nas Literatura Infanto-Juvenil Brasileira | Imaginário, Fantasias e Maravilhas www.cenes.com.br | 48 religiões do mundo oriental e ocidental, na alquimia, na astrologia, na telepatia mental e na clarividência; nos sonhos e visões de pessoas normais; na antropologia, na história, na literatura e nas artes; e na pesquisa clínica e experimental” (HALL; LINDZEY, 1973, p. 122). No campo atual da Sociologia da Infância, segundo o professor Manuel Jacinto Sarmento, no seu artigo “Imaginário e culturas da infância” (2003), vem ganhando terreno o conceito de “culturas da infância”, compreendido como “a capacidade das crianças em construírem de forma sistematizada modos de significação do mundo e da ação intencional, que são distintos dos modos adultos [...]”. As culturas da infância transportam as marcas dos tempos, exprimem a sociedade nas suas contradições, nos seus estratos, na sua complexidade. De acordo com o professor Sarmento, essa perspectiva cultural implicou nova compreensão da infância também no campo da Antropologia. Nesse sentido, cita Clifford Geertz, reconhecido antropólogo dos Estados Unidos: Surgiu uma concepção seriamente modificada da mente infantil – não uma confusão alvoroçada e florescente, não uma fantasia voraz, girando em desamparo num desejo cego [...] mas uma mente criando sentido, buscando sentido, preservando sentido e usando sentido; numa palavra – a palavra de Nelson Goodman – construtora de mundo (2001, p. 186). Desse modo, o “imaginário infantil é um fator de conhecimento, e não uma incapacidade, uma marca de imaturidade ou um erro” (SARMENTO, 2003). Por essa perspectiva, a escola ganha contornos potencialmente criadores, concebendo-se sua constituição como lugar da cultura em que a comunidade educativa deve firmar o direito da criança “à participação cidadã no espaço coletivo” (SARMENTO, 2003). Nesse processo, a literatura cumpre papel de destaque, pois, como afirma Nelly Novaes Coelho em O conto de fadas – símbolos, mitos, arquétipos: Pela imaginação, varinha de condão capaz de revelar o homem a si mesmo, a literatura vai-lhe desvendando mundos que enriquecem o seu viver. O objetivo último da literatura é a experiência humana, o convívio com ela (2003, p. 118 – grifo da autora). De certo modo, é esse o sentido do poema abaixo, de Carlos Drummond de Andrade: A palavra mágica Literatura Infanto-Juvenil Brasileira | As Estratégias Literárias e os Diferentes Suportes da Literatura Infanto-Juvenil www.cenes.com.br | 49 Certa palavra dorme na sombra de um livro raro. Como desencantá-la? É a senha da vida a senha do mundo. Vou procurá-la. Vou procurá-la a vida inteira no mundo todo. Se tarda o encontro, se não a encontro, não desanimo, procuro sempre. Procuro sempre, e minha procura ficará sendo minha palavra. A magia da palavra está na procura do sentido da existência – uma procura que se traduz no próprio segredo da vida quando é busca solitária, mas solidária, quando é procura interior e diálogo aberto com o mundo. Caminho que tem início na infância e em que, mais felizes certamente seríamos, se a infância fosse sempre o caminho. 14 As Estratégias Literárias e os Diferentes Suportes da Literatura Infanto-Juvenil 14.1 Conhecendo Alguns Autores e Pressupostos Quando um autor desenvolve seu texto literário, ele seleciona e coloca em ação determinadas estratégias, conforme seu propósito estético. Ao contar uma história de suspense, por exemplo, ele pode optar por um narrador que participe da trama narrativa, de modo a não antecipar nenhum detalhe que colocaria em risco o clima de expectativa e mistério que quer no seu texto. De igual modo, conforme suas proposições, são selecionados os tipos de personagens, de cenário, de recorrência descritiva, se o texto será mais centrado na reflexão ou na ação e assim por diante. O mesmo acontece com os gêneros poéticos, pois o poeta igualmente seleciona determinadas métricas, ritmos, disposição gráfica e muitas outras estratégias literárias para a composição de seu poema, de acordo com sua proposta estética, com os resultados que pretende alcançar. Reconhecer as estratégias literárias colocadas em ação em um determinado texto é reconhecer a literatura como artefato de linguagem e, sobretudo, como fenômeno comunicativo. No âmbito da Teoria da Literatura, o problema de como conceber a Literatura Infanto-Juvenil Brasileira | As Estratégias Literárias e os Diferentes Suportes da Literatura Infanto-Juvenil www.cenes.com.br | 50 obra literária, enquanto criação estética, em seu envolvimento com os dilemas da linguagem e do mundo que lhe é exterior, mereceu variadas e, não poucas vezes, opostas considerações analíticas. Trata-se, na verdade, de um questionamento sempre atualizado, na medida em que a literatura, enquanto fenômeno humano, é uma produção permanente e, como tal, não prescinde do diálogo das várias correntes de análise que, em suas discordâncias ou complementaridades, vão potencializando seus incontáveis e surpreendentes sentidos. Afirmar a permanência da produção literária significa, igualmente, compreender que novas/outras obras surgem a cada dia em meio as que surgiram no passado, seja ele mais ou menos remoto, daí o diálogo estabelecer-se como fundamental. Assim, devemos reconhecer que a potencialidade de sentidos da literatura se amplia no reconhecimento do caráter dialógico de toda obra literária e de sua historicidade. De forma consequente, no diálogo que as obras estabelecem dentro de si, entre si, com seu tempo presente e passado, resgata-se a comunicação da arte com a vida.Com relação a esse último aspecto, destacamos algumas das mais relevantes proposições de dois teóricos, Mikhail Bakhtin e Hans Robert Jauss. Ainda que tenham percorrido diferentes direções analíticas, ambos partem da concepção fundamental de que a literatura é um ato especial de comunicação. Dessa forma, enquanto ação comunicativa, a obra literária se constitui como artefato estético pleno de significações que são acessadas ou por sua constituição em linguagem, de acordo com a noção de alteridade, no caso da ótica bakhtiniana, ou por seu direcionamento a um leitor, a um público concreto, influenciado pelo devir histórico, elemento privilegiado pela Estética da Recepção, na formulação de Jauss. Ao aprofundar seus estudos, Bakhtin, em Estética da criação verbal (1992, p. 294), afirma que “o diálogo, por sua clareza e simplicidade, é a forma clássica da comunicação verbal”. Como as fronteiras que definem os enunciados são sempre de mesma natureza, fazem-se presentes também nas obras de construção complexa, como as artísticas. Além das fronteiras externas, elas possuem ainda fronteiras internas: o autor manifesta sua individualidade, sua visão de mundo, nos elementos estilísticos escolhidos. Essa marca individualizante caracteriza seus traços específicos que, no processo de comunicação verbal, diferencia sua criação das outras obras com obra” (JAUSS, 1994, p. 26). Entre o horizonte de expectativa preexistente e a aparição de uma nova obra há uma distância estética, objetivada nas reações do público e nos juízos da crítica, e que determina o caráter artístico de uma obra literária. Assim, para Jauss, quanto maior for Literatura Infanto-Juvenil Brasileira | As Estratégias Literárias e os Diferentes Suportes da Literatura Infanto-Juvenil www.cenes.com.br | 51 a distância estética, maior será o valor artístico do texto literário. Por outras palavras: uma obra só se mantém atual se continua a provocar alguma atitude no leitor; daí a distância estética: a capacidade de uma criação literária continuar surpreendendo. Ao compararmos as ideias desses dois autores, em suas linhas mestras aqui esboçadas, devemos depreender, principalmente, que a literatura se instaura como um fenômeno artístico dirigido ao outro. Como ato comunicativo, a obra literária não possui, assim, um sentido fixo, imanente, mas se reatualiza, transmutando sua estruturação de sentido, bem como seu valor estético. Daí sua historicidade, pois, para Bakhtin, todo discurso implica uma atitude responsiva, um permanente olhar para trás como resposta e uma pergunta que se dirige ao seu tempo presente, ou antecipa o futuro. Para Jauss, como o texto sempre é uma resposta à pergunta de seu tempo, na reconstituição do horizonte de expectativa, dá-se uma fusão, que indica a possibilidade de a obra responder novas questões em épocas distintas. Nessas proposições, assinala-se o valor fundamental da literatura como um diálogo aberto com o mundo que lhe é exterior. Seguindo-se a ótica de Bakhtin, quando a obra literária transporta para seu universo as várias vozes sociais, processo inerente à sua própria existência como expressão, como linguagem comunicativa, ela estabelece uma ponte de ligação com a vida concreta. Não se trata de mera reprodução da realidade, senão que a realidade se projeta em seu interior com toda sua vivacidade. O passo seguinte é a possibilidade que se abre para o leitor de alargar seu horizonte, indo além de sua subjetividade no diálogo que estabelece com o outro do texto e os outros que nele dialogam. A partir das teses proferidas por Jauss, depreende-se que o texto literário, enquanto obra artística, ganha valor estético sempre que contraria as expectativas do leitor e, portanto, possibilita uma nova percepção de seu mundo. 14.2 A Literatura Infanto-juvenil, a Intertextualidade e Outras Estratégias Literárias No E-Dicionário de termos literários, encontramos a seguinte definição de intertextualidade: Como se pode notar na constituição da própria palavra, intertextualidade significa relação entre textos. [...]. No sentido estrito, a palavra texto remete a uma ordem significativa verbal. Dentro dessa ordem, a literatura vale-se amplamente do recurso intertextual, consciente ou Literatura Infanto-Juvenil Brasileira | As Estratégias Literárias e os Diferentes Suportes da Literatura Infanto-Juvenil www.cenes.com.br | 52 inconscientemente. Em razão disso, a intertextualidade faz-se operador de leitura. É importante marcar a primazia de Bakhtin em relação a esses estudos, divulgados por Julia Kristeva. É dela o clássico conceito de intertextualidade: “[...] todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto” (KRISTEVA, 1974, p. 64). A partir das concepções teóricas anteriormente apresentadas, vimos que a literatura se instaura no diálogo entre as vozes dos seus diferentes mundos ficcionais e, em qualquer gênero ou proposição estética, com os seus leitores, constituindo-se, desse modo, a relação inseparável que entrelaça autor/texto/leitor. Por essa perspectiva, os textos literários também dialogam entre si, estabelecendo-se a intertextualidade. No caso da literatura infanto-juvenil, ganha destaque a questão do leitor ao qual se dirige e que constitui, assim, sua especificidade. Por certo, o jogo intertextual que, de diferentes modos, pode aparecer nos textos, precisa ser reconhecido pelos destinatários potenciais desses textos. Muitas vezes, esse reconhecimento necessita da mediação do leitor adulto e, dessa forma, na realidade institucionalizada da leitura literária, serão os professores os principais mediadores capazes de enriquecer a leitura intertextual que as narrativas ficcionais infantojuvenis oportunizam. Nas narrativas lobatianas, que estudamos, encontram-se variadas referências intertextuais: personagens como Dom Quixote, Peter Pan, mitos greco-latinos, como Hércules, heróis dos primeiros filmes cinematográficos de cowboy, como Tom Mix, ou dos quadrinhos do início do século XX, como Gato Félix, são exemplos de alguns dos muitos diálogos que Monteiro Lobato manteve com a tradição literária e com as inovações culturais de seu tempo. Na literatura infanto-juvenil contemporânea, a intertextualidade se faz presente de muitas formas, como é o caso de Fazendo Ana Paz, de Lygia Bojunga Nunes (2004). Seguindo-se Rosa Maria Cuba Riche, em “Literatura infanto-juvenil contemporânea: texto/contexto, caminhos/descaminhos”, nesse livro de Lygia Bojunga, “o narrador retoma a Raquel, personagem de A bolsa amarela, um dos primeiros livros da autora, e reflete sobre as angústias do fazer literário” (1999, p. 6). Como podemos ler no trecho seguinte: Eu estava habituada a ver cada um dos meus personagens hesitar Literatura Infanto-Juvenil Brasileira | As Estratégias Literárias e os Diferentes Suportes da Literatura Infanto-Juvenil www.cenes.com.br | 53 pra vir à tona: quase sempre ele era isso, e depois isso, e depois isso, antes de virar aquilo; passava de gente pra bicho, de mulher pra homem, de criança pra velho, até ser o que ele ia ficar; que devagarinho que ele abria a porta dentro de mim! Daí o meu susto com a Raquel: ela nem tocou a campainha: escancarou a porta, se aboletou no meu caderno, e só foi embora quando botei o ponto final no livro. Depois dela, tudo que é personagem que eu fiz, voltou a aparecer devagar: abria uma fresta da porta, dava uma espiada, sumia, voltava, a fresta ia aumentando... E tinha dias que eu pensava: será que filho meu mais nenhum vai chegar feito a Raquel chegou? E aí, um dia aconteceu de novo: ela chegou, e sem a mais leve hesitação foi me dizendo: - Eu me chamo Ana Paz; eu tenho oito anos; eu acho o meu nome bonito (NUNES, 2004, p. 11-12). Percebemos também, nesse fragmento, um recurso literário que já comentamos em nossasaulas: a metanarrativa, pois no “corpo” da história ficcional encontra-se uma reflexão sobre o próprio fazer literário. Essa estratégia, entre outros efeitos, permite, por um lado, certa diluição das fronteiras entre o criador e a criação, o que equivale a uma passagem do real (o fazer literário efetivo) ao mundo da fantasia e vice-versa. Por outro, entretanto, leva o leitor a refletir sobre o próprio ato criativo, do qual ele passa a ser uma espécie de testemunha e até mesmo de aprendiz desse jogo de inventar histórias. Outro recurso recorrente nos atuais textos infanto-juvenis é a paródia, como explica Rosa Maria Cuba Riche no artigo já citado: Situações e valores cristalizados pela história são retomados num outro texto que inverte o sentido do texto original e com ele dialoga numa espécie de contracanto. Trata-se de um jogo intertextual, em que um texto se opõe diretamente ao original. [...] Assim, Flávio de Souza, em Que história é essa? [1995], retoma o conto de fadas tradicional e narra sob o ponto de vista dos personagens secundários. No caso de Hoz Malepon Viuh Echer ou O caçador, um dos contos do livro em que até o título é invertido, a história de Chapeuzinho Vermelho é narrada sob o ponto de vista do caçador; é ele o protagonista e não mais a menina. O humor e a ironia também estão presentes na paródia como em Uma história meio ao contrário, de Ana Maria Machado, (1977), em Procurando Firme, de Ruth Rocha, (1984) [...] e em tantos outros títulos publicados anualmente (1999, p. 5). Literatura Infanto-Juvenil Brasileira | As Estratégias Literárias e os Diferentes Suportes da Literatura Infanto-Juvenil www.cenes.com.br | 54 São inumeráveis os exemplos de obras que, ao recorrerem a essas e outras diferentes estratégias literárias (fragmentação temporal da narrativa, narradores mais ou menos participativos das aventuras e que possuem as mais variadas idades e perspectivas de mundo, etc.), enriquecem o processo artístico e reflexivo colocado em ação pelos textos. Porém, algumas dessas estratégias só conseguem o seu efeito se o leitor, especialmente no caso da intertextualidade e da paródia, possuir uma bagagem de leitura que lhe permita reconhecer o diálogo entre os textos. Sobre esse último aspecto, ampliar o leque de leitura das crianças e jovens sobre os “clássicos” torna-se, atualmente, cada vez mais desafiador. Por isso, entram em cena, muitas vezes, as adaptações, que, segundo a escritora Ana Maria Machado, não devem ser desconsideradas. Pelo contrário, em Como e por que ler os clássicos universais desde cedo (2002), a autora afirma: “O primeiro contato com um clássico, na infância e adolescência, não precisa ser com o original. O ideal mesmo é uma boa adaptação bem-feita e atraente” (p.15). Assim, dos clássicos às adaptações, com os muitos e variados recursos literários de que dispõem, as obras de literatura infanto-juvenil permitem o diálogo amplo de seus leitores com o mundo, com outros leitores e consigo mesmos. Diálogos plurais que vêm recebendo diversos meios/suportes de apresentação, como veremos a seguir. Na oitava edição da revista EntreLivros, de dezembro de 2005, Denise Góes apresenta uma reportagem intitulada “Cervantes: uma vida de tinta e sangue”, na qual encontram-se, em destaque, alguns dados relevantes sobre as adaptações do clássico D. Quixote para crianças: “A ideia de facilitar o contato dos jovens com a obra de Cervantes levou o escritor espanhol Agustín Sánchez Aguilar a fazer uma adaptação. Era uma vez Dom Quixote (Global Editora) foi traduzida pela escritora Marina Colasanti e traz ilustrações de Nivio López Virgil. Também com o objetivo de aproximar os leitores da obra-prima espanhola é que o escritor paulistano Leonardo Chianca e o ilustrador chileno Gonzalo Cárcamo lançaram Dom Quixote (DCL). O livro traz, em linguagem simples, além da adaptação, informações sobre a obra e seu autor. Duas outras obras merecem destaque. Uma delas é a adaptação feita pelo poeta Ferreira Gullar, Dom Quixote de La Mancha (Revan), lançada em 2002, na qual o autor procurou manter o espírito da obra e ao mesmo tempo criar um canal de comunicação com o leitor. A outra é uma velha conhecida que, em 2006, Literatura Infanto-Juvenil Brasileira | Livros, Mídias, Rede: Os Itinerários Abertos da Literatura Infanto-Juvenil www.cenes.com.br | 55 completará 70 anos. É a adaptação feita por Monteiro Lobato (1882-1922), Dom Quixote para crianças (Brasiliense). Segundo Marisa Lajolo, [...] a obra de Lobato segue as regras do gênero adaptação infantil, condensando e fazendo uma seleção de algumas aventuras do fidalgo manchego. Lobato não só adaptou, mas reescreveu o clássico. Por meio da leitura que Dona Benta faz da obra para os personagens do Sítio, Lobato aproxima a linguagem dos leitores e traz para o universo de Emília, Narizinho e Pedrinho o mundo fantástico de Cervantes. Há, no entanto, quem olhe com reservas iniciativas como essas. ‘Pode gerar no leitor a ideia de que já leu a obra e fazer com que deixe de aprofundar a leitura, afirma a professora Maria Augusta da Costa Vieira. ” 15 Livros, Mídias, Rede: Os Itinerários Abertos da Literatura Infanto-Juvenil A cada dia, surgem novas tecnologias que permitem um maior acesso ao mundo - informações, entretenimento, cultura, arte, tudo está na rede virtual, ou mais exatamente, no world wide web, cuja sigla www é traduzida para o português como “rede de alcance mundial”. Como não poderia deixar de ser, a literatura também entrou na rede, embora existam reflexões menos otimistas com relação à potencialidade virtual do fenômeno literário. É o que afirma Marcos Palácios (2006 apud RÖSING; RETTENMAIER, 2008, p. 37): A maior parte dos sites encontrados pelas buscas, usando-se palavras chaves similares, leva a uma constatação inevitável: há um maior número de trabalhos de crítica à produção hipertextual e suas potencialidades do que propriamente um corpus vivo e em transformação de obras literárias hipertextuais para consumo na Internet. A vasta maioria das obras de ficção hipertextual disponibilizada na Internet tem data de produção situada no período 1994/2000. De lá para cá não parece haver ocorrido muito movimento ou desenvolvimento nesse setor. Essa falta de “naturalidade” da literatura para os suportes digitais/virtuais estaria no seu aporte oral e verbal (escrito) que sempre a fundamentou. Uma exceção, contudo, seria justamente com a literatura infanto-juvenil, que estabelece uma convivência “produtiva” entre várias linguagens, sejam verbais ou não verbais. Isso é facilmente constatado quando reconhecemos o peso especial que, mesmo no livro convencional, as imagens, as ilustrações possuem. Nesse sentido, seguindo-se Tania Literatura Infanto-Juvenil Brasileira | Livros, Mídias, Rede: Os Itinerários Abertos da Literatura Infanto-Juvenil www.cenes.com.br | 56 Rôsing e Miguel Rettenmaier (2008), um exemplo é a obra Flicts (1969), de Ziraldo, na qual, segundo Regina Zilberman (2005, apud RÖSING; RETTENMAIER, 2008, p. 38): As imagens, não figurativas, não correspondem a um ornamento do texto, contemplando informações escritas, pelo contrário, as cores é que falam, competindo à expressão oral esclarecer o assunto e explicar o conflito, vivenciado pelo herói, ele mesmo um pigmento que não encontra lugar no universo dos tons pictóricos. No mesmo artigo de Rôsing e Rettenmaier (2008), também são citadas, como exemplos da convergência harmoniosa de várias linguagens no texto literário infanto- juvenil, as obras de Ângela Lago (como Cena de rua, de 2004) e de Juarez Machado (como em Domingo de manhã, de 1986). No caso de Angela Lago, a autora também possui um site, no qual, além das várias linguagens, concorrem as potencialidades de interação e interatividade nos seus textos. É interessante observar, nesse sentido, a diferençaentre intertextualidade e a hipertextualidade: [...] enquanto a intertextualidade é uma referência extratextual (que se encontra fora do texto lido), no hipertexto, muitas das correlações encontram-se dentro da própria mídia, podendo ser acessada por meio dos nexos. No site da autora (www.angela-lago.com.br) encontram-se três obras concebidas especialmente para a internet: Oh! narrativa lúdica entre um esqueleto e um cachorro atrapalhados; O ABCD de Ângela Lago, um conjunto de pequenas narrativas interativas e jogos envolvendo as letras do abecedário e a alfabetização; e Chapeuzinho! [...] A história é contada sem texto verbal escrito, apenas por meio de animações e sons. Na verdade, seria melhor falar de histórias, no plural, uma vez que a autora explora a interação de seleção (tipo de interação em que o leitor opta por caminhos, próprio do hipertexto), fornecendo múltiplos caminhos e desfechos para a história. Assim, o leitor pode optar se a Chapeuzinho segue o caminho indicado pela mãe ou vai pelo tortuoso, se avó deixa o lobo entrar na casa dela ou não, se a menina pede ajuda aos caçadores ou não etc., numa estrutura cheia de ramificações (NASCIMENTO, 2007, s/p). Se a virtualidade da realidade digital permite uma ampliação nunca vista de acesso ao conhecimento e à informação, não devemos esquecer, contudo que esse espaço virtual não está isento de assimetrias de acesso e, portanto, está atravessado por relações de poder. É o que expressa a reflexão de Maria Zilda da Cunha, no artigo “Hibridismo, múltiplas linguagens e literatura infantil e juvenil”: Cumpre lembrar, no entanto, [...] que tudo isso não está imergindo Literatura Infanto-Juvenil Brasileira | Livros, Mídias, Rede: Os Itinerários Abertos da Literatura Infanto-Juvenil www.cenes.com.br | 57 como um reino inocente, o ciberespaço vem sendo produzido pelo capitalismo contemporâneo e está impregnado das formas e paradigmas próprios do capitalismo global. E, deste ponto de vista, se há uma revolução no modo de como levamos nossas vidas, essa revolução não modifica a natureza do montante exclusivo daqueles que detém riquezas e o poder (basta pensar em empresas que concentram o tráfego da internet). Essa constatação, porém, não pode cegar para o fato de a capacidade da rede permitir espontaneidade nesse processo de comunicação, posto que não é totalmente organizado e é diversificado na finalidade e adesão. Isso possibilita uma multiplicidade de atividades interativas, antes inexistentes. Portanto, como estudiosos das linguagens, antes que o capital termine por colonizar o infinito, temos de reconhecer, diante de nós, brechas para a formação de comunidades culturalmente criativas e politicamente responsáveis. Esse encaminhamento de acesso à rede para a formação de “comunidades culturalmente criativas e politicamente responsáveis”, concordando-se com a autora citada, constitui-se em um dos maiores desafios atuais dos educadores. Além de perceber que esse acesso não está isento dos conflitos e efetivas limitações interpostas pela realidade social – a divisão entre os que têm computadores disponíveis e os que não têm, o que gera a exclusão digital - devemos considerar igualmente os limites da propagada interatividade hipertextual, que permitiria ao leitor/usuário da internet navegar por mares de informação abertos e infinitos. Na verdade, por um lado, de acordo com Capparelli (2002 apud RETTENMAIER; MATOS, 2005), o leitor “percorrerá apenas as ilhas ou praias que o programa põe à sua disposição”. Por outro, se há uma infinidade de links externos que sempre podem ser acessados em meio a uma navegação, o problema é então o risco de dispersão: “o leitor começa a ler sobre a guerra do Oriente Médio e termina com o perigo da criação de cangurus na Austrália” (CAPPARELLI, 2002 apud ) RETTENMAIER; MATOS, 2005). Esses desafios aumentam o peso do papel dos professores como mediadores de leitura, seja no suporte livro seja nos mais atuais suportes multimídia. Nesse sentido, Roger Chartier, um dos grandes estudiosos da leitura como prática social, afirma que, apesar da importância dos recursos digitais, o livro tem seu lugar garantido nas atuais práticas leitoras e salienta a importância do trabalho do professor na promoção do ato de ler: O essencial da leitura hoje passa pela tela do computador. Mas muita gente diz que o livro acabou, que ninguém mais lê, que o texto está Literatura Infanto-Juvenil Brasileira | Livros, Mídias, Rede: Os Itinerários Abertos da Literatura Infanto-Juvenil www.cenes.com.br | 58 ameaçado. Eu não concordo. O que há nas telas dos computadores? Texto - e imagens e jogos. A questão é que a leitura atualmente se dá de forma, fragmentada, num mundo em que cada texto é pensado como uma unidade separada de informação. Essa forma de leitura se reflete na relação com as obras, já que o livro impresso dá ao leitor a coerência e identidade - o que não ocorre na tela. É muito difícil manter um contato profundo com um romance de Machado de Assis no computador. [...] Na internet, não há nada que obrigue o leitor a ler uma obra inteira e a compreender em sua totalidade. Mas cabe às escolas, bibliotecas e meios de comunicação mostrar que há outras formas de leitura que não estão na tela dos computadores. O professor deve ensinar que um romance é uma obra que se lê lentamente, de forma reflexiva. E que isso é muito diferente de pular de uma informação a outra, como fazemos ao ler notícias ou um site. Por tudo isso, não percepção de totalidade, tenho dúvida de que a cultura impressa continuará existindo. Nesse fundamental processo de formação de leitores, que começa com as crianças e jovens, a literatura infanto-juvenil possui um privilegiado e desafiador espaço de atuação. Privilegiado porque, institucionalizada em um âmbito próprio, a escola pode se servir de um leque infindável de boas obras capazes de despertar a magia, a reflexão, o reconhecimento do mundo exterior e interior dos seus pequenos leitores. Desafiador, porque a leitura literária precisa ser constantemente realimentada nessa época de valores fluidos, ou como denominou o sociólogo polonês Zygmunt Bauman (2001), nessa pós-modernidade líquida em que vivemos. Hoje, os aparentemente sólidos valores da modernidade parecem não dar conta das novas realidades cambiantes de que fizemos parte: “estamos enfrentando um período de muita sensação de liberdade e, também, de muita desorientação e muita experimentação” (NICOLACI-DA-COSTA, 2005 apud RETTENMAIER; MATOS, 2005, p. 159). Recordando que há muito ainda a se conquistar para: - a afirmação de uma rede virtual efetivamente democrática; - a superação da carência de bibliotecas escolares; - a garantia de acervos literários qualitativa e quantitativamente suficientes; - a efetiva formação de leitores competentes em nosso país, chegamos à conclusão do quanto todos os envolvidos com o processo educativo, em todas as suas frentes, são responsáveis na consolidação de um horizonte mais promissor para nossa infância e juventude. Literatura Infanto-Juvenil Brasileira | Referências www.cenes.com.br | 59 16 Referências ARISTÓTELES. Arte Retórica e Arte Poética. Tradução de Antônio Pinto de Carvalho. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1964. BANDEIRA, Manuel. Poesia Completa e Prosa. Volume Único. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1977. CADEMARTORI, Ligia. O que é Literatura Infantil. São Paulo: Brasiliense, 1991. COELHO, Nelly Novaes. Literatura Infantil: teoria, análise, didática. São Paulo: Moderna, 2000. 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Integrou o chamado “Quarteto da Rue du Vieux Colombier”, composto também por Racine, Boileau e Molière. Participou da Academia Francesa com ingresso em 1683, em que sucedeu o famoso político Colbert, a quem se opunha ideologicamente. Estreou no mundo literário em 1654 com uma comédia. A publicação da primeira coletânea de fábulas data de 1668, sucedida de mais onze, lançadas até 1694. No prefácio dessa primeira coletânea, deixa bem clara suas intenções na constituição dos textos: “Sirvo- me de animais para instruir os homens”. Morreu aos 73 anos sendo considerado o pai da fábula moderna. As narrativas de La Fontaine estão permeadas de pensamentos filosóficos com forte moralidade didática e, apesar de tão antigas, mantêm-se vivas até hoje. Esopo: foi um célebre fabulista grego, provavelmente nascido no ano de 620 a. C. Segundo o historiador Heródoto, Esopo teria nascido na Trácia, região da Ásia Menor, tornando-se escravo na Grécia. Outro historiador, Heráclites do Ponto, afirma ser o roubo de um objeto sagrado a causa da morte do fabulista. Como era costume no caso de sacrilégios, Esopo teria sido atirado do alto de um rochedo. Discute-se a sua existência real, assim como acontece com Homero. Assim, há ainda alguns detalhes atribuídos à biografia de Esopo, cuja veracidade não se pode comprovar: seria aleijado, com dificuldades de fala e seria um protegido do rei Creso. Levanta-se a possibilidade de a obra esopiana ser uma compilação de fábulas ditadas pela sabedoria popular da antiga Grécia. Seja lá como for, o realmente importante é a imortalidade das fábulas a ele atribuídas. As primeiras versões escritas das fábulas de Esopo datam do séc. III d. C. Muitas traduções foram feitas para várias línguas, não existindo uma versão que se possa afirmar ser mais próxima da primordial. Destaca- se, entre os estudiosos da obra esopiana, Émile Chambry, profundo conhecedor da língua e da cultura gregas. Chambry publicou, em 1925, Aesoi -– Fabulae, em que trabalha com 358 fábulas. Características das fábulas esopianas: narrativas, geralmente, curtas, bem-humoradas e relacionadas ao cotidiano; encerram em si uma linguagem simples, pois se dirigem ao povo; contêm simples conselhos sobre lealdade, generosidade e as virtudes do trabalho; a moral é representada por um pensamento, nem sempre relacionado diretamente à narrativa; personagens são, basicamente, animais que apresentam comportamento humano Literatura Infanto-Juvenil Brasileira | Ciência e Razão no Contexto da Literatura Infantil www.cenes.com.br | 7 A célebre fábula A Raposa e as Uvas, atribuída a La Fontaine, é, na verdade, uma tradução do grego para o francês. Veja a sua reprodução abaixo: A Raposa e as Uvas Certa raposa matreira, que andava à toa e faminta, ao passar por uma quinta, viu no alto da parreira um cacho de uvas maduras, sumarentas e vermelhas. Ah, se as pudesse tragar! Mas lá naquelas alturas não podia alcançar: Então falou despeitada: - Estão verdes essas uvas. Verdes não servem pra nada! Como não cabem quatro mãos em duas luvas, Há quem prefira desdenhar a lamentar. (La Fontaine) Nesses textos, sempre em uma linguagem metafórica, os animais têm um comportamento humano, como falar, ter ressentimentos e covardia; trazem em seu final uma mensagem moral, de cunho pedagógico; também em forma figurativa, conotativa, que, quando passada para a linguagem de denotação, presta-se a uma aplicação prática. Em outras palavras, “Como não cabem quatro mãos em duas luvas, Há quem prefira desdenhar a lamentar.”, quer dizer que, diante do inevitável, por conta, talvez, da incapacidade, é mais fácil desdenhar a assumir a incompetência. Essa volta ao passado desempenhou um papel preponderante na busca de sedimentação dos valores então em voga; pois, desde o século XVII, com a troca de eixo da ordem cosmológica teocêntrica pela antropocêntrica, que a Europa sofreu sérios abalos em seu pilar ideológico medieval. Ocorreu a laicização do saber, antes restrito à visão dogmática da Igreja, tendo levado Galileu, com o seu heliocentrismo, a permanecer em prisão domiciliar por ter ousado questionar a fé corrente de que a Terra era o centro do Universo, lugar escolhido por Deus para morada do homem. A Reforma Protestante de Lutero incide na Igreja outro duro golpe, quando esse questionou as ações papais, como a venda de indulgências. A ciência engatinha, porém, através de seu método investigativo, deixa de lado Literatura Infanto-Juvenil Brasileira | Ciência e Razão no Contexto da Literatura Infantil www.cenes.com.br | 8 o saber contemplativo e volta-se para a realidade de forma experimental. Fé e razão passam a ter esferas distintas, a primeira condicionada à metafísica, à verdade revelada, e a segunda busca, através do método rigoroso de explicação dos fenômenos, a verdade científica. Segundo o professor Antônio Cândido, em Formação da Literatura Brasileira (1976): Por Ilustração, entende-se o conjunto das tendências ideológicas próprias do século XVIII, de fonte inglesa e francesa na maior parte: exaltação da natureza, divulgação apaixonada do saber, crença na melhoria da sociedade por seu intermédio, confiança na ação governamental para promover a civilização e bemestar coletivo. Sob o aspecto filosófico, fundem-se nela racionalismo e empirismo; nas letras, pendor didático e ético, visando empenhá-las na propagação das Luzes (CÂNDIDO, 1976, p.43-44). Tomando-se Ilustração como sinônimo de Iluminismo, - que na Alemanha ganhou o nome de Aufklärung - percebe-se o quanto o movimento racionalista foi importante, no sentido da busca pela explicação das demandas, sejam elas no campo da representação governamental, científica ou religiosa. Tais indagações passaram a ser embasadas no princípio da racionalidade, encerradas na expressão de Descartes: Penso, logo existo. O filósofo francês Descartes, trazendo do século anterior alguma coisa do método de Galileu, eleva-o ao sentido primeiro do filosofar, com a dúvida metódica, isto é, a partir da dúvida, da não certeza, investiga-se e chega-se à descoberta e, mais do que tudo, com a possibilidade da demonstração. Descartes, seguindo rigorosamente o caminho, o método por ele estabelecido, começa duvidando de tudo, até reconhecer como indubitável o ser do pensamento. É na descoberta da subjetividade que residem as variações do novo tema. O filósofo passa a se preocupar com o sujeito cognoscente (o sujeito que conhece) mais do que com o objeto conhecido. Outros filósofos, além de Descartes, também se dedicam ao problema do método, tais com Bacon, Locke, Hume, Spinoza (ARANHA,1993, p. 154). Tal cenário sustenta-se no triunfo da razão sobre a fé, com contribuições de filósofos franceses como D’Alembert, Diderot, Voltaire, Montesquieu e Rousseau chamados de enciclopedistas. No Discurso Preliminar da Enciclopédia, de 1751, afirma o primeiro: Descartes teve pelo menos a ousadia de ensinar os espíritos bons a sacudir o jugo da Enciclopédia, da opinião, da autoridade, em uma palavra, dos preconceitose Literatura Infanto-Juvenil Brasileira | Ciência e Razão no Contexto da Literatura Infantil www.cenes.com.br | 9 da barbárie; e por meio desta revolta,cujos frutos hoje recolhemos, prestou à filosofia um serviço talvez mais essencial do que todos os que deve aos seus ilustres sucessores [...] Embora acabasse por acreditar que podia explicar tudo, começou, pelo menos, duvidando de tudo; e as armas de que nos servimos para combatê-lo, embora contra ele,nem por isso lhe pertencem menos [...] (apud MOUSNIER et al., 1961, p.16). Logo, D’Alembert mostrou que aqueles que criticaram Descartes, se valiam da mesma estrutura mental, ou seja, da dúvida, para chegarem a tal fim. Em Do contrato social, Rousseau atribui a obediência à Lei como a verdadeira liberdade, em nome da soberania: Aquele que recusar obedecer à vontade geral a tanto será constrangido por todo um corpo, o que não significa senão que o forçarão a ser livre, pois é essa a condição que, entregando cada cidadão à pátria, o garante contra qualquer dependência pessoal (1973, p. 42). Esses pensadores foram bastante tributários dos avanços ocorridos na Inglaterra, ainda no século XVII, amparados no também filósofo Locke, levando à Revolução Gloriosa de cunho liberal. Locke foi muito influenciado pelo pensamento de Descartes, logo depois, deixa o aparato da lógica, para se voltar para o dado psicológico, no entendimento do ser humano. Entretanto, a ascensão da burguesia, no território franco, só ocorre com a chamada Revolução Francesa de 1789. Finalmente, a sociedade francesa é agitada por uma série de convulsões que se repercutem, graças à analogia das circunstâncias, por toda a Europa Ocidental. A resultante histórica das várias forças que participaram na Revolução Francesa é o primeiro triunfo decisivo da alta burguesia no terreno político, ao cabo de uma sucessão de fases, em que o dinamismo revolucionário pertenceu sucessivamente a uma fração de alta nobreza, à noblesse de robe, aos camponeses, à burguesia provinciana (Girondinos), aos pequenos burgueses (Terror de Robespierre) a outras camadas mais populares (Babeuf) (SARAIVA; LOPES, 1971, p.599). Por isso, torna-se importante destacar que o papel da família, como núcleo societário, contrário ao modelo estamental da monarquia, estabeleceu esferas de ação, de modo hierárquico, para o homem, para a mulher e para os filhos. E Pedro Paulo de Oliveira, em A Construção da Masculinidade, confirma a afirmação: A assimetria de poder na família era reforçada pela disposição da nova ordem em promover uma separação total entre homens e mulheres: pensava-se na época que quanto mais feminina a mulher e mais masculino o homem, mais saudáveis a Literatura Infanto-Juvenil Brasileira | Ciência e Razão no Contexto da Literatura Infantil www.cenes.com.br | 10 sociedade e o Estado. Nessa separação, a autonomia do gênero masculino contrastava com a submissão feminina. A subjugação da mulher ia ao encontro da constituição de uma família nuclear para a qual o lar, com os afazeres domésticos e os cuidados com as crianças, se tornaria seu espaço legítimo, enquanto aos homens ficaria destinada a esfera pública, a esfera do poder. Na sociedade burguesa as funções da mulher foram postas com clareza: mãe, educadora, controladora dos empregados (quando eles existirem), provedora de afeto e carinho (OLIVEIRA, 2004, p.49). Esse modelo comportamental vem a reboque de amplas mudanças na vida urbana europeia, de forma mais ampla, já que o campesinato, quase sempre, com o início da industrialização, migra para os grandes centros europeus, como Paris e Londres, para formar a massa do operariado. Para se ter uma ideia da projeção do crescimento populacional nessas capitais europeias, no século XVIII, a população das cidades representava 2%; enquanto, em meados do século XIX, 42 % da população europeia vivia em zona urbana (RÉMOND, 1976). A Alemanha e a Itália optam pela unificação de seus territórios devido à crescente industrialização e esse processo: Atendeu basicamente aos interesses de uma burguesia desejosa de formar um amplo mercado nacional para seus produtos. Assim ocorreu na Itália, onde a unificação partiu do Reino do Piemonte-Sardenha (Norte Industrial) para o Sul, destacando-se as figuras de Vítor Emanuel II e seu Ministro Cavour. Na Alemanha, a unificação econômica, através da União Aduaneira (Zollverein), antecedeu à unificação política. Essa foi realizada sob a direção da Prússia em três guerras sucessivas, que afastam a Dinamarca, a Áustria e a França de seu caminho (AQUINO, 1993, p. 107). Como se vê, a unificação de condados levou a estados europeus fortes, que necessitaram de parâmetros comportamentais, contrários aos do passado, coincidindo com o Romantismo literário. E a mulher ganha destaque nessa divisão de papeis já que deve assumir uma função pedagógica diante do filho, ainda que, socialmente, esteja condicionada ao marido e à prole, isto é, sua autonomia está em não ter autonomia nenhuma. É o que Rousseau, filósofo do Iluminismo francês, vai sublinhar: A razão que leva o homem ao conhecimento de seus deveres não é muito complexa; a razão que leva a mulher ao conhecimento dos seus é ainda mais simples. A obediência que deve aos filhos são consequências tão naturais e tão visíveis de sua condição, que ela não pode, sem má-fé, recusar sua aprovação ao sentimento interior que a guia, nem desconsiderar o dever Literatura Infanto-Juvenil Brasileira | Ciência e Razão no Contexto da Literatura Infantil www.cenes.com.br | 11 na inclinação que ainda não se alterou (ROUSSEAU, 2004, p.558). A construção do Estado-nação estruturou-se em bases etnocêntricas e falocêntricas e creditou ao homem, branco, burguês, europeu, a razão, o espaço público e a cultura; enquanto à mulher, coube a não-razão, o privado e a natureza. E a literatura daí advinda traz as marcas de origem da pretensão de uma unidade republicana; uma vez que o princípio hierarquizador da modernidade, calcado em pares dicotômicos do público/privado; homem/mulher; adulto/criança; centro/periferia, alto/baixo, branco/negro, não levou em conta, na pauta da racionalidade ocidental, a alteridade encerrada nos segundos desses mesmos pares. Dessa sorte, os enredos das histórias infantis tendem a dissolver os conflitos, quase sempre, pela via do fantástico, sem que haja, de fato, intervenção racional na ordem dos acontecimentos. Por exemplo, o conto Os sete corvos, dos irmãos Jakob e Wilhelm Grimm, encerra os objetivos pedagógicos esperados para um texto voltado para o público infantil. Nele, a bondade da irmãzinha fez com que os sete irmãos voltassem a ser gente novamente, depois do encantamento a que foram submetidos pelo pai, ao se tornarem corvos porque se atrasaram para trazer a água do poço para o batismo da menininha doente. A narrativa encerra os valores do catolicismo, isto é, os enfermos não batizados devem receber o sacramento antes da morte, caso contrário, se morrerem pagãos, é possível não irem para o céu. A figura do pai se faz presente com sua autoridade; bastou esse dizer: “- Tomara que eles todos virem corvos!” (2002, p. 58), e automaticamente, as crianças viraram sete animais. Por outro lado, os pais, ao revelarem à menina que os irmãos tinham virado corvos, e explicarem que: o que aconteceu tinha sido um desígnio do céu, e que o nascimento dela não tinha culpa de nada (2002, p.61). Tal atitude encerra a crença no ente sobrenatural que determina o que acontece na Terra. Assim, a fala do pai dá início ao encantamento e o encontro do anel da menina por um dos irmãos precipita o fim do encantamento: “Mas quando o sétimo corvo acabou de esvaziar seu copo, o anel caiu lá de dentro. Ele olhou bem e reconheceu que era um anel do pai e da mãe deles...” Então, “[...] a menina, que estava escondida atrás da porta, ouviu esse desejo,apareceu de repente e todos os corvos viraram gente outra vez” (2002, p.63). Literatura Infanto-Juvenil Brasileira | A Questão do Cânone e a Literatura Infanto-Juvenil www.cenes.com.br | 12 3 A Questão do Cânone e a Literatura Infanto-Juvenil 3.1 O Literário: Do Mundo Grego às Comunidades Imaginadas Ainda que a literatura infanto-juvenil tenha surgido na modernidade ocidental, vinculada aos interesses dos estados-nação europeus, faz-se necessário retomar o conceito de literatura, para a tradição greco-latina, que se confundia com a gramática (gramma), pois significava, assim como litteratus, a arte de conhecer a gramática e a poesia. Chega ao século XVIII, vinculada à noção de valor, portanto, ao ideológico, na medida em que fazia parte da formação educacional do cidadão. Ernest Curtius, em Literatura Europeia e Idade Média Latina, justifica a ligação da literatura aos valores gregos: Porque os gregos encontraram num poeta o reflexo de seu passado, de seus deuses. Não possuíam livros nem castas sacerdotais. Sua tradição era Homero. Já no séc. VI era um clássico. Desde então é a literatura disciplina escolar, e a continuidade da literatura europeia está ligada à escola (1957, p.38). Nada podia abalar essa integração entre o poético e o político, pois a poesia, sendo simulacro, constitui imitação da aparência e não da realidade, só se justificando se estivesse a serviço da educação do povo grego. Com admissão da poesia em sua ágora, que se adequasse à Lei e à razão humana, através dos hinos aos deuses e em louvor aos homens famosos. Platão, em diálogo com Glauco, afirma: Quanto a seus protetores, que, sem fazer versos, amam a poesia, permitiremos que defendam em prosa e nos mostrem que não só é agradável, mas também útil, à república e aos particulares para o governo da vida. De bom grado os ouviremos, porque com isso só temos a lucrar, se nos puderem provar que aí se junta o útil ao agradável (PLATÃO,1994, p.403). Coloca, portanto, o literário a serviço do ideológico, na medida em que, para ter existência reconhecida, necessita ser útil à sociedade grega na formação de seus concidadãos. A razão deve conter a emoção, contrária a qualquer manifestação do desejo, fazendo, entretanto, concessão ao Belo, Bom e Justo, ao colocar o artístico em comum acordo com a ética. A literatura do período romântico, por outro lado, endossará as ideias correntes burguesas, e coloca-se disponível para compor as comunidades imaginadas (ANDERSON, 2008). O romantismo reflete a ambiência então operante. O romantismo alemão, - ainda Literatura Infanto-Juvenil Brasileira | A Questão do Cânone e a Literatura Infanto-Juvenil www.cenes.com.br | 13 que a princípio a Alemanha não estivesse unificada - procura nas raízes folclóricas, na tradição das narrativas orais, uma forma de sedimentar o seu cânone, com o culto ao Volksgeist, com forte valorização do dado local. Participantes do Círculo intelectual de Heidelberg, Jacob e Wilhelm Grimm, - filólogos, grandes folcloristas, estudiosos da mitologia germânica e da história do Direito alemão – recolhem diretamente da memória popular as antigas narrativas, lendas ou sagas germânicas, conservadas por tradição oral. [...]. Buscando encontrar as origens da realidade histórica ‘nacional’, os pesquisadores encontraram a fantasia, o fantástico, o mítico... e uma grande Literatura Infantil surge para encantar crianças do mundo todo (COELHO, 1991 p.140). É, nesse cenário, que Goethe propõe o conceito de Literatura Universal (Weltliteratur), em atenção aos valores e crenças da modernidade europeia, sustentados na nação e em suas tradições, no progresso e na ciência. O conceito de comunidades imaginadas trazido por Benedict Anderson embasa toda a argumentação desse estudioso, nascido na China, filho de pais ingleses, para explicar como um modelo imposto, coletivamente, é seguido por todos como algo tido como natural e espontâneo. Dentro desse processo renovador, a criança é descoberta como um ser que precisava de cuidados específicos para sua formação humanística, cívica, espiritual, ética e intelectual. E os novos conceitos de Vida, Educação e Cultura abrem caminho para os novos e ainda tateantes procedimentos na área pedagógica e na literária. Pode-se dizer que é nesse momento que a criança entra como um valor a ser levado em consideração no processo social e no contexto humano (COELHO, 1991, p.139). Escritores como Charles Perrault, na França; os irmãos Grimm, na Alemanha; Andersen, na Dinamarca; e Callodi, na Itália; não hesitaram em voltar às raízes folclóricas medievais, na linha de ação presa ao ideal da construção dos estados- nação, com suas comunidades imaginadas. O idealismo romântico, então, acabou por criar o mito da infância, esta vista como a idade de ouro do ser humano, e, ao mesmo tempo, a adolescência (COELHO, 1991). E a volta ao passado significou a pedra de toque necessária para que a burguesia se impusesse; então, nada melhor do que a busca em tempos imemoriais de suas narrativas e de suas manifestações populares, como acontece com as produções dos primeiros escritores voltados ao público infantil: Charles Perrault, no século 17, [na França] e os irmãos Grimm, no Literatura Infanto-Juvenil Brasileira | A Questão do Cânone e a Literatura Infanto-Juvenil www.cenes.com.br | 14 início do século 19, [na Alemanha] se apropriam dos contos de fadas. Estes relatos fundam-se preferencialmente numa ação de procedência mágica, resultante da presença de um auxiliar com propriedades extraordinárias que se põe a serviço do herói: uma fada, um duende, um animal encantado (ZILBERMAN; MAGALHÃES, 1984, p.15). É o que ocorre, por exemplo, em O Gato de Botas, de Charles Perrault, que traz em seu enredo o pragmatismo esperado para a nova sociedade. Como afirma Nelly Novaes Coelho, em Literatura Infantil: teoria, análise, didática (2000): Em épocas de consolidação, quando determinado sistema se impõe, a intencionalidade pedagógica domina praticamente sem controvérsias, pois o importante para a criação no momento é transmitir valores para serem incorporados como verdades pelas novas gerações (2000, p.47). O conto O Gato de Botas reflete toda a necessidade de impor um modelo de homem empreendedor, que soubesse superar qualquer dificuldade. A narrativa gira em torno da divisão de uma herança: tendo o pai falecido, deixou para seus três filhos, os seguintes bens - um moinho, para o mais velho; um burro, para o do meio; e um gato, para o mais novo. O que fazer com um gato? Logo, o gato colocou-se disposto a ajudar o seu dono: De hoje em diante meu destino É ao meu dono servir. Hei de cobri-lo de ouro! Basta de me divertir! Com este saco de pano Vou para o bosque distante. Um cérebro que trabalha Faz fortuna num instante. (Fábulas Encantadas) A partir daí, fez de tudo para promover o rapaz e, após mil peripécias, acaba por aproximá-lo do rei e de sua filha, com quem se casa e vivem felizes para sempre. O que está subjacente a esse conto é a valorização da iniciativa, típica dos valores burgueses então em ascensão. Não interessa sua origem, ou classe social, na qual você nasceu, basta o talento, “Um cérebro que trabalha” que “Faz fortuna num instante”. É Literatura Infanto-Juvenil Brasileira | Literatura Infanto-Juvenil e os Ludos - De Aristóteles Ao Ludos www.cenes.com.br | 15 o self-made men do sistema liberal, capitalista, pois, a princípio, “todos são iguais perante a Lei”. 4 Literatura Infanto-Juvenil e os Ludos - De Aristóteles Ao Ludos Se voltarmos aos conceitos aristotélicos, podemos dimensionar a literatura infanto-juvenil além da ênfase conteudística, isto é, que destaca o conteúdo inserido na obra, na linha da tradição platônica. Aristóteles, discípulo de Platão, distancia-se do mestre em suas colocações acerca do artístico. Para ele, a literaturaé verdadeira e séria, por princípio, uma vez que o poeta se ocupa do que poderia ter acontecido, segundo a verossimilhança ou a necessidade, e não com o que aconteceu, como o faz o historiador. No capítulo IX da sua Arte Poética, que nos chegou de forma incompleta, afirma: [...] a poesia [isto é, a literatura] é mais filosófica e de caráter mais elevado que a história, porque a poesia permanece no universal e a história estuda apenas o particular (ARISTÓTELES, 1964, p.278). Aristóteles, então, destaca a autonomia do artístico, na medida em que o vê como uma unidade, um todo orgânico, em transcendência com a realidade evocada. Por isso, o conceito de cópia, de mímesis, deve ser entendido semelhante a uma espécie de recriação não assujeitada aos princípios da racionalidade, uma vez que essa é capaz de criar um mundo coerente em sua universalidade, com harmonia e perfeição. A obra tem o compromisso de transmitir as regras, entretanto, plena de verossimilhança, isto é, à luz de Aristóteles (1964), aquilo que tem a aparência da verdade, “mundo do faz de conta”, no literário, de que a criança necessita para transitar, de forma, ajustada, na sociedade. Nas palavras de Nelly Novaes Coelho; aliás já citada na aula anterior: Os que são impelidos mais fortemente pelas forças da renovação exigem que a literatura seja apenas entretenimento, jogo descompromissado (pois é justamente a atividade lúdica que tem por função desarticular estruturas estáticas, já cristalizadas com o tempo) (COELHO, 2000, p.47). Assim, o lúdico, puro jogo, descola o texto infantil do pragmatismo ético-social, levando o leitor mirim à aventura espiritual, à fruição estética. E o didatismo das produções voltadas às crianças começa a ser refutado na metade do século XIX, em Literatura Infanto-Juvenil Brasileira | Literatura Infanto-Juvenil e os Ludos - De Aristóteles Ao Ludos www.cenes.com.br | 16 nome do lúdico, “em obras como Alice no país das maravilhas, de Lewis Carroll, [como As Aventuras de Pinóquio, de Carlo Collodi, A ilha do tesouro, de Robert L. Stevenson e as histórias de Mark Twain: As aventuras de Tom Sawyer e As aventuras de Huckleberry Finn” (ZILBERMAN, 1984, p.41). Lewis Carroll: nasceu em Daresbury, Cheshire, 1832, e faleceu em Guildford, Surrey, 1898. Escritor e matemático britânico. Homem de caráter tímido adota esse pseudônimo para as suas obras literárias, o seu verdadeiro nome (Charles Lutwidge Dodgson) utiliza-o para as obras científicas. De formação universitária, é professor de matemática em Oxford e estudioso da lógica matemática. Escreve diversos relatos de falsa aparência infantil, cuja matéria narrativa está, ilusoriamente, próxima do absurdo. Amador entusiasta da fotografia elabora vários álbuns de retratos de meninas; e para uma delas, Alice Liddell, escreve a sua obra mais famosa, Aventuras de Alice no País das Maravilhas (1845), conto de surpreendente originalidade. Carlo Collodi: Carlo Lorenzini nasceu em Florença em 24 de novembro de 1826, numa família modesta. Completados os estudos no seminário, colaborou em numerosos jornais, escreveu romances e peças de teatro. Começou a dedicar-se à literatura para a infância em 1875; adotou, entretanto o pseudônimo de Collodi, de Pinóquio, foi inicialmente publicada em episódios no Giornale per i Bambini, surgindo em livro em 1883. Carlo Collodi morreu em Florença em 26 de outubro de 1890. Robert L. Stevenson: (13 de novembro de 1850, Edimburgo – 3 de dezembro de 1894, Apia, Samoa), foi um novelista, poeta e escritor de roteiros de viagem. Escreveu clássicos como A Ilha do Tesouro, O Médico e o Monstro e As Aventuras de David Balfour também traduzido como raptado. Nascido em Edimburgo, capital da Escócia, Stevenson era filho de um engenheiro e de uma pastora puritana. Tanto o pai como a mãe carregavam uma tradição familiar em seus ofícios e isso determinou em muitos aspectos a vida do autor. Filho de engenheiro, ele acaba entrando, em 1866, na faculdade de engenharia de Edimburgo. Lá, estuda e escreve durante 1871 e 1872 para o jornal universitário, o Edimburgh University Magazine, revelando seu gosto e talento para a literatura. No ano de 1873, após concluir a faculdade, Robert muda-se para a cidade de Londres, Inglaterra, pois sentia-se deslocado no ambiente familiar, marcado por um clima coercitivo e pela inexorável moral e religiosidade puritanas. Em sua curta estadia na cidade, passa a frequentar os salões literários para algum tempo depois, partir por uma longa viagem pela Europa continental. O ano de 1876 é importante em sua vida particular, pois nesse ano conhece uma mulher norte- americana, Fanny Ousborne, com a qual se iria casar, em 1880, em São Francisco, Estados Unidos. Volta à Inglaterra e traz consigo a esposa e um enteado, chamado http://saber.sapo.pt/wiki/Edimburgo Literatura Infanto-Juvenil Brasileira | Literatura Infanto-Juvenil e os Ludos - De Aristóteles Ao Ludos www.cenes.com.br | 17 Lloyd. No ano seguinte, é internado na cidade de Davos, Suíça, para tratar sua tuberculose, que há anos o vinha acompanhando. A carreira de engenheiro, jamais exercida, é preterida pela de escritor, que, a partir de 1882, é marcada por uma acentuada proficuidade. Conhece a notoriedade artística ao escrever, em 1886 The Strange case of Dr.Jekyll and Mr.Hyde, um de seus maiores sucessos literários. Com a morte do pai, em 1887, Stevenson retorna aos Estados Unidos, onde volta a tratar de sua tuberculose. No ano seguinte, aventura-se num veleiro em diversos arquipélagos do Pacífico-Sul, junto com a esposa e o enteado. Apaixonado pela paisagem paradisíaca se estabelece definitivamente nas Ilhas Samoa, em 1889. Morre, prematuramente, em 3 de dezembro de 1894, vítima de um ataque cardíaco. Mark Twain: Samuel Langhorn Clemens, mais conhecido como Mark Twain, foi um escritor estadunidense que nasceu na Florida, no dia 30 de novembro de 1835, e se criou às margens do rio Mississipi. Twain foi um aventureiro incansável, que encontrou em sua própria vida a inspiração necessária para sua obra literária. Aos doze anos, seu pai morreu, então, Mark largou os estudos e começou a trabalhar como aprendiz de topógrafo numa editora, onde começou a escrever seus primeiros artigos jornalísticos. Aos dezoito anos, saiu de casa para correr atrás de aventuras e fortuna. Trabalhou como tipógrafo, como aprendiz de piloto de uma embarcação movida a vapor, até que a Guerra da Secessão (1861) interrompeu sua carreira de piloto. Em seguida, partiu para o oeste, em direção às montanhas de Nevada, onde trabalhou em campos de mineração. Seu desejo de enriquecer o levou a procurar ouro, sem muitos resultados, fato que o obrigou a trabalhar como jornalista. Seu primeiro êxito literário aconteceu, em 1865, com um conto de curta duração, chamado A Célebre Rã Saltadora do Condado de Calaveras, que apareceu num periódico já assinado como Mark Twain. Como jornalista, viajou a São Francisco, onde conheceu o escritor Bret Harte, que o incentivou a prosseguir na carreira literária. Foi à Polinésia e à Europa, cujas experiências foram relatadas no livro Os inocentes no Estrangeiro (1869). Depois de se casar, em 1870, com Olivia Langdon, estabeleceu-se em Connecticut. Seis anos depois, publicou a primeira novela que lhe daria fama: As aventuras de Huckleberry Finn (1882), obra também ambientada nas margens do rio Mississipi, mas não tão autobiográfica como Tom Sawyer, sua obra prima e uma das mais destacadas da literatura estadunidense. É preciso destacar também Vida no Mississipi (1883) que, além de uma novela, é uma esplêndida evocação do Sul, não isenta de crítica, consequência do seu trabalho como piloto. Com um estilo popular e cheio de humor, Twain contrapõe estas obras ao mundo idealizado da infância, inocente e ao mesmo tempo astuta, com uma concepção desencantada do homem adulto, do homemda http://saber.sapo.pt/wiki/Samoa Literatura Infanto-Juvenil Brasileira | Literatura Infanto-Juvenil e os Ludos - De Aristóteles Ao Ludos www.cenes.com.br | 18 era industrial, da era dourada, enganado pela moralidade e pela civilização. Contudo, nas obras que se seguiram, o sentido de humor e a ternura do mundo infantil dão lugar a um pessimismo e amargura cada vez mais evidentes, expressados com ironia e sarcasmo. Uma série de desgraças pessoais, como o falecimento de sua esposa e de uma de suas filhas, bem como falta de dinheiro, escureceram seus últimos anos de vida. Depois de publicar mais de 35 livros, Mark Twain faleceu, em Redding, no dia 21 de abril de 1910. Alice no país das maravilhas narra o sonho de Alice, em que ela cresce e diminui várias vezes, transitando por mundos nunca vistos: Alice estava começando a se cansar de ficar ali sentada no barranco ao lado da irmã, sem nada para fazer. [...], porém, quando o Coelho realmente tirou um relógio do bolso do colete, olhou as horas e seguiu caminho apressado, Alice ergue-se de um pulo, ardendo de curiosidade. Ela saiu correndo atrás dele pelo campo afora, alcançando-o bem a tempo de vê-lo pular para dentro de uma grande toca embaixo da sebe (2002, p.11). • A partir daí, Alice percorre: o 2. A lagoa de lágrimas; o 3. Uma corrida política e uma história de cabo a rabo; o 4. O Coelho envia um pequeno emissário; o 5. Conselhos de um Bicho-da-Seda; o 6. Porco e pimenta; o 7. Um chá muito louco; o 8. O campo de croquê da Rainha; o 9. A história da Tartaruga de Imitação; o 10. A Quadrilha das Lagostas; o 11. Quem roubou as tortas? E, finalmente, o 12. O depoimento de Alice; quando ela acorda com a cabeça no colo da irmã: - Este foi, certamente, um sonho curioso, querida - disse a irmã. - Mas já está ficando tarde. - Assim, Alice levantou e saiu correndo. [...] A grama alta farfalhou aos seus pés quando o Coelho Branco passou correndo. Ela podia ouvir o tilintar das xícaras de chá enquanto a Lebre de Março e seus amigos compartilhavam sua interminável refeição e, a distância, os soluços da infeliz Tartaruga Literatura Infanto-Juvenil Brasileira | A Criança Como Personagem na Literatura Infantil www.cenes.com.br | 19 de Imitação. Assim ficou sentada, de olhos fechados e meio acreditando, ela mesma, no País das Maravilhas, embora soubesse que bastaria abri-los de novo, e a grama estaria farfalhando ao vento (2002, p. 90-91). Essa narrativa distancia-se da pretensão tradicional do didatismo, sem fechar-se em uma intenção calcada na lógica da causa e do efeito. Traz, através da ambiguidade, o sentido não fechado da imprevisibilidade. Como, por exemplo, na sentença lógica, em que Alice conversa com o Gatinho de Cheshire, isto é, gato fictício de sorriso largo, originário da Cheshire, região da Inglaterra: “Bem, já vi muitos gatos sem sorriso”, pensou Alice, “mas nunca um sorriso sem gato” (2002, p.51). Isto é, pode haver gatos que não sorriem, mas aquele gato, com certeza, sorri. 5 A Criança Como Personagem na Literatura Infantil Ligia Cademaroti Magalhães, em O Que é a Literatura Infantil, esclarece que o uso de personagens infantis na literatura, voltado a essa faixa etária, ocorre somente na segunda metade do século XIX, abrindo espaço para o lúdico, com o aproveitamento do universo da criança: A ligação entre o outro do narrador – o leitor – e o outro do leitor – o narrador – consiste num grande desafio de cuja superação também depende o estatuto literário do texto infantil. O entrecruzamento dessas duas vozes, juntamente a outras a que o texto pode dar espaço, não traria o caos, a dificuldade de compreensão, mas uma abertura para que muitas vozes se organizem – sufocando o discurso pedagógico persuasivo – e permitindo unidade na diversidade (CADEMARTORI, 1991, p. 24). A voz da criança, enquanto leitor, é levada em conta e a necessidade de impor um modelo comportamental vai sendo relativizado, em contraponto com a visão do adulto. Nesse raciocínio, vemos também os poemas de Cecília Meireles e Manuel Bandeira, escritores do modernismo brasileiro, na linha sucessória dos escritores acima referidos, uma vez que não se subjugam a nenhum preceito, além do que diz o próprio texto, por não estarem presos a um referente imediato. Colar de Carolina Com seu colar de coral Carolina Corre por entre as colunas da colina. Literatura Infanto-Juvenil Brasileira | A Criança Como Personagem na Literatura Infantil www.cenes.com.br | 20 O calor de Carolina colore o colo de cal, torna corada a menina. E o sol, vendo aquela cor do colar de Carolina, põe coroas de coral nas colunas da colina. (Cecília Meireles) O poema reproduzido, voltado para o público infantil, da poetisa brasileira Cecília Meireles, enquadra-se em uma concepção artística de que o texto vale por si só, não necessitando do contexto que lhe dá origem. Do mesmo, consta a possibilidade inventiva da criança diante do mundo e do trato com o código linguístico, muito próxima das brincadeiras infantis das parlendas e das travalínguas. O poema está estruturado em quatro estrofes, com números variados de versos. A primeira estrofe compõe-se de quatro versos; a segunda e a terceira estrofes, de três versos e a quarta e última estrofe, de um verso. No nível fônico, a sonoridade é obtida, em rima interna, aliterada, pela repetição indefinida do fonema consonantal /k/: “Com seu colar de coral” (1º verso da 1ª estrofe); “Carolina” (1º verso da 1ª estrofe); “Corre por entre as colunas” (1º verso da 1ª estrofe); “da colina. ” (1º verso da 1ª estrofe). “O calor de Carolina” (1º verso da 2ª estrofe); “colore o colo de cal, ” (2º verso da 2ª estrofe); “torna corada a menina. ” (3º verso da 2ª estrofe). “E o sol, vendo aquela cor” (1º verso da 3ª estrofe); “do colar de Carolina, ” (2º verso da 3ª estrofe); “põe coroas de coral” (3º verso da 3ª estrofe). “Nas colunas da colina. ” (Único verso da 4º estrofe). O poema “Debussy”, de Manuel Bandeira encanta-nos pelo trato afetivo dado ao tema de seu texto, isto é, a ternura despertada em um adulto diante dos movimentos inocentes de uma criança, que se contenta com qualquer coisa para se distrair. Vejamos: DEBUSSY Para cá, para lá... Para cá, para lá... Um novelozinho de linha... Para cá, para lá... Para cá, para lá... Literatura Infanto-Juvenil Brasileira | Literatura Infanto-Juvenil e a Reprodutibilidade Técnica www.cenes.com.br | 21 Oscila no ar pela mão de uma criança (Vem e vai...) Que delicadamente e quase a adormecer o balança - Psiu...- Para cá, para lá... Para cá e... - O novelozinho caiu. (Manuel Bandeira) Esse poema, de uma única estrofe, também se utiliza de recursos poéticos fônicos, que remetem à simplicidade e à espontaneidade dos movimentos infantis, com um novelo de linha nas mãos, “Oscila no ar pela mão de uma criança” (6º verso); “(Vem e vai...)” (7º verso); em que o verso “Para cá, para lá...” se repete por cinco vezes, e mais uma parte “Para cá e...”, ao constatar o eu poético que a criança dormiu, pois, logo em seguida “ – O novelozinho caiu.” (12º verso). O poeta, ao se valer do nome do músico Debussy, como título do poema, ao mesmo tempo em que presta uma homenagem ao grande inovador da música clássica, a ele se contrapõe, por enfatizar a simplicidade dos movimentos infantis com um novelo de linha nas mãos. Obtém, assim, uma espécie de antítese entre o simples (= criança) e o complexo (= arranjos musicais), deixando que somente a ternura se mantenha para o leitor. Dessa sorte, o poema não tem a função de ensinar nada sobre os acordes inusitados obtidos pelo artista francês, mas somente despertar o prazer estético no leitor. 6 Literatura Infanto-Juvenil e a Reprodutibilidade Técnica 6.1 A Literatura Infanto-Juvenil e Seu Estigma A literatura infanto-juvenil,já afirmamos em outra ocasião, surgiu - ainda que importantíssima para a imposição e a manutenção do status quo dos estados-nação -, sob o estigma do menos importante: o popular (por sua origem); a criança (a quem de destina); a mulher, (mãe, primeira preceptora, responsável pelo lar) e o suporte de veiculação (jornal, edições baratas, etc.). Em relação a esse último aspecto, sobretudo Literatura Infanto-Juvenil Brasileira | Literatura Infanto-Juvenil e a Reprodutibilidade Técnica www.cenes.com.br | 22 quanto à reprodução em larga escala dos textos literários, deve-se considerar a perspectiva crítica de Walter Benjamin que, no capítulo, A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, afirma: Na medida em que ela multiplica a reprodução, substitui a existência única da obra por uma existência serial. E, na medida em que essa técnica permite à reprodução vir ao encontro do espectador, em todas as situações, ela atualiza o objeto reproduzido. [...]. Seu agente mais poderoso é o cinema. Sua função social não é concebível, mesmo em seus traços mais positivos, e precisamente neles, sem seu lado destrutivo e catártico: a liquidação do valor tradicional do patrimônio da cultura (BENJAMIN, 1994, p. 169). Em contraposição à tradição estética da alta literatura, reivindicaram as correntes teóricas atuais da literatura, por seu turno, a ampliação investigativa, ao denunciarem a pretensão do literário de estar imune ao alarido das ruas, destacando, exatamente o cunho ideológico do cânone e a possibilidade da relativização das hierarquias conceituais, que pré-determinaram a alta cultura, a cultura de massa e a cultura popular, ainda que o aparato teórico dos estudos literários tenha sido aplicado aos estudos de recepção midiática, no início das investigações, atribuindo ao receptor da mensagem a função ativa de mediador do sentido. Tal perspectiva acaba por desentronizar as chamadas belas-letras, vistas abstraídas de uma contextualização maior, pois, se a representação do chamado real constitui uma produção discursiva, então, toda enunciação remete a um enunciado comprometido com determinada formação ideológica, como quer o pensamento pós-estruturalista. E a quebra do cânone advém exatamente da reprodutibilidade técnica. Walter Benjamin, nos anos quarenta do século passado, quando os seguidores da Escola de Frankfurt atribuíam à técnica algo danoso para a arte; ele, sem ser apocalíptico, vê o cinema e a fotografia como um modo de democratizar a herança cultural da humanidade, que ficou, por muitos séculos, restrita a uma ritualística para poucos. A literatura infanto-juvenil muito tem se aproveitado dos outros suportes que não livro para a sua divulgação, ao mesmo tempo, para a sua popularização, com a possibilidade de acesso a um contingente maior da população infanto-juvenil. Isso porque: “O modo pelo qual se organiza a percepção humana, o meio em que ela se dá, não é apenas condicionado naturalmente, mas também historicamente” (BENJAMIN, 1994, p. 169). Não há como negar o poder de exposição que a arte ganhou. Literatura Infanto-Juvenil Brasileira | Literatura Infanto-Juvenil e a Reprodutibilidade Técnica www.cenes.com.br | 23 Logo, a desierarquização ocorre no próprio fazer artístico, porque esse não pode ser visto desarticulado da cultura, no sentido pleno da palavra, enquanto solução de existência encontrada por seres humanos em condições específicas. Assim, a fatura estética ganha em amplitude e desvencilha-se, principalmente, a chamada erudita, da pecha do elitismo. E a questão da iconicidade já se encontra na própria ilustração dos livros infantis, ampliando, assim, o conceito de leitura e de texto, da mesma forma que as histórias-emquadrinho ganham, na linha da exposição, no Brasil, com O TicoTico, em 1905; fazendo-nos concordar com Nelly Novaes Coelho de Panorama Histórico da Literatura Infantil/Juvenil: Das Origens Indo-Europeias ao Brasil Contemporâneo: Essa valorização da imagem, no processo da aprendizagem infantil, coincide com o aparecimento dos comics ou histórias-em-quadrinho, iniciando uma nova era no campo editorial. Nos Estados Unidos, o grande cartunista (Richard Felton) Outcault cria o Yellow Kid (1895) e, mais tarde, o Buster Brown (1902). É este garoto crítico e contestador que, na versão brasileira, se transforma no ingênuo/ travesso Chiquinho – personagem principal de O Tico-Tico, o primeiro jornal infantil em quadrinhos editado no Brasil (1991, p. 217-218). No entanto, é, a partir da década de 1960, no governo de João Goulart, na esteira da Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional (Lei nº 4.024, de 20/12/1961), que se propõe a democratização do ensino, que ganham destaque as histórias-em- quadrinhos e o teatro infantil, quase sempre, importados: essa matéria estrangeira conta ainda com um mercado já “trabalhado” para consumi-la, pois seus heróis ou super-heróis são divulgados maciçamente através da televisão ou do cinema... (COELHO, 1991, p. 258). Em termos de produção, eminentemente, nacional, contamos com Ziraldo e seu Pererê e, depois Zeróis, em sua crítica aos superheróis norte-americanos. Entretanto, façanha maior fica para Maurício de Sousa Produções Ltda., responsável pela Turma da Mônica, além de outros personagens. Pererê: A Turma do Pererê foi lançada na revista O Cruzeiro, em 1959, e se tornou o marco do quadrinho nacional. Criada pelo cartunista Ziraldo, a coleção conta as travessuras de um grupo de amigos na Mata do Fundão. Pererê, um menino negro inspirado na figura folclórica do Saci, e seus amigos; o índio Tininim, o macaco Alan, a onça Galileu, o jabuti Moacir, a Boneca-de-Piche, a mãe Docelina vivenciam situações que estão no cotidiano das crianças, mas difíceis de tratar tanto na escola quanto em casa. Entre os assuntos, abordados com naturalidade por Ziraldo, estão saúde, ética, pluralidade cultural, preservação da natureza e drogas. Para o autor, a Literatura Infanto-Juvenil Brasileira | Literatura Infanto-Juvenil e a Reprodutibilidade Técnica www.cenes.com.br | 24 coleção procura ser uma nova abordagem na relação da escola com o aluno, uma extensão do aprendizado, uma inserção criança em um universo de curiosidade e emoção. Nas histórias de Ziraldo, aprendemos também com as brigas de seus personagens. Acompanhe a discussão entre Saci-Pererê e seu desafeto, o arrogante e chato duende irlandês. Os amigos fazem mil conjecturas sobre o motivo do mau- humor de nosso herói, por quem sentem imenso carinho. Daí tanta preocupação ética. Percebe-se a velada crítica do autor quanto ao desprezo dos estrangeiros, principalmente europeus, pelo Brasil em relação ao meio ambiente, considerando tudo o que já provocaram em seu próprio continente. A Turma do Pererê foi adaptada para TV, com estilo opereta e teve a direção de Guto Graça Mello, com direção geral de Augusto César Vannucci e produção de Gabriela Vannucci, veiculado pela Rede Globo em 12 de outubro de 1983. Turma da Mônica: quem nunca se divertiu com a brabeza da Mônica, as trapalhadas do Cebolinha ou o jeito caipira do Chico Bento? Os personagens fazem parte da imaginação das crianças e de tantos adultos, que acompanham a evolução da Turma da Mônica. O criador desta turma divertida e de muito mais é o desenhista Mauricio de Sousa. Além das revistas, ele está na telona com o CineGibi, um filme onde Franjinha, o garoto inventor, resolve ler gibis com os quadrinhos em movimento. Wanessa Carmargo, Luciano Huck, a dupla Pedro e Thiago e a modelo Fernanda Lima fazem participações especialíssimas. Para a alegria da garotada, o filme já está em DVD e traz, ainda, uma versão na língua de sinais, para ser entendida pelos deficientes. Recentemente, a Turma ganhou um reforço: Xaveco, filho de pais separados, que estreou nas bancas em setembro. As novidades não param. O desenhista apresentou ao entãoministro da Cultura Gilberto Gil o projeto Turma da Mônica na TV, uma série de 60 programas educativos e culturais para crianças de três a 12 anos. Mauricio de Sousa, pai de dez filhos e bisavô de Daniel, tem um carinho especial por todos os seus personagens. Agora, anuncia a chegada de mais dois: Bloguinho, menino que fala “internetês”, a linguagem da Internet, e Dorinha, uma menina cega. “Ela vai mostrar às crianças como ouvir as coisas do mundo e ensinar a se tratarem de igual para igual, independentemente de serem portadoras de alguma deficiência física”, diz Mauricio. Filho de poetas, Mauricio começou a carreira ainda jovem, desenhando cartazes e pôsteres. Além de ajudar no orçamento doméstico, ele sonhava em se tornar um desenhista profissional. O primeiro sucesso foram as tiras em quadrinhos com o cãozinho Bidu e seu dono. Depois vieram Cebolinha, até no Japão”. Retomando-se as considerações do filósofo Walter Benjamin, o poder de exposição, de que ele já falava (1994), quando analisou a obra do poeta francês Literatura Infanto-Juvenil Brasileira | A Literatura Infanto-Juvenil e a Formação do Estado Brasileiro www.cenes.com.br | 25 Baudelaire, ainda no século XIX, refletiu a tendência da reprodutibilidade técnica trazida pela industrialização do Ocidente. É o que nos diz Nelly Novaes Coelho em Literatura Infantil: teoria, análise, didática: Notemos que não há meio de comunicação de massa eficaz que não tenha, como fundamento, um texto, isto é, uma rede de ideias que só as palavras podem expressar. Sem palavra que a nomeie, não há imagem que se comunique com eficácia; pois, sem corresponder a uma representação mental/verbal na mente do espectador, a imagem não significa nada (COELHO, 2000, p.11). O uso dos meios de comunicação de massa, como veiculadores de literatura infantil, se intensifica, sobremodo, com o final da Segunda Guerra Mundial, em 1945, principalmente, através da adaptação de clássicos pelos estúdios do Walt Disney. No Brasil, durante os anos 50, do século passado, quando o costume-da-leitura, como fonte de lazer, já começava a desaparecer, devido à crescente voga das histórias-em- quadrinhos e da televisão, a criação lobatiana conhece uma nova face. Em 1952, Júlio Gouveia e Tatiana Belinky iniciam, na TV Tupi-São Paulo, a série de teleteatro O Sítio do Pica-Pau Amarelo, que durante anos (até 1964) encantou crianças e adultos (COELHO, 1991, p.228). O Sítio do Picapau Amarelo já ganhou várias adaptações até hoje, através de várias mídias (TV, DVD), em que o poder imagético pode, muitas vezes, suscitar a vontade de acesso à leitura dos livros de Monteiro Lobato. A reprodutibilidade técnica, inegavelmente, foi capaz de fazer chegar a cultura a contingentes inimagináveis. A literatura infanto-juvenil, antes restrita a poucas crianças, hoje está acessível em vários suportes, que vão do papel às várias mídias; seja através da compra, seja através do aluguel em locadoras, seja ainda através do empréstimo em acervo de bibliotecas. 7 A Literatura Infanto-Juvenil e a Formação do Estado Brasileiro 7.1 A Formação do Estado-Nação Brasileiro A família real chega ao Brasil, em 1808, trazendo, em sua bagagem, gosto e Literatura Infanto-Juvenil Brasileira | A Literatura Infanto-Juvenil e a Formação do Estado Brasileiro www.cenes.com.br | 26 refinamento pertencentes aos modos cortesãos europeus. Em 1815, o Brasil é elevado a Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves e a nossa Independência política de Portugal ocorre em 1822, influenciada pelo ideário burguês da revolução de 1789, com a posterior Proclamação da República em 1889. Foi a maneira encontrada de transitar, no âmbito do poder instituído, em um quadro maior de ocidentalização, tanto na Colonização e no Império, quanto na República. Sérgio Buarque de Holanda auxilia-nos na explicação desse quadro: A presteza com que na antiga colônia chegara a confundir-se a pregação das ‘ideias novas’, e o fervor com que em muitos círculos elas foram abraçadas às vésperas da Independência, mostra de modo inequívoco a possibilidade que tinham de atender a um desejo insofrido de mudar, à generalizada certeza de que o povo, afinal, se achava amadurecido para a mudança. Mas também é claro que a ordem social expressa por elas estava longe de encontrar aqui o seu equivalente exato, mormente fora dos meios citadinos (1977, p. 77-78). Sérgio Buarque estava convicto de que dependíamos, integralmente, das ideias teóricas de fora e que as relações socioeconômicas também nos eram impostas, restando às nações colonizadas, como a nossa, a convivência com noções bipolares hierarquizadas, em que pares dicotômicos se excluem - fazendo com que o segundo elemento, que nos caracteriza, esteja sempre em desvantagem em relação ao primeiro, como metrópole e colônia, progresso e atraso, desenvolvimento e subdesenvolvimento, modernização e tradicionalismo, hegemonia e dependência, fortemente marcados por um etnocentrismo, em que não é levada em consideração, no sentido mais amplo que se lhe possa atribuir a categoria de alteridade. E essas ideias foram assimiladas por uma elite que as alinhou ao aparelhamento do novo Estado Nacional. Esses dois Brasis, apontados por ensaístas dessa época: um retrógrado, real, ligado ao autoritarismo da época colonial; e o outro legal, com aparato burguês de cidadania, não são devidos ao arremedo imitativo de nações mestiças; pouco dadas à criação constitutiva do novo, mas à condição mesma histórica de país periférico, ocupando o Sul da América, uma vez que as ideias importadas serviam para legitimar qualquer tipo de arbítrio por parte dos interesses de determinada classe. Assim, a Literatura, como manifestação cultural, vai, ao longo de seu desenvolvimento, reforçar o pensamento hegemônico. Joaquim Nabuco chega a afirmar que: O sentimento em nós é brasileiro; a imaginação é europeia. As paisagens todas do Novo Mundo, a floresta Amazônica ou os pampas argentinos não valem para mim um trecho da Via Appia, uma volta da estrada de Salerno e Amálfi, um pedaço Literatura Infanto-Juvenil Brasileira | A Literatura Infantil e os Dados Conteudísticos www.cenes.com.br | 27 do cais do Sena à sombra do velho Louvre (apud RIBEIRO, 1984, p.51). Nesse contexto, não era sem sustentação o índio europeizado de um Alencar, vivenciando a chamada teoria da conciliação, que esquece todos os excessos do nosso processo colonizador, ou o interiorano sertanejo de um Bernardo Guimarães, enaltecido pelo lado exótico, estranho ao europeu. E a literatura infantil, no Brasil, repetiu, a princípio, em grande medida, o modelo imposto pelo colonizador europeu. Essa ganhou, em nossas terras, uma espécie de “adaptação de segunda mão”, considerando-se os escritores europeus como Perrault, os irmãos Grimm e Andersen como os responsáveis pela “adaptação de primeira mão”, uma vez que empreenderam a volta ao passado medieval, no início da modernidade. Nas palavras de Regina Zilberman, em A Literatura Infantil na Escola: Herdeiras, talvez espúrias, da tradição popular europeia e sombras do legítimo Märchen coligido pelos Grimm, esses relatos acabam por perder – ou, ao menos, ver enfraquecerem – as peculiaridades que os ligavam ao meio social no qual surgiram. Se os compiladores mencionados já haviam tratado de amenizar o conteúdo original dos textos – aquele que traduzia a revolta dos segmentos sociais mais oprimidos, como os dos camponeses e artesãos urbanos, que elaboraram as narrativas primitivas – o processo se completou nas transposições que sucessivamente foram feitas. Adaptações de adaptações, as histórias começaram a falar de um mundo sem qualquer vínculo com a possível experiência do leitor; atenuadas até em seus conflitos simbólicos, converteram-se em resumos que pouco mostravam, seja a respeito da sociedade em que posteriormente se implantaram,por nada terem assimilado do novo solo (ZILBERMAN, 2003, p.156). 8 A Literatura Infantil e os Dados Conteudísticos Desenvolve-se, no Brasil, o senso de inteligência, aliada à implementação das instituições nacionais, com seu sistema educacional, do qual não está distante a literatura voltada para o público infantil, com reforço para os dados conteudísticos. Entre esses se encontram: nacionalismo, intelectualismo, tradicionalismo cultural do ocidente, moralismo e religiosidade (COELHO, 1991) Do século XIX ao início do XX, antes de Monteiro Lobato, foram publicadas as seguintes obras voltadas à leitura do público infantil: O Livro do Povo (1861), de Antônio Marques Rodrigues; O Método de Abílio (1868), de Abílio César Borges; O Amiguinho Nhonhô (1882), de Meneses Vieira; Série Instrutiva (1882), de Hilário Literatura Infanto-Juvenil Brasileira | A Literatura Infantil e os Dados Conteudísticos www.cenes.com.br | 28 Ribeiro; Contos Infantis (1886), de Júlia Lopes de Almeida; Livros de Leitura e Série Didática (1890), de Felisberto de Carvalho; Coisas Brasileiras, (1893) de Romão Puiggari; Série Puiggari/Barreto (1895), de Romão Puiggari e Arnaldo de Oliveira Barreto; Cartilha das Mães (1895), de Arnaldo de Oliveira Barreto; Livros de Leitura (1895), de João Kopke; Antologia Nacional (1895), de Fausto Barreto e Carlos de Laet; Contos da Carochinha (1896), de Figueiredo Pimentel; Livro das Crianças (1897), de Zalina Rolim; O Livro da Infância (1899), de Francisca Júlia; Leituras Infantis (1900), de Francisco Vianna; As Nossas Histórias (1907), de Alexina de Magalhães Pinto; Páginas Infantis (1908), de Presciliana Duarte de Almeida; Era Uma vez (1908), de Viriato Correia; Através do Brasil (1910), de Olavo Bilac e Manuel Bonfim; Biblioteca Infantil (1915), de Arnaldo de Oliveira Barreto; Saudade (1919) de Teles de Andrade. Vejamos o poema “A Pátria”, do poeta do Parnasianismo brasileiro Olavo Bilac. A Pátria Ama, com fé e orgulho, a terra em que nasceste! Criança! não verás nenhum país como este! Olha que céu! que mar! que rios! que floresta! A Natureza, aqui, perpetuamente em festa, É um seio de mãe a transbordar carinhos. Vê que vida há no chão! vê que vida há nos ninhos, Que se balançam no ar, entre os ramos inquietos! Vê que luz, que calor, que multidão de insetos! Vê que grande extensão de matas, onde impera Fecunda e luminosa, a eterna primavera! Boa terra! jamais negou a quem trabalha Literatura Infanto-Juvenil Brasileira | A Literatura Infantil e os Dados Conteudísticos www.cenes.com.br | 29 O pão que mata a fome, o teto que agasalha... Quem com o seu suor a fecunda e umedece, Vê pago o seu esforço, e é feliz, e enriquece! Criança! não verás país nenhum como este: Imita na grandeza a terra em que nasceste! (Olavo Bilac) Esse poema estrutura-se em oito estrofes de dois versos, ou dísticos, com os seguintes pares de rimas. Em termos de conteúdo, volta-se para a criança, procurando inculcá-lhe valores patrióticos; para isso, trata de uma terra, cuja natureza é, como a mãe, acolhedora e próspera para aqueles que se esforçam. “Boa terra! jamais negou a quem trabalha” (1º verso do 6º dístico); “O pão que mata a fome, o teto que agasalha...” (2º verso do 6º dístico). “Quem com o seu suor a fecunda e umedece,” (1º verso do 7º dístico); “Vê pago o seu esforço, e é feliz, e enriquece!” (2º verso do 7º dístico). Evidentemente, que ocorre o reforço das bases ideológicas da burguesia, calcada no trabalho e no enriquecimento advindo deste. Edgard Cavalheiro afirma, acerca desse período, que: A literatura infantil praticamente não existia entre nós. Antes de Monteiro Lobato havia tão-somente o conto com fundo folclórico. Nossos escritores extraíam dos vetustos fabulários o tema e a moralidade das engenhosas narrativas que deslumbraram e enterneceram as crianças das antigas gerações, desprezando, frequentemente, as lendas e tradições aparecidas aqui, para apanharem nas tradições europeias o assunto de suas historietas (CAVALHEIRO, 1972, p.144). Em Lobato, a moral é dissolvida e é dada ênfase à inteligência, à esperteza, no bom sentido; porque se centra na valorização da verdade individual e não acredita em processos revolucionários para o ser humano atingir o bem-estar. O esforço individual e a denúncia às mazelas nacionais, sem o ranço do patriotismo cego, constituem a linha mestre das narrativas lobatinas; tais evidências lhe causaram problemas com o poder constituído, tendo à frente Getúlio Vargas. Entretanto, hoje seus textos são vistos, muitas vezes, com um vinco de classe e étnico muito acentuado. Literatura Infanto-Juvenil Brasileira | A Leitura na Escola e na Sociedade: Papel e Importância da Literatura Infanto- Juvenil www.cenes.com.br | 30 9 A Leitura na Escola e na Sociedade: Papel e Importância da Literatura Infanto-Juvenil 9.1 Lobato, o Sítio e Muitas Histórias Por Contar José Bento Monteiro Lobato, o Juca, como era carinhosamente chamado pela família e amigos, nasceu na cidade de Taubaté-SP, em 18 de abril de 1882. Formou- se em Direito, mas exerceu muitas outras atividades: foi fazendeiro, empresário, editor e notabilizou-se como escritor, sendo reconhecido como um dos maiores autores da literatura voltada ao público infanto-juvenil, com títulos que foram lançados na década de 1920, como A menina do narizinho arrebitado. O sucesso dessa primeira história permitiu estabilizar o grupo que passou a compor o espaço privilegiado das aventuras vividas por adultos e crianças, bonecos e animais falantes: o Sítio do Pica- pau Amarelo. Desse modo, o autor pode definir “a unidade final das Reinações de Narizinho, obra que, lançada em 1931, nunca perde a primogenitura, permanecendo como livro inaugural da coleção das obras completas de Monteiro Lobato para a infância” (LAJOLO; ZILBERMAN, 1985, p. 55). Ao livro inaugural referido, seguem-se: • Viagem ao céu e O Saci, 1932 • Caçadas de Pedrinho e Hans Staden, 1933 • História do mundo para as crianças, 1933 • Memórias da Emília e Peter Pan, 1936 • Emília no país da gramática e Aritmética da Emília, 1934 • Geografia de Dona Benta, 1935 • Serões de Dona Benta e História das invenções, 1937 • D. Quixote das crianças, 1936 • O poço do Visconde, 1937 • Histórias de tia Nastácia, 1937 • O Pica-pau Amarelo e A reforma da natureza, 1939 • O Minotauro, 1937 • A chave do tamanho, 1942 • Fábulas, 1922 • Os doze trabalhos de Hércules (1º e 2º tomos) , 1942 O autor escreveu, também, livros de contos e de reportagens/ensaios sobre Literatura Infanto-Juvenil Brasileira | A Leitura na Escola e na Sociedade: Papel e Importância da Literatura Infanto- Juvenil www.cenes.com.br | 31 questões importantes da realidade brasileira de seu tempo, como os problemas ligados à agricultura, ao desenvolvimento tecnológico, à exploração do petróleo, entre muitos outros temas. Dos contos, “Urupês”, publicado em 1918, tornou-se famoso por apresentar a controvertida figura do Jeca Tatu, matuto do interior paulista que, nesse texto, era criticado, como exemplo do atraso da mentalidade e da cultura do homem do campo brasileiro. Mais tarde, teria revisado essa ideia de que o urupê (parasita também conhecido como “orelha-de-pau”) da vida interiorana do país era o trabalhador, pois o problema estava na falta de políticas adequadas para o desenvolvimento da população rural, como distribuição justa de terras, educação, saúde, incentivos agrícolas. Sobre a obra infanto-juvenil de Lobato, devemos considerar o contexto histórico- cultural em que se desenvolveu, ou seja, vivia-se o processo de modernização da sociedade brasileira. Nesse período, novas perspectivas culturais para o desenvolvimento do país eram colocadas em causa: valorização da dimensão popular da cultura brasileira, revalorização