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AULA 1 BREVE HISTÓRIA DA LITERATURA INFANTIL – OS SÉCULOS XVIII E XIX A origem da literatura infantojuvenil está vinculada a um contexto histórico bastante específico, que remonta à constituição da sociedade burguesa industrial do século XVIII. Nessa sociedade burguesa, em construção, a noção de infância sofreu modificações. A criança passou a ser um indivíduo que precisava de tratamento diferenciado e, ao mesmo tempo, de possibilidades formativas e morais para aquela sociedade. Essa nova abordagem com relação à infância, em grande medida, é construto da modernidade. Até a passagem da Idade Média (séculos V ao XV) para a Modernidade, a criança era vista como um adulto em miniatura, conceituação sugerida por Philipe Ariès e por outros historiadores da infância e da família. Nesse universo medieval, as estruturas feudais eram extremamente rígidas. A ascensão social ou a produção em larga escala não faziam parte do que se denomina feudalismo. O mundo feudal, cristalizado e restritivo, garantia às famílias a sobrevivência de poucas crianças e a necessidade do trabalho pesado para todos, principalmente para aqueles na condição de servos. Havia, nesse contexto, duas possibilidades sociais ditadas pelo nascimento: a servidão e a nobreza. No final da Idade Média, período denominado Baixa Idade Média, o renascimento das atividades comerciais e das cidades fizeram surgir uma nova classe social: a burguesia. Esta burguesia, especificamente do medievo, vive das práticas da produção artesanal e/ou manufatureira e das atividades bancárias ou comerciais. Nesse momento, as crianças, segundo Ariès (1981), passam a frequentar espaços específicos para sua formação, em detrimento das práticas de aprendizagem adotadas pela nobreza e que demandavam o fortalecimento de laços entre as famílias, as alianças e as longas temporadas nas casas de outros nobres. As escolas, agora destinadas à burguesia, criam ao mesmo tempo a possibilidade de distanciamento e de retorno à casa. Daí, segundo o historiador Philipe Ariès (1981, p. 233), surgem os sentimentos de saudade, de retorno ao lar, de afetividade. Constituem-se laços importantes para a construção da família moderna e da infância. Poucos séculos depois, essa burguesia tem novos traços e exige cada vez mais uma formação adequada as suas crianças. Essas transformações são cruciais para que a escola e a pedagogia ocupem um lugar importante na formação moral da infância. Por isso, o século XVIII, ou o Século das Luzes, assistirá à complementação de um processo que se iniciou na Idade Média: a decadência das linhagens, a desvalorização dos laços de parentesco e, em contrapartida, a formação da unidade familiar e dos laços afetivos. Segundo Zilberman (1998, p. 44): É a ascensão da ideologia burguesa a partir do século 18 que modifica esta situação: promovendo a distinção entre o setor privado e a vida pública, entre o mundo dos negócios e a família, provoca uma compartimentação na existência do indivíduo, tanto no âmbito horizontal, opondo casa e trabalho, como na vertical, separando a infância da idade adulta e relegando aquela à condição de etapa preparatória aos compromissos futuros. Nesse cenário, a educação ganha importante terreno, no que se refere aos cuidados e às orientações dados à criança. O objetivo final era garantir a formação de um adulto que estivesse de acordo com as demandas sociais daquele contexto. A escola é o espaço na norma e do controle, às vezes muito mais presentes do que a formação intelectual. Ligada à missão pedagógica da escola, a literatura infantojuvenil surge com o intuito de moldar o indivíduo para essa sociedade. É esse caráter formativo, a primeira característica da literatura infantojuvenil. Esse processo, da leitura que colabora para (re)produzir valores de um comportamento burguês, está presente, também, na temática dos romances românticos do final do século XVIII e do século XIX. A literatura infantojuvenil se constitui com base em um material literário já existente e de vertente adulta. São contos de fada, retirados de uma tradição oral, de origem adulta, que são adaptados ao universo infantil. Eles são produzidos para um público leitor infantil e jovem, com uma referência final que elabora uma moral da história e que tem uma voz narrativa que, de forma constante, manifesta a fala e os ensinamentos adultos. Dentro da escola burguesa, essa literatura garantirá a formação das crianças, a partir da seleção de aspectos, características e temas que contribuam para o surgimento do bom cidadão. Essa literatura, adaptada de textos adultos, terá um grande interesse pedagógico, muito mais do que de fruição do texto, enquanto literário. Para Zilberman (1988, p. 44): Promovendo a necessidade à formação pessoal de tipo profissionalizante, cognitivo e ético, a pedagogia encontra um lugar destacado no contexto da configuração e transmissão da ideologia burguesa. Dentro deste panorama é que emerge a literatura infantil, contribuindo para a preparação da elite cultura, através da reatualização do material literário oriundo de duas fontes distintas e contrapostas: a adaptação dos clássicos e dos contos de fada de proveniência folclórica. Com o passar do tempo, já na virada do século XIX para o XX, as narrativas apresentam personagens infantis menos dependentes da voz adulta, representada pela instância do narrador, e muito mais autônomas em suas atitudes. Aos poucos, a moral da história vai deixando de ser o fio condutor e o desfecho do enredo. Esse amadurecimento tem seu auge já na segunda metade do século XX e aparece, explicitamente, na produção da literatura infantojuvenil brasileira, por exemplo. Mais recentemente, a crítica e a teoria literária, também, passaram a fazer do texto literário infantojuvenil objeto de análise. A própria literatura, desse gênero, passou a ser estudada, não somente nos cursos de Pedagogia, como também nos cursos de Letras. Nesse sentido, sobre esses textos recaíram a noção de arte literária e de público especializado. Segundo Zilberman (1982, p. 23): [...] a literatura infantil atinge o estatuto de arte literária e se distancia com sua origem comprometida com a pedagogia, quando apresenta textos de valor artístico a seus pequenos leitores e não é porque estes ainda não alcançaram o status de adultos que merecem uma produção literária inferior. [...] Em vista disto a grande carência (da criança) é o conhecimento de si mesma e do ambiente no qual vive, que é primordialmente o da família, depois o espaço circundante e, por fim, a História e a vida social. O que a ficção lhe concede é uma visão de mundo que ocupa as lacunas resultantes de sua restrita experiência existencial, através de sua linguagem simbólica. Padrões estéticos e modelos pré-estabelecidos para o texto literário infantojuvenil, que antes garantiam a disseminação de valores conservadores e moralistas, foram gradativamente substituídos por temas e questões polêmicos que, em certa medida, ora privilegiam o caráter literário do texto, ora são condicionantes para o texto. Uma metodologia, segundo Costa (2013), para trabalhar o texto literário infantojuvenil precisa distinguir estes dois tipos: o moralizador e o imaginativo. O leitor deve ter em sua formação ferramentas que o habilitem para o prazer da leitura e para a compreensão de uma literatura significativa. AULA 2 OS PRIMEIROS AUTORES O século XVIII é o século da racionalidade das Luzes e do desenvolvimento do processo de industrialização. Concomitantemente, a Europa experimenta a ascensão do pensamento liberal econômico e político e a queda de regimes absolutistas. A leitura torna-se o sinônimo de uma sociedade burguesa com dinheiro e que, naquele momento, privilegia as ações individuais, em detrimento ao sentimento coletivo do medievo. A leitura, por exemplo, do romance romântico é uma leitura individual, que se faz no espaçoprivado, dentro de casa, em qualquer ambiente. Ela é o símbolo da forma de vida burguesa. Por sua vez, o espaço da escola garante uma maneira de ver o mundo, que é tipicamente burguês. A ideologia burguesa, solidificada na escola, defende um determinado padrão de família, um modelo de infância e uma norma comportamental. A alfabetização, feita na escola, garantiu à burguesia a sua formação intelectual e, ao mesmo tempo, o endosso dos valores burgueses. Naquele tempo, o século XVIII, circulavam na escola as fábulas de Jean de La Fontaine, de François Fénelon e de Charles Perrault. Além delas, estavam presentes adaptações de clássicos como Robinson Crusoé, de Daniel Defoe, publicado originalmente em 1719, e As viagens de Gulliver, de Jonathan Swift, publicado originalmente em 1726. Na origem europeia dos contos infantis estão as narrativas populares de procedência folclórica. Na França, Contos de mamãe gansa (1607), de Charles Perrault, representam concepções romanescas do século XVII. Nesse modelo de narrativa, o real e o maravilhoso estão harmonizados de forma perfeita com os contos tradicionais oriundos da tradição popular. As narrativas organizadas por Perrault e mais conhecidas até hoje são A Bela Adormecida no bosque, Chapeuzinho Vermelho, O Barba Azul, O gato de botas, As fadas, A gata borralheira, Henrique do Topete, O pequeno polegar, Pele de asno e outras. Essas narrativas provem das tradições orais célticas e bretã, acrescentada das influências do folclore italiano e francês, bem como de elementos religiosos e pagãos. Nessas histórias estão presentes temas como incesto, canibalismo, demônios e adultério. Esses temas foram reelaborados por Perrault e compuseram o que se define como literatura infantil, devidamente adaptada para o público infantil e direcionadas a garantirem a moral e os valores burgueses. Conta-se que: Na época em que os contos de fadas foram escritos, o hábito não estava extinto. A humanidade nunca deixou de recorrer ao canibalismo em épocas de fome severa – e fome era carne de vaca nos séculos passados. Na Prússia, a escassez foi tanta entre 1708 e 1711 que 41% da população (ou 250 mil pessoas) morreu. Duas grandes fomes também atropelaram a França entre 1693 e 1710, matando mais de 2 milhões de pessoas. Assim, o canibalismo acabou saindo da lista de tabus. O historiador Jay Rubinstein conta que, nos séculos 11 e 12, havia feiras de carne humana na Inglaterra e na França – e que há relatos de pais comendo seus bebês em momentos de extrema pobreza. Outra grande época de carnificina foram as Cruzadas. Há uma história famosa, do rei inglês Ricardo Coração de Leão, líder da Terceira Cruzada, que ficou doente ao chegar à Terra Sagrada, e ficou implorando por carne de porco. Na falta de suínos, seus empregados acabaram assando um infiel – que o monarca achou uma delícia. “O quê? Carne de sarraceno é boa assim?”, disse. A história humana é mais indigesta do que parece. (SUPERINTERESSANTE, https://super.abril.com.br/especiais/o-lado- sombrio-dos-contos-de-fadas/Links to an external site.) No século XIX, na Europa, a literatura destinada ao público infantojuvenil se consolidou com os contos de fadas dos irmãos Grimm, as histórias fantásticas de Hans Christian Andersen, Lewis Carroll e Carlo Collodi, as histórias de aventura de Julio Verner e Robert Louis Stevenson e as histórias do cotidiano da Condessa de Ségur, por exemplo. Os Grimm, na Alemanha, recolheram, também, centenas de fábulas, lendas e contos e produziram Contos para a infância e para o lar (1812). Eles foram os primeiros autores da Europa a dar valor estético e humano à matéria popular. Em seus contos predominam a esperança e a confiança. Apesar das agruras da vida e das injustiças constantes, o herói vence os obstáculos. São contos que constituem a obra: A Bela Adormecida, Os músicos de Bremen, Os sete anões e a Branca de Neve, Chapeuzinho Vermelho, A gata borralheira, O corvo, As aventuras do irmão folgazão, A dama e o leão, entre outros. Na Dinamarca, no mesmo período, Hans Christian Andersen produz os primeiros contos para as crianças. Andersen publica, em 1835, Contos de fadas e histórias. Em 1872 produz 168 contos em cinco séries, entre eles: A pastora e o limpador de chaminés, A rainha das neves, O soldadinho de chumbo, O pinheirinho, A menina dos fósforos, A roupa nova do rei, O rouxinol, O jardineiro, A princesa e a ervilha e O companheiro de viagem. Sua obra expressa sonho e realidade, o mundo do fantástico e da extrema sensibilidade, a humanização delicada da figura infantil. A literatura infantil é composta em sua essência pela fantasia, somado ao comprometimento com o interesse adulto. Esse gênero faz um movimento de banimento da realidade. Segundo ZIlberman (2003, p. 49) a fantasia tem um sentido compensatório, em oposição à extrema pobreza e à impossibilidade de mudar o mundo. Os contos de fada são, assim, adequados ao novo público emergente. A fantasia é subsídio para a compreensão de mundo por parte da criança, preenchendo as lacunas que o indivíduo tem durante a infância. De acordo com a pesquisadora, este ente maravilhoso presente no conto de fadas poderá corporificar o adulto onipotente, aliado e bom, que soluciona o problema do herói. Ainda, segundo ela, a passagem da narrativa folclórica ao conto de fada, isentou o conteúdo de rebeldia e proferiu a impotência do protagonista central: a criança. Narrativas, como as de Perrault e Grimm, explicitam essas escolhas, em que a presença de um entre auxiliar extraordinário se coloca a serviço do herói: uma fada, um duende, um animal encantado. https://super.abril.com.br/especiais/o-lado-sombrio-dos-contos-de-fadas/ https://super.abril.com.br/especiais/o-lado-sombrio-dos-contos-de-fadas/ Essa colaboração voluntária possibilita a superação, por parte da personagem central, do conflito que deflagra o evento ficcional; e sua ajuda é imprescindível devido à condição sempre precária ou carente da figura principal. (ZILBERMAN, 2003, p. 48). Essas obras, por fim, ajudaram a garantir as prerrogativas infantis, menos pela presença da fantasia e mais pelo embelezamento do real e pela construção de modelos perfeitos de comportamento. Aula 3 Gêneros literários O termo literatura é conceituado e debatido desde a Antiguidade clássica e remonta aos tempos de Aristóteles, na Grécia Antiga. A diversidade temporal e cultural fez com que muitas outras proposições sobre o que é literatura fossem pensadas. No entanto, não há um conceito fechado e definitivo. A arte literária pela imitação e representação cria uma realidade paralela à real. Aristóteles (384-322 a.C.) defendia a ideia de que a mais importante função da literatura e do teatro é fazer mimese ou mimese. Tal palavra, de origem grega, designa a ação ou faculdade de imitar, reproduzir ou imitar a natureza que, para Aristóteles, era o fundamento de toda a arte. De acordo com Massaud Moises (1984, p. 312): “Aristóteles inaugurou a longa série de estudos, com a sua ideia de mimese, ou seja, a arte literária entendida como imitação, ou capacidade de reproduzir, com meio próprios, os mecanismos utilizados na criação da realidade do mundo; em síntese, arte como recriação” Esse conceito, ao longo dos estudos teórico-críticos de literatura já foi aceito e combatido. No entanto, nenhuma das proposições refutou na íntegra a proposição aristotélica. No final do século XIX e início do XX, a Psicologia e a Filosofia da Linguagem ou Semiologia se interessaram também pelo tema. Assim, abriu-se um parêntese para a compreensão do signo e a relação com a existência dos signos polivalentes – sendo a literatura a única que recorre à expressão verbal (MOISES, 1984, p. 314). Assim, as palavras polivalentes correspondem às metáforas. Daí entender que a literatura é um tipo de conhecimento expresso em metáforas, relaciona-se, portanto,com os conteúdos da imaginação, da ficção. Os gêneros literários apresentam natureza estética e artística e estão relacionadas à produção cultural e artística. Desde a Antiguidade, Platão e, logo depois, Aristóteles, procura-se classificar a produção de textos artísticos. Os gêneros literários, segundo esses filósofos, podem ser definidos em: épico, lírico e dramático. Essa classificação clássica se consolidou nos séculos XV e XVI. Um dos gêneros sempre predominará em um texto literário, no entanto, a fronteira entre eles é muito tênue. Por vezes, eles se misturam e se confundem. Segundo Antoine Compagnon, essa forma de reunir as obras literárias em grupos de características comuns facilita ao leitor classificar a obra e ter um tipo específico de recepção. Assim, a classificação em gênero literário permite ao receptor, como um anúncio, um código, apresentar a forma como ele deverá receber a mensagem. Na modernidade, as narrativas ganharam novas caracterizações e, por isso, temos modalidades distintas daquelas do tempo de Aristóteles. Algumas guardam o parentesco com a epopeia e outras narrativas primitivas. São gêneros modernos o romance, a novela, o conto e a crônica. Qualquer um desses tem elementos básicos em sua estrutura como os fatos narrados, uma sequência de causa e efeitos, o tempo, o espaço, as personagens e uma voz narrativa. Genericamente, as diferenças de modalidade estão fundamentadas no tamanho, tempo, espaço narrativo, número de conflitos, desenvolvimento da ação e número de personagens. No entanto, mesmo essa classificação não é homogênea e aceita sem inúmeras discussões. O gênero lírico foi assim denominado porque na antiguidade clássica, os gregos utilizavam um instrumento musical, chamado lira, para acompanhar os versos poéticos que eram cantados. Posteriormente, a poesia lírica perde o acompanhamento musical e deixa de ser cantada para ser lida e recitada, mas conserva a sua perspectiva sonora, centrada sobre o ritmo e a musicalidade, constituídos sobre a linguagem por meio da metrificação, das rimas, de figuras sonoras como a assonância (repetição de sons vocálicos) e a aliteração (repetição de sons vocálicos), entre outras. Rosenfeld (2000) refletindo sobre os gêneros literários e a provisoriedade das classificações rígidas em função da multiplicidade da expressão artístico-literária ao longo de seu percurso histórico, faz a seguinte afirmação bastante pertinente: [...] o uso da classificação de obras literárias por gêneros parece ser indispensável, simplesmente pela necessidade de toda ciência de introduzir certa ordem na multiplicidade dos fenômenos. Há, no entanto, razões mais profundas para a adoção do sistema de gêneros. A maneira pela qual é comunicado o mundo imaginário pressupõe certa atitude em face deste mundo, ou contrariamente, a atitude exprime-se em certa maneira de comunicar. Nos gêneros manifestam-se, sem dúvida, tipos diversos de imaginação e de atitudes em face do mundo. (p. 16-17). Para além da perspectiva sonora, que diz respeito à forma do texto, ou seja, a estrutura, o gênero lírico se caracteriza pela expressão de sentimentos. A reflexão feita por Rosenfeld nos auxilia a compreender que a necessidade de expressão sentimental, no gênero lírico, seria a consequência de uma apreensão de mundo por parte do artista que se dá através do filtro da subjetividade. É por meio dessa atitude frente ao mundo que se a articula a “maneira de comunicar” do poeta, ou seja, os artifícios estruturais e estilísticos utilizados por ele para tornar coerente e efetiva a expressão do sentimento. Ao percebermos essa dinâmica mencionada acima, a qual é o cerne do gênero lírico, fica mais fácil compreendermos as características do gênero, como decorrentes desse desejo de expressão sentimental. Explicando-se melhor: a partir dessa perspectiva, quando se salienta que no gênero lírico há a predominância da utilização da primeira pessoa do singular, compreende-se que é um recurso, pois somente o “eu” é capaz de mergulhar em seu universo interno e fazer submergir em forma de linguagem a expressão genuína dos seus sentimentos, estados de alma, pensamentos e reflexões. A utilização de um “ele” ou terceira pessoa (característica do gênero épico), implicaria um distanciamento e uma parcialidade que anulariam a intensidade e veracidade do sentimento exposto. Uma observação importante a fazermos é que esse eu que se expressa no poema, o qual recebe a denominação técnica de Eu-lírico, não deverá ser confundida com a figura biográfica do autor, pois é uma criação ficcional, tal qual o é o narrador no gênero épico. Outra característica que pode ser compreendida como decorrente da expressão introspectiva é o que Rosenfeld (2000) explica como sendo a eliminação da oposição entre sujeito (aquele que expressa ou narra) e o objeto (mundo/realidade externos ao eu). Composto de versos e estrofes, a estrutura textual do gênero lírico é chamada de poema, o qual caracteriza- se pela brevidade. Para Rosenfeld (2000), a necessidade dessa brevidade está diretamente ligada à “extrema intensidade expressiva que não poderia ser mantida através de uma organização literária muito ampla” (p.22). O corpo de um poema é formado de versos agrupados em estrofes. No texto poético, forma e conteúdo são indissociáveis, isso quer dizer que a forma do poema, também, deverá ser analisada no plano do sentido e não apenas formal. A divisão estrófica no poema também não é aleatória, pois as estrofes podem organizar não só o desenvolvimento do tema, mas também apontarem mudanças rítmicas. A composição das estrofes também é responsável pela identificação dos chamados poemas de forma fixa, como é o caso do soneto. Esse tipo de poema é sempre composto por quatro estrofes. As duas primeiras são estrofes de quatro versos, chamadas quartetos e as duas últimas são estrofes de três versos, chamadas de tercetos. Outra particularidade desse tipo de poema é que o sistema de rimas que liga os dois quartetos é diferente das rimas que ligam os dois tercetos. Chamamos de rima, a semelhança entre os sons no interior do mesmo verso (rima interna) ou no final de versos diferentes (rima externa). Quanto à estrutura podem ainda ser classificados como versos regulares ou branco. Quanto às estrofes, elas são classificadas de acordo com o número de versos. Segundo Coelho, no que se refere às formas simples da narrativa, identificamos seis categorias, sendo as três principais o mito, a fábula e a lenda. O mito: são narrativas tão antigas quanto o próprio homem, que envolvem acontecimentos e seres maravilhosos, deuses, heróis e buscam explicar a origem de todas as coisas. Ex: a mitologia grega. A fábula: narrativa de uma situação vivida por animais, simbolicamente representando ações humanas, com o objetivo de transmitir um encaminhamento moral. Ex: A cigarra e a formiga, de Jean de La Fontaine. A lenda: narrativa muito antiga, geralmente breve (em verso ou prosa) cujo argumento é tirado da tradição. O relato sobre acontecimentos maravilhosos supera o registro histórico. Ele é transmitido e conservado pela tradição oral. Ex: Saci Pererê. Aula 4 O conto – modelos tradicional e moderno A produção de uma literatura infantojuvenil sofreu modificações ao longo do tempo. Ao tomarmos como referência antigos contos infantis, muitos deles clássicos, identificamos em sua elaboração marcas de uma época e das necessidades daquele período. Esses aspectos podem ser revelados na construção dos elementos da narrativa, tais como personagem, espaço e narrador ou mesmo na abordagem temática e no desfecho do conto. Na leitura de obras do século XIX, comumente podem ser identificados valores tradicionais, consolidados por aquela sociedade. Por outro lado, à medida que nos aproximamos da segunda metade do século XX podem ser observados novos valores, gerados em reação à tradição.Essas alterações acontecem em consonância com as mudanças no âmbito social e, por consequência, educacional. A literatura infantojuvenil, assim como a literatura adulta, é tributária de uma época e, por isso, (re) constrói-se com o tempo. No sentido de pensar essas mudanças e identificar no professor o elemento motivador, em sala de aula - para que o aluno tenha em mãos essa diversidade de leitura e, em momentos diferentes de sua formação leitora, seja capaz de perceber essas modificações - é preciso compreender seu papel fundamental. O professor precisar estar a par dessas atuais transformações e reorganizar suas leituras e seu conhecimento de mundo. De acordo com Coelho (2000), essa compreensão se dará quando orientado em três direções: da literatura (como leitor), da realidade social (como cidadão) e da docência (como profissional). A pesquisadora Nelly Novaes Coelho (2000) desenvolveu um quadro comparativo entre os valores tradicionais (consolidados pela sociedade romântica no Séc. XIX) e os novos valores (gerados em reação à tradição, no Séc. XX): TRADICIONAL NOVO 1.Espírito Individualista 1.Espírito Solidário 2.Obediência absoluta à autoridade 2.Questionamento à autoridade 3. Sistema social fundado na valorização do ter e do parecer, acima do ser 3. Sistema social fundado na valorização do fazer como manifestação autêntica do ser 4. Moral dogmática 4. Moral da responsabilidade ética 5. Sociedade sexófoba 5. Sociedade sexófila 6. Reverência ao passado 6. Redescoberta e reinvenção do passado 7. Concepção de vida fundada na visão transcendental da condição humana 7. Concepção de vida fundada na visão cósmica/existencial/mutante da condição humana 8. Racionalismo 8. Intuicionismo fenomenológico 9. Racismo 9. Antirracismo 10. A criança: “adulto em miniatura” 10. A criança: ser em formação (“mutantes” do novo milênio) De acordo com a pesquisadora, e tomando os contrapontos por ela propostos, o primeiro item diz respeitos ao individualismo e ao espírito solidário. Em grande medida o comportamento individualista do século XIX, típico de uma sociedade burguesa competitiva, foi reafirmado por meio da arte e, mais especificamente, pela literatura. A constituição da personagem heroica, com grandes virtudes, reafirma essa crença. Ela é corajosa e destemida e beira a perfeição. No novo modelo da literatura infantojuvenial, mais especificamente do conto, a personagem heroica tem sido substituída pelo coletivo, pelo grupo. A ideia de que o individuo faz parte de um todo e que precisa deles para viver e/ou vencer. Nos contos da literatura infantojuvenil do século XIX era explicita a obediência à autoridade. Os pequenos questionamentos surgidos ao longo da narrativa eram refutados com um final moralista. Uma literatura maniqueísta (o jogo do bom e do mau) ajudava a reafirmar essa concepção. Ainda, tabus e ideais eram consagrados pelo sistema. O novo modelo, o questionamento ao autoritarismo e a consciência da relatividade passaram a fazer parte de pontos-chave dentro do enredo ou mesmo dos desfechos da história. Há uma nova noção de verdades múltiplas e de liberdade pessoal. Um modelo novo do conto infantil que sobrepõe o ser ao ter descreve as novas possiblidades de apresentação do sistema social. Se primeiramente a noção de riqueza estava condicionada ao acúmulo de dinheiro e o trabalho ao ideal liberal burguês da obrigatoriedade da produção, em um segundo momento, nos contos da literatura infantojuvenil contemporânea, observa-se uma preocupação em tematizar os direitos do trabalhador, a realização existencial da pessoa e um maior espaço de atuação da mulher. Nos itens 4 e 5 podem ser identificadas a mudança de uma moral de comportamento dogmática, de fundo religioso, sendo substituída por uma consciência de si e do outro. Essas alterações também podem ser lidas no que diz respeito à sexualidade e às comparações (diferenças e semelhanças) entre os sexos. Se no oitocentos as crianças eram assexuadas ou, sob o signo da moral religiosa, o sexo era tomado como pecado. Nas obras contemporâneas o sexo passa a ser retratado como um ato natural e a mulher ocupa, no espaço da casa, o mesmo tratamento dado ao homem. Além disso, nesse novo modelo, são introduzidos lares com diferentes composições em que muitos deles são chefiados por mulheres. Quanto aos pontos 6 e 7 são mencionados a reverência ao passado e a concepção de vida. No primeiro, no modelo de conto tradicional, a reverência está atrelada à honra ao passado, aos escritores e às antigas referências, enquanto no novo modelo a noção de que a literatura atual é tributária de um passado e que as novas formas dialogam com a tradição se torna mais evidente. A escrita é recriada no espírito do novo. No que diz respeito à concepção de vida, de um ideal a ser alcançado e a necessidade de chegar à realização plena e definitiva da vida é substituído pelas conquistas constantes, pelos limites da vida e pelo interior profundo. Temas como a morte passam a fazer parte dos enredos. Os itens 8, 9 e 10 dizem respeito a temas bastante reformulados dentro do novo modelo de valores do conto na literatura infantojuvenil. São eles: racionalismo X Intuicionismo fenomenológico, racismo X antirracismo e criança como mini adulto X criança em formação. A primeira dicotomia diz respeito a todas as explicações serem apoiadas ora na fé ora na ciência. Nesse sentido, qualquer fenômeno carecia de explicação. A emoção, o instinto e a fantasia são milimetricamente controlados. Dentro da nova escrita, a valorização da intuição passa ser indispensável, ela coloca em xeque a lógica convencional ou o senso comum. No conto destinado ao público infantil, o mágico e absurdo podem fazer parte do cotidiano e quebram as fronteiras entre o real e o imaginário. No que diz respeito ao ponto racismo, mesmo no conto tradicional, observa-se uma preocupação em dar conta de discutir as questões de “raça” e as diferenças entre brancos e negros, principalmente. No entanto, naquele momento, o século XIX, como fruto de uma sociedade escravocrata, branca e “civilizatória”, os “outros” eram apresentados como inferiores ou diferentes. Na nova escrita do conto infantojuvenil, as igualdades étnico-raciais são um ponto importante de abordagem e obras que valorizam diferentes grupos étnicos e tradições, bem como mesclam personagem de diferentes origens, têm composto a nova produção desse gênero da literatura. Por fim, as crianças passam a ser vistas como seres em formação e com liberdade para se desenvolverem. Seres que têm especificidades dentro da sua faixa etária e que, como tal, têm diferentes conquistas e limites com relação a elas mesmas e aos adultos. Essa nova roupagem da criança, e da personagem infantil, desbanca a educação rígida e punitiva sugerida pela literatura tradicional. Assim, novas personagens infantis, dentro da obra literária, se tornaram mais autônomas e livres. Portanto, ao tomar em mãos um livro de literatura infantojuvenil, e sob este aspecto também os contos, os professores, e pais, devem ter como referência um pouco do que a obra trata e como ela se constitui. Trabalhar literatura com crianças e compreender que estamos formando um público leitor que deve ver a literatura como arte, como fruição e, também, como texto literário a ser compreendido em sua estrutura. Por isso, para além tornar a literatura um instrumento de prazer, o professor precisa ter em mãos ferramentas que o capacitem a fazer a análise e a dominar o texto literário. Cabe a ele a escolha de textos, a leitura prévia e a classificação da qualidade daquele texto. Ainda, que ele compreenda aquele escrito como fruto de um período e saiba, nesse sentido, fazer as orientações de leitura adequadas à turma e/ou ao aluno. Um novo olhar sobre a Criança na Literatura Infantil O Maravilhoso mágico de Oz, escrito por L. Frank Baum, foi publicado pela primeira vez em 1800, e em sua introduçãoo autor anuncia “[a obra] aspira ser um conto de fadas modernizado [...]” (2014b, p. 9). Sem dúvida, para além de sua inovadora estrutura narrativa, o autor garantiu enorme sucesso e permaneceu por décadas no imaginário de muitas gerações. Sem dúvida, uma das grandes novidades trazidas pela obra, e também por Alice no país das maravilhas (1865), de Lewis Carroll, e As aventuras de Pinóquio (1883), de Carlo Collodi, é uma narrativa em que a personagem infantil está realmente exercendo o papel protagonista. O leitor passa a identificar essa alteração na construção da personagem visivelmente no texto. O adulto continua participando do texto e também pode ser um leitor desse gênero, no entanto, a obra direciona-se ao público infantil e isso fica evidente na incorporação do adjetivo infantil para essa modalidade literária. Os livros falam a linguagem dos seus leitores. Sem dúvida, o percurso de Dorothy, a protagonista do mundo de OZ, retrata as conquistas do espaço de uma menina não somente na sua terra, mas também no espaço imaginário de OZ. O maravilhoso mágico de Oz traz em seu discurso valores da cultura ocidental, principalmente americana. São proclamadas a inteligência, os sentimentos, a coragem e a valorização do lugar. Dorothy declara: “não importa o quanto sombrios e cinzentos nossos países são, nós, as pessoas de carne e osso, preferimos viver lá do que em qualquer outro lugar, por mais bonito que seja. Não há lugar como o lar” (BAUM, 2014b, p. 37). A obra, para além das pretensões do autor, de ser um conto modernizado, pode ser classificada como uma narrativa maravilhosa, para utilizar uma classificação de Todorov: No caso do maravilhoso, os elementos sobrenaturais não provocam qualquer reação particular nem nas personagens, nem no leitor implícito. Não é uma atitude para com os acontecimentos narrados que caracteriza o maravilhoso, mas a própria natureza desses acontecimentos. [...] Relaciona-se geralmente o gênero maravilhoso ao conto de fadas; de fato, o conto de fadas não é senão uma das variedades do maravilhoso e os acontecimentos sobrenaturais aí não provocam qualquer surpresa [...] (TODOROV, 2008, pp. 59-60). A obra, desde a saída de Dorothy da casa, arrastada por um ciclone rumo a OZ, e seu retorno ao lugar, não coloca em dúvida que se trata de um caso maravilhoso. A tia estava preocupada com o destino da menina, além de Doroty retornar para casa apenas de meias, sem os sapatos de prata (símbolo típico dos contos de Grimm, como as botas sete léguas). Ao mesmo tempo, o pacto de leitura já está estabelecido e, em nenhum momento, há dúvidas de que a viagem aconteceu, mesmo que o sapato tenha se perdido. Esse conjunto de elementos faz um aporte em um modelo clássico do conto e, ao mesmo tempo, sugere modificações. Dorothy, e não o mágico, é a personagem central da narrativa. Durante sua viagem, encontra três amigos: o Espantalho, o Homem de Lata e o Leão Covarde, que esperam que o mágico resolva seus problemas, assim como Dorothy, que deseja voltar para casa. A narrativa está dividida em três sequências: SEQUÊNCIAS AÇÃO TRANSFORMAÇÃO DOS HERÓIS 1ª Viagem de Kansas à Cidade das Esmeraldas Carência vivida por todos 2ª Viagem ao Oeste e à cidade das Esmeraldas outra vez Superação da carência por parte do Leão, do lenhador e do Espantalho 3ª Viagem da Cidade das Esmeraldas para o Sul: volta de Doroty para casa Superação da carência por Dorothy. Todos encontram seu lugar social A trajetória de Dorothy e de seus amigos representa a necessidade do encontro de cada um consigo mesmo: volta para casa, cérebro, coração e coragem e faz parte da narrativa de aventura. O desdobramento do relato está vinculado ao deslocamento no espaço e dos problemas das personagens (heróis) dentro dele. Cada uma das personagens tem dentro de si as virtudes que procura, assim como Dorothy que deseja retornar à casa, também ao chegar em OZ, recebe os sapatos que, desde o início, já possibilitariam seu regresso. As viagens, além de reforçar a narrativa de aventura, garante o tempo necessário para que as personagens reconheçam as suas qualidades. A voz do narrador indica ao leitor possibilidades de interpretação. “Este terá que reconhecer, antes de todos, que as personagens possuíam de antemão o que buscavam, faltando-lhes apenas a autoconfiança adquirida após o segundo encontro com o mágico”. (ZILBERMAN, 2003. p.77). É por meio da construção da autoconfiança e do reconhecimento do grupo (os heróis), que nasce a própria identificação de Dorothy e da criança leitora A narrativa sugere recursos para que cada um possa refletir sobre si mesmo, a partir das atitudes dos heróis que, por sua vez, revelam que nada lhes falta. As personagens Leão, Homem de Lata e espantalho encarnam a busca da identidade, e refletem sobre os dramas íntimos. Dorothy é a única personagem com atributos reais, o ponto de entrada no texto. A menina ocupa o lugar do herói, o ponto de confluência entre o real e o ficcional. Ela, expelida pelo ciclone, deseja retornar aos tios e a Kansas. Em nenhum momento, a menina cogita ficar em OZ. Seu desejo é retornar à cidade com os tios, na fazenda. Em seu percurso, a heroína destrói, direta ou indiretamente, a Bruxa Má do Leste, a Bruxa Má do Oeste e o Mágico de OZ. Ela é a heroína do relato contra as figuras malignas e instaura uma boa ordem em OZ. Mesmo não sendo uma fada, no sentido do termo, é ela quem desbanca as bruxas. Por fim, na figura do mágico está personificado o adulto, vinculado às mentiras e trapaças. Dorothy, a criança, desvela o adulto, o mágico, em seus medos e mentiras. O exercício liberal cabe à criança e a sua nova configuração. Ela destitui os maus e faz triunfar a harmonia. Segundo Zilberman (2003), esse mundo de OZ, recriado, é o espelho do ideário liberal democrático americano. Por fim, o livro é uma aventura infantil, cuja narrativa toma partido da criança. Ela é a protagonista do texto, a ruptura e a mudança sobre os modelos anteriores. A literatura infantil no Brasil A literatura infantojuvenil brasileira começa sua produção independente no final do século XIX e início do século XX. Até então, as editoras brasileiras faziam a tradução e a reprodução de obras originárias da Europa. A literatura infantojuvenil pode ser dividida, no Brasil, em cinco fases: 1. Primeira fase – 1890-1920 - A literatura infantil que começa a ser publicada regularmente no final do século XIX. Desse período devem ser mencionadas as adaptações bem sucedidas de Figueiredo Pimentel e editadas pela livraria Quaresma. São também autores dessa fase, Coelho Neto, Olavo Bilac, Júlia Lopes de Almeida e Francisca Júlia. As características das obras desse período são diversão, valorização da caridade e da obediência, ufanismo, didatismo e obediência à norma culta. Além de uma linguagem mais próximas do português brasileiro e das adaptações didáticas. 2. Segunda fase – 1920-1945 – Momento da formação da classe burguesa no Brasil e início do governo varguista (1930-1945). Durante esse governo foram elaborados planos e reformas para a educação brasileira e, em grande medida, elas estavam voltadas para os valores patrióticos (cívicos e morais). Em termos sociais, o Brasil tinha altos índices de analfabetismo, e um dos objetivos do governo, inclusive, visando o eleitorado que precisava ser alfabetizado, era criar um programa que minimizasse o problema. Para bem ou para mal, parte desse projeto foi concretizado utilizando a literatura infantil nos processos de alfabetização. Alguns autores chegaram, inclusive, a participar desse modelo de alfabetização infantil, como foi o caso de Érico Veríssimo – Meu ABC (1930) e Mário Quintana – O batalhão das letras (1948). Além disso foram introduzidas a alfabetização em cartilhas, característica presente entre os anos 30 e 70 e com alguma herança. Desse período destaca-se a obra de Monteiro Lobato - A menina do narizinho arrebitado, 1921 (hoje Reinações de Narizinho).3. Terceira fase – 1945-1965, do final do nacionalismo getulista ao Golpe Militar de 1964. Literatura de caráter conservador, que prestigia uma linguagem mais acadêmica e menos coloquial. Nesse momento histórico brasileiro, principalmente, os anos de 1950, época do desenvolvimentismo, aparecem temas como o passado histórico e a supremacia do urbano sobre o rural. São autores desse período Maria José Dupré, Lúcia Machado de Almeida, Alfredo Mesquita e Jeronymo Monteiro, além da retomada de trabalhos de Monteiro Lobato. 4. Quarta fase – 1965-1980, marcado por programas de fomento à leitura. Surgem autores que abordam temas de crítica social e de cultura popular, considerados tabus para as crianças. Nesse período os livros passam a ser vendidos em bancas, escolas, supermercados. São autores desse período Odette de Barros Mott, Henry Corrêa de Araújo, Lygia Bojunga, Ana Maria Machado, Ruth Rocha, Marina Colassanti, Vinícius de Morais e Sidônio Muralha. Esses autores desenvolveram temáticas como os problemas urbanos do Brasil, a intertextualidade, a linguagem oral e coloquial, a linguagem literária, os desajustes da infância, as questões geracionais, entre outros. 5. A última fase, a da atualidade, encontra-se um amadurecimento da literatura infantil brasileira. São autores desse período: Ricardo Azevedo, Ziraldo, Lygia Bojunga, Ângela Lago, Sérgio Capparelli, Luciana Sandroni, Mirna Pinsky, entre outros. Em grande medida, a quarta fase é tributária das contribuições lobatianas. As mudanças trazidas por Lobato à literatura infantil brasileira vão desde a linguagem utilizada, à caracterização da personagem infantil e de inovações temáticas. A quarta fase composta por autores ainda em produção e de grande nome junto ao público, bebeu na fonte das obras de Lobato. Algumas debruçaram-se sobre a produção escrita da obra, trazendo uma linguagem mais coloquial. Outros optaram por abordar temas mais polêmicos ou tabus. Essa tem sido uma opção bem aceita, não só pela crítica como para o público em geral. Além desse modelo de literatura com novas temáticas, esses filhos/filhas de Lobato reformularam suas obras por meio do desenho. A iconografia tem sido cada vez mais bem-vinda ao mundo da literatura infantil. As crianças compreendem essa leitura infantojuvenil também pelo viés do desenho, tornando esse modelo artístico complementar ao texto escrito literário. Há, também, obras inteiramente iconográficas e de grande qualidade literária. Monteiro Lobato, a nova face da literatura infantil brasileira A produção de literatura infantojuvenil no Brasil ganhou novos contornos a partir da década de 1920, com as obras de Monteiro Lobato. Até então, a literatura desse gênero no país limitava-se à reprodução e tradução de obras vindas da Europa. Em grande medida, também tinham como referência a língua portuguesa de Portugal. As inovações de Monteiro Lobato trouxeram diferentes paradigmas para a literatura infantil e introduziram, em termo de linguagem, o coloquialismo e o diálogo com o leitor. Para além disso, Lobato reconfigura o universo da fantasia ao não se distanciar da realidade e a propor uma espécie de filtro para compreensão crítica do mundo ao redor. Foi com Monteiro Lobato, em 1921, com a obra A menina do narizinho arrebitado (hoje Reinações de Narizinho), que teve início a nacionalização da literatura infantil brasileira. De acordo com Zilberman e Lajolo, a literatura infantil: não teve origem popular, nem aparecimento espontâneo: seu surgimento foi induzido, patrocinado pelos autores que escreveram livros para crianças no período de transição entre os séculos XIX e XX. Desde então, no entanto, e em particular após o sucesso de Tales de Andrade e Monteiro Lobato, as editoras começaram a prestigiar o gênero, motivando seu aumento vegetativo ao longo dos anos 20 e 30, bem como a adesão progressiva de alguns escritores da nova e atuante geração modernista. (ZILBERMAN; LAJOLO, 1988, p. 61). Nas obras de Lobato, as personagens infantis são questionadoras e independentes. Nessa perspectiva são construídas as personagens da turma (Narizinho, Pedrinho, Emília, Visconde, Rabicó, etc), que neutralizam a figura do herói e valorizam a contribuição das potencialidades individuais. Monteiro Lobato agrega ao universo do sítio do pica-pau-amarelo a novidade interiorana à modernidade. Essa nova literatura infantil aspira ares de inovação e, ao mesmo tempo, não elimina totalmente a tradição literária de que é herdeira. É essa mistura implícita que configura a obra lobatiana, que dialoga com o sistema social vigente (ora para afirmá-lo e ora para gerar um tom de crítica), que faz conhecer a realidade vigente, que enfraquece as instituições tradicionais brasileira, tal qual a família, o coronelismo, a Igreja e outros. No entorno de Dona Benta, o núcleo familiar se configura, mas Lobato esvazia o papel do patriarca e, de forma original, renova o modelo. A escola está ausente, uma vez que Pedrinho está eternamente de férias e Dona Benta conta as histórias e indica os livros. E, por fim, as instituições religiosas nunca são mencionadas. (ZILMERMAN, 2003, p. 157-158). A vida no sítio e a perfeita harmonia entre os seres humanos e os animais representa a utopia lobatiana. Não há maiores conflitos ou dissabores. As caçadas de Pedrinho, orginalmente publicada como Caçada da onça (1924) narra uma história de aventura, no espaço do sítio, e está dividida em duas sequências: primeira sequência a procura da onça e segunda sequência a caçada ao rinoceronte. A primeira sequência se dá quando os meninos, seguidos de Emília, Visconde e Rabicó, se dirigem à mata e mais além à procura da onça que Rabicó suspeitava ter visto. Nessa aventura, Pedrinho caça e mata a onça, retornando ao sítio com o espólio da aventura, a onça morta. Isso gera nos animais uma espécie de medo e de revolta pelo que aconteceu. Os animais querem vingar o crime. Assim, os meninos passam, pela simpatia do público leitor, a heróis do episódio. Ao longo da trama, devido a justificativa dos animais, de que estavam permanentemente sendo atacados, esvazia, em parte, a conotação negativa da vingança. A segunda sequência está relacionada à fuga de um rinoceronte do circo. Encontrado e preso por Emília, o animal é vendido a Pedrinho. Os funcionários do governo, vindos do Rio de Janeiro, depois de várias chamadas, irão buscar o animal. Nessa parte, Lobato ironiza a demora e a criação de um órgão especializado para a caça do rinoceronte. Os caçadores do animal tomam o papel, antes constituído pelos próprios animais, ao construírem a sua revolta contra os humanos. O rinoceronte inverte o papel da onça e sensibiliza os meninos ao torna-se um elo explicativo e apaziguador entre os animais e os habitantes do sítio. Assim, o sítio, ao posicionar-se contra os caçadores, o dono do rinoceronte e seu advogado, desloca-se para a missão de valores bons e pacificadores. O que, por fim Lobato coloca aos olhos do leitor é a possibilidade de reconciliação e de rechaço à administração do governo. O sítio é um espaço de acolhimento e, ao mesmo tempo, de questionamento. Segundo ZIlberman (2003, p. 162): Na medida em que os heróis do sítio esclarecem as regras para a admissão de novos parceiros, fica evidente que este território recebe um segundo limite. Na sequência inicial, esse se caracteriza por uma rejeição do natural e do selvagem, configurando um âmbito civilizado que avança sobre as regiões que se opõem a ele. Contudo, a civilização corporificada pelo sítio procede a um novo tipo de expulsão: a do mundo urbano, cujo grau de desenvolvimento gerara uma organização institucional difícil de tolerar. Em consequência, ao lado do rechaço da estrutura administrativa segue-se a negação de qualquer tipo de instituição – a família, a escolar, a religiosa e a governamental. O paradoxal é que elas se confundem com o mundo civilizado, aquele que submete a natureza circunvizinha e desencadeia a transformaçãodo ambiente original. A literatura infantil e escola Durante o período colonial brasileiro, séculos XVI a XVIII, a educação no Brasil estava a cargo dos padres jesuítas. Somente no século XVIII, com a expulsão da Companhia de Jesus, a colônia teve algum processo de escolarização. Entre meados do oitocentos e a chegada da família real, há um vácuo no projeto e um total abandono por parte de alguns. No período monárquico, que antecede à Independência, houve poucas alterações desse cenário. Nossa primeira Constituinte, no início do século XIX, garantiu os primeiros projetos de alfabetização e escola pública no país. No entanto, até o final daquele século, cerca de 70% da população permanecia analfabeta. Entre 1890 e 1900, a ala conservadora da República administrou o país e, em termos educacionais, resultou no pouco tempo de existência do Ministério da Instrução Pública, confiado a Benjamin Constant (1891- 1893). Nosso ensino seguiu um modelo tradicional, elitista e bacharelesco. No início do século XX, foram feitas campanhas em prol da alfabetização, lideradas por Olavo Bilac, Coelho Neto e, mais tarde, Monteiro Lobato – marca da cultura brasileira da República Velha, que se interessava pela alfabetização, vinculado aos votos e às eleições. Saber escrever o nome significava ter o direito de votar. Na década de 1930 houve uma profusão das escolas profissionalizantes e, nos anos 70, a difusão dos estudos superiores. Segundo Zilberman (2012, p. 53): Raras vezes a escola, seu aparato (como salas de aula), seus instrumentos (como o livro didático) e sua metodologia (como a execução do dever de casa) provocam lembranças aprazíveis de leitura. As atividades pedagógicas provocam tédio, quando não são vivenciadas como aprisionamento, controle ou obrigação. A leitura parece ficar do lado de fora, porque os professores não a incorporam ao universo do ensino. Nesse cenário, estudar o texto literário fica em segundo plano: saltam aos olhos do professor os conteúdos que precisavam vencer no ano letivo. Por isso, o texto literário é usado como pretexto para abordar conteúdos e bons comportamentos. Os livros literários são tomados pela escola, no sentido de torná-los pedagogizantes ou de produzir diretamente obras para o fim escolar. As características literárias, ou seja, artísticas, são deixadas em segundo plano. Leia a seguir um exemplo de atividade sugerida nos livros escolares, em que o texto literário é apenas um pretexto para o ensino da gramática. Esse exemplo foi retirado do livro da professora Magda Soares: LEIA O TEXTO E SUBLINHE TODOS OS SUBSTANTIVOS COMUNS: QUE BORBOLETA! Que borboleta é aquela Que não gosta de flor E que vive perseguindo mosquitos, Dando piruetas no ar? — É uma lagartixa maluca Que se vestiu com uma gravata-borboleta E conseguiu voar. NANI. Cachorro quente uivando pra lua, Belo Horizonte: Formato Editorial, 1987. (Soares, 2003, p. 27) Nesse exemplo, as características do gênero textual não são abordadas. O poema serve de mero instrumento para treinar o aluno para que identifique os substantivos comuns no texto. O texto perde a sua função real: deixa de ser literatura para ganhar um caráter didático. Veja abaixo outro exemplo do mesmo tipo de atividade, também sugerida no livro da professora Magda Soares, como forma de compreender como eram, e às vezes, ainda são trabalhados os textos literários na escola: DESTAQUE OS ADJETIVOS DO TEXTO E A QUE SUBSTANTIVO OS MESMOS SE REFEREM: Procurando firme Mas a princesa estava desapontada! Aquele não era o príncipe que ela estava esperando! Até que ele não era feio, tinha umas roupas bem bonitas, sinal que devia ser meio riquinho, mas era meio grosso, tinha um jeitão de quem achava que estava abafando, muito convencido! A princesa torceu o nariz. O pai e a mãe da princesa ficaram muito espantados, ainda quiseram consertar as coisas, disfarçar o nariz torto da princesa, é que eles estavam achando o príncipe bem jeitoso...Afinal, ele era o príncipe da Petrolândia, um lugar que tinha um óleo fedorento e que todo mundo achava que um dia ia valer muito dinheiro... ROCHA, Ruth. Procurando firme, RJ: Nova Fronteira, 1984, p. 17. (Soares, 2003, p. 34) Mais uma vez temos a literatura utilizada como pretexto para trabalhar a gramática. Com essa narrativa de Ruth Rocha, Magda Soares alerta para outro problema encontrado nos livros didáticos: o uso de trechos fragmentados. Como ressalta Soares, o trecho se inicia com a conjunção: mas. O que se torna impossível de entender a ideia de contraposição, de adversidade, pois o leitor não tem acesso ao que vem antes. Daí a importância de levar para o aluno o texto integral, no suporte em que foi escrito, seja livro, seja internet. É preciso trabalhar com a totalidade, fragmentos descontextualizam a escrita. Esse tipo de trabalho com a literatura desagrega o valor literário e continua dificultando o gosto pela literatura. Por outro lado, é também fundamental garantir uma formação adequada do profissional da educação, uma vez que tanto nos cursos de pedagogia, quanto nos cursos de literatura, a metodologia do ensino de literatura é disciplina com pouca carga horária. O que vemos, geralmente, é uma preparação inadequada do docente que não sabe trabalhar efetivamente a literatura. Ainda, no que diz respeito às modificações a partir dos anos de 1990, a literatura aparece nos PCNs (Parâmetros Curriculares Nacionais), como “uma das possibilidades de texto ou de gênero de discurso. Verifica-se aí, aparentemente, uma oposição à tradição dos estudos literários, que privilegia a especificidade da escrita artística” (ZILBERMAN, 2012, p. 190). No entanto, mesmo nesse documento, produzido por educadores da área da Pedagogia e de Letras, a literatura está diluída no amplo e vago conceito de texto e discurso. Os PCN não apontam caminhos efetivos ao professor para o trabalhar com a literatura em sala de aula. Ou seja, a literatura na escola continua sendo tratada muito mais para fins de ensino de gramática, do que como literatura – análise do texto e fruição.
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