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DIREITOS HUMANOS DAS MINORIAS E GRUPOS VULNERÁVEIS – PARTE 2 3.DIREITOS HUMANOS DOS POVOS INDÍGENAS E COMUNIDADES TRADICIONAIS Uma das preocupações que tem afligido o direito internacional contemporâneo diz respeito à proteção dos povos indígenas e das comunidades tradicionais, grupos historicamente relegados ao esquecimento e considerados por muitas legislações nacionais, até bem pouco tempo, como relativamente incapazes, ferindo sua própria dignidade e autodeterminação São povos indígenas os vários grupos étnicos que habitam um determinado território desde tempos imemoriais, ali se encontrando milênios antes das invasões ou colonizações, e que continuaram a se desenvolver da maneira tradicionalmente por eles conhecida, com suas manifestações culturais e hábitos, mantendo-se distintos dos outros setores da sociedade que atualmente vive em tal território. Já as comunidades tradicionais são grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam, de maneira permanente ou temporária, territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição. Entre eles estão, além dos povos indígenas, os quilombolas, seringueiros, castanheiros, quebradeiras de coco- de-babaçu, comunidades de fundo de pasto, faxinalenses, pescadores artesanais, marisqueiras, ribeirinhos, varjeiros, caiçaras, praieiros, sertanejos, entre outros. No quadro atual, tanto os povos indígenas como quaisquer comunidades tradicionais compõem uma esfera de caracteres e tradições tão particulares que faz que, de um lado, se reconheça o indivíduo como portador de identidades complexas e multifacetadas e, de outro, garanta o espaço comum em que são manifestadas todas as suas particularidades definitórias. Em matéria de proteção às populações indígenas e comunidades tradicionais, acredita-se que a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial (1965) tenha representado o primeiro mecanismo ainda vigente relativo à sua proteção, eis que repudia qualquer forma de discriminação racial, esta, por seu turno, conceituada de maneira abrangente pelo art. 1.º da Convenção, nestes termos: Na presente Convenção, a expressão “discriminação racial” significa qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência fundadas na raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tenha por fim ou efeito anular ou comprometer o reconhecimento, o gozo ou o exercício, em igualdade de condições, dos direitos humanos e das liberdades fundamentais nos domínios político, econômico, social, cultural ou em qualquer outro domínio da vida pública. Destaque-se que o conceito de discriminação ora compreendido abrange, além da perseguição contra os judeus, também a discriminação de pessoas em razão da sua cor de pele ou em razão de sua pertinência a um grupo étnico ou a um povo indígena ou comunidade tradicional, tornando-se instrumento eficaz no combate do tratamento discriminatório conferido, não raras vezes, aos povos indígenas. Vale dizer, para a Convenção “discriminação racial” conota toda distinção, exclusão, restrição ou preferência fundadas em quaisquer características imanentes à pessoa, seja sua raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica, aplicando-se, sem margem a dúvidas, aos povos indígenas e às comunidades tradicionais. No que diz respeito à cultura e ao trato das questões indígenas no plano global, merecem destaque as convenções internacionais do trabalho celebradas sob os auspícios da OIT, fruto das reivindicações dos movimentos sindicais e operários do final do século XIX e começo do século XX. Inicialmente, considerando a forma degradante com que os indígenas eram forçados a trabalhar, a OIT buscou – por meio da fixação de padrões mínimos de trabalho, como saúde, educação etc. – disciplinar o tema pela elaboração da Convenção n.º 107, de 1957, relativa à proteção e integração de grupos populacionais nativos e outros grupos tribais ou vivendo de tal forma em países tornados independentes. A ideia principal da Convenção n.º 107 (ratificada pelo Brasil em 1965) estava ligada à melhoria das condições de trabalho dos índios, para o que a OIT definiu padrões mínimos concernentes a tais condições laborais. Nessa esteira, a Convenção n.º 107 da OIT assegurava a proteção dos grupos aborígenes até o momento em que estes estivessem plenamente integrados à comunidade nacional, negando-lhes suas manifestações culturais e, portanto, sua própria identidade, na medida em que os tomava como meios para um determinado fim (que seria a comunidade nacional homogênea, da qual destoam), e não como um fim em si mesmos. Falando em outros termos, pelo espírito da Convenção n.º 107 aos índios não era garantido o direito de permanecerem índios, senão apenas de integrar a comunidade nacional dos países em que vivessem. Para ilustrar o exposto, sem muita dificuldade, basta verificar os dois primeiros dispositivos da Convenção n.º 107, assim redigidos: Artigo 1.º 1. A presente Convenção se aplica: a) aos membros das populações tribais ou semitribais em países independentes, cujas condições sociais e econômicas correspondem a um estágio menos adiantado que o atingido pelos outros setores da comunidade nacional e que sejam regidas, total ou parcialmente, por costumes e tradições que lhes sejam peculiares por uma legislação especial; (...) 2. Para os fins da presente convenção, o termo ‘semitribal’ abrange os grupos e as pessoas que, embora prestes a perderem suas características tribais, não se achem ainda integrados na comunidade nacional. 3. As populações tribais ou semitribais mencionadas nos parágrafos 1.º e 2.º do presente artigo são designadas, nos artigos que se seguem, pela expressão ‘populações interessadas’. Artigo 2.º 1. Competirá principalmente aos governos pôr em prática programas coordenados e sistemáticos com vistas à proteção das populações interessadas e sua integração progressiva na vida dos respectivos países. (...)” [grifo nosso]. Somente anos depois, porém, dada a ruptura dessa visão integracionista e homogeneizadora, pela aceitação do outro como diferente e dotado de simbolismos e manifestações culturais de identidade, bem assim pelas vindicações relativas à promoção e proteção da identidade étnica, cultural, econômica e social desses povos, é que efetivamente ganhou corpo a conquista dos direitos hoje reconhecidos às comunidades indígenas e tradicionais. Nesse sentido, a OIT trabalhou com afinco para revisar a Convenção n.º 107, que acabou, em junho de 1989, sendo integralmente substituída pela Convenção n.º 169 (chamada de “Convenção Sucessória”), em vigor internacional desde 5 de setembro de 1991. A Convenção n.º 169 concretizou as aspirações dos grupos indígenas e comunidades tradicionais de conservarem suas próprias instituições sociais, econômicas, culturais e políticas; de terem respeitados o seu estilo de vida tradicional e organização, diferentemente do restante da população do país. Passou-se, assim, de uma visão meramente integracionista, presente na Convenção n.º 107, para um olhar garantista dos direitos de uma sociedade pluriétnica. O documento ainda inova em instituir o critério da autoidentidade indígena ou tribal para fins de atribuição de direitos, pelo qual cabe à própria comunidade se autoidentificar como “indígena”, não podendo nenhum Estado ou grupo social negar-se a esse reconhecimento. O art. 1.º da Convenção n.º 169 disciplina o âmbito de aplicação do tratado, nos seguintes termos: 1.º A presente convenção aplica-se: a) aos povos tribais em países independentes, cujas condições sociais, culturais e econômicas os distingam de outrossetores da coletividade nacional, e que estejam regidos, total ou parcialmente, por seus próprios costumes ou tradições ou por legislação especial; b) aos povos em países independentes, considerados indígenas pelo fato de descenderem de populações que habitavam o país ou uma região geográfica pertencente ao país na época da conquista ou da colonização ou do estabelecimento das atuais fronteiras estatais e que, seja qual for sua situação jurídica, conservam todas as suas próprias instituições sociais, econômicas, culturais e políticas, ou parte delas. Perceba-se que a Convenção diferenciou duas categorias de povos: os tribais e os indígenas. Os tribais são aqueles cujas condições sociais, culturais e econômicas os diferenciam dos outros setores da coletividade nacional, estando regidos, total ou parcialmente, pelos seus próprios costumes, tradições ou legislação especial. Os indígenas são os originários de populações que habitavam o país ou uma região geográfica a ele pertencente à época da conquista ou da colonização ou do estabelecimento de suas atuais fronteiras e que, independentemente de sua situação jurídica, conservam todas as suas instituições sociais, econômicas, culturais e políticas, ou parte delas. Dentre os direitos garantidos pela Convenção n.º 169, encontram-se os seguintes: direito dos povos indígenas e tribais de gozar plenamente dos direitos humanos e liberdades fundamentais, sem obstáculos ou discriminação (art. 3.º); direito às instituições, bens, culturas e meio ambiente (art. 4.º); reconhecimento e proteção dos valores e práticas sociais, culturais, religiosos e espirituais (art. 5.º, a); respeito à integridade dos seus valores, práticas e instituições (art. 5.º, b); direito de serem previamente consultados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, por meio de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente (art. 6.º, § 1.º, a); direito de escolher suas próprias prioridades no que diz respeito ao processo de desenvolvimento, na medida em que ele afete as suas vidas, crenças, instituições e bem- estar espiritual, bem como as terras que ocupam ou utilizam de alguma forma, e de controlar, na medida do possível, o seu próprio desenvolvimento econômico, social e cultural (art. 7.º, § 1.º); direito de serem considerados seus costumes e seu direito consuetudinário na aplicação da legislação nacional (art. 8.º, § 1.º), entre tantos outros. 3.1Marcos atuais: Convenção sobre a Proteção e a Promoção da Diversidade das Expressões Culturais (2005) e Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (2007) Atualmente, com a evolução do corpus juris protetivo dos direitos da pessoa humana, vários outros direitos indígenas e de comunidades tradicionais vêm sendo perfilhados pelo direito internacional público, notadamente relativos à cultura e ao seu reconhecimento. A principal expoente dessa evolução, no plano onusiano, é a Convenção sobre a Proteção e a Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, adotada pela Unesco (Paris) em 20 de outubro 2005, que reconhece, entre outros, “a importância dos conhecimentos tradicionais como fonte de riqueza material e imaterial, e, em particular, dos sistemas de conhecimento das populações indígenas, e sua contribuição positiva para o desenvolvimento sustentável, assim como a necessidade de assegurar sua adequada proteção e promoção”, para o que também leva em conta “a importância da vitalidade das culturas para todos, incluindo as pessoas que pertencem a minorias e povos indígenas, tal como se manifesta em sua liberdade de criar, difundir e distribuir as suas expressões culturais tradicionais, bem como de ter acesso a elas, de modo a favorecer o seu próprio desenvolvimento”. O marco mais recente, porém, no trato das questões indígenas em nível global vem representado pela Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, de 13 de setembro de 2007, aprovada com 143 votos a favor, dentre os quais o Brasil. Seu texto inicia dizendo que os “indígenas têm direito, como povos ou como pessoas, ao desfrute pleno de todos os direitos humanos e as liberdades fundamentais reconhecidas pela Carta das Nações Unidas, a Declaração Universal de Direitos Humanos e a normativa internacional dos direitos humanos” (art. 1.º). A Declaração afirma também serem os povos e as pessoas indígenas livres e iguais a todos os demais povos e pessoas, garantindo-lhes o “direito a não serem objeto de nenhuma discriminação no exercício de seus direitos que esteja fundada, em particular, em sua origem ou identidade indígena (art. 2.º). Garante-se também aos povos indígenas o direito à livre determinação (art. 3.º), à autonomia e autogoverno nas questões relacionadas com seus assuntos internos e locais (art. 4.º), à conservação de suas próprias instituições políticas, jurídicas, econômicas, sociais e culturais (art. 5.º), à nacionalidade (art. 6.º), à vida, à integridade física e mental, à liberdade e à segurança (art. 7.º), a não sofrer assimilação forçada ou a destruição de sua cultura (art. 8.º), a não ser desprezados pela força de suas terras ou territórios (art. 10), a praticar e revitalizar suas tradições e costumes culturais (art. 11), a manifestar, praticar, desenvolver e ensinar suas tradições, costumes e cerimônias espirituais e religiosas (art. 12), entre outros. 3.2. Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas (2016) Após mais de três lustros de negociações, a OEA finalmente aprovou, em 15 de junho de 2016, em Santo Domingo (República Dominicana), a Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas. Trata-se do primeiro instrumento, no âmbito da OEA, a reconhecer os direitos dos povos indígenas, oferecendo proteção específica para esse grupo de pessoas na América do Norte, América Central, América do Sul e no Caribe. Os direitos consagrados no texto atingem, portanto, os mais de 50 milhões de indígenas que atualmente vivem no Continente Americano, muitos deles habitantes de países cujos sistemas jurídicos desprezam em parte a sua cultura, os seus costumes e suas tradições. Composta de 41 artigos, a Declaração da OEA representa novo marco à proteção dos direitos dos povos indígenas no Continente Americano, uma vez que passa a orientar as atividades dos Estados e dos órgãos de monitoramento do sistema interamericano de direitos humanos (em especial da Comissão e Corte Interamericana de Direitos Humanos) no que tange aos direitos desse grupo de pessoas. O critério adotado pelo instrumento para determinar os sujeitos de direito protegidos é o da autoidentificação, pelo qual cabe à própria pessoa ou comunidade se autoidentificar como “indígena”. Como decorrência, a Declaração exige dos Estados que respeitem o direito à autoidentificação como indígena de forma individual ou coletiva, conforme as práticas e instituições próprias de cada povo indígena (Artigo I). A Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas é, em suma, uma conquista histórica dos povos indígenas das Américas, cujo resultado final só foi possível pela intensa participação das comunidades indígenas de todo o Continente nas várias etapas de sua negociação. 4.DIREITOS HUMANOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA Uma grande preocupação do direito internacional nos últimos anos tem sido zelar pelos direitos das pessoas com deficiência, as quais, constantemente, têm sofrido todo tipo de cerceamento de direitos humanos, como violação à liberdade de ir e vir (prejudicada pela falta de acessibilidade a locais públicos e privados) e carência de plenas condições de emprego, entre tantos outros. Dentre as chamadas minorias, o grupo das pessoas com deficiência se destaca por ser considerado “a maior minoria do mundo”. Em2012, os resultados da Pesquisa Mundial de Saúde e da Carga Global de Doenças concluíram que cerca de 15,3% da população mundial (cerca de 978 milhões de pessoas dos estimados 6,4 bilhões de habitantes em 2004) possuía algum tipo de deficiência grave ou moderada, segundo dados do Relatório Mundial sobre a Deficiência, publicado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 2012. Cabe aqui esclarecer que a maioria das normas internacionais em vigor faz referência às “pessoas com deficiência”. Essa, portanto, a terminologia mais precisa empregada pelo direito internacional público. Trata-se de conceito, ademais, que difere em parte do de pessoa com necessidades especiais. Se é certo que toda pessoa com deficiência tem necessidades especiais, não é menos verdade que nem todas as pessoas com necessidades especiais têm obrigatoriamente uma deficiência. O que não se deve utilizar é a expressão “portadora de deficiência” (o que se usa é “pessoa com deficiência”), eis que a condição de ter uma deficiência faz parte da pessoa e esta pessoa não porta sua deficiência (ela tem uma deficiência). Tanto o verbo “portar” como o substantivo ou o adjetivo “portadora” não se aplicam a uma condição inata ou adquirida que faz parte da pessoa, porque não se pode “abandonar” ou “deixar de lado” uma deficiência. Destaque-se, porém, que a Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência (2001) utiliza, desde o seu título, como se percebe, a expressão “portadora de deficiência”, motivo pelo qual, quando se referir a essa Convenção, se utilizará a terminologia por ela empregada (v. infra). No plano do direito brasileiro, da mesma forma, a Constituição Federal de 1988 utiliza, em vários dispositivos, a expressão “pessoa portadora de deficiência”, o que não está atualmente correto. O que são, afinal, as pessoas com deficiência sob a ótica do direito internacional? A Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, que entrou em vigor em 3 de maio de 2008, conceitua o termo logo em seu art. 1.º, da seguinte maneira: Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas. Feitas essas observações preliminares, torna-se possível verificar quais os instrumentos internacionais de proteção das pessoas com deficiência, em especial a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (2007) e o Tratado de Marraqueche para Facilitar o Acesso a Obras Publicadas às Pessoas Cegas, com Deficiência Visual ou com outras Dificuldades para Ter Acesso ao Texto Impresso (2013). Em 2001, foi aprovada a Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência. Por meio desse tratado os Estados-partes se obrigam a tomar as medidas de caráter legislativo, social, educacional, trabalhista, ou de qualquer outra natureza, que sejam necessárias para eliminar a discriminação contra as pessoas com deficiência e proporcionar a sua plena integração à sociedade, devendo, entre outras ações: a) eliminar progressivamente a discriminação e promover a integração na prestação ou fornecimento de bens, serviços, instalações, programas e atividades, tais como o emprego, o transporte, as comunicações, a habitação, o lazer, a educação, o esporte, o acesso à justiça e aos serviços policiais e as atividades políticas e de administração; b) zelar para que os edifícios, os veículos e as instalações que venham a ser construídos ou fabricados em seus respectivos territórios facilitem o transporte, a comunicação e o acesso das pessoas com deficiência; c) eliminar, na medida do possível, os obstáculos arquitetônicos, de transporte e comunicações que existam, com a finalidade de facilitar o acesso e uso por parte das pessoas com deficiência; e d) tomar medidas para assegurar que as pessoas encarregadas de aplicar esta Convenção e a legislação interna sobre esta matéria estejam capacitadas a fazê-lo (art. III, § 1.º). Os princípios gerais da Convenção vêm previstos no art. 3.º, que são: a) o respeito pela dignidade inerente, a autonomia individual, inclusive a liberdade de fazer as próprias escolhas, e a independência das pessoas; b) a não discriminação; c) a plena e efetiva participação e inclusão na sociedade; d) o respeito pela diferença e pela aceitação das pessoas com deficiência como parte da diversidade humana e da humanidade; e) a igualdade de oportunidades; f) a acessibilidade; g) a igualdade entre o homem e a mulher; e h) o respeito pelo desenvolvimento das capacidades das crianças com deficiência e pelo direito das crianças com deficiência de preservar sua identidade. Outros instrumentos regionais também foram adotados, a exemplo da Declaração de Washington de 1999, da Declaração de Madri de 2002 e da Declaração de Sapporo 2002, denotando, assim, a conscientização da sociedade internacional sobre a importância do tema. No plano global, os principais instrumentos de hard law relativos à proteção das pessoas com deficiência são a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (2007) e o Tratado de Marraqueche para Facilitar o Acesso a Obras Publicadas às Pessoas Cegas, com Deficiência Visual ou com outras Dificuldades para Ter Acesso ao Texto Impresso (2013), que analisaremos nos tópicos seguintes. 5.DIREITOS HUMANOS DAS PESSOAS LÉSBICAS, GAYS, BISSEXUAIS, TRANSEXUAIS, TRAVESTIS, TRANSGÊNEROS, QUEER, INTERSEXUAIS, ASSEXUAIS E + (COMUNIDADE LGBTQIA+) A discriminação e a violência perpetrada contra a comunidade lésbica, gay, bissexual, transexual, de travestis, transgêneros, queer, intersexuais, assexuais e + (comunidade LGBTQIA+) vêm sendo sentida há vários anos até os dias atuais, levando à preocupação crescente da sociedade internacional e dos organismos internacionais de proteção dos direitos humanos. Nesse sentido, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos tem constantemente reiterado “sua preocupação com a situação de violência e discriminação contra pessoas LGBT[QIA+], ou que são percebidas como tais na América, instando os Estados-membros da OEA a adotarem medidas para prevenir, investigar e punir tais atos, e também para eliminar as causas subjacentes dessa violência e discriminação, e a que coletem dados sobre esse tipo de violência”, especialmente por constatar que “um grande número de casos por ela documentados evidencia requintes de crueldade e níveis elevados de violência com base na percepção da orientação sexual e da identidade/expressão de gênero”. Do mesmo modo, a Comissão tem expressado sua preocupação com a violência e discriminação sofridas por jovens LGBTQIA+ em nosso Continente, os quais constantemente enfrentam rejeição por suas famílias e comunidades que reprovam a sua orientação sexual e identidade de gênero. Para a Comissão, as “[a]titudes que tem a sociedade contra pessoas LGBT e intersex não podem ser usadas como justificativa para promover leis e políticas discriminatórias, perpetuar tratamentos discriminatórios ou para não investigar, processar e julgar os responsáveis por atos de violência contra crianças e jovens LGBT[QIA+] e intersex”, devendo os Estados “tomar medidas para superar estes preconceitos e estereótipos, através de iniciativas de combate à discriminação nas escolas e por meio de campanhas públicas de educação”. A sigla LGBTQIA+ – atualmente utilizada para a inclusão de pessoas com diversas orientações sexuais e identidades de gênero – tem o seguinte significado (as três primeiras letras correspondem à orientação sexual, e as demais à identidade de gênero da pessoa): L – Lésbicas: mulheres que se atraem afetivaou sexualmente pelo mesmo gênero. G – Gays: homens que se atraem afetiva ou sexualmente pelo mesmo gênero. B – Bissexuais: homens e mulheres que se atraem afetiva ou sexualmente pelos gêneros masculino e feminino. Se a atração afetiva ou sexual for independente da binariedade homem- mulher (cis ou trans) ou da identidade de gênero, as pessoas assim reconhecidas serão pansexuais (o termo é um dos componentes do sinal “+” da sigla LGBTQIA+). T – Transgêneros e Transexuais (ou simplesmente Trans): transgênero é um termo genérico que abrange todas as pessoas não enquadráveis na norma binária de gênero. Diz respeito, portanto, às pessoas que não são cisgênero (aquelas cuja identidade de gênero é idêntica à atribuída quando do seu nascimento). Do conceito fazem parte, v.g., tanto as pessoas transexuais como as travestis. As pessoas transexuais compõem uma única categoria, cuja característica é não se identificarem com o gênero (baseado nos órgãos sexuais) atribuído ao nascer. O conceito é ligado à identidade de gênero e não à orientação afetiva ou sexual da pessoa. A travesti, por sua vez, é uma categoria distinta diretamente associada ao gênero feminino. Q – Queer: palavra de origem inglesa (em português “excêntrico”, “estranho”, de início usada pejorativamente) que designa as pessoas que transitam entre os gêneros masculino, feminino ou outro(s) gênero(s) sem relação de binariedade (homem-mulher, cis ou trans) e não são cisgênero. A expressão queer é também utilizada para pessoas que não concordam ou não sabem definir o seu gênero/orientação sexual. I – Intersexuais: pessoas cujas características sexuais (órgãos sexuais e padrões cromossômicos) variam e não se amoldam à forma binária (antigamente eram chamadas hermafroditas). A – Assexuais: pessoas que não têm qualquer atração sexual por outras pessoas, independentemente do gênero, podendo, no entanto, manter uma relação emocional com um parceiro ou parceira (sem contato sexual). + – Sinal +: nesta sigla incluem-se as demais orientações sexuais e identidades de gênero existentes, com suas múltiplas possibilidades. Além de uma questão cultural, ainda presente em vários contextos, de perseguição e violação de direitos de todo gênero à comunidade LGBTQIA+, há ainda questões políticas que fomentam a violência e a perseguição a esses grupos, em flagrante desrespeito aos princípios e normas do contemporâneo direito internacional público. De fato, em pleno século XXI ainda existem países, como Uganda, que promulgam leis que preveem pena de prisão perpétua para os que mantiverem relação sexual com pessoa do mesmo sexo, ainda que a prática seja entre adultos e consentida, bem como para os que “promoverem a homossexualidade” pela disseminação de material pornográfico ou pelo financiamento de grupos de direitos homossexuais, punindo ainda a “tentativa de homossexualidade”, como tocar outra pessoa com a intenção de “cometer ato homossexual”. O que é mais espantoso é que não só Uganda, senão outros 75 países criminalizam – pelas chamadas “leis de sodomia” – indivíduos em razão de sua orientação sexual ou identidade de gênero. No Continente americano, por sua vez, há leis que, apesar de não criminalizarem a conduta homossexual, discriminam as pessoas em razão da orientação sexual, seja por proibirem a entrada de homossexuais no país (v.g., Belize e Trinidad e Tobago) ou pelo fato de estabelecerem idades distintas de consentimento para as relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo e de sexo oposto (v.g., Bahamas, Canadá e Paraguai). Os sistemas internacionais (global e regionais) de proteção têm, assim, estabelecido parâmetros para os Estados no que tange ao trato com a comunidade LGBTQIA+, em razão de condutas de países como os acima citados, que insistem em manter vigentes normativas desumanizantes à orientação ou à identidade sexuais, abrindo, com isso, espaço a todo tipo de violência e discriminação extraoficial a essas pessoas (v.g., no ambiente de trabalho, no âmbito escolar, nos serviços de saúde, entre tantos outros). Por fim, merecem destaque os chamados Princípios de Yogyakarta sobre a aplicação da legislação internacional de direitos humanos relativa à orientação sexual e identidade de gênero, elaborados no ano de 2007, na Indonésia, os quais constituem um evoluído mosaico de 29 princípios que sistematizam os objetivos que os Estados devem perseguir para proteger os direitos das pessoas pertencentes à comunidade LGBTQIA+. Tais Princípios indicam aos Estados a maneira pela qual devem aplicar as normas internacionais de proteção dos direitos humanos às questões de orientação sexual e identidade de gênero, compreendendo que ambas são essenciais à dignidade de cada ser humano, e que, por isso, não podem ser objeto de qualquer discriminação. Princípio 1. Direito ao Gozo Universal dos Direitos Humanos Princípio 2. Direito à Igualdade e à Não Discriminação Princípio 3. Direito ao Reconhecimento Perante a Lei Princípio 4. Direito à Vida Princípio 5. Direito à Segurança Pessoal Princípio 6. Direito à Privacidade Princípio 7. Direito de Não Sofrer Privação Arbitrária da Liberdade Princípio 8. Direito a um Julgamento Justo Princípio 9. Direito a Tratamento Humano durante a Detenção Princípio 10. Direito de Não Sofrer Tortura e Tratamento ou Castigo Cruel, Desumano e Degradante Princípio 11. Direito à Proteção contra todas as Formas de Exploração, Venda ou Tráfico de Seres Humanos Princípio 12. Direito ao Trabalho Princípio 13. Direito à Seguridade Social e outras Medidas de Proteção Social Princípio 14. Direito a um Padrão de Vida Adequado Princípio 15. Direito à Habitação Adequada Princípio 16. Direito à Educação Princípio 17. Direito ao Padrão mais Alto Alcançável de Saúde Princípio 18. Proteção contra Abusos Médicos Princípio 19. Direito à Liberdade de Opinião e Expressão Princípio 20. Direito à Liberdade de Reunião e Associação Pacíficas Princípio 21. Direito à Liberdade de Pensamento, Consciência e Religião Princípio 22. Direito à Liberdade de Ir e Vir Princípio 23. Direito de Buscar Asilo Princípio 24. Direito de Constituir uma Família Princípio 25. Direito de Participar da Vida Pública Princípio 26. Direito de Participar da Vida Cultural Princípio 27. Direito de Promover os Direitos Humanos Princípio 28. Direito a Recursos Jurídicos e Medidas Corretivas Eficazes Princípio 29. Responsabilização (“Accountability”) Os Princípios de Yogyakarta devem ser levados em consideração pelos Estados na condição de guia interpretativo para a aplicação das normas internacionais (hard law) assumidas pelo governo relativas à proteção dos direitos da comunidade LGBTQIA+.