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Título original: Paul for Everyone: Romans Part 1, Paul for Everyone: Romans Part 2,
Paul for Everyone: 1 Corinthians, Paul for Everyone: 2 Corinthians, Paul for Everyone:
Galatians and Thessalonians, Paul for Everyone: The Prison Letters, Paul for Everyone:
The Pastoral Letters
Copyright © 2004 por Nicolas Thomas Wright
Edição original por Society for Promoting Christian Knowledge (SPCK).
Todos os direitos reservados.
Copyright da tradução © Vida Melhor Editora S.A., 2020.
As citações bíblicas são traduzidas da versão do próprio autor The Kingdom New
Testament: A Contemporary Translation [Novo Testamento do Reino: uma tradução
contemporânea] copyright © 2011 por Nicholas Thomas Wright, a menos que seja
especificada outra versão da Bíblia Sagrada.
Os pontos de vista desta obra são de responsabilidade de seus autores e colaboradores
diretos, não refletindo necessariamente a posição da Thomas Nelson Brasil, da
HarperCollins Christian Publishing ou de sua equipe editorial.
Publisher Samuel Coto
Editores André Lodos Tangerino e Bruna Gomes
Tradutor Pedro J. M. Bianco
Copidesque Shirley Lima
Revisão Gabriel Braz
Diagramação Sonia Peticov
Capa Rafael Brum
Produção do e-book Ranna Studio
CIP–BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
W922p
Wright, N. T.
Paulo para todos: Romanos 1-8, parte 1 / N. T. Wright; tradução Pedro J. M.
Bianco. — Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2020.
240 p.; 12 x 18 cm.
Tradução de Paul for Everyone: Romans Part 1, Paul for Everyone: Romans Part
2, Paul for Everyone: 1 Corinthians, Paul for Everyone: 2 Corinthians, Paul for
Everyone: Galatians and Thessalonians, Paul for Everyone: The Prison Letters,
Paul for Everyone: The Pastoral Letters
ISBN 978-65-5689-487-4
1. Bíblia — Novo Testamento. 2. Paulo de Tarso. 3. Cartas. 4. Vida Cristã. 5.
Teologia. I. Bianco, Pedro, J. M. II. Título.
CDD: 227.8
Índice para catálogo sistemático:
1. Bíblia: Novo Testamento
2. Paulo de Tarso: cartas
3. Vida cristã: teologia
Aline Graziele Benitez – Bibliotecária – CRB-1/3129
Thomas Nelson Brasil é uma marca licenciada à Vida Melhor Editora LTDA.
Todos os direitos reservados. Vida Melhor Editora LTDA.
Rua da Quitanda, 86, sala 218 — Centro
Rio de Janeiro, RJ — CEP 20091-005
Tel.: (21) 3175-1030
www.thomasnelson.com.br
http://www.thomasnelson.com.br/
 SUMÁRIO 
������� 1-8 | ����� 1
Introdução
Mapa
ROMANOS 1:1-7 • Boas-novas sobre o novo Rei
ROMANOS 1:8-13 • Paulo anseia ver os cristãos romanos
ROMANOS 1:14-17 • Boas-novas, salvação e a justiça de Deus
ROMANOS 1:18-23 • Os seres humanos rejeitam Deus e abraçam a
corrupção
ROMANOS 1:24-27 • Desejos impuros, corpos desonrados
ROMANOS 1:28-32 • Mente obscurecida, comportamento
obscurecido
ROMANOS 2:1-11 • O julgamento próximo de Deus será imparcial, o
mesmo para todos
ROMANOS 2:12-16 • Como funcionará o julgamento imparcial de
Deus
ROMANOS 2:17-24 • A reivindicação dos judeus — e seus problemas
ROMANOS 2:25-29 • A marca distintiva, o nome e o significado
ROMANOS 3:1-8 • A fidelidade determinada de Deus
ROMANOS 3:9-20 • Tanto os judeus como os gentios são culpados de
pecado
ROMANOS 3:21-24 • A revelação da justiça da aliança de Deus
ROMANOS 3:25-26 • A morte de Jesus revela a justiça da aliança de
Deus
ROMANOS 3:27-31 • O Deus tanto de judeus como de gentios
ROMANOS 4:1-8 • A aliança de Deus com Abraão
ROMANOS 4:9-12 • Abraão, o pai tanto de circuncisos como de
incircuncisos
ROMANOS 4:13-17 • Abraão é o pai de todos os que creem
ROMANOS 4:18-25 • A fé que Abraão possuía — e a nossa
ROMANOS 5:1-5 • Paz e esperança
ROMANOS 5:6-11 • A morte de Jesus revela o amor de Deus e
garante a salvação final
ROMANOS 5:12-17 • O grande quadro em uma só pincelada: Adão e
o Messias
ROMANOS 5:18-21 • O triunfante reino da graça
ROMANOS 6:1-5 • Deixando o estado de pecado mediante o batismo
ROMANOS 6:6-11 • Morto para o pecado, vivo para Deus
ROMANOS 6:12-14 • O chamado para uma vida santa
ROMANOS 6:15-19 • Os dois tipos de escravidão
ROMANOS 6:20-23 • Aonde levam as duas estradas
ROMANOS 7:1-6 • Morrendo para a lei
ROMANOS 7:7-12 • Quando a lei chegou: o Sinai apontando para a
Queda
ROMANOS 7:13-20 • Olhando mais uma vez a vida sob a lei
ROMANOS 7:21-25 • A “lei” dupla e o “eu” miserável
ROMANOS 8:1-4 • A ação de Deus no Messias e no espírito
ROMANOS 8:5-11 • A obra do espírito
ROMANOS 8:12-17 • Filhos de Deus, conduzidos pelo espírito
ROMANOS 8:18-25 • A criação renovada e a esperança paciente
ROMANOS 8:26-30 • Oração, filiação e a soberania de Deus
ROMANOS 8:31-39 • Nada nos separará do amor de Deus
Glossário
������� 9-16 | ����� 2
Introdução
Mapa
ROMANOS 9:1-5 • Os privilégios e a tragédia de Israel
ROMANOS 9:6-13 • As duas famílias de Abraão
ROMANOS 9:14-24 • O propósito e a justiça de Deus
ROMANOS 9:25-29 • Deus chama um remanescente
ROMANOS 9:30—10:4 • Israel, as nações e o Messias
ROMANOS 10:5-13 • O cumprimento da aliança
ROMANOS 10:14-21 • O chamado para o mundo e o fracasso de
Israel
ROMANOS 11:1-6 • O remanescente da graça
ROMANOS 11:7-15 • Um tropeço com propósito
ROMANOS 11:16-24 • As duas oliveiras
ROMANOS 11:25-32 • Misericórdia sobre todos
ROMANOS 11:33-36 • A Deus, seja a glória
ROMANOS 12:1-5 • O sacrifício vivo
ROMANOS 12:6-13 • Vivendo juntos no Messias
ROMANOS 12:14-21 • Vivendo lado a lado com o mundo
ROMANOS 13:1-7 • O propósito divino e o papel limitado dos
governantes
ROMANOS 13:8-14 • O amor, a lei e o dia vindouro
ROMANOS 14:1-6 • O fraco e o forte
ROMANOS 14:7-12 • O juízo final é o único que importa
ROMANOS 14:13-23 • O caminho do amor e da paz
ROMANOS 15:1-6 • Unidade: moldada pelo Messias, encorajada
pelas Escrituras
ROMANOS 15:7-13 • Louvor conjunto sob o domínio universal do
Messias
ROMANOS 15:14-24 • Chegando finalmente a Roma
ROMANOS 15:25-33 • Ajuda para Jerusalém
ROMANOS 16:1-16 • Recomendando Febe, saudando os amigos
ROMANOS 16:17-23 • Advertências e saudações
ROMANOS 16:25-27 • Bênção final
Glossário
1���������
Introdução
Mapa
1CORÍNTIOS 1:1-9 • Agradecido pela graça de Deus
1CORÍNTIOS 1:10-17 • Fique atento às divisões!
1CORÍNTIOS 1:18-25 • A tolice de Deus
1CORÍNTIOS 1:26-31 • Vangloriando-se no Senhor
1CORÍNTIOS 2:1-5 • A poderosa mensagem da cruz
1CORÍNTIOS 2:6-13 • A estranha sabedoria de Deus
1CORÍNTIOS 2:14—3:4 • Espiritual ou meramente humano?
1CORÍNTIOS 3:5-11 • A fazenda de Deus, o edifício de Deus
1CORÍNTIOS 3:12-17 • O dia vindouro, o fogo vindouro
1CORÍNTIOS 3:18-23 • Tudo lhe pertence
1CORÍNTIOS 4:1-5 • Julgamento futuro, e não agora
1CORÍNTIOS 4:6-13 • Apóstolos à mostra
1CORÍNTIOS 4:14-21 • Cheio de si ou poderoso?
1CORÍNTIOS 5:1-5 • Escândalo e julgamento
1CORÍNTIOS 5:6-13 • Livre-se do “fermento”!
1CORÍNTIOS 6:1-8 • Processos na igreja?
1CORÍNTIOS 6:9-11 • Herdando ou não o Reino de Deus
1CORÍNTIOS 6:12-20 • Para que serve o corpo?
1CORÍNTIOS 7:1-7 • A vida no casamento
1CORÍNTIOS 7:8-16 • Casamento e divórcio
1CORÍNTIOS 7:17-24 • Permaneça do jeito que você foi chamado
1CORÍNTIOS 7:25-31 • Permanecendo solteiro
1CORÍNTIOS 7:32-40 • Lealdades divididas
1CORÍNTIOS 8:1-6 • Carne oferecida a ídolos
1CORÍNTIOS 8:7-13 • Respeitando as consciências fracas
1CORÍNTIOS 9:1-12a • Os “direitos” de um apóstolo
1CORÍNTIOS 9:12b-18 • Abrindo mão de direitos pelo evangelho
1CORÍNTIOS 9:19-23 • A liberdade do apóstolo de ser escravo de
todos
1CORÍNTIOS 9:24-27 • O atleta cristão
1CORÍNTIOS 10:1-5 • O primeiro Êxodo
1CORÍNTIOS 10:6-13 • Não volte a cometer o mesmo erro
1CORÍNTIOS 10:14-22 • A Mesa do Senhor e a mesa dos demônios
1CORÍNTIOS 10:23-33—11:1 • Faça tudo para a glória de Deus
1CORÍNTIOS 11:2-16 • Homem e mulher adorando na igreja
1CORÍNTIOS 11:17-22 • Ricos e pobres na Mesa do Senhor
1CORÍNTIOS 11:23-34 • Reconhecendo o corpo
1CORÍNTIOS 12:1-11 • O mesmo espírito trabalhando
1CORÍNTIOS 12:12-20 • Muitos membros, um corpo
1CORÍNTIOS 12.21-26 • As responsabilidades de cada membro
1CORÍNTIOS 12:27-31a • Dons e ministérios
1CORÍNTIOSé o resultado de Deus
permitir que as pessoas sigam seus impulsos sexuais desenfreados aonde
quer que eles as conduzam — uma vez que perderam a conexão com a
verdade de Deus e, assim como Adão e Eva no jardim, deram ouvidos à
voz da criatura, e não à voz de Deus (aparentemente, é isso que ele tem
em mente no v. 25). Quando, mais tarde, ele descreve a fé que Abraão
tinha e seus resultados (4:18-22), está mostrando, de forma deliberada,
como os problemas do capítulo 1 foram desfeitos, com os seres humanos
depositando sua confiança em Deus e voltando a dar glória a ele.
Somente quando conseguimos enxergar esse contexto mais amplo é que
podemos vislumbrar os profundos pontos subjacentes que Paulo
levanta. Somente assim, é possível evitar uma leitura superficial desse
texto, o que, infelizmente, tem feito do debate de um tema já tão
complexo algo muito mais difícil do que já é.
Paulo repete: “Deus os entregou” (v. 24 e 26, e mais uma vez no v.
28). Quando Deus dá responsabilidade aos seres humanos, ele está
falando sério. As escolhas que fazemos, não apenas individualmente,
mas também como espécie, são escolhas cujas consequências Deus, para
nosso total espanto, permite-nos explorar. Ele nos alerta, dá-nos
oportunidades de nos arrepender e de mudar o curso. Entretanto, se
escolhermos a idolatria, poderemos esperar que nossa humanidade,
pouco a pouco, venha a se desintegrar. Quando você adora o Deus em
cuja imagem foi criado, refletirá essa imagem de forma cada vez mais
brilhante e se tornará mais plena e verdadeiramente humano. Quando
você (e, por você, quero dizer a raça humana como um todo, e não
apenas os indivíduos) adora qualquer outra coisa que não o Deus vivo,
algo que seja em si mesmo outro mero objeto criado e, dessa forma,
sujeito à decomposição e à morte, reduz a imagem que carrega em si, sua
humanidade essencial.
Essa, obviamente, não é a palavra final sobre o tema da
homossexualidade. Paulo escreveu apenas dois versículos a esse respeito
até aqui, o que dificilmente seria o suficiente para deduzirmos algo mais
de qualquer posição mais completa que ele possa ter declarado. Mas,
além da polêmica e da retórica que sempre giram em torno desse tema,
deparamos, aqui e em outras partes do Novo Testamento, não com um
conjunto arbitrário de regras, mas com uma teologia profunda sobre o
que significa ser genuinamente humano. E também com uma
advertência a respeito da tendência aparentemente infinita dos seres
humanos ao autoengano.
ROMANOS 1:28-32
MENTE OBSCURECIDA, COMPORTAMENTO OBSCURECIDO
28Além disso, como não consideram apropriado prosseguir com o conhecimento de
Deus, Deus os entregou a uma forma de pensar imprópria, de maneira que se
comportam de forma inadequada. 29Eles se encheram de toda a sorte de injustiça,
depravação, ganância e maldade; ficaram repletos de inveja, homicídios, inimizades,
enganos e malícia. Tornaram-se bisbilhoteiros, 30caluniadores, inimigos de Deus,
arrogantes, presunçosos, orgulhosos, inventores de males, desobedientes aos pais,
31insensatos, infiéis, insensíveis, pessoas sem compaixão. 32Sabem que Deus
decretou de forma justa que as pessoas que praticam coisas assim merecem a morte.
Entretanto, não só fazem essas coisas, como também aprovam aqueles que as
praticam.
Há alguns anos, estive em uma distribuição de prêmios em uma escola.
O diretor fez um discurso interessante, durante o qual leu, sem nos
revelar quem era o autor do texto ou a data de sua composição, uma
longa descrição sobre como a geração mais jovem estava se extraviando.
Eles não respeitavam os mais velhos, demonstravam não se importar
com a vida cultural e suas tradições, só se preocupavam com o que lhes
desse prazer, eram grosseiros, relaxados, ignorantes e preguiçosos. No
fim, ele nos falou que o texto fora escrito por alguém no século 5 a.C.,
em Atenas.
É estranho, embora reconfortante, saber que nossa percepção do
mundo torna-se cada vez pior, provavelmente como resultado de nosso
conhecimento crescente, e não da depravação crescente dos outros.
Através dos registros históricos da humanidade, observa-se que o
mundo já esteve coberto de lágrimas e também de risos, de insensatez e
maldade humana, mas também de sabedoria e bondade. E devo dizer
que, ao traduzir a lista das falhas humanas contidas nessa passagem,
experimentei uma estranha sensação de familiaridade. Conheço pessoas
assim, pensei. Já li a respeito delas nos jornais e, algumas vezes, eu as
encontrei na rua. Aliás, acabei de receber um e-mail de alguém assim
agora mesmo. Contudo, isso não é o mais preocupante. O mais
espantoso é que, algumas vezes, encontro uma pessoa assim não lá fora
nas ruas, mas quando me olho no espelho. A linha entre o bem e o mal
passa não entre “nós” e “eles”, mas bem no meio de cada um de nós. (Se
não estamos bem certos a respeito disso, Paulo nos lembrará no início
do próximo capítulo.)
Os três versículos intermediários (v. 29,30,31) nos fornecem os
detalhes, e alguns estão, literalmente, encharcados de sangue.
Dificilmente, teríamos a necessidade de explicar a maior parte, pois eles
falam por si mesmos. No entanto, para ir realmente a fundo,
experimente perguntar a si mesmo: como você se sentiria se vivesse em
um povoado no qual todas as pessoas fossem assim? Infeliz, acredito.
Não desejaria sair de casa. Um comportamento desse tipo é
inerentemente destrutivo, tanto para si mesmo (talvez conheçamos
pessoas que fizeram de uma dessas características sua especialidade e se
tornaram como conchas vazias, passando a conter tão somente fofocas,
presunção ou coisas do gênero) como para as vidas nos quais toca. Não
há alegria em estar com pessoas desse tipo. Não existe a menor
possibilidade de haver uma comunidade genuinamente humana. Certa
vez, C. S. Lewis fez uma descrição do inferno como um lugar no qual as
pessoas se moviam cada vez para mais longe umas das outras. Leia essa
lista, imagine as pessoas incorporando essas características e mais nada
e, então, saberá o porquê dessa sua descrição.
No entanto, as coisas realmente surpreendentes sobre esse parágrafo
pequeno e terrível estão no início e no fim. Mais uma vez, Paulo afirma
que “Deus os entregou”. É assim que se parece a vida humana quando
Deus diz: “Então, está bem, faça do seu próprio jeito.” O que acontece,
então, é que o pensamento do ser humano, e não apenas seu
comportamento, começa a se desintegrar por completo. “Deus os
entregou”, declara Paulo, “a uma forma de pensar imprópria” — o que
corresponde ao fato de que eles “não consideram apropriado” prosseguir
com o verdadeiro conhecimento de Deus. Algumas vezes, ainda somos
inclinados a pensar que o mau comportamento advém de uma vitória do
corpo sobre a mente, mas Paulo sabe que não é bem assim. O mal é o
que você obtém quando a mente está distorcida, fora de sintonia, e o
corpo é simplesmente levado a reboque. Por isso o último versículo do
capítulo é tão deprimente. Algumas vezes, as pessoas o veem como
desalentador: “(...) não só fazem essas coisas, como também aprovam
aqueles que as praticam.” Certamente pensamos que o verdadeiro mal
consiste em cometer esses atos, e não em transmitir comentários morais
desse nível.
Mas, se pensarmos assim, estaremos errados. Imagine que você
esteja visitando uma prisão e se encontre com dois homens que
cometeram homicídio. O primeiro está arrependido. “Sei que estava
errado o tempo todo”, diz ele, “mas estava tão irado que, mesmo assim,
fiz isso. Agora tenho de conviver com o fato de saber que cometi algo
muito perverso”.
“Você não passa de um fraco”, diz o segundo. “Vivemos num velho
mundo cruel. Quem se importa com o que é certo ou errado? Eu fiz o
que era mais sensato ao matar aquele velho estúpido. Ele não valia o
espaço que ocupava. O mundo ficará melhor sem ele. O juiz deveria ter-
me dado uma medalha, e não me trancado aqui.”
Em qual dos dois mundos você preferiria viver? Não seria realmente
muito pior viver num mundo em que o mal é louvado, e o bem,
enxovalhado, do que num mundo no qual, embora as pessoas pratiquem
o mal, reconhecemque agiram errado?
Tudo isso aponta para esta declaração crítica: eles conhecem os
decretos de Deus, no sentido de que aqueles que praticam essas coisas
são, literalmente, “dignos de morte”. Não entenda mal. As pessoas
supõem que as leis de Deus são arbitrárias. Imaginam que Deus (se tal
ser existe, poderiam acrescentar) inventou um conjunto de regras para
se divertir e que, então, ele aprecia a ideia de punir as pessoas caso não
as cumpram. O maior desse time foi o imperador Calígula, que
costumava ter suas novas leis escritas em letras pequenas e fixadas tão
alto na parede que ninguém podia vê-las. Em seguida, ele punia as
pessoas por não obedecer a essas leis.
Entretanto, imaginar que Deus e suas leis sejam, ainda que
remotamente, desse modo já é, em si, parte do pensamento distorcido
de que a maior parte do mundo é culpada. Os “decretos” de Deus não
são absolutamente dessa espécie. Eles foram gerados na própria
tessitura da criação. O mau comportamento é inerentemente
destrutivo, apontando, como uma placa de sinalização, para a morte.
Isso é óbvio no caso do assassinato e de outros tipos de violência; mas
deveria ser óbvio também no caso de fofoca e calúnia, situações em que
a reputação e a vida das pessoas são partidas aos pedaços — na maior
parte das vezes, sem chance de reparação. Na verdade, as pessoas
arrogantes e presunçosas estão se intrometendo no espaço alheio, como
se os outros não devessem nem existir. E por aí vai. Deus fez o mundo
de tal forma que a bondade, a amabilidade, a generosidade e a
humildade — o amor em suas múltiplas formas — transmitem vida; o
mal, por sua vez, em suas muitas formas, é mortal. O contínuo processo
de corrupção que Paulo relata na expressão repetida “Deus os
entregou”, nos versículos 24, 26 e 28, não é, em si mesmo, a morte
definitiva. A esse respeito, assim como sobre a condenação final do
pecado, ele falará no próximo capítulo. O que vemos em Romanos 1 é a
visão deprimente da morte futura, lançando suas sombras escuras no
presente. Se conseguirmos compreender ao menos parte dessa visão,
vamos querer conhecer ainda mais que tipo de solução Paulo
apresentará, à medida que formos avançando em sua carta.
ROMANOS 2:1-11
O JULGAMENTO PRÓXIMO DE DEUS SERÁ IMPARCIAL, O
MESMO PARA TODOS
1Portanto, vocês são indesculpáveis — qualquer um, seja quem for, que se assente
para julgar! Quando você julga o outro, condena a si mesmo, porque você, que age
como juiz, faz as mesmas coisas. 2O julgamento de Deus, sabemos, recai
verdadeiramente sobre os que fazem essas coisas. 3Contudo, se você julga os que as
praticam e você também as pratica, acha realmente que escapará do julgamento de
Deus?
4Ou você despreza as riquezas da bondade, da tolerância e da paciência de Deus?
Não sabe que a bondade de Deus tem o propósito de levá-lo ao arrependimento?
5Entretanto, por seu coração endurecido, que se recusa a se arrepender, você está
acumulando uma grande quantidade de ira para si mesmo no dia da ira, o dia em
que o justo julgamento de Deus será revelado: 6o Deus que vai “retribuir a todos de
acordo com suas obras”.
7Quando as pessoas fazem o bem pacientemente e, desse modo, prosseguem na
busca por glória, honra e imortalidade, Deus lhes dará a vida da era porvir. 8Mas,
quando agem com fundamento em seus desejos egoístas e não obedecem à verdade,
mas, sim, à injustiça, haverá ira e fúria. 9Haverá aflições e angústias para cada uma
das pessoas que cometem perversidade, primeiro para o judeu e também, de igual
modo, para o grego — 10e haverá glória, honra e paz para todo o que fizer o que é
bom, primeiro para o judeu e também, de igual modo, para o grego. 11Deus, como
você vê, não demonstra imparcialidade.
“Podemos simplesmente lhe dar mais uma chance?”
O jovem rapaz trabalhava na fábrica havia apenas pouco mais de um
mês. Ele tinha um ótimo desempenho, porém havia um problema: seu
temperamento violento, enfurecendo-se de repente por nada ou por
muito pouco, atirando coisas em qualquer um que estivesse ao seu
alcance.
O contramestre conseguiu que se sentasse, olhou-o bem nos olhos e
conversou com ele como um irmão mais velho. Isso não vai resolver
nada, disse a ele. Você precisa aprender a se controlar. Isso é um aviso.
Faça de novo e terei de relatar seu caso à gerência.
Mas ele voltou a agir assim. Vez após vez. E o contramestre, com o
coração pesaroso — pois gostava muito do moço —, dirigiu-se à
gerência. O gerente se zangou por um problema como aquele ter-se
arrastado por semanas a fio sem que fosse comunicado. E estava
inclinado a demitir imediatamente o rapaz. Contudo, o contramestre
interveio a seu favor. Apenas mais uma chance. Vou conversar com ele
mais uma vez. Vamos ver se ele consegue se controlar.
Não durou muito. Três dias depois, alguém, na cantina, esbarrou
acidentalmente no jovem rapaz, derramando um pouco de chá em sua
camisa. Ele ficou furioso e atirou o restante do líquido no rosto do
homem, socando-o com violência no estômago. Foi um momento triste
para o contramestre, porém ele e o gerente não tiveram escolha. O moço
teve sua chance e a usou para tornar as coisas ainda piores, e não para
melhorá-las.
No cerne da visão de Paulo sobre o juízo final de Deus, aqui e mais
adiante na carta, há um retrato de Deus que não difere muito do
contramestre dessa história. Deus é bom — não “bondoso” no sentido
de ser indulgente, um velho tio dorminhoco que não se importa muito
com o que as pessoas se dispõem a fazer —, mas bom no sentido de se
importar de forma genuína e compreensiva, procurando encontrar a
melhor maneira para cada ser humano individualmente. Se não fosse
assim — se, por acaso, Deus fosse basicamente mau, pronto a se lançar
sobre qualquer erro cometido —, já teríamos todos sido eliminados do
planeta há muito tempo. Entretanto, essa não é a realidade. Deus é
paciente. Vez após outra, ele concede às pessoas a chance de se
recompor, de se voltar para ele em arrependimento e confiança, e de
descobrir o rumo de sua vida e redirecioná-la.
Mas e se isso não causar efeito algum? Então, declara Paulo nos
versículos 4 e 5, as pessoas estarão se habilitando ainda mais para o
julgamento que, por fim, se realizará. O jovem na história não tinha
justificativa. Foram-lhe dadas todas as chances. E ele usou o tempo de
reflexão para tornar as coisas ainda piores. É assim que acontece,
algumas vezes, com os seres humanos. Este é o capítulo em que Paulo,
mais do que em qualquer outra parte de seus escritos, descreve sua
perspectiva do dia do juízo final. As pessoas pensam algumas vezes que
a ideia de um julgamento é coisa do “Antigo Testamento”, ao passo que,
no Novo Testamento, encontra-se somente misericórdia. Isso não é nem
mesmo uma caricatura; na verdade, não passa de mera ficção. De fato, o
Novo Testamento destaca o extraordinário — quase inacreditável —
amor de Deus revelado na morte de Jesus. O próprio Paulo celebra isso
mais adiante nessa carta. No entanto, se as pessoas insistirem em
rejeitar o amor de Deus — e parte da lógica do amor é que sempre pode
ser rejeitado —, nada mais resta a fazer. Deus está comprometido,
exatamente por ser o criador bom e amoroso, a pôr o mundo em ordem.
Isso inclui os seres humanos. Aqueles que vivem em condições
degradantes, como as descritas nas passagens anteriores, estão
cortejando o desastre. Aqueles que persistem na perversidade, a
despeito de todas as chances de se arrepender, estão definitivamente
pedindo por isso. Não há alternativa.
Esse quadro de julgamento não permite que ninguém se sinta
superior no que tange ao aspecto moral. Em minha estante, tenho
vários volumes de escritos aproximadamente contemporâneos de Paulo.
Sêneca é um bom exemplo. Ele refletiu com muita profundidade sobre
questões morais e filosóficas, e se considerava distante do que entendia
como imoralidade comum. Todavia, seus próprios colegas o flagraram
algumas vezes quebrando as regras que ele mesmo estabelecia para os
outros. Então, ele e outros filósofos do mundo clássico refletiram, um
tanto intrigados, sobre esse problema:como é possível alguém saber o
que é o certo a ser feito e, ainda assim, fracassar?
A presente passagem tem início com Paulo expondo exatamente
essa falha na armadura do soberbo pagão moralista. É claro que alguém
assim pode dizer que concorda com a denúncia da terrível imoralidade
que se espalha por todos os lados. Que está tão chocado e horrorizado
quanto você. Mas você concordaria que pessoas como nós são
diferentes? Que, com um pouco de educação e força de vontade,
podemos nos colocar acima de tudo isso e viver a vida virtuosa a que
todas as pessoas sensíveis verdadeiramente aspiram?
Absolutamente, declara Paulo em um de seus tons mais afiados.
Você não tem desculpa, pois, até mesmo enquanto assume uma posição
de julgamento sobre essas obscurecidas almas que você tanto despreza,
você está fazendo, em seu íntimo, as mesmas coisas! É claro que Paulo
não pensa que todos os pagãos moralistas praticam todas aquelas coisas
citadas na segunda metade do capítulo 1. A lei moral, contudo, como,
certa vez, um professor meu de seminário ensinou, é como uma fina
lâmina de vidro. Se for quebrada, não tem volta. Todos os pensadores
verdadeiramente sábios, de Sócrates em diante, sabem que a quebram
vez após vez.
Nem as religiões nem as filosofias, gregas e romanas, contavam com
uma doutrina sobre o juízo final. Entretanto, essa doutrina era central
no judaísmo, e Paulo a expõe de forma consistente contra o antigo
mundo pagão nessa passagem. Há um Deus que, na condição de
Criador, é responsável pelo mundo, e ele o porá em ordem. E, ao fazer
isso, agirá com total imparcialidade, de acordo com a mais estrita
justiça. Paulo, na qualidade de um teólogo cristão, não contradiz em
nada essa doutrina básica judaica. De fato, haverá um julgamento final,
que ocorrerá de acordo com a totalidade da vida que cada pessoa teve.
Algumas vezes, os cristãos imaginam que a doutrina de Paulo da
“justificação pela fé” (ver especialmente os capítulos 3 e 4) significa a
abolição de um julgamento final segundo as obras, porém Paulo nunca
afirma isso. Sua teologia é mais robusta do que muitas tradições lhe
creditam ser. Ele pode olhar o mundo de frente e falar da justiça de
Deus.
ROMANOS 2:12-16
COMO FUNCIONARÁ O JULGAMENTO IMPARCIAL DE DEUS
12Todos os que pecaram sem a lei, veja você, serão julgados sem a lei — e aqueles
que pecaram estando debaixo da lei, serão julgados pela lei. 13Afinal, não são os que
ouvem a lei que estão certos diante de Deus. São os que praticam a lei que serão
declarados certos!
14É deste modo que funciona: os gentios não possuem a lei por direito de
nascimento. Entretanto, sempre que fazem o que a lei diz, eles são uma lei para si
mesmos, apesar de não a possuírem. 15Eles demonstram, assim, que a obra da lei
está escrita em seus corações. Sua consciência também lhes serve de testemunha, e
seus pensamentos seguirão nessa ou naquela direção, algumas vezes acusando-os e,
outras vezes, defendendo-os, 16no dia em que (de acordo com o evangelho que eu
anuncio) Deus julgar todos os segredos humanos mediante o Rei Jesus.
Há pouco, já mencionei o enlouquecido imperador Calígula, que afixava
leis novas em locais em que as pessoas não conseguiam ler. Bem, já que
Paulo declara que Deus julgará toda a humanidade com total
imparcialidade, ele terá de enfrentar um problema do mesmo tipo. Não
é o caso então do povo de Deus, os judeus, terem sido privilegiados?
Deus não lhes deu sua lei? Quer dizer então que eles têm uma chance
muito maior de fazer o que ele quer? Não seria isso injusto em relação a
todos os outros?
Essa questão retornará várias vezes ao longo de Romanos, cada uma
delas de um ponto de vista levemente diferente. Logo na próxima
passagem, por exemplo, Paulo mudará de alvo e se dirigirá
especificamente aos judeus, demonstrando que, apesar de os judeus
gozarem, de fato, o privilégio de possuir a lei, esse seu privilégio não
lhes serviu de nada, pois, conforme os profetas apontaram, Israel como
um todo fracassou de maneira lamentável em guardar a lei.
Entretanto, para conseguirmos compreender todo o sentido até
mesmo dessas primeiras noções de seu argumento, é importante
assimilar algo em particular. Quando Paulo fala a respeito da “lei”, está
se referindo à lei judaica, à Torá — a lei dada a Moisés no monte Sinai
como um estilo de vida para o povo redimido no Êxodo. A Torá é, como
diríamos, específica para Israel. A questão toda dessa passagem é que os
gentios, as nações não judaicas, não possuem essa lei. Em geral, as
pessoas falam vagamente sobre a “lei” em Paulo, como se, embora,
obviamente, inclua a lei judaica, ele de fato se referisse a algo muito
mais amplo, como uma lei moral genérica à qual todos os seres humanos
estão sujeitos. Não é assim, porém, que Paulo faz uso dessa palavra.
Como podemos ver de forma muito clara, tanto nessa carta como em
Gálatas, ele tem em mente uma sequência histórica específica na qual
Deus concedeu a lei a Israel, por meio de Moisés, muitos anos depois da
promessa feita a Abraão.
Um segundo elemento vem à tona na presente passagem, que, mais
uma vez, muitas pessoas consideram de difícil compreensão. Com
frequência, aqueles que aprenderam sobre Paulo na escola dominical ou
na igreja entendem uma das partes centrais de seu ensino muito bem, e
não deixam espaço para outros aspectos que acompanham essa parte.
Estou pensando de maneira específica em seu ensino a respeito da
“justificação pela fé”, o qual, como veremos no próximo capítulo,
significa que aqueles que creem em Jesus como o Senhor ressurreto do
mundo são declarados de imediato, com base nessa fé, como
pertencentes ao povo de Deus. Eles já estão marcados como aqueles de
quem os pecados já foram perdoados. Eles constituem a comunidade da
nova aliança, que Deus está gerando em cumprimento de sua antiga
promessa. Fé, e não obras! Essa é uma verdade maravilhosa, libertadora
e gloriosa!
No entanto, frequentemente as pessoas esquecem (embora Paulo
deixe muito claro) que a “justificação pela fé” é uma verdade que diz
respeito ao tempo presente. Sobre como, no presente, você pode afirmar,
em antecipação ao julgamento futuro, quem são de fato as pessoas que
constituem o povo de Deus — e, desse modo, como pode saber que você
mesmo pertence a esse povo, que seus próprios pecados foram, de fato,
perdoados. Mas, sempre que Paulo se volta para o dia do julgamento
futuro, que é o tema da presente passagem, ele continua tão claro
quanto antes. O julgamento futuro acontecerá com base na vida inteira
da pessoa. Ele já declarou isso na passagem anterior (2:7-10). E repete
em 14:10.
Algumas pessoas, intrigadas com isso, sugeriram que talvez ele
estivesse fazendo essas declarações com o objetivo de expor uma teoria
que, depois, demonstrou ser impossível. Eles o imaginam dizendo: “Em
tese, Deus gostaria de poder julgar seu povo de acordo com seu
comportamento, mas, como ninguém passaria no teste, ele introduziu
um esquema diferente.” Isso não está em consonância com o que Paulo
afirma aqui ou em outras passagens como 14:1-12, bem como em outras
cartas, como em 2Coríntios 5:10, Efésios 6:8 e 2Timóteo 4:1. O
contraste entre o julgamento segundo as obras e a justificação pela fé
não é entre um sistema que Deus gostaria de pôr em operação e outro
que Deus escolheu no lugar daquele primeiro. É, sim, um contraste
entre o julgamento futuro, que será de acordo com as obras, e a presente
antecipação daquele veredicto, que será simplesmente — sei que isso
parece estranho, mas espere até Paulo explicar no próximo capítulo —
com base na fé.
No presente momento, ele ainda está se concentrando no
julgamento futuro, mas apresenta um termo técnico que encontraremos
muitas vezes e, portanto, seria melhor fazermos um cuidadoso registro
dele aqui. No versículo 13, ele afirma que aqueles que praticarem a lei
“serão declarados certos”. Traduzi uma única palavra do grego com
esses termos, não por gostar de tornar as coisas mais longas, mas porque
a palavra que eu poderia ter usado tem uma longa história e é
facilmente interpretada deforma equivocada.
A palavra, claro, é “justificado”. Ela pertence, conforme a presente
passagem elucida, a um grupo de palavras com conotação de tribunal ou
processo judicial. Deus, Paulo afirma no versículo 16, julgará todos os
seres humanos, bem como todos os segredos de seus corações, por meio
do Rei Jesus (a ideia do Messias como o juiz vindouro era bastante
corrente no judaísmo pré-cristão, com base em passagens como Salmos
2 e Isaías 11). No contexto de um tribunal, “justificar” é o que faz um
juiz ao fim de um julgamento: ele (o juiz era sempre “ele” no mundo
antigo) declara que uma das partes no processo legal está “certa”, [“no
direito” popularmente as pessoas também dizem está “no meu direito”].
O caso seguiu como ela esperava. O juiz lhe foi favorável. Agora, essa
parte ostenta uma nova condição — uma condição resultante da decisão
do tribunal. Exatamente como num casamento, em que a pessoa
encarregada da cerimônia pronuncia “Eu os declaro marido e mulher”, e
essa declaração produz um novo status, uma nova realidade, quando o
juiz declara “Considero o réu inocente” ou “Declaro que o querelante
está certo”, gera-se um novo quadro de obrigações, em que a pessoa
absolvida tem uma nova posição, gozando de um novo status. Agora, ela
“está certa”. Isso é “justificação”.
A esta altura, quando isso já está claro, podemos ver o que essa
passagem específica está dizendo. Paulo, lembre-se, está com os olhos
voltados, neste momento, apenas para o futuro dia de julgamento e para
o fato de que Deus julgará de forma imparcial. Ele está enfrentando a
seguinte questão: Será que os judeus terão mesmo alguma vantagem por
possuírem a lei? Sua resposta é: Não. Deus julgará a todos de acordo
com a posição em que se encontram, e não por aquela na qual não se
encontram. Os que se encontram sem lei (em outras palavras, os
gentios) serão julgados dessa forma; e os que se encontram sob a lei (os
judeus) serão julgados pela lei que possuem. Afinal de contas, o que
importa é cumprir a lei, e não apenas possuí-la.
Mas, então, o que acontecerá com os gentios? Ao responder a isso
nos versículos 14 e 15, Paulo escreve algo que há muito tempo intriga
os leitores atentos. Mesmo após anos estudando essa questão, muitas
vezes me vejo ter dúvida da maneira como esses versículos devem ser
lidos. Algumas pessoas pensam que Paulo diz: “Alguns gentios, seguindo
sua consciência, guardam algumas coisas sobre as quais a lei judaica
fala.” Isso é possível — embora Paulo jamais tenha pensado, nem por um
momento sequer, que tais pessoas pudessem levar o tipo de vida sem
pecado e santa que uma vida de total observância à lei produziria.
Como alternativa, ele pode estar sugerindo algo bem diferente, algo que
será retomado mais adiante no capítulo, nos versículos 26 a 29, e muitas
vezes em outras partes da carta: que uma nova categoria de gentios
estava sendo criada pelo próprio evangelho, uma categoria de gentios
que possui a lei de Deus inscrita em seus corações por meio do espírito
santo e que, desse modo, está aprendendo, de um modo novo, o que a
lei requer. Isso também é possível — apesar da ideia de que os cristãos
vão enfrentar o dia do julgamento com pensamentos conflitantes,
alguns acusando-os e outros defendendo-os, teria sido algo bem
estranho para Paulo dizer àquela época, se compararmos isso, digamos,
com Romanos 8:31-39. De um modo ou de outro, os versículos 14 e 15
nos deixam intrigados.
Sobre o ponto principal abordado nessa passagem, não há dúvida,
trata-se de uma grande e suprema consolação. O mundo não está nas
mãos do mero acaso, nem de um Deus cheio de caprichos e movido por
favoritismo, que deixará a todos se sentindo da mesma forma que as
pessoas se sentem depois de uma audiência insatisfatória em uma corte
de justiça. A verdadeira justiça — do tipo ao qual as pessoas aspiram,
pelo qual elas suplicam, mostrando-se sedentas ao redor de todo o
mundo até os nossos dias — será, de fato, realizada, e as pessoas a verão
e saberão que ela se cumpriu. Deus julgará todos os segredos do coração
humano por meio do Messias, Jesus. Essas são boas-novas para um
mundo no qual ainda é difícil encontrar a verdadeira justiça.
ROMANOS 2:17-24
A REIVINDICAÇÃO DOS JUDEUS — E SEUS PROBLEMAS
17Vamos supor que você se chame de “judeu”. Vamos supor que sua esperança
esteja depositada na lei. Vamos supor que você celebre o fato de que Deus é o seu
Deus, 18e que você sabe o que ele quer, e que, pelas instruções da lei, você possa
fazer distinções morais adequadas. 19Vamos supor que você creia ser um guia para
os cegos, uma luz para as pessoas que se encontram em trevas, 20um mestre para os
insensatos, um instrutor para as crianças — tudo porque, na lei, você conta com a
essência do conhecimento e da verdade.
21Muito bem, então: se você pretende ensinar a outra pessoa, não ensinará a si
mesmo? Se diz que as pessoas não devem roubar, você mesmo rouba? 22Se diz que
as pessoas não devem adulterar, você mesmo adultera? Se você detesta ídolos,
roubará os templos? 23Se você se orgulha da lei, desonrará a Deus, quebrando a lei?
24É isto que a Bíblia diz: “Por sua causa, o nome de Deus é blasfemado entre as
nações!”
Em meu país, a polícia trabalha arduamente para manter sua
credibilidade.
Isso costumava ser algo bem fácil. As forças policiais contavam com
uma longa tradição de serviços prestados à comunidade e eram
conhecidas e respeitadas. Elas sabiam quando ser amáveis e deixar as
pessoas irem embora apenas com uma advertência. E também sabiam
quando adotar medidas severas e fazer uma batida para coibir um
comportamento gravemente criminoso e perigoso. É claro que sempre
houve alguns comprometendo essa tradição. No geral, porém,
costumávamos confiar na polícia. Quando viajei para o exterior pela
primeira vez, achei perturbador o fato de as pessoas partirem da ideia de
que a polícia estava associada ao crime organizado e aceitava suborno.
Entretanto, nas últimas duas décadas, as coisas não são mais assim
tão claras. Houve diversos casos amplamente divulgados na mídia
acerca de corrupção nos altos escalões, e sobre policiais prendendo,
acusando e dando um jeito de condenar pessoas que sabiam ser
inocentes, apenas para dizer que haviam solucionado algum crime. Pior
do que isso: tem havido acusações persistentes de racismo em regiões
nas quais um grande contingente populacional de imigrantes ainda é
policiado por uma força praticamente constituída, em sua totalidade,
por policiais brancos. O fato de a maioria dos policiais não ser
responsável por essas falhas não faz muita diferença. Em algumas áreas,
a confiança chegou ao nível zero. A polícia é vista como parte do
problema, e não como parte da solução.
Os judeus nunca viram a si mesmos como os chamados para ser a
polícia do mundo (os romanos se autoatribuíam essa função), mas
muitos acreditavam, devido ao tema reiterado em suas Escrituras, que
haviam sido chamados para ser a luz do mundo (veja, por exemplo,
Isaías 42:6, uma passagem que Paulo pode muito bem ter em mente
aqui). Muitos, inclusive o próprio Paulo, celebravam o fato de que Deus
escolhera Israel e lhes dera sua lei, de modo a fazer deles um farol de
virtude para guiar o restante do mundo. Antes de sua conversão, Paulo
via esse chamado da nação de Israel como uma rocha sobre a qual se
firmar. Ele era judeu, Deus chamara Israel para ocupar essa posição, e
ele se sentia seguro a esse respeito.
Paulo, contudo, percebeu que, mediante seu reconhecimento de
Jesus crucificado como o Messias, as coisas não eram assim tão simples.
Um Messias que conduzisse os israelitas a uma vitória sobre os pagãos
teria se encaixado, à perfeição, em sua cosmovisão anterior. Um Messias
que ensinasse todo o Israel a obedecer à Torá, em sua totalidade, teria
sido maravilhoso. Porém, um Messias que morreu de forma vergonhosa,
como um criminoso condenado — isso significava que o mundo fora
virado de cabeça para baixo. Este foi o modo pelo qual Deus cumpriu
suas antigas promessas: com seu ungido sendo morto pelos pagãos! Esse
final, totalmentebizarro e inesperado, levou Paulo a repensar o papel de
Israel como um todo e a incluir uma linha de pensamento profético que,
até o momento, talvez pendesse só para um lado.
Ao citar Isaías 52:5 (ecoando também Ezequiel 36:20 e 23) no
versículo 24, ele está trabalhando exatamente no centro das críticas dos
profetas contra Israel. Essas críticas eram tão graves que os próprios
profetas só conseguiam ver o futuro em termos de juízo total e
reconstituição. Israel não cometera apenas alguns poucos erros. Israel
fracassara por completo na tarefa que Deus lhe atribuíra. Agora, a única
saída seria Deus enviar um Messias que tomaria sobre si os efeitos do
fracasso e, por meio dele, estabelecer uma nova aliança. Isaías 52 vai
mais adiante, alguns poucos versículos depois, apresentando o perfil do
Servo Sofredor que morreria pelos pecados de Israel e do mundo.
Ezequiel 36 prossegue falando de uma nova aliança na qual Deus
inscreveria sua lei no coração das pessoas. De um modo claro, Paulo
tem ambos os temas em mente.
Nessa passagem, sua acusação contra os companheiros judeus —
contra seu próprio ser anterior — está baseada em sua consciência,
mediante a revelação do evangelho, de que aquilo que os profetas
haviam dito a respeito de Israel tornara-se realidade. Israel fracassara, e
a devastação e o exílio foram o resultado disso. O pior sobre o exílio,
contudo, não foi o deslocamento geográfico, o qual chegou ao fim
quando alguns dos judeus retornaram à sua terra. O pior sobre o exílio
foi o fato de que estrangeiros e pagãos estavam reinando sobre o povo
de Deus. Esse tipo de “exílio” continuava presente, conforme predisse o
livro de Daniel (9:24-27, uma passagem amplamente estudada nos
tempos de Paulo).
O ponto central das acusações de Paulo nos versículos 21, 22 e 23,
portanto, não é que todos os judeus cometessem adultério, furtassem ou
roubassem templos (os judeus sempre eram acusados de saquear
templos, porque, já que não acreditavam em ídolos, consideravam
insignificantes os templos pagãos, desprovidos de sérias sanções
religiosas). A questão é que até mesmo alguns judeus estavam fazendo
essas coisas — e todos os judeus sabiam que havia uma porção deles que
eram culpados dessas acusações, o que minava por completo seu
orgulho de que, como nação, eles continuavam a ser a luz do mundo,
capaz de revelar a verdade e a lei de Deus ao restante da humanidade. O
fato de o pecado continuar em Israel apenas confirma a acusação do
profeta: quando as nações olham para vocês, maldizem a Deus. Agora, a
única solução é que a história de Israel atinja seu clímax com a chegada
de um estranho Messias que também levará esse problema sobre os
próprios ombros, estabelecendo uma nova aliança, segundo a qual as
pessoas serão transformadas a partir de seu interior.
Paulo nunca nega a reivindicação de Israel. Algumas pessoas
supõem que, em sua descrição do “judeu”, nos versículos 17 a 20, ele
quis dizer que a lei não era, afinal de contas, “o guia da verdade e do
conhecimento”, e que Israel não fora chamado para ser a luz do mundo.
Isso é um grande equívoco. Aqui, e especialmente nas passagens
seguintes, o argumento de Paulo é o de que Israel é realmente o povo
escolhido de Deus e que a lei é, de fato, a lei santa do único Deus
verdadeiro. A nação de Israel fracassara em sua vocação. Paulo
examinará esse problema também, na hora certa. Mas Deus não falhou.
As passagens a seguir nos mostrarão como Deus permaneceu leal a seu
chamado, apesar do fracasso do povo que ele chamara.
ROMANOS 2:25-29
A MARCA DISTINTIVA, O NOME E O SIGNIFICADO
25A circuncisão, notem bem, tem valor real para aqueles que guardam a lei. Se,
contudo, você descumpre a lei, sua circuncisão se torna incircuncisão. 26Enquanto
isso, se os incircuncisos guardam as exigências da lei, sua incircuncisão será
considerada circuncisão, certo? 27Portanto, aqueles que são incircuncisos por
natureza, mas cumprem a lei, julgarão aqueles como vocês que possuem a letra da
lei e a circuncisão, mas descumprem a lei.
28O “judeu” não é aquele que parece ser judeu. Nem a “circuncisão” é o que parece
ser: uma questão de carne física. 29O “judeu” é aquele que o é em segredo, e a
“circuncisão” é aquela feita no coração, no espírito, e não na letra. Tais pessoas
obtêm “louvor” não de seres humanos, mas de Deus.
Vez ou outra, uma das grandes redes de supermercados resolve tentar
vender produtos de sua própria fabricação, como se fossem produtos de
marcas mais famosas e conhecidas. Lembro-me de uma dessas lojas que,
algum tempo atrás, vendia cereal matinal com um rótulo na embalagem
que, até que você se aproximasse bem de perto e lesse o que realmente
estava escrito, estaria sendo enganado, acreditando tratar-se de uma
marca famosa. Isso acontece algumas vezes com sucos e outros produtos
de grande saída.
Nesse momento, o que importa para o consumidor não é o preço
nem a aparência externa do produto, mas o conteúdo da embalagem.
Rótulos podem nos iludir. Algumas vezes, inclusive, são projetados
exatamente com essa intenção.
A questão que Paulo levanta nesse parágrafo é que os rótulos, e até
mesmo os nomes, podem de fato enganar. Ele vai mais fundo do que
simplesmente abordar a questão da ilusão praticada por um marketing
esperto. Algumas vezes, o próprio produto em si não é o que aparenta
ser.
Nesse caso, o “produto” é o povo escolhido de Deus, Israel — aqui
referido como uma pessoa no singular: “você.” O rótulo externo, a
marca distintiva de identidade judaica entre os homens, é a
circuncisão. Paulo toma como certo que seus leitores sabem disso,
portanto ele pode passar direto, tanto aqui como em outras partes, de
uma discussão a respeito da identidade judaica em uma só sentença,
indo para uma referência à circuncisão na próxima.
A questão que ele levanta é que a marca distintiva da circuncisão e
até mesmo o nome “judeu” (que pertence à origem étnica de Israel)
podem enganar. Algumas vezes, o que está inserido nessa embalagem
não se harmoniza com a marca distintiva e o nome do lado externo.
Quando isso ocorre, a marca distintiva significa o oposto do que quer
comunicar. Se um judeu descumpre a lei, sua circuncisão se transforma,
na verdade, em incircuncisão — não que ele deixe de ser circuncidado
em seu aspecto físico (embora alguns judeus, determinados a se
incorporar ao mundo dos gentios, procurem obter a remoção das
marcas da circuncisão). Entretanto, sua posição real diante de Deus é a
mesma de um gentio incircunciso. Essa não era uma ideia nova.
Quinhentos anos antes, o profeta Jeremias (9:26) dissera exatamente a
mesma coisa.
Esse ponto já causa grande surpresa (e uma porção de judeus
resistiu a ele), porém ainda há mais. A anulação do lado externo em
função do interno também opera na outra direção. Vamos supor, diz ele,
que alguém que não tenha sido circuncidado (em outras palavras, um
gentio) guarde as exigências da lei. O que acontece, então? Paulo chega
a uma conclusão ousada: é como se ele fosse circundado. Além disso, ele
estará na posição, contra o circunciso que descumpre a lei, que o judeu
dos versículos 17 a 20 supõe, ele próprio, estar. Ele poderá assentar-se
para julgar os infratores da lei.
Quem, porém, são esses gentios “que guardam as exigências da lei” e
que até mesmo “cumprem a lei”, embora sejam incircuncisos? Paulo
sabe muito bem como deve soar estranha a última sentença a qualquer
judeu bem-instruído. A circuncisão era um dos mandamentos da lei.
Como, então, uma pessoa não circuncidada poderia estar “cumprindo a
lei”? (O mesmo ponto é levantado em 1Coríntios 7:19, e suponho que,
em ambos os casos, Paulo teve a intenção de ser engraçado de uma
forma intrigante.)
A resposta vem por meio das ressonâncias bíblicas nos versículos 28
e 29. Paulo está se referindo não a qualquer gentio que procura fazer um
esforço moral especial, mas àqueles que possuem a lei de Deus inscrita
em seus corações pelo espírito. Quando verificamos outras passagens
em que ele diz mais ou menos a mesmacoisa (como, por exemplo, ele faz
em 2Coríntios 3:1-6), está claro que se refere a gentios que se tornaram
cristãos. Alinhado com as profecias de Jeremias 31 e de Ezequiel 36 e,
quanto a isso, com a experiência espiritual fulgurante de todos os
primeiros cristãos, Paulo crê que, por meio de Jesus, o Messias, o Deus
de Israel renova a aliança e, agora, está recebendo na nova família todo
aquele que, independentemente de sua origem étnica e, portanto, de
marcas distintivas exteriores como a circuncisão, venha a crer no
evangelho. Aqui ele apresenta um esboço bastante resumido do retrato
muito mais completo da vida cristã, da renovação do coração pelo
espírito de Deus, que ele vai retomar em trechos como, por exemplo, os
capítulos 8 e 12.
Isso, na verdade, o conduz a um ponto muito importante, tão
controvertido em nossos próprios dias quanto, sem dúvida, na época em
que Paulo escreveu pela primeira vez. Ele declara que o rótulo é
irrelevante e que, caso você encontre o conteúdo essencial em uma
embalagem com um rótulo diferente, deve chamar esse conteúdo pelo
nome certo, ainda que tenha outra procedência qualquer. Ele toma a
própria palavra sagrada e maravilhosa “judeu” e declara que, quando
Deus opera mediante o espírito no coração de um gentio, visando
produzir o genuíno cumprimento da lei, esse gentio deve ser chamado
“judeu”, mesmo que não tenha nascido de uma família judaica. Essa
mudança radical quanto ao significado do antigo nome do povo de Deus
continua a assombrar a presente carta, como veremos, até atingir seu
clímax em um capítulo ainda muito distante deste.
O que vale para o nome vale também para a marca distintiva
externa. A circuncisão que importa é a circuncisão do coração, aquela
estranha operação interior originalmente mencionada nas próprias
Escrituras dos israelitas (Deuteronômio 10:16; 30:6; Jeremias 4:4). Os
profetas falaram (Jeremias 31:33; 32:39-40; Ezequiel 11:19; 36:26-27) a
respeito da nova obra de Deus no coração das pessoas, e parece que é
isso que Paulo tem em mente. Ele está falando, em linguagem judaica
tradicional, a respeito da renovação da aliança e afirmando que ela já
ocorreu no espírito e mediante o espírito de Deus. Ele não menciona
Jesus nesse trecho, mas está claro que compreende essa nova aliança
como o resultado direto da ação de Deus por meio de seu Messias.
Mais uma observação interessante acerca de como a mente de Paulo
funciona: depois de descrever “o judeu” e “a pessoa circuncidada” em
termos não de sua origem étnica ou de um sinal físico, mas do estado de
seu coração, ele declara que essa pessoa não recebe “louvor” de outros
seres humanos, mas do próprio Deus. A questão é a seguinte: o nome
hebraico “Judá”, que dá origem à palavra “judeu”, significa, na verdade,
“louvor” (ver Gênesis 29:35; 49:8). Apesar de Paulo estar escrevendo
em grego, língua em que a figura de linguagem não funciona da mesma
forma, está pensando em hebraico. Se é “louvor” que você quer, diz ele
— se você quer o nome que lhe permite erguer a cabeça e reivindicar
uma posição de alta dignidade —, então não procure isso em outros
seres humanos, jactando-se de sua origem e posição étnica por ser
“judeu”. Receba esse louvor de Deus, quando Deus inscrever sua lei em
seu coração pelo espírito.
ROMANOS 3:1-8
A FIDELIDADE DETERMINADA DE DEUS
1Então, qual é a vantagem de ser judeu? Que benefício há na circuncisão? 2Muitos,
em todos os sentidos. Para começar, aos judeus foram confiados os oráculos de
Deus. 3E qual é a vantagem disso? Se alguns dentre eles foram infiéis à sua
incumbência, será que a infidelidade deles anula a fidelidade de Deus? 4Por certo
que não! Reconheça que Deus é verdadeiro, mesmo que todo ser humano seja falso.
Como diz a Bíblia:
“De modo que você seja achado certo quanto ao que diz
e, assim, possa sair vitorioso quando comparecer diante do tribunal.”
5Mas, se o fato de sermos achados injustos comprova que Deus é justo, o que
diremos? Que Deus é injusto por infligir sua ira sobre as pessoas? (Estou falando
em termos humanos!) 6Por certo que não! Como poderia, então, Deus julgar o
mundo? 7Mas, se a verdade de Deus aumenta ainda mais e lhe traz glória mediante
a minha falsidade, por que ainda sou condenado como pecador? 8E por que não
“fazer o mal para que venha o bem” (como algumas pessoas blasfemam contra nós e
como alguns alegam que afirmamos)? Pessoas assim, pelo menos, merecem o
julgamento que recebem!
Certa vez, transportei uma joia valiosa para o outro lado do mundo.
Minha esposa e eu estávamos a caminho da Nova Zelândia. Alguns
amigos nossos queriam enviar algo — creio que era um colar — para
algum membro de sua família. Não queriam confiar a joia ao correio
comum, por isso nos pediram para levá-la conosco e entregá-la a seus
parentes. Isso aconteceu numa época em que as companhias aéreas
ainda não suspeitavam tanto de pessoas transportando pacotes para
outras, porém, ainda assim, ficamos preocupados: e se o colar se
extraviasse no caminho? Entretanto, conhecíamos e gostávamos
daquelas pessoas, razão pela qual concordamos com seu pleito.
Felizmente, a joia completou sua viagem em total segurança e foi
entregue em seu destino final.
Agora, é claro que poderíamos ter dito que a joia se extraviou e,
então, guardá-la em segredo em nosso próprio benefício ou até mesmo
vendê-la. Estaríamos sob suspeita, mas seria possível escapar ileso disso.
O fato de não termos feito isso se deve a terem confiado em nós e
porque desejávamos estar à altura dessa confiança depositada. Uma das
formas de as pessoas descreverem esse tipo de transação é dizendo que
nos confiaram alguma coisa. O ponto importante em algo lhe ser
“confiado” é que o objeto que lhe foi dado não se destina a você, mas,
sim, à pessoa a quem você deve entregá-lo.
E, uma vez que você compreenda esse princípio, essa passagem —
que alguns consideram muito complexa — torna-se comparativamente
fácil. O ponto central de Paulo no versículo 2 é que, ao povo judeu — ao
seu próprio povo —, foram confiados por Deus seus “oráculos”. (Aqui,
ele emprega uma palavra incomum, talvez com o propósito de indicar
uma “mensagem divina” em termos gerais ou para reconhecer o fato de
que, apesar de os gentios não estarem esperando qualquer coisa
parecida com a lei judaica, sempre tiveram o anseio de receber
“oráculos” de uma divindade ou de outra.) Os judeus foram realmente
chamados para ser luz do mundo, para portar em confiança a mensagem
de Deus a toda a sua criação. E eles deviam entregar essa mensagem, a
fim de cumprir o que lhes fora confiado, demonstrando ao mundo que
Deus é Deus.
Entretanto, eles falharam. Guardaram toda a mensagem para si
mesmos, calculando que não passava de uma lista de privilégios para si
próprios na qualidade de nação — como se um carteiro tivesse de
considerar sua bolsa do correio um mero sinal de quanto uma pessoa é
importante, recusando-se, assim, a entregar a correspondência. Alguns,
como o filho pródigo na história contada por Jesus, venderam o valioso
conteúdo que lhes fora confiado e desperdiçaram o dinheiro (esse é o
ponto levantado por Paulo em 2:21-24). Mas a questão central, a única
questão central no fato de alguém ser um mensageiro, consiste em
entregar a mensagem conforme instruído. Sair por aí com ares de “o
importante mensageiro” pode impressionar por algum tempo, mas,
quando não se cumpre a incumbência, isso passa a parecer estranho. E a
acusação de Paulo contra seus companheiros judeus, contra sua própria
pessoa, está totalmente alinhada com as palavras dos antigos profetas
de Israel: Israel foi infiel, um mensageiro inútil.
Desse modo, o que Deus deve fazer? O nome de Deus, de acordo
com Isaías (conforme citado por Paulo em 2:24), foi injuriado e
blasfemado entre as nações, em vez de ser louvado. Não só as nações
deixaram de receber a mensagem certa, como também deduziram uma
errada. Ou seja, a mensagem de que o Deus de Israel é um deus ruim,
que merecer serdifamado e ridicularizado. Deus, porém, permanecerá
fiel a seu intento original. Não só sua fidelidade não será abolida pela
infidelidade de Israel (v. 3,4), como também ele prosseguirá com seu
plano original. De fato, ele precisa (e ele mesmo vai providenciar) de
um israelita fiel que, por fim, leve a incumbência a cabo.
Para isso, precisamos aguardar outros dois trechos da carta. Qual é
o assunto do restante do presente trecho?
Depois que Paulo termina de escrever o final do capítulo 2, precisa
enfrentar a pergunta que faz aqui no início do capítulo 3. Se Deus está
gerando um povo da “nova aliança”, um povo que deve ser chamado
“judeu’, embora não seja necessariamente judeu, e ser considerado povo
da “circuncisão”, apesar de muitos dentre eles não serem
circuncidados, então qual seria a vantagem real de ser judeu ou
circuncidado? Poderíamos esperar uma resposta como: “Nenhuma!” Na
verdade, alguns já pensaram que o fato de Paulo não ter chegado a essa
conclusão se deveu apenas a um orgulho nacional judaico residual.
Esse, porém, é um argumento superficial. Ele continua crendo — sua
total compreensão acerca de Deus, do mundo e do evangelho se baseia
nessa crença — que, quando Deus fez promessas em relação à aliança a
Abraão, Isaque e a Jacó, ele as levava a sério. E que, em Jesus, o
Messias, ele as manteve, e que, mediante o espírito santo, ele por fim as
cumprirá por completo. Paulo não abandonou a ideia de Israel como o
povo escolhido de Deus. Ele ainda não pode explicar como tudo se
encaixa, mas, quando voltar à mesma pergunta no início do capítulo 9,
será, por fim, capaz de estabelecer as coisas em um quadro mais amplo.
Seu ponto central, o qual, em certa medida, já chegamos a abordar, é
o de que, apesar de Israel ter sido infiel quanto à incumbência recebida
de Deus, de ser seu mensageiro, Deus se mantém fiel às suas promessas.
Ao estabelecer isso no versículo 4, ele cita parte do Salmos 51:6, um dos
grandes salmos de penitência que reconhece que Deus continua a ser
correto apesar de os seres humanos, incluindo Israel, pecarem de forma
drástica.
Mas a noção de Deus ser justo, enquanto os seres humanos são
injustos, faz parecer, por um instante, que Deus e os seres humanos, ou
quem sabe Deus e Israel, seriam partes opostas em um processo legal.
(Esse foi o erro de Jó, que imaginava que ele e Deus estariam presos a
uma batalha legal que ele, Jó, devia ganhar. Foi também o erro dos
consoladores de Jó, que tinham em mente a mesma batalha legal,
insistindo que Deus é quem devia ganhar. O ponto central do livro de
Jó é a afirmativa de que ambos estavam errados, uma vez que Deus não
é uma das partes em um processo legal com os seres humanos ou Israel.
Deus continua a ser soberano e transcendente, até mesmo acima desses
assuntos que consideramos mais desconcertantes.) O problema em ver
Deus e Israel como partes opostas em um processo legal é que Deus,
então, ao julgar o mundo e condenar os perversos, pode ser visto como
julgando em causa própria. Essa não pode ser a maneira certa de ver as
coisas (v. 6): Deus deve ser o juiz.
Isso, por sua vez, levanta outra possível objeção. Quando Israel
fracassa em entregar a mensagem, de modo que Deus tenha de
encontrar uma nova forma de demonstrar sua fidelidade, isso
simplesmente faz com que a verdade de Deus transpareça de modo
ainda muito mais claro, não é mesmo? Então, por que Deus ficaria
contra Israel por não fazer o que lhe fora ordenado? De fato — aparece
aquele velho sarcasmo de sempre —, por que não fazer simplesmente o
que é errado, para que Deus, ao colocar tudo em ordem, possa ser visto
de forma ainda muito melhor? Está claro que algumas pessoas
escutaram o ensino de Paulo com apenas um de seus ouvidos, quando o
ouviram falar sobre o perdão gratuito e a justificação pela fé. E, com
isso, zombaram dele, acusando-o de estar dizendo às pessoas que
poderiam fazer o mal para que viesse o bem. Paulo tem uma resposta
pronta para eles: no caso dessas pessoas, pelo menos, o julgamento será
considerado justo!
Algumas vezes, esses três últimos versículos soam como mera
provocação intelectual. Muitas pessoas — na realidade, muitos cristãos,
de um modo geral — não raciocinam segundo esse estilo de
argumentação “bate-rebate” e se sentem confusas ao ver Paulo fazendo
esse tipo de jogo. Entretanto, há três conclusões possíveis aqui.
Em primeiro lugar, é importante refletir profundamente sobre as
questões. Podemos não ser capazes de sempre compreender Deus e sua
forma de interagir com o mundo. Entretanto, não podemos nos esquivar
dos desafios intelectuais com que deparamos em todos os cantos. Se
estivermos dispostos a amar a Deus com toda a nossa mente, bem como
de todo o nosso coração, alma e força (Marcos 12:30), é importante
analisar cada argumento até o fim, da melhor maneira possível, ao
mesmo tempo mantendo-nos sempre humildes quanto ao
reconhecimento de que talvez não sejamos capazes de enxergar muita
coisa no que diz respeito aos segredos mais profundos.
Em segundo lugar, Paulo necessita enfrentar essas questões, porém,
de modo interessante, ainda não está pronto para lidar com elas
apropriadamente. Quando chegarmos ao capítulo 9, encontraremos o
mesmo conjunto de questões: o que ocorreu com Israel? Deus
permaneceu leal às suas promessas? Deus seria injusto? Por que Deus
ainda condena as pessoas? Ao chegarmos lá, contudo, conheceremos as
respostas em maiores detalhes. Paulo pode discuti-las mais detidamente
à luz do que já disse nos capítulos anteriores. A Carta aos Romanos é
como uma grande sinfonia. A passagem atual é um pequeno trecho de
uma música que, mais adiante, aponta para uma declaração muito mais
completa, para que os temas que surgem no meio possam ir preparando
o caminho.
Em terceiro lugar, Paulo não pode (e não ousa) deixar ninguém com
a impressão de que ser judeu, um membro do povo da aliança de Deus,
representaria, apesar de tudo, uma questão secundária. Havia muita
gente em Roma, e ainda mais (conforme suspeitamos) alguns cristãos
gentios, que ficariam muito contentes em chegar a essa conclusão, à
qual Paulo resiste ao longo de sua carta. Uma conclusão dessas não
estaria apenas errada em tese e seria desastrosa em relação à atitude
cristã para com os judeus e ainda incrédulos. Ela acabaria com o
fundamento básico do próprio evangelho de Paulo. A questão toda,
como veremos mais adiante neste capítulo, resume-se ao fato de que, em
Jesus, o Messias, Deus abre o caminho para se manter leal às suas
promessas originais. Jesus, na condição de representante de Israel,
ofereceu a obediência pela fé que Israel devia ter oferecido (mas
falhou). O Messias é o mensageiro que finalmente entrega a mensagem.
ROMANOS 3:9-20
TANTO OS JUDEUS COMO OS GENTIOS SÃO CULPADOS DE
PECADO
9 E então? Estamos realmente em melhor situação? Não, por certo que não! Já
apresentei esta acusação antes: Tanto os judeus como os gregos estão todos sob o
poder do pecado. 10É isto que a Bíblia diz:
Não há nenhum ninguém declarado certo [justo] — ninguém mesmo!
11Não há ninguém que compreenda, ou que busque a Deus;
12Todos eles, igualmente, se extraviaram,
juntos, todos tornaram-se fúteis;
nenhum deles age com bondade, não, nenhum deles.
13Sua garganta é um sepulcro aberto,
utilizam sua língua para enganar,
o veneno das víboras se encontra sob seus lábios.
14Sua boca está repleta de maldição e amargura,
15seus pés são velozes e há sangue a ser derramado,
16desastre e miséria estão em seus caminhos,
17e eles não conheceram o caminho da paz.
18Não têm temor a Deus diante de seus olhos.
19Agora, sabemos que tudo o que a lei diz é para aqueles que estão “na lei”. O
propósito disso é que toda boca se cale e o mundo inteiro seja levado ao banco dos
réus no julgamento de Deus. 20Vejam bem, nenhum mero mortal pode ser
declarado certo, diante de Deus, com base nas obras da lei. O que se obtém
mediante a lei é o conhecimento do pecado.
Durante toda a minha vida, estive apenasduas vezes em um tribunal de
justiça. Nenhuma das duas foi agradável. Em uma das ocasiões, foi
contra uma empresa paisagística que arruinou meu jardim e, em
seguida, exigiu pagamento. Quando me recusei a pagar, eles me
processaram. Os procedimentos foram feitos em francês, pois estávamos
em Montreal, Canadá, à época. Expus minha versão da história, mas,
como o representante da empresa falava rápido, em um dialeto local, eu
não tinha a menor ideia se estava conseguindo contestar seus
argumentos ou não. Então, pedi para que traduzissem o que ele estava
dizendo, mas o juiz indeferiu meu pedido. Perdi o caso.
A outra vez foi durante a celebração de posse de um novo
representante legal do município. Ficamos para assistir, o que lamento
até hoje. Os excessos e a miséria humana estavam lá para todos verem
como isso é feio. Senti-me como se fosse um voyeur.
No mundo de Paulo, praticamente todos estavam muito mais
familiarizados com os processos legais das cortes de justiça do que a
maioria das pessoas hoje em dia. As comunidades eram pequenas e bem
fechadas. Os casos eram julgados em público. Todos queriam saber o
que estava acontecendo. Então, quando Paulo emprega,
recorrentemente, a linguagem dos tribunais, como faz aqui, todos eram
capazes de compreender o cenário que ele tinha em mente. É
importante aprendermos a fazer o mesmo.
O quadro fica mais claro no versículo 19. Primeiro, temos a voz
rigorosa da “lei”. Ela se dirige ao prisioneiro contra quem é feita a
acusação — nesse caso, o judeu que está “na lei” ou, como Paulo diz às
vezes, “sob a lei”. Paulo já demonstrou como todos os “gentios” são
culpados diante de Deus. Agora, Israel se junta ao restante do mundo
no banco dos réus.
No mundo de Paulo, se alguém estivesse sendo julgado e nada mais
tivesse a dizer em defesa própria, colocava a mão sobre a própria boca
como um sinal. Algumas vezes, os oficiais de justiça batiam na boca dos
prisioneiros para indicar o dever de que suas bocas “deveriam fechar-
se”. Em outras palavras, que sua culpa era óbvia e que, portanto, não
deviam estar procurando se defender (isso aconteceu com Jesus, em
João 18:22, e com Paulo, em Atos 23:2). Assim, quando Paulo diz “que
toda boca se cale”, está retratando a imagem de que não só os judeus se
haviam juntado aos gentios no banco dos réus, como também de que
todos eles, juntos, eram totalmente indefensáveis. O mundo todo deve
prestar contas a Deus. É óbvio, portanto, que todas as pessoas são
culpadas e agora precisam ficar face a face com Deus, seu juiz.
Este, portanto, é o ponto central nessa passagem: completar a tarefa
de colocar toda a raça humana diante de seu criador, declarando-a
culpada. O versículo 9 pinça alguns pontos da acalorada e intensa
discussão da passagem anterior — aqui, Paulo devia estar imaginando
ter deixado alguns de seus leitores sem fôlego e repete a pergunta feita
no primeiro versículo: os judeus estão realmente em situação melhor?
“Não”, responde ele, “porque já apresentei uma acusação contra ambos
os grupos” (mais terminologia jurídica aqui). Não apenas os judeus são
culpados de pecado, da mesma forma que os gentios; pior do que isso,
eles estão sob o poder do pecado.
Isso apresenta outro importante tema dessa carta: O “pecado” não é
apenas um ato errado. É, antes, um poder que ousamos dizer ter vida
própria. É interessante como Paulo, embora pode se referir a “o satanás”
(cf. 16:20), muitas vezes emprega a palavra “pecado” como uma forma
de falar sobre o mal no sentido de uma força pessoal em ação no mundo.
Isso está particularmente claro no capítulo 7.
Nesse momento, contudo, ele se concentra em apresentar uma
acusação contra seus companheiros judeus. Ele não sugere agora, como
fez em 2:21-24, pecados específicos dos quais as pessoas possam ser
culpadas. Ele se contenta em citar, de forma ampla, diversas passagens
bíblicas — a maioria nos Salmos. Essas citações repetem, de diferentes
ângulos, a acusação de que o povo de Deus, exatamente como as nações
pagãs, fracassara em honrar a Deus como Deus ou de lhe prestar a
devida reverência. E que, em suas vidas, como consequência,
fracassaram em refletir sua santidade, sua sabedoria e seu amor.
Paulo, contudo, raramente cita versículos do Antigo Testamento
sem ter ao menos um olho voltado ao contexto mais amplo de onde a
citação foi extraída. Um rápido olhar nas passagens-chave — Salmos 14,
5, 140, 10 e 36, acrescentando Isaías 59 como apoio extra — é revelador.
Em praticamente todas essas passagens, a acusação contra os ímpios
está contextualidade pela, ou se faz acompanhar (da), promessa de que
Deus vai agir com o propósito de resgatar aqueles que se encontram
impotentes diante do mal, e também que fará valer sua aliança a todo
custo. É precisamente esse ponto que Paulo está elaborando em 3:21 e
nos versículos seguintes. Mesmo quando está abordando um
vergonhoso processo de acusação contra seus companheiros judeus, ele
o faz de modo a deixar pistas, para aqueles que conhecem suas Bíblias,
de que a solução está bem perto.
Para concluir o assunto de modo adequado, ele retorna, no versículo
20, à questão da lei. Ainda falando acerca dos judeus (aqueles que estão
“na lei”), explica que “as obras da lei” jamais poderiam servir de base
para alguém ser declarado “certo” — ou, em linguagem técnica, estar
“justificado”. Ele acabou de citar amplamente o Antigo Testamento, e o
ponto que está levantando aqui está diretamente ligado a isso. Se “o
judeu” apelar para sua posição com relação à aliança, que é sinalizada
pela posse da lei, a própria lei responde: “Você me descumpriu.”
“Mediante a lei, vem o conhecimento do pecado”, declara Paulo. Isso
aponta para 5:20 e para todo o capítulo 7, em que a confusão sobre lei e
a razão para Deus tê-la dado é analisada em maiores detalhes.
Entretanto, não devemos perder seu foco principal. Todos os que
imaginam poder comparecer diante de Deus e apelar para “as obras da
lei” como razão de sua justificação final, ou seja, para obter um
veredicto favorável para si no juízo final, estão apenas desperdiçando
sua energia. Apelar para a lei é o mesmo que apelar para o policial que o
apanhou em flagrante delito ou ao especialista que elaborou a lei que
você, sem dúvida, acaba de transgredir. O elemento com que tantos
judeus, incluindo o próprio Paulo, contavam que os separasse do mundo
dos ímpios (“supondo que sua esperança esteja depositada na lei”, como
em 2:17) não só deixava de oferecer proteção contra o julgamento de
Deus, como também funcionaria de forma oposta.
ROMANOS 3:21-24
A REVELAÇÃO DA JUSTIÇA DA ALIANÇA DE DEUS
21Agora, porém, bem à parte da lei (embora a lei e os profetas lhe tenham servido
de testemunhas), a justiça da aliança de Deus se fez presente. 22A justiça pactual de
Deus entrou em operação mediante a fidelidade de Jesus, o Messias, em benefício
de todo aquele que tem fé nele. Pois não existe distinção: 23todos pecaram e
necessitam da glória de Deus — 24e, pela graça de Deus, são declarados
gratuitamente certos, tornando-se membros da aliança, mediante a redenção que se
encontra no Messias, Jesus.
Há muitas peças de teatro e filmes que, quando estão chegando ao fim,
sofrem uma guinada repentina na história. Alguém chega (algumas
vezes galopando sobre um cavalo) e invade um julgamento, um
casamento ou uma execução, trazendo notícias da suspensão temporária
da sentença, a mensagem de um amor antigo ou algo parecido. No exato
momento em que pensávamos que a ação não teria mais volta, algo de
novo acontece, mudando todo o curso da história.
É esse o clima que Paulo produz com seu dramático “Agora, porém!”
no início dessa passagem — que também introduz uma seção totalmente
nova na carta, prosseguindo assim até o final do capítulo 4. Algo
especial aconteceu. O tribunal estava reunido; todos foram declarados
culpados no banco dos réus; o que mais podia ser feito?
Entretanto, algo tinha de acontecer. Vários escritores judeus, mais
ou menos contemporâneos de Paulo, refletiram profundamente sobre o
dilema enfrentado por Deus, quandotoda a raça humana voltou as
costas para ele. Para início de conversa, foi Deus quem criou o mundo.
Isso teria sido um grande erro? Foi Deus quem chamou Israel e agora
teria de enfrentar a escolha de favorecer essa nação específica, embora
Israel não merecesse, ou então teria de recuar quanto às grandiosas
promessas feitas a Abraão, Isaque e Jacó, as promessas envolvidas na
“aliança”. O mundo estava, de modo excepcional, repleto de
perversidade; entretanto, também havia muitas pessoas que sofriam
amargamente nas mãos dos opressores e que clamavam a Deus para que
lhes fizesse justiça. Como Deus poderia cumprir esses seus
compromissos claros, considerando todos os aspectos da questão?
Esse é o problema da retidão de Deus ou, caso prefira, da justiça de
Deus, ou quem sabe ainda da fidelidade pactual de Deus. Temos, diante
de nós, a questão a que Paulo se refere em 1:17, quando disse,
antecipando-se à presente passagem, que o evangelho revela a justiça
de Deus. Se fosse apenas a questão de algumas pessoas se comportarem
bem e de outras se comportarem mal, seria tudo muito mais fácil. Caso
Israel, de um modo específico, tivesse se comportado bem, e o restante
do mundo, mal, tudo prosseguiria sem alteração. Entretanto, a
complexidade do problema — e, se perdermos de vista essa
complexidade, não conseguiremos compreender os detalhes de todo
esse trecho — advém do fato de que Israel recebeu uma comissão e foi
infiel. Os portadores da solução para o problema do mundo acabaram se
tornando, eles próprios, uma parte do problema. Para que Deus
permanecesse fiel às suas promessas e a toda sua criação, teria de lidar
com tudo isso de uma só vez.
A grande ironia é que a própria aliança, o contrato com o qual Deus
se obrigou, celebrado com Abraão e sua família, foi projetado
inicialmente para tratar da perversidade humana e de suas
consequências. O livro de Gênesis está estruturado de tal modo a dizer:
Deus chamou Abraão (Gênesis 12) a fim de desfazer o problema
causado pelo pecado de Adão (cap. 3) e, com isso, colocar o projeto
original (caps. 1 e 2) de novo nos trilhos. Eis o dilema específico no qual
parece que Deus ficou preso: em face de um mundo que deu errado, ele
celebrou uma aliança com Israel mediante a qual tudo seria de novo
consertado. Ele precisa manter-se leal a essa aliança; caso contrário,
como poderá salvar o mundo? No entanto, o próprio povo da aliança o
deixou totalmente decepcionado e se revelou parte do mundo que
necessita de salvação. Deus não pode fazer o que o povo da aliança
espera (resgatá-lo de sua situação atual, apesar de eles mesmos serem
culpados) sem que seja acusado de parcialidade, de favoritismo em larga
escala. O que, então, Deus deve fazer?
O problema, portanto, não é somente com relação à justiça de Deus.
Mas, sim, sobre a justiça pactual ou justiça da aliança de Deus. Nesse
ponto, a palavra em geral traduzida como “justiça” carrega todas essas
sutilezas e ainda outras adicionais. Ela fala da maneira como Deus deve
ser e será leal em relação à sua aliança, e também da maneira como essa
mesma aliança estava lá para colocar o mundo e os seres humanos em
ordem, para endireitá-los. E agora, declara Paulo, o evangelho de Jesus
de Nazaré, o Messias de Israel, demonstra como Deus resolveu todos
esses problemas de uma só vez. A morte fiel do Messias revela, diante de
um mundo despreparado e chocado, a maneira como o único Deus
verdadeiro permaneceu fiel à aliança e, desse modo, providenciou a
resposta para um mundo que dera errado e para os seres humanos
perdidos em pecado e culpa.
Paulo abre essa famosa passagem, uma das mais conhecidas de tudo
o que escreveu, insistindo que tanto essa nova revelação se cumpriu “à
parte da lei” como a lei e os profetas dão testemunho disso. Esse
equilíbrio é vital. A nova palavra de Deus precisava ser “à parte da lei”,
porque, caso contrário, apenas os que estivessem “na lei”, ou seja, os
judeus, poderiam recebê-la. E, de acordo com o versículo 20, ela de
nada lhes adiantaria de qualquer maneira. Entretanto, precisava ser
uma palavra que, olhando em retrospecto, fosse vista como tendo
cumprido tudo o que Deus prometera havia muito tempo. Paulo insiste,
aqui e em outras partes, em que Deus não muda sua forma de pensar.
Sua palavra jamais falha.
O que era preciso, como já vimos no início do capítulo 3, era que a
fidelidade de Deus entrasse em operação. E isso sem que se descartasse
o plano da aliança de salvação do mundo através de Israel, começando
tudo outra vez por algum meio diferente. De algum modo, isso
ocorreria, sim, com a chegada de um israelita fiel que pudesse oferecer a
Deus a fiel obediência que Israel deveria ter oferecido, porém fracassou
em fazer. Israel, chamado para ser o mensageiro do plano salvador de
Deus, corrompeu sua vocação, transformando-a em mero privilégio
próprio e fracassando em passar a mensagem adiante. Agora podemos
ver quem é o israelita fiel que Paulo tinha em mente: o representante de
Israel, o Messias, Jesus.
O fato de o Messias representar seu povo, de modo que aquilo que é
verdade a seu respeito também é verdade a respeito deles e vice-versa, é
uma das surpresas no modo de pensar de Paulo. Ainda vamos deparar
com esse entendimento muitas vezes, mas, em nossa passagem atual,
isso serve para explicar a noção da fidelidade de Jesus. Em geral, as
pessoas traduzem as importantes palavras do versículo 22 como “fé em
Jesus”, mas elas apresentam o claro significado de “a fé, ou fidelidade, de
Jesus”. E, à luz de todo o capítulo, podemos verificar que isso está
correto e que Paulo não quer dizer “fé’ no sentido “do que Jesus cria”,
porém “fidelidade”, no sentido de “fidelidade de Jesus quanto aos
propósitos salvíficos que Deus tinha em mente quando chamou Israel
para celebrar com eles uma aliança”.
Paulo prossegue naturalmente enfatizando, como em 1:16-17, que os
beneficiários são os que têm fé, aqueles que creem no evangelho.
Entretanto, a ação decisiva advém quando Jesus, como o Messias de
Israel, torna-se “obediente até a morte, e morte de cruz”, conforme
Paulo coloca em Filipenses 2:8. A “obediência” do Messias se torna, de
fato, um dos mais importantes temas do capítulo 5, quando Paulo
resume suas conclusões, recordando, em especial, o presente capítulo.
“Fidelidade” e “obediência”, no final das contas, são duas formas de
dizer praticamente a mesma coisa. A “fidelidade” ressalta o papel de
Jesus no cumprimento da comissão de Israel, enquanto a “obediência”
ressalta sua submissão à vontade do pai.
O resultado disso (v. 24) é “redenção”. Esse é mais um daqueles
termos técnicos de que todo cristão já ouviu falar, mas que poucos
realmente compreendem. Paulo resume, no versículo 23, o ponto ao
qual chegou com sua reflexão até aqui: tanto os judeus como os gentios
pecaram e falharam em refletir a glória de Deus — glória à qual, como
criaturas portadoras de sua imagem, foram chamados a refletir. Na
perspectiva clássica bíblica, estão todos escravizados, do mesmo modo
que Israel no Egito. O que Deus fez com Israel à época fez em relação ao
mundo inteiro agora, em Jesus: ele providenciou “redenção”.
A palavra é um termo técnico que se refere a comprar de volta um
escravo do mercado de escravos, ou resgatar um objeto de uma loja de
penhores. No entanto, Paulo não a usa aqui apenas como uma metáfora,
como mais uma figura entre tantas outras. Ele a emprega porque, para
ele, a morte de Jesus é de fato o Novo Êxodo, o momento no qual os
escravos são libertados. Ele ainda tem muito a falar a esse respeito mais
adiante, porém aqui ele apenas o declara. Deus supriu a necessidade do
mundo, libertando-o da escravidão.
Essa “redenção” provê o que as pessoas culpadas no banco dos réus
dificilmente ousariam esperar: não somente o perdão, porém o veredicto
de “estarem certas!”. É claro que, uma vez que são realmente culpados,
esse veredicto tem o efeito de um perdão gratuito; mas, quando Paulo,
no início do versículo 24, declara que eles “são gratuitamente
declarados justificados”, quer dizer não apenas que são deixadosem
liberdade — o que em si, de forma extraordinária, já seria suficiente —,
mas também que recebem o status de o povo da aliança de Deus, o povo
já declarado como “certo” no presente, muito antes do grande veredicto
do último dia.
Como Deus pode fazer uma coisa de tamanha magnitude? Como
pode a morte, mesmo sendo a do Messias Jesus, surtir esse efeito?
Como Deus pode declarar que as pessoas “estão certas”, aqui e agora,
tempos antes do dia final, quando os segredos de todos os corações
serão revelados? Paulo responde a essas perguntas, vez após vez, em
vários pontos de seus escritos. Entretanto, os dois versículos seguintes,
de tanta densidade, fornecem-nos uma explicação imediata e é para eles
que nos voltamos agora.
ROMANOS 3:25-26
A MORTE DE JESUS REVELA A JUSTIÇA DA ALIANÇA DE DEUS
25Deus introduziu Jesus em posição de misericórdia, mediante sua fidelidade, por
meio de seu sangue. Ele fez isso para demonstrar a sua justiça pactual, através da
tolerância (segundo a longanimidade divina) dos pecados anteriormente
cometidos. 26Isso ocorreu para que pudesse demonstrar a justiça de sua aliança no
tempo presente; ou seja, que ele próprio está certo, e que ele também declara como
certo todo aquele que confia na fidelidade de Jesus.
Algumas vezes — e hoje é uma dessas vezes —, minha mesa de trabalho,
e outras no escritório, estão tão repletas de enormes pilhas de papéis
que eu já sei que não adianta nada apanhar um ou dois deles, vez após
outra, procurando colocar tudo em dia. Eu preciso adotar um
procedimento diferente, reservando uma ou duas horas para trabalhar,
de forma sistemática, sobre eles, respondendo às cartas, arquivando os
incontáveis documentos que talvez eu queira ver de novo e (é claro)
jogando um monte deles na cesta de lixo.
Aqui, a última coisa que eu recomendaria é jogar qualquer sílaba dos
escritos de Paulo na cesta de lixo, mas, com essa exceção em mente, a
analogia é bastante útil. Existem alguns trechos de seus escritos que
podemos assimilar com relativa facilidade. No entanto, existem outros,
como este que temos aqui agora, de conteúdo tão denso que a única
maneira de lidar com eles é sentando-se e trabalhando sobre eles de
forma minuciosa e completa. Em alguns pontos, encontraremos o
equivalente a cartas que demandam resposta; ou seja, haverá, ou
deveria haver, partes que deveriam levar-nos à oração, à reflexão, a
expressar gratidão e adoração. Em outras partes, encontraremos o
equivalente a documentos a serem arquivados; ou seja, haverá (ou
deveria haver) ideias, imagens e temas que desejaremos anotar para
futura consulta, colocando-os em algum canto de nossa mente ou talvez
até mesmo em um caderno ao qual poderemos ter acesso sempre que
precisarmos.
Essa passagem sugere que existem ao menos três pilhas principais
nas quais necessitamos classificar o material. Muito incomum de sua
parte, Paulo repete praticamente a mesma frase, que traduzi como
“demonstrar a justiça de sua aliança”. A primeira vez está relacionada a
Deus lidando com o pecado. A segunda vez tem a ver com a
demonstração de Deus de que ele próprio está certo e com sua
declaração a respeito do novo status de seu povo renovado. E, diante
dessa dupla demonstração, encontramos uma breve e poderosa
declaração sobre a morte sacrificial de Jesus.
Vamos colocá-las em ordem. Paulo acabou de afirmar que Deus
providenciou “redenção” em Jesus — ou seja, o resgate da escravidão.
Agora, ele desloca o foco para a linguagem do templo e do sacrifício.
Deus “introduz Jesus” do mesmo modo que um sacerdote do Templo
introduziria o pão da Presença no altar (Levítico 24:8 e em outros
lugares). Paulo combina essa palavra com outra especial que se refere a
um item da mobília do templo em particular: O “assento da
misericórdia”, o “lugar de misericórdia”, onde, entre os anjos esculpidos,
Deus se encontrava com seu povo em graça e perdão. No lugar do
templo e de seu simbolismo, Paulo está dizendo que, agora, o próprio
Jesus é o lugar no qual (e também o meio pelo qual) o Deus de Israel
encontrou-se com seu povo e perdoou seus pecados. Uma terceira ideia
se une, de forma significativa, a essas duas primeiras: o perdão é
efetivado mediante o sangue de Jesus. Sua morte sacrificial está no
próprio cerne do plano salvífico de Deus.
Paulo não explica mais do que isso, qual é sua compreensão dessas
ideias ou como as vê reunidas em um só quadro. No entanto, juntas, elas
declaram, de maneira poderosa, que a morte de Jesus trouxe à luz a
realidade da qual o templo era apenas um sinal antecipado que indicava
o caminho. A melhor forma de se compreender o que Paulo está
mostrando consiste em imaginar que ele possuía como pano de fundo de
seus pensamentos o perfil completo do Servo Sofredor de Isaías 53, o
que inclui a ideia da morte sacrificial do Servo e pertence, dentro de
uma perspectiva mais ampla, ao modo como o Deus de Israel pode ser,
afinal, fiel a seu antigo plano da aliança (a justiça de Deus).
Se isso nos capacita a colocar em ordem todas as ideias da primeira
sentença do versículo 25, o que dizer da segunda? Deus, afirma Paulo,
tolerou os pecados cometidos anteriormente e agora está demonstrando
sua justiça a respeito desse fato. Como afirmou no início do capítulo 2,
Deus tem sido bondoso e longânimo, paciente para com os pecadores
persistentes, dando-lhes uma chance de arrependimento.
Isso pode ter parecido uma fraqueza, ou ainda ter dado a ideia de
que Deus não se importa tanto assim com o pecado. Nada pode estar
mais distante da verdade. Deus estava obrigado, em função de ser o
criador e o juiz do mundo, a agir de maneira decisiva em relação ao
pecado — o que significa puni-lo. Aqui encontramos mais um
significado no conceito de “lugar de misericórdia” da sentença anterior.
A mesma raiz da palavra também se refere a um sacrifício
“propiciatório”, ou seja, um sacrifício que não só purifica as pessoas do
pecado, como também desvia a ira de Deus, a qual, de outro modo,
recairia com justiça sobre o pecador. Apesar de, mais uma vez, Paulo
não dar maiores explicações nem trazer mais detalhes, há toda uma
gama de linhas convergentes de pensamento que torna muito provável
que ele veja Jesus também dentro dessa perspectiva — em outras
palavras, como aquele sobre quem a ira apropriada de Deus,
direcionada contra o pecado do mundo, agora recai (de certa forma,
uma declaração mais completa sobre esse mesmo tema se encontra em
8:3). No cerne da justiça da aliança de Deus, portanto, está seu
“introduzir” Jesus a fim de levar sobre si mesmo a ira de Deus, da qual
Paulo fala no capítulo 1. O dia do juízo final foi antecipado para o meio
da história. O justo veredicto de Deus contra os pecadores foi
pronunciado contra o israelita fiel, o representante de Israel: o Messias,
Jesus.
Creio que estamos começando a perceber ordem e significado no
denso fluxo de palavras de Paulo. A última ideia, a de um veredicto
sendo antecipado para o meio da história, capacita-nos a entender
também a sequência final. A justiça da aliança de Deus, exibida em sua
forma de lidar com o pecado mediante a morte de Jesus, também é
demonstrada pela declaração gratuita, no presente, de que todo aquele
que crê no evangelho está justificado [é declarado certo]. Mais uma
vez, o veredicto do último dia foi antecipado para o meio da história.
Não temos de esperar para descobrir quem será inocentado, quem, de
fato, pertence ao povo de Deus. Eles já usam uma marca distintiva que
os destaca “no tempo presente”, como diz Paulo. Aqui está o significado
da expressão “justificação pela fé”: quando alguém crê no evangelho,
Deus declara que ele é verdadeiramente um dos que serão inocentados
no futuro.
Essa declaração carrega em si um sentido jurídico: é como conhecer
o veredicto antes mesmo de se ouvir o caso. Ela também guarda em si o
sentido de aliança: no presente, vemos aqueles a quem Deus vai
declarar como os verdadeiros filhos de Abraão (ver o cap. 4) no futuro.
E,12:31b—13:7 • A necessidade do amor e o caráter do
amor
1CORÍNTIOS 13:8-13 • Amor: a ponte para o futuro de Deus
1CORÍNTIOS 14:1-5 • Prioridades na adoração
1CORÍNTIOS 14:6-12 • Falando com clareza na igreja
1CORÍNTIOS 14:13-19 • Orando com a mente e com o espírito
1CORÍNTIOS 14:20-25 • Sinais para os crentes e os incrédulos
1CORÍNTIOS 14:26-40 • Instruções finais para adoração
1CORÍNTIOS 15:1-11 • O Evangelho do Messias: crucificado,
sepultado e ressurreto
1CORÍNTIOS 15:12-19 • E se o Messias não houvesse ressuscitado?
1CORÍNTIOS 15:20-28 • O Reino do Messias
1CORÍNTIOS 15:29-34 • A ressurreição dá sentido à vida cristã no
presente
1CORÍNTIOS 15:35-49 • O corpo transformado da ressurreição
1CORÍNTIOS 15:50-58 • O mistério e a vitória
1CORÍNTIOS 16:1-9 • A oferta e os planos de Paulo
1CORÍNTIOS 16:10-14 • Timóteo e Apolo
1CORÍNTIOS 16:15-24 • O amor que costura tudo junto
Glossário
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Introdução
Mapa
2CORÍNTIOS 1:1-7 • O Deus de todo-conforto
2CORÍNTIOS 1:8-14 • Incrivelmente esmagado
2CORÍNTIOS 1:15-22 • Os planos de Paulo e o “sim” de Deus
2CORÍNTIOS 1:23—2:4 • Visita dolorosa, carta dolorosa
2CORÍNTIOS 2:5-11 • Tempo de perdoar
2CORÍNTIOS 2:12-17 • O cheiro da vida, o cheiro da morte
2CORÍNTIOS 3:1-6 • A letra e o espírito
2CORÍNTIOS 3:7-11 • Morte e glória
2CORÍNTIOS 3:12-18 • O véu e a glória
2CORÍNTIOS 4:1-6 • Luz que brilha na escuridão
2CORÍNTIOS 4:7-12 • Tesouros em vasos de barro
2CORÍNTIOS 4:13-18 • O Deus de todo-conforto
2CORÍNTIOS 5:1-5 • Uma casa esperando nos céus
2CORÍNTIOS 5:6-10 • O trono de julgamento do Messias
2CORÍNTIOS 5:11-15 • O amor do Messias nos faz persistir
2CORÍNTIOS 5:16—6:2 • Nova criação, novo ministério
2CORÍNTIOS 6:3-13 • Os servos de Deus trabalhando
2CORÍNTIOS 6:14—7:1 • Não se comporte como um deles
2CORÍNTIOS 7:2-10 • O Deus que conforta o desanimado
2CORÍNTIOS 7:11-16 • Nosso orgulho se provou verdadeiro
2CORÍNTIOS 8:1-7 • A generosidade das igrejas da Macedônia
2CORÍNTIOS 8:8-15 • Copiando a generosidade do Senhor Jesus
2CORÍNTIOS 8:16-24 • Os companheiros de Paulo estão a caminho
2CORÍNTIOS 9:1-5 • Por favor, tenham a oferta separada!
2CORÍNTIOS 9:6-15 • Deus ama a quem dá com alegria
2CORÍNTIOS 10:1-11 • A batalha pela mente
2CORÍNTIOS 10:12-18 • Orgulhando-se no Senhor
2CORÍNTIOS 11:1-6 • Superapóstolos?
2CORÍNTIOS 11:7-15 • Não, eles são apóstolos falsos!
2CORÍNTIOS 11:16-21a • O orgulho de um tolo relutante
2CORÍNTIOS 11:21b-33 • Orgulhando-se da fraqueza
2CORÍNTIOS 12:1-10 • A visão e o espinho
2CORÍNTIOS 12:11-18 • Os sinais de um verdadeiro apóstolo
2CORÍNTIOS 12:19—13:4 • O que vai acontecer quando Paulo
chegar?
2CORÍNTIOS 13:5-10 • Testem a si mesmos
2CORÍNTIOS 13:11-13 • Graça, amor e comunhão
Glossário
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Introdução
Mapa
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GÁLATAS 1:1-9 • O sofrimento de Paulo em relação aos gálatas
GÁLATAS 1:10-17 • A conversão e o chamado de Paulo
GÁLATAS 1:18-24 • A primeira visita de Paulo a Pedro
GÁLATAS 2:1-5 • Firmes contra a oposição
GÁLATAS 2:6-10 • O acordo de Paulo com Pedro e Tiago
GÁLATAS 2:11-14 • Paulo confronta Pedro em Antioquia
GÁLATAS 2:15-21 • Justificados pela fé, não pelas obras da lei
GÁLATAS 3:1-9 • A promessa de Deus e a fé de Abraão
GÁLATAS 3:10-14 • Redimidos da maldição da lei
GÁLATAS 3:15-22 • Cristo, a semente; Cristo, o mediador
GÁLATAS 3:23-29 • A chegada da fé
GÁLATAS 4:1-7 • O filho e o espírito
GÁLATAS 4:8-11 • O verdadeiro Deus e os falsos deuses
GÁLATAS 4:12-20 • O apelo de Paulo aos seus filhos
GÁLATAS 4:21-31 • Os dois filhos de Abraão
GÁLATAS 5:1-6 • Liberdade em Cristo
GÁLATAS 5:7-12 • As advertências contra a concessão
GÁLATAS 5:13-21 • A lei e o espírito
GÁLATAS 5:22-26 • Os frutos do espírito
GÁLATAS 6:1-5 • Levando os fardos uns dos outros
GÁLATAS 6:6-10 • Apoio prático na igreja
GÁLATAS 6:11-18 • Vangloriando-se na cruz
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1TESSALONICENSES 1:1-5 • O evangelho chega a Tessalônica
1TESSALONICENSES 1:6-10 • A fé dos tessalonicenses
1TESSALONICENSES 2:1-8 • O ministério de Paulo em Tessalônica
1TESSALONICENSES 2:9-12 • A preocupação paternal de Paulo
1TESSALONICENSES 2:13-16 • A igreja perseguida
1TESSALONICENSES 2:17-20 • A alegria e a coroa de Paulo
1TESSALONICENSES 3:1-5 • Timóteo é enviado
1TESSALONICENSES 3:6-10 • O relato de Timóteo
1TESSALONICENSES 3:11-13 • As palavras abençoadoras de Paulo
1TESSALONICENSES 4:1-8 • As instruções de uma vida santa
1TESSALONICENSES 4:9-12 • Uma vida de amor
1TESSALONICENSES 4:13-18 • A vinda do Senhor
1TESSALONICENSES 5:1-11 • Os filhos da luz
1TESSALONICENSES 5:12-22 • Exortações finais
1TESSALONICENSES 5:23-28 • Bênçãos e desafios finais
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2TESSALONICENSES 1:1-7a • Saudações e gratidão
2TESSALONICENSES 1:7b-12 • A vinda de Jesus
2TESSALONICENSES 2:1-12 • O homem da iniquidade
2TESSALONICENSES 2:13-17 • Exortação à perseverança
2TESSALONICENSES 3:1-5 • Pedidos de oração
2TESSALONICENSES 3:6-13 • Os riscos da ociosidade
2TESSALONICENSES 3:14-18 • Recomendações finais
Glossário
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Introdução
Mapa
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EFÉSIOS 1:1-3 • Bênçãos ao Deus soberano!
EFÉSIOS 1:4-10 • A escolha e o plano
EFÉSIOS 1:11-14 • A herança e o espírito
EFÉSIOS 1:15-23 • Conhecendo o poder do rei
EFÉSIOS 2:1-7 • Sinais de alerta na estrada errada
EFÉSIOS 2:8-10 • Graça, não obras
EFÉSIOS 2:11-16 • Dois se transformarão em Um
EFÉSIOS 2:17-22 • Revelando o novo santuário
EFÉSIOS 3:1-7 • Por fim, o plano secreto de Deus é revelado
EFÉSIOS 3:8-13 • Sabedoria para os governantes
EFÉSIOS 3:14-21 • O amor de Deus, o poder de Deus — em nós
EFÉSIOS 4:1-10 • Vivendo de acordo com seu chamado!
EFÉSIOS 4:11-16 • Cristianismo maduro
EFÉSIOS 4:17-24 • Dispa-se do velho; vista-se com o novo
EFÉSIOS 4:25—5:2 • A bondade que imita o próprio Deus
EFÉSIOS 5:3-10 • Escuridão e luz nas questões de sexo
EFÉSIOS 5:11-20 • Luz e escuridão
EFÉSIOS 5:21-33 • Esposas e maridos
EFÉSIOS 6:1-9 • Crianças, pais, escravos e chefes
EFÉSIOS 6:10-17 • A armadura completa de Deus
EFÉSIOS 6:18-24 • Oração e paz
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FILIPENSES 1:1-11 • As razões de Paulo para a gratidão
FILIPENSES 1:12-18a • O rei é proclamado
FILIPENSES 1:18b-26 • Viver ou morrer?
FILIPENSES 1:27-30 • O evangelho em público
FILIPENSES 2:1-4 • Unidade em tudo
FILIPENSES 2:5-11 • A mente do Messias
FILIPENSES 2:12-18 • Como a salvação é revelada
FILIPENSES 2:19-24 • Sobre Timóteo
FILIPENSES 2:25-30 • Sobre Epafrodito
FILIPENSES 3:1-6 • Advertência: não confie na carne
FILIPENSES 3:7-11 • Ganhando o Messias
FILIPENSES 3:12-16 • Perseguindo a linha de chegada
FILIPENSES 3:17—4:1 • Cidadãos do céu
FILIPENSES 4:2-9 • Celebrem no Senhor!
FILIPENSES 4:10-13 • O segredo oculto
FILIPENSES 4:14-23 • Agradecimentos finais e saudações
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COLOSSENSES 1:1-8 • Graças pela obra do Evangelho
COLOSSENSES 1:9-14 • Oração por sabedoria e gratidão
COLOSSENSES 1:15-20 • Em louvor ao rei Jesus
COLOSSENSES 1:21-23 • Reconciliados e firmes na fé
COLOSSENSES 1:24-29 • O rei que vive em você
COLOSSENSES 2:1-7 • O tesouro escondido de Deus — o rei Jesus!
COLOSSENSES 2:8-12 • Cuidado com os impostores
COLOSSENSES 2:13-19 • A lei e a cruz
COLOSSENSES 2:20—3:4 • Morrer e ressuscitar com Cristo
COLOSSENSES 3:5-11 • Roupas velhas; roupas novas
COLOSSENSES 3:12-17 • Amor, paz e ações de graças
COLOSSENSES 3:18—4:1 • A família cristã
COLOSSENSES 4:2-9 • A fraternidade da oração
COLOSSENSES 4:10-18 • Saudações de outros
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FILEMOM 1-7 • Saudações
FILEMOM 8-14 • O apelo de Paulo
FILEMOM 15-25 • A perspectiva de Paulo
Glossário
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Introdução
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1TIMÓTEO 1:1-7 • Ensino verdadeiro sobre a verdade
1TIMÓTEO 1:8-11 • O propósito da lei
1TIMÓTEO 1:12-17 • Paulo como um exemplo da graça salvadora de
Deus
1TIMÓTEO 1:18-20 • A batalha da fé
1TIMÓTEO 2:1-7 • A primeira regra: oração pelo mundo
1TIMÓTEO 2:8-15 • É preciso permitir que as mulheres aprendampor fim, carrega um sentido do futuro adentrando o presente em
Jesus. Aqueles que conhecerão um veredicto favorável no último dia
(conforme o cap. 2) são aqueles que recebem a garantia disso de forma
antecipada, simplesmente ao crerem.
Isso ainda demonstra que o próprio Deus “está certo”. Nós nos
lembramos da confusão feita por certos escritores contemporâneos de
Paulo: em face do pecado universal e das promessas de Deus a Israel,
como Deus pode ser justo, como Deus pode estar certo, ser fiel à aliança
e, ao mesmo tempo, fazer o que um juiz justo deve fazer — por um lado,
tratando do mal, e, por outro, resgatando pessoas impotentes que a ele
clamam em sua aflição? Aquilo que Paulo escreve aqui, em um estilo
reconhecidamente denso e bem compactado, corresponde a essas
questões. Na morte de Jesus, Deus mostrou a si mesmo (1) certo [justo]
ao lidar, de maneira apropriada e imparcial, com o pecado; (2) fiel para
com sua aliança; (3) tratando o pecado de forma adequada; (4)
mantendo o compromisso de salvar aqueles que clamam com fé, em
meio à sua impotência. Parece que a última linha desse texto, em si
mesma bastante densa, quer dizer o seguinte: que, como a fidelidade de
Jesus foi o meio pelo qual a própria fidelidade da aliança de Deus foi
revelada, aqueles que depositam sua própria fé na ação de Deus em
Jesus são sinalizados desse modo como o povo de Deus já no presente.
Deus justificados [declarados certos]; nós, que confiamos em seu
evangelho, estamos certos; e tudo isso por causa da morte de Jesus.
Quando estamos lendo Paulo, existem muitos momentos em que a
reação correta seria ficarmos de joelhos e darmos graças a Deus. Este
momento é um deles.
ROMANOS 3:27-31
O DEUS TANTO DE JUDEUS COMO DE GENTIOS
27O que dizer, então, da vanglória? Foi excluída! Por meio de que tipo de lei? Pela
lei das obras? Não: pela lei da fé! 28Calculamos, portanto, que uma pessoa é
declarada como estando certa com base na fé, à parte das obras da lei. 29Ou Deus é
apenas o Deus dos judeus? Não é, de igual modo, também o Deus das nações? Sim,
é claro, também das nações, 30uma vez que Deus é um só. Ele fará a declaração “de
estarem certos” sobre os circuncisos com base na fé, e sobre os incircuncisos
também, mediante a fé.
31Abolimos, portanto, a lei pela fé? Certamente que não! Antes, nós a
estabelecemos.
Uma das coisas que, regularmente, confundem os cristãos, quando saem
da Grã-Bretanha e vão para a América do Norte ou vice-versa, é que,
conforme diz um amigo meu, “eles cantam os hinos certos nos tons
errados”. Em alguns casos, existem tons completamente diferentes,
desconhecidos do outro lado do Atlântico, para os mesmos hinos.
Outras vezes, cantam em tons bem conhecidos, mas com letras bem
diversas.
Algo semelhante a isso ocorre quando Paulo apanha a ideia de lei —
a lei judaica, a Torá — e a coloca em um novo tom. Até aquele momento,
ele e muitos outros judeus de seu tempo (não apenas os fariseus como
ele, mas também outros grupos, como aqueles que escreveram os
Manuscritos do mar Morto) pegavam a lei e a cantavam em um tom
como o que segue: Deus deu a Torá a Israel, a lei santa, justa e boa. A
Israel, ordena-se guardar a Torá; aqueles que o fizerem serão
considerados o povo de Deus quando ele agir na história a fim de julgar
as nações e resgatar Israel de suas garras. A maneira de dizer no
presente quem será considerado justificado no futuro é que eles estão
guardando “as obras da lei” no presente momento. Essa é sua marca
distintiva no presente, o sinal presente de que eles serão justificados no
futuro.
Essa é a doutrina da “justificação pelas obras da lei”. É possível vê-
la estabelecida com clareza em um dos Manuscritos do mar Morto (o
que é conhecido, pelos rótulos aplicados pelos estudiosos, como
documento 4QMMT). Muitas vezes, grupos específicos ressaltariam
certas “obras” em particular, inclusive sua própria interpretação de
mandamentos bíblicos específicos. Eles tomavam como certo que todos
os judeus sabiam que precisavam guardar a Torá escrita, de modo que
procuravam martelar na cabeça das pessoas novas leis que, segundo
pensavam, expressavam a Torá de forma ainda mais precisa, levando em
conta suas circunstâncias específicas.
Essa questão de “identificar as pessoas de forma antecipada”,
computando no presente quem seria inocentado no futuro, estava
sempre restrita aos judeus. Somente eles possuíam a Torá e, portanto,
em tese, tinham a chance de guardá-la (os prosélitos, ou seja, os gentios
convertidos ao judaísmo, também podiam ser contados, mas somente ao
se tornarem de fato judeus, mediante a circuncisão e assumindo para si
as obrigações da Torá). Além disso, a questão de identificar as pessoas
no presente, antes do julgamento futuro, costumava contemplar uma
restrição dentro do próprio Israel. Os fariseus (e seus sucessores, os
rabinos) pensavam que suas interpretações eram as únicas válidas.
Havia outras divisões sobre esse ponto entre os próprios fariseus. Os
escritores dos rolos pensavam que apenas sua seita seria considerada
justificada — e, nesse contexto, somente aqueles dentro da seita que
guardassem a lei de forma “adequada”.
A palavra de Paulo para descrever tudo isso é “vanglória”, e ele
declara que ela foi excluída pelo evangelho. Ele toma o tema da “lei”,
colocando-o sob um tom completamente diferente, que nem ele nem
seus contemporâneos podiam ter imaginado antes. Como é possível
cumprir a lei? Como a lei pode dizer a você quem, no presente, está
identificado como pertencente ao povo que Deus declarará justificado
no futuro? A resposta é: não pode — caso você esteja entoando a “lei”
em tom de “obras”. Mas pode, sim, caso você a entoe no tom chamado
“fé”.
Essa é uma ideia tão estranha que muitos leitores e a maior parte
dos tradutores a deixaram de lado, traduzindo “lei” no versículo 27
como “sistema”, “princípio” ou algo parecido com isso. Isso parece fazer
algum sentido, mas somente ao exorbitante custo de fazer Paulo entoar
um hino completamente diferente. Mais adiante nessa carta, em
particular em 10:4-9, ele explicará, em maiores detalhes, o que quer
dizer por cumprimento da lei judaica mediante a fé que crê no
evangelho do Jesus crucificado e ressurreto. Aqui, ele simplesmente
toma como certa essa linha de pensamento, correndo para seus
principais pontos. Há três deles, cada um deles vital para se
compreender o ponto nevrálgico de Romanos.
Primeiro, a própria “justificação pela fé”. Conforme enfatizei na
passagem anterior, isso se refere ao fato de que, quando alguém crê no
evangelho de Jesus, Deus declara antecipadamente o veredicto do
último dia: essa pessoa faz parte da família da aliança, ou seja, está entre
as pessoas cujos pecados foram perdoados, pertencendo ao verdadeiro
povo de Abraão, o povo do Messias.
Existem muitas outras conclusões a que as pessoas já chegaram
sobre o que Paulo quis dizer com “justificação pela fé”. Isso, porém, está
no centro de sua definição. Isso não quer dizer que Deus não esteja
interessado em santidade. Não significa que as regras não são
importantes, que “tudo vale”, desde que se tenha “uma fé” qualquer.
Igualmente, não quer dizer que o que importa são os sentimentos ou as
emoções no lugar da crença e do comportamento. Tampouco significa
que Deus tentou fazer as pessoas serem boas, dando-lhes “obras” de
caráter moral para fazer e, ao descobrir que isso era difícil demais para
elas, baixou o nível de exigência, com o propósito de tornar as coisas
mais fáceis. Significa, sim, algo mais seguro, mais garantido, mais
estimulante e, sem dúvida alguma, surpreendente. Significa que,
quando as pessoas creem nessa mensagem específica, de que Jesus é o
Senhor e de que Deus o ressuscitou dentre os mortos, e por isso confiam
a si mesmos ao Deus que realizou tudo isso, recebem a garantia agora,
no presente, de pertencer à família de Deus. Isso não acontece por
haver algo de meritório nessa crença, como se, no fim das contas, fosse
“algo que fazemos para merecer o favor de Deus”. Antes, isso ocorre
porque essafé é o sinal firme e infalível de que o evangelho já
transformou o coração dessas pessoas, de modo que, agora, elas
pertencem verdadeiramente à nova aliança. A fé, como ensina Paulo
mais adiante nessa carta, vem pelo ouvir, e o ouvir, pela palavra
proclamada do Messias (10:17).
O segundo ponto principal é que, se essa fé é a marca distintiva
única e exclusiva no presente para identificar o novo povo da aliança de
Deus, então os judeus e os gentios pertencem, de igual modo, a esse
povo, na mesma base. Por isso a “vanglória” está excluída. Se a base
estivesse, sob qualquer hipótese, na “lei das obras”, então os judeus
estariam, no mínimo, em posição de vantagem — como podemos ver nos
fariseus e na seita do mar Morto. No entanto, se uma pessoa é
considerada certa com base na fé, e não nas obras da lei, não subsistirá a
tal posição vantajosa. É por esse motivo que Paulo logo parte para o
confronto com todo aquele que ousa questionar sua conclusão: então,
você diria que Deus, no fim das contas, é apenas o Deus dos judeus? Ele
não é o único Deus, o criador de todo o mundo? Portanto, ele não
providenciaria um conjunto único de regras que garanta a equidade a
todos os membros da nova família da aliança? Sim, ele fará isso, declara
Paulo. Quando os judeus crerem no evangelho, Deus os reafirmará
como participantes da aliança com base naquela fé. E, quando os não
judeus crerem no evangelho, Deus vai declarar que eles entraram para a
família da aliança exatamente através da mesma fé. (Isso explica a
súbita mudança em sua fala no versículo 30: os circuncisos “com base na
fé” e os incircuncisos “mediante a fé”.)
Em relação ao terceiro ponto, contido nesse último, vale a pena
estendermos nossa reflexão um pouco mais. O monoteísmo reside no
próprio cerne da fé judaica, e Paulo o emprega aqui para provocar um
efeito devastador naqueles que reivindicam uma posição de privilégio
permanente para os judeus. “Ouve, ó Israel, YHWH, nosso Deus,
YHWH é um”: essa era e permanece sendo a confissão básica de fé,
utilizada como uma oração diária por judeus devotos desde aqueles dias
até hoje. Na verdade, essa oração era vista, de certa perspectiva, como o
próprio centro da Torá, resumindo em si (em Deuteronômio 6:4-5) boa
parte do que já fora transcrito. Foi dessa maneira que o próprio Jesus a
viu (Marcos 12:29-30). Agora, Paulo aborda o mesmo tema, de modo a
amarrar sua argumentação de que “não há distinção” (3:22; e, em 10:12,
ele aborda mais ou menos o mesmo ponto). Se Jesus é o Messias de
Israel, é chegada a hora de todas as nações serem convidadas a
participar, em igualdade de condições, do povo de Deus.
Isso significa que Paulo pode concluir, de forma triunfal, sua linha
de argumentação: estamos entoando um hino totalmente diferente
agora? Estamos abolindo a lei? Não, é claro que não! Nós a estamos
dispondo em um tom muito melhor. Um tom que o próprio Deus
revelou. Jamais houve a intenção de que a lei fosse cumprida “por
obras”, da forma como os fariseus e outros tentaram fazer (ver 9:30 a
10:14). Desde o início, a lei foi projetada para ser entoada segundo o
tom chamado “fé”. Com frequência, imagina-se que Paulo tinha uma
visão negativa da lei, mas uma das razões para ele ter escrito Romanos
foi deixar bastante claro que isso estava errado. A lei sempre foi a lei de
Deus — e não foi abolida. Em vez disso, ela é cumprida de uma forma
que ninguém jamais imaginou: mediante a fé. Esse é o tom que faz com
que as palavras tenham o melhor sentido.
ROMANOS 4:1-8
A ALIANÇA DE DEUS COM ABRAÃO
1O que diremos, então? Descobrimos que Abraão é nosso ancestral segundo o
homem, no sentido da carne? 2Afinal de contas, se Abraão é considerado “certo
[justo]” com base nas obras, então ele tem motivo para se vangloriar — mas não
diante de Deus!
3Portanto, o que a Bíblia diz? “Abraão creu em Deus, e isso foi computado a seu
favor, indicando que ele fora declarado certo [justificado].” 4Agora, quando alguém
realiza “obras”, a recompensa que recebe não é considerada na base da
generosidade, mas na base do que lhe é devido. 5Entretanto, se alguém não realiza
“obras”, mas simplesmente crê naquele que declara os ímpios como “certos”, a fé
que essa pessoa tem é contada como fazendo parte da justiça da aliança.
6Observamos a mesma coisa quando Davi fala da bênção que advém a alguém, a
quem Deus estima como certo à parte das obras:
7“Bem-aventurados são aqueles cujas transgressões são perdoadas e cujos
pecados são encobertos”;
8“Bem-aventurado é o homem a quem o Senhor não imputa pecado.”
Imagine um menino de quatro anos que perdeu os pais em uma guerra
terrível. Ele já tem idade suficiente para compreender o ocorrido e
também para sofrer por isso, mas nem de longe tem idade suficiente
para se sustentar por conta própria. Alguns parentes distantes cuidam
dele por algum tempo, porém não dispõem do espaço nem dos recursos
necessários para sustentá-lo de forma permanente. Eles o colocam para
adoção. Ele fica imaginando o que será dele, em uma mescla de
esperança e medo.
Então, um dia chega uma mensagem. Um casal sem filhos pergunta
se pode adotá-lo e criá-lo como seu próprio filho. Suas emoções estão
imersas em uma grande confusão. É claro que ele está radiante. Surgiu
uma perspectiva de futuro e a chance de uma vida nova. Ao mesmo
tempo, porém, está preocupado. Que tipo de pessoas serão? Onde
vivem? Que espécie de vida levam? Em resumo, de que tipo de família
ele está prestes a fazer parte?
A esta altura, essa é a pergunta natural que Paulo formula,
considerando o que já disse em 3:21-31.
Entretanto, essa nem sempre foi a pergunta natural para as pessoas
que costumam ler Romanos. Muitos já leram o capítulo 3 como se fosse
simplesmente a respeito de como pecadores, de forma individual, são
justificados pela graça mediante a fé, sem referência às promessas de
Deus para com Israel, à aliança e à “justificação” como a declaração de
Deus de que, agora, o crente faz parte da família da aliança, a família na
qual e através da qual Deus prometeu resolver a questão do mal. Se
você deixar tudo isso de fora, então o capítulo 4, obviamente, aparecerá
como uma surpresa inesperada no caminho. Por que Paulo, de repente,
haveria de querer falar sobre Abraão?
Várias respostas já foram dadas. Alguns sugerem que os oponentes
de Paulo eram grandes admiradores de Abraão, de modo que ele quis
demonstrar a possibilidade de usá-lo como estando de seu lado na
discussão. Outros sugerem que Paulo simplesmente quis sustentar o
que já dissera com um texto das Escrituras, a fim de mostrar que essa
nova doutrina realmente “cumpre a lei”, no sentido de estar profetizada
nas Escrituras Sagradas. Outros sugerem ainda que Paulo estaria
apenas dando um exemplo da Bíblia de alguém que fora justificado pela
fé. Todas essas são maneiras de não levar amplamente a sério o
raciocínio de Paulo.
Assim, para voltarmos ao ponto, após ter lido o capítulo 3 (e, no que
concerne a esse assunto, também o cap. 2) da forma como lemos, a
pergunta sobre Abraão é a pergunta natural a ser feita, exatamente
como aquela que foi feita no assunto equivalente em Gálatas. Abraão foi
o início da família da aliança, a família à qual agora pertencem os
crentes. A “justificação” é a declaração de Deus de que alguém foi
adotado nessa família. Mas que tipo de família é essa?
Isso nos ajuda a compreender a pergunta que inicia o capítulo. É
uma pergunta estranha, e a maioria das traduções falha em
compreendê-la. Não existe nada no grego que corresponda ao que
encontramos na maior parte das versões, sobre Abraão ter alcançado
alguma coisa. Como ocorre na maior parte das vezes, Paulo começa com
uma breve pergunta: “Que diremos, então? E, mais uma vez, como em
tantas outras, ele propõe algo que, logo em seguida, contra-argumenta:
descobrimos que Abraão é nosso ancestral segundo a carne? Em outras
palavras, a família na qual agora fomos adotados é a família de sangue, a
família física de Abraão? Ou somos seus parentes de alguma outra
forma? Isso introduz a temática de todo o capítulo, que nada tema ver
com Abraão como um exemplo de justificação ou com uma prova
extraída das Escrituras, ou com qualquer outra coisa assim tão trivial.
Trata-se, sim, de uma exposição da intenção de Deus de estabelecer
aliança com Abraão em primeiro lugar e, a partir daí, da natureza da
família de Abraão. O clímax do capítulo se apresenta em uma passagem
muitas vezes considerada um aparte, no versículo 17. A questão central
é que a família de Abraão não é composta de uma única etnia, mas de
“muitas nações”.
A espinha dorsal do capítulo é a exposição de Paulo sobre Gênesis
15. Ele cita 15:6 no versículo 3 e depois prossegue referindo-se a esse
mesmo texto e aos temas mais amplos do capítulo e do contexto
imediato de Gênesis, ao lonto de Romanos 4. Gênesis 15 é o capítulo no
qual Deus estabelece a aliança com Abraão de forma solene,
prometendo a ele uma “família” extraordinária. Foi nessa promessa que
Abraão “creu” com a fé que foi “computada a seu favor, indicando que
ele fora justificado”. O que vem a seguir, em Gênesis, é a cerimônia que
estabeleceu a aliança. Isso deveria chamar nossa atenção para algo que
muitos leitores nem imaginam: para Paulo, assim como para o judaísmo,
“estar certo” com Deus é praticamente a mesma coisa que “ser um
participante da aliança”. Na realidade, Gênesis 15:6 equivale a dizer:
“Abraão creu em Deus, e essa foi a base da aliança então estabelecida.”
A principal coisa contra a qual o capítulo argumenta, portanto, é
toda e qualquer sugestão de que o cristianismo, no fim das contas, seja
algum tipo de subconjunto do judaísmo étnico, conforme definido por
“obras da lei”. Abraão não veio por essa via, afirma Paulo, ou ele não
teria nada de que se vangloriar — o que, como Gênesis deixa claro, ele
não fez. Tudo que Abraão fez foi confiar no Deus que declarou os ímpios
como certos. A despeito do que alguns judeus dos tempos de Paulo
estavam começando a sugerir, Abraão não teve nenhuma espécie de
conhecimento antecipado da lei judaica à qual obedeceu. Gênesis não
diz que “Abraão guardou as palavras da lei e por isso Deus estabeleceu
sua aliança com ele”. Se dissesse, significaria, de forma veemente, que a
verdadeira família da aliança de Abraão seria definida em todos os
tempos pelo desempenho de tais “obras” — era nisso que, mais tarde,
muitos rabinos queriam acreditar.
Paulo resiste a qualquer conclusão desse tipo. Esse é o ponto que ele
está procurando estabelecer nos versículos 4 e 5. Ele recorre à figura de
alguém realizando um bom trabalho e, assim, ganhando simplesmente o
salário de direito. E contrasta isso com alguém que não trabalha, porém
apenas confia. Creio que essa imagem é apenas uma extensão da
metáfora das “obras”, talvez uma ideia nova que ocorrera a Paulo
naquele instante. A metáfora não funciona muito bem, porque, na
segunda parte, Paulo fala de “alguém que confia no Deus que declara os
ímpios como certos” — e, aqui, ele deixa de lado a questão de
“trabalhar” ou “não trabalhar” e retorna a uma descrição direta do que
Abraão fez de fato.
Mas o que Paulo quer dizer com a afirmação de que Abraão confiou
em um Deus como este, que declara os ímpios como certos? Paulo pode
muito bem ter em mente o fato, ou pelo menos a tradição, de que
Abraão fora um pagão típico antes de ser chamado pelo único Deus
verdadeiro. E que, no momento de seu chamado, ele ainda continuava a
ser, em todos os sentidos, um “incrédulo”, ignorando acerca de quem era
esse Deus ou sobre o significado de segui-lo e de se sujeitar à sua
vontade, adaptando-se à sua visão de vida. Mas, mesmo assim, Deus o
chamou para celebrar com ele uma aliança, aliança projetada para tratar
do problema da própria incredulidade e com toda a degradação, a
desintegração e a perversão humana dela decorrentes (1:18-32). Em
outras palavras, Abraão começou onde todos nós começamos; e, de um
modo específico, Abraão começou onde os pagãos, os não judeus,
começam. Foi nessa situação que Deus o encontrou. Não foi onde Deus
o deixou; Deus não disse que Abraão estava bem, do modo como se
encontrava. Sua confiança inicial na promessa de Deus a respeito de
uma família muito maior foi apenas o início do processo de prova, de
liderança e de transformação. Paulo se refere a isso mais adiante, nesse
mesmo capítulo. Seu ponto principal, porém, é que os gentios, os não
judeus, vêm, através da fé, para a aliança, exatamente como aconteceu
com Abraão. Esse ponto será reforçado de diversos ângulos ao longo do
capítulo.
Paulo convoca uma segunda testemunha: Davi, o autor real de pelo
menos alguns dos Salmos. No Salmo 32, citado aqui nos versículos 7 e 8,
o escritor começa celebrando a felicidade das pessoas cujos pecados não
lhes são imputados. Esse é o lado negativo do mesmo ponto por ele
levantado. A aliança (não é possível enfatizar demais esse ponto) foi
estabelecida para que se resolvesse a questão do pecado. Pertencer à
aliança, no sentido que Paulo está expondo a questão, é ser alguém
cujos pecados foram tratados da maneira descrita em 3:24-26. Ter os
pecados da pessoa perdoados, não imputados ou contados contra essa
pessoa é precisamente o que Deus se propôs a fazer ao chamar Abraão,
para início de conversa. Entre muitos aspectos gloriosos em ser cristão,
isto sempre estará entre os itens do topo da lista: seus pecados foram
perdoados, encobertos, não imputados. Davi celebrou esse fato mil anos
antes dos eventos no Calvário, e a Páscoa o colocou para sempre em um
firme fundamento. Quanto mais não deveríamos nós celebrar essa
realidade hoje!
ROMANOS 4:9-12
ABRAÃO, O PAI TANTO DE CIRCUNCISOS COMO DE
INCIRCUNCISOS
9E, então, essa bênção vem sobre os circuncisos ou sobre os incircuncisos? Eis a
passagem que citamos: “A fé foi contada a favor de Abraão como um indicativo de
que ele fora considerado certo.” 10Quando ela foi contada a seu favor? Depois que
ele já estava circuncidado ou quando ainda era incircunciso? Não foi depois de sua
circuncisão, mas, sim, quando ainda era incircunciso! 11Ele recebeu a circuncisão
como um sinal e um selo de sua posição de membro da aliança, com base na fé que
tinha quando ainda era incircunciso. Isso ocorreu para que ele pudesse ser o pai de
todo o que crê, até mesmo dos incircuncisos, de modo que a posição de membro da
aliança possa ser contada a favor deles também. 12Ele também, claro, é o pai dos
circuncisos que não apenas são circuncidados, mas que também seguem os passos
da fé que Abraão tinha quando ainda era incircunciso.
Um dos momentos mais solenes de uma cerimônia de casamento ocorre
quando a noiva e o noivo trocam alianças. Já celebrei muitos
casamentos em minha vida. E também já esperei de pé lá, como um pai
todo orgulhoso no casamento de meus próprios filhos. Esses momentos
estão gravados para sempre em minha memória. A aliança declara a seu
participante, ao cônjuge e ao mundo inteiro que um novo
relacionamento se originou. Uma nova aliança foi celebrada. (O
casamento, na realidade, é uma “aliança”, um acordo que une duas
partes em um compromisso. Algumas vezes, os profetas do Antigo
Testamento recorriam à imagem da aliança do casamento, incluindo seu
estresse e sua tensão, a fim de enfatizar a natureza da aliança de
YHWH com Israel.) O anel é um sinal e um selo da aliança. Ele fala de
um amor eterno, que permanece firme para todo o sempre. No meu
próprio caso, passaram-se muitos anos até que eu conseguisse, por fim,
retirar meu anel do dedo — mais um sinal, assim creio, do laço
indissolúvel entre mim e minha esposa.
Quando Deus celebrou aliança com Abraão, deu-lhe algo
equivalente. Era a marca distintiva da circuncisão. Dois capítulos
depois de estabelecida a aliança, em Gênesis 17, Deus ordena a Abraão
circuncidar a si mesmo e à criança que tivera com Hagar, a jovem
escrava. Ao mesmo tempo, Deus promete a Abraão e Sara que, embora
já sendo tão idosos, teriam um filho próprio. O versículo-chave (17:11)
declara que a circuncisão deverá ser “um sinal da aliança” entre Deus e
Abraão. Portanto, quando Paulo se refere a essa mesma passagem,
afirmando que a circuncisão é “um sinale um selo do fato de Abraão ser
considerado certo com base na fé”, espera que compreendamos que esse
“considerado certo”, essa “justiça” (para usar o antigo termo técnico),
significa o mesmo, em essência, que “ser membro da aliança”. É por esse
motivo que, aqui, traduzi como “membro da aliança”. (Gostaria que
existisse uma palavra na tradução que preenchesse todos os sentidos
que a única palavra grega usada por Paulo tinha para ele, mas, como eu
já disse, não existe. Isso faz parte da alegria e da tensão de ser um
cristão pensante: sempre ter de imaginar a melhor forma de transmitir
as coisas essenciais em uma cultura que está em contínua
transformação.)
Não é difícil descobrir o ponto principal abordado nesse parágrafo.
Paulo retoma, reiteradas vezes, a questão da circuncisão versus a da
incircuncisão, mas essa é a última vez que faz isso aqui em Romanos.
Essa foi, claro, a questão central que estava por trás da controvérsia na
Galácia: alguns cristãos judeus estavam procurando persuadir os
gentios convertidos de que necessitavam ser circuncidados, de modo
que pudessem tornar-se membros plenos da família de Abraão — e
Paulo declara, com toda a firmeza, que eles não necessitam disso. Em
Romanos, ele emprega alguns argumentos iguais aos usados em Gálatas,
porém este, em particular, é novo: ele destaca, para colocar a coisa de
forma simples, que Gênesis 15 vem algum tempo antes de Gênesis 17,
de modo que, quando Deus estabelece a aliança, levando em conta a fé
que Abraão possuía a seu favor em termos de ser declarado certo,
Abraão ainda era incircunciso, e que permaneceu assim por algum
tempo depois disso. Portanto, Paulo argumenta que não existe a
possibilidade de alguém sequer sugerir que a circuncisão seria
necessária para pertencer à família de Abraão. Caso contrário, naqueles
tempos remotos, o próprio Abraão não estaria qualificado para isso.
Isso conduz Paulo à primeira das duas respostas à pergunta crucial
de 4:1. Em que tipo de família nós entramos? Descobrimos que Abraão
é nosso antepassado no sentido físico? Em outras palavras, os gentios
convertidos devem ser circuncidados e passar a considerar a si mesmos
parte de Israel no aspecto étnico? A resposta clara de Paulo é não.
Abraão é o pai de todo aquele que crê, inclusive dos incircuncisos. Eles
também participam da aliança, simplesmente com base em sua fé (v.
11). Ao mesmo tempo, ele equilibra essa afirmação rapidamente no
versículo 12. Ele não queria que ninguém concluísse (muito menos
alguém na igreja de Roma, onde coisas desse tipo pegariam fogo) que,
agora, o pertencimento à família de Abraão passara a ser apenas para os
gentios! Não: ele é, de igual modo, o pai dos circuncisos. Entretanto,
acrescenta uma importante e sempre controversa observação: Abraão é
o pai dos circuncisos que não são meramente circuncidados, mas que
também seguem os passos da fé de Abraão, a fé que ele possuía antes
mesmo de ser circuncidado.
Muitas pessoas resistem a essa conclusão, que, contudo, é inevitável.
Paulo redefiniu a família de Abraão de duas maneiras. Primeiro, ele a
abriu de modo a abrigar também os gentios, além dos judeus — de modo
específico, os gentios que creem no evangelho. Segundo, ele a
restringiu, de modo que ela não inclui mais, de forma automática, todos
os judeus. Os judeus — a exemplo do próprio Paulo e de todos os
cristãos mais antigos — são, obviamente, bem-vindos, e Paulo vai
argumentar, mais adiante na carta, que Deus quer cada vez mais deles.
Entretanto, o sinal dinstintivo que eles também precisam usar é o da fé
cristã.
Paulo devia estar consciente de como isso seria objeto de
controvérsia naquele tempo e, de igual modo, tornou-se controverso em
nosso tempo. Estamos cientes quanto ao risco de afirmar qualquer coisa
que possa ser interpretada, mesmo que de forma implícita, como
antijudaico e mais ainda como antissemita. E precisamos insistir que
essa passagem e as demais de Paulo não se encaixam em nenhuma
dessas duas categorias. Paulo, de fato, pertence ao mesmo contexto que
outros líderes de movimentos judaicos dos últimos dois ou três séculos
antes e depois dos tempos de Jesus. Parece ter havido uma noção, nesse
período, de que Deus estaria, de algum modo, redefinindo Israel,
redesenhando fronteiras, fazendo surgir uma renovação da aliança,
segundo a qual nada podia ser tomado como certo. Paulo pertence a
esse contexto essencialmente judaico. Mais tarde, ele rejeita firmemente
a acusação de que poderia estar deixando seus companheiros judeus
fora da equação. No entanto, ele se mantém claro: o pertencimento à
família de Abraão é somente com base na fé. E, por “fé”, ele quer dizer,
com toda a clareza, também a fé que descreverá no fim do capítulo: a fé
que se concentra em Jesus e em sua ressurreição como o grandioso ato
de renovação da aliança do Deus único e verdadeiro. Tudo isso será
analisado mais a fundo nos capítulos de 9 a 11.
Nos dias de hoje e em todas as gerações, a igreja deve garantir que a
porta esteja totalmente aberta, com o propósito de permitir a entrada
de pessoas de todos os grupos étnicos, de todos os tipos de famílias, de
todas as regiões geográficas e de todo e qualquer histórico moral (ou
imoral). Mas também deve garantir que as características que definem o
pertencimento à essa família multiétnica permaneçam firmemente
assentadas e concentradas na fé de que Jesus é o Senhor e de que Deus o
ressuscitou dentre os mortos. Manter esse equilíbrio e fazer isso com o
espírito certo ainda é a maior tarefa a ser enfrentada pelos cristãos do
século 21.
ROMANOS 4:13-17
ABRAÃO É O PAI DE TODOS OS QUE CREEM
13A promessa, como vocês podem ver, não chegou a Abraão ou à sua família
mediante a lei — a promessa, digo, de que ele herdaria o mundo. Ela veio mediante
a justiça da aliança pela fé. 14Porque, se aqueles que pertencem à lei a herdarão,
então a fé é vazia, e a promessa foi abolida. 15Pois a lei desperta a ira de Deus;
entretanto, onde não há lei, não há desrespeito à lei.
16Por isso é “pela fé”: para que seja de acordo com a graça, e de maneira que a
promessa possa ser validada para toda a família — não apenas para aqueles que
procedem da lei, mas para aqueles que compartilham a fé que Abraão possuía. Ele é
o pai de todos nós, 17exatamente como a Bíblia diz: “Eu o transformei em pai de
muitas nações.” Isso aconteceu na presença do Deus no qual ele creu, o Deus que
dá vida aos mortos e chama à existência coisas que não existem.
Hoje recebi um e-mail de um cristão judeu muito zangado, que se opôs,
de forma veemente, a algo que eu disse, com todo o cuidado, sobre os
atuais problemas no Oriente Médio. (Por alguns anos, morei e trabalhei
em Jerusalém e ainda tenho amigos em diversas partes da
surpreendente mistura de grupos étnicos e religiosos.) A questão
principal que meu correspondente levanta é que Deus deu a terra a
Israel e que essa promessa foi reafirmada em nossos próprios dias. Nada,
portanto, deve permanecer no caminho da segurança de Israel e, por
implicação, da extensão de seu território, visando abarcar toda a
margem ocidental do rio Jordão.
Esse é realmente um tema acalorado, e parece que ainda vai
continuar assim, lamentavelmente, por um bom tempo. No entanto, eu
o levanto aqui porque está relacionado diretamente ao que Paulo está
elaborando no versículo 13 (ao qual conduzi meu correspondente em
minha resposta). A promessa a Abraão e à sua família, diz Paulo, é que
ele herdaria o mundo! Isso é espantoso. Vez após vez em Gênesis, o
escritor declara que Deus prometeu a Abraão o trecho de território
então conhecido como a terra de Canaã, mais ou menos a “terra santa”,
tal como a conhecemos agora. Algumas vezes, escritos posteriores
expandiram essa noção para abarcar tudo o que há entre o mar
Vermelho e o rio Eufrates, muito além para o nordeste, mas Canaã
permanecia como o foco central. E, mesmo quando os escritores
expandiam o conceito de “terra santa”, ela continuava centrada no
território originalmente prometido.
Para Paulo, contudo, e de fato para todo o Novo Testamento, a ideiade uma terra santa, em termos de uma faixa territorial contra todos os
outros, simplesmente desapareceu. Em seu lugar, começa a surgir um
conceito completamente transformado de terra: o de que o mundo
inteiro — em Romanos 8, é toda a criação — é reivindicado por Deus
como a “terra santa” e é prometido a Abraão e à sua família como sua
“herança”. Essa é uma das mais extraordinárias e impactantes revisões
do pensamento padrão judaico que podemos imaginar. Certamente, é
tão importante quanto a decisão de não exigir a circuncisão dos
gentios convertidos. É claro que também guarda estreita relação com a
revisão dramática das expectativas judaicas quanto ao futuro. O
privilégio da geografia, assim como o privilégio do nascimento, nada
vale no novo mundo sob o domínio do Messias crucificado e ressurreto.
De acordo com o argumento de Romanos, essa promessa revista
olha para a frente, como acabei de mencionar, especificamente para
Romanos 8, de modo que se volta, de forma mais ampla, para um dos
principais temas de toda a carta. A aliança da justiça de Deus sempre
foi projetada de modo a consertar o mundo inteiro. Sem dúvida, Deus,
como criador e juiz do mundo, encontra-se sob uma obrigação
autoimposta de fazer exatamente isso. Portanto, não nos deveríamos
surpreender que, neste capítulo, quando Paulo explica como a família
de Abraão se transformou em uma entidade multiétnica, insistisse
também que a intenção real de Deus, ao prometer a Abraão a terra de
Canaã, foi a de reivindicar, governar e renovar o mundo inteiro. A terra
santa foi, conforme parece, uma espécie de metáfora antecipada do alvo
e da promessa maior.
O ponto principal dos versículos 13, 14 e 15 é que, se as promessas
não foram feitas com base na circuncisão, como vimos no parágrafo
anterior, também não foram feitas com base na lei judaica. Abraão não
possuía a lei. Ela ainda não fora dada naquele tempo. Entretanto, Paulo
não emprega esse argumento aqui como faz em Gálatas 3. Em vez disso,
adverte contra algo mais obscuro. Caso se insira a lei nessa equação, no
fim das contas, ninguém herdará coisa alguma.
O que ele quer dizer com isso? É necessário recorrermos a outras
referências textuais ao mesmo problema (5:20, 6:14; e, a seguir, de
maneira decisiva, 7:1 a 8:11) antes de sermos capazes de formar um
painel completo do que Paulo está afirmando sobre a lei. Mesmo assim,
ainda temos mais a esse respeito, especialmente em 9:30 a 10:13.
Podemos, porém, iniciar o trabalho com o que já foi exposto em 2:17-29,
3:19-20 e 3:27-31.
Parece que o principal problema com a lei é que sua função consiste
em revelar o pecado e tratar dele — e o fato de que há muito pecado a
ser revelado e do qual tratar, até mesmo entre o próprio povo da
aliança. Desse modo, se a lei fosse uma característica que define o povo
de Deus, ele simplesmente não teria “povo” algum. “Mediante a lei, vem
o conhecimento do pecado”, conforme Paulo diz em 3:20. Ou, como no
versículo 15, “a lei desperta a ira de Deus”. Se é para existir um povo
renovado de Deus, deve existir, nesse sentido, uma área livre da lei para
que eles possam viver e desabrochar dentro dela. Caso contrário (v. 14),
a fé — especificamente, a fé de Abraão — seria inútil, e a promessa que
Deus fez a ele estaria abolida.
De maneira mais específica, mais uma vez, se os gentios devem
entrar e participar do povo de Deus em iguais termos, deve haver
espaço para que isso aconteça — espaço que não é definido pela lei
judaica. A promessa deve ser válida para a família inteira, e não somente
para uma parte dela (v. 16). É por esse motivo, conforme Paulo afirma,
caso a tradução seja feita de forma literal, “que é ‘pela fé’, para que seja
‘de acordo com a graça’”. Isso significa, assim como em 3:27-30, que os
gentios podem estar em pé de igualdade com os judeus. E tudo isso tem
o propósito de dar a Abraão a família multiétnica que Deus lhe
prometeu desde o início. O final do versículo 16 e o início do 17
constituem a verdadeira resposta à pergunta do versículo 1. Deus
declara: “Eu o transformei em pai de muitas nações” (Gênesis 17:5).
Paulo compreende isso como querendo dizer que a família por
excelência prometida a Abraão jamais pretendeu ser formada
simplesmente por uma única nação, derivando, sim, de todos os povos.
Ele é “o pai de todos nós”.
Como isso tudo surgiu? Ressaltando antigas pistas, Paulo declara
que tem tudo a ver com o poder de criação do próprio Deus. Deus dá
vida aos mortos e chama à existência coisas que não existiam antes.
Talvez, aqui, Paulo esteja pensando como os judeus, assim como ele
próprio (em certo sentido, já membros da aliança), eram “filhos da ira
como o restante da humanidade” (Efésios 2:3), e necessitavam ser
vivificados de uma nova maneira (compare com 11:15). E, por outro
lado, em como os gentios estavam completamente fora da aliança
(Efésios 2:12) e foram trazidos para seu interior, provenientes de lugar
nenhum. A conversão dos judeus significa “vida dentre os mortos”
(11:15); a dos gentios, uma “nova criação”. É assim que Deus, o criador,
o doador da vida, chamou à existência uma nova família para Abraão,
formada por judeus crentes e gentios crentes, em iguais termos.
Não são muitos os cristãos que eu conheço que dão a devida
importância ao fato de serem filhos de Abraão. Em geral, ficamos
contentes em deixar isso para os judeus, e talvez até para os
muçulmanos. No entanto, a ideia da família multiétnica de Abraão é
importante no Novo Testamento (ver Mateus 3:8). Não seria a hora de
retirar esse tema do armário, remover a poeira e colocá-lo em uso
novamente?
ROMANOS 4:18-25
A FÉ QUE ABRAÃO POSSUÍA — E A NOSSA
18Contra toda a esperança, mas ainda com esperança, Abraão creu que se tornaria o
pai de muitas nações, alinhado com o que lhe fora dito: “É assim que será sua
família.” 19Ele não fraquejou na fé ao considerar seu próprio corpo (que já estava
quase morto, uma vez que já contava cem anos de idade) e a falta de vitalidade do
ventre de Sara. 20Ele não vacilou em incredulidade quando se viu diante da
promessa de Deus. Em vez disso, ele se fortaleceu pela fé e deu glória a Deus,
21estando plenamente convicto de que Deus era poderoso para realizar o que havia
prometido. 22É por esse motivo que “foi contado a seu favor em termos da justiça
da aliança”.
23Entretanto, não é somente para ele que foi escrito: “foi contado a seu favor.”
24Também foi escrito em relação a nós! E será contado a nosso favor também
quando crermos naquele que ressuscitou nosso Senhor Jesus dentre os mortos,
25naquele que foi entregue por causa de nossas transgressões e ressuscitado por
causa de nossa justificação.
Quando minha família e eu emigramos para o Canadá, no início dos
anos 1980, frequentemente pensávamos nos pioneiros que chegaram a
um país novo e desconhecido, sem a mínima ideia do que encontrariam
pela frente: como seria o clima, quais plantações vingariam ou se teriam
qualquer futuro ou esperança naquele lugar. Visitamos vilas de
pioneiros, com fazendas em operação que demonstravam como as coisas
eram feitas, e ficávamos maravilhados com toda a coragem daquelas
pessoas que haviam chegado, três ou quatro séculos antes.
Pensamos muito no primeiro inverno que devem ter enfrentado.
Enquanto escrevo estas palavras, em um dia de inverno em Londres, há
neve nas ruas e nas calçadas, mas a temperatura está oscilando em torno
do ponto de congelamento, nunca menos do que isso, e em breve a neve
vai derreter. É raro isso apresentar algum problema — embora, de
tempos em tempos, testemunhemos súbitas quedas vertiginosas
quando, então, somos lembrados de como pode ser difícil a vida em
outras partes do mundo. Imagine, porém, estar no Canadá sem
aquecimento central, água quente ou transporte motorizado. Sua
família adoece, alguns de seus animais estão morrendo, a lavoura que
você plantou está soterrada sob uma espessa camada de neve e a terra
abaixo disso está congelada a uma profundidade algumas vezes maior
do que isso. Fevereiro dá lugar a março, e a neve e o gelo continuam lá,
firmes. Quantotempo ainda durará o inverno? Imagine como teria sido
mais fácil desejar nunca ter ido para lá, deixar de acreditar e de ter
esperança.
Mas eles mantiveram suas esperanças, trabalharam, constituíram
famílias, edificaram comunidades e construíram um país. E isso me faz
lembrar deles — não é uma ilustração perfeita, mas é um bom começo —
quando penso nas absurdas fé e esperança de Abraão, a fé e a esperança
que deram início à família da aliança, para início de conversa. Todas as
pessoas em seu mundo sabiam, assim como todas de nosso mundo,
sabem muito bem que, se um casal não tivera filhos até os cinquenta
anos de idade, quanto mais se aproximando dos cem, o mais provável
era que continuassem assim. E foi então, e para eles, que o Deus vivo, o
criador do mundo, fez esta extraordinária promessa: vocês terão filhos
tão numerosos quanto as estrelas do céu ou os grãos de areia nas praias.
Essa é a promessa mencionada no versículo 18, quando Deus diz
(Gênesis 15:5): “Assim será sua família.” Foi nessa promessa que Abraão
creu quando disse, no versículo seguinte de Gênesis, “e foi calculado a
seu favor, em termos de ser declarado certo” ou, se você preferir, “foi
calculado a seu favor como a base de seu pertencimento à aliança”. (A
linguagem mais antiga, “foi-lhe imputado como justiça”, possibilita-nos
tantas mensagens diferentes hoje que é difícil para nós, ao ouvi-la, ter
em mente tudo o que se passava na mente de Paulo.) Essa foi a fé no
núcleo da família, fé no Deus que, aparentemente, prometeu coisas
impossíveis e depois as realizou. A frase “esperando contra a esperança”,
que algumas vezes citamos para indicar que permanecemos firmes,
apesar de tudo à nossa volta parecer perdido, tem sua origem no
versículo 18.
A descrição de Paulo em relação à fé que Abraão teve vai ainda mais
fundo do que simplesmente fazer um relato de heroica confiança, diante
das chances esmagadoramente contrárias. É uma inversão deliberada de
sua descrição da degeneração da raça humana no capítulo 1. Vale a pena
olhar de novo 1:20 e seguintes. O que Paulo está dizendo é que, na fé
que Abraão possuía e na fé do mesmo tipo de outras pessoas (as quais,
como ele mesmo demonstra no fim do capítulo, significam, basicamente,
a fé cristã), os seres humanos são colocados todos juntos novamente e
capacitados a redescobrir como é a genuína vida humana.
As coisas funcionam do seguinte modo: os seres humanos ignoraram
Deus, seu criador (1:20,25); Abraão creu em Deus como o criador e
doador da vida (4:17). Os seres humanos tinham conhecimento do
poder de Deus, mas não o adoraram como Deus (1:20); Abraão
reconhecia o poder de Deus e confiou que ele o usaria (4:21). Os seres
humanos não deram a Deus a glória que lhe era devida (1:21); Abraão
deu a Deus a glória (4:20). Os seres humanos desonraram seus próprios
corpos ao adorarem seres não divinos (1:24); Abraão, ao adorar o Deus
que concede vida nova, descobriu que seu próprio corpo recuperava
suas forças, mesmo ele já tendo ultrapassado, havia muito, a idade de
conceber um filho.
Em cada um desses casos, o resultado é visível. Seres humanos
desonrando seus corpos, com mulheres e homens deixando suas relações
e se voltando para relações entre pessoas do mesmo sexo (1:26-27);
Abraão e Sara, diante de sua confiança nas promessas de Deus, recebem
o poder de conceber um filho (4:19). No mais profundo âmago da
promessa da aliança de Deus, subjaz o cumprimento do mandamento
mais fundamental no início de Gênesis 1, o mandamento que surge com
a criação de macho e fêmea à imagem de Deus: Sejam férteis e
multipliquem-se! À medida que vamos chegando ao fim de Romanos 4,
percebemos que Paulo está dizendo, em larga escala, que o antigo sonho
judaico foi cumprido. Deus chamou Abraão para desfazer o pecado da
raça humana e foi assim que isso aconteceu. Deus é o Deus de uma nova
esperança, de uma nova fertilização, porque ele é o Deus dos recomeços,
de uma nova criação.
Isso, porém, não ocorreu unicamente através de Abraão. Ele foi um
sinal que apontava para mais adiante: para o início de uma estrada
longa e sinuosa, e não para o alvo. O alvo, em si mesmo, foi alcançado
em Jesus e nos eventos de sua morte e de sua ressurreição. Até aqui,
Paulo mencionou essa realidade de forma bem resumida, nas palavras
de abertura (1:3-4) e na compacta descrição da morte salvadora de
Jesus (3:24-25). Entretanto, Paulo está certo de que seus leitores sabem
sobre o que ele está falando e, ao concluir seu relato acerca da fé que
Abraão possuía, traz o tema de volta à tona.
Ele já descreveu como Deus considera, para efeitos imediatos,
aqueles que creem em Jesus membros da família da aliança, garantindo
que seus pecados foram perdoados (3:21-31). Agora, ele fundamenta
isso em termos da própria aliança original. Abraão creu que Deus
concederia vida onde não havia vida alguma. Os cristãos creem que
Deus ressuscitou Jesus dentre os mortos. Em nenhum dos casos, há uma
atitude de esperteza, uma posição meramente intelectual que possibilite
evitar olhar o Criador face a face e confiar nele contra todas as
probabilidades. Em ambos os casos, pode haver apenas o
reconhecimento sincero de que Deus é Deus, de que nossa vida e a vida
do mundo inteiro estão em suas mãos, de que ele já deu início à nova
criação, convidando-nos a confiar nele para conduzi-la até o fim.
O último versículo desse capítulo antecipa algo que Paulo vai
abordar nos capítulos de 5 a 8. Ele completa cada estágio de seu
argumento dessa longa seção com uma referência a Jesus. Isso não se
trata apenas de um gesto piedoso, fazendo menção, de forma
complacente, a Jesus, para que não pensemos que ele se esqueceu dele.
Por outro lado, demonstra do que se trata todo o seu argumento.
Reconduz-nos à fonte e ao poder do raciocínio de Paulo. Nesse caso,
sintetiza o que fundamentou todos os quatro primeiros capítulos. Jesus
foi entregue por causa de nossas transgressões; em outras palavras, todo
o mal da humanidade, que desfigurou o mundo, foi reunido e, na cruz,
foi tratado como merecido, sendo condenado judicialmente (3:25; 8:3).
Ele foi ressuscitado por causa de nossa justificação, ou seja, nossa
declaração como “estando certos”, a afirmação de nossa condição de
membros da aliança. Em outras palavras, quando Jesus ressuscitou
dentre os mortos, Deus não estava apenas dizendo: “Ele realmente era e
é meu filho” (1:4), mas também: “Todos os que creem nele são meu
povo.”
Na maravilhosa doutrina de Paulo, encontramos outra referência ao
Servo Sofredor de Isaías 53, aquele que vai “fazer muitos justos e levar
embora suas iniquidades” (53:11). A primeira grande seção de Romanos
termina com Paulo dizendo que as promessas proféticas tornaram-se
realidade; a fé que Abraão tinha foi afinal justificada; a lei foi cumprida;
a idolatria humana, o pecado e a morte foram enfrentados de forma
decisiva; Deus enviou seu próprio filho como o Messias, o
representante fiel de Israel, a fim de fazer por Israel e pelo mundo o que
não puderam fazer por si próprios; aqueles que creem no evangelho, nas
boas-novas de Deus a respeito de seu filho, recebem a garantia de que
são o povo da nova aliança, a única família universal prometida a
Abraão.
Isso levanta todo o tipo de pergunta, que Paulo passará a abordar na
próxima grande seção dessa carta. Porém, é preciso, igualmente,
fazermos algumas perguntas a nós mesmos: Compartilhamos a fé que
Abraão teve? Olhamos com amor, gratidão e confiança para o Deus
criador, aquele que promete coisas impossíveis, transformando-as em
realidade? Aprendemos a celebrar esse Deus e a viver como uma única
família, junto a todos aqueles que compartilham essa mesma fé e essa
mesma esperança?
ROMANOS 5:1-5
PAZ E ESPERANÇA
1 Este é o resultado: desde que fomos declarados “certos” com base em nossa fé,
temos paz com Deus mediante nosso Senhor Jesus, o Messias. 2Por meio dele, foi-
nos permitido ter acesso, pela fé, a essa graça na qual permanecemos firmes, e
celebramos a esperança da glória de Deus.
3E isso não é tudo. Celebramos também em nossos sofrimentos,porque sabemos
que o sofrimento produz paciência; 4e a paciência produz um caráter bem-formado,
e um caráter assim produz esperança. 5A esperança, por sua vez, não nos deixa
envergonhados, porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações por meio
do espírito santo que nos foi dado.
Recentemente, ouvi falar de um famoso comediante que foi uma figura
conhecida no rádio e na televisão por muito tempo. Sua sagacidade e o
interminável suprimento de piadas lhe garantiam uma grande
audiência. Entretanto, ao morrer, os obituários que foram publicados
contaram também uma história mais sombria. Ele rompera relações com
seu pai quando ainda era jovem, e a contenda entre eles jamais se
resolvera. Depois, o trágico padrão se repetira mais uma vez. Um de
seus próprios filhos brigou com ele, e ambos cortaram relações.
Como eu vim de uma família feliz, que se apoiava mutuamente,
preciso esforçar-me para imaginar como deve ser viver assim. Pense
como deve ser saber que existe alguém, apenas à distância de um
telefonema e que é um de seus parentes de sangue mais próximos... e,
ainda assim, essa pessoa não querer falar com você, e você também não
querer falar com ela, ou sequer encontrá-la, ou manter qualquer contato
que seja. E calcule isso se arrastando por anos a fio. Esse é um panorama
que nos deixa bastante perturbados, mas eu sei que existem, além da
pessoa em questão, muitas outras que estão vivendo exatamente desse
jeito em relação a alguém bem próximo com quem romperam relações.
Existe, porém, uma tragédia muito maior. Uma imensa vastidão de
pessoas vive exatamente assim em relação a Deus. Acabei de ouvir no
rádio uma mulher muito bem-disposta que falava sobre como era
fascinada por religião, sobre como tivera uma fase religiosa em sua
infância (“suponho que a maioria de nós a tem”, disse ela, de modo
complacente), mas que não vislumbrava a menor pista da existência de
Deus. Eu queria lhe perguntar: “De que Deus você está falando?”, mas,
obviamente, nunca se tem uma chance assim. Então, voltei a Romanos e
refleti: bem aqui, no centro de tudo, Paulo está falando sobre uma
reconciliação que levará a todas as outras reconciliações. “Desde que
fomos declarados certos [justificados], temos” — o quê? Uma luz que
nos aquece o coração? Um suspiro de alívio por nossos pecados terem
sido perdoados e uma nova compreensão do que significa pertencer ao
povo de Deus? Sim, todas essas respostas e mais ainda, porém, no
centro de tudo, temos paz com Deus. Após ter lançado a base nos
capítulos de 1 a 4, agora Paulo começa a edificar a estrutura: um retrato
da vida cristã, em que todas as antigas promessas de Deus estão se
tornando realidade. E, no centro dessas promessas, está o
estabelecimento de uma amorosa e acolhedora relação pessoal entre os
seres humanos e o próprio Deus criador.
Hoje em dia, é claro, isso parece não fazer sentido para muitas
pessoas. No mesmo programa de rádio, havia alguém falando sobre
quanto era ridículo pensar que, se existe um Deus, ele pudesse
importar-se com cada uma de suas criaturas humanas a todo instante:
“Existem milhões e milhões de pessoas aí fora”, dizia essa pessoa, “e lá
está ele me observando amarrar os sapatos!” Dito desse modo, é óbvio,
parece mesmo um absurdo. No entanto, o absurdo está na tentativa de
retratar Deus como um ser exatamente como nós, apenas um
pouquinho maior e mais capaz de ver tudo à sua volta. O Deus da Bíblia
é muito, mas muito mais misterioso em todos os sentidos. Ele é o
criador do mundo, aquele que transcende toda a sua criação, mas, como
sua própria natureza é amor, é (como diríamos) muito natural para ele
estabelecer relações pessoais, individualmente, com cada um de nós.
Natural para ele, com certeza; mas, certamente, isso não é natural
para nós. As razões para isso são óbvias, uma vez que tenhamos
compreendido Romanos 1:18-32. Não só nosso comportamento, como
também nosso modo de pensar e de sentir, tudo foi tão distorcido por
nossa rebelião e por nossa idolatria que consideramos difícil estabelecer
um relacionamento com Deus e, mesmo que conseguíssemos, seria
difícil e impraticável manter essa relação; seria até mesmo algo invasivo
e assustador. Bem, é claro que existem dificuldades. A própria oração
não é algo fácil. Paulo fala, mais para o fim desta seção da carta (8:26-
27), sobre a percepção de uns “gemidos” no espírito, sem sabermos o
que está acontecendo. Não devemos, porém, confundir isso com um
problema em nível estrutural no relacionamento em si.
Quando somos reconciliados com Deus, que é nosso pai,
descobrimos que ele não quer simplesmente usufruir esse
relacionamento individual, mas nos alistar em seu serviço, para que
possamos trabalhar em prol de seu reino. E isso trará todo o tipo de
pressão e de problemas, exigindo de nós que nos agarremos à fé e à
esperança, mesmo quando não sentimos sua presença, mesmo quando
não “sentimos” algo acontecendo à nossa volta. Não devemos pensar
que a sensação de estarmos próximos de Deus seja um bom critério da
verdade. As emoções são muito enganosas. Paulo está nos convocando a
compreender a realidade, a rocha sólida por baixo das areias
inconstantes dos sentimentos e das sensações.
Os dois primeiros versículos do capítulo 5, portanto, celebram nosso
acesso à própria presença de Deus, de forma pessoal. Nós temos “o
direito de acesso”: essa é a linguagem do templo, no qual certas pessoas
podem aproximar-se do lugar no qual Deus está. Aqui, a palavra “graça”
é praticamente uma síntese da presença e do poder de Deus. Como
resultado de termos sido justificados pela fé, estamos, na antiga
construção da frase, “em um estado de graça”, um estado, uma posição,
em que nos encontramos cercados pelo amor de Deus e por sua
generosidade, convidados a aspirá-los como nosso ar mais puro. E, à
medida que fazemos isso, passamos a entender que para isso é que fomos
feitos, que é desse jeito que deve realmente ser a existência humana, e
que esse é o início de algo tão grande, tão consistente e tão
incalculavelmente maravilhoso e poderoso que quase explodimos de
alegria só de pensar nisso. Quando nos postamos na presença de Deus,
sem tremer de medo, mas profundamente gratos, então começamos a
inalar sua bondade, sua sabedoria, seu poder e sua alegria. Então,
sentimos que estamos sendo convidados a prosseguir até o fim,
tornando-nos verdadeiros reflexos de Deus, verdadeiros portadores da
imagem segundo a qual fomos criados. Paulo explica isso do seguinte
modo: “Celebramos a esperança da glória de Deus.” Essa é a mesma
glória que foi perdida através da idolatria e do pecado (3:23). Quando,
por fim, herdarmos essa glória, toda a criação será libertada da
corrupção e compartilhará nossa recém-descoberta liberdade, a
liberdade de finalmente sermos nós mesmos (8:21).
Não admira que Paulo possa seguir falando de celebração, mesmo
vivendo em meio ao sofrimento, o caminho necessário mediante o qual
empreendemos nossa jornada, enquanto compartilhamos a obra do pai
neste mundo ainda corrompido. Repare que ele não diz que celebramos
nossos sofrimentos (da mesma forma que celebramos nossa esperança,
no v. 2). Nós celebramos, sim, diz ele, em meio a nossos sofrimentos. Ele
consegue ver uma progressão constante, segundo a qual Deus se utiliza
de nossos sofrimentos com o mesmo propósito para o qual nos concede
sua presença e seu amor: a fim de nos transformar no povo composto
dos verdadeiros seres humanos que fomos criados para ser. Essa
progressão nos conduz da paciência ao caráter e do caráter à esperança.
Vivemos em um mundo que quer tudo de forma imediata, no qual não
existe estabilidade de caráter, a não ser uma imagem irreal, que
perambula por esse caminho por não ter ideia do destino que está
tomando. O evangelho de Jesus, o Messias, convida-nos a nadar contra
a correnteza em todos os sentidos.
E, quando fazemos isso, ele também nos dá algo mais. Por que Paulo
diz que a esperança “não nos deixa envergonhados”?Por que ela nos
deixaria assim, de qualquer modo? Penso que a resposta é que o cristão,
tanto quanto Abraão, é chamado vez após outra a “esperar contra toda a
esperança” (4:18). Parecemos tolos aos olhos do mundo quando ficamos
esperando por algo que não podemos ver (8:25). Entretanto, não
parecemos tolos aos nossos próprios olhos, pois somos mantidos por
algo muito mais profundo, algo que se desenvolve de forma direta a
partir do dom da “paz com Deus”, a partir da reconciliação que Paulo
descreverá alguns versículos adiante. Israel foi ordenado a “amar
YHWH, seu Deus, de todo o seu coração”. Paulo, consciente de que a
nova família que acaba de descrever é a verdadeira família de Abraão,
agora declara que, mediante o dom do espírito santo, isso se torna
realidade para nós.
Muitas traduções, e também muitos estudiosos dos escritos de
Paulo, compreendem o versículo 5 de maneira diferente. Eles pensam
que significa o amor de Deus por nós é dado de uma nova maneira por
meio do espírito santo. Isso é, sem dúvida, verdade, e ele dirá algo
parecido na passagem seguinte. No entanto, não creio que é isso que
Paulo pretende ressaltar aqui, nesse ponto em particular. O que ele está
fazendo, ao longo de toda a seção que tem início aqui, é estabelecer
aqueles que pertencem a Jesus como a verdadeira família da aliança,
aqueles em quem todas as promessas (e todos os mandamentos) dados a
Israel se tornaram realidade. Ele já se referiu ao mandamento e à oração
central de Israel, o “Shemá” (3:29-30). “Ouça e obedeça, ó Israel:
YHWH, nosso Deus, YHWH é um!” Agora ele demonstra como
aqueles que foram cativados pelo evangelho são destacados como o
povo que oferece a esse Deus “a obediência da fé” (1:5), amando-o de
todo o coração.
Esses versículos estão envoltos em um maravilhoso material.
Poderíamos prosseguir examinando-os por muito mais tempo. A última
coisa, porém, que precisamos dizer é: eles introduzem a longa seção dos
capítulos 5 a 8 e, ao fazerem isso, destacam diversos temas que vamos
explorar nesse intervalo. Um dos principais desafios na leitura de
Romanos reside em se manter o argumento íntegro na mente,
observando como ele vai crescendo e se desenvolvendo. Paulo não está
simplesmente redigindo alguns breves ensaios sobre diferentes aspectos
da verdade cristã. Aprenda a acompanhar sua linha de raciocínio e você
ficará sem fôlego diante do poder da verdade divina.
E, obviamente, diante da profundidade do amor de Deus. Faça uma
pausa momentânea para celebrar, em uma oração de gratidão, o fato
glorioso de ser muito bem recebido na presença de Deus, em paz e em
esperança.
ROMANOS 5:6-11
A MORTE DE JESUS REVELA O AMOR DE DEUS E GARANTE A
SALVAÇÃO FINAL
6Tudo isso se baseia naquilo que o Messias fez: enquanto ainda éramos fracos,
naquele exato momento ele morreu a favor dos ímpios. 7Coisa rara é encontrarmos
alguém que morreria a favor de um justo, embora seja possível, suponho, que
alguém morra por uma pessoa boa. 8Mas é assim que Deus demonstra seu amor por
nós: o Messias morreu por nós enquanto ainda éramos pecadores.
9Quanto mais, nesse caso — já que fomos declarados certos [justificados] mediante
seu sangue, seremos salvos da ira vindoura de Deus! 10Quando éramos inimigos,
vejam bem, fomos reconciliados com Deus mediante a morte de seu filho. Se é
assim, quanto mais, uma vez já reconciliados, seremos salvos por sua vida! 11E isso
não é tudo. Até mesmo celebramos em Deus, por meio de nosso Senhor Jesus, o
Messias, por meio de quem agora recebemos essa reconciliação.
Já ouvi dizer — e é possível ouvir todo o tipo de coisas estranhas na
igreja — que o evangelho de João é todo ele sobre o amor de Deus, mas
as cartas de Paulo são todas sobre lei, justiça e coisas duras e severas
dessa natureza. Bem, a presente passagem desafia frontalmente essa
teoria. Na realidade, é claro, faz o mesmo com o Evangelho de João: a
visão de João sobre o amor de Deus é temperada como aço na fornalha
da amarga hostilidade expressa contra Jesus e pela incompreensão de
todos, a começar pelos discípulos, passando pelas multidões, até chegar
aos sumos sacerdotes e a Pilatos.
Entretanto, a visão de Paulo a respeito do amor de Deus, erguendo-
se aqui como o sol em uma límpida manhã de verão, brilha através de
todos os detalhes que já foram apresentados até aqui. É preciso acordar
cedo, sair da cama e afastar as cortinas, para que se possa ver melhor a
manhã. Esse é o assunto dos primeiros quatro capítulos. Mas agora, que
já fizemos tudo isso, a visão está aqui para que possamos desfrutá-la.
E também para ficarmos fascinados com ela! O amor de Deus já fez
todo o necessário e tudo aquilo de que ainda vamos necessitar. À
medida que Paulo continua a explorar o significado da reconciliação
entre Deus e os seres humanos, ele investiga em profundidade o que
Deus teve de fazer para torná-la realidade. Antes, porém, de sequer
voltarmos os olhos para isso, há algo de estranho e poderoso nessa
passagem que Paulo ainda não tornara explícito, mas que se aproxima
de nós, esgueirando-se de forma a quase passar despercebido. É o
seguinte: quando olhamos para Jesus, o Messias, estamos olhando para
aquele que incorpora o amor de Deus em pessoa, o amor de Deus em
ação.
Veja o versículo 8. O que Paulo afirma aqui não faz sentido algum, a
não ser que Jesus, em sua vida e morte, seja a própria encarnação do
Deus vivo e amoroso. Afinal de contas, não faz sentido algum se eu
disser a você: “Vejo que você está com sérios problemas! E eu o amo
tanto que vou... enviar outra pessoa para ajudá-lo a sair dessa.” Se a
morte do Messias demonstra quanto Deus nos ama, isso só pode ser
verdade porque o Messias é o completo ser humano (quanto mais
humano alguém pode ir do que ser crucificado?), aquele em quem o
Deus vivo está totalmente presente. Paulo não explica, nessa carta,
como isso acontece. Ele toma isso como algo inequívoco. Em outra
parte de sua carta, ele fala um pouco mais a esse respeito, embora não
tanto quanto gostaríamos. Entretanto, está claro que ele cria de
maneira firme que Jesus era (como costumamos dizer) plenamente
divino, e que essa não era uma crença estranha, acrescentada
externamente à sua forma de pensar, porém um dos elementos-chave
que amarra tudo o mais.
De modo específico, amarra sua visão acerca do amor de Deus e sua
visão sobre a esperança cristã. Romanos 5—8, de certo ponto de vista,
aborda principalmente a esperança: a esperança sólida e certa de que
todo aquele que pertence a Deus, pela fé em sua ação em Jesus, recebe a
garantia da salvação final. Com o que se parecerá essa salvação, essa não
é a presente preocupação de Paulo. Ele vai falar mais a esse respeito no
capítulo 8. Neste momento, ele salienta o ponto que seus leitores
necessitavam saber desde 2:1-16, ou seja, que, quando chegar a hora do
juízo final, eles serão resgatados.
Não podemos esquecer como o quadro da justificação funciona na
prática. Paulo mantém continuamente em foco o tempo passado, o
presente e o futuro da obra de Deus. Ele apresenta o futuro derradeiro
no capítulo 2. Chegará o dia em que Deus julgará todos os segredos dos
seres humanos, e esse julgamento será totalmente justo, legítimo e
imparcial. Se isso causa arrepios em nossa coluna — bem, tem de causar
mesmo. Logo depois, porém, ele argumenta em detalhes, em 3:21 a 4:25,
que, quando as pessoas creem nas boas-novas de Deus a respeito de
Jesus, recebem a garantia, ainda no presente, de que já pertencem à
família da aliança, o povo cujos pecados são perdoados, que já recebeu o
veredicto, do tribunal divino, de “estar certos [justificados]”. Então,
somos forçados a perguntar: como Deus sabe disso? Como é possível
que pessoas que ainda têm o resto da vida pela frente, podendo vir a
cometer todo o tipo de perversão, recebam essa garantia, com o
veredicto futuro já conhecido?
Uma boa parte de Romanos 5—8 foi escrita em resposta a essa
pergunta (embora também se façam presentes outros temas relevantes,
como veremos). Entretanto, a resposta tem inícioaqui: a esperança
cristã de o veredicto emitido no presente vir a ser confirmado no futuro
baseia-se, com toda a segurança, no que Deus já realizou na morte de
Jesus. (Paulo retoma esse tema, com grande exultação, em 8:31-39.) A
morte do Messias a nosso favor, quando ainda éramos fracos, pecadores
impotentes (v. 6 e 8), demonstra quanto Deus nos ama. E, se ele nos
ama a esse ponto, é possível confiar nele quanto a nos resgatar do dia do
juízo vindouro (v. 9). Afinal de contas, Deus tomou a impensável
atitude de enviar seu filho para morrer por nós quando não havia nada
que nos recomendasse a ele; ao contrário, estavam presentes todos os
elementos para que ele se revoltasse conosco — quando, em outras
palavras, éramos seus inimigos (v. 10). Agora, que somos seus amigos,
que fomos reconciliados com ele na forma descrita nos versículos 1 e 2,
Deus, absolutamente, não está prestes a nos abandonar.
O argumento assume a fórmula já conhecida de vários sistemas
lógicos e não menos dos sistemas judaicos, de “quanto mais”. Se Deus já
fez o mais difícil, quanto mais não estará propenso a completar a tarefa
fazendo a parte mais fácil. Se alguém se esforçou escalando a face
íngreme de um penhasco, contra todas as probabilidades, a fim de
chegar ao cume da montanha, não estará inclinado a desistir quando, já
no topo da parede vertical, se defronta com um simples passeio a pé em
uma trilha gramada para chegar ao cume propriamente dito. Se alguém
dirigiu até a outra extremidade do país, enfrentando chuva, neve e
neblina, só para visitar um amigo que se encontra em necessidade, não
vai abandonar seu objetivo ao chegar àquela casa, com o céu límpido, o
sol brilhando, se tudo o que tem a fazer é atravessar o jardim da frente e
tocar a campainha. Essa é a força do argumento de Paulo nos versículos
9 e 10.
O versículo 11 surge como se fosse uma surpresa. A palavra-chave,
aqui traduzida como “celebrar”, é a pista. Ela aponta de volta para o que
Paulo disse em 2:17 e 3:27. Aqueles que vivem sob a lei de Moisés, como
o próprio Paulo já fez, “celebravam” o fato de que o Deus criador era seu
Deus. Eles se “orgulhavam” (a mesma palavra pode ter tanto um
sentido bom como um sentido mau), acreditando que a posse da lei lhes
garantia esse status especial. Paulo mostrou que essa celebração era
superficial, que esse orgulho era vazio. No entanto, no evangelho de
Jesus, precisamente porque elimina toda a possibilidade de orgulho
humano, e porque é abraçado em meio ao sofrimento (5:3), há razão
para se dizer, mais uma vez, com o salmista: “Este Deus é o nosso Deus
para todo o sempre” (Salmos 48:14). E também ao lado do próprio
apóstolo Paulo: “Se Deus é por nós, quem poderá ser contra nós?”
(8:31). O fato de isso parecer uma atitude de extrema arrogância — o
que é verdadeiro principalmente no inconsequente relativismo atual —
não deveria nos fazer desistir de abraçá-lo, a partir da sempre
surpreendente celebração do amor pessoal de Deus, que nos habilita a
fazer essas declarações.
Na realidade, a resistência a esse tipo de declaração pode advir do
impulso constante de se resistir ao senhorio de Jesus, aquele por meio
de quem isso se torna realidade. Paulo viveu em um mundo no qual
outros “senhores” reinavam supremos e se ressentiam quando surgiam
candidatos alternativos para ocupar suas posições. Nós também nos
ressentimos disso.
ROMANOS 5:12-17
O GRANDE QUADRO EM UMA SÓ PINCELADA: ADÃO E O
MESSIAS
12Portanto, assim como o pecado entrou no mundo através de um ser humano, e a
morte, através do pecado, e ao longo do caminho a morte se espalhou para todos os
seres humanos, pois todos pecaram… 13O pecado estava no mundo, vejam bem,
mesmo na ausência da lei, embora o pecado não seja computado quando não existe
lei. 14Entretanto, a morte reinou de Adão a Moisés, mesmo sobre as pessoas que
não pecaram por desobedecerem a um mandamento, como Adão havia feito —
Adão, que foi um protótipo antecipado daquele que haveria de vir.
15Mas, “assim como ocorre na transgressão, ocorre com o dom”, esse não é o caso.
Porque, se muitos morreram pela transgressão de um só, quanto mais a graça de
Deus, e o dom da graça por meio de uma só pessoa, o Messias, abundou sobre
muitos. 16Como também não é: “assim como ocorre mediante o pecado de um,
também é com o dom”. Porque o julgamento que se seguiu àquela única
transgressão resultou em um veredicto negativo. No entanto, o dom gratuito que se
seguiu às muitas transgressões resultou em um veredicto positivo. 17Pois, se, pela
transgressão de um só, a morte reinou por meio dele, quanto mais aqueles que
receberam a abundância da graça e o dom de pertencimento à aliança, de “estarem
certos”, vão reinar em vida por meio de um só homem: Jesus, o Messias.
O escultor estava satisfeito com seu trabalho. Era uma linda estátua e
ficaria ótima na praça da cidade. O personagem retratado vivera no
pequeno cais do porto durante toda a sua vida e se tornou bem
conhecido por organizar o serviço da Guarda Costeira. Ele ficou famoso
quando, arriscando a própria vida, resgatou, praticamente com uma só
mão, um barco lotado de gente que naufragou nas rochas durante uma
tempestade de inverno. A cidade ficou muito agradecida e contratou
um escultor para esculpir sua estátua. Mas não demorou muito para
surgir um problema. No verão seguinte, uma gangue de jovens
arruaceiros veio à cidade para se divertir. Eles causaram alvoroço na
pequena rua principal acima, quebraram algumas poucas janelas e
gritaram palavras grosseiras para os pedestres. E, ao chegarem à
estátua, resolveram divertir-se. Primeiro, borraram a peça toda com
tinta vermelha. Depois, atiraram pedras no objeto. Em seguida,
revezaram-se correndo, saltando e chutando-a com os dois pés erguidos
no ar. Passados alguns minutos, a estátua, que não fora construída para
resistir a esse tipo de tratamento, descolou-se da base e caiu no meio da
rua, espatifando-se em pedaços. Os jovens fugiram, ainda dando risadas.
O conselho administrativo da cidade refletiu sobre qual atitude
tomar diante disso e, então, decidiu convocar o escultor. Eles estavam
determinados a não se deixar vencer. Queriam a estátua refeita
exatamente como era antes. O escultor, porém, teve uma ideia melhor.
Ele a faria de novo, sim, mas com um material muito mais resistente.
Ela também seria mais bonita ainda. Ele não iria simplesmente pôr as
coisas de volta como eram. Essa era a oportunidade de fazer algo
realmente espetacular.
Poderíamos prosseguir com a história. Gosto de pensar nos próprios
jovens se encrencando em um barco, sendo resgatados pela Guarda
Costeira e caindo em si. Mas já fomos longe o bastante para fazer
emergir o ponto mais importante, que, de outro modo, talvez não
conseguíssemos destacar em meio aos escritos densos e difíceis de
Paulo. O ponto principal é o seguinte: o que Deus fez num único
homem, Jesus, o Messias, é muito, mas muito mais do que meramente
colocar a raça humana de volta no ponto em que se encontrava antes da
chegada do pecado. A estátua foi refeita e, agora, é muito mais
esplêndida do que antes. Não se trata de “o que eles derrubaram, Deus
levantará novamente”. Nem é o caso de “o que eles fizeram de forma
perversa, Deus fará de forma graciosa”. Deus fez muito, mas muito mais
mesmo. Esse é o ponto que se destaca nos versículos 15, 16 e 17.
A razão pela qual Paulo chega a essa posição é que, por fim, ele se
encontra olhando sua argumentação, feita até aqui, de fora e está
resumindo o resultado obtido. Isso significa contar a história de Adão e
do Messias. A questão com a aliança feita com Abraão, como insistimos
durante todo o tempo, consistia em desfazer o primeiro pecado da
humanidade, a idolatria básica que levou à dissolução e à decadência da
genuína humanidade, resultando na própria morte. Agora, Paulo
demonstrou que as promessas feitas a Abraão são cumpridas em Jesus e
por meio de Jesus, o Messias. E ele pôde ver à frente (5:1-11),
percebendo como isso funciona em termos de futura esperança.Ele se
encontra, portanto, em posição de retratar o grande quadro que agora
emerge, o esboço a partir do qual desenvolverá seu relato sobre o novo
povo de Deus nos capítulos 6 e 8.
No entanto, “esboço” é a palavra certa. Mais do que em qualquer
outra parte de seus escritos, Paulo permite que seus pensamentos sigam
esse ritmo, que parece usar uma palavra apenas para cada quatro ou
cinco de que ele realmente necessitaria para se fazer entender melhor.
Nós o seguimos, aos tropeços, buscando captar o sentido de tudo e,
gradualmente, a imagem seguinte começa a surgir.
Ele inicia no versículo 12, como se fosse delinear uma imagem
equilibrada: assim como, por um homem, o pecado entrou no mundo,
por um só homem Deus tratou do pecado. Entretanto, ele para bem no
meio caminho, onde é possível ver os três pontinhos no final do
versículo. Ele se dá conta de que há duas coisas diferentes que precisam
ser ditas em primeiro lugar, antes que possa apresentar esse equilíbrio
sem rodeios. A primeira delas está nos versículos 13 e 14; a segunda é o
tema dos versículos 15, 16 e 17, os quais já olhamos de relance.
Os versículos 13 e 14 explicam a confusão que poderia atrapalhar o
caminho a percorrer. Um longo tempo se passou entre Adão e Moisés.
Adão recebeu um mandamento direto e desobedeceu. Deus deu um
conjunto de mandamentos diretos a Israel através de Moisés e eles
também os infringiram. Contudo, entre eles, nesse amplo relato da
história antiga, os seres humanos prosseguiram pecando e morrendo,
mesmo não havendo lei para registrar o que eles faziam. O lugar e o
papel da lei de Moisés dentro do quadro geral do pecado são muito
importantes para Paulo, como veremos especificamente no capítulo 7.
Portanto, para ele, é vital que seja esclarecido todo mal-entendido em
potencial nessa área, desde o início.
Os versículos 15, 16 e 17, conforme veremos, insistem em que
colocar a humanidade em ordem é algo muito maior do que
simplesmente reverter o pecado de Adão e suas consequências. A
“transgressão” e o “dom” não são equivalentes e opostos. A morte é
puramente negativa. O dom da vida concedido por Deus não pode
simplesmente ser comparado a ela, como se a morte e a nova vida
fossem equivalentes e opostos. O “veredicto negativo”, a “condenação”
que se seguiu à transgressão original, foi a consequência direta do que
foi feito. No entanto, Deus tomou a iniciativa em uma situação na qual
não existia nada além de pecado para ser visto, e chegou ao lugar no
qual a humanidade se encontrava em ruínas, de modo a fazer de suas
criaturas humanas algo muitas vezes melhor do que haviam sido no
início.
O versículo 17 põe esse contraste em relevo, levando-o a uma
extensão ainda muito maior. A consequência do pecado foi o “reinado
da morte”: a morte, a primeira em corrupção e em dissolução, domina
no presente sobre o mundo inteiro e sobre tudo que há nele. Mas, onde
nossa expectativa estaria em que a outra metade do par em contraste
fosse “o reinado da vida”, Paulo vai um pouco além: agora, o que
esperamos é o reinado daqueles que recebem o dom de Deus de
pertencimento à aliança, da posição como “certos” [endireitados,
justificados]. Paulo não fala muito sobre o “reino” vindouro daqueles
que pertencem a Jesus (um tema que encontramos em outros textos
cristãos antigos, como, por exemplo, Apocalipse 20:4, 6; e 22:5). Aqui,
porém, como também, por exemplo, em 1Coríntios 6:2, está tudo muito
claro. Atualmente, o “reino de Deus”, ou seja, o domínio soberano e
salvador de Deus sobre o mundo, é exercido através do Senhor Jesus
ressurreto. Entretanto, no futuro, esse governo será exercido, assim
parece, por intermédio dos seres humanos plenamente redimidos,
aqueles identificados, no presente, pelo dom de Deus como “certos”, por
serem membros da aliança.
Agora, Paulo está pronto para voltar ao versículo 12, onde iniciou, e
então apresentar novamente sua comparação sem rodeios: como foi
mediante um homem, assim também será mediante um homem. Antes,
porém, de passarmos para a próxima seção, precisamos fazer uma pausa
e refletir sobre a extraordinária generosidade da graça de Deus. Olhe de
novo os versículos 15, 16 e 17 e veja a frequência com que aparece a
palavra “dom”. Você consegue perceber a incrível e excessiva amplitude
da generosidade divina?
ROMANOS 5:18-21
O TRIUNFANTE REINO DA GRAÇA
18Portanto, assim como pela transgressão de um só a consequência foi a
condenação de todos, pelo ato de justiça de um só, a consequência é a justificação e
a vida para todos. 19Pois, assim como, pela desobediência de um só, muitos
receberam a condição de “pecadores”, através da obediência de um só, muitos
receberão a condição de serem consideradas “certas”.
20A Lei veio junto para que a transgressão atingisse seu ápice. Onde, porém,
aumentou o pecado, a graça superabundou; 21de modo que, assim como o pecado
reinou na morte, assim mesmo, mediante a fidelidade da justiça da aliança de Deus,
a graça possa reinar até a vida da era por vir, por meio de Jesus, o Messias, nosso
Senhor.
Deus já o fez; Deus o fará. Essa é a mensagem da presente e pequena
passagem dramática, sintetizando toda a história da carta até aqui.
Isso pode parecer estranho, já que a palavra “Deus” não aparece
nesses versículos. Entretanto, o que Paulo fez aqui é algo que tem um
efeito muito maior. Ao falar do resultado da ação de Jesus nos
versículos 18 e 19 e ao falar da “graça” nos versículos 20 e 21, ele aponta
em direção ao Deus cujo plano de salvação passou agora a surtir efeito.
Como um bom contador de histórias, ele nos deixa imaginando por nós
mesmos quem é esse que poderia planejar algo assim e trazer a bom-
termo, aquele cujo nome oculto é “graça”.
Em vez de uma estátua sendo derrubada no chão e substituída,
pense agora em duas estátuas, dispostas uma de frente para a outra, nas
extremidades da praça de uma cidade. A primeira é uma figura triste —
de fato, horrorosa. É a máscara da morte de um personagem que já fora
nobre e que, por causa de uma vida insensata e de desperdícios, agora
carrega em seu rosto os indisfarçáveis sinais da decadência, resultantes
de um caminho dessa natureza. A segunda é só vida e entusiasmo,
parecendo que, a qualquer instante, vai saltar de sua base e fazer
acrobacias, por puro excesso de alegria. Isso lhe permitirá saborear,
nesses versículos, uma pitada do contraste entre dois tipos de
humanidade. Paulo ainda terá muito mais a dizer nos próximos
capítulos a respeito desses dois tipos; portanto, faremos bem se
procurarmos conhecer tudo o mais rápido possível.
O primeiro ponto, obviamente, é a humanidade adâmica, a
humanidade que reflete o “um só” Adão, cuja desobediência ao
mandamento de Deus trouxe o pecado e a morte ao mundo. Paulo não
discute (tampouco nós discutiremos) a questão sobre quais foram os
fatos reais que estiveram por trás do relato altamente realista de
Gênesis 3. Basta dizer que a ideia de um mundo belo e bom, estragada
em determinado momento pela rebelião dos seres humanos,
permaneceu como uma ideia essencial em todo o pensamento cristão,
bem como em todo o pensamento judaico primitivo. O retrato da
humanidade em um estado pecaminoso é lamentável. O pecado traz
condenação (v. 18), o juízo final mencionado em 2:1-16. Isso significa
que aqueles que vivem em um estado de pecado ostentam a condição de
“pecadores” (v. 19). Ou seja, eles não são, basicamente, pessoas boas que
algumas vezes cometem coisas ruins. São, antes de tudo, basicamente,
pessoas falhas cujos erros reiterados revelam sua própria natureza em
atos específicos de pecados.
Contrastando com isso, um novo tipo de humanidade foi liberado
no mundo mediante o “ato de justiça” de um só homem, Jesus, o
Messias. A palavra que traduzi como “justiça” traz em si o sentido de
“integridade” e “fidelidade da aliança” — uma importante parte do
argumento de Paulo até aqui. Jesus agiu como a incorporação tanto da
fidelidade da aliança de Deus como da obediência fiel que Israel (3:2)
deveria ter apresentado1TIMÓTEO 3:1-7 • O caráter do bispo
1TIMÓTEO 3:8-13 • O caráter dos diáconos
1TIMÓTEO 3:14-16 • O mistério da piedade
1TIMÓTEO 4:1-5 • Fique atento ao ensino falso
1TIMÓTEO 4:6-10 • Envolva-se com treinamento!
1TIMÓTEO 4:11-16 • Cuide de si mesmo e do seu ensino
1TIMÓTEO 5:1-8 • As famílias humanas e a família de Deus
1TIMÓTEO 5:9-16 • Viúvas
1TIMÓTEO 5:17-25 • Presbíteros
1TIMÓTEO 6:1-5 • Escravos, mestres e ensino saudável
1TIMÓTEO 6:6-10 • Piedade e contentamento
1TIMÓTEO 6:11-16 • A aparição real do Rei
1TIMÓTEO 6:17-21 • O que fazer com o dinheiro
2�������
2TIMÓTEO 1:1-7 • Reacenda o dom!
2TIMÓTEO 1:8-14 • Não se envergonhe!
2TIMÓTEO 1:15-18 • Inimigos e amigos
2TIMÓTEO 2:1-7 • Condições de serviço
2TIMÓTEO 2:8-13 • A palavra de Deus não está presa
2TIMÓTEO 2:14-19 • A palavra tola e a palavra da verdade
2TIMÓTEO 2:20-26 • Vasos à disposição de Deus
2TIMÓTEO 3:1-9 • Inimigos da verdade
2TIMÓTEO 3:10-17 • Continue nas Escrituras!
2TIMÓTEO 4:1-5 • O julgamento está vindo — portanto, pegue firme
em seu trabalho
2TIMÓTEO 4:6-8 • Esperando a coroa
2TIMÓTEO 4:9-22 • Venha logo me ver
����
TITO 1:1-4 • O plano de Deus revelado
TITO 1:5-9 • Designando presbíteros
TITO 1:10-16 • O problema em Creta
TITO 2:1-10 • Mandamentos para o lar
TITO 2:11-15 • Graça, esperança e santidade
TITO 3:1-8a • A bondade e a generosidade de Deus — e a nossa
TITO 3:8b-15 • Cuidado com as disputas e divisões
Glossário
Para
Hattie
“Em todas essas coisas somos completamente vitoriosos
por meio daquele que nos amou.”
Romanos 8:37
 INTRODUÇÃO 
Já na primeira vez que alguém se levantou em público para falar de
Jesus a outras pessoas, deixou bem claro: esta mensagem é para todos.
Esse foi um grande dia — algumas vezes chamado de o aniversário
da igreja. O grande vento do espírito de Deus alcançara os seguidores
de Jesus, enchendo-os de uma nova alegria e da sensação da presença de
Deus e de seu poder. Pedro, o líder, que, algumas semanas antes,
chorava como um bebê porque havia mentido, amaldiçoado e até
mesmo negado conhecer Jesus, agora se encontrava de pé, explicando a
uma grande multidão que havia acontecido algo que haveria de mudar o
mundo para sempre. O que Deus havia feito por ele, Pedro, agora ele
começava a fazer pelo mundo inteiro: nova vida, perdão, nova esperança
e poder estavam se abrindo como o desabrochar de uma flor após um
longo inverno. Um novo tempo tivera início, tempo no qual o Deus
vivo faria coisas novas no mundo — começando ali, ao vivo e em cores,
com os indivíduos que o estavam ouvindo. “Esta promessa é para
vocês”, disse ele, “e para seus filhos, e para todos aqueles que estão
longe” (Atos 2:39). Não era apenas para a pessoa de pé a seu lado. Era
para todos.
Num intervalo de tempo incrivelmente pequeno, isso se tornou uma
verdade tão grandiosa que aquele movimento recentíssimo se espalhou
pela maior parte do mundo conhecido. E uma das maneiras pelas quais
a promessa para todos se estabeleceu foi pelos escritos dos novos líderes
cristãos. Esses escritos curtos — em sua maioria, cartas e histórias sobre
Jesus — circularam amplamente e foram lidos com avidez. Esses escritos
nunca tiveram como alvo uma elite religiosa ou intelectual. Desde o
começo, esses escritos eram para todos.
Isso ainda é verdade hoje, assim como era naquela época.
Obviamente, é importante que algumas pessoas invistam tempo e
cuidado lidando com as evidências históricas, o sentido das palavras
originais (os primeiros cristãos escreveram em grego) e o vigor e a
especificidade com que cada autor se referiu a Deus, a Jesus, ao mundo
e a si mesmo. Esta série, inclusive, está fortemente baseada nesse tipo
de esforço. Mas o objetivo último é que a mensagem alcance a todos,
especialmente as pessoas que não leriam um livro com notas de rodapé e
com citações escritas em grego. É para essas pessoas que os livros desta
série foram escritos. É por isso que, no final, há um glossário contendo
uma descrição simples sobre o significado das palavras essenciais, sem
as quais você talvez não alcançasse um bom entendimento. Sempre que
você encontrar uma palavra em negrito, poderá olhar no final e
relembrar o que esse termo significa.
É claro que hoje há muitas traduções do Novo Testamento
disponíveis. A versão que eu proponho neste livro foi preparada
pensando no tipo de leitor que não compreende, necessariamente, uma
tradução mais formal e, algumas vezes, até mesmo muito tediosa no tom
adotado. É claro que procurei ser o mais fiel possível ao texto original.
Porém, meu objetivo principal foi garantir que a tradução ficasse clara
para todos, e não apenas para alguns.
A carta de Paulo aos cristãos em Roma é sua obra-prima: aborda
muitos tópicos distintos de muitos ângulos, reunindo-os em uma linha
de pensamento de rápida evolução e convincente. Ao lermos esta carta,
algumas vezes temos a sensação de estar sendo arrastados para dentro
de um pequeno barco em um rio agitado, em meio a um turbilhão de
água. Precisamos segurar firmemente se quisermos permanecer a bordo.
Se, porém, conseguirmos permanecer, a energia e a emoção de toda essa
experiência serão incomparáveis. A razão é óbvia: o livro de Romanos
tem tudo a ver com o Deus que, como diz Paulo, revela seu poder e sua
graça através das boas-novas acerca de Jesus. E, como Paulo insiste
reiteradas vezes, esse poder e essa graça estão disponíveis a todos que
creem. Portanto, aqui está: Paulo para todos —Romanos 1-8 - Parte 1!
N. T. WRIGHT
ROMANOS 1:1-7
BOAS-NOVAS SOBRE O NOVO REI
1Paulo, escravo do Rei Jesus, chamado para ser apóstolo, separado para as boas-
novas de Deus, 2que ele prometeu de antemão por meio de seus profetas nos
escritos sagrados — 3as boas-novas a respeito de seu filho, que descende da semente
de Davi segundo a carne, 4e que foi destacado poderosamente como o filho de Deus
segundo o espírito de santidade, mediante a ressurreição dos mortos: Jesus, o Rei,
nosso Senhor!
5Por meio dele, recebemos graça e apostolado para produzir a obediência pela fé
entre todas as nações, para o bem de seu nome. 6Isso inclui vocês, que são
chamados pelo Rei Jesus.
7Esta carta destina-se a todos em Roma que amam a Deus, todos os que são
chamados para ser seu povo santo. Graça e paz a vocês da parte de Deus, nosso pai,
e do Rei Jesus, o Senhor.
De tempos em tempos, cientistas enviam sondas espaciais a Marte. O
objetivo dessa ação, obviamente, é descobrir cada vez mais a respeito
desse admirável planeta, que, embora seja um de nossos vizinhos,
encontra-se a mais de 78 milhões de quilômetros de distância. Durante
séculos, as pessoas imaginavam que poderia haver vida em Marte,
talvez até mesmo vida inteligente. Sem dúvida, há muitas coisas novas
para aprendermos, coisas a serem descobertas. Se ao menos pudéssemos
chegar lá com segurança e investigar o que se passa...
Muita gente se sente assim, de modo geral, em relação a Paulo, e, de
modo específico, em relação a Romanos. A maioria das pessoas, que
possui ao menos uma leve familiaridade com a fé cristã, sabe que Paulo
foi um personagem admirável e importante em seus primeiros dias.
Muitos sabem que Romanos é sua carta mais formidável. Alguns até já
podem ter ouvido acerca do efeito poderoso que esta carta teve, tantas
vezes, na história da igreja: personagens importantes como Agostinho,
Lutero e Karl Barth a estudaram, trazendo uma nova e desafiadora
mensagem da parte de Deus. Entretanto, para muitos cristãos no
mundo ocidental, Romanos permanece, tal como Marte, um grande
mistério. “Tentei ler esta carta uma vez”, dizem eles, como se fossem
cientistas descrevendo mais uma sonda espacial fracassada, “porém
achei muito difícil e não consegui seguir em frente”.
Uma espécie diferente de problema aguarda aqueles que
aprenderam a fé cristã em uma das grandes igrejas do mundo ocidental.
Muitos católicos romanos tradicionais e outros de tradições similares
sabem que os protestantes fizeram de Paulo um herói importante, razão
pela qual passaram a suspeitar dele. No entanto, também há problemasa Deus, mas fracassou em fazer. Aqui, Paulo
está resumindo o que já disse sobre a fidelidade do Messias em 3:22. Sua
“justiça” (v. 18) e sua “obediência” (v. 19; compare com Filipenses 2:8)
são formas de descrever o que Jesus fez, acima de tudo conduzindo a si
mesmo para a própria morte, de tal modo a revelar a crença de Paulo de
que esse é o clímax do plano divino da salvação. Quando Deus celebrou
a aliança com Israel, ele o fez de modo que Israel pudesse ser o meio de
tratar o mal que infectou seu mundo. Agora, no Messias, esse objetivo
foi concretizado.
Os seres humanos recriados, como resultado desse ato, são
declarados certos já no presente, como já vimos. E recebem também a
garantia de “vida” no futuro. Esse é o significado de “justificação e
vida” no versículo 18, e também da condição de “estarem certos” no
versículo 19. Esses versículos também enfatizam a universalidade do
pecado de Adão, bem como do ato salvífico de Jesus. Essas coisas não
foram feitas para o bem apenas de uma parte da humanidade, mas de
todos, judeus e gentios, sem distinção, conforme Paulo enfatizou
repetidas vezes nos capítulos anteriores.
O versículo 20, contudo, apresenta uma nova e diferente
observação, alinhada a um tema já abordado diversas vezes nos
capítulos anteriores. Em um dos segmentos do primeiro modelo de
humanidade, o modelo adâmico, foi introduzida uma nova e
perturbadora observação. “A lei veio junto.” Por que Paulo introduziu a
lei judaica aqui e o que está dizendo a seu respeito?
Trata-se de um momento revelador. Muitos judeus à época,
inclusive seu próprio autor, enxergavam a lei como o início do novo
modelo de humanidade. Israel foi chamado para ser diferente do
restante do mundo, e Deus deu a lei a seu povo a fim de que isso se
tornasse realidade. Conforme veremos, ainda permanece o sentido
segundo o qual isso continua sendo verdade. Nada é tão direto e simples
em se tratando da lei em Paulo.
Mas a questão que Paulo está levantando é que, quando a Torá, a lei,
chegou a Israel, longe de demarcar o início de um novo tipo de
humanidade, simplesmente intensificou o problema do antigo tipo. “A
lei veio junto para que a transgressão atingisse seu ápice” (v. 19). Paulo
precisará de metade do capítulo 7 para explicar o que quer dizer com
isso; no entanto, podemos sintetizá-lo por antecipação do seguinte
modo, a partir de 5:13-14 e da presente passagem: o pecado, no sentido
de um erro comum do ser humano, é, em si mesmo, como um pequenino
slide colorido, uma fotografia ou um pedacinho de filme que mal se
consegue enxergar a olho nu quando tomado isoladamente. O que a lei
faz é colocar essa pequenina imagem em um projetor com uma lâmpada
forte e brilhante por trás e uma grande tela à sua frente. A lei chama a
atenção para o pecado, porém, em si mesma, é impotente para fazer algo
que possa evitá-lo.
Volte às nossas duas estátuas. A estátua sombria, aquela com a
máscara da morte, está portando um livro no qual estão anotadas todas
as faltas e todos os fracassos dos quais a pessoa é culpada. O rosto olha
para baixo, em direção ao livro, com uma expressão de terror inútil.
Paulo, contudo, declara que, “onde aumentou o pecado, a graça
superabundou”. (Paulo, aqui, emprega uma palavra que, à parte de sua
utilização em 2Coríntios 7:4, não é encontrada em nenhum outro lugar
no grego antigo — talvez ele mesmo a tenha inventado.) A implicação
não é que Deus tenha dito que a lei não importa. A implicação é que
Deus encontrou um meio de resolver o problema também com a lei,
uma forma nova e estranha de fazer cumprir essa lei. Isso também será
explicado mais adiante, em 8:1-11 e 10:5-9. É como se a segunda estátua
estivesse também carregando um livro, mas suas páginas estão todas
repletas de vida e de cor. Como isso veio a acontecer, Paulo nos
explicará mais adiante.
O quadro final, no versículo 21, expressa exatamente esse contraste.
“O pecado reinou na morte”: “o pecado”, agora visto como um poder
abstrato, dominou o mundo. Ele governa o mundo como um tirano do
mal governa um país: destruindo-o pouco a pouco, sem tolerar qualquer
tipo de rebelião, até que todo o lugar esteja completamente arruinado.
Porém, a energia e a nova vida do modelo alternativo de humanidade
surgem e transbordam em nós a partir da segunda metade do versículo.
No lugar do reino do pecado — algo frio e estático —, temos o reinado
da graça, um governo cheio de vida e pleno de novas possibilidades. O
reino da graça avança velozmente em direção a seu alvo, que é a vida da
era porvir, o tempo no qual Deus consumará a nova criação, quando,
então, todos os erros serão colocados em ordem (ver 8:18-25).
É importante notarmos que a tradução corrente “vida eterna”
(aqui, traduzi como “vida da era porvir”) dá à maioria dos leitores
modernos a impressão um tanto equivocada de que Paulo está falando
de passar a “eternidade” em um mundo situado para além do espaço, do
tempo e da matéria, no “céu”. Paulo jamais menciona uma ideia desse
tipo. O que ele tem em mente, aqui e em outras partes, é a ressurreição
física do povo de Deus, a fim de compartilhar a nova terra e os novos
céus, os quais resultarão da libertação de Deus do mundo atual quanto
à sua decadência e à sua corrupção. Em caso de qualquer dúvida a esse
respeito, o capítulo 8 a removerá por completo.
Nessa declaração final sobre o reino da graça e, portanto, sobre o
segundo modelo de existência humana, Paulo acrescenta duas frases
para indicar como essa nova vida foi concretizada. De um lado, é
“mediante a justiça da aliança de Deus”. Mais uma vez, a tradução dessa
palavra é bastante difícil, porém, quando olhamos de volta para os
capítulos anteriores, fica claro o que Paulo quer dizer com isso. O novo
mundo, o novo tipo de existência humana, pôde surgir porque o Deus
vivo se manteve fiel à sua aliança, a aliança projetada para pôr o mundo
em ordem. Por outro lado, tornou-se realidade “mediante Jesus, o
Messias, nosso Senhor”. O capítulo se encerra, como acontece com
quase todos os parágrafos dessa seção (ver 5:11; 6:11; 6:23; 7:25; 8:11 e
8:39), lembrando-nos que aquilo que Deus realizou em Jesus permanece
sendo a força motriz de tudo. No caso do presente capítulo, a morte de
Jesus foi apresentada como o amor de Deus em ação (5:8) e, acima de
tudo, como o ato de obediência mediante o qual, como sempre
compreendido na aliança, o pecado e a morte foram derrotados, e a
graça e a vida foram revelados em seus devidos lugares.
O novo modelo de humanidade desabrochou para a vida. Agora, a
pergunta à qual temos de responder é: de que lado da praça da cidade
estamos vivendo?
ROMANOS 6:1-5
DEIXANDO O ESTADO DE PECADO MEDIANTE O BATISMO
1O que diremos, então? Continuaremos no estado de pecado para que a graça possa
aumentar? 2Certamente que não! Nós morremos para o pecado; como
continuaremos a viver nele? 3Vocês não sabem que todos nós que fomos batizados
no Messias, Jesus, fomos batizados em sua morte? 4Isso quer dizer que fomos
sepultados com ele, mediante o batismo, na morte, de modo que, assim como o
Messias foi ressuscitado dentre os mortos mediante a glória do pai, nós também
possamos nos comportar com uma nova qualidade de vida. 5Porque, se fomos
plantados juntos na semelhança de sua morte, também o seremos na semelhança de
sua ressurreição.
Todos conhecem a história espetacular de Jesus sobre o filho pródigo
(Lucas 15:11-32). O filho mais novo pressiona seu pai para obter sua
parte na herança, vai embora de sua casa e desperdiça tudo. Após, ele
imagina voltar para casa em condição de desgraça. Então, para seu total
espanto, descobre seu pai correndo estrada abaixo só para ir a seu
encontro e preparando uma festa grandiosa em sua homenagem. Ele é
acolhido de volta como um filho, mesmo não merecendo isso. (E mesmo
com seu irmão mais velho resmungando a esse respeito.)
Agora, avance no tempo um ano ou dois e imagine um pensamento
se infiltrando sorrateiramente na mente do jovem rapaz. Mais uma vez,
a vida se estabeleceu em um ritmo razoavelmente monótono. Seu irmão
mais velhoapenas tolera tê-lo por perto, e seu pai está ficando cada vez
mais velho. Ele se recorda, com um suspiro feliz, do dia em que apareceu
no fim da estrada e seu pai saiu correndo a seu encontro para saudá-lo...
e, então, ele pensa: e se eu fizesse tudo isso de novo? Por que não me
sirvo de coisas suficientes para minha sobrevivência, fujo por algumas
semanas e depois banco o arrependido e volto mais uma vez? Quem
sabe não posso ganhar uma nova festa?
Absurdo? Impensável? Pois pode acreditar. Isso é exatamente o que
muitas pessoas pensam. “Deus vai me perdoar. Esse é seu trabalho!”,
declarou um famoso filósofo dois séculos atrás. E um grande número de
pessoas parece crer que a única palavra que a igreja deve dirigir a todos
é a mensagem do perdão. Outro dia, perguntaram-me em um programa
de rádio: “Certamente, não será difícil para uma igreja que acredita em
tolerância estabelecer um código de lei moral?” Devemos, como diz a
conhecida expressão, ser “inclusivos”. Precisamos dizer às pessoas que
Deus as aceita exatamente como são. Algumas vezes, isso vem apoiado
por uma versão do que Paulo acaba de dizer: onde abundou o pecado,
superabundou a graça. Portanto, a única coisa que resta dizer a uma
pessoa que vive em pecado é: “Está tudo bem, Deus o ama!”
Suponho que Paulo deparou exatamente com essa linha de
argumentação — provavelmente, repetidas vezes. Com uma diferença:
duvido que alguém tenha proposto seriamente a ele que, já que o amor
de Deus chega até nós enquanto ainda somos pecadores, devemos
permanecer como “pecadores”, de modo que o amor de Deus continue
se achegando a nós. Suponho ainda que ele se defrontou com uma linha
de pensamento que se expressa na forma de pessoas objetando contra
sua doutrina da graça “gratuita” de Deus: “Não se pode sair por aí
dizendo isso! As pessoas vão achar que podem fazer tudo o que
quiserem!” Na realidade, como já vimos em 3:8, algumas pessoas
realmente parecem ter acusado Paulo mais ou menos dessa forma.
O capítulo 6 foi escrito, ao menos sob um aspecto, para responder a
essa pergunta. No entanto, não se trata de um mero aparte, como se
Paulo estivesse apenas fazendo uma pausa em sua linha de pensamento
principal, a fim de lidar com esse problema em particular. Ele se utiliza
dessa questão, tal como um lutador se utiliza da força de ataque de seu
oponente, a fim de avançar no tema principal que tem a apresentar.
Nesse ponto, retornaremos não a uma das histórias de Jesus, mas a uma
história muito mais longa e antiga. Pense no segundo livro da Bíblia, o
livro de Êxodo.
Êxodo conta a história de como os filhos de Israel foram
escravizados no Egito. Deus os ouviu clamar da miséria da escravidão e
da opressão e, então, enviou Moisés, para que os tirasse dali e os levasse
para bem longe, para a liberdade na Terra Prometida. Eles atravessaram
o mar Vermelho, deixando para trás a terra da escravidão e descobrindo
uma nova liberdade. Deus os conduziu ao monte Sinai, onde, então,
deu-lhes a lei. Eles passaram algum tempo... bem, um tanto mais do que
haviam calculado... vagando pelo deserto e murmurando contra Deus.
Contudo, ele seguiu conduzindo-os por meio de sua própria presença,
na coluna de nuvem e de fogo, até que, por fim, eles entraram na terra
que receberam por herança.
Essa história é bem conhecida. O que não se reconhece
normalmente é que, aqui em Romanos, Paulo nos conta uma versão
dessa mesma história, a começar pela presente passagem. Romanos 6
descreve como os cristãos atravessam as águas do batismo (assim como
o mar Vermelho) e, desse modo, deixam para trás a terra da escravidão,
adentrando em uma nova liberdade (assim como sair do Egito e partir
para a Terra Prometida). Romanos 7 luta com a questão do que
aconteceu no monte Sinai e os problemas resultantes, conduzindo-nos a
um estranho e novo cumprimento da lei. Romanos 8 descreve a vida
cristã em termos de Deus liderar seu povo a caminho de sua herança,
que acaba por ser toda a criação redimida — e Paulo adverte
precisamente contra o tipo de murmuração de que os israelitas se
tornaram culpados (“vocês não querem voltar para a escravidão,
querem?” — pergunta ele em 8:15).
Por que Paulo agiu desse modo? Creio que existem três motivos que
operam em conjunto.
Primeiro, ele não se esqueceu (mesmo que nós já nos tenhamos
esquecido!) de que aquilo que Deus realizou em Jesus é o cumprimento
das promessas feitas a Abraão. Contudo, em Gênesis 15, o capítulo que
Paulo expôs em Romanos 4, Deus prometeu a Abraão que, depois de um
período de escravidão, ele conduziria Israel para fora e, por fim, para sua
própria terra. Romanos 6, 7 e 8 são uma maneira de dizer o seguinte: foi
isso que Deus realmente prometeu a Abraão. Esse é o supremo
cumprimento da aliança. É assim que o mundo deve ser posto em
ordem, como Deus sempre planejou.
Segundo, muitos judeus dos dias de Paulo estavam pensando em
termos de um “novo Êxodo”, um grandioso novo ato de Deus por meio
do qual Israel seria liberto da opressão. Paulo concorda com essa
expectativa, porém, em vez de vê-la simplesmente em termos de
liberdade política de Roma, ele a traduz como a suprema libertação: a
libertação de todo o cosmos do pecado, da corrupção e da morte.
Terceiro, ele está, portanto, de forma deliberada, enfatizando que
aquilo que Deus fez mediante Jesus, o Messias, é o verdadeiro
cumprimento da esperança de Israel. Não é que Israel e sua esperança
tenham sido deixados para trás como um estágio mais antigo do plano.
Ao contrário: a salvação que Deus realizou no Messias, a salvação que
ele vai completar pelo espírito, é o alvo de tudo que já ocorreu antes. E
isso, como veremos no início do capítulo 9, levanta, da forma mais
intensa possível, mais uma pergunta que esteve na mente de Paulo
desde o início do capítulo 3. O que, então, temos a dizer a respeito da
ininterrupta Israel étnica? Os capítulos 6, 7 e 8 foram, portanto,
projetados tanto como uma exposição espetacular sobre a vida cristã em
seus próprios termos quanto como uma maneira de levar adiante a força
do livro como um todo, força essa da qual estes capítulos constituem
uma parte central.
Portanto, qual é a resposta de Paulo à espantosa sugestão do
primeiro versículo? O que ele diria a alguém que declarasse que, já que
Deus nos aceita como somos, é melhor, então, não mudarmos a forma
como somos, uma vez que Deus a afirmou como boa?
Sua resposta é que, ao se tornar cristão, você muda de um tipo de
humanidade para outra e, portanto, jamais deveria voltar a pensar em si
mesmo como na forma original. De modo bem específico, ao se tornar
cristão, você morre e ressuscita novamente com o Messias. Aqui,
deparamos, pela primeira vez em Romanos, com uma das crenças
centrais de Paulo: que, uma vez que o Messias representa seu povo, o
que é verdade em relação a ele também é verdade em relação a seu povo.
É por isso que ele fala das pessoas passando a entrar “no Messias”, ou
estando “no Messias”, ou de coisas ocorrendo a eles “com o Messias”.
Esses não são enganos verbais acidentais. Não se pode substituir o nome
por “Jesus” em sentenças assim. É claro que Paulo crê que Jesus era e é o
Messias, mas meu ponto é que a lógica do que ele está afirmando
funciona com base na suposição de que, como Messias, ele não é
simplesmente um indivíduo em particular, Jesus de Nazaré. E, sim, “o
Ungido”, aquele que sintetiza seu povo em si mesmo.
Mais especificamente, o ato de batismo, no que diz respeito a Paulo,
marcava o início prático e físico da vida cristã, envolvendo o cristão na
morte e na ressurreição do Messias. Aqui e nos demais textos, Paulo
compreende o batismo, em parte, em termos do Êxodo, para o qual o
batismo de João apontava, e em parte em termos do próprio batismo de
Jesus por João, porém, mais especificamente, em termos do “batismo”
acerca do qual o próprio Jesus falou (Marcos 10:38), ou seja, sua morte.
Quando as pessoas se submetem ao batismo cristão, morrem com o
Messias e são ressuscitadas com ele para uma nova vida.
Isso significa, em primeiro lugar e acima de tudo, uma mudança decondição. Não estamos mais situados “em pecado”; a graça nos
encontrou lá (5:8,20), não para nos dizer que estávamos bem da forma
como estávamos, mas para nos resgatar e nos levar para outro lugar.
Paulo emprega a figura de “plantar”, como ocorre no caso de uma árvore
ou de um arbusto. Uma vez tendo sido plantado em um solo específico,
é lá que você deve crescer. No batismo, você é plantado na morte de
Jesus, de modo a viver agora como um ser humano renovado, que
também foi plantado em sua vida ressurreta.
Viver de acordo com uma mudança de condição requer que se
reconheça essa mudança e que se deem passos concretos a fim de alinhar
sua vida real à pessoa que você se tornou. Quando alguém se casa, pode
muito bem acontecer de não se sentir muito diferente, mas, de fato,
ocorreu uma mudança, à qual, agora, ambos os cônjuges precisam
adaptar-se. Foram feitas promessas. Essas promessas podem ser
quebradas, porém não podem ser desfeitas. Em muitas culturas, quando
morre um pai de família, o filho mais velho assume a responsabilidade
como o chefe da família, querendo ou não assumi-la e sentindo-se ou
não preparado para isso. Essa é sua nova condição, e ele deve viver à
altura disso, da melhor forma possível.
Uma vez batizado, é claro que você pode tentar esquivar-se ou
negligenciar suas novas responsabilidades. Afinal de contas, você pode
fingir que não ostenta uma nova condição. Paulo aborda esse tipo de
problema em 1Coríntios 10. Mas o que você não pode fazer é tornar-se
alguém não batizado de novo. Nem pense em tentar voltar para o Egito.
O melhor a ser feito é refletir cuidadosamente sobre que indivíduo você
se tornou agora e partir para a Terra Prometida.
Em outras palavras, isso é mais ou menos o que Paulo vai dizer. No
entanto, primeiro faça uma pausa para refletir. Se você foi batizado, o
que isso significa para você? Será que deveria explorar o significado
disso um pouco mais? E, se você ainda não foi batizado, não teria
chegado a hora de pensar a esse respeito?
ROMANOS 6:6-11
MORTO PARA O PECADO, VIVO PARA DEUS
6Sabemos isto: nossa velha humanidade foi crucificada com o Messias, de modo que
a solidariedade do pecado pudesse ser abolida, e não fôssemos mais escravos do
pecado. 7Aquele que morreu, vejam bem, foi declarado livre de todas as acusações
de pecado.
8Mas, se morremos com o Messias, cremos que viveremos com ele. 9Sabemos que o
Messias, após ressuscitar dentre os mortos, não morrerá outra vez. A morte já não
tem mais autoridade sobre ele. 10A morte que ele morreu, perceba, foi para o
pecado, uma única e exclusiva vez. A vida que ele vive, porém, é para Deus. 11De
igual modo, vocês devem considerar-se mortos para o pecado e vivos para Deus no
Messias, Jesus.
De tempos em tempos, ouço a respeito de alguém que sofreu um
acidente terrível ou que teve alguma doença específica e, por isso, já não
consegue mais lembrar quem é.
Deve ser extremamente perturbador — tanto para a pessoa em
questão como para quem procura ajudá-la. Estamos tão acostumados
com as pessoas sabendo dizer seu próprio nome, onde moram, em que
trabalham, quem é sua família e assim por diante, que, só de pensarmos
em falar com alguém que não consegue nem mesmo lembrar essas
coisas, já nos sentimos alarmados. Levando esse caso ao extremo,
existem situações ainda mais raras, em que crianças que se perderam
quando ainda bebês são encontradas anos depois. Criadas por animais,
sem nem mesmo ter a noção do que é ser humano, e menos ainda de que
elas mesmas são humanas.
Em uma situação assim, o que gostaríamos de ser capazes de fazer é
ajudar a pessoa em questão a descobrir quem de fato é, para que possa
alinhar de novo sua vida com sua verdadeira identidade. Aqueles que
têm perda de memória podem ser trazidos de volta com calma, passo a
passo, à sua vida normal, de volta ao seu caminho. A criança criada em
uma selva pode descobrir, da noite para o dia, toda espécie de
inimagináveis possibilidades humanas, passando, assim, a se expressar
verbalmente, de forma articulada. Nessa passagem, o objetivo de Paulo
é fazer algo desse tipo com pessoas que precisam aprender, ou ao menos
ser lembradas, acerca de sua nova identidade como cristãos batizados.
Sua estratégia básica consiste em inseri-las no mapa que ele mesmo
traçou no fim do capítulo 5. E insistir para que pertençam a um lado, e
não ao outro. Lembre-se do mapa: existem dois tipos de humanidade, os
que estão em Adão e os que estão no Messias. Todos nós começamos a
vida “em Adão” e, se formos honestos, teremos de admitir que, com
frequência, nos sentimos como se ainda estivéssemos lá. Em particular,
creio, se você já é cristão há um bom tempo e já esqueceu como é, na
prática, ignorar o amor e o perdão de Deus. No entanto, Paulo insiste
em que não estamos mais lá. Quando os cristãos dizem, eventualmente,
que fizeram algo de errado por causa do “velho Adão”, ou do “velho
homem”, que ainda está em operação neles, estão indo contra o que
Paulo declara de forma explícita nesse trecho: que a “velha
humanidade” foi crucificada com Jesus. A vida adâmica possuía sua
própria solidariedade, presa rapidamente a uma rede de pecado,
escravizando todos os seus participantes, da mesma forma que Faraó
escravizou os israelitas. E o ponto importante sobre ser crucificado é
que, uma vez que se esteja morto, não é mais possível ser escravizado
dessa forma. Conforme Paulo explica no versículo 7, uma vez morto, o
pecado não tem mais direito sobre você. Você está livre de todas as
acusações.
Desse modo, aonde isso nos leva? A uma espécie de terra de
ninguém, a meio caminho entre Adão e o Messias, nem morto nem
vivo? Não. Paulo insiste em que agora estamos “no Messias”, de modo
que tudo o que vale para ele também vale para nós, independentemente
de isso nos parecer improvável e apesar de boa parte disso não nos
parecer ser verdade. E o que é verdade acerca do Messias, desde o
glorioso dia da Páscoa, é que ele está vivo de novo, com uma vida que a
morte não pode mais tocar. Ele não voltou para a mesma vida, como
ocorreu com a filha de Jairo, com Lázaro e as demais pessoas
ressuscitadas por Jesus (e, no que diz respeito a esse assunto, Elias e
Eliseu). Ele seguiu em frente, através da morte, para o outro lado,
entrando em uma nova vida, em um corpo que a morte não mais pode
atingir — um conceito que temos dificuldade de assimilar, mas sobre o
qual os cristãos primitivos são muito claros. A questão que Paulo
levanta é que, se estamos “no Messias”, então nos encontramos na
mesma posição que ele também se encontra.
É óbvio que ainda não fomos ressuscitados corporalmente, como
seremos um dia. Isso pertence ao futuro. O futuro é garantido e certo,
como diz Paulo em 8:11 e em toda sua argumentação de 1Coríntios 15,
mas, ainda assim, é o futuro. Contudo, parte da importância de ser
cristão é que o futuro invade o presente na pessoa e na realização de
Jesus, de modo que seus seguidores já podem provar a realidade daquele
futuro enquanto ainda estão vivendo no presente. O cristão vive de
acordo com o fundamento da ressurreição. Não estamos “em Adão”,
mas, sim, “no Messias”, aquele que morreu e agora se encontra vivo para
todo o sempre.
Paulo diz que precisamos nos “calcular” nessa realidade (v. 11) ou,
como em outras traduções mais conhecidas, nos “considerar”. Isso já foi
muitas vezes seriamente mal compreendido. Algumas vezes, as pessoas
supõem que Paulo está se referindo a um novo salto de fé — salto por
meio do qual podemos obter um novo tipo de santidade, colocando-nos
fora do alcance da tentação e do pecado. E pode ser bastante desejável
para todos — espera-se que pelo menos para a maioria dos cristãos —
que, ainda enfrentando problemas com o pecado, anseiam por deixá-lo
para trás. Entretanto, não é isso que Paulo está falando.
Aqui, a palavra usada por Paulo tem a ver com escrituração
contábil, com o cálculo de contas, com análise de lucros e perdas. E é
claro que, quando se faz um cálculo, chega-se a uma resposta que, em
certo sentido, antes não existia. Em outro sentido, porém,tudo que o
cálculo faz é tornar-nos conscientes do que, de fato, já era verdade
durante todo esse tempo. Ele não cria uma nova realidade. Até que se
conte o dinheiro contido na gaveta da caixa registradora, não se sabe
quanto foi o ganho com o trabalho do dia. Entretanto, contar o dinheiro
que se encontra lá não fará a receita do dia aumentar ou diminuir um só
centavo em relação ao que já se tinha antes.
Paulo está nos dizendo para fazer as contas, para calcular, para
avaliar a nova posição — não para que estimulemos nossa coragem
espiritual com um novo salto de fé, no qual venhamos a nos imaginar,
na prática, como pessoas sem pecado. Contudo, é exatamente aqui que
está o ponto principal. Muitas vezes, é difícil crer no resultado dos
cálculos. No entanto, a fé, em relação a esse aspecto, consiste não em
fechar os olhos e tentar crer no impossível, mas em abrir os olhos para a
realidade de Jesus e de sua morte e ressurreição representativas — e
para a realidade de sua própria posição como membro batizado e crente
do povo de Jesus, aqueles que estão “no Messias”. Esse é o desafio do
versículo 11. Precisamos lembrar quem realmente somos agora, para
que possamos agir de forma coerente.
Uma ilustração bem conhecida nos mostra o exato sentido desse
ponto levantado por Paulo — uma ilustração que, apesar de conhecê-la
já faz muito tempo, somente há pouco veio a fazer sentido na vida
prática de alguém que conheço. Imagine que você alugue uma casa de
um proprietário que acaba se revelando abusivo e explorador, sempre
exigindo taxas extras, entrando em sua casa sem pedir permissão,
ameaçando-o com processo na justiça ou com violência, caso você não
atenda às suas exigências. Você se acostuma a fazer o que ele exige por
medo e não parece encontrar uma saída para essa situação.
Mas, então, para seu alívio, você encontra outro lugar para morar.
Alguém aparece e paga seu aluguel pendente e você está livre para sair.
Então, você se muda e se estabelece no novo lugar. Porém, para seu
espanto, alguns dias depois, o antigo proprietário surge à sua porta e vai
entrando sem autorização. Ele está zangado e exige mais dinheiro. Ele o
ameaça de levá-lo à justiça. O antigo hábito retorna: você se sente
fortemente tentado a pagar o que ele está exigindo, tão somente para se
livrar dele. Entretanto, você sabe que não é mais seu inquilino. Você já
viu todos os papéis: sua última conta já foi quitada e você não lhe deve
mais nada. Ainda trêmulo, você se levanta e ordena que ele saia. Ele não
tem mais direito algum sobre você.
Dependendo de quão desagradável seja seu ex-locador, você pode
ter ou não de chamar a polícia. O apelo de Paulo no versículo 11 é
exatamente como na ilustração acima. Lembre-se da papelada, diz ele.
Lembre-se de quem você de fato é. Não se entregue às vozes que dizem
que, apesar de tudo, você ainda está em Adão e que, portanto, deveria
comportar-se exatamente como antes. Resistir à tentação não é uma
questão de fingir que você não acharia mais fácil desistir e se entregar.
É, sim, uma questão de aprender a pensar da maneira correta. E de agir
com base no que você sabe ser a verdade.
ROMANOS 6:12-14
O CHAMADO PARA UMA VIDA SANTA
12Portanto, não permitam que o pecado domine seus corpos mortais, para fazê-los
obedecer aos seus desejos. 13Nem apresentem seus membros e órgãos ao pecado
com a finalidade de serem usados para seus maus propósitos. Antes, apresentem a si
mesmos a Deus, como pessoas ressuscitadas dentre os mortos, e seus membros e
órgãos a Deus, a fim de serem usados para os fins justos de sua aliança. 14Notem que
o pecado não terá domínio sobre vocês, uma vez que vocês não estão mais sob a lei,
porém sob a graça.
Encerramos a última seção com o retrato de alguém se mudando de casa
(e de um senhorio para outro). Vamos estender essa imagem um pouco
mais e imaginar que eu sou um pequeno agricultor em uma área rural,
cerca de mil anos atrás. Meu sítio situa-se na divisa entre dois grandes
estados e, durante muitos anos, o senhor das terras arrendadas, onde, na
verdade, eu vivo, me tem sob seu total domínio. Especificamente,
sempre que desejava travar uma batalha ou participar de uma guerra,
ou até mesmo de resolver uma escaramuça local, ele me convocava para
me juntar a ele e lutar ao seu lado. Além disso, ameaçava-me com toda a
sorte de coisas desagradáveis — como, por exemplo, incendiar minha
casa —, caso eu não me unisse a ele. Como se não bastasse, mais de uma
vez me fez juntar todos os meus implementos agrícolas, objetos úteis e
de uso pacífico, como enxadas e pás, e levá-los ao ferreiro para que
fossem transformados em espadas e escudos. Assim, vamos lutar suas
guerras quando, na verdade, deveríamos estar cuidando da plantação.
Bem, no fim das contas, dei-me conta do que estava acontecendo e
mudei para o outro lado do rio, onde ficava o outro grande estado.
Construímos uma nova casa, trouxemos todos os nossos pertences e nos
estabelecemos de novo. (Felizmente, meu antigo senhorio estava fora
naquele período; caso contrário, teria tentado me impedir de sair.) O
nobre senhor proprietário das terras onde agora resido nos recebeu de
uma forma maravilhosa e nos cobra um aluguel muito menor que o
outro. De tempos em tempos, meu ex-patrão aparecia e ameaçava
enviar seus cruéis seguidores para que fizessem, isso mesmo, toda a
sorte de coisas desagradáveis de novo. Creio, porém, que ele,
secretamente, teme meu novo senhorio. Dei continuidade a meu
trabalho e, agora, cuido das tarefas do sítio. E meu novo senhor me
chama para ajudá-lo em seu trabalho, que é bem diferente das batalhas
para as quais meu ex-senhor me arrastava. Meu novo senhor está
construindo escolas e hospitais — especialmente para os muito pobres, e
algumas vezes me pede que leve meus equipamentos e ferramentas para
ajudar nessa tarefa. E, se alguém estiver passando por necessidades
especiais — por exemplo, morte na família, incêndio, animais enfermos,
seja o que for —, ele me pede que o ajude dessa ou daquela maneira.
Algumas vezes, é preciso muito esforço, mas eu fico contente em ajudar,
especialmente esse homem.
Essa é uma ficção inocente (até gosto de viver esse papel na Idade
Média, mas estou certo de que não gostaria de vivê-lo de fato), mas
atinge seu objetivo quanto a ilustrar o ponto levantado nesses
versículos. O que está envolvido em se tornar cristão e, então, passar a
viver a vida da humanidade recriada por Deus é uma mudança de
senhorio.
Isso tudo parece muito esquisito para algumas pessoas. Hoje em dia,
existem muitas — como, provavelmente, havia nos dias de Paulo, já que
ele considera necessário enfatizar esse ponto — que simplesmente não
conseguem pensar nesses termos. Há muitas pessoas que lidam com o
evangelho cristão como uma simples maneira nova de ser religioso, sem
se dar conta das exigências radicais que ele faz em relação a todos os
aspectos da vida. Contudo, não existe território neutro. O famoso
cantor e compositor Bob Dylan declarou (em sua fase cristã, suponho)
em uma de suas canções [Gotta Serve Somebody]: “Você tem de servir a
alguém. Pode ser ao diabo”, e a canção prosseguia: “ou pode ser ao
Senhor, mas você tem de servir a alguém.” Bem, Paulo não menciona o
diabo aqui nesse texto, mas, quando fala de “pecado”, há certo senso de
poder, força ou energia sobre-humana, que é mais do que a soma total
de nossos instintos inúteis ou de nossas ações equivocadas.
Essa força pode agir — e, na realidade, age — como um senhorio
tirânico, fazendo exigências sob ameaça, do tipo: você deve viver desse
jeito; você deve sair e se embebedar; você deve ceder a seus apetites
sexuais ao máximo; você deve aproveitar aquilo que os outros possuem;
você deve desenvolver novos tipos de armamento que sejam capazes de
matar cada vez mais pessoas; você deve ampliar seu império de negócios
ao máximo... e essa lista é interminável, como já era nos tempos de
Paulo. E aqui estão as ameaças: se você não viver desse jeito, deixará
escapar a verdadeira vida; você jamais ficará satisfeito até que se renda;
vocêficará doente ou ultrapassado; as pessoas vão rir de você; suas
finanças vão se desintegrar; seus inimigos vão se aproveitar de você.
Sempre que alguém diz: “Ah, mas não tinha como eu desistir disso”,
talvez tivesse uma visão sóbria e realista das necessidades da vida,
porém é bem provável que estivesse simplesmente com medo das
ameaças do velho senhorio.
Talvez a palavra mais importante desse trecho sucinto seja
“Portanto”. Ou você poderia traduzi-la como “Por isso”. Essa passagem
se une à anterior, na qual Paulo insta seus leitores a que se lembrem,
calculem e desenvolvam onde vivem agora. Eles já atravessaram o rio.
Não pertencem mais ao antigo território. Eles não apenas não se
encontram mais sob a obrigação de obedecer a seu antigo senhorio,
como também estão sob a nova obrigação de não obedecer a ele, mas,
sim, ao novo. E sua principal arma nessa batalha específica consiste em
lembrar-se de quem se tornaram mediante o batismo e a fé. Martinho
Lutero, quando tentado por dentro e por fora, costumava exclamar:
“Baptizatus sum!” [“Já fui batizado!”]. Essa, para a surpresa de muitos
cristãos que supõem que Paulo e Lutero teriam demonstrado cautela
diante de uma declaração dessa natureza, é a principal base para a nova
posição.
De modo específico, Paulo imaginou as várias partes do corpo
humano como implementos a serem empregados no serviço desse ou
daquele senhor. Nossos membros e órgãos e, no que diz respeito a isso,
nossas mentes, memória, imaginação, emoções e vontade, tudo deve ser
colocado à disposição não do pecado, mas de Deus. Precisamos pensar e
agir como pessoas que já atravessaram o rio e, portanto, já saíram do
outro lado. Ou seja, que já morreram e já ressuscitaram para uma nova
vida. Não podemos perder as poderosas implicações disso, apoiadas por
maiores detalhes em diversos pontos da primeira carta aos Coríntios. O
que fazemos no presente, ao oferecermos todo o nosso ser ao serviço de
Deus, é o início da vida ressurreta. É óbvio que haverá uma enorme
mudança quando a ressurreição propriamente dita ocorrer (conforme
Paulo nos garante em 8:11 e outros trechos). Nossos corpos atuais se
deteriorarão e morrerão. Entretanto, quando formos ressuscitados, sem
dúvida para nossa própria e enorme surpresa, o que tivermos feito no
presente a serviço do novo senhor acabará se revelando parte não
apenas de quem somos, como também do novo mundo que ele terá feito
surgir. Apresentem-se a Deus, diz Paulo, como ressurretos dentre os
mortos.
O versículo 14 acrescenta uma observação diferente, fazendo-nos
lembrar de um tema que, como muitas vezes acontece, podemos ter
esquecido; no entanto, Paulo não se esqueceu. Uma das razões pelas
quais o pecado não vai dominá-lo — ou seja o motivo pelo qual o antigo
senhorio não tem mais autoridade sobre você — é que, ao deixar seu
território, você deixou para trás também o lugar no qual a lei domina.
Pense mais vez em 5:20-21. Existem duas esferas, dois lugares para
vivermos: a humanidade de Adão e a humanidade do Messias. E o mais
chocante é que a lei de Deus surge como parte do mundo de Adão, e
não do Messias. Paulo precisará de todo o capítulo 7 para explicar como
isso ocorre. Mas, no momento, só para o caso de alguém pensar que
abraçar a lei judaica o ajudaria a servir ao novo senhor, Paulo a retira de
cena. Você se encontra sob o domínio da graça, e não da lei. Ou seja, sob
o governo direto e generoso de Deus, mediante a morte e a ressurreição
de seu filho.
Uma das mentiras do antigo senhor, obviamente, é que o novo
senhor é, em si mesmo, um verdadeiro tirano, que ele está realmente a
fim de arrasar com sua maneira de ser e fazer com que tenha uma
existência retraída e fútil, com todas aquelas regras de “não faça isso,
não toque naquilo!” Uma das coisas que mais precisamos lembrar, na
qualidade de cristãos, sobre quem somos e onde vivemos, é que o Deus a
quem agora servimos é aquele cujo nome do meio é Jesus; o Deus, em
outras palavras, cujo caráter é graça e amor generoso.
ROMANOS 6:15-19
OS DOIS TIPOS DE ESCRAVIDÃO
15E então? Vamos pecar por não estarmos mais sob a lei, mas sob a graça?
Certamente que não! 16Vocês não sabem que, caso se apresentem a alguém como
escravos obedientes, serão realmente escravos daquele a quem obedecem, seja para
o pecado, que conduz à morte, seja para a obediência, que conduz à justificação
final? 17Graças a Deus, embora vocês tenham sido escravos do pecado, tornaram-se
obedientes de coração ao padrão de ensino com o qual se comprometeram. 18Vocês
foram libertados do pecado e agora se tornaram escravos dos propósitos da aliança
de Deus. 19(Estou usando aqui uma imagem humana, devido à fraqueza humana
natural!) Pois, do mesmo modo como apresentaram seus membros e órgãos como
escravos da impureza, e, em certo grau, de uma ilegalidade após outra, apresentem-
nos agora como escravos da justiça da aliança, a qual conduz à santidade.
Um de nossos colunistas do jornal surgiu com uma brilhante ideia para
realizar dois propósitos de uma só vez.
A sociedade britânica (em comum com muitas outras do mundo
ocidental) está enfrentando uma preocupante ascensão da
criminalidade juvenil. Muitos jovens não têm emprego nem propósito
de vida. Eles têm toda a energia, porém pouco dinheiro e nenhuma
chance de fazer ou usufruir o tipo de coisas a que assistem na televisão.
Por isso, voltam-se para o crime — e tornam-se grandes especialistas em
todas as espécies de habilidades, sejam físicas, sejam mentais. Não
temos, assim parece, muita ideia, na condição de sociedade, de como
lidar com esse problema. Rotular essas pessoas como criminosas e
trancafiá-las não é algo parece estar trazendo bom resultado.
Ao mesmo tempo, muitas pessoas na Inglaterra lamentam o fato de
que nossa seleção de críquete raramente consegue alcançar resultados à
altura das expectativas. De tempos em tempos, tivemos sucesso em
outros esportes, mas (no momento em que escrevo) já faz um longo
tempo desde que o críquete inglês, que já foi o orgulho e a alegria do
país, saiu-se bem.
Muito bem, sugeriu o colunista, aqui está a resposta: coloquem esses
jovens perigosos e cheios de energia fora das ruas. Ponham todos eles,
custe o que custar, em algum tipo de centro de detenção. Mas façam
com que o regime deles seja simplesmente treinamento para atuar no
campo dos esportes. Treinamento físico compulsório, aprendendo todas
as habilidades esportivas, com todo o tempo necessário para a prática.
Antes do que se imagina, teremos uma nova geração de jogadores de
críquete, prontos para dominar o mundo desse esporte. Ele não
acrescentou, embora devesse, já que a Austrália é a maior inimiga da
Inglaterra quanto ao críquete, que existe certa propriedade na escolha
desse método. Afinal de contas, como os próprios australianos
frequentemente enfatizam, seus antepassados — criminosos deportados
— foram selecionados pelos melhores magistrados de Londres.
Piadas à parte, o ponto que a ilustração levanta é que não há
necessidade de eliminar toda a energia e toda a iniciativa que
atualmente são direcionadas ao crime; é preciso apenas canalizá-las em
uma boa direção. “Assim como vocês apresentaram seus membros e
órgãos como escravos da impureza, apresentem-nos a Deus como
escravos dos propósitos de sua aliança” (v. 19). Há um nítido desafio
para os cristãos de todas as gerações e idades aqui, sem contar aqueles
que abraçaram a fé quando já eram adultos. Pense nas formas como, em
sua vida anterior, você empregava muita energia em busca de coisas que
agora considera erradas. Você está empregando essa mesma energia,
imaginação e iniciativa no trabalho para o reino de Deus? Para
estender os propósitos de sua aliança no mundo?
Aqui, esse desafio é a aresta afiada do contraste entre os dois tipos
de “escravidão”. Paulo quer repelir qualquer sugestão de que, por
sermos cristãos e, assim, estarmos livres da escravidão do pecado, isso
nos daria “liberdade” para fazer tudo aquilo que nos vem à cabeça. Essa
é, mais uma vez, uma acusação que ele deve ter encontrado com
frequência, e não menosde judeus e de cristãos judeus que, ao ouvirem
que ele considerava os cristãos pessoas livres da lei, preocupavam-se,
naturalmente, com a possibilidade de deixarem de fora toda restrição
moral. É realmente interessante pensar em Paulo sofrendo essa
acusação quando, hoje em dia, ele é visto como um moralista rigoroso.
Paulo sabe muito bem que a liberdade que os cristãos desfrutam nada
tem a ver com isso — exatamente como a liberdade que você desfruta
quando passa no teste de direção e passa a ter “liberdade para dirigir”.
Isso não significa que, agora, você pode dirigir em alta velocidade, como
bem entender, em cidades ou vilarejos, ou ainda dirigir do lado errado
da rodovia, nos trilhos dos trens ou em meio às plantações. Com uma
nova liberdade, sempre vem uma nova estrutura. As estruturas
restringem determinado tipo de liberdade — a liberdade de se fazer
qualquer coisa que seja —, de modo a se incrementar outro tipo (pois, se
todos dirigissem para onde quer que desejassem, ninguém estaria livre
para dirigir em qualquer lugar que fosse).
Paulo expressa essa percepção de uma nova estrutura ao falar, de um
modo um tanto dramático, de uma nova “escravidão”. A liberdade não
existe em um vácuo moral; ela nos foi comprada por meio da morte de
nosso soberano, o próprio Jesus. Precisamente por sermos pessoas livres
e de modo a mantermos essa liberdade, devemos a ele nossa lealdade.
Não devemos pensar que os dois tipos de “escravidão” são da mesma
espécie, mas seria bom começar a ver ambos os mundos em termos de
obediência a um senhor. (É provável que a sentença entre parênteses,
no início do versículo 19, seja a forma de Paulo admitir que intitular o
chamado para uma nova vida de “uma forma de escravidão” realmente
soa muito confuso. No entanto, ele precisou disso para enfatizar o ponto
em questão.)
Assim, Paulo compara os dois tipos de “escravidão”. E, quando faz
isso, está sempre usando termos ligeiramente diferentes, de modo que,
se não tivermos o devido cuidado, a passagem pode parecer ser um
pouco confusa. No versículo 16, ele fala de sermos obedientes ou ao
pecado ou à própria “obediência” — é estranho pensar em ser obediente
à obediência, mas ele precisava disso para contrastar com “pecado”, e
isso serviu naquele momento. A obediência ao pecado conduz à morte,
como ele já afirmara tantas vezes; e a obediência à “obediência” conduz
à “justificação”, ao veredicto de “estarmos certos [justificados]” no juízo
final, conforme temos em 2:1-16.
As palavras usadas para o “veredicto”, “declaro certo”, “estar certo”,
são as nossas velhas conhecidas “justiça” e “justificação”, embora , por
serem termos tão complexas, (tanto no inglês [e no português]
contemporâneo como na esfera do debate teológico) me esforcei ao
máximo para evitá-las neste livro. Ela surge de novo nos versículos 18 e
19, em que as traduzi como “propósitos da aliança” e “justiça da
aliança”. É um termo, como você vê, que pode cobrir diferentes sentidos
ao ser traduzido. Sua ênfase básica está no bom propósito do criador em
trazer o mundo de volta do caos para sua apropriada ordem e o de trazer
os seres humanos à forma correta e à correta relação consigo mesmo.
Aqui, Paulo aponta que o propósito da nova vida, a razão pela qual é
necessário adotar novos padrões de comportamento, é que Deus está
pondo o mundo em ordem, e ele quer e necessita que seu povo recém-
nascido faça parte da obra, tanto em suas próprias vidas como no
serviço em favor de seu reino.
No centro dessa imagem, temos um vislumbre de como essa nova
escravidão funciona na prática. Não é uma questão de mandamentos
serem atirados sobre nós, de modo que tenhamos de obedecer a eles.
Uma mudança de coração já ocorreu (v. 17). Paulo já havia falado, bem
antes, que o problema com a humanidade adâmica situava-se no
coração humano (1:21,24). Agora, embora ainda não tenha explicado
isso aqui, ele compreende os cristãos como pessoas que foram
transformadas a partir de seu interior. Há uma disposição interior
básica para se conformar com “o padrão de ensino com o qual estamos
comprometidos”. Os cristãos primitivos desenvolveram determinadas
tradições básicas acerca do próprio evangelho (1Coríntios 15:3-8),
sobre eucaristia (1Coríntios 11:23-26), sobre comportamento
(1Tessalonicenses 4:1 e nossa atual passagem) e, provavelmente,
também acerca de muitos outros assuntos. Essas regras práticas
estabelecem uma estrutura de crença e comportamento, um código de
prática da família. Como pastor, Paulo, sem dúvida, observava com
frequência que, quando as pessoas se tornavam membros da família,
algo acontecia com elas em seu íntimo, fazendo com que quisessem
viver de acordo com aquela comunidade à qual haviam passado a
pertencer. Obviamente, era necessário haver ensino e esforço moral.
Entretanto, a vontade já estava lá, e Paulo agradecia a Deus por isso.
Seria muito bom considerar, por alguns instantes, o que Paulo diria
caso pudesse erguer os olhos, fazendo uma pausa enquanto escrevia esta
carta, e desse uma espiada na igreja do início deste século 21.
ROMANOS 6:20-23
AONDE LEVAM AS DUAS ESTRADAS
20Quando eram escravos do pecado, notem bem, vocês estavam livres quanto à
justiça da aliança. 21Que fruto vocês produziram a partir das coisas das quais agora
se envergonham? O destino dessas coisas é a morte. 22Mas agora, que foram
libertados do pecado e escravizados a Deus, vocês produzem frutos para a
santidade. Seu destino é a vida da era porvir. 23O salário pago pelo pecado, vejam
bem, é a morte; entretanto, o dom gratuito de Deus é a vida da era porvir, no
Messias, Jesus, nosso Senhor.
Quando nos mudamos de casa, precisamos saber quais estradas tomar e
para onde nos conduzem. Outro dia, eu estava fazendo compras de
Natal na cidade para a qual acabamos de nos mudar. Ao sair com o carro
de um estacionamento, avistei uma longa fileira de veículos fazendo o
retorno na rua principal. Ansioso para chegar em casa, descobri uma rua
lateral que parecia atravessar a cidade na direção que eu desejava
seguir. Então, entrei nela apenas para descobrir que conduzia a um beco
sem saída. Ah, mas havia uma pequena rua com uma saída no fim. Virei
na tal ruazinha. Tratava-se de um retorno que me trouxe de volta ao
ponto de partida.
Podia ter sido pior. Certa vez, tomei o que parecia ser uma
promissora estrada rural, apenas para acabar preso, quilômetros interior
adentro, em um riacho que rompera suas margens, fazendo sumir parte
da pista. Algumas vezes, já me senti tentado a ignorar os sinais de
“Perigo” quando estava dirigindo nas proximidades de áreas militares e
tomando o que, em outro contexto, seria a rota óbvia para contornar os
atoleiros. E é claro que alguém poderia imaginar situações ainda piores,
como, por exemplo, tentar fugir dos engarrafamentos do trânsito,
passando por uma via fechada por cones de sinalização, somente para
descobrir, mais à frente, que a ponte sobre a qual você está trafegando
não foi concluída e que, portanto, está prestes a cair no rio.
O ponto em questão é óbvio, mas, quando se trata de ética cristã,
costuma ser ignorado. As regras e orientações para a vida cristã não
existem simplesmente porque Deus gosta de comprimir as pessoas
segundo determinado padrão, seja bom ou não para elas, deixando-as
felizes ou não. As regras existem por serem as regras inerentes ao
caminho, e é muito importante a estrada que se toma. Uma das estradas
o levará ao fim, não apenas a um beco sem saída, mas a um verdadeiro
desastre. A outra estrada o conduzirá à vida, à vida em uma nova
dimensão, à vida em toda a sua plenitude.
Isso também costuma ser mal compreendido. Com frequência, as
pessoas supõem que a ameaça da morte final e a promessa da vida
suprema funcionam segundo o princípio da cenoura e da vara. De
acordo com esse modelo, Deus nos trata como se fôssemos burros
ignorantes, balançando cenouras bem na frente de nosso nariz (“Vida
eterna! Que tal isso! Agora, mexa-se!”), ou então, se parecermos
relutantes, batendo em nós com a vara (“Você se envergonhará disso!
Você morrerá!Não faça isso!”). Talvez pareça ser assim algumas vezes,
mas, caso aconteça, é provável que estejamos olhando para essa situação
de forma errada. A questão é bem diferente. Como já vimos no capítulo
1, se você decide viver de certa maneira, está escolhendo um
comportamento que é, em sua própria natureza, destrutivo tanto para
aqueles que o praticam como para aqueles cujas vidas são afetadas por
ele. Se (a título de exemplo óbvio) as pessoas se embebedarem com
alguma regularidade e saírem por aí quebrando tudo, estarão causando
danos a si mesmas e ao mundo à sua volta. Não é tanto o caso de alguns
padrões arbitrários declararem que esse tipo de comportamento é
errado e, portanto, merece punição. Esse comportamento já carrega em
si mesmo os sinais de seu destino. Ele tem sobre si o cheiro de morte. O
castigo final não é arbitrário, como mandar alguém para a prisão por
deixar de pagar uma multa. Assemelha-se muito mais ao que ocorre
quando alguém dirige de forma negligente junto a um precipício,
lançando a si próprio para a morte.
Ao contrário, quando as pessoas se comportam de acordo com o
padrão estabelecido no evangelho e no antigo ensino cristão,
encontram-se sinais de vida já em curso. A vida da era por vir não é
uma recompensa arbitrária, como alguém recebendo uma medalha por
resgatar uma criança que estava se afogando; é muito mais como a
recompensa que um pai recebe quando a criança que ele resgatou é sua
própria e amada filhinha.
Faça uma rápida pausa e examine a seguinte expressão: “a vida da
era por vir.” Já a encontramos antes, no final do capítulo 5. Em geral, é
traduzida como “vida eterna” e, claramente, sintetiza a visão de Paulo
sobre o destino final do povo de Deus. Entretanto, com frequência, é
mal compreendida. Muitas pessoas trazem para o Novo Testamento
uma visão preconcebida do destino final: “o céu.” Elas talvez se
imaginem sentadas sobre as nuvens, tocando harpas e, muito embora
talvez saibam que isso seja apenas uma ilustração, elas ainda pensam na
realidade em termos de uma existência fora do espaço, do tempo e da
matéria. Isso, porém, com certeza não é o retrato pintado pelo Novo
Testamento, e sem dúvida não é o conceito de Paulo a respeito do
destino final. Como um bom judeu do primeiro século — e sua teologia
cristã não alterou essa visão, apenas a aprofundou e a completou —, ele
cria na existência de duas eras: a “presente era” e a “era por vir”. A
presente era (veja, por exemplo, Gálatas 1:4) é um período no qual a
perversidade continua a ditar as regras no mundo de Deus. Na era por
vir, o governo de Deus finalmente triunfará. A conquista de Jesus, o
Messias, trouxe essa “era por vir” de maneira antecipada para dentro
da presente era. Os cristãos são instados a viver no presente à luz desse
futuro — esse futuro que veio encontrá-los em Jesus. Caso você queira
saber com que se parece a visão final do futuro de Paulo, pule para
Romanos 8:18-25. É para aquela visão da nova criação, e não para uma
expectativa qualquer de um “céu” descorporificado e atemporal, que o
comportamento genuinamente cristão nos leva.
O futuro, no entanto, permanece como um dom de Deus (v. 23).
Paulo é cuidadoso em manter esse equilíbrio. Quando você peca, ganha
um salário. E esse salário é a morte. No entanto, quando você vive
segundo o padrão divino de santidade, não ganha a vida da era por vir.
Ela permanece como um dom gratuito, muito superior a qualquer coisa
que poderíamos fazer por merecer. O julgamento final ocorrerá de
acordo com a vida que tivemos (2:1-16). Ou seja, ele se dará de acordo
com, no mesmo sentido que uma orquestra sinfônica tocando
Beethoven lança mão de todos os seus recursos, “de acordo com” as
incipientes tentativas de assoviar sua melodia.
Romanos 6 é um capítulo de apoio. Um capítulo ao qual a igreja
precisa desesperadamente dar ouvidos em nossos próprios dias. Ele não
nos dá instruções éticas específicas. Para isso, precisamos olhar outras
partes — tanto dessa carta como de outros escritos cristãos antigos. Ele
nos dá, sim, a estrutura para refletirmos a respeito da razão pela qual o
comportamento cristão é importante e como colocá-lo em prática. As
pessoas ainda pensam, seja dentro, seja fora das igrejas, que o
cristianismo trata-se simplesmente de um punhado de regras morais
restritivas, com algumas crenças e práticas ultrapassadas e estranhas.
Até mesmo algumas poucas linhas dos escritos de Paulo farão calar essa
insensatez, colocando-nos de volta na trilha do verdadeiro e necessário
sentido e prática da santidade do genuíno cristianismo.
ROMANOS 7:1-6
MORRENDO PARA A LEI
1Minha querida família: com certeza, vocês sabem — estou falando, afinal de contas,
para pessoas que conhecem a lei — que a lei tem autoridade sobre alguém enquanto
essa pessoa estiver viva. 2A lei mantém uma mulher casada unida a seu marido
enquanto ele vive. No entanto, se ele morrer, ela estará livre da lei com relação a
seu marido. 3Assim, portanto, ela será considerada adúltera caso saia com outro
homem enquanto seu marido ainda vive. Mas, se seu marido morrer, ela estará livre
da lei, de modo que não será tida como adúltera se sair com outro homem.
4De igual maneira, minha querida família, vocês também morreram para a lei
mediante o corpo do Messias, de modo que podem pertencer a outro — àquele que,
de fato, ressuscitou dentre os mortos — e, assim, frutificar para Deus. 5Pois, quando
estamos vivendo uma vida humana mortal, as paixões do pecado que eram
mediante a lei estavam em ação em nossos membros e órgãos, levando-nos a
produzir frutos para a morte. 6Agora, porém, fomos libertados da lei e morremos
para aquilo no qual fomos firmemente mantidos. O objetivo é que, agora, sejamos
escravos na nova vida do espírito, e não na antiga vida da letra.
Até aqui, fiz o meu melhor, neste livro e em outros semelhantes, para
usar ilustrações que ajudem meus leitores na compreensão do âmago
central da mensagem de cada trecho. Alguns revisores já questionaram
tanto a sabedoria dessa tentativa como minha habilidade em atingi-la,
mas eu prossigo nesse caminho. Quando chegamos a um trecho assim,
contudo, deparamos com um tipo diferente de problema. O próprio
Paulo faz o que eu venho procurando fazer e, à primeira vista, sua
ilustração (como algumas das minhas, sem dúvida) não funciona tão
bem quanto deveria.
A ilustração é de uma mulher casada, uma mulher unida a seu
marido pela lei — ou “a Lei”, poderíamos dizer, porque todo o capítulo
refere-se à lei de Moisés, e não a outra lei qualquer ou genérica. O ponto
que Paulo parece querer enfatizar é o de que, onde ocorre uma morte,
ela libera as pessoas de suas obrigações legais, como, por exemplo, uma
mulher casada que, após a morte do marido, não está mais presa à lei,
sob a obrigação de recusar parceiros alternativos. No entanto, no
segundo parágrafo, versículos 4 a 6, Paulo aplica isso aos cristãos e diz,
por um lado, que eles morreram e, por outro, que eles agora estão livres
para se casar de novo! O que podemos concluir com isso?
Para início de conversa, por que ele se refere à lei? Podemos supor
que, após ter escrito um capítulo sobre comportamento cristão, seria
natural para ele continuar falando da lei como fonte de regras éticas.
Afinal de contas, muitas igrejas ainda têm os Dez Mandamentos
escritos na parede. Quem sabe (podemos pensar) Paulo não está
caminhando nessa direção? Bem, é verdade que ele ainda considera
importantes os mandamentos. Ele mencionará isso em 13:8-10, embora,
ao agir assim, esteja fazendo mais do que simplesmente repetir os
mandamentos e insistir em sua obediência. No momento, porém, a
questão levantada é bem diferente. Aqui, a lei é parte do problema, e
não parte da solução.
Você pode supor, caso esteja acompanhando com atenção a
argumentação da carta, que ele está escrevendo este capítulo porque,
mais cedo ou mais tarde, teria de nos contar o que exatamente quis
dizer com todas aquelas referências indiretas “à lei” (assim como em
3:20; 3:27-31; 4:13-15; 5:13-14;5:20; 6:14-15). Ele nos deixou diversas
pistas de que a lei de Moisés, mesmo ele crendo que foi dada por Deus e
que dá testemunho do evangelho (3:21), desempenha papel negativo
nos propósitos de Deus como um todo (5:20), de modo que o cristão
não se encontra “sob a lei” (6:14-15). Por que não? De acordo com esse
ponto de vista, o capítulo 7 foi escrito para responder a essas questões
remanescentes. E também é verdade que Paulo finalmente aborda essas
questões de maneira mais completa. Entretanto, essa não é toda a
história.
Algumas pessoas leem Romanos 5—8 como uma mera descrição da
vida cristã. Isso as leva a supor que o retrato da luta moral apresentada
em 7:14-25 seria um panorama de como é tentar viver a vida cristã, a
meio caminho, por assim dizer, entre os mandamentos de apoio do
capítulo 6 e o alvo final estabelecido no capítulo 8. Isso atribui ao
capítulo um papel dentro da leitura dessa seção vista como um todo,
mas parece ignorar o fato de que o principal tema aqui não é a vida
cristã, mas a própria lei em si mesma — e também o fato de que Paulo
repete, vez após vez, que o cristão não se encontra “sob a lei”.
Penso que a principal razão para Paulo escrever Romanos 7 é sua
intenção de realizar duas coisas específicas. Ele quer explicar o porquê
de a lei ter sido dada e como, de forma estranha, de fato cumpriu o
propósito que Deus lhe conferiu, e também que agora, com um novo
sentido, ela é cumprida mediante a obra do Messias e do espírito (ele
aborda esse aspecto no capítulo 8), enquanto, ao mesmo tempo, explica,
contra qualquer tentativa de judeus ou cristãos judeus sugerirem ao
contrário, que a lei em si não pode conceder a vida que promete, pois
estava destinada a trabalhar do lado negativo da equação. Se isso soar
um tanto complicado (e é claro que soa), simplesmente explicaria por
que Romanos 7, que resume tudo em algo semelhante a um típico
poema judaico de lamentação, é, comprovadamente, de difícil
compreensão.
Este capítulo faz parte da estratégia maior de Paulo, ou seja,
explicar aos cristãos romanos, muitos dos quais claramente com origem
judaica (motivo pelo qual “conhecem a lei”, como assinalado no
versículo 1), a transição profunda realizada mediante o evangelho, da
família da aliança tal como definida pela lei para a família da aliança
definida pelo Messias e pelo espírito. Somente se eles — e nós! —
compreenderem esse ponto é que a igreja estará apta a compreender o
que Deus fez e o que agora significa compartilhar a fé, a esperança e a
vida cristã.
A chave para a presente passagem, que introduz a longa
argumentação sobre a lei, encontra-se em uma combinação de 5:20 e
6:6. Paulo continua pensando em termos dos dois tipos de humanidade
(Adão e o Messias) e compreendendo o cristão como alguém cujo
“velho homem” (6:6) foi crucificado com o Messias. Cada pessoa deve,
portanto, ser vista como um ser composto: como uma mulher casada e,
portanto (ao menos naquele universo), identificada com um marido. E
o papel da lei consiste em consolidar os laços existentes entre a pessoa
que está “em Adão” e o “velho homem”, ou “velho Adão”, com quem
está casado.
Isso explica o versículo 4, que se encontra no cerne desta passagem.
A frase “Vocês morreram para a lei” refere-se ao mesmo evento de 6:6,
passagem em que o “velho homem” foi crucificado com o Messias, de
modo que “nós” fôssemos resgatados da solidariedade do pecado. Paulo
está fazendo a espantosa e controversa declaração de que a lei, quando
foi dada a Israel, firmou uma união entre Israel e... não Deus, como seria
de se supor, mas Adão. Isso explica sua declaração, de outro modo
desconcertante, no versículo 5 e, muitas vezes, no restante do capítulo,
de que as paixões pecaminosas são “mediante a lei” (presumivelmente,
ele quis dizer que “são percebidas mediante a lei”, mas eu mantive a
tradução, refletindo seu grego um tanto abreviado).
A lei, portanto, aparece como parte do que é errado. Dada a Israel
por Deus, ela relembra continuamente Israel de que também está “em
Adão”. Ela não pode retirar Israel da confusão. Simplesmente informa a
Israel que ela também está envolvida nessa confusão. Na prática, o que
isso transparece é que formará a parte principal do capítulo.
Paulo, porém, também fornece, no versículo 6, um sinal antecipado
da resposta. “Nós” — ou seja, claro, aqueles que, mediante o batismo e a
fé, foram introduzidos na família definida pelo Messias crucificado e
ressurreto — morremos para a lei (ver Gálatas 2:19) e, assim, fomos
libertados dos laços com os quais ela nos unia à solidariedade do velho
Adão, forçando-nos, assim como uma mulher unida a seu marido, a
gerar seus filhos (que, nesse caso, significam a morte). Em vez disso,
fomos unidos ao Messias em sua nova vida ressurreta, de modo que
possamos gerar um novo tipo de fruto, o fruto para Deus. Esse é um dos
lugares em que Paulo desenvolve a ideia do Messias como o Noivo de
seu povo, que emerge de novo, por exemplo, em 2Coríntios 11:2-3 e
Efésios 5:25-27.
Ele nos deixa pistas também sobre o contraste antes mencionado, no
fim do capítulo 2. Viver segundo a antiga solidariedade adâmica e,
dentro disso, em Israel sob a lei, significa viver a velha vida sob a “letra”
da lei. Viver a nova vida em solidariedade ao Messias significa deixar
todos os aspectos da vida em Adão para trás e ser energizado de uma
nova maneira, pelo espírito de Deus. Paulo mencionou muito pouco o
espírito até agora (1:4; 2:29; e 5:5 foram as únicas ocorrências), mas, ao
fim de sua argumentação atual, ele estará pronto para fazer um dos
relatos mais importantes acerca da obra do espírito. Talvez a maior
razão para ter escrito Romanos 7 seja o fato de que, uma vez que Deus
realiza mediante o espírito “o que a lei não poderia fazer” (8:3), é vital
que percebamos exatamente o que a lei estava tentando fazer e por que
estava destinada a fracassar. O presente capítulo, embora muito difícil,
é essencial para que possamos compreender a profundidade do
problema humano e, a partir disso, a maravilhosa solução de Deus para
esse nosso problema.
ROMANOS 7:7-12
QUANDO A LEI CHEGOU: O SINAI APONTANDO PARA A QUEDA
7O que diremos, pois? Que a lei é pecado? Certamente que não. Mas eu não
conheceria o pecado se não fosse mediante a lei. Eu não conheceria a cobiça se a lei
não dissesse: “Não cobiçarás.” 8O pecado, porém, aproveitou a oportunidade do
mandamento e produziu toda a espécie de cobiça dentro em mim.
À parte da lei, o pecado está morto. 9Antes, eu vivia à parte da lei, mas, quando veio
o mandamento, apareceu o pecado 10e eu morri. No meu caso, o mandamento que
apontava para a vida acabou por trazer a morte. 11Pois o pecado aproveitou a
oportunidade mediante o mandamento. Ele me enganou e, através dele, matou-me.
12Portanto, a lei é santa, e o mandamento é santo, justo e bom.
A casa estava tranquila quando os trabalhadores chegaram e, quando
alguém se aproximou da porta, presumiram ser o próprio proprietário.
Eles estavam lá para instalar um novo sistema de alarme nas portas e
janelas. Nos últimos tempos, o proprietário estava ansioso quanto à
possibilidade de haver assaltantes, logo após uma grande onda de
arrombamentos nas redondezas, e chamara a empresa para substituir o
sistema atual.
No entanto, o proprietário estava doente no dia da instalação e
pediu a um vizinho que atendesse a porta enquanto estivesse nessas
condições. O vizinho acompanhou os técnicos ao redor da casa e
aprendeu, de forma precisa, como o sistema de alarmes funcionava. O
que lhe deu uma ideia... e, é claro, colocou-o em uma posição
privilegiada para ele mesmo assaltar a casa. Não havia nada de errado
com o sistema de alarme. Na realidade, era excelente. Entretanto, ele
pôs essa ideia na cabeça do vizinho e o capacitou a levá-la a cabo.
Esse é outro exemplo que funciona bem até certo ponto, porém não
por completo. A figura do vizinho nessa história é, na realidade, uma
composição do “pecado” e do “eu” em Romanos 7. Entretanto,a figura
atinge o cerne da questão no que diz respeito ao argumento de Paulo ao
longo do capítulo: a lei, em si, é a lei de Deus, e ela é santa, justa e boa —
assim como o sistema de alarme é algo excelente e está em perfeito
funcionamento. No entanto, caso se introduza algo errado em um ponto
diferente — caso exista um vizinho que não seja confiável ajudando a
instalá-la —, o sistema funcionará contra você, e não a seu favor.
Antes de chegarmos a esse ponto, porém, precisamos dizer algo
sobre esse “eu” que tantas vezes aparece em Romanos 7. Muitos leitores
imaginam que Paulo esteja simplesmente nos contando parte de sua
autobiografia, de modo que a questão seria apenas: Que parte? Será que
ele estaria descrevendo o momento antes de se tornar cristão? (Alguns,
inclusive, já sugeriram, por exemplo, que esses versículos nos relatam
como se sentia quando atingiu a puberdade ao mesmo tempo que se
tornava um “filho do mandamento”, ou seja, passando por seu bar
mitzvá, a cerimônia judaica de transição para a idade adulta.) Ou ele
estaria descrevendo como é a vida agora, já na condição de cristão? Ou
o capítulo muda de sua vida pré-cristã para sua vida cristã? Ou o que
mais seria?
Essas abordagens estão totalmente equivocadas em seu ponto de
vista. No mundo antigo, era comum as pessoas escreverem na primeira
pessoa do singular (“Eu”) quando buscavam exprimir algo em termos
gerais. Algumas vezes, utilizamos esse recurso na primeira pessoa do
plural (“nós”). Outras vezes, de forma ligeiramente pretensiosa, utiliza-
se o pronome impessoal como em: “algumas vezes, tem-se a sensação de
que (...)”. O próprio Paulo emprega esse recurso em Gálatas 2:15-21,
tanto com “eu” como com “nós”. Existem diversas boas razões para
supormos que é isso que ele está fazendo aqui, e não transcrevendo suas
próprias lutas com a lei. Ele não está se referindo à raça humana de um
modo geral. Está falando de Israel em particular — Israel, que recebeu a
lei como um generoso dom de Deus, mas descobriu haver algo à
espreita, assim como o vizinho não confiável da história, querendo tirar
vantagem desse novo dom.
Essa “alguma coisa” era o pecado ou talvez devamos dizer o
“Pecado”. Israel também estava “em Adão”. No centro do problema da
teologia bíblica, está o fato de que, quando Deus decidiu redimir o
mundo, chamou como seu agente uma família que, em si mesma (como
todas as demais), demandava redenção. De uma forma ou de outra, já
deparamos com esse problema diversas vezes nesta carta. Agora, nós o
enfrentamos face a face.
Isso sugere outro motivo para Paulo querer dizer “Eu” em vez de
“Israel” ou “os judeus”. Afinal de contas, essa também era sua própria
história. Certamente, ele não iria desejar contá-la de uma maneira que
implicasse seu não envolvimento na mesma história, de modo que ele já
não sofresse mais com isso. Na verdade, há uma conexão direta a partir
desse “Eu” na presente passagem, perplexo e aflito com os efeitos do
pecado no povo de Deus, e o próprio Paulo, nos capítulos de 9 a 11, em
lágrimas sobre os contínuos efeitos do pecado no povo escolhido, seus
próprios conterrâneos segundo a carne. Essas linhas de conexão entre as
diferentes seções são importantes se quisermos compreender a carta
como um todo, e não como uma mera coleção de pequenos ensaios
reunidos. Voltaremos a isso mais adiante.
A presente passagem faz duas coisas ao mesmo tempo. Quando
observo o lado de fora pela janela de meu escritório, posso ver não só o
que se encontra no jardim lá fora, como também um reflexo da lâmpada
que se encontra no peitoril da janela. Se eu tirasse uma fotografia
daquela parte da janela, ela registraria ambas as coisas ao mesmo tempo,
como se fossem partes da mesma vista. De igual modo, Paulo descreve o
momento em que a lei chegou a Israel, de modo a refletir sobre o
momento em que Adão recebeu o mandamento no jardim (veja, mais
uma vez, 5:13-14 e 5:20). O ponto que ele quer destacar é que, quando
Deus deu a Torá, Israel copiou Adão, ao quebrá-la. Isso implica que “o
pecado” esteve latente em Israel durante todo o tempo, de modo que a
santa e boa lei estava destinada a ser quebrada por Israel. A conclusão a
que Paulo chega a partir disso, talvez para nossa surpresa, embora
totalmente alinhada com seus próprios objetivos, é que “a lei é santa, e o
mandamento é santo, justo e bom” (v. 12). Este capítulo serve
basicamente para exonerar a lei de culpabilidade no desastre de Israel,
enquanto demonstra sua incapacidade de conceder o que lhes fora
prometido.
O que a lei prometeu? De acordo com o versículo 10, “vida”. Vez
após outra, mas, de forma específica, em passagens como Levítico 18:5 e
Deuteronômio 30:15-20, a Torá oferecia a Israel a promessa de que
aqueles que a observassem com fidelidade teriam vida, enquanto
aqueles que a quebrassem sofreriam a morte. Já no Antigo Testamento,
surge um paralelo entre Israel e Adão e Eva, colocados no jardim e
tendo recebido o mandamento ao lado de uma advertência: quebrar isso
significa morrer. A “morte” em questão envolvia serem banidos do
jardim, exatamente como a punição de Israel resultou em exílio. Isso,
porém, não foi um erro do mandamento dado no jardim, ou da lei dada a
Israel. Foi o resultado do pecado.
Em resumo, o pecado aproveitou a oportunidade em ambas as
ocasiões. Assim como o vizinho citado, que poderia não ter pensado em
assaltar caso não tivesse testemunhado a instalação do novo sistema de
alarme, Israel descobriu o poder da cobiça ao ser advertido contra ela
(v. 7 e 8). Houve um tempo em que a lei ainda não havia chegado
(aquele estranho tempo entre Adão e Moisés, tempo referido por Paulo
em 5:13-14). Uma vez, contudo, que a lei foi dada no monte Sinai, a
pecaminosidade de Israel foi exibida pelo que realmente era. Por mais
que, por um lado, a Torá prometa vida, a presença e o poder do pecado
significam que tudo o que ela pode entregar é morte (v. 8-11).
Tudo isso levanta uma questão para nós, à qual Paulo vai responder,
ao menos em parte, mais adiante. O que exatamente é essa coisa
chamada “pecado”? Se esse é o maior problema por trás de todos os
nossos outros problemas, o que pode ser feito para o derrotarmos? Mais
especificamente, o que Deus já fez a esse respeito? No momento, tudo o
que podemos afirmar é que “o pecado” parece ser uma força que, em
essência, opõe-se à criação de Deus. Ele está comprometido em estragar
o mundo feito por Deus, os seres humanos que refletem sua imagem e o
povo escolhido chamado para ser agente da redenção.
Boa parte dessa discussão, por mais fascinante que seja em seus
próprios termos e em relação aos argumentos de Paulo, pode parecer
um tanto remota para muitos cristãos modernos. Muitos de nós não
costumam refletir, com alguma frequência, sobre a situação de Israel
sob a lei — embora talvez devêssemos fazer isso. Entretanto, essa
passagem apresenta uma relevância para nós que não devemos deixar
escapar. Quando nós também enfrentamos o pecado, seja em nossa
própria vida, seja no mundo como um todo, não devemos subestimá-lo.
O mal é real e poderoso. Ele se opõe a Deus, a seu mundo, às suas
criaturas humanas, e não menos àqueles que foram chamados para
seguir seu filho. Não devemos brincar com ele. Ele é enganador. E é
mortal.
ROMANOS 7:13-20
OLHANDO MAIS UMA VEZ A VIDA SOB A LEI
13Então, foi essa boa coisa que me trouxe a morte? Certa-mente que não! Ao
contrário, foi o pecado, de modo que ele pudesse aparecer como pecado, operando
mediante a boa coisa e gerando a morte em mim. Isso ocorreu de modo que o
pecado se tornasse realmente bastante pecaminoso, mediante o mandamento.
14Sabemos, como você pode ver, que a lei é espiritual. Eu, porém, sou feito de
carne, vendido como escravo sob a autoridade do pecado. 15Não entendo o que
faço. Não faço o que quero, perceba, mas faço o que odeio. 16De modo que, se faço o
que não quero fazer, estou concordando em que a lei é boa. 17Agora, porém, não sou
mais eu quem faço. É o pecado que habita em mim. 18Eu sei, veja bem, que em mim
não habita nada de bom, ou seja, em minhacarne humana. Pois, posso desejar o que
é bom, mas não posso realizá-lo. 19Pois não pratico o bem que desejo, mas acabo
fazendo o mal que não quero fazer. 20Portanto, se faço o que não quero, não sou
mais eu quem o faz, mas o pecado que vive em mim.
Tente ler essa passagem em voz alta, rapidamente. A não ser que tenha
uma língua para uma leitura muito suave, posso garantir que, em algum
ponto, você vai tropeçar. Lembro-me de terem dado isso a um rapaz
membro do coro para ser lido em uma igreja, na realidade em uma
cantata de Natal no período do Advento. Pobre jovem. Deviam existir
leis de proteção infantil contra esse tipo de coisa.
Não há como negar que essa é uma passagem bem complicada. Ela
vai e volta de tal maneira que, à primeira vista, parece bastante
assustadora. Alguns a elevaram à posição de um profundo mergulho na
condição humana. Outros a deixaram de lado como algo confuso e
incoerente. Meu ponto de vista pessoal é que não se trata de nada disso.
Não se destina a ser uma descrição exata da experiência real de Paulo
ou de quem quer que seja, embora encontre eco em muitos lugares,
tanto na experiência de vida humana como na literatura antiga e
moderna. Essa não é a questão. Paulo está tentando, e não pela primeira
vez, fazer duas coisas ao mesmo tempo.
Após ter descrito, na passagem anterior, o que ocorreu quando
Israel recebeu a Torá (significando que Israel copiou e recapitulou o
pecado de Adão, demonstrando que Israel era, de fato, pecaminoso),
Paulo agora muda para o tempo presente, a fim de descrever a situação
concreta (em oposição à experiência no nível dos sentimentos), de
Israel vivendo sob a lei. O que acontece quando Israel, após receber a
lei, faz seu melhor para viver com base nela?
Algumas pessoas já viram isso como um indício de Israel, o “judeu”,
tentando ganhar a justificação ou a salvação pelas obras de justiça, e de
ganhar o favor de Deus mediante o cumprimento da lei. Eles
procuraram sugerir que Paulo está demonstrando, na presente
passagem, como essa tentativa foi fútil. Essa também, no entanto, não é
a questão. Paulo exonera não apenas a lei, mas também, de modo
interessante, o “Eu”: não sou mais “eu” que o faço, afirma ele (v. 17 e
20), porém o pecado que habita em mim. Não apenas a lei, mas o
próprio Israel parece estar preso a um propósito maior, um propósito a
serviço do qual, naquele momento, eles parecem estar presos em uma
espiral negativa. Quanto mais Israel faz o que é certo, o que significa
abraçar a lei santa, justa e boa de Deus (a “coisa boa” do v. 13 referindo-
se, mais uma vez, ao v. 12, onde a lei é descrita desse modo), mais a lei
declara: você me quebrou.
Essa é a primeira coisa que Paulo está fazendo: dizer que, com efeito,
Israel estava certo ao querer abraçar a Torá e fazer dela um modo de
vida. Mas, enquanto a lei é espiritual, Israel, o “Eu” na passagem, é feito
de carne e escravizado ao pecado (v. 14). Israel pertence, em outras
palavras, ao lado de “Adão” nessa equação. A lei não capacita Israel a
sair do problema; simplesmente o intensifica. Até aí, tudo bem. Estamos
aqui exatamente na mesma base que nos encontrávamos em Romanos
2:17-24. Na realidade, para aqueles com uma percepção aguçada em
relação à estrutura sinfônica da carta, Romanos 7 é uma versão mais
longa de 2:17-24, enquanto, ao menos de uma perspectiva, Romanos 8 é
uma versão bastante expandida de 2:28-29 — o que explica por que
Paulo precisa fazer, em Romanos 9, as mesmas perguntas que fez no
início do capítulo 3.
A questão levantada em 2:17-24, para recordarmos, era que Israel,
embora reivindicasse estar se saindo melhor diante de Deus do que o
restante do mundo, mais ainda por possuir a lei, estava reduzido ao
mesmo estado do restante do mundo (1:18―2:16), acusado, diante de
Deus, de pecado. Agora, começamos a ver o segundo ponto que Paulo
está procurando estabelecer — ponto bastante sutil mas poderoso para a
audiência que ele tem em mente. Ele descreveu o problema de Israel sob
a lei de modo que se parecesse exatamente com o problema que todo
moralista pagão confuso já observara, a começar por Aristóteles e daí
em diante. Havia uma longa tradição na filosofia e na poesia greco-
romana segundo a qual as pessoas reclamavam e se empenhavam
mentalmente, procurando descobrir qual era a coisa certa a ser feita.
Porém, por uma razão ou por outra, não conseguiam fazer o que era
certo. Por outro lado, conseguiam perceber que determinado curso de
ação era errado, mas, ainda assim, seguiam em frente e colocavam em
prática de qualquer forma. Paulo passara anos nos salões de debates do
antigo mundo pagão. Ele já escutara nas ruas as pessoas citando trechos
de poesias e de filosofia popular. Agora, como um de seus mais
arrasadores e inteligentes trechos da Escritura, tão inteligente que
passa direto por uma porção de leitores sem que, até os nossos dias, o
compreendam, ele oferece uma análise da condição de Israel sob a lei e
culmina dizendo: então, esse é o nível alcançado pelo povo escolhido de
Deus mediante sua posse da lei — o mesmo nível que os confusos
moralistas pagãos. Se havia alguma coisa capaz de demonstrar o
problema enfrentado por Israel, era o fato de que, independentemente
de quanto o povo de Deus se esforçasse em obedecer à sua lei, eles
terminavam como o restante do mundo: em um estado de absoluta
incapacidade moral.
O próprio Paulo acabaria escrevendo uma conclusão para seu
argumento na parte final do capítulo. No momento, entretanto,
precisamos prestar atenção ao ponto que ele atingiu. Ele eximiu a lei de
culpa na catástrofe que tomara conta de Israel. Ele eximiu até mesmo o
“Eu”. Não havia nada de errado em ser Israel, nada de errado em querer
obedecer à lei (pense nos Salmos 19 e 119, com seu quase místico anseio
e amor pela lei). O verdadeiro problema era o pecado.
Paulo já indicou, em uma pequena e estranha passagem no versículo
13, o que acontecerá ao pecado. O responsável por “me” trazer a morte,
diz ele, foi o pecado, “de modo que aparecesse como pecado” e “de modo
que o pecado se mostrasse realmente muito pecaminoso”. Esse repetido
“de modo que” é, em si mesmo, um tanto confuso. Por que Deus (algo
que está sempre implícito na frase “de modo que” em Paulo) haveria de
querer que o pecado crescesse até sua plenitude?
Acrescente-se a essa confusão a frase similar de 5:20; a lei veio
juntamente, de modo que abunde a transgressão. Além disso, em
Gálatas 3:22, a Escritura (ou seja, a lei) encerrou tudo sob o pecado. O
que Deus planejava ao dar a lei, sabendo que não apenas ela daria a
chance ao pecado de crescer até sua plenitude, como também de um
modo que isso pudesse acontecer?
Encontraremos a resposta em 8:3, porém precisamos antecipar esse
momento se quisermos ver a razão mais profunda e uma das mais
duradouras e surpreendentes relevâncias de todas as gerações de
cristãos, do motivo para Paulo ter escrito este capítulo da forma como o
fez. Deus queria que o pecado atingisse toda a sua plenitude, de modo a,
somente então, tratar dele, condená-lo e puni-lo de uma vez por todas.
Onde, porém, o pecado deveria atingir toda a sua plenitude?
Paradoxalmente, em Israel, o próprio povo que Deus chamara para ser a
luz do mundo. Por quê? Para que, na pessoa do representante de Israel,
o Messias, o pecado fosse levado a um só ponto e condenado de uma
vez por todas. O que, à primeira vista, parece um torturante e
incoerente relato de incapacidade moral pessoal prepara o caminho
para uma declaração a respeito do que foi realizado na cruz, o feito mais
poderoso sobre o qual Paulo já possa ter escrito.
ROMANOS 7:21-25
A “LEI” DUPLA E O “EU” MISERÁVEL
21É isto, portanto, que descubro sobre a lei: quando quero fazer o que é certo, o mal
está bem junto a mim. 22Eu me deleito na lei de Deus, entenda bem, no mais íntimo
do meu ser. 23No entanto, vejo outra “lei” em meus membros e órgãos, travando
uma batalha contra a lei da minha mente e fazendo de mim um prisioneiro da lei do
pecado que se encontra em meus membros e órgãos.
24Homem miserável que eu sou!para os protestantes. Desde a Reforma, no século 16, muitas igrejas
passaram a ver Paulo como seu principal guia e a carta aos Romanos
como o livro supremo no qual ele estabelece suas doutrinas básicas.
Uma vez que parte de minha própria formação pessoal está firmemente
enraizada nessa tradição — o que me motivou a passar a estudar
intensamente essa carta (por minha própria conta) há trinta anos —,
compreendo pessoalmente a força e a importância dessa tradição.
Preciso relatar, porém, que ela conseguiu apenas colonizar algumas
partes do magnífico planeta denominado Romanos. Mapeou e discutiu
muitas de suas crateras, analisou muitas substâncias nela encontradas e
construiu estradas bem pavimentadas em parte da superfície do planeta.
Contudo, existem partes que permanecem como um mistério — e não
menos importantes são as partes a respeito da reunião de judeus e
gentios, assunto que Paulo retoma reiteradas vezes em toda a carta. Já é
hora de uma nova sondagem, de novos mapeamentos, de se abrirem
trilhas por territórios ainda não explorados. Continuamos necessitando
dos antigos mapas e estradas, é claro. Não vamos desperdiçar nada do
que nos acrescentaram. Na verdade, descobriremos que é possível obter
mais deles observando-os na perspectiva do quadro maior, na
perspectiva mais ampla do próprio Paulo, com relação a Deus, a Jesus,
ao mundo e a nós mesmos.
A fim de compreendermos os primeiros sete versículos dessa carta,
vamos continuar com a figura da viagem espacial; no entanto, agora
passaremos a ver Romanos não mais como um planeta, mas como um
foguete — projetado para nos levar a uma distância bem grande e
equipado com toda a espécie de coisas que nos serão úteis enquanto
empreendemos nossa viagem e também quando chegarmos a nosso
longínquo destino final. Um foguete desse tipo necessita de uma coisa
específica antes mesmo de poder ser acionado: uma plataforma de
lançamento de primeira linha, sólida e muito bem planejada. Não é
possível simplesmente instalar o foguete em um campo aberto e esperar
que decole com sucesso. Esse trecho inicial da carta é a plataforma de
lançamento, construída de forma cuidadosa e deliberada para essa carta
em particular. Portanto, vale a pena examinar cada parte bem de perto.
Como na maioria das cartas escritas no mundo clássico, Paulo inicia
dizendo quem ele é e para quem a carta se destina. Porém, como ocorre
em algumas de suas outras cartas, ele expande essa fórmula, quase
ultrapassando seus limites, ao acrescentar cada vez mais informações de
ambos os lados. Sua saudação inicial poderia ser resumida a partir dos
versículos de 1 e 7. Paulo, servo do Rei Jesus, a todos em Roma que
amam a Deus; graça a vocês e paz. Por que ele haveria de expandir essa
simples saudação, transformando-a na passagem que temos agora?
Ele deseja concentrar-se, de forma específica, nas boas-novas ou,
como muitas versões trazem, no “evangelho”. A palavra “evangelho”
não aparece muitas vezes na carta, porém está na base de tudo o que
Paulo declara. Aqui, ele define o que esse “evangelho” realmente é, em
parte porque isso define quem o próprio Paulo é (ele foi “separado” para
o trabalho específico de anunciar esse evangelho) e, em parte, porque o
evangelho em si gera um mapa com o qual é possível ver o mundo
inteiro e descobrir a qual lugar se pertence. É isso que os versículos 5 e
6 fazem: o evangelho reivindica o mundo inteiro para o Rei Jesus, e isso
inclui os cristãos em Roma.
Mas não é um tanto esquisito colocar as coisas dessa maneira? Não
seria um tanto ousado, talvez até mesmo por demais arriscado? Imagine
só alguém escrever assim a Roma de todos os lugares, a maior cidade do
mundo da época, lar do homem mais poderoso da face da terra, o César,
cujos títulos oficiais incluía “filho de deus”, cujo nascimento foi
celebrado como sendo “boas-novas”, e que reivindicava submissão e
lealdade para com o maior império que o mundo já vira! Entretanto,
Paulo sabia exatamente o que estava fazendo. Jesus é o verdadeiro Rei, o
Senhor por direito de todo o mundo, e era vital que os cristãos na
própria Roma soubessem disso e vivessem com base nisso.
Na realidade, o que Paulo afirma sobre Jesus nesse trecho, em
especial nos versículos 3 e 4, parece quase designado a fazer valer o
direito que põe o de César à sombra. Jesus é o verdadeiro “filho de
Deus”. Ele procede de uma família real muito mais antiga do que
qualquer coisa que Roma pudesse reivindicar: a de Davi, cerca de mil
anos antes. Sua ressurreição, que Paulo entende não como um milagre
estranho ou bizarro, mas como o princípio da “ressurreição dos mortos”
— pela qual a maioria dos judeus ansiava —, é o sinal do poder que
supera o dos tiranos e prepotentes de todo o mundo. A morte é sua
arma final e ele a destruiu.
Paulo, todavia, não está escrevendo isso apenas com um olho em
César. Ele está extraindo das profundas riquezas das profecias e dos
salmos de Israel, como deixa implícito no versículo 2. Circulavam
muitas ideias diferentes no judaísmo do primeiro século a respeito de
um rei que viria para governar sobre Israel e para resgatar a nação da
opressão estrangeira (o que, na época de Paulo, significava, acima de
tudo, Roma). Paulo, guiado pelo que conhecia de Jesus e, em especial,
por sua crucificação e ressurreição, extrai um fio em particular dessa
meada: um Rei vindouro seria o filho de Deus (2Samuel 7:14, Salmos
2:7 e em várias outras partes). Estas são as “boas-novas”: isso já
aconteceu! Deus já fez isso! O Rei já veio!
Portanto, de que forma o Rei reivindica o mundo como sendo seu?
Enviando embaixadores por todo o mundo com a mensagem das boas-
novas. Esses “embaixadores” são chamados “apóstolos”, o que
simplesmente quer dizer “enviados”. Esse é o ponto que Paulo suscita
ao se referir a seu próprio trabalho nos versículos 1 e 5.
As “boas-novas” não são, em primeiro lugar e acima de tudo, a
respeito de alguma coisa que pode acontecer conosco. O que acontece
conosco mediante o “evangelho” é, de fato, algo dramático e
emocionante: as boas-novas de Deus vão alcançar-nos, transformando
nossas vidas e esperanças de maneira ímpar. Entretanto, as boas-novas
que Paulo anuncia são, antes de tudo, boas-novas sobre algo que já
aconteceu, fatos segundo os quais o mundo presente já se transformou
em um lugar diferente. São a respeito do que Deus já realizou em Jesus,
o Messias, o verdadeiro Rei de Israel, o verdadeiro Senhor do mundo.
Isso quer dizer que os versículos 6 e 7, embora inicialmente se
dirijam ao povo de uma única e antiga cidade, abrem-se para também
nos incluir. Nós também somos chamados à “obediência pela fé” (v. 5).
O evangelho não é como a propaganda de um produto que vamos
querer ou não comprar, dependendo de como vamos nos sentir em
determinado momento. Está mais para uma ordem que vem de uma
autoridade à qual seríamos tolos em resistir. Os mensageiros de César
não foram, por todo o mundo, dizendo: “César é o senhor, portanto, se
vocês sentirem que precisam de uma experiência do tipo ‘um império
romano’, devem submeter-se a ele.” O desafio do evangelho de Paulo
consiste em que alguém bem diferente de César, exercendo um tipo de
poder muito diferente, é o verdadeiro Senhor do mundo. Precisaremos
da carta toda, agora que ela já deu verdadeiramente a partida e decolou
muito bem, para descobrir o que isso significa na prática.
ROMANOS 1:8-13
PAULO ANSEIA VER OS CRISTÃOS ROMANOS
8Permitam-me dizer em primeiro lugar, que agradeço a Deus por todos vocês, por
meio de Jesus, o Rei, porque o mundo inteiro ouviu a respeito das boas-novas de
sua fé. 9Deus é minha testemunha — o Deus que eu adoro em meu espírito, nas
boas-novas de seu filho — de que nunca deixo de lembrar de vocês 10em minhas
orações. Peço a Deus, vez após outra, que, de alguma forma, enfim eu possa,
segundo seus bons propósitos, ir até vocês. 11Anseio por ver vocês! Quero
compartilhar com vocês alguma bênção espiritual a fim de fortalecê-los; 12ou seja,
quero encorajá-los e ser encorajado por vocês, na fé que compartilhamos.
13Realmente quero que vocêsQuem me livrará do corpo dessa morte? 25Graças
a Deus, mediante Jesus, nosso Rei e Senhor! De maneira que, deixado por minha
própria conta, sou escravo da lei de Deus com a minha mente, mas da lei do pecado
com a minha carne humana.
Quando se faz uma conta matemática complicada, no fim traça-se uma
linha na página na qual se apresenta o resultado, ou, se você prefere, na
qual se mostram as “descobertas”. O mesmo acontece após uma extensa
revisão judicial de alguma situação complexa. O juiz, então, faz um
relatório que termina em uma síntese do veredicto ou das
“descobertas”.
É exatamente isso que Paulo faz nesses últimos versículos do
capítulo. “É isto o que descubro sobre a lei”: ele emprega a mesma
linguagem da qual lançaria mão na matemática ou nas questões legais.
É por esse motivo, apesar da ampla tradição e dos comentários, que
creio ser praticamente impossível traduzir “lei” no versículo 21 como se
fosse um “princípio” ou “uma lei”, no sentido de verdade genérica. Toda
a argumentação é, de modo bem específico, acerca da lei, a lei de Deus, a
lei de Moisés. A palavra “lei”, aqui, é precedida do artigo definido (“a”).
Somente se estivermos determinados a compreender mal a passagem,
decidindo forçar Paulo a fazer uma declaração sumária sobre outra
coisa qualquer que não seja o assunto do restante do capítulo,
poderemos ler essa passagem de outra forma.
Mas o que ele “descobre” sobre a lei? Ele “descobre” que a lei se
dividiu em duas — e que isso causa grande tensão no interior do “eu” a
respeito de quem vem falando, o Israel segundo a carne, o Israel
vivendo sob a lei.
Ele aborda o segundo ponto em primeiro lugar: quero fazer o que é
certo, mas o mal está bem junto de mim. Aqui, Paulo reverbera a
linguagem empregada com relação a Caim em Gênesis 4:7, e é possível
que esteja refletindo sobre o fato de que, assim como Israel repetiu o
pecado de Adão em 7:7-12, a incapacidade moral revelada em 7:14-20 se
assemelha bastante à forma tradicional com que os judeus retratam
Caim. Seja esse ou não o caso, a questão, aqui e no versículo 22, é que o
“eu” está muito certo em se deleitar na lei de Deus. Imagine Paulo,
ainda jovem, orando o Salmo 19 ou o Salmo 119, estudando a Torá em
espírito de oração dia e noite, desejando sentir-se envolvido por ela
como se fora um manto, fazendo dela seu estilo de vida, sua própria
respiração. Não só não há nada de errado com isso, como também é
exatamente isso que Israel estava destinado a fazer.
No entanto, quanto mais você abraça a lei, se ainda está “em Adão”,
mais a lei estará pronta a dizer: “Mas você é um pecador!” Pior ainda: a
lei não só o acusará, como também vai tentá-lo, como já vimos nos
versículos 8 e 10. É como se a lei tivesse desenvolvido uma obscura
cópia de si mesma, uma identidade negativa que parece estar lutando ao
lado do pecado contra tudo aquilo que o “eu” anseia fazer. Isso é algo
insólito de se dizer sobre a lei de Deus, mas se encaixa à perfeição em
tudo que Paulo sugere ao longo da carta até aqui.
Como podemos sustentar um paradoxo dessa natureza? Isso não
está claro — exatamente como muitos paradoxos não são claros, como,
por exemplo, a luz, que pode ser analisada de modo satisfatório em
termos de ondas ou em termos de partículas, mas não pode ser analisada
como ambos os critérios ao mesmo tempo. Talvez as coisas sempre se
pareçam assim quando se chega perto do centro de um mistério. Com
certeza, não devemos facilitar a vida para Paulo ou para nós mesmos,
supondo que “lei” aqui signifique outra coisa que não a lei de Deus, a lei
dada a Israel. Se esse não fosse o caso, o problema não seria nem de
longe tão grave.
O resultado da análise é que o “eu” se encontra na situação de um
prisioneiro de guerra (v. 23). Uma batalha está sendo travada. A mente
do fiel israelita (de modo interessante, à vista de 1:28) assumiu um
compromisso do lado de quem quer cumprir a lei de Deus, mas o pecado
luta de maneira poderosa do outro lado, por meio da humanidade
adâmica que Israel compartilha com todos os outros. Parece que Israel
foi chamado a suportar a enorme tensão entre ser chamado para ser a
luz do mundo e se descobrir, assim como o mundo inteiro, mergulhado
em pecado. Essa é a tensão na qual, em um estágio posterior de sua
argumentação, Paulo se encontra em Romanos 9. E é por esse motivo
que a perspectiva de Paulo sobre Jesus é tão crucial, e a resposta à
pergunta “Quem me resgatará?” (v. 24) é que Deus o fará, mediante
Jesus, o Messias, nosso Senhor. O Messias resume em si mesmo tanto
Israel segundo a carne como o Deus que virá em seu resgate. Esse é o
ponto levantado em 8:3-4 e também em 9:5.
Neste ponto, algumas pessoas podem estar se perguntando, quase
com raiva: por que precisamos saber disso tudo? Qual é a importância
de Paulo escrever com tamanha profundidade sobre os problemas de
Israel sob a lei? Vivemos no século 21, não no primeiro. A maioria de
nós na igreja nunca foi composta por judeus e tem pouco ou nenhum
contato com aqueles que o são. Com certeza (dirão essas pessoas), uma
passagem tão central quanto essa em uma carta de tamanha
importância deve falar de algo mais relevante!
Essa é uma boa questão. De fato, é possível expor uma passagem da
Escritura de tal maneira que se torne tremendamente irrelevante para
os leitores cristãos de nossos dias, e os estudiosos devem estar sempre
atentos a esse perigo. No entanto, sustento, com base em um cuidadoso
estudo feito ao longo de um extenso período, que esse não só é o modo
correto de ler essa passagem, como também que é nesse exato sentido
que podemos preservar sua poderosa relevância para os leitores cristãos
de todas as gerações e culturas. Paulo deixa bastante claro que ser
cristão significa ser um filho de Abraão (Romanos 4; Gálatas 3). Ele se
dirige a cristãos ex-pagãos falando a respeito de “nossos antepassados”
quando se refere ao povo de Israel que saiu do Egito (1Coríntios 10:1).
Se os cristãos modernos se esquecerem de que são parte dessa família
maior, que se estende pelo menos a dois mil anos antes de Jesus, estarão
cortando a si próprios da raiz da árvore — a raiz da qual, como novos
ramos, afirmam receber vida (ver 11:15-24). Portanto, é vital sabermos
em que sentido existe uma continuidade direta entre Israel antes de
Cristo e a igreja cristã, e em que sentido há uma clara descontinuidade.
Muitos cristãos se perguntam a respeito do lugar da lei do Antigo
Testamento dentro da vida tanto do cristão individualmente como de
países que se declaram cristãos ou que procuram ser cristãos de maneira
“oficial”. Assim que se levantar esse tipo de questão, Romanos 7 será
percebido como de extrema relevância, ainda que seja desconfortável.
Particularmente, insiste que, ao dar a Torá, Deus não estava fazendo
uma espécie de “primeira tentativa” de ensinar aos seres humanos, de
forma geral, os primeiros princípios da moralidade — como se os seres
humanos precisassem de algumas regras básicas para seguir em frente e
que, no fim, fossem superadas pelo sermão do Monte. O propósito de
Deus foi muito mais sutil do que isso. O problema do mal, o verdadeiro
problema que subjaz as questões, tanto as de salvação como as de
natureza ética, é bem mais radical do que um registro desses poderia
sugerir. Ao dar a Torá, a intenção de Deus era promover os propósitos
para os quais chamou Israel. Esses propósitos não diziam respeito
simplesmente a ensinar ao mundo um padrão superior de moralidade.
Diziam respeito, sim, ao resgate do mundo do pecado e da morte.
A fim de concretizar esse objetivo, Deus enviou não só sua Torá,
como também seu filho e seu espírito, a fim de que realizassem o que a
Torá queria fazer, mas, por si mesma, não poderia fazer. Neste ponto,
viramos a página, prontos para um dos maiores capítulos escritos por
Paulo ou por qualquer outro escritor cristão.
ROMANOS 8:1-4
A AÇÃO DE DEUS NO MESSIAS E NO ESPÍRITO
1Desse modo, portanto, não há condenação para os que estão no Messias, Jesus!
2Por que não? Porque a lei do espírito — aquele que dá vida no Messias, Jesus—
libertou-nos da lei do pecado e da morte.
3Porque Deus fez o que a lei (estando fraca por causa da carne humana) era incapaz
de fazer. Deus enviou seu próprio filho à semelhança da carne pecaminosa, e como
uma oferta pelo pecado e, exatamente lá na carne, condenou o pecado. 4Isso
ocorreu para que o veredicto correto e apropriado da lei pudesse cumprir-se em
nós, na medida em que vivemos não segundo a carne, mas segundo o espírito.
Quando morávamos na região central da Inglaterra, recebi a visita de
dois homens que estavam fazendo uma pesquisa sobre um programa de
televisão em potencial. Já houve muita discussão sobre a “Inglaterra
Central”, disseram eles. Como eu morava mais ou menos no centro da
Inglaterra, o que eu pensava a esse respeito?
Era uma ideia ridiculamente frágil e, embora a conversa tenha sido
bem interessante, eu jamais soube no que resultou aquela pesquisa. Na
realidade, há um burburinho alguns quilômetros ao sul de onde
vivemos, onde, de um modo um tanto pretensioso, intitulam-se como “o
centro do país”. É claro, porém, que, num país com um formato
estranho como o da Inglaterra, existem diversos lugares que poderiam
reivindicar a mesma condição.
Quando eu dava aula para alunos do curso de graduação, algumas
vezes costumava pedir que encontrassem uma passagem que parecesse
estar bem no centro do pensamento de Paulo. Assim como na questão
geográfica, é impossível responder a essa pergunta devido às múltiplas
perspectivas de seus escritos. Entretanto, os versículos que, agora,
temos diante de nós apresentam um apelo muito mais forte do que
qualquer outra passagem que conheço. Eles apresentam um retrato
paulino, grande e completo de Deus, pai, filho e espírito; contêm uma
das mais claras declarações de Paulo sobre o que foi realizado na cruz;
eles unem suas críticas a respeito da lei judaica e as sementes de sua
visão de como essa lei é estranhamente cumprida no evangelho e
mediante o evangelho; e exibem a gloriosa e tipicamente paulina
esperança de que, de fato, não há “nenhuma condenação” para os que
estão no Messias. Sem dúvida, um festival de bons temas paulinos.
Diante de toda essa riqueza — sem mencionar o fato de que essa
passagem é a favorita de muitos pregadores há muitos anos, a fonte de
muitas orações e hinos, e foi transformada em uma cantata completa
por J. S. Bach —, poderíamos ser perdoados por ficarmos um pouco
desconcertados e deixarmos de perceber o papel que desempenha no
contexto da verdadeira argumentação da carta, que é para onde alguém
deveria voltar-se antes de começar a sondar os detalhes. Apesar de o
clima emocional e o tom de voz terem mudado de modo drástico a
partir do fim do capítulo 7, o mesmo argumento ainda está em curso,
conforme observamos pela contínua menção da lei nos versículos de 1 a
4 e, mais adiante, em nosso próximo trecho, até o versículo 7. A
argumentação mais extensa, na realidade, a partir da qual o capítulo 7
constitui a primeira seção, prossegue no capítulo 8 até o versículo 11.
Nele, descobrimos como acontece de a intenção da lei (de dar a vida)
ser, por fim, alcançada de maneira gloriosa quando, mediante o espírito,
Deus dá a vida ressurreta a todos que pertencem ao Messias, Jesus. Em
nossa presente passagem, a base para essa conclusão é estabelecida com
firmeza, à medida que Paulo revela (assim como em 3:21) o “agora,
porém” do evangelho, as boas-novas que tratam dos problemas e das
dificuldades que toda a raça humana, incluindo Israel, de outro modo
ainda estaria enfrentando.
Essa passagem também abre todo um conjunto de novos assuntos
que, em sua abordagem, ocupam o restante do capítulo 8, em particular
com referência à obra do espírito. Isso, por sua vez, contribui para o
grandioso tema da segurança, que Paulo sintetiza no último parágrafo
(8:31-39), antecipado no primeiro versículo por sua grande exclamação
de triunfo, que, por sua vez, nos faz lembrar de 5:1-11 e, sem dúvida, de
5:1-2 em particular. A presente passagem e a próxima (8:1-4 e 8:5-11) se
apresentam de maneira simultânea como a conclusão da argumentação
de Romanos 7 e a introdução da argumentação de Romanos 8. Não
admira serem tão densas e comprimidas — embora não sejam,
felizmente, de elucidação tão difícil como alguns outros trechos
igualmente densos dos escritos de Paulo.
Já salientei muitas vezes que o estilo habitual de Paulo desenvolver
sua argumentação é como o desabrochar de uma flor. Pela minha janela,
eu vejo um jardim de rosas. Estamos no inverno e as roseiras estão
cercadas de neve. Entretanto, aqui e ali, é possível distinguir alguns
pequeninos brotos. Em algum momento na primavera, eles se
transformarão em botões de rosa. Em seguida, esses botões se abrirão,
revelando flores maravilhosas. Então, eu me lembrarei dos brotinhos e
vou refletir sobre o fato de que o botão por inteiro já estava contido no
interior do pequenino broto, caso eu pudesse enxergá-lo.
O parágrafo presente é um excelente exemplo desse estilo de escrita.
O versículo 1 anuncia o ponto principal que Paulo apresentará a partir
de agora até o fim do capítulo: não existe condenação para aqueles que
estão no Messias. O versículo 2 apresenta o início de uma explicação,
mas ele é tão comprimido que será necessário haver uma inspeção
acurada, feita com um microscópio, para que possamos compreender o
que significa. Isso não importa; espere até que o broto se desenvolva e
cresça. Os versículos 3 e 4 o fazem desabrochar de maneira que
possamos entendê-lo melhor. E, em seguida, os versículos de 5 a 8
abrem ainda mais a flor. Por fim, nos versículos de 9 a 11, teremos a rosa
completamente aberta, espalhando sua fragrância a todos em seu raio
de alcance. Isso deve ensinar-nos algo sobre como se deve ler Paulo: não
pare em um único versículo, perguntando-se por que ele é assim tão
denso. Veja-o como parte de uma declaração e de uma celebração mais
ampla.
Nenhuma condenação! Essa garantia só pode, é claro, exercer seu
pleno efeito em alguém que já refletiu com todo o cuidado sobre a
gravidade do pecado e a realidade do julgamento divino. Qualquer um
que calcula que o pecado não é assim tão grave, ou que Deus não iria
julgá-lo de qualquer modo, provavelmente daria de ombros em relação
a Romanos 8:1. Mas, de todo modo, alguém assim provavelmente não
teria lido até esse ponto mesmo. A pergunta mais interessante a respeito
deste versículo é a seguinte: por que Paulo diz “portanto” logo no
início? O lugar no qual ele interrompe sua argumentação no fim do
capítulo 7 dificilmente conduz a esse tipo de exclamação triunfante.
Seria possível esperar que dissesse: “Há, portanto, muita tristeza e
condenação a serem enfrentadas.”
A resposta não está muito longe na sequência de sentenças iniciadas
com “porque” que aparecem nos versículos seguintes. De fato, no
original grego, os versículos 2, 3, 5 e 6 contêm essa palavrinha que
significa “porque” ou “pois”, indicando que cada passo de sua
argumentação está explicando o que aconteceu antes. Não existe
condenação porque a lei-espírito os libertou da lei-pecado, porque Deus
agiu em seu filho e em seu espírito, a fim de condenar o pecado e
conceder vida, porque existem dois tipos de seres humanos e porque
vocês são do tipo-espírito, porque esses dois tipos estão se dirigindo,
respectivamente, à morte e à vida. Não existe condenação por causa
disso tudo.
Não devemos supor que a palavra “lei” nesses versículos signifique
outra coisa que não “a lei de Deus”. Exatamente como nos versículos
finais dos capítulos 3 e 7, aqui “lei” não se trata de um “sistema” ou de
um “princípio genérico”. Paulo se deleita com o paradoxo de tudo isso.
O espírito esteve agindo para fazer o que a lei queria fazer: conceder
vida, vida moral no presente, vida ressurreta no futuro. A lei considera
o que Deus está realizando, sabendo que não era capaz de fazer por si
própria, mas celebrando o fato de que Deus o fez. Está feito! (v. 4).
Como, porém, Deus pôde fazer isso? Será que o pecado, o velho
inimigo, não vai contra-atacar? Bem, isso ainda é possível, como Paulo
sabiamuito bem. O pecado, contudo, já foi mortalmente ferido. Antes
de o espírito poder ser liberado para soprar como em um vendaval de
primavera sobre a selva morta do mundo, o poder do mal precisa ser
quebrado. E o modo pelo qual isso precisa ocorrer é mediante a
condenação do pecado — não simplesmente com a promulgação de uma
sentença, mas através de sua execução. Paulo declara que isso é
precisamente o que ocorreu com a morte do filho de Deus, o Messias.
Esse é um dos pontos que ouvimos ecoar em praticamente todos os
capítulos do livro e mais ainda na declaração de abertura sobre o
evangelho em 1:3-4.
Como essa “teologia da expiação” funciona? Paulo está escrevendo
em meio a um intenso entusiasmo, mas também com grande precisão.
Primeiro, Deus enviou seu próprio filho, o que, como vimos em 5:8,
significa que Deus não enviou terceiros, mas veio pessoalmente. Para
que a passagem faça sentido como um todo, precisamos supor que por
“filho de Deus” aqui Paulo quer dizer não só Jesus como o Messias
(apesar de querer dizer isso também, e isso é vital em sua
argumentação), mas Jesus como a própria segunda Pessoa de Deus. A
seguir, o filho veio “à semelhança de carne pecaminosa”; em outras
palavras, exatamente no ponto em que o problema do capítulo 7 foi
identificado (ver especificamente 7:14 e 7:25). O pecado, como vimos
em 5:20 e 7:13, tornou-se “pecaminoso em excesso” mediante a lei, pois
Deus, de maneira intencional, planejou que assim fosse. Agora, Israel,
em quem esse aumento de pecaminosidade ocorreu, estava sintetizado
em um único homem, o rei representante, o Messias. O peso do pecado
do mundo foi concentrado sobre Israel, enquanto o peso do pecado de
Israel foi concentrado sobre o Messias. E o Messias, por sua vez,
padeceu a morte de um criminoso, com a inscrição “Rei dos judeus”
logo acima de sua cabeça. Naquele instante, Deus condenou o pecado.
Ele condenou o pecado “na carne”. Ele o cercou e o condenou. Como já
dissera o profeta: “o castigo que nos trouxe a paz recaiu sobre ele; e,
mediante suas feridas, somos sarados” (Isaías 53:5).
Repare em duas coisas a respeito de como Paulo faz essa afirmação.
Ele não diz que Deus condenou Jesus, porém que condenou o pecado na
carne de Jesus. Ele diz outras coisas além disso (ou seja, 2Coríntios 5:21
e Gálatas 3:13), mas essa é sua mais clara declaração. E ele também
introduz uma figura diferente, a do sacrifício pelos pecados no Antigo
Testamento, o sacrifício especificamente conhecido como a oferta pelo
pecado. Por quê?
No Antigo Testamento, a oferta pelo pecado é o sacrifício
empregado quando alguém comete um pecado inconsciente (sem saber
que está cometendo um erro) ou involuntário (sabendo que é errado,
mas sem a intenção de cometê-lo). Paulo analisou a condição de Israel
sob a lei de tal modo que recai exatamente nessas categorias. “O bem
que quero fazer eu não faço, o mal que não quero, esse eu faço.” O
“homem miserável” de 7:24 encontra resposta pela provisão de Deus
com relação à oferta pelo pecado em 8:3, do mesmo modo que, em um
nível mais genérico, o pecador condenado de 1:18 a 3:20 recebe a
promessa de que não há “nenhuma condenação” para aqueles que estão
“no Messias”, porque a condenação do pecado já ocorreu nele.
Não resta espaço para se prosseguir na reflexão sobre o versículo 4.
Ele pertence, de todo o modo, estreitamente, aos versículos seguintes,
para os quais, no momento, nos voltamos. No entanto, fique mais um
pouco com os primeiros versículos do capítulo 8. Talvez até seja bom
você decorá-los. Poucas vezes você vai encontrar uma declaração tão
completa ou mais exata acerca do que Deus realizou em Jesus, o
Messias, seu filho. Como alguém no deserto que acaba de descobrir uma
pequena fonte emergindo de uma enorme gruta de água, há o suficiente
aqui para se viver por um bom período de tempo.
ROMANOS 8:5-11
A OBRA DO ESPÍRITO
5Pense nisso da seguinte forma: aqueles cujas vidas são determinadas pela carne
humana concentram sua mente nas questões relativas à carne; mas aqueles cujas
vidas são determinadas pelo espírito concentram suas mentes nas questões relativas
ao espírito. 6Concentre-se na carne e morrerá. Concentre-se, porém, no espírito e
terá vida e paz. 7A mente centrada na carne, veja bem, é hostil a Deus. Ela não se
submete à lei de Deus; na verdade, ela não consegue. 8Aqueles que são
determinados pela carne não podem agradar a Deus.
9Vocês, no entanto, não são pessoas da carne. Vocês são pessoas do espírito se, de
fato, o espírito de Deus habita em vocês. Repare que todo aquele que não tem o
espírito do Messias não pertence a ele. 10Mas, se o Messias está em vocês, o corpo
está de fato morto por causa do pecado, mas o espírito é vida, por causa da
fidelidade da aliança. 11Portanto, se o espírito daquele que ressuscitou Jesus dentre
os mortos habita em vocês, aquele que ressuscitou Jesus dentre os mortos
concederá vida a seus corpos mortais também, mediante o espírito que habita em
vocês.
Imagine você vasculhando um antigo sótão e encontrando algo que se
pareça com uma antiga luminária comum. Ela possui uma espécie de
bulbo estranho, mas um suporte bem elegante. E o abajur, embora um
pouco empoeirado, é muito bonito. Você desce com o objeto até o
interior da casa e o examina. Se não conhecesse muito sobre a história
das luminárias, poderia até tentar conectá-la a uma fonte de energia
elétrica. E, caso fizesse isso, provavelmente receberia um choque (literal
e metafórico). Esse tipo de lâmpada não foi projetado para funcionar à
base de eletricidade. É do tipo antigo, feito para funcionar a gás.
Uma história talvez bastante improvável. No entanto, ressalta o
ponto que Paulo levanta aqui, um ponto muitas vezes perdido quando
se lê Romanos de forma muito rápida. Lembre-se: ele continua falando
sobre a lei judaica e o fato de que ela não podia dar a vida que prometia
— e o fato agora de que Deus fez o que a lei não podia fazer, com o
resultado (v. 4) de que “o veredicto correto e adequado da lei é
cumprido em nós, à medida que vivemos não segundo a carne, porém
segundo o espírito”. É isso o que agora Paulo está explicando em
maiores detalhes e levando adiante para sua conclusão adequada.
O ponto é o mesmo de 7:14: os seres humanos, em seu estado
natural, diante da lei de Deus, têm a mesma utilidade que uma
lamparina a gás conectada a uma fonte de energia elétrica. “Eu sou feito
de carne”, disse Paulo, “vendido ao pecado”, enquanto a lei é
“espiritual”. Agora vemos o que ele tem em mente: se a lei deve dar a
vida que promete (7:10), de nada vale ser colocada para funcionar
através de um aparelho errado. A única coisa que acontecerá é uma
explosão — que é o assunto de 7:14-25. Ela deve ser posta para operar
com um aparelho do tipo certo, um aparelho projetado para operar do
mesmo modo. Em outras palavras, deve ser aplicada a alguém cujo
próprio ser não seja mais “carnal” no sentido como Paulo emprega esse
termo nestes capítulos, porém “espiritual”.
Mas o que os termos “carnal” e “espiritual” significam? O primeiro,
em particular, é tão problemático que seria melhor (como já tentei fazer
com outros termos técnicos) evitá-lo por completo; no entanto,
descobri que, ao fazer isso, cria-se mais confusão ainda. O melhor é
aprender, de uma vez por todas, que, ao usar a palavra “carne” e outras
similares, Paulo não tem a intenção de que pensemos simplesmente na
realidade física, em nossa perspectiva natural, em oposição ao “não
físico”. Ele emprega outros termos para isso. A palavra que traduzimos,
aqui e em outros contextos, como “carne” refere-se a pessoas ou coisas
que compartilham a corrupção e a mortalidade do mundo e, muitas
vezes e sem dúvida aqui também, a rebelião do mundo. “Carne” é um
termo negativo. Para Paulo, na condição de um judeu, a ordem criada, o
mundo físico, era bom em si mesmo. Apenas seu mau uso e sua
corrupção e deformação são maléficos. A “carne” ressalta o mau uso, a
corrupção e a decadência.
Já “espírito”, em contraste, refere-se, em geral, ao próprio espírito de
Deus, o espírito santo. Algumasvezes, como na passagem seguinte,
Paulo faz referência ao espírito humano, a realidade interior da vida de
alguém. Entretanto, aqui o primeiro significado é o que importa. Paulo
está pegando as categorias da humanidade adâmica e da humanidade do
Messias, as duas categorias que ele vem desenvolvendo desde o
capítulo 5, e as retrata em mais uma tonalidade. Dessa vez, ele será
capaz de demonstrar que, visto sob essa ótica, Deus fez o que a lei
pretendia fazer mas não pôde fazer, ou seja, conceder vida.
Esse processo já está em andamento na vida cristã diária. É possível
perceber a diferença entre aqueles que se preocupam com a “carne” e os
que se preocupam com o “espírito”: Em que suas mentes estão focadas?
Em que estão pensando na maior parte do tempo ou durante todo o
tempo? É aqui que podemos ver que “carne” significa tanto mais quanto
menos do que o “mundo físico”: alguém que esteja sendo orgulhoso, ou
ciumento, ou caluniador, está com certeza se concentrando na “carne”
no sentido que Paulo empresta ao termo. Mesmo que as atitudes e o
tema em que ele se concentra sejam abstratos (não físico), e não
concretos. Entretanto, viver dessa maneira, como já vimos no capítulo
1, significa estar cortejando e fazendo um convite à própria morte,
enquanto, ao nos concentrarmos no espírito, temos vida (o principal
ponto levantado aqui) e paz (relembre 5:1). Paulo explica, nos
versículos 7 e 8, olhando de volta para 7:14: a mente caracterizada pela
“carne” está inclinada não só a ser hostil a Deus, como também é
incapaz de se submeter à lei ou de agradar a Deus. Paulo deixa implícito
que a mente caracterizada pelo espírito se submete à lei, cumprindo-a.
O que isso quer dizer? Mais uma vez, de forma torturante, ele não
nos diz precisamente o que é. Podemos ver a parte final de sua
argumentação: aqueles que têm o espírito habitando em si serão
ressuscitados dentre os mortos (ou seja, eles receberão a vida prometida
pela lei). Mas é somente em 10:5-9 que ele descreve a forma segundo a
qual entende a fé cristã em si mesma como o cumprimento da lei. E
somente em 13:8-10 ele explica que aqueles que obedecem à lei do amor
estão de fato cumprindo os mandamentos morais da Torá. Em uma
dedução consistente como essa, ele se vê forçado a pressupor todo o
tipo de coisas, mais sugerindo do que descendo aos detalhes, de modo a
manter o movimento adiante em curso.
Esse movimento adiante nos leva à promessa da ressurreição, a
promessa de que, no fim, seremos resgatados, de que seremos “salvos” da
corrupção e da decadência da própria morte. Esse será o movimento da
vindicação final, quando Deus dirá, mais alto do que poderia ser dito
em palavras, “Aqui está o meu povo!” e, de fato, como podemos ver mais
adiante no capítulo: “Aqui está a minha boa criação!” Repare como
Paulo consegue alternar entre o Messias e o espírito: “o espírito está em
vocês” (compare com Gálatas 2:20; Colossenses 1:27). Observe também
como ele é cuidadoso com as palavras que se referem a Jesus. Quando
Deus ressuscitou Jesus (o ser humano individualmente) dentre os
mortos, ele ressuscitou o Messias, aquele que representa seu povo, e,
com isso, pôde garantir a seu povo que o que aconteceu ao Messias
também acontecerá a eles.
O espírito, portanto, é o meio pelo qual uma das perguntas mais
importantes, que fora deixada sem resposta na primeira seção da carta,
encontra, afinal, sua conclusão. Como Deus pôde declarar no presente
que aqueles que creem no evangelho estão “justificados” [declarados
como certos], antecipando, assim, de forma correta, o veredicto do
último dia? A resposta de Paulo aparece aqui. O espírito opera no
coração dos crentes, de modo a produzir fé por si mesmo mediante a
pregação do evangelho e, em seguida, produzir o tipo de vida descrito
na segunda parte dos versículos 4, 5 e 6 e, finalmente, para operar
poderosamente do outro lado da morte, a fim de conceder nova vida
corporal. É por essa razão, no fim das contas, que não há “condenação”
para os que se encontram no Messias. É por isso que seu veredicto
futuro — de que “estão certos”, “dentro da aliança”, com seus “pecados
perdoados” — pode ser antecipado para o presente. “O espírito é vida
por causa da fidelidade da aliança” (v. 10) — a fidelidade da aliança de
Deus e, quem sabe, da deles também.
Porém, ainda há mais uma dimensão com relação a esse parágrafo
poderoso. No pensamento judaico, o Deus vivo que está sobre e acima
de sua criação também está presente, de forma misteriosa, dentro de sua
criação. Paulo herdou uma rica tradição de diferentes maneiras de se
referir a essa presença: a sabedoria de Deus, o espírito de Deus, a glória
de Deus (de modo particular, quanto a habitar no templo), a Palavra
de Deus e, é claro, a lei de Deus. Podemos até incluir o filho de Deus na
lista, em vista das coisas elevadas ditas a respeito do rei vindouro em
2Samuel 7, em Salmos 2 e em outros textos. O que Paulo faz nessa
passagem é precisamente recorrer a essas diferentes formas de expressão
sobre a atividade divina, com o propósito de descrever sua operação de
resgate para Israel e o mundo. Deus cumpriu a lei ao enviar seu filho,
assim como a Sabedoria foi enviada ao mundo de acordo com algumas
tradições. Em decorrência disso, o espírito de Deus agora habita no
coração de seu povo, assim como a glória de Deus habitou no templo.
Paulo não desenvolveu uma fórmula comum de se referir a Deus de um
ponto de vista cristão. Entretanto, ele já possuía todos os elementos
que, mais tarde, seriam conhecidos como a teologia trinitária.
Uma teologia genuína sempre se manterá viva com a fé e a
esperança. Não se trata de mera construção teórica com a finalidade de
dar sentido a algum esquema metafísico. Romanos 8:1-11 carrega em si
o poder do evangelho em cada expressão exalada nesse texto. Se a igreja
içasse suas velas e aproveitasse esse soprar, não é possível descrever o
que poderia acontecer.
ROMANOS 8:12-17
FILHOS DE DEUS, CONDUZIDOS PELO ESPÍRITO
12Desse modo, portanto, minha querida família, estamos em dívida — contudo, não
em relação à carne humana, para vivermos daquele modo. 13Se vocês viverem de
acordo com a carne, morrerão; porém, se pelo espírito fizerem morrer os feitos do
corpo, vocês viverão.
14Todos que são conduzidos pelo espírito de Deus, vejam bem, são filhos de Deus.
15Vocês não receberam um espírito de escravidão — ou receberam? — para retornar
a um estado de temor. Não! Vocês receberam um espírito de filiação, em quem
exclamamos: “Aba, pai!” 16Quando isso ocorre, é o próprio espírito testificando
junto ao nosso espírito que somos filhos de Deus 17e, se somos filhos, somos
também herdeiros: herdeiros de Deus e coerdeiros com o Messias, desde que
soframos com ele para que também sejamos glorificados com ele.
Dívida é um dos grandes problemas do mundo atual.
Quando eu era mais jovem, os bancos não permitiam a muitas
pessoas incorrerem em dívidas. Os cartões de crédito ainda não haviam
sido inventados. Nem se pensava em se fazer empréstimos para
estudantes. É claro que, ainda assim, as pessoas contraíam dívidas,
porém os controles eram muito mais rigorosos, e a maior parte das
pessoas fazia o melhor para viver de seus ganhos.
Hoje em dia, porém, tudo isso mudou e, até onde sei, mudou para
pior. Milhões de pessoas no Ocidente vivem muito além de seus
próprios recursos, fazendo cada vez mais empréstimos e saques a
descoberto. Também obtêm cada vez mais cartões de plástico, que, por
sua vez, cobram ainda mais juros e outras taxas.
Enquanto isso, o mundo ocidental estabeleceu um sistema
econômico que, aparentemente, depende de manter um grande número
de países inteiros que possuam uma imensa e impagável dívida. Apesar
das campanhas com vistas a aumentar a consciência pública a respeito
desse problema, ele ainda persiste. E está piorando.
Uma das coisas mais terríveis sobre as dívidas é que elas dominam
sua mente. Seja lá o que mais você esteja começando a pensar, ou esteja
planejando ou esperando fazer, o fato de se encontrar endividado
determina sua maneira de ver omundo.
Por que, então, Paulo inicia esse parágrafo dramático afirmando que
estamos em dívida? Esse parece ser mais um caso em que Paulo começa
algo para, em seguida, se desviar da trilha e, após, retornar à sua linha
de pensamento inicial. Desde o parágrafo anterior, talvez estejamos
esperando que Paulo nos diga que devemos viver com base na gratidão
ao Deus que planejou e realizou nossa completa salvação. E é isso que
ele faz, começando por nos dizer que estamos em dívida, referindo-se à
herança prometida que compartilharemos com o próprio Messias. Ele é
o filho único de Deus; nós somos os filhos e as filhas adotados de Deus.
É aí, assim parece, que Paulo queria que esse parágrafo chegasse
inicialmente.
Mas, tão logo se inicia, descobre que precisava ressaltar o ponto
negativo já levantado nos versículos de 5 a 8. Não estamos em dívida
para com “a carne” (algo que ele enfatiza mais uma vez nos v. 13-14); ela
não nos fez favor algum e, portanto, nada lhe devemos. Se tentarmos
viver daquele modo, estaremos simplesmente enviando um convite à
morte, não — novamente — como uma punição arbitrária, mas como
uma consequência direta. Em vez disso, somos chamados a uma vida de
dizer “não” a todo o tipo de coisas que nosso corpo físico nos diga que
quer: aqui e em Colossenses 3:9, Paulo se refere a esse dizer “não” como
um “fazer morrer”. Isso está destinado a ser algo difícil e doloroso, mas é
algo que precisa ser feito. Uma vida cristã que não envolva fazer morrer
tudo o que nos arrasta para baixo, para dentro do mundo da “carne”,
não é digna do nome que leva.
A explicação adicional de Paulo para tudo isso o leva a um território
que já mencionamos, mas que agora precisamos explicitar mais. É nesse
ponto que ele começa a fazer ecoar passagens do Antigo Testamento
que falam sobre os filhos de Israel viajando pelo deserto, em direção à
Terra Prometida.
Os israelitas foram conduzidos pelo próprio Deus, que seguia com
eles na coluna de nuvem de dia e na coluna de fogo à noite. Por diversas
vezes, eles quiseram desistir e retornar ao Egito, onde foram mantidos
como escravos, mas perseveraram, apesar da rebelião, da idolatria e de
uma porção de outras tolices. Por trás de tudo isso, estava a seguinte
intimação, quase no início do livro de Êxodo: “Israel é meu filho, meu
primogênito: deixe meu povo partir para que me sirva!” (Êxodo 4:22,
citado em Oseias 11:1). O ponto principal é que eles chegariam, no fim
das contas, à terra que lhes seria dada como uma herança.
Quando lemos Romanos 8 com esse tema em mente, dificilmente
deixaremos de ouvir os ecos — embora a forma como aparecem seja
bastante reveladora. O deserto, a terra árida, parece ser o universo no
qual a atração da “carne” permanece forte e à qual precisamos resistir.
No lugar das colunas de nuvem e de fogo, os cristãos recebem o espírito
como a presença pessoal do Deus vivo. (Não seria ótimo se todos os
cristãos ficassem tão admirados com a habitação do espírito neles e
junto a eles quanto os israelitas aprenderam a ficar com a presença de
Deus na nuvem e no fogo?) Os cristãos serão tentados muitas vezes a
desistir da luta e a retornar para o Egito, ao lugar da escravidão. Mesmo
que já tenham deixado essa escravidão para trás, como Paulo deixa
claro em 6:15-19, existem tantas vezes em que parece muito mais fácil
estar escravizado ao pecado novamente — nada de novas lutas,
nenhuma sensação mais de se estar travando uma batalha montanha
acima... como também não há mais herança a se esperar, nada de
presença de Deus, nenhum sentimento de companheirismo com o
próprio Jesus. “Vocês não receberam um espírito de escravidão, ou
receberam, para voltar a um estado de temor?” Não, é claro que não.
Não se surpreendam se o caminho for difícil e pedregoso, é sempre assim
quando se vai do Egito para Canaã.
De modo especial, o cristão descobre uma nova identidade ao
assumir a vocação de Israel no Antigo Testamento: a adoção. Quando o
espírito santo vem habitar no coração de uma pessoa, o primeiro sinal
disso é o reconhecimento de Deus como pai. Creio que é isso que Paulo
quer dizer em 5:5 quando fala do amor por Deus sendo derramado em
nossos corações pelo espírito santo. Na exclamação “Aba, pai”, ele
emprega a antiga palavra em aramaico que o próprio Jesus utilizou para
Deus (Marcos 14:36). Paulo faz referência à mesma exclamação em
Gálatas 4:5-6, onde, mais uma vez, encontramos um poderoso eco da
história do Êxodo. Dessa vez, ele interpreta o que está acontecendo em
termos da união do espírito santo com nosso próprio espírito.
É delicado descrever esse assunto. Trata-se, no entanto, de uma
experiência cristã comum, em que, enquanto muitos de nossos
pensamentos em mente parecem advir do fluxo ordinário de nossa
própria consciência, algumas vezes deparamos com outros pensamentos
que parecem proceder de outro lugar. Esses pensamentos apontam de
forma gentil, porém muito poderosa, para o amor de Deus, para nosso
chamado à santidade, para tarefas específicas às quais precisamos
dedicar nossa energia e nossa atenção. Um aspecto-chave de nosso
discipulado cristão reside em reconhecermos essa voz e alimentarmos a
habilidade de ouvi-la. Trata-se, ou pode muito bem tratar-se, da voz do
próprio espírito de Deus. E uma das primeiras coisas que o espírito nos
diz, com o que nosso espírito concorda plenamente, é que somos filhos
de Deus, filhos e filhas adotados de Deus. Essa verdade ainda é um
importante tema na argumentação que prossegue (veja 8:29).
Entretanto, o lance-chave ainda estava por vir. Ao povo de Israel,
foi prometida uma herança: a terra de Canaã. Isso já fora ampliado de
forma dramática quando da promessa de Deus sobre o Messias
vindouro em Salmos 2:8: “Darei a ti as nações como herança e as partes
mais remotas da terra como tua propriedade.” Isso, por sua vez, está
relacionado com a promessa feita a Abraão, como já vimos em 4:13. A
promessa feita a Abraão e sua família, afirma Paulo, é que eles
herdariam o mundo. Agora, na passagem que estamos prestes a abordar,
podemos entender o que isso significa em termos plenamente cristãos.
Significa que o mundo inteiro — toda a criação — será transferido para
o Messias e para seu povo. E, com sua vindicação final e ressurreição,
toda essa criação ficará, ela própria, livre de corrupção e decadência.
Isso nos dá uma pista do que realmente significa “glorificação” (já
prometida anteriormente em 5:2). Não significa que vamos brilhar como
se fôssemos lâmpadas elétricas humanas (embora existam promessas
semelhantes, como, por exemplo, em Daniel 12:3 e Mateus 13:43).
Significa, antes, que vamos compartilhar o glorioso governo do Messias
sobre o mundo. Paulo já afirmara isso em 5:17. Aqui, ele chega ao
mesmo ponto por outra via.
É por esse motivo, portanto, que somos “devedores”. Somos
devedores ao Deus que nos amou, que nos salvou e que nos está
conduzindo de volta para casa, para a terra que nos foi prometida, a
nova criação final. Quando herdarmos isso, estaremos para sempre em
dívida com Deus — e deveríamos reconhecer isso e viver de acordo.
Afinal de contas, os devedores estão sob uma obrigação. Alguns cristãos
falam e vivem como se tudo simplesmente viesse de Deus para nós,
enquanto ficamos tranquilamente sentados, apenas recebendo tudo. No
entanto, os dons e o chamado de Deus para nós não se destinam
exclusivamente ao nosso próprio bem; também têm o propósito de
operar através de nós para produzir a transformação do mundo.
Algumas pessoas ficam ansiosas com a conclusão de que devemos fazer
qualquer coisa que seja nós mesmos, na condição de cristãos e em
qualquer parte do processo, sempre que uma ação assim comprometer a
livre graça pela qual somos salvos. Paulo, porém, declara que somos
devedores. Precisamos viver de maneira específica, de maneira que
antecipe a “glória”, o domínio sobre a criação, que, no fim,
compartilharemos com o Messias. E isso, no presente, significa
sofrimento.
ROMANOS 8:18-25
A CRIAÇÃO RENOVADA E A ESPERANÇA PACIENTE
18É desse modo que entendo a questão: os sofrimentos pelosquais passamos no
presente, quando avaliados, não merecem ser colocados lado a lado com a glória
que está para ser revelada por nós. 19Sim, a própria criação aguarda com toda a
expectativa, ansiosamente, pelo momento em que os filhos de Deus serão revelados.
20A criação, como vocês podem ver, também está sujeita a uma vaidade inútil, não
por sua própria vontade, mas por causa daquele que a sujeitou a isso, na esperança
21de que a própria criação será libertada de sua escravidão para a decadência, a fim
de usufruir a liberdade que surge quando os filhos de Deus são glorificados.
22Deixem-me explicar. Sabemos que toda a criação está gemendo unida e que está
passando ao mesmo tempo por dores de parto até o presente momento. 23E não é só
isso: nós também, os que temos os primeiros frutos da vida do espírito em nosso
íntimo, gememos enquanto aguardamos ansiosamente por nossa adoção, a redenção
de nosso corpo. 24Fomos salvos, vejam bem, na esperança. Entretanto, a esperança
não é esperança se vocês puderem vê-la. Quem espera pelo que pode ver? 25Mas, se
esperamos pelo que não vemos, esperamos por isso ansiosamente — porém, com
paciência.
Atravessei a pé o bosque diversas vezes antes de me dar conta do que a
placa queria dizer.
A mata era espessa, com trilhas que levavam para todos os lados. Eu
conhecia algumas delas muito bem e tinha minhas preferidas dentre
elas. Havia a trilha que circundava o lago, outra que levava para uma
esplêndida pequena clareira, onde, em geral, era possível avistar coelhos
e esquilos. Havia outra que levava a alguns antigos carvalhos, do tipo
que eu imaginava terem sido testemunhas de batalhas centenas de anos
atrás.
Entretanto, havia uma trilha que eu jamais seguira. Parecia um
pouco fechada demais pela vegetação e eu não conseguia ver aonde iria
dar. Na maior parte das minhas caminhadas, quero terminar meus
exercícios físicos e retornar logo ao trabalho e, por isso, jamais me
preocupei com aquela trilha. Nem prestei atenção a um pequeno poste
que ficava quase escondido atrás dos arbustos, exatamente ao lado do
início da trilha. Tinha o que parecia ser um “V” na parte de cima, a
cerca de trinta a cinquenta centímetros do chão. Por tudo o que eu
sabia, não passava de um sinal entalhado na madeira. Não tinha,
necessariamente, um significado.
Até que, um dia, me aproximei daquele lugar e vi que alguém havia
arrancado os arbustos o suficiente para que fosse possível ler as outras
três letras e uma seta apontando para a trilha. As outras letras, em
sequência, descendo o poste depois do “V”, eram “I”, “S”, “T” e “A”. Uma
“vista”? Que tipo de vista panorâmica haveria ali? Intrigado, pela
primeira vez segui por aquela trilha.
No começo, era como eu esperava: Coberta pela vegetação
(obviamente, eu não era o único a ignorar aquela trilha), com arbustos
espessos e espinhos pelo caminho. Estava tão lamacenta que desejei
estar calçando minhas botas mais grossas. Mas, então, tornou-se uma
reta por entre as árvores e, logo em seguida, uma subida um tanto
íngreme. Em poucos minutos, fiquei sem fôlego, mas, após uma pausa
breve, segui em frente, ainda mais entusiasmado. De repente, no lugar
de árvores espessas, em toda a minha volta, vi surgir um céu límpido.
Logo eu havia ultrapassado as árvores e me encontrava de frente para
uma laje de pedra. Então, subi e permaneci lá em cima, de pé,
censurando a mim mesmo por nunca ter encontrado aquele local antes.
Era, de fato, uma vista! Eu podia ver abaixo não só toda a floresta,
como também a cidadezinha para além das árvores. Podia avistar outras
colinas a distância e fumaça subindo das vilas incrustadas em seus vales.
Metade do município parecia estar lá, bem diante de meus olhos. E eu
talvez eu nunca tivesse descoberto aquilo.
Romanos 8:18-25 é como essa vista panorâmica. Desse ponto,
podemos avistar, com uma clareza impressionante, todo o plano da
salvação, toda a criação de Deus. Uma vez tendo vislumbrado esse
panorama, você jamais o esquece. E, ainda assim, durante vários anos,
muitos leitores de Romanos, de muitas tradições, passaram por ela sem
se dar conta de sua beleza. Estiveram ocupados demais com teorias de
justificação e salvação individuais. Ansiavam por lições morais, por
uma nova experiência do espírito (ou por uma teologia que apoiasse a
experiência que tiveram). Estiveram em busca das grandes questões a
respeito de Israel e dos gentios, que, de fato, ocupam uma boa parte de
Romanos (mais ainda os próximos poucos capítulos).
E o poste-placa, que poderia ter-lhes dito para tomar esse caminho e
seguir por essa trilha, esteve, durante todo o tempo, recoberto de
arbustos e de espinhos. A linguagem da criação no topo das
expectativas não era o que eles esperavam. A estranha ideia de Deus
sujeitar a criação à futilidade e à escravidão e, em seguida, do resgate da
criação, simplesmente não é o que as pessoas queriam ouvir ou não
sabiam como interpretar quando ouviam. A antiga versão da Bíblia
inglesa, King James, também não ajudava muito ao trazer o termo
“criatura” no lugar da palavra hoje usada, que é “criação”. “Criatura”
gerava confusão no leitor comum, que se perguntava à qual “criatura”
Paulo se referia. Desse modo, a trilha para a vista panorâmica esteve
encoberta por espinhos e cardos. “Estranhas ideias apocalípticas”, as
pessoas diziam, e se apressavam em mudar para um terreno mais seguro.
Entretanto, esse é o lugar que precisamos visitar! Do topo dessa
montanha, é possível avistar a eternidade!
Afinal de contas, se você fosse Paulo, depois de escrever essa carta
cuidadosamente elaborada, como é Romanos, investiria todo o tempo
atingindo esse nível de entusiasmo para, em seguida, com essa linha de
pensamento chegando ao fim, permitir-se vagar a esmo e discorrer sobre
coisas irrelevantes ao longo de alguns parágrafos? É claro que não! Esse
trecho está perto de ser o clímax do capítulo, que, em si mesmo, é o
clímax da carta até o momento. Obviamente, ele é central. É claro que
se mostra vital para seu raciocínio. O fato de não dizer nada similar a
isso em qualquer outro lugar não vem ao caso. Uma boa parte de
Romanos é exatamente assim.
Paulo inicia no ponto no qual interrompeu no último parágrafo, com
a promessa de que o sofrimento atual, embora seja muitas vezes intenso,
será em muito sobrepujado pela “glória que está prestes a ser revelada
por nós”. Repare: revelada por nós. Não “em nós”, como se a glorificação
fosse, afinal de contas, nós simplesmente estarmos parecendo satisfeitos
conosco mesmos. Não “para nós”, como se fosse para nos tornar
espectadores da “glória”, como pessoas que assistem a uma exibição de
fogos de artifício. A questão real com a “glória” é que ela significa um
governo glorioso, soberano, compartilhando o domínio salvador do
Messias sobre o mundo inteiro. E é por isso que aguarda toda a criação.
Ela espera por nós, por você e por mim, por todos os filhos de Deus,
para que sejam revelados. Então, por fim, a criação verá seus
verdadeiros governantes, e saberá que chegou a hora de ser resgatada
da corrupção!
Para compreendermos isso, é necessário olhar para a grande história
bíblica da criação. Quando olhamos para o universo da criação tal como
se encontra no presente, vemos um mundo nas mesmas condições em
que se encontravam os filhos de Israel quando ainda eram escravos no
Egito. Do mesmo modo que Deus permitiu aos israelitas descerem para
o Egito, a fim de que, ao tirá-los de lá, pudesse defini-los para sempre
como o povo libertado da escravidão, Deus permitiu à criação estar
sujeita a seu presente ciclo de verão e inverno, crescimento e declínio,
nascimento e morte. É lindo, sem dúvida; entretanto, sempre acaba em
lágrimas ou ao menos em um encolher de ombros. Se, por acaso, você
vive em algum ponto extremo da corrupção da criação — sobre uma
falha geológica com terremotos constantes, por exemplo, ou junto a um
vulcão ativo —, pode experimentar a sensação de espanto gerada por
esse poder fútil. A criação, algumas vezes, pode parecer um búfalo
enjaulado: toda aquela energia, mas semproduzir um bom resultado. E,
por falar em animais selvagens, que tal aquela promessa do lobo e do
cordeiro deitados juntos? Seria apenas um sonho?
Não!, declara Paulo. Isso não é um sonho. É uma promessa. Todas
essas coisas são sinais de que o mundo no estado em que se encontra,
apesar de ainda ser a boa criação de Deus, prenha de seu poder e de sua
glória (1:20), não é no presente o que deveria ser. A “fidelidade da
aliança” de Deus sempre teve a ver com seu compromisso de que,
mediante as promessas feitas a Abraão, ele colocaria o mundo inteiro
em ordem. Agora, finalmente, entendemos o que isso quer dizer. A raça
humana recebeu a responsabilidade pelo cuidado da criação (como, em
tantas outras vezes, Paulo tem Gênesis 1 a 3 bem perto de seus
pensamentos). Quando os seres humanos se rebelaram e adoraram
elementos da criação no lugar do próprio Deus (1:21-23), a criação se
corrompeu. Deus permitiu que essa condição de escravidão
prosseguisse não porque a criação quisesse que assim fosse, mas porque
ele determinou que o mundo fosse colocado em ordem de novo, de
acordo com seu plano original. (Assim como, quando Israel o
decepcionou, ele não mudou o plano, mas enviou, por fim, um israelita
fiel.) O plano convocava os seres humanos a assumirem suas posições
debaixo de Deus e sobre o mundo, adorando o criador e exercendo
gloriosa mordomia sobre o mundo. A criação não está esperando
compartilhar a liberdade dos filhos de Deus, como algumas versões
sugerem. Ela espera beneficiar-se de maneira maravilhosa quando os
filhos de Deus forem glorificados. Ela está esperando — de fato, com
grande expectativa — pela liberdade específica que usufruirá quando
Deus der a seus filhos essa glória, esse sábio governo e mordomia, que
sempre foi o propósito para aqueles que têm em si mesmos a gloriosa
imagem de Deus.
Essa perspectiva sobre a ordem de toda a criação carrega em si toda
a sorte de implicações, desde a forma como pensamos a respeito do
futuro final do mundo e a respeito de nós próprios (o final da história
não é um “céu” descorporificado, mas um mundo totalmente novo), até
nossa atual antecipação dessa nossa responsabilidade final para com o
mundo de Deus. Essa é uma visão positiva, que valida o mundo, despida
de qualquer risco associado ao panteísmo (a idolatria e a ausência de
toda crítica ao mal). Há muitas vias aqui que gostaríamos de explorar.
Paulo, porém, passa a considerar a atual situação dos filhos de Deus
à luz de seu futuro. Estamos, diz ele, ansiando pelo momento em que
nós mesmos seremos redimidos, de forma plena e final. E isso significa o
momento em que receberemos nossos corpos ressurretos. Gememos e
soluçamos quando sabemos o que estamos enfrentando, na medida em
que experimentamos a tensão entre a promessa gloriosa e a presente
realidade. Essa tensão está sintetizada no fato de que o espírito já está
operando em nós, mas ainda não completou a tarefa de nossa renovação
plena. Temos os “primeiros frutos” da vida do espírito. Paulo emprega a
figura da colheita dos primeiros feixes ofertados a Deus como sinal de
uma grande colheita ainda por vir. Somos deixados com uma
surpreendente análise a respeito da esperança cristã, esperança que,
assim como a fé, não pode ser vista (caso contrário, não seria
esperança), mas esperança que, de todo o modo, é certa. Gemendo e
esperando, ansiosos porém pacientes: essa é a posição que caracteriza o
cristão.
O quadro maior retratado por Paulo situa esse gemido no mapa da
criação. No centro dessa passagem memorável, encontra-se uma de suas
imagens mais vívidas acerca da esperança: a imagem das dores de parto.
A criação inteira está em trabalho de parto, ansiando pelo nascimento
do novo mundo de Deus. A igreja é chamada a compartilhar essas dores
e essa esperança. A igreja não deve ficar à parte das dores do mundo,
mas, sim, em oração, precisamente onde o mundo está sofrendo. Isso faz
parte de nosso chamado e de nosso elevado papel, ainda que se mostre
estranho aos propósitos de Deus para sua nova criação.
ROMANOS 8:26-30
ORAÇÃO, FILIAÇÃO E A SOBERANIA DE DEUS
26De igual modo, o espírito coloca-se ao nosso lado e nos ajuda em nossa fraqueza.
Não sabemos orar como deveríamos, porém esse mesmo espírito intercede em nosso
favor com gemidos inexprimíveis em palavras. 27E o Perscrutador de Corações sabe
o que pensa o espírito, porque o espírito intercede pelo povo de Deus de acordo
com a vontade de Deus.
28Sabemos, na realidade, que Deus opera todas as coisas, de forma conjunta, para o
bem daqueles que o amam, que são chamados segundo seu propósito. 29Aqueles que
conheceu de antemão, vejam vocês, ele também designou antecipadamente para
que fossem moldados segundo a imagem de seu filho, de modo que ele fosse o
primogênito de uma família maior. 30E aqueles a quem designou por antecipação,
ele também chamou; aqueles a quem chamou, ele também justificou; aqueles a
quem justificou, também glorificou.
Quantos nomes você pode pensar para Deus? Essa pergunta pode
parecer estranha. O nome apropriado de Deus no Antigo Testamento é
YHWH. Entretanto, ele é referido por uma grande quantidade de
outras maneiras: “o Todo-poderoso”, “o Santo de Israel”, ou “YHWH
dos Exércitos”. Ele também é chamado frequentemente de “o Deus de
Abraão”, algumas vezes com Isaque e Jacó também adicionados. Outros
nomes estranhos aparecem de forma breve. Aparentemente, Jacó
conhece Deus como “o Temor de seu pai Isaque” (Gênesis 31:42 e 53) —
ao menos até lutar com Deus face a face no capítulo seguinte. Vale a
pena fazer um estudo dos diversos nomes, títulos e descrições de Deus
espalhados literalmente por todo o Novo Testamento. No Evangelho de
João, Jesus frequentemente se refere a Deus em termos de sua própria
missão: “o pai que me enviou.” Aqui mesmo em Romanos, Deus é
chamado de maneira diferente como “aquele que ressuscitou Jesus
dentre os mortos” (4:24; 8:11). Agora, nessa passagem, encontramos um
título igualmente poderoso, embora mais misterioso: “o Perscrutador de
Corações.” Esse é um conceito inquietante e sugestivo, justificando sua
análise mais de perto.
Já nos foi dito que, no fim, Deus julgará todos os segredos dos seres
humanos (2:16). Paulo insiste em que Deus reserva elogios para aquele
que é judeu “em secreto”, em contraste com uma qualificação
meramente exterior (2:29). O versículo 27, porém, da presente
passagem vai um passo além. A palavra “Perscrutador” tem uma raiz
que sugere alguém que acende uma tocha e vai caminhando lentamente
por um recinto grande e escuro, repleto de todo o tipo de coisas, à
procura de alguma coisa específica. Ou quem sabe está procurando no
escuro apenas de ouvido. Pelo que estaria procurando e o que
acontecerá quando encontrar?
Sem dúvida, Deus, ao perscrutar os recantos obscuros de nosso
coração, depara com toda a sorte de coisas que, se possível fosse,
prontamente permaneceriam ocultas. Mas o que, acima de tudo, ele
quer encontrar e, que segundo Paulo, deverá encontrar em todos os
cristãos é o som do gemido do espírito.
Na última seção, vimos que o mundo se encontra sofrendo, gemendo
com dores de parto da nova criação. Também vimos que a igreja
compartilha essa dor, gemendo em nosso profundo anseio pela redenção
de nossos próprios corpos, sofrendo em meio à tensão entre “já” possuir
os primeiros frutos do espírito e o “ainda não” de nossa atual existência
mortal. Assim, a igreja não se deve apartar das dores do mundo. Agora
descobrimos que o próprio Deus não se aparta do sofrimento do mundo
ou da igreja, vindo, ao contrário, habitar no meio de nós na pessoa e no
poder do espírito.
A compreensão de Paulo acerca do espírito é nova e impactante
neste ponto. No exato momento em que estamos lutando em oração, e
não temos a menor ideia a respeito do que devemos orar, exatamente
neste instante o espírito está operando de modo mais óbvio. O espírito
exclama do mais íntimo de nosso ser não com um discurso articulado —
isso seria um alívio e nós ainda não estamos prontos para receber alívio
nessa obra de oração —, porém um gemido que,naquele instante, não
pode ser expresso em palavras. Isso é oração para além da oração,
mergulhando nas profundezas frias e escuras, para além da visão ou do
conhecimento humano.
Entretanto, não para além do Perscrutador de Corações. Como
parte da figura retratada por Paulo, não só do mundo ou da igreja, mas
de Deus, descobrimos que o criador transcendente está em constante
comunhão com o espírito que habita os corações de seu povo. Deus
compreende o que o espírito está dizendo; nós, não. Deus ouve e
responde às orações que nós só conhecemos como dolorosos gemidos, o
debater-se e o revirar-se de um espírito inquieto, colocado diante de seu
criador com as dores e os conflitos de um mundo pesado em seu
coração. Aqui, há um desafio para todas as igrejas e para todos os
cristãos: a disposição de assumir e sustentar a tarefa de orar dessa
maneira, oração na qual somos envolvidos no diálogo amoroso, feito
entre gemidos, o diálogo redentor, entre o pai e o espírito.
É assim, na realidade, que se apresenta nossa soberania “glorificada”
sobre o mundo na era presente. O desafio de sofrer com o Messias de
modo a ser glorificado com ele, significa, com toda a certeza, estar
pronto para passar por todo o tipo de sofrimento físico, perseguição e
coisas semelhantes (8:35-36). É isso que, com frequência, sobrevém
quando se adora o verdadeiro Deus enquanto o mundo ainda se
encontra desconjuntado. No entanto, exatamente como a santidade
pessoal deve ser vista como o assumir da responsabilidade, no presente,
pela parte da ordem criada, que está, de forma mais óbvia, sob nosso
controle, como uma antecipação do dia no qual haveremos de “reinar
em vida” sobre esferas consideravelmente maiores, assim também a
oração, vista à luz dos versículos 26 e 27, pode ser compreendida como
o ato de assumir a responsabilidade pelo mundo mais amplo em si
mesmo, em antecipação à nova criação. E também como o ato de
compartilhar os sofrimentos do Messias quando assim agirmos. Com
toda a certeza, existem inúmeras coisas no mundo pelas quais podemos
e devemos orar de forma articulada. Mas também existem inúmeras
outras em relação às quais tudo o que podemos fazer é permanecer em
silêncio na presença de Deus e permitir ao espírito gemer, e ao
Perscrutador de Corações, sondar esse gemido e reconhecê-lo pelo que
de fato é: sofrimento de acordo com o modelo do Messias.
Assumirmos a forma da imagem do filho de Deus dessa maneira é,
na realidade, o propósito de Deus para nós como um todo. A oração
segundo esse padrão é simplesmente uma parte do processo de
“conformação”, pois, a partir daí, surge, em nosso coração, aquele amor
por Deus do qual, como já vimos em 5:5, a antiga oração judaica, o
“Shemá”, nos fala. Quando, então, somos designados povo de Deus, não
de modo externo, mas nas orações secretas e no amor, no mais profundo
de nosso ser interior, podemos estar totalmente certos de que Deus está
no comando, de que ele pode trazer o bem a partir de qualquer coisa que
aconteça. O versículo 28 é uma promessa muito estimada por todos os
que já aprenderam, através dela, a confiar em Deus nas muitas e
diversas — e, com frequência, perturbadoras — circunstâncias de nossas
vidas. O mundo ainda está gemendo e nós também. No entanto, Deus
está conosco nesses gemidos e nos fará sair à luz para o bem.
Essa crença se amplia na sublime declaração de Paulo nos versículos
29 e 30, sobre o propósito de Deus para todos os seus filhos e filhas.
Assim como ocorre em relação a Israel no Antigo Testamento, Paulo
compreende aqueles que agora foram trazidos para a comunhão com e
mediante seu filho como os conhecidos “de antemão”. Eles não
escolheram Deus; ele os escolheu, em um mistério no qual Paulo não
procura penetrar, aqui ou em qualquer outra parte. Em vez disso, ele se
concentra naquilo que Deus planejou e propôs a eles: que eles haveriam
de ser moldados de acordo com o padrão ou modelo de Jesus. A
verdadeira “imagem de Deus”, tornando-se, assim, genuinamente
humanos, na medida em que se unem à família como irmãos e irmãs
mais novos daquele que é verdadeiramente humano.
O último versículo estabelece os passos simples mas profundos
mediante os quais Deus se põe a trabalhar convocando aqueles que,
segundo seu propósito, devem agora compartilhar a imagem de seu
filho, a fim de estarem entre aqueles chamados para fazer avançar sua
obra no mundo. De início, aqueles que foram designados para essa
tarefa foram, misteriosamente, “chamados”. Paulo utiliza o verbo
“chamar” como um termo técnico para o que ocorre quando a pregação
do evangelho opera de maneira poderosa na vida de alguém, a fim de
levá-lo à fé, instá-lo ao batismo e fazer seu coração fluir de amor por
Deus por meio do espírito. Quando o evangelho produz esse tipo de fé,
como já vimos, Deus declara a pessoa como, de fato, um verdadeiro
membro da família: a palavra usada para isso é “justificação”. E o
propósito de tudo isso, um propósito que é, sob todos os aspectos, tão
garantido quanto os propósitos que já se cumpriram (tanto assim que,
como os demais, é possível falar dele no pretérito), é o de que eles sejam
“glorificados”, compartilhando o governo soberano e redentor do
Messias sobre toda a criação. A passagem inteira parece projetada para
nos fazer lembrar tanto da soberania de Deus como do fato de que essa
soberania é sempre exercida em amor.
ROMANOS 8:31-39
NADA NOS SEPARARÁ DO AMOR DE DEUS
31O que diremos, pois, diante de todas essas coisas?
Se Deus é por nós, quem é contra nós?
32Deus, afinal de contas, não poupou seu próprio filho, mas o entregou por
amor de todos nós!
Como não irá, portanto, juntamente com ele, dar-nos todas as coisas
gratuitamente?
33Quem apresentará alguma acusação contra os escolhidos de Deus? É Deus
quem os declara como estando certos.
34Quem os condenará?
Foi o Messias, Jesus, que morreu ou, antes, que ressuscitou.
Que está à direita de Deus e que também intercede a nosso favor!
35Quem nos separará do amor do Messias?
Sofrimento, ou miséria, ou perseguição, ou fome, ou nudez, ou perigo, ou
espada? 36Como diz a Bíblia:
“Por sua causa estamos sendo mortos o dia todo
Somos considerados ovelhas destinadas ao abate.”
37Não! Em todas essas coisas, somos completamente vitoriosos por meio daquele
que nos amou. 38Estou persuadido, vejam bem, de que nem morte nem vida, nem
anjos nem dominadores, nem o presente, nem o futuro, nem poderes, 39nem altura
ou profundidade, tampouco outra criatura poderá separar-nos do amor de Deus no
Rei Jesus, nosso Senhor!
Relatos terríveis surgem de guerras, de ações terroristas e de outras
cenas de violência. Aqueles reféns mantidos no Líbano nos anos 1980
contam a respeito de mais de uma ocasião em que foram levados para
fora, de olhos vendados, quando, então, lhes diziam que iriam morrer.
Uma arma era pressionada contra suas cabeças, seguradas lá por alguns
instantes de grande agonia e, em seguida, com uma risada cruel ou um
chute, eram levados de volta às suas celas. É difícil imaginar a sensação
de alívio, aliada ao fato de saberem que algo assim poderia se
concretizar no dia seguinte. No fim, quando os reféns foram libertados,
talvez tenham precisado de meses, se não anos, antes de acordar pela
manhã sabendo que seus inimigos não estavam mais lá, que ninguém
mais iria ameaçá-los.
Outros relatos fazem ressonância com essa sensação de alívio
inesperado. Jesus confronta alguns fariseus que se consideravam
melhores do que os outros homens a respeito do apedrejamento de uma
mulher apanhada em adultério (João 8:1-11). Ela estava de joelhos ou
caída ao chão, aguardando, aterrorizada, que a primeira pedra se
chocasse contra seu corpo, provavelmente mutilando-a de forma cruel,
muito antes que viesse a experimentar o alívio da morte em si. Agora,
ela olhava para cima. Todos os homens haviam partido, envergonhados
pelo desafio de Jesus diante de suas próprias vidas pecaminosas. O quê?,
pergunta Jesus com um estranho tipo de humor. Ninguém a condenou?
Algo dessa mesma atmosfera, de um alívio inesperado, penetra a
parte final dessecapítulo surpreendente. Olhamos em volta procurando
saber quem nos condenou para, em seguida, descobrir que todos se
foram. A pergunta é feita quatro vezes e, a cada uma delas, a resposta
subentendida ressoa com toda a sua força. Quem é contra nós?
Ninguém! Afinal de contas, Deus nos deu seu filho e nos dará todas as
coisas com ele. Quem apresentará alguma acusação contra nós?
Ninguém! O próprio Deus nos justificou, já nos declarou certos. Quem
nos condenará? Ninguém! Jesus já morreu, ressuscitou e foi exaltado, e
agora intercede por nós. Quem nos separará de seu amor? Ninguém!
Dessa vez, há muitos disputando por uma tentativa, porém a lembrança
da vitória ressoa em alto e bom som. Nada em toda a criação pode
separar-nos do amor de Deus no rei Jesus!
Essa é a estrutura formal do parágrafo e, como sugere seu conteúdo,
está repleta de permanente entusiasmo, como ocorre em uma sinfonia
que está chegando a seus momentos finais e acelera cada vez mais à
medida que se vai aproximando de seu desfecho, com expressões
extraídas das primeiras estrofes da música sendo repassadas
rapidamente de maneira triunfante. O parágrafo é, na realidade, uma
síntese de todo o tema dos capítulos de 5 a 8, apresentados agora não
em uma argumentação passo a passo, como ocorreu até esse ponto, mas
na forma de uma emocionante declaração da mais fina retórica. Veja o
que Deus fez! Veja o que o Messias fez, e continua fazendo até mesmo
enquanto estamos aqui falando! Olhe em volta e veja quantas coisas
ameaçam separá-lo do poderoso amor que nos alcança a partir da cruz e
da ressurreição, e entenda que não passam de adversários já
derrotados. Aprenda a dançar e a cantar com a mais pura alegria,
celebrando, assim, a vitória de Deus. O fim de Romanos 8 merece ser
escrito em letras de fogo nas placas vivas de nossos corações.
Merece também uma reflexão mais cuidadosa, com suas implicações
sendo lentamente digeridas, por completo. Todo o trecho do capítulo 5
em diante refere-se a uma mesma argumentação, que trata de
segurança. Zomba-se muito disso: que ideia mais fantasiosa, dizem-nos,
essa de que você pode ter certeza do amor de Deus e de sua própria
salvação. Quanta arrogância! Quanto egocentrismo! Mas o ferrão
deixado por esse sarcasmo pode ser extraído (sem nem mesmo ter de se
mencionar a verdade de que, possivelmente, provém da inveja). A
declaração do versículo 31, de que “Deus é por nós”, soa lisonjeira
quando pensamos em exércitos indo para a guerra e reivindicando,
somente para seu lado, a divina proteção. Entretanto, soa muito
diferente quando é feita por um apóstolo que enfrentou muitas
dificuldades, perseguições, perigos e morte. Assim como em 5:1-5 e 8:17,
a declaração de que a esperança não nos decepcionará só pode ser feita
quando estamos compartilhando os sofrimentos do Messias.
Uma vez compreendido isso, o peso da carta até aqui está
concentrado, em grande parte, no significado de justificação: Deus
declara todo aquele que crê no evangelho como estando certo e
ninguém será capaz de alterar o veredicto de Deus. A justificação pela
fé, afinal de contas, é a base da garantia, e não da justificação em si. Não
somos justificados pela fé por crermos na justificação pela fé. Somos
justificados pela fé por crermos no evangelho, por crermos em Jesus
como o Senhor crucificado e ressurreto do mundo. Quando
compreendemos a justificação, ganhamos não a própria justificação, mas
a segurança. O Deus que nos chamou no evangelho já declarou que
somos membros de sua família e que não nos deixará jamais. Essa
passagem, portanto, aponta para o dia do julgamento final,
completando, assim, o amplo círculo de pensamento iniciado no
capítulo 2 e declarando que, no último dia, Deus confirmará o veredicto
já pronunciado com base na fé.
Uma das respostas revela uma dimensão da obra do Messias não
mencionada em nenhuma outra parte das cartas de Paulo (lembramos
que pode ter havido muitas coisas que Paulo tomava como certas e que
não escreveu em suas cartas para que chegassem até nós). A obra atual
de Jesus, subsequente à sua morte, à sua ressurreição e à sua exaltação,
consiste em orar intercedendo por seu povo à direita do pai (v. 35; o
mesmo tema aparece em Hebreus 7:25 e 9:24 e também em 1João 2:1, e
provavelmente estava em foco em Atos 7:55). Essa é uma ideia
reconfortante, especialmente quando a caminhada é difícil, como
muitas vezes foi para Paulo e como frequentemente também será para
aqueles que seguem e vivem por seu evangelho.
Como ocorre tantas vezes em seus escritos, de um modo geral, e em
Romanos, de forma específica, Paulo recorre à Bíblia como sua fonte
básica. No versículo 32, ele menciona a história de Abraão abrindo mão
de Isaque, seu único filho, em um quase sacrifício, episódio que muitos
judeus consideram um momento-chave na inauguração da aliança.
Deus, afirma Paulo, fez o que Abraão fez, porém numa dimensão muitas
vezes maior. Ele faz ecoar, nos versículos 33 e 34, uma das “Canções do
Servo” de Isaías (50:4-9). De um ponto de vista, ele vê Jesus como o
“Servo”; entretanto, de outro, ele considera o papel do servo como
aquele que Jesus compartilha com seus seguidores, ele próprio incluído,
na medida em que vivem seu evangelho no mundo.
A seguir, no versículo 36, ele cita Salmos 44:22, um salmo de
lamento a Deus em meio ao sofrimento. O sofrimento, nesse salmo, não
surgiu da infidelidade de Israel. Surgiu apesar do fato de Israel ter
permanecido fiel. Aqui, bem como nas passagens sobre o “Servo” em
Isaías, encontramos uma verdade profundamente arraigada no
judaísmo e aproveitada por diversos cristãos na antiguidade, de modo
que é possível sustentar-se pelo próprio Jesus: Deus salvará seu povo
não apesar de seus sofrimentos, mas através deles e até mesmo em
função deles. De algum modo, assim como em Colossenses 1:24, os
sofrimentos do povo de Deus estão incluídos nos propósitos de Deus,
não de modo a acrescentar algo àquilo que o Messias realizou de forma
única e exclusiva (v. 34), mas de modo a sobreviver a eles no mundo,
para que o amor de Deus tenha um alcance ainda maior. Aqueles que
creem nisso podem estar certos de que, “em todas essas coisas, somos
plenamente vitoriosos por meio daquele que nos amou”.
É esse amor que, por fim, retorna vez após vez, não como uma
reflexão tardia, mas como o tema principal de toda a seção. Nossos
pensamentos são lançados de volta a 5:1-11, passagem em que o amor
de Deus foi demonstrado na morte de Jesus, e tomamos consciência de
que completamos o círculo. John Donne, de fato, comparou o amor de
Deus a um círculo, em uma percepção de sua infinitude. Ele domina de
maneira vitoriosa sobre a morte e a vida igualmente, sobre os poderes
nos céus e na terra. E, uma vez que é da natureza do amor unir seu
amado a si mesmo, Paulo está convencido — e, depois de oito capítulos
de Romanos, ele deve esperar que nós também estejamos — de que
“nada em toda a criação pode separar-nos do amor de Deus no Rei
Jesus, nosso Senhor!”
 GLOSSÁRIO 
acusador, veja o satánas
Alma, veja vida
Aliança, pacto. No cerne da crença judaica, está a convicção de que o único Deus,
YHWH, que fez o mundo todo, havia chamado Abraão e sua família para
pertencer a ele de maneira especial. As promessas que Deus fez a Abraão e sua
família, e as condições que foram colocadas sobre eles como resultado, vieram a
ser vistas em termos tanto de um acordo que um rei faria com um povo subjugado
como, às vezes, de um laço matrimonial entre marido e mulher. Uma forma
comum de descrever esse relacionamento era o termo “aliança” [ou “pacto”],
incluindo, assim, tanto promessa como lei. A aliança foi renovada no monte Sinai
com a entrega da Torá; em Deuteronômio, antes da entrada na Terra Prometida;
e, de maneira mais evidente, com Davi (Salmos 89). Jeremias 31 prometeu que,
após a punição do exílio, Deus faria uma “nova aliança” com seu povo,
perdoando-os e ligando-os a ele mais intimamente. Jesus acreditava que isso se
tornaria verdade por meio da proclamação de seu reino, sua morte e ressurreição.
Os cristãos primitivosdesenvolveram essas ideias de várias maneiras, crendo que,
em Jesus, as promessas haviam sido finalmente cumpridas.
Alma, veja vida
Apóstolo, discípulo, os Doze. “Apóstolo” significa “aquele que é enviado”. Poderia
ser um termo usado para um embaixador ou representante oficial. No Novo
Testamento, algumas vezes é usado especificamente para se referir ao círculo
íntimo de Jesus, os Doze; mas Paulo vê não apenas a si mesmo, como também
vários outros fora os Doze como “apóstolos”, o critério sendo o fato de a pessoa
ter visto pessoalmente o Jesus ressurreto. A própria opção de Jesus, no sentido de
limitar doze membros, simbolizava seu plano de renovar o povo de Deus, Israel.
Após a morte de Judas Iscariotes (Mateus 27:5; Atos 1:18), Matias foi escolhido
ao tirarem a sorte para ocupar seu lugar, preservando o significado simbólico.
Durante a vida de Jesus, eles e muitos outros seguidores eram vistos como seus
“discípulos”, o que significa “pupilos” ou “aprendizes”.
Arrependimento. Significa “mudar de direção”, “voltar”, “retornar”. É amplamente
usado no Antigo Testamento e na subsequente literatura judaica para indicar
tanto uma atitude pessoal de virar as costas ao pecado como uma atitude
conjunta de virar as costas de Israel à idolatria e ao retorno a YHWH. Ambos os
sentidos estão ligados à ideia de “retorno do exílio”; se Israel deve “retornar” em
todos os sentidos, deve “retornar” para YHWH. Isso está no cerne da convocação
tanto de João Batista como de Jesus. Nos escritos de Paulo, é mais usado para
que os gentios deem as costas aos ídolos para servir ao Deus verdadeiro; também
para os cristãos pecadores que precisam retornar a Jesus.
Batismo. Literalmente, “imergir” a pessoa na água. A partir de uma tradição judaica
mais abrangente de banhos e lavagens rituais, João Batista incumbiu-se da
vocação de batizar pessoas no Jordão, não como um ritual dentre outros, mas
como um momento singular de arrependimento, preparando-os para a vinda do
reino de Deus. O próprio Jesus foi batizado por João, identificando-se com esse
movimento de renovação e desenvolvendo-o à sua própria maneira. Seus
seguidores, por sua vez, batizaram outros. Após sua ressurreição, e o envio do
espírito santo, o batismo tornou-se o sinal comum e o meio de entrada na
comunidade do povo de Jesus. Desde os tempos de Paulo, ele foi associado tanto
ao Êxodo do Egito (1Coríntios 10:2) como à morte e à ressurreição de Jesus
(Romanos 6:2-11).
Boas-novas, evangelho, mensagem, palavra. A ideia de “boas-novas”, para a qual
uma palavra mais antiga é “evangelho”, tinha dois significados principais para os
judeus do primeiro século. Primeiro, com raízes em Isaías, o termo significa as
novas da tão esperada vitória de YHWH sobre o mal e o resgate do seu povo.
Segundo, era usado no mundo romano para a posse, ou aniversário, do imperador.
Uma vez que, para Jesus e Paulo, o anúncio da chegada do reino de Deus era
tanto o cumprimento da profecia como um desafio aos atuais governadores do
mundo, “evangelho” tornou-se uma importante palavra para a mensagem do
próprio Jesus, e a mensagem apostólica a seu respeito. Paulo viu essa mensagem
em si mesma como o veículo do poder salvador de Deus (Romanos 1:16;
1Tessalonicenses 2:13).
Os quatro “evangelhos” canônicos contam a história de Jesus de tal forma que
revelam ambos esses aspectos (diferentemente de alguns outros também
chamados “evangelhos” que circularam no século 2 d.C. e nos séculos
subsequentes, os quais tendiam a remover as raízes escriturais e judaicas do feito
de Jesus e inculcar uma espiritualidade particular, em vez de uma confrontação
com os governadores do mundo). Uma vez que, em Isaías, essas boas-novas
criativas e revigorantes eram vistas como palavras poderosas do próprio Deus
(40:8; 55:11), os cristãos primitivos poderiam usar “palavra” ou “mensagem” como
mais uma versão abreviada da proclamação cristã fundamental.
Céu. Céu é a dimensão de Deus na ordem criada (Gênesis 1:1; Salmos 115:16; Mateus
6:9), ao passo que “terra” é o mundo de espaço, tempo e matéria que conhecemos.
“Céu”, desse modo, às vezes refere-se, reverentemente, a “Deus” (como na
expressão recorrente de Mateus “reino dos céus”). Em geral ocultado da visão
humana, o céu é ocasionalmente revelado ou desvendado para que as pessoas
possam ver a dimensão de Deus da vida comum (2Reis 6:17; Apocalipse 1,4–5).
Céu no Novo Testamento, portanto, não é geralmente visto como o lugar para
onde o povo de Deus vai após a morte; no final, a Nova Jerusalém desce do céu
para a terra, unindo as duas dimensões para sempre. “Entrar no reino dos céus”
não quer dizer “ir para o céu após a morte”, mas pertencer no presente ao povo
que conduz seu curso terreno pelos parâmetros e propósitos do céu (cf. a Oração
do Senhor: “na terra como nos céus”, Mateus 6:10) e que tem a garantia de
condição de membro na era por vir.
Circuncisão, circuncisos, circuncidados. Remoção do prepúcio. A circuncisão
masculina era uma marca importante de identidade para os judeus, seguindo seu
mandamento inicial a Abraão (Gênesis 17), reforçado por Josué (Josué 5:2-9).
Outros povos, como os egípcios, também circuncidavam os meninos. Uma linha
de pensamento desde Deuteronômio (30:6), passando por Jeremias (31:33), aos
Manuscritos do mar Morto e o Novo Testamento (Romanos 2:29) fala da
“circuncisão do coração” como o verdadeiro desejo de Deus, por meio da qual
alguém pode tornar-se interiormente o que o homem judeu é externamente, ou
seja, marcado como parte do povo de Deus. Em momentos de assimilação pelos
judeus da cultura ao redor, alguns judeus tentaram remover as marcas da
circuncisão (1Macabeus 1:11-15).
Cristo, veja Messias
Davi, veja filho de Davi
demônios, veja o satanás
diabo, veja o satanás
Discípulo, veja apóstolo
Escriba. Em um mundo no qual a maioria não sabia escrever, pelo menos não muito
bem, uma classe de escritores (escribas) treinados exercia uma função importante
na confecção de contratos de negócios, casamentos etc. Portanto, alguns
tornaram-se especialistas em lei, e é bem provável que também fariseus, embora
ser escriba fosse compatível com várias posições políticas e religiosas. O trabalho
de um escriba cristão era de vital importância para a cópia dos primeiros escritos
cristãos, particularmente as histórias sobre Jesus.
Era por vir, veja era presente
Era presente, era por vir, vida eterna. Nos tempos de Jesus, muitos pensadores
judeus dividiam a história em dois períodos: “a era presente” e “a era por vir” — a
última sendo o tempo em que YHWH finalmente agiria de forma decisiva para
julgar o mal, resgatar Israel e criar um novo mundo de paz e justiça. Os cristãos
primitivos acreditavam que, ainda que as bênçãos completas da era por vir
estivessem no futuro, essa era já havia começado com Jesus, especialmente com
sua morte e ressurreição, e que, pela fé e o batismo, eles já poderiam adentrá-la.
“Vida eterna” não significa simplesmente “existência contínua, sem-fim”, mas “a
vida da era por vir”.
Especialistas na lei, advogados, veja fariseus
espírito, veja vida, espírito santo
espírito santo. [Eu sempre uso o “e” em caixa baixa para “espírito”, não por ter uma
visão “inferior” da terceira pessoa da Trindade, e sim porque, no primeiro século, o
uso da palavra pneuma — comum e polissêmica — pelos cristãos primitivos tinha
de “encontrar” seu próprio caminho sem tal ajuda.] Em Gênesis 1:2, o espírito é a
presença e o poder de Deus na criação, sem que Deus seja identificado com a
criação. O mesmo espírito entrou nas pessoas, de forma especial nos profetas,
capacitando-os a falar e agir por Deus. Em seu batismo por João Batista, Jesus
foi especialmente provido do espírito, resultando em sua memorável carreira
pública (Atos 10:38). Após a sua ressurreição, seus seguidores foram, por sua vez,
cheios pelo mesmo espírito (Atos 2), agora identificado como o próprio espírito
de Jesus: o Deus criador estava agindo novamente, refazendo o mundo e a eles
também. O espírito os capacitou a viver uma santidade que a Torá não podia
capacitar,saibam, minha querida família, que, muitas vezes, fiz
planos de ir até vocês; mas, desde então, alguma coisa sempre se interpõe no
caminho. Quero produzir algum fruto entre vocês, como também tenho feito entre
as outras nações.
Na primeira vez que fui a Roma, havia muito a ser visto. Eu já ouvira
falar de muitos locais clássicos, das edificações espetaculares, dos
palácios antigos, do Fórum e assim por diante. No entanto, também
havia muitas surpresas. Uma em particular, e que ainda considero
extraordinária, é que a parte central da cidade está sujeita a grandes
inundações. O rio Tibre corta essa parte da cidade com suas curvas e
guinadas, sendo que vários pontos da cidade se situam em partes mais
baixas e vulneráveis. Muitas construções junto ao rio apresentam
marcas que revelam a altura que as diversas inundações — e já houve
muitas — atingiram. Por que, ainda me pergunto, eles construíram em
uma área de tamanha periculosidade?
Na antiga Roma, assim como hoje em dia, é claro, os ricos viviam no
alto das colinas, as famosas sete colinas sobre as quais a cidade foi
estabelecida. O palácio imperial original, onde o imperador Augusto
viveu na época em que Jesus nasceu, ocupa a maior parte de uma delas.
Nero era o imperador na época em que Paulo estava escrevendo essa
carta, e seu palácio espetacular está situado no topo de outra colina, do
outro lado do Fórum. Mas, àquela época, assim como agora, os pobres
viviam nas áreas em volta do rio e, não em menor medida, do outro lado
da margem do rio, cruzando em frente ao principal centro da cidade. E
era lá que a maior parte dos primeiros cristãos romanos morava. É
muito provável que, na primeira vez que essa importante carta foi lida
em voz alta, isso tenha acontecido em um recinto lotado de alguma casa
no distrito baixo e mais pobre, onde, atravessando para o outro lado do
rio, situava-se a sede do poder.
Paulo deseja ir até lá para estar com eles. Como de praxe, o início da
carta, depois da plataforma de lançamento em si, é um relato a respeito
do que Paulo tem orado sempre que os tem em mente. E sua principal
oração é de agradecimento a Deus: ele agradece ao criador dos céus e
da terra por haver uma comunidade em Roma, debaixo do nariz de
César, que se submete a Jesus como o Senhor, uma comunidade que
compreendeu a visão de um reino diferente e de uma nova esperança, e
que compartilha uma nova fé. Isso está no centro de tudo, como
veremos: a fé, a crença e a confiança no Deus que ressuscitou Jesus
dentre os mortos (4:24 e 1:4). Era preciso ter uma fé desse tipo para ser
cristão tanto no mundo antigo como no mundo moderno, e Paulo sabia
que eles a tinham em abundância.
Ele sabe disso, em parte, porque vários cristãos que estavam em
Roma à época eram seus amigos. Alguns eram até mesmo seus parentes,
conforme descobrimos nas saudações ao fim da carta. As viagens eram,
em termos comparativos, algo fácil no mundo de Paulo, e as pessoas iam
e vinham a negócios ou por questões de família, circulando no mundo
mediterrâneo. Contudo, a carta para Roma é incomum em um aspecto
específico: não foi Paulo quem plantou aquela igreja. De acordo com
antigas memórias relatadas no século 2, Pedro foi a Roma depois de
escapar por pouco de Jerusalém (Atos 12), sendo o primeiro a anunciar
a uma capital surpresa, provavelmente com uma considerável
comunidade judaica, que Deus, afinal, enviara o Messias de Israel e
que, aquele homem, Jesus de Nazaré, ressuscitara dentre os mortos a fim
de ser o Senhor do mundo. Portanto, Paulo se encontra em uma posição
um tanto delicada ao escrever para a igreja em Roma. Ele não deseja
sugerir que esteja faltando alguma coisa a eles. Ao contrário, agradece a
Deus por eles e por sua fé, e demonstra seu anseio em se reunir com eles,
de modo a ser encorajado pela fé que eles têm, assim como eles,
conforme Paulo crê, serão encorajados pela fé que ele mesmo possui.
Não devemos imaginar, obviamente, que, quando falamos na “igreja
de Roma”, já houvesse um grande prédio com centenas de cristãos indo
e vindo em suas cercanias. Esqueça a Basílica de São Pedro e o
Vaticano! O capítulo 16 nos oferece um retrato melhor daquela
realidade: um grupo de casas nas quais os cristãos podiam reunir-se para
adoração e oração, ensino e o partir do pão. É provável que não
houvesse, ao todo, muito mais de uma centena de cristãos, em uma
cidade de pelo menos um milhão de habitantes. Talvez fosse até menos
que isso. Havia muito trabalho ainda para um evangelista realizar.
Muito fruto ainda a ser produzido (v. 13).
É mais provável também que, nas diferentes casas, se reunissem
grupos de cristãos de origens e culturas distintas. Como veremos, Paulo
precisou abordar certos assuntos que podem ter causado muita tensão
entre eles, com muito cuidado. Há, porém, um fator específico que
precisamos mencionar neste ponto.
Cerca de seis ou oito anos antes de Paulo escrever, houvera alguns
problemas entre os judeus em Roma. É possível, inclusive, que isso
tenha acontecido pela chegada do evangelho cristão aos grupos de
judeus na cidade. No entanto, Cláudio, o imperador à época, já não
suportava mais isso (afirmar que os romanos não gostavam muito dos
judeus seria colocar a coisa de forma um tanto suave) e expulsou a
comunidade de judeus da cidade. Quando Paulo chegou a Corinto,
alguns de seus primeiros amigos se encontravam entre aqueles que
deixaram Roma por essa razão (Atos 18:2). No entanto, com a morte de
Cláudio, em 54 d.C., e a ascensão de Nero, os judeus receberam
permissão para retornar.
Não é preciso ter muita criatividade para imaginar como isso pode
ter afetado a pequenina igreja cristã. Na realidade, nossa imaginação
pode ser mantida na rota dos acontecimentos pelas coisas que vão
surgindo depois na própria carta de Romanos. Os romanos pagãos,
como já dito, não se importavam com os judeus. Eles zombavam e
desconfiavam deles. Do ponto de vista romano, o cristianismo estava
fadado a ser visto como duplamente estranho e indesejável: um tipo de
religião judaica que deixava os demais judeus zangados! Portanto, se,
como parece ser o caso, nos últimos anos do domínio de Cláudio, a
igreja em Roma era composta inteiramente de não judeus (“gentios” é a
palavra que usamos com mais frequência), seria fácil para eles suporem
que a nova mensagem tinha — por assim dizer — deixado o mundo
judaico para trás. Deus fizera algo novo. Israel pode ter sido o lugar
onde tudo começou, porém agora isso fora deixado para trás. Todas
aquelas ordenanças e regras, a lei com seus tabus, restrições de
alimentação, dias santos especiais... tudo isso sumira. Agora, o
cristianismo seria para o mundo dos gentios. É assim que devem ter
pensado.
Então, os judeus retornaram — inclusive os cristãos judeus. E
alguns desses cristãos judeus, encontrando-se entre os amigos mais
íntimos de Paulo, teriam compartilhado essa visão robusta de como
Deus cumprira a lei judaica através do Messias e também a
transcendera, abrangendo os gentios, igualmente, em seu povo
renovado. No entanto, outros cristãos judeus levantariam profundas
suspeitas quanto a isso: não há dúvida de que Deus dera a lei a Moisés!
Isso não quer dizer que todas essas palavras são válidas para todo o
sempre? Supondo que eles se encontrassem morando no entorno de
uma das igrejas situadas nas casas, constituídas, em sua maioria, por
cristãos gentios, que celebram sua liberdade da lei, como se sentiriam?
Cheios de suspeitas alimentadas pelas tensões sociais em meio à mistura
de povos cosmopolitas de Roma, isso poderia transformar-se facilmente
em hostilidades.
Paulo aborda esse assunto passo a passo nesta carta. É importante
que, ao longo de todo o caminho, tenhamos em mente um panorama
histórico da igreja dos romanos e de suas questões, em vez de ficarmos
imaginando uma igreja ao estilo das nossas. Descobriremos outro
ponto-chave no capítulo 15. Paulo espera que Roma possa vir a servir
de base para uma nova fase de sua missão, percorrendo toda a parte
ocidental do Mediterrâneo até chegar à Espanha. Esse, em parte, é o
motivo peloproduzindo “frutos” em suas vidas, dando a eles “dons” com os quais
pudessem servir a Deus, ao mundo e à igreja, e assegurando-os da ressurreição
futura (Romanos 8; Gálatas 4—5; 1Coríntios 12—14). Desde muito cedo no
cristianismo (Gálatas 4:1-7), o espírito tornou-se parte da nova definição
revolucionária do próprio Deus: “aquele que envia o filho e o espírito do filho.”
Essênios, veja Manuscritos do mar Morto
Eucaristia. Refeição na qual os cristãos primitivos, e os cristãos desde então,
obedeciam à ordem de Jesus de “fazer isto em memória de mim” na Última Ceia
(Lucas 22:19; 1Coríntios 11:23-26). A palavra eucaristia vem do grego para “ação
de graças”; isso significa, basicamente, “a refeição de gratidão”, e rememora as
muitas ocasiões em que Jesus tomou o pão, agradeceu por ele, partiu-o e o deu às
pessoas (Lucas 24:30; João 6:11). Outras frases antigas para a mesma refeição são
“a Ceia do Senhor” (1Coríntios 11:20) e “o partir do pão” (Atos 2:42).
Posteriormente, ela veio a ser chamada “a Missa” (a partir da palavra latina no
final do culto, que significa “enviado”) e “Santa Comunhão” (Paulo fala de
“compartilhar” ou de ter “comunhão” no corpo e sangue de Cristo). Posteriores
controvérsias teológicas sobre o significado preciso das várias ações e dos
elementos da refeição não deveriam obscurecer sua centralidade na vida cristã
primitiva, de modo que sua importância vital continua até hoje.
Evangelho, veja boas-novas
Exílio. Deuteronômio (29–30) alertou que, se Israel desobedecesse a YHWH, ele
enviaria seu povo para o exílio, mas que, se eles, então, se arrependessem, ele os
traria de volta. Quando os babilônios saquearam Jerusalém e levaram as pessoas
cativas, profetas como Jeremias interpretaram isso como o cumprimento dessa
profecia e fizeram mais promessas sobre quanto tempo duraria o exílio (setenta
anos, de acordo com Jeremias 25:12; 29:10). Certamente, os exilados começaram a
retornar no final do século 6 (Esdras 1:11). Entretanto, o período pós-exílico foi
uma grande decepção, uma vez que o povo ainda estava subjugado por
estrangeiros (Neemias 9:36); e, no auge da perseguição pelos sírios, Daniel 9:2,24
falou do “verdadeiro” exílio, que duraria não setenta anos, mas setenta semanas de
anos, ou seja, 490 anos. A ânsia pelo verdadeiro “retorno do exílio”, quando as
profecias de Isaías, Jeremias e outros seriam cumpridas, e pela redenção da
opressão pagã adquirida continuou a caracterizar muitos movimentos judeus, e
era um tema principal na proclamação de Jesus e de seus chamados ao
arrependimento.
Êxodo. O Êxodo do Egito aconteceu, de acordo com o livro de mesmo nome, sob a
liderança de Moisés, após longos anos em que os israelitas foram escravizados
nesse lugar (de acordo com Gênesis 15:13, isso era parte da promessa de Deus
firmada com Abraão). Isso demonstrou, a eles e ao Faraó, rei do Egito, que Israel
era o filho especial de Deus (Êxodo 4:22). Eles, então, vagaram pelo Sinai por
quarenta anos, guiados por Deus, em uma coluna de nuvem e fogo; anteriormente,
eles haviam recebido a Torá no próprio monte Sinai. Finalmente, após a morte de
Moisés e sob a liderança de Josué, eles atravessaram o Jordão, entraram e,
finalmente, conquistaram a Terra Prometida de Canaã. Esse evento, comemorado
anualmente na Páscoa e em outras festas judaicas, deu aos israelitas não apenas
uma lembrança poderosa do que os havia tornado um povo, mas também uma
forma e um conteúdo especial à sua fé em YHWH não apenas como criador, mas
também como redentor; e, nas subsequentes escravizações, particularmente o
exílio, eles procuravam mais uma redenção que fosse, de fato, um novo Êxodo.
Provavelmente nenhum outro evento passado dominou tanto a imaginação dos
judeus do primeiro século; entre eles, os cristãos primitivos, seguindo a liderança
do próprio Jesus, continuamente referiam-se ao Êxodo para dar forma e sentido
aos seus próprios eventos críticos, mais especialmente à morte e à ressurreição de
Jesus.
Fariseus, especialistas da lei, advogados, rabinos. Os fariseus eram um grupo de
pressão judaico não oficial mas poderoso durante a maior parte dos primeiros
séculos a.C. e d.C. Amplamente conduzido por leigos, ainda que contendo alguns
sacerdotes, seu objetivo era purificar Israel por meio da intensa observância da lei
judaica (Torá), desenvolvendo suas próprias tradições a respeito do significado e
da aplicação precisos das Escrituras, seus próprios padrões de oração e outras
devoções, além de suas próprias estimativas da esperança nacional. Embora nem
todos os conhecedores da lei fossem fariseus, a maioria dos fariseus conhecia a lei.
Eles efetuaram uma democratização da vida de Israel, já que, para eles, o
estudo e a prática da Torá eram equivalentes à adoração no templo — embora eles
fossem inflexíveis em impor suas próprias regras para a liturgia do templo, apesar
da má vontade do sacerdócio (frequemente composto por saduceus). Isso lhes
permitiu sobreviver a 70 d.C. e, absorvendo-se no movimento rabínico inicial,
desenvolver novas maneiras daí por diante. Politicamente, eles defendiam as
tradições ancestrais e estavam à frente de vários movimentos de revolta contra a
soberania pagã e os líderes judeus transigientes. Nos dias de Jesus, havia duas
escolas distintas: a mais rígida, de Shamai, mais inclinada para as revoltas
armadas; e a mais tolerante, de Hilel, pronta para viver e aceitar o modo de viver
dos outros.
Os debates de Jesus com os fariseus são tanto uma questão de agenda e
orientação política (Jesus se opunha veementemente ao separatismo nacionalista
deles) como de detalhes sobre teologia e piedade. Saulo de Tarso era um zeloso
fariseu de direita, presumivelmente um shamaíta até a sua conversão.
Após a desastrosa guerra de 66—70 d.C., essas escolas de Hilel e Shamai
continuaram com penosos debates sobre a orientação política apropriada.
Seguindo o posterior desastre de 135 d.C. (a fracassada revolta de Bar-Kochba
contra Roma), suas tradições foram mantidas pelos rabinos, que, embora
olhassem os fariseus mais antigos para se inspirar, desenvolveram uma devoção
piedosa baseada na Torá, com a santidade e a pureza pessoal tomando o lugar de
programas políticos.
Fé. A fé no Novo Testamento compreende uma ampla área de confiança e
confiabilidade humana, resultando em amor de um lado do espectro e em lealdade
do outro. Dentro do pensamento judaico e cristão, a fé em Deus também inclui
crença, aceitando certas coisas como verdadeiras sobre Deus e a forma como agiu
no mundo (tirou Israel do Egito; ressuscitou Jesus dos mortos). Para Jesus, a “fé”
com frequência parece significar “reconhecer que Deus está decisivamente em
ação para trazer o reino por meio de Jesus”. Para Paulo, “fé” é tanto a crença
específica de que Jesus é Senhor e de que Deus o ressuscitou dos mortos
(Romanos 10:9) como a resposta do grato amor humano ao soberano amor divino
(Gálatas 2:20). Essa fé, para Paulo, é a única marca distintiva de pertencimento
ao povo de Deus em Cristo, marcando-o de um modo que a Torá e as obras que
ela determina jamais poderão fazer.
filho de Davi. Um título alternativo e não frequente para o Messias. As promessas
messiânicas do Antigo Testamento concentram-se, muitas vezes, de maneira
específica, no filho de Davi, como, por exemplo, em 2Samuel 7:12-16 e em Salmos
89:19-37. José, marido de Maria, é chamado “filho de Davi” pelo anjo em Mateus
1:20.
filho de Deus. Originalmente, um título dado a Israel (Êxodo 4:22) e ao reino
davídico (Salmo 2:7); usado também para seres angelicais antigos (Gênesis 6:2).
No período do Novo Testamento, já era usado como um título messiânico, como,
por exemplo, nos Manuscritos do mar Morto. Tanto naquele momento como
quando foi usado a respeito de Jesus nos evangelhos (Mateus 16:16), significa ou
reforça “Messias”, sem o significado posterior de “divino”. Porém, em Paulo, a
transição para o significado pleno (aquele que era igual a Deus e foi enviado por
ele para se tornar homem e se tornar o Messias) já era aparente, sem perder o
significado do próprio “Messias”qual ele deseja tanto que a igreja romana compreenda o
evangelho por ele pregado da forma mais completa possível. Nesse
momento, porém, o mais importante para ele é compartilhar que está
orando pela igreja em Roma. Ele os sustenta dia após dia diante de
Deus, agradecendo ao Senhor pela fé firme deles, orando para que seja
capaz de ir visitá-los e de trabalhar entre eles antes de prosseguir em
sua missão. Aqueles entre nós chamados a ser pastores e mestres na
igreja devem atentar para isso com muito cuidado. Quando planejamos
visitar alguém ou alguma cidade, a melhor preparação possível é
orarmos antes por uma oportunidade de nos encontrar com as pessoas,
bem como pelo que Deus vai realizar na vida delas.
ROMANOS 1:14-17
BOAS-NOVAS, SALVAÇÃO E A JUSTIÇA DE DEUS
14Sou devedor tanto de bárbaros como de gregos, vejam vocês; tanto de sábios
como de tolos. 15Esse é o motivo de eu estar ansioso por anunciar as boas-novas a
vocês também em Roma. 16Não me envergonho das boas-novas, pois elas são o
poder de Deus trazendo salvação a todos os que creem — primeiro, para o judeu e,
também, de igual modo, para o grego. 17Isso porque a justiça pactual de Deus é
revelada por meio delas, de fidelidade a fidelidade. Como está escrito na Bíblia: “O
justo viverá pela fé.”
Quando eu ainda era menino, uma de minhas ocupações regulares nos
feriados era montar aeromodelos de plástico. Lembro-me da emoção de
retirar as pecinhas da caixa, destacando-as com todo o cuidado da haste
que as prendia e, em seguida, examinar o esquema, para ver onde cada
uma delas se encaixava. Era algo semelhante àqueles diagramas
“explodidos” que exibem a mecânica dos automóveis, com linhas
pontilhadas saindo da figura do modelo completo e com figuras menores
das peças individuais, inclusive das bem pequeninas ao fim de cada uma
das linhas.
Também era importante saber a ordem correta de encaixe de todas
as peças. Primeiro, vinha a fuselagem, em seguida as asas, depois os
suportes e... finalmente, temos tudo junto. Experimente fixar as peças
antes da hora e você acabará frustrado, todo coberto de cola e apenas
com metade de um aeroplano.
Existem diversas passagens nos escritos de Paulo que me fazem
lembrar esse tipo de diagrama, e essa aqui é uma delas. O único
problema, claro, é que temos isso de forma invertida: aqui está um
aeroplano completo (quatro versículos do escrito mais denso de Paulo
envoltos em emocionantes e poderosos termos técnicos). Primeiro,
precisamos pegar as peças e observar como cada uma delas funciona.
Somente então, poderemos reuni-las e verificar se podem voar.
Mas, antes, vamos dar uma olhada na passagem por inteiro, a fim de
compreender seu objetivo. Paulo está explicando, em maiores detalhes,
a razão de querer viajar para Roma. Como parte dessa explicação,
também está mostrando em mais detalhes o efeito do evangelho de que
falou nos versículos de 1 a 7. Ele vai a Roma como um arauto do
evangelho de Deus. Isso é parte de seu trabalho, porque o evangelho é
para todos. Ele não precisa envergonhar-se dele, porque é o poder de
Deus para a salvação das pessoas; e ele faz isso revelando a justiça de
Deus, o antigo plano de Deus recolocar o mundo e os seres humanos em
ordem, endireitá-los.
Mas por que Paulo diria para “não se envergonharem” do
evangelho? No mundo ocidental atual, as pessoas frequentemente
sentem vergonha do evangelho cristão. Caçoam tanto dele, fazem
tantas zombarias e demonstram tanta rejeição nos jornais, nos
programas de rádios e nos canais de TV que muitos cristãos acabam
concluindo que o melhor a ser feito é manter sua fé em segredo. É óbvio
que é exatamente isso que o mundo secular triunfalista à nossa volta
deseja. Entretanto, nos dias de Paulo, havia um desafio diferente. Como
já vimos, seu mundo estava sob domínio, e a igreja romana em
particular estava dominada por uma cultura centrada em uma só cidade
e em um só homem. César reivindicava o governo do mundo. O
evangelho de Deus declarava que esse domínio pertencia a Jesus. O que
um cristão deveria fazer? Praticar sua fé de forma privada caso
ofendesse alguém? Certamente que não! Paulo devia ter em mente uma
passagem como Salmos 119:46. “Falarei de seus decretos diante de reis
e não me envergonharei.” Essa era sua intenção. “Ao nome de Jesus”,
escreveu ele em outra carta, “todo joelho se dobrará” (Filipenses 2:10).
Isso incluía o próprio César.
Paulo pode estar, de fato, provocando gentilmente o orgulho de
Roma. Os gregos, que haviam dominado o mundo séculos antes dos
romanos, haviam dividido o mundo em dois: os gregos e os outros. Eles
chamavam os outros de “bárbaros”, talvez porque a linguagem deles
soasse aos gregos como resmungos sem sentido em comparação à suave
música da língua grega. E, para um grego autêntico, os romanos, com
seu latim, eram contados entre os bárbaros. Isso mesmo, declara Paulo
no versículo 14, eu também tenho obrigação para com eles.
No entanto, é com uma divisão diferente de mundo que ele se ocupa
na maior parte das vezes nessa carta. Os judeus também dividiam o
mundo em dois: os judeus e os outros. Algumas vezes, eles se referiam
aos outros como “as nações”, algumas vezes como “os gentios” e, outras
vezes, como aqui e no capítulo 2, como “os gregos”, porque, até onde
sabiam, o restante do mundo falava grego. (Roma, com suas diversas
populações de imigrantes, contava com um grande número de pessoas
que falavam grego, incluindo a maior parte dos cristãos mais recentes.)
Uma das mais explosivas características do evangelho de Paulo,
enraizado como era nas Escrituras e nas tradições judaicas, é que ele
rompia com as barreiras entre judeus e gregos, declarando que o amor e
o poder salvífico do único Deus estavam disponíveis a todos. Isso é
central nessa pequena passagem, e continua sendo central por toda a
carta.
Agora chegou o momento de fazermos o diagrama “explodido” das
expressões-chave dos versículos 16 e 17, verificando, então, o que cada
pedacinho significa e como tudo se encaixa.
Começamos com as boas-novas como o poder de Deus. Paulo já
falara do poder de Deus ao ressuscitar Jesus dentre os mortos,
demonstrando, assim, que ele era (como, de fato, é) o filho de Deus (v.
4). Agora ele volta a falar de poder, mas de um poder que prossegue
operando onde quer que pessoas como Paulo, ou qualquer uma com a
mesma comissão nos dias atuais, declarem que Jesus é o Senhor. Na
realidade, Paulo descobriu, após anos de experiência, que, quando se
anuncia Jesus como o Senhor crucificado e ressurreto do mundo, algo
acontece: o novo mundo gerado quando Jesus morreu e ressuscitou
torna-se vida nova nos corações, nas mentes e nos estilos de vida dos
ouvintes, ou ao menos de alguns deles. Isso não é mágica, embora
algumas vezes tenha parecido ser algo assim. É o poder de Deus em
operação, mediante o anúncio fiel de seu filho.
O resultado é a “salvação”. Essa é uma palavra tão familiar que
podemos tomar como certo que já conhecemos seu significado,
considerando-a, assim, assunto resolvido. O significado que, em geral,
lhe atribuímos é o de que “vamos para o céu quando morrermos”.
Porém, o Novo Testamento, em geral, e Paulo, em particular, não têm
praticamente nada a dizer a esse respeito. Sim, é claro que eles creem
que Deus vai resgatar todo o seu povo da morte. A morte é um inimigo
já derrotado, e sua corrupção e decomposição não terão a última
palavra. Isso, entretanto, não significa que todos nós acabaremos em um
céu, sem um corpo, mas, sim, que Deus resgatará toda a criação da
corrupção e da decomposição — e também dará a todo o seu povo novos
corpos, assim como o corpo ressurreto de Jesus, a fim de vivermos, de
forma gloriosa, em seu novo mundo. Essa é uma das direções que uma
das linhas de argumentação da carta toma, como uma rápida olhadela
no capítulo 8 pode confirmar. Contudo, essa “salvação”, como Paulo
sempre deixa claro, não está somente no futuro, embora lá é que será
vista em sua glória plena. Ela abre seu caminho já aqui no presente, ao
resgatar as pessoas de um estado pecaminoso e ao resgatar o povode
Deus de seus problemas e também de perseguições. A “salvação” é tanto
uma realidade presente como uma esperança futura. De fato, quando
essa salvação irrompe na vida de alguém, torna-se um evento em si
mesmo, através do qual essa pessoa pode olhar para trás, para seu
passado. Ela foi salva, está sendo salva e será salva.
Essa salvação é para todo aquele que crê. A mensagem do
evangelho — anunciando que o Jesus crucificado e ressurreto é o
Senhor do mundo — necessita ser crida. A palavra de Paulo para “crer”
e sua palavra para “fé” são basicamente as mesmas e, juntas, significam
mais do que nossas palavras “crer” e “fé” parecem significar. Se alguém
pergunta “Está chovendo?” e eu respondo “Creio que sim”, estou
introduzindo um elemento de dúvida: será que, de fato, eu sei que está
chovendo? É claro que a fé cristã envolve a compreensão de coisas que
não podemos ver ou comprovar. Entretanto, a fé é o oposto da dúvida, e
não apenas do que vemos. A fé implica uma convicção profunda de que
Deus ressuscitou Jesus e de que ele é, de fato, o Senhor do mundo (veja
4:24 e 10:9). Essa convicção é a primeira coisa que ocorre quando a
mensagem do evangelho atinge em cheio, no poder do espírito, o
coração do ser humano. E, com essa convicção, vem a promessa de Deus
(um dos principais temas dessa carta) de que aqueles que creem no
evangelho são declarados “certos” com efeitos imediatos, em antecipação
ao dia do juízo final (veja 3:21-31). É por esse motivo que o
pertencimento ao povo de Deus está disponível, em termos
precisamente idênticos, para “o judeu primeiro e também para o grego”.
O versículo 17 contém — enquanto prosseguimos com a perspectiva
“explodida” dessa passagem — a ideia mais explosiva de todas. Os
profetas e os salmos sempre falaram da “justiça” de Deus: Deus é o
criador do mundo e anseia por endireitar o mundo (como costumamos
dizer) em ordem. Suas palavras para “justiça”, e outras similares, como
“justificar” e a palavra para “certo” e outras como “justo”, “retidão” e
assim por diante, procedem da mesma raiz. Infelizmente, assim como
“crer” e “fé”, não há uma forma fácil de expressar isso na tradução. Parte
da arte de ler Romanos reside em aprendermos a manter as demais
palavras juntas na mente quando deparamos com uma das palavras
desse grupo.
Na realidade, a justiça de Deus é, no fundo, um conceito de fácil
assimilação. Se Deus criou o mundo e ainda o governa, então por que
acontecem coisas ruins? Será que Deus fará algo a esse respeito? A
resposta bíblica é que sim, é claro que Deus fará o que se requer para
colocar tudo em ordem, ou seja, endireitar tudo, mas é aqui que a
situação se complica. Deus não faz o que nós esperamos. Ele chama uma
única família e entra em um pacto amoroso e cativante com eles. Esse
acordo, em geral denominado “aliança”, não significa que eles sejam as
únicas pessoas que Deus ama ou a quem deseja resgatar. Antes, quer
dizer que a maneira que Deus escolheu trazer sua justiça salvífica ao
mundo, o modo como tenciona endireitar tudo, se dá mediante o
chamado dessa família, o povo de Abraão, a fim de serem os portadores
de seu plano de resgate para o restante do mundo também. A aliança de
Deus com Abraão sempre teve como propósito servir de meio através do
qual o Deus, criador, resgataria o mundo inteiro do mal, da corrupção e
da morte. Deus está decidido a manter seu propósito e sua promessa, de
modo a levar sua justiça restauradora ao mundo inteiro. Afinal de
contas, é isso que significa a “retidão de Deus” ou a “justiça de Deus”.
Traduzi a palavra “justiça” aqui como “justiça pactual de Deus” ou
“justiça da aliança de Deus”, de modo a manter todos os conceitos
reunidos. Como se trata de um dos temas centrais da carta, é vital
compreendê-lo com toda a clareza.
Quando o evangelho de Jesus é anunciado, Paulo declara que, por
meio dele, podemos entender, afinal, como a “justiça” de Deus, a
“fidelidade pactual” ou, de acordo com o palavreado mais antigo, sua
“justiça” ou “retidão”, foi revelada. Foi desse modo que Deus endireitou o
mundo, declara a mensagem do evangelho, referindo-se a Jesus, e é desse
modo que Deus endireitará você também.
Mais uma vez, Paulo insiste — o fato de ele repetir a mesma ideia
duas vezes, em dois versículos contíguos, demonstra quanto isso é
importante — que, para poder beneficiar-se do desvelar da justiça
pactual de Deus, de sua fidelidade em Jesus com relação às promessas
feitas há muito tempo, é necessário que você mesmo tenha fé. Deus tem
sido fiel a seus propósitos e promessas. Caso você queira beneficiar-se
disso, precisa responder com confiança sincera, aquela “obediência pela
fé” de que ele fala no versículo 5. E, para reforçar esse conceito, Paulo
cita uma passagem-chave do profeta Habacuque (2:4), que enfrentou
uma grande catástrofe sobre Israel e precisou aprender a se manter
firme e a confiar em Deus, a ter fé em sua fidelidade. Essa é a postura
que, agora, Paulo insta seus leitores a ter. Em Jesus, o Messias, Deus se
mostrou fiel aos propósitos e às promessas de sua aliança, e aqueles que
crerem nas boas-novas a respeito de Jesus descobrirão que essa
fidelidade estende seus braços, envolvendo-os com uma salvação que
jamais lhes poderá ser retirada. Ao reunirmos novamente essa passagem
por inteiro, ela se apresenta, aos nossos olhos, no cabeçalho dessa carta
maravilhosa, como um pequeno resumo de uma das mais importantes
verdades já ouvidas por ouvidos humanos.
ROMANOS 1:18-23
OS SERES HUMANOS REJEITAM DEUS E ABRAÇAM A
CORRUPÇÃO
18Pois a ira de Deus se revela dos céus contra toda impiedade e toda injustiça
cometida por pessoas que usam a injustiça com o propósito de suprimir a verdade.
19O que pode ser conhecido de Deus, vejam vocêm, está claro para eles, uma vez
que Deus revelou a eles. 20Desde que o mundo foi criado, seu poder invisível e sua
deidade são vistos e conhecidos nas coisas que ele criou. Como resultado, eles não
têm desculpa: 21conheciam a Deus, porém não o honraram como Deus, nem lhe
deram graças. Em vez disso, aprenderam a pensar de forma inútil, e seu coração sem
sabedoria tornou-se obscuro. 22Eles se declaram sábios, mas se tornaram tolos.
23Eles trocaram a glória do Deus imortal pela semelhança da imagem de seres
humanos mortais — e de pássaros, animais e répteis.
Acabei de observar uma grande faia sendo abatida. Foi uma tarefa
difícil e perigosa para os envolvidos, e fiquei fascinado ao ver como eles
executavam o trabalho, com cordas e outros equipamentos de escalada,
além de motosserras. No entanto, eu estava ainda mais interessado em
ver o que só foi possível depois que seu enorme tronco foi ao chão e
estava sendo seccionado em partes menores, a fim de possibilitar seu
transporte.
A árvore teve de ser derrubada, assim nos disseram, porque suas
raízes estavam podres. Olhando para a árvore, não seria possível
concluir que houvesse algo de tão errado com ela. Mas, caso alguém
olhasse bem de perto os galhos mais altos, seria possível notar alguns
sinais de problemas em sua saúde. Havia uma boa quantidade de fungos
crescendo em volta da base, mas (assim eu pensava) muitas árvores têm
isso, não? Era uma árvore grande, com cerca de duzentos anos, e, em
sua maior parte, parecia ótima. Nada disso, disseram os especialistas,
aquele fungo está matando o complexo de suas raízes. Mais um ano, ou
algo em torno disso, e as raízes não teriam mais forças para sustentar a
árvore contra fortes ventanias. A situação podia oferecer risco.
Portanto, ela teria de vir abaixo.
Eu ainda não estava totalmente convencido disso. Ques-tionava-me
se eles não estariam fazendo uma tempestade em copo d’água. Foi
então, à medida que as serras iam realizando seu trabalho implacável,
que pude ver o interior do tronco. O fungo já havia tomado cerca de um
metro de seu diâmetro. Os cinco a sete centímetros externos ainda eram
de madeira sólida, saudável e forte. No entanto, o restante do tronco
estava inteiramente salpicado por uma espécie de mancha escura. A
deterioração nas raízes já começara a se espalharem seu interior,
atingindo cerca de três a cinco metros de altura. E não tardaria a
infectar toda a árvore. O que parecia ser, aos olhos de um observador
comum, uma velha porém bela e sólida faia acabaria se transformando
em um grave acidente que estava prestes a acontecer.
A explicação de Paulo para a razão de o evangelho, a revelação da
justiça e a salvação de Deus serem urgentemente necessários é que a
árvore está totalmente apodrecida, desde a sua essência, e pode vir a
desabar de modo trágico a qualquer instante. A árvore em questão é a
raça humana que se colocou em uma situação de rebelião contra seu
criador, em todos os níveis. Os seres humanos foram projetados para
ocupar o centro do plano de Deus na administração de sua criação: isso
é parte do que significa ter sido feito “à imagem de Deus” (Gênesis
1:26-27). Por isso, quando os seres humanos seguem o caminho errado,
o mundo inteiro acaba adoecendo. Sabemos que Paulo tem essa visão
mais ampla da salvação pelo clímax de Romanos 8. Por enquanto,
contudo, ele se concentra em apresentar o cerne do problema: a rebelião
dos seres humanos. Do versículo 18 ao 2:16, ele desenvolve uma
acusação contra a raça humana de modo geral: a humanidade está
deteriorada em sua essência, e o desastre final a que isso conduzirá
(1:32; 2:5; 2:16) é antecipado pelos sinais de sua corrupção,
desintegração e decadência, que nos são visíveis, por assim dizer, nos
galhos mais altos (1:24-31). Nossa passagem atual, dos versículos 18 a
23, começa, acertadamente, falando do apodrecimento das próprias
raízes.
Os seres humanos foram feitos para conhecer, adorar, amar e servir
ao Deus criador. Essa sempre foi e sempre será a maneira saudável e
frutífera de o ser humano viver. Mas isso requer, é claro, certo tipo de
humildade: uma disposição para deixar Deus ser Deus, de honrá-lo e
celebrá-lo como tal, bem como de reconhecer seu poder no mundo e
sobre o mundo. Paulo afirma que os seres humanos não perderam essa
percepção do poder e da deidade de Deus, mas declara que escolheram
suprimir essa verdade em vez de honrar a Deus e lhe demonstrar
gratidão. É importante lembrar essa passagem, já que Paulo vai se
referir a ela mais uma vez ao descrever, no capítulo 4, como a fé de
Abraão e a fé dos cristãos conferem a Deus essa honra e essa gratidão.
Desse modo, ela se revela como um sinal da regeneração dos seres
humanos. Todas as árvores foram afetadas por essa enfermidade da raiz,
mas existe cura e Paulo explica como isso é possível.
Aqui, ele descreve, de forma vívida, como essa doença se espalha. O
que tem início com o ser humano suprimindo a verdade a respeito de
Deus não prossegue como poderíamos supor com o mau
comportamento — isso vem depois —, mas com o pensamento distorcido
e o coração obscurecido (v. 21). Esta é a verdade capaz de nos devolver
a sensatez, mas que muitos filósofos têm tentado ignorar: existem
formas saudáveis de pensar e outras nada saudáveis. O pensamento, por
si só, não vai, necessariamente, produzir respostas certas. Por si mesma,
a razão humana não nos oferece mais garantia de nos apontar o caminho
do que uma bússola em uma sala repleta de ímãs. Uma das tragédias da
humanidade rebelada é o total desperdício da capacidade intelectual
dada por Deus: pense na habilidosa mente criminosa elaborando planos
com astúcia e requinte de detalhes, só para cometer crimes e sair
impune; ou ainda no inteligente ditador pensando em como esmagar a
oposição e, assim, manter o povo na obscuridade quanto a seus
verdadeiros e egocêntricos motivos, para, desse modo, perpetuar-se no
poder. Imagine-se utilizando a capacidade intelectual que lhe foi
concedida por Deus para objetivos dessa natureza.
Ao lado do pensamento distorcido, vem o coração obscurecido
(algumas versões trazem “mente” ao final do v. 21, mas Paulo emprega
sua palavra usual para “coração”). O coração humano era visto por
muitos pensadores da antiguidade como o centro de nossa motivação.
Deveria ser uma fonte de luz, mas, quando os seres humanos se rebelam
contra Deus, ele se torna imerso em trevas. Esse é o fungo na essência
da raiz. A árvore pode continuar crescendo, talvez por muitos anos.
Pode enganar seus observadores com a aparência de uma árvore
saudável, porém já contraiu uma doença mortal.
Os seres humanos podem enganar a si mesmos, e também uns aos
outros, a respeito desse mal. Como Paulo ressalta no versículo 22, eles
podem declarar-se sábios quando, na verdade, são ignorantes. Esse é um
dos quebra-cabeças da atualidade: em um mundo de fácil comunicação
global, podemos observar o que as pessoas estão pensando em culturas e
ambientes muito diferentes dos nossos. Uma pessoa considera o
máximo da sabedoria o fato de um país reunir um grande estoque de
armas nucleares, enquanto outra crê que isso é o cúmulo da estupidez.
Uma pensa que o mais sábio é que os idosos e enfermos sejam auxiliados
a cometer suicídio, enquanto outra pensa que isso é o extremo oposto
da sabedoria. Quem é capaz de dizer o que é mais sábio?
Paulo responderá a essa pergunta também; porém, o mais
importante é observar o ponto fundamental, que ele repete no versículo
32. É bem possível para o ser humano concluir que agir de uma forma é
bom e sábio, e que fazer o contrário é ruim e estúpido — e, ainda assim,
estar totalmente errado. Isso não significa que todos os padrões morais
são relativos, resumindo-se apenas a uma questão de preferência
cultural. Antes, é um sinal de que, de fato, costumamos nos enganar
com muita facilidade, em especial no que diz respeito a nossos próprios
interesses e desejos.
O primeiro sinal de morte insidiosa, que se infiltra e vai-se
espalhando a partir do pensamento distorcido e de um coração
obscurecido, por toda a vida humana, é a falha na adoração. Fomos
criados para adorar o Deus vivo e ser portadores de sua imagem. Paulo,
que tem em mente de forma clara Gênesis 1, destaca, com grande ironia,
que, em vez disso, os seres humanos criaram ídolos que se encontram a
vários níveis de distância da realidade. Eles são uma representação da
imagem dos seres humanos, que, em si mesmos, são mortais e, portanto,
sujeitos à degeneração e à morte. Não satisfeitos com isso, eles também
adoram imagens de espécies subumanas.
Hoje em dia, é fácil para as pessoas rirem das antigas formas de
idolatria. “Como eram engraçadas no passado”, pensam. Elas esculpiam
“deuses” de pedaços de madeira e de pedra, e os adoravam! Todavia, nós
fazemos exatamente o mesmo. O mundo ocidental moderno já adorou
muitos ídolos — e os mais óbvios são o dinheiro, o sexo e o poder. Paulo
não está dizendo que todos os indivíduos fazem tudo isso, mas que a
raça humana como um todo adora partes do mundo, e não o próprio
Deus. Pensamento distorcido, coração obscurecido e adoração de não
deuses — essa é a doença, de um modo geral não percebida por
observadores eventuais, e que trará a árvore ao chão, trazendo consigo
todos os que estiverem em seu caminho.
Isso nos traz de volta ao primeiro versículo da passagem. A justiça
de Deus se levanta contra toda impiedade e toda injustiça, dois termos
que sintetizam o que significa os seres humanos se desviarem de seu
caminho. A “impiedade” alude ao que acontece aos seres humanos
quando deixam de adorar, honrar e demonstrar gratidão ao Deus vivo.
A “injustiça” vem logo em seguida, no sentido mais amplo da vida
humana e da sociedade se desarticulando, necessitando, assim, ser
acertada, endireitada. A verdade costuma ser uma das primeiras baixas
na guerra — e, igualmente, uma das primeiras baixas quando os seres
humanos se rebelam contra Deus.
O resultado disso é a ira de Deus, ou o “castigo”, como algumas
versões ainda costumam trazer. Isso não quer dizer que Deus seja
malévolo, caprichoso, inclinado a perder o controle ou a sair castigando
de forma descontrolada. Muito pelo contrário. Como veremos no
capítulo 2, Deus é bondoso, paciente e tolerante. Entretanto, ele se
importa de forma apaixonada com este mundo e com suas criaturas
humanas. E, se há algum tipo de atividade capaz de descaracterizar,causar danos ou destruir o mundo e os seres humanos, Deus não
permitirá que isso prossiga para sempre. Estupro, assassinato, tortura e
opressão econômica — a lista poderia prosseguir e, de fato, prossegue
mais adiante no capítulo: Deus odeia todos esses atos. Ele está irado
contra todos eles. Sejamos bastante claros: se ele não estivesse irado, não
seria um Deus bom! Não é de seu feitio ficar afirmando que a árvore está
em perfeita ordem quando, na realidade, tem uma doença fatal.
Tampouco essa é a natureza de Paulo. Existem dois erros que
podemos cometer quando falamos a respeito do mal. Podemos pensar
que o mundo todo é pervertido, de modo que não existe sequer
resquício de bondade nele. Ou podemos pensar que o mal não é tão
sério a esse ponto. Nossa sociedade ocidental moderna tende a adotar a
segunda linha de pensamento, a despeito de tantas gerações perversas,
em uma escala sem paralelo. Paulo nos leva de volta a uma avaliação
mais realista. De fato, a árvore está com uma doença perigosa e
necessita de um tratamento radical.
ROMANOS 1:24-27
DESEJOS IMPUROS, CORPOS DESONRADOS
24Por isso, Deus os entregou à impureza segundo o desejo de seus corações, tendo
como resultado o fato de desonrarem seus corpos entre si mesmos. 25Eles trocaram
a verdade de Deus por uma mentira, e adoraram e serviram à criatura, e não ao
criador, o qual é bendito para sempre. Amém.
26Desse modo, Deus os entregou a desejos vergonhosos. Até mesmo as mulheres,
vejam vocês, trocaram a prática sexual natural por uma contrária às leis da
natureza; 27e também os homens abandonaram as relações sexuais naturais com as
mulheres e se inflamaram com lascívia uns pelos outros. Os homens passaram a
realizar atos vergonhosos com outros homens e a receber em si mesmos a
retribuição apropriada por seus caminhos equivocados.
Imagine alguém que não sabe nada de música e vê, pela primeira vez,
um arco de violino. Seria algo digno de confundir sua cabeça. É óbvio
que a peça foi feita com todo o cuidado, pensaria essa pessoa, mas para
que serve? É estreito demais para ser algum tipo de utensílio para polir,
e também é delicado demais para realizar trabalhos manuais da casa ou
do jardim. Tem até mesmo um pequeno parafuso para ajustar a corda,
deixando-a mais esticada ou mais frouxa… mas para que serve isso,
afinal de contas?
Somente quando alguém aparecer com um violino, apanhar o arco e
começar a tocar é que o mistério será resolvido. Sozinha, essa pessoa
jamais concluiria que o arco serve para esse tipo de atividade e menos
ainda que é capaz de produzir belos sons. De igual modo, dificilmente
poderia saber, ao olhar para o violino de forma isolada, como tocá-lo.
No entanto, durante séculos eles são produzidos um para o outro. E
somente quando ambos estão juntos é que cada um se completa.
Já posso pressentir vários leitores tornando-se impacientes. Todas as
ilustrações são incompletas e inadequadas, e essa não é nem um pouco
melhor do que a maioria. É claro que os homens e as mulheres não são
como os arcos e os violinos. É claro que, em certo sentido, o homem
pode ser completo — como o próprio Jesus era completo! — sem uma
mulher e vice-versa. É claro que o homem é mais do que um arco, e a
mulher é diferente de um violino, e vice-versa. No entanto, ainda assim,
o exemplo capta algo do que Paulo dá como certo ao começar a explicar
como a vida humana se desviou da intenção do criador. Não há uma
forma incontroversa de abordar esse tópico por inteiro. Então, o melhor
a fazer é nos lançarmos nessa tarefa com vistas a descobrir o que Paulo
está dizendo.
Por toda essa passagem, ele tem em mente um trecho específico da
Bíblia: Gênesis 1 a 3. Talvez você pense que, para descrever as maneiras
pelas quais os seres humanos se opuseram aos propósitos de Deus, teria
sido melhor começar por algo como os Dez Mandamentos. Bem, Paulo
retornará a eles mais adiante (especificamente em 13:8-10). Mas, como
veremos, existem problemas com relação à lei de Israel que não fazem
dessa escolha a mais adequada para seus objetivos no momento. Ele
quer delinear o caminho pelo qual os seres humanos violaram não
apenas uma “lei” dada em algum ponto da história humana, como
também a própria estrutura da ordem criada em sua essência.
Paulo tem certeza de que essa estrutura existe, ou seja, de que a
criação não é aleatória nem arbitrária. Ao tomar Gênesis 1 como a
declaração teológica básica, ele vê os seres humanos como criados à
imagem de Deus e recebendo responsabilidade sobre a criação não
humana. Os seres humanos são ordenados a frutificar: eles devem
celebrar, em sua complementaridade “macho e fêmea”, o abundante
potencial gerador de vida do bom mundo de Deus. E são encarregados
de trazer a ordem de Deus ao mundo, atuando como mordomos do
jardim e de tudo o que se encontra nele. Machos e fêmeas são muito
diferentes, e foram projetados para trabalhar juntos a fim de produzir,
com Deus, a música da criação. Algo de muito profundo dentro da
estrutura do mundo reage à união da parte com sua contraparte, algo
que não pode ser alcançado pela mera junção da parte com a própria
parte.
Isso ajuda a explicar o fato, de outro modo confuso, de Paulo ter
utilizado, como primeiríssimo exemplo do que vê como a corrupção da
vida humana, a prática das relações homossexuais. Afinal, pensamos:
por que ele teria escolhido justamente esse comportamento específico,
colocando-o no topo da lista? A resposta não é simplesmente, como
muitos sugerem, porque, como judeu, ele sentiria especial repulsa por
esse comportamento — comportamento que muitas culturas pagãs
adotavam e até mesmo celebravam, mas que o judaísmo sempre proibiu.
Tampouco pelo fato de o próprio imperador Nero ser conhecido por
entregar-se a práticas homossexuais e a diversas práticas bizarras
heterossexuais, de modo que, assim, Paulo teria desejado apontar o
dedo contra o sistema imperial e sua essência imoral apodrecida. Essa
pode ter sido uma pequena parte de sua intenção, mas, com certeza, não
é o ponto central.
Nem mesmo, como alguns sugerem é o caso de, no mundo antigo, as
relações homossexuais serem práticas normais da prostituição cultual
ou uma questão de pessoas mais velhas explorando as mais jovens, ainda
que ambas as práticas fossem um tanto comuns. Os “casamentos”
homossexuais não eram desconhecidos, como se sabe do exemplo do
próprio Nero. Platão apresenta uma extensa discussão do amor sério e
duradouro que pode haver entre dois homens. O mundo moderno
atribuiu vários nomes a esse fenômeno (“homossexual” ou “gay”; e sua
contraparte feminina, “lésbica”). Esses rótulos imprecisos referem-se a
uma ampla faixa de emoções e ações, sobre as quais seria ingênuo
imaginar que só se tornaram conhecidas nas últimas gerações.
Desse modo, o ponto levantado por Paulo não é simplesmente que
“nós, judeus, não aprovamos isso”, ou que “relacionamentos dessa
natureza são sempre desiguais e exploradores”. Seu ponto é o seguinte:
“Não foi para isso que homens e mulheres foram criados.” Ele,
igualmente, não está sugerindo que todos que se sentem sexualmente
atraídos por pessoas do mesmo sexo, ou que todos que se envolvem em
relações homossexuais, chegaram a isso por cometerem atos específicos
de idolatria. Nem supõe que todos os que chegaram a esse ponto o
fizeram por uma escolha deliberada de desistir das possibilidades
heterossexuais. Ler o texto desse modo reflete um individualismo
moderno, e não a perspectiva mais ampla e abrangente de Paulo. Antes,
ele está falando da raça humana como um todo. O ponto que ele
procura estabelecer não é o fato de “existirem alguns extremamente
pervertidos por aí que praticam essas coisas revoltantes”, mas que “a
existência dessas claras distorções do propósito “macho e fêmea” do
criador no mundo indica que a raça humana como um todo é culpada de
uma idolatria capaz de distorcer a natureza humana”. Ele vê a prática
de relações entre pessoas do mesmo sexo como um sinal de que o
mundo dos humanos, de maneira geral, está fora de ordem.
O fato de estar fora de ordem, afirma ele,

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