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Título original: Paul for Everyone: Romans Part 1, Paul for Everyone: Romans Part 2, Paul for Everyone: 1 Corinthians, Paul for Everyone: 2 Corinthians, Paul for Everyone: Galatians and Thessalonians, Paul for Everyone: The Prison Letters, Paul for Everyone: The Pastoral Letters Copyright © 2004 por Nicolas Thomas Wright Edição original por Society for Promoting Christian Knowledge (SPCK). Todos os direitos reservados. Copyright da tradução © Vida Melhor Editora S.A., 2020. As citações bíblicas são traduzidas da versão do próprio autor The Kingdom New Testament: A Contemporary Translation [Novo Testamento do Reino: uma tradução contemporânea] copyright © 2011 por Nicholas Thomas Wright, a menos que seja especificada outra versão da Bíblia Sagrada. Os pontos de vista desta obra são de responsabilidade de seus autores e colaboradores diretos, não refletindo necessariamente a posição da Thomas Nelson Brasil, da HarperCollins Christian Publishing ou de sua equipe editorial. Publisher Samuel Coto Editores André Lodos Tangerino e Bruna Gomes Tradutor Pedro J. M. Bianco Copidesque Shirley Lima Revisão Gabriel Braz Diagramação Sonia Peticov Capa Rafael Brum Produção do e-book Ranna Studio CIP–BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ W922p Wright, N. T. Paulo para todos: Romanos 1-8, parte 1 / N. T. Wright; tradução Pedro J. M. Bianco. — Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2020. 240 p.; 12 x 18 cm. Tradução de Paul for Everyone: Romans Part 1, Paul for Everyone: Romans Part 2, Paul for Everyone: 1 Corinthians, Paul for Everyone: 2 Corinthians, Paul for Everyone: Galatians and Thessalonians, Paul for Everyone: The Prison Letters, Paul for Everyone: The Pastoral Letters ISBN 978-65-5689-487-4 1. Bíblia — Novo Testamento. 2. Paulo de Tarso. 3. Cartas. 4. Vida Cristã. 5. Teologia. I. Bianco, Pedro, J. M. II. Título. CDD: 227.8 Índice para catálogo sistemático: 1. Bíblia: Novo Testamento 2. Paulo de Tarso: cartas 3. Vida cristã: teologia Aline Graziele Benitez – Bibliotecária – CRB-1/3129 Thomas Nelson Brasil é uma marca licenciada à Vida Melhor Editora LTDA. Todos os direitos reservados. Vida Melhor Editora LTDA. Rua da Quitanda, 86, sala 218 — Centro Rio de Janeiro, RJ — CEP 20091-005 Tel.: (21) 3175-1030 www.thomasnelson.com.br http://www.thomasnelson.com.br/ SUMÁRIO ������� 1-8 | ����� 1 Introdução Mapa ROMANOS 1:1-7 • Boas-novas sobre o novo Rei ROMANOS 1:8-13 • Paulo anseia ver os cristãos romanos ROMANOS 1:14-17 • Boas-novas, salvação e a justiça de Deus ROMANOS 1:18-23 • Os seres humanos rejeitam Deus e abraçam a corrupção ROMANOS 1:24-27 • Desejos impuros, corpos desonrados ROMANOS 1:28-32 • Mente obscurecida, comportamento obscurecido ROMANOS 2:1-11 • O julgamento próximo de Deus será imparcial, o mesmo para todos ROMANOS 2:12-16 • Como funcionará o julgamento imparcial de Deus ROMANOS 2:17-24 • A reivindicação dos judeus — e seus problemas ROMANOS 2:25-29 • A marca distintiva, o nome e o significado ROMANOS 3:1-8 • A fidelidade determinada de Deus ROMANOS 3:9-20 • Tanto os judeus como os gentios são culpados de pecado ROMANOS 3:21-24 • A revelação da justiça da aliança de Deus ROMANOS 3:25-26 • A morte de Jesus revela a justiça da aliança de Deus ROMANOS 3:27-31 • O Deus tanto de judeus como de gentios ROMANOS 4:1-8 • A aliança de Deus com Abraão ROMANOS 4:9-12 • Abraão, o pai tanto de circuncisos como de incircuncisos ROMANOS 4:13-17 • Abraão é o pai de todos os que creem ROMANOS 4:18-25 • A fé que Abraão possuía — e a nossa ROMANOS 5:1-5 • Paz e esperança ROMANOS 5:6-11 • A morte de Jesus revela o amor de Deus e garante a salvação final ROMANOS 5:12-17 • O grande quadro em uma só pincelada: Adão e o Messias ROMANOS 5:18-21 • O triunfante reino da graça ROMANOS 6:1-5 • Deixando o estado de pecado mediante o batismo ROMANOS 6:6-11 • Morto para o pecado, vivo para Deus ROMANOS 6:12-14 • O chamado para uma vida santa ROMANOS 6:15-19 • Os dois tipos de escravidão ROMANOS 6:20-23 • Aonde levam as duas estradas ROMANOS 7:1-6 • Morrendo para a lei ROMANOS 7:7-12 • Quando a lei chegou: o Sinai apontando para a Queda ROMANOS 7:13-20 • Olhando mais uma vez a vida sob a lei ROMANOS 7:21-25 • A “lei” dupla e o “eu” miserável ROMANOS 8:1-4 • A ação de Deus no Messias e no espírito ROMANOS 8:5-11 • A obra do espírito ROMANOS 8:12-17 • Filhos de Deus, conduzidos pelo espírito ROMANOS 8:18-25 • A criação renovada e a esperança paciente ROMANOS 8:26-30 • Oração, filiação e a soberania de Deus ROMANOS 8:31-39 • Nada nos separará do amor de Deus Glossário ������� 9-16 | ����� 2 Introdução Mapa ROMANOS 9:1-5 • Os privilégios e a tragédia de Israel ROMANOS 9:6-13 • As duas famílias de Abraão ROMANOS 9:14-24 • O propósito e a justiça de Deus ROMANOS 9:25-29 • Deus chama um remanescente ROMANOS 9:30—10:4 • Israel, as nações e o Messias ROMANOS 10:5-13 • O cumprimento da aliança ROMANOS 10:14-21 • O chamado para o mundo e o fracasso de Israel ROMANOS 11:1-6 • O remanescente da graça ROMANOS 11:7-15 • Um tropeço com propósito ROMANOS 11:16-24 • As duas oliveiras ROMANOS 11:25-32 • Misericórdia sobre todos ROMANOS 11:33-36 • A Deus, seja a glória ROMANOS 12:1-5 • O sacrifício vivo ROMANOS 12:6-13 • Vivendo juntos no Messias ROMANOS 12:14-21 • Vivendo lado a lado com o mundo ROMANOS 13:1-7 • O propósito divino e o papel limitado dos governantes ROMANOS 13:8-14 • O amor, a lei e o dia vindouro ROMANOS 14:1-6 • O fraco e o forte ROMANOS 14:7-12 • O juízo final é o único que importa ROMANOS 14:13-23 • O caminho do amor e da paz ROMANOS 15:1-6 • Unidade: moldada pelo Messias, encorajada pelas Escrituras ROMANOS 15:7-13 • Louvor conjunto sob o domínio universal do Messias ROMANOS 15:14-24 • Chegando finalmente a Roma ROMANOS 15:25-33 • Ajuda para Jerusalém ROMANOS 16:1-16 • Recomendando Febe, saudando os amigos ROMANOS 16:17-23 • Advertências e saudações ROMANOS 16:25-27 • Bênção final Glossário 1��������� Introdução Mapa 1CORÍNTIOS 1:1-9 • Agradecido pela graça de Deus 1CORÍNTIOS 1:10-17 • Fique atento às divisões! 1CORÍNTIOS 1:18-25 • A tolice de Deus 1CORÍNTIOS 1:26-31 • Vangloriando-se no Senhor 1CORÍNTIOS 2:1-5 • A poderosa mensagem da cruz 1CORÍNTIOS 2:6-13 • A estranha sabedoria de Deus 1CORÍNTIOS 2:14—3:4 • Espiritual ou meramente humano? 1CORÍNTIOS 3:5-11 • A fazenda de Deus, o edifício de Deus 1CORÍNTIOS 3:12-17 • O dia vindouro, o fogo vindouro 1CORÍNTIOS 3:18-23 • Tudo lhe pertence 1CORÍNTIOS 4:1-5 • Julgamento futuro, e não agora 1CORÍNTIOS 4:6-13 • Apóstolos à mostra 1CORÍNTIOS 4:14-21 • Cheio de si ou poderoso? 1CORÍNTIOS 5:1-5 • Escândalo e julgamento 1CORÍNTIOS 5:6-13 • Livre-se do “fermento”! 1CORÍNTIOS 6:1-8 • Processos na igreja? 1CORÍNTIOS 6:9-11 • Herdando ou não o Reino de Deus 1CORÍNTIOS 6:12-20 • Para que serve o corpo? 1CORÍNTIOS 7:1-7 • A vida no casamento 1CORÍNTIOS 7:8-16 • Casamento e divórcio 1CORÍNTIOS 7:17-24 • Permaneça do jeito que você foi chamado 1CORÍNTIOS 7:25-31 • Permanecendo solteiro 1CORÍNTIOS 7:32-40 • Lealdades divididas 1CORÍNTIOS 8:1-6 • Carne oferecida a ídolos 1CORÍNTIOS 8:7-13 • Respeitando as consciências fracas 1CORÍNTIOS 9:1-12a • Os “direitos” de um apóstolo 1CORÍNTIOS 9:12b-18 • Abrindo mão de direitos pelo evangelho 1CORÍNTIOS 9:19-23 • A liberdade do apóstolo de ser escravo de todos 1CORÍNTIOS 9:24-27 • O atleta cristão 1CORÍNTIOS 10:1-5 • O primeiro Êxodo 1CORÍNTIOS 10:6-13 • Não volte a cometer o mesmo erro 1CORÍNTIOS 10:14-22 • A Mesa do Senhor e a mesa dos demônios 1CORÍNTIOS 10:23-33—11:1 • Faça tudo para a glória de Deus 1CORÍNTIOS 11:2-16 • Homem e mulher adorando na igreja 1CORÍNTIOS 11:17-22 • Ricos e pobres na Mesa do Senhor 1CORÍNTIOS 11:23-34 • Reconhecendo o corpo 1CORÍNTIOS 12:1-11 • O mesmo espírito trabalhando 1CORÍNTIOS 12:12-20 • Muitos membros, um corpo 1CORÍNTIOS 12.21-26 • As responsabilidades de cada membro 1CORÍNTIOS 12:27-31a • Dons e ministérios 1CORÍNTIOSé o resultado de Deus permitir que as pessoas sigam seus impulsos sexuais desenfreados aonde quer que eles as conduzam — uma vez que perderam a conexão com a verdade de Deus e, assim como Adão e Eva no jardim, deram ouvidos à voz da criatura, e não à voz de Deus (aparentemente, é isso que ele tem em mente no v. 25). Quando, mais tarde, ele descreve a fé que Abraão tinha e seus resultados (4:18-22), está mostrando, de forma deliberada, como os problemas do capítulo 1 foram desfeitos, com os seres humanos depositando sua confiança em Deus e voltando a dar glória a ele. Somente quando conseguimos enxergar esse contexto mais amplo é que podemos vislumbrar os profundos pontos subjacentes que Paulo levanta. Somente assim, é possível evitar uma leitura superficial desse texto, o que, infelizmente, tem feito do debate de um tema já tão complexo algo muito mais difícil do que já é. Paulo repete: “Deus os entregou” (v. 24 e 26, e mais uma vez no v. 28). Quando Deus dá responsabilidade aos seres humanos, ele está falando sério. As escolhas que fazemos, não apenas individualmente, mas também como espécie, são escolhas cujas consequências Deus, para nosso total espanto, permite-nos explorar. Ele nos alerta, dá-nos oportunidades de nos arrepender e de mudar o curso. Entretanto, se escolhermos a idolatria, poderemos esperar que nossa humanidade, pouco a pouco, venha a se desintegrar. Quando você adora o Deus em cuja imagem foi criado, refletirá essa imagem de forma cada vez mais brilhante e se tornará mais plena e verdadeiramente humano. Quando você (e, por você, quero dizer a raça humana como um todo, e não apenas os indivíduos) adora qualquer outra coisa que não o Deus vivo, algo que seja em si mesmo outro mero objeto criado e, dessa forma, sujeito à decomposição e à morte, reduz a imagem que carrega em si, sua humanidade essencial. Essa, obviamente, não é a palavra final sobre o tema da homossexualidade. Paulo escreveu apenas dois versículos a esse respeito até aqui, o que dificilmente seria o suficiente para deduzirmos algo mais de qualquer posição mais completa que ele possa ter declarado. Mas, além da polêmica e da retórica que sempre giram em torno desse tema, deparamos, aqui e em outras partes do Novo Testamento, não com um conjunto arbitrário de regras, mas com uma teologia profunda sobre o que significa ser genuinamente humano. E também com uma advertência a respeito da tendência aparentemente infinita dos seres humanos ao autoengano. ROMANOS 1:28-32 MENTE OBSCURECIDA, COMPORTAMENTO OBSCURECIDO 28Além disso, como não consideram apropriado prosseguir com o conhecimento de Deus, Deus os entregou a uma forma de pensar imprópria, de maneira que se comportam de forma inadequada. 29Eles se encheram de toda a sorte de injustiça, depravação, ganância e maldade; ficaram repletos de inveja, homicídios, inimizades, enganos e malícia. Tornaram-se bisbilhoteiros, 30caluniadores, inimigos de Deus, arrogantes, presunçosos, orgulhosos, inventores de males, desobedientes aos pais, 31insensatos, infiéis, insensíveis, pessoas sem compaixão. 32Sabem que Deus decretou de forma justa que as pessoas que praticam coisas assim merecem a morte. Entretanto, não só fazem essas coisas, como também aprovam aqueles que as praticam. Há alguns anos, estive em uma distribuição de prêmios em uma escola. O diretor fez um discurso interessante, durante o qual leu, sem nos revelar quem era o autor do texto ou a data de sua composição, uma longa descrição sobre como a geração mais jovem estava se extraviando. Eles não respeitavam os mais velhos, demonstravam não se importar com a vida cultural e suas tradições, só se preocupavam com o que lhes desse prazer, eram grosseiros, relaxados, ignorantes e preguiçosos. No fim, ele nos falou que o texto fora escrito por alguém no século 5 a.C., em Atenas. É estranho, embora reconfortante, saber que nossa percepção do mundo torna-se cada vez pior, provavelmente como resultado de nosso conhecimento crescente, e não da depravação crescente dos outros. Através dos registros históricos da humanidade, observa-se que o mundo já esteve coberto de lágrimas e também de risos, de insensatez e maldade humana, mas também de sabedoria e bondade. E devo dizer que, ao traduzir a lista das falhas humanas contidas nessa passagem, experimentei uma estranha sensação de familiaridade. Conheço pessoas assim, pensei. Já li a respeito delas nos jornais e, algumas vezes, eu as encontrei na rua. Aliás, acabei de receber um e-mail de alguém assim agora mesmo. Contudo, isso não é o mais preocupante. O mais espantoso é que, algumas vezes, encontro uma pessoa assim não lá fora nas ruas, mas quando me olho no espelho. A linha entre o bem e o mal passa não entre “nós” e “eles”, mas bem no meio de cada um de nós. (Se não estamos bem certos a respeito disso, Paulo nos lembrará no início do próximo capítulo.) Os três versículos intermediários (v. 29,30,31) nos fornecem os detalhes, e alguns estão, literalmente, encharcados de sangue. Dificilmente, teríamos a necessidade de explicar a maior parte, pois eles falam por si mesmos. No entanto, para ir realmente a fundo, experimente perguntar a si mesmo: como você se sentiria se vivesse em um povoado no qual todas as pessoas fossem assim? Infeliz, acredito. Não desejaria sair de casa. Um comportamento desse tipo é inerentemente destrutivo, tanto para si mesmo (talvez conheçamos pessoas que fizeram de uma dessas características sua especialidade e se tornaram como conchas vazias, passando a conter tão somente fofocas, presunção ou coisas do gênero) como para as vidas nos quais toca. Não há alegria em estar com pessoas desse tipo. Não existe a menor possibilidade de haver uma comunidade genuinamente humana. Certa vez, C. S. Lewis fez uma descrição do inferno como um lugar no qual as pessoas se moviam cada vez para mais longe umas das outras. Leia essa lista, imagine as pessoas incorporando essas características e mais nada e, então, saberá o porquê dessa sua descrição. No entanto, as coisas realmente surpreendentes sobre esse parágrafo pequeno e terrível estão no início e no fim. Mais uma vez, Paulo afirma que “Deus os entregou”. É assim que se parece a vida humana quando Deus diz: “Então, está bem, faça do seu próprio jeito.” O que acontece, então, é que o pensamento do ser humano, e não apenas seu comportamento, começa a se desintegrar por completo. “Deus os entregou”, declara Paulo, “a uma forma de pensar imprópria” — o que corresponde ao fato de que eles “não consideram apropriado” prosseguir com o verdadeiro conhecimento de Deus. Algumas vezes, ainda somos inclinados a pensar que o mau comportamento advém de uma vitória do corpo sobre a mente, mas Paulo sabe que não é bem assim. O mal é o que você obtém quando a mente está distorcida, fora de sintonia, e o corpo é simplesmente levado a reboque. Por isso o último versículo do capítulo é tão deprimente. Algumas vezes, as pessoas o veem como desalentador: “(...) não só fazem essas coisas, como também aprovam aqueles que as praticam.” Certamente pensamos que o verdadeiro mal consiste em cometer esses atos, e não em transmitir comentários morais desse nível. Mas, se pensarmos assim, estaremos errados. Imagine que você esteja visitando uma prisão e se encontre com dois homens que cometeram homicídio. O primeiro está arrependido. “Sei que estava errado o tempo todo”, diz ele, “mas estava tão irado que, mesmo assim, fiz isso. Agora tenho de conviver com o fato de saber que cometi algo muito perverso”. “Você não passa de um fraco”, diz o segundo. “Vivemos num velho mundo cruel. Quem se importa com o que é certo ou errado? Eu fiz o que era mais sensato ao matar aquele velho estúpido. Ele não valia o espaço que ocupava. O mundo ficará melhor sem ele. O juiz deveria ter- me dado uma medalha, e não me trancado aqui.” Em qual dos dois mundos você preferiria viver? Não seria realmente muito pior viver num mundo em que o mal é louvado, e o bem, enxovalhado, do que num mundo no qual, embora as pessoas pratiquem o mal, reconhecemque agiram errado? Tudo isso aponta para esta declaração crítica: eles conhecem os decretos de Deus, no sentido de que aqueles que praticam essas coisas são, literalmente, “dignos de morte”. Não entenda mal. As pessoas supõem que as leis de Deus são arbitrárias. Imaginam que Deus (se tal ser existe, poderiam acrescentar) inventou um conjunto de regras para se divertir e que, então, ele aprecia a ideia de punir as pessoas caso não as cumpram. O maior desse time foi o imperador Calígula, que costumava ter suas novas leis escritas em letras pequenas e fixadas tão alto na parede que ninguém podia vê-las. Em seguida, ele punia as pessoas por não obedecer a essas leis. Entretanto, imaginar que Deus e suas leis sejam, ainda que remotamente, desse modo já é, em si, parte do pensamento distorcido de que a maior parte do mundo é culpada. Os “decretos” de Deus não são absolutamente dessa espécie. Eles foram gerados na própria tessitura da criação. O mau comportamento é inerentemente destrutivo, apontando, como uma placa de sinalização, para a morte. Isso é óbvio no caso do assassinato e de outros tipos de violência; mas deveria ser óbvio também no caso de fofoca e calúnia, situações em que a reputação e a vida das pessoas são partidas aos pedaços — na maior parte das vezes, sem chance de reparação. Na verdade, as pessoas arrogantes e presunçosas estão se intrometendo no espaço alheio, como se os outros não devessem nem existir. E por aí vai. Deus fez o mundo de tal forma que a bondade, a amabilidade, a generosidade e a humildade — o amor em suas múltiplas formas — transmitem vida; o mal, por sua vez, em suas muitas formas, é mortal. O contínuo processo de corrupção que Paulo relata na expressão repetida “Deus os entregou”, nos versículos 24, 26 e 28, não é, em si mesmo, a morte definitiva. A esse respeito, assim como sobre a condenação final do pecado, ele falará no próximo capítulo. O que vemos em Romanos 1 é a visão deprimente da morte futura, lançando suas sombras escuras no presente. Se conseguirmos compreender ao menos parte dessa visão, vamos querer conhecer ainda mais que tipo de solução Paulo apresentará, à medida que formos avançando em sua carta. ROMANOS 2:1-11 O JULGAMENTO PRÓXIMO DE DEUS SERÁ IMPARCIAL, O MESMO PARA TODOS 1Portanto, vocês são indesculpáveis — qualquer um, seja quem for, que se assente para julgar! Quando você julga o outro, condena a si mesmo, porque você, que age como juiz, faz as mesmas coisas. 2O julgamento de Deus, sabemos, recai verdadeiramente sobre os que fazem essas coisas. 3Contudo, se você julga os que as praticam e você também as pratica, acha realmente que escapará do julgamento de Deus? 4Ou você despreza as riquezas da bondade, da tolerância e da paciência de Deus? Não sabe que a bondade de Deus tem o propósito de levá-lo ao arrependimento? 5Entretanto, por seu coração endurecido, que se recusa a se arrepender, você está acumulando uma grande quantidade de ira para si mesmo no dia da ira, o dia em que o justo julgamento de Deus será revelado: 6o Deus que vai “retribuir a todos de acordo com suas obras”. 7Quando as pessoas fazem o bem pacientemente e, desse modo, prosseguem na busca por glória, honra e imortalidade, Deus lhes dará a vida da era porvir. 8Mas, quando agem com fundamento em seus desejos egoístas e não obedecem à verdade, mas, sim, à injustiça, haverá ira e fúria. 9Haverá aflições e angústias para cada uma das pessoas que cometem perversidade, primeiro para o judeu e também, de igual modo, para o grego — 10e haverá glória, honra e paz para todo o que fizer o que é bom, primeiro para o judeu e também, de igual modo, para o grego. 11Deus, como você vê, não demonstra imparcialidade. “Podemos simplesmente lhe dar mais uma chance?” O jovem rapaz trabalhava na fábrica havia apenas pouco mais de um mês. Ele tinha um ótimo desempenho, porém havia um problema: seu temperamento violento, enfurecendo-se de repente por nada ou por muito pouco, atirando coisas em qualquer um que estivesse ao seu alcance. O contramestre conseguiu que se sentasse, olhou-o bem nos olhos e conversou com ele como um irmão mais velho. Isso não vai resolver nada, disse a ele. Você precisa aprender a se controlar. Isso é um aviso. Faça de novo e terei de relatar seu caso à gerência. Mas ele voltou a agir assim. Vez após vez. E o contramestre, com o coração pesaroso — pois gostava muito do moço —, dirigiu-se à gerência. O gerente se zangou por um problema como aquele ter-se arrastado por semanas a fio sem que fosse comunicado. E estava inclinado a demitir imediatamente o rapaz. Contudo, o contramestre interveio a seu favor. Apenas mais uma chance. Vou conversar com ele mais uma vez. Vamos ver se ele consegue se controlar. Não durou muito. Três dias depois, alguém, na cantina, esbarrou acidentalmente no jovem rapaz, derramando um pouco de chá em sua camisa. Ele ficou furioso e atirou o restante do líquido no rosto do homem, socando-o com violência no estômago. Foi um momento triste para o contramestre, porém ele e o gerente não tiveram escolha. O moço teve sua chance e a usou para tornar as coisas ainda piores, e não para melhorá-las. No cerne da visão de Paulo sobre o juízo final de Deus, aqui e mais adiante na carta, há um retrato de Deus que não difere muito do contramestre dessa história. Deus é bom — não “bondoso” no sentido de ser indulgente, um velho tio dorminhoco que não se importa muito com o que as pessoas se dispõem a fazer —, mas bom no sentido de se importar de forma genuína e compreensiva, procurando encontrar a melhor maneira para cada ser humano individualmente. Se não fosse assim — se, por acaso, Deus fosse basicamente mau, pronto a se lançar sobre qualquer erro cometido —, já teríamos todos sido eliminados do planeta há muito tempo. Entretanto, essa não é a realidade. Deus é paciente. Vez após outra, ele concede às pessoas a chance de se recompor, de se voltar para ele em arrependimento e confiança, e de descobrir o rumo de sua vida e redirecioná-la. Mas e se isso não causar efeito algum? Então, declara Paulo nos versículos 4 e 5, as pessoas estarão se habilitando ainda mais para o julgamento que, por fim, se realizará. O jovem na história não tinha justificativa. Foram-lhe dadas todas as chances. E ele usou o tempo de reflexão para tornar as coisas ainda piores. É assim que acontece, algumas vezes, com os seres humanos. Este é o capítulo em que Paulo, mais do que em qualquer outra parte de seus escritos, descreve sua perspectiva do dia do juízo final. As pessoas pensam algumas vezes que a ideia de um julgamento é coisa do “Antigo Testamento”, ao passo que, no Novo Testamento, encontra-se somente misericórdia. Isso não é nem mesmo uma caricatura; na verdade, não passa de mera ficção. De fato, o Novo Testamento destaca o extraordinário — quase inacreditável — amor de Deus revelado na morte de Jesus. O próprio Paulo celebra isso mais adiante nessa carta. No entanto, se as pessoas insistirem em rejeitar o amor de Deus — e parte da lógica do amor é que sempre pode ser rejeitado —, nada mais resta a fazer. Deus está comprometido, exatamente por ser o criador bom e amoroso, a pôr o mundo em ordem. Isso inclui os seres humanos. Aqueles que vivem em condições degradantes, como as descritas nas passagens anteriores, estão cortejando o desastre. Aqueles que persistem na perversidade, a despeito de todas as chances de se arrepender, estão definitivamente pedindo por isso. Não há alternativa. Esse quadro de julgamento não permite que ninguém se sinta superior no que tange ao aspecto moral. Em minha estante, tenho vários volumes de escritos aproximadamente contemporâneos de Paulo. Sêneca é um bom exemplo. Ele refletiu com muita profundidade sobre questões morais e filosóficas, e se considerava distante do que entendia como imoralidade comum. Todavia, seus próprios colegas o flagraram algumas vezes quebrando as regras que ele mesmo estabelecia para os outros. Então, ele e outros filósofos do mundo clássico refletiram, um tanto intrigados, sobre esse problema:como é possível alguém saber o que é o certo a ser feito e, ainda assim, fracassar? A presente passagem tem início com Paulo expondo exatamente essa falha na armadura do soberbo pagão moralista. É claro que alguém assim pode dizer que concorda com a denúncia da terrível imoralidade que se espalha por todos os lados. Que está tão chocado e horrorizado quanto você. Mas você concordaria que pessoas como nós são diferentes? Que, com um pouco de educação e força de vontade, podemos nos colocar acima de tudo isso e viver a vida virtuosa a que todas as pessoas sensíveis verdadeiramente aspiram? Absolutamente, declara Paulo em um de seus tons mais afiados. Você não tem desculpa, pois, até mesmo enquanto assume uma posição de julgamento sobre essas obscurecidas almas que você tanto despreza, você está fazendo, em seu íntimo, as mesmas coisas! É claro que Paulo não pensa que todos os pagãos moralistas praticam todas aquelas coisas citadas na segunda metade do capítulo 1. A lei moral, contudo, como, certa vez, um professor meu de seminário ensinou, é como uma fina lâmina de vidro. Se for quebrada, não tem volta. Todos os pensadores verdadeiramente sábios, de Sócrates em diante, sabem que a quebram vez após vez. Nem as religiões nem as filosofias, gregas e romanas, contavam com uma doutrina sobre o juízo final. Entretanto, essa doutrina era central no judaísmo, e Paulo a expõe de forma consistente contra o antigo mundo pagão nessa passagem. Há um Deus que, na condição de Criador, é responsável pelo mundo, e ele o porá em ordem. E, ao fazer isso, agirá com total imparcialidade, de acordo com a mais estrita justiça. Paulo, na qualidade de um teólogo cristão, não contradiz em nada essa doutrina básica judaica. De fato, haverá um julgamento final, que ocorrerá de acordo com a totalidade da vida que cada pessoa teve. Algumas vezes, os cristãos imaginam que a doutrina de Paulo da “justificação pela fé” (ver especialmente os capítulos 3 e 4) significa a abolição de um julgamento final segundo as obras, porém Paulo nunca afirma isso. Sua teologia é mais robusta do que muitas tradições lhe creditam ser. Ele pode olhar o mundo de frente e falar da justiça de Deus. ROMANOS 2:12-16 COMO FUNCIONARÁ O JULGAMENTO IMPARCIAL DE DEUS 12Todos os que pecaram sem a lei, veja você, serão julgados sem a lei — e aqueles que pecaram estando debaixo da lei, serão julgados pela lei. 13Afinal, não são os que ouvem a lei que estão certos diante de Deus. São os que praticam a lei que serão declarados certos! 14É deste modo que funciona: os gentios não possuem a lei por direito de nascimento. Entretanto, sempre que fazem o que a lei diz, eles são uma lei para si mesmos, apesar de não a possuírem. 15Eles demonstram, assim, que a obra da lei está escrita em seus corações. Sua consciência também lhes serve de testemunha, e seus pensamentos seguirão nessa ou naquela direção, algumas vezes acusando-os e, outras vezes, defendendo-os, 16no dia em que (de acordo com o evangelho que eu anuncio) Deus julgar todos os segredos humanos mediante o Rei Jesus. Há pouco, já mencionei o enlouquecido imperador Calígula, que afixava leis novas em locais em que as pessoas não conseguiam ler. Bem, já que Paulo declara que Deus julgará toda a humanidade com total imparcialidade, ele terá de enfrentar um problema do mesmo tipo. Não é o caso então do povo de Deus, os judeus, terem sido privilegiados? Deus não lhes deu sua lei? Quer dizer então que eles têm uma chance muito maior de fazer o que ele quer? Não seria isso injusto em relação a todos os outros? Essa questão retornará várias vezes ao longo de Romanos, cada uma delas de um ponto de vista levemente diferente. Logo na próxima passagem, por exemplo, Paulo mudará de alvo e se dirigirá especificamente aos judeus, demonstrando que, apesar de os judeus gozarem, de fato, o privilégio de possuir a lei, esse seu privilégio não lhes serviu de nada, pois, conforme os profetas apontaram, Israel como um todo fracassou de maneira lamentável em guardar a lei. Entretanto, para conseguirmos compreender todo o sentido até mesmo dessas primeiras noções de seu argumento, é importante assimilar algo em particular. Quando Paulo fala a respeito da “lei”, está se referindo à lei judaica, à Torá — a lei dada a Moisés no monte Sinai como um estilo de vida para o povo redimido no Êxodo. A Torá é, como diríamos, específica para Israel. A questão toda dessa passagem é que os gentios, as nações não judaicas, não possuem essa lei. Em geral, as pessoas falam vagamente sobre a “lei” em Paulo, como se, embora, obviamente, inclua a lei judaica, ele de fato se referisse a algo muito mais amplo, como uma lei moral genérica à qual todos os seres humanos estão sujeitos. Não é assim, porém, que Paulo faz uso dessa palavra. Como podemos ver de forma muito clara, tanto nessa carta como em Gálatas, ele tem em mente uma sequência histórica específica na qual Deus concedeu a lei a Israel, por meio de Moisés, muitos anos depois da promessa feita a Abraão. Um segundo elemento vem à tona na presente passagem, que, mais uma vez, muitas pessoas consideram de difícil compreensão. Com frequência, aqueles que aprenderam sobre Paulo na escola dominical ou na igreja entendem uma das partes centrais de seu ensino muito bem, e não deixam espaço para outros aspectos que acompanham essa parte. Estou pensando de maneira específica em seu ensino a respeito da “justificação pela fé”, o qual, como veremos no próximo capítulo, significa que aqueles que creem em Jesus como o Senhor ressurreto do mundo são declarados de imediato, com base nessa fé, como pertencentes ao povo de Deus. Eles já estão marcados como aqueles de quem os pecados já foram perdoados. Eles constituem a comunidade da nova aliança, que Deus está gerando em cumprimento de sua antiga promessa. Fé, e não obras! Essa é uma verdade maravilhosa, libertadora e gloriosa! No entanto, frequentemente as pessoas esquecem (embora Paulo deixe muito claro) que a “justificação pela fé” é uma verdade que diz respeito ao tempo presente. Sobre como, no presente, você pode afirmar, em antecipação ao julgamento futuro, quem são de fato as pessoas que constituem o povo de Deus — e, desse modo, como pode saber que você mesmo pertence a esse povo, que seus próprios pecados foram, de fato, perdoados. Mas, sempre que Paulo se volta para o dia do julgamento futuro, que é o tema da presente passagem, ele continua tão claro quanto antes. O julgamento futuro acontecerá com base na vida inteira da pessoa. Ele já declarou isso na passagem anterior (2:7-10). E repete em 14:10. Algumas pessoas, intrigadas com isso, sugeriram que talvez ele estivesse fazendo essas declarações com o objetivo de expor uma teoria que, depois, demonstrou ser impossível. Eles o imaginam dizendo: “Em tese, Deus gostaria de poder julgar seu povo de acordo com seu comportamento, mas, como ninguém passaria no teste, ele introduziu um esquema diferente.” Isso não está em consonância com o que Paulo afirma aqui ou em outras passagens como 14:1-12, bem como em outras cartas, como em 2Coríntios 5:10, Efésios 6:8 e 2Timóteo 4:1. O contraste entre o julgamento segundo as obras e a justificação pela fé não é entre um sistema que Deus gostaria de pôr em operação e outro que Deus escolheu no lugar daquele primeiro. É, sim, um contraste entre o julgamento futuro, que será de acordo com as obras, e a presente antecipação daquele veredicto, que será simplesmente — sei que isso parece estranho, mas espere até Paulo explicar no próximo capítulo — com base na fé. No presente momento, ele ainda está se concentrando no julgamento futuro, mas apresenta um termo técnico que encontraremos muitas vezes e, portanto, seria melhor fazermos um cuidadoso registro dele aqui. No versículo 13, ele afirma que aqueles que praticarem a lei “serão declarados certos”. Traduzi uma única palavra do grego com esses termos, não por gostar de tornar as coisas mais longas, mas porque a palavra que eu poderia ter usado tem uma longa história e é facilmente interpretada deforma equivocada. A palavra, claro, é “justificado”. Ela pertence, conforme a presente passagem elucida, a um grupo de palavras com conotação de tribunal ou processo judicial. Deus, Paulo afirma no versículo 16, julgará todos os seres humanos, bem como todos os segredos de seus corações, por meio do Rei Jesus (a ideia do Messias como o juiz vindouro era bastante corrente no judaísmo pré-cristão, com base em passagens como Salmos 2 e Isaías 11). No contexto de um tribunal, “justificar” é o que faz um juiz ao fim de um julgamento: ele (o juiz era sempre “ele” no mundo antigo) declara que uma das partes no processo legal está “certa”, [“no direito” popularmente as pessoas também dizem está “no meu direito”]. O caso seguiu como ela esperava. O juiz lhe foi favorável. Agora, essa parte ostenta uma nova condição — uma condição resultante da decisão do tribunal. Exatamente como num casamento, em que a pessoa encarregada da cerimônia pronuncia “Eu os declaro marido e mulher”, e essa declaração produz um novo status, uma nova realidade, quando o juiz declara “Considero o réu inocente” ou “Declaro que o querelante está certo”, gera-se um novo quadro de obrigações, em que a pessoa absolvida tem uma nova posição, gozando de um novo status. Agora, ela “está certa”. Isso é “justificação”. A esta altura, quando isso já está claro, podemos ver o que essa passagem específica está dizendo. Paulo, lembre-se, está com os olhos voltados, neste momento, apenas para o futuro dia de julgamento e para o fato de que Deus julgará de forma imparcial. Ele está enfrentando a seguinte questão: Será que os judeus terão mesmo alguma vantagem por possuírem a lei? Sua resposta é: Não. Deus julgará a todos de acordo com a posição em que se encontram, e não por aquela na qual não se encontram. Os que se encontram sem lei (em outras palavras, os gentios) serão julgados dessa forma; e os que se encontram sob a lei (os judeus) serão julgados pela lei que possuem. Afinal de contas, o que importa é cumprir a lei, e não apenas possuí-la. Mas, então, o que acontecerá com os gentios? Ao responder a isso nos versículos 14 e 15, Paulo escreve algo que há muito tempo intriga os leitores atentos. Mesmo após anos estudando essa questão, muitas vezes me vejo ter dúvida da maneira como esses versículos devem ser lidos. Algumas pessoas pensam que Paulo diz: “Alguns gentios, seguindo sua consciência, guardam algumas coisas sobre as quais a lei judaica fala.” Isso é possível — embora Paulo jamais tenha pensado, nem por um momento sequer, que tais pessoas pudessem levar o tipo de vida sem pecado e santa que uma vida de total observância à lei produziria. Como alternativa, ele pode estar sugerindo algo bem diferente, algo que será retomado mais adiante no capítulo, nos versículos 26 a 29, e muitas vezes em outras partes da carta: que uma nova categoria de gentios estava sendo criada pelo próprio evangelho, uma categoria de gentios que possui a lei de Deus inscrita em seus corações por meio do espírito santo e que, desse modo, está aprendendo, de um modo novo, o que a lei requer. Isso também é possível — apesar da ideia de que os cristãos vão enfrentar o dia do julgamento com pensamentos conflitantes, alguns acusando-os e outros defendendo-os, teria sido algo bem estranho para Paulo dizer àquela época, se compararmos isso, digamos, com Romanos 8:31-39. De um modo ou de outro, os versículos 14 e 15 nos deixam intrigados. Sobre o ponto principal abordado nessa passagem, não há dúvida, trata-se de uma grande e suprema consolação. O mundo não está nas mãos do mero acaso, nem de um Deus cheio de caprichos e movido por favoritismo, que deixará a todos se sentindo da mesma forma que as pessoas se sentem depois de uma audiência insatisfatória em uma corte de justiça. A verdadeira justiça — do tipo ao qual as pessoas aspiram, pelo qual elas suplicam, mostrando-se sedentas ao redor de todo o mundo até os nossos dias — será, de fato, realizada, e as pessoas a verão e saberão que ela se cumpriu. Deus julgará todos os segredos do coração humano por meio do Messias, Jesus. Essas são boas-novas para um mundo no qual ainda é difícil encontrar a verdadeira justiça. ROMANOS 2:17-24 A REIVINDICAÇÃO DOS JUDEUS — E SEUS PROBLEMAS 17Vamos supor que você se chame de “judeu”. Vamos supor que sua esperança esteja depositada na lei. Vamos supor que você celebre o fato de que Deus é o seu Deus, 18e que você sabe o que ele quer, e que, pelas instruções da lei, você possa fazer distinções morais adequadas. 19Vamos supor que você creia ser um guia para os cegos, uma luz para as pessoas que se encontram em trevas, 20um mestre para os insensatos, um instrutor para as crianças — tudo porque, na lei, você conta com a essência do conhecimento e da verdade. 21Muito bem, então: se você pretende ensinar a outra pessoa, não ensinará a si mesmo? Se diz que as pessoas não devem roubar, você mesmo rouba? 22Se diz que as pessoas não devem adulterar, você mesmo adultera? Se você detesta ídolos, roubará os templos? 23Se você se orgulha da lei, desonrará a Deus, quebrando a lei? 24É isto que a Bíblia diz: “Por sua causa, o nome de Deus é blasfemado entre as nações!” Em meu país, a polícia trabalha arduamente para manter sua credibilidade. Isso costumava ser algo bem fácil. As forças policiais contavam com uma longa tradição de serviços prestados à comunidade e eram conhecidas e respeitadas. Elas sabiam quando ser amáveis e deixar as pessoas irem embora apenas com uma advertência. E também sabiam quando adotar medidas severas e fazer uma batida para coibir um comportamento gravemente criminoso e perigoso. É claro que sempre houve alguns comprometendo essa tradição. No geral, porém, costumávamos confiar na polícia. Quando viajei para o exterior pela primeira vez, achei perturbador o fato de as pessoas partirem da ideia de que a polícia estava associada ao crime organizado e aceitava suborno. Entretanto, nas últimas duas décadas, as coisas não são mais assim tão claras. Houve diversos casos amplamente divulgados na mídia acerca de corrupção nos altos escalões, e sobre policiais prendendo, acusando e dando um jeito de condenar pessoas que sabiam ser inocentes, apenas para dizer que haviam solucionado algum crime. Pior do que isso: tem havido acusações persistentes de racismo em regiões nas quais um grande contingente populacional de imigrantes ainda é policiado por uma força praticamente constituída, em sua totalidade, por policiais brancos. O fato de a maioria dos policiais não ser responsável por essas falhas não faz muita diferença. Em algumas áreas, a confiança chegou ao nível zero. A polícia é vista como parte do problema, e não como parte da solução. Os judeus nunca viram a si mesmos como os chamados para ser a polícia do mundo (os romanos se autoatribuíam essa função), mas muitos acreditavam, devido ao tema reiterado em suas Escrituras, que haviam sido chamados para ser a luz do mundo (veja, por exemplo, Isaías 42:6, uma passagem que Paulo pode muito bem ter em mente aqui). Muitos, inclusive o próprio Paulo, celebravam o fato de que Deus escolhera Israel e lhes dera sua lei, de modo a fazer deles um farol de virtude para guiar o restante do mundo. Antes de sua conversão, Paulo via esse chamado da nação de Israel como uma rocha sobre a qual se firmar. Ele era judeu, Deus chamara Israel para ocupar essa posição, e ele se sentia seguro a esse respeito. Paulo, contudo, percebeu que, mediante seu reconhecimento de Jesus crucificado como o Messias, as coisas não eram assim tão simples. Um Messias que conduzisse os israelitas a uma vitória sobre os pagãos teria se encaixado, à perfeição, em sua cosmovisão anterior. Um Messias que ensinasse todo o Israel a obedecer à Torá, em sua totalidade, teria sido maravilhoso. Porém, um Messias que morreu de forma vergonhosa, como um criminoso condenado — isso significava que o mundo fora virado de cabeça para baixo. Este foi o modo pelo qual Deus cumpriu suas antigas promessas: com seu ungido sendo morto pelos pagãos! Esse final, totalmentebizarro e inesperado, levou Paulo a repensar o papel de Israel como um todo e a incluir uma linha de pensamento profético que, até o momento, talvez pendesse só para um lado. Ao citar Isaías 52:5 (ecoando também Ezequiel 36:20 e 23) no versículo 24, ele está trabalhando exatamente no centro das críticas dos profetas contra Israel. Essas críticas eram tão graves que os próprios profetas só conseguiam ver o futuro em termos de juízo total e reconstituição. Israel não cometera apenas alguns poucos erros. Israel fracassara por completo na tarefa que Deus lhe atribuíra. Agora, a única saída seria Deus enviar um Messias que tomaria sobre si os efeitos do fracasso e, por meio dele, estabelecer uma nova aliança. Isaías 52 vai mais adiante, alguns poucos versículos depois, apresentando o perfil do Servo Sofredor que morreria pelos pecados de Israel e do mundo. Ezequiel 36 prossegue falando de uma nova aliança na qual Deus inscreveria sua lei no coração das pessoas. De um modo claro, Paulo tem ambos os temas em mente. Nessa passagem, sua acusação contra os companheiros judeus — contra seu próprio ser anterior — está baseada em sua consciência, mediante a revelação do evangelho, de que aquilo que os profetas haviam dito a respeito de Israel tornara-se realidade. Israel fracassara, e a devastação e o exílio foram o resultado disso. O pior sobre o exílio, contudo, não foi o deslocamento geográfico, o qual chegou ao fim quando alguns dos judeus retornaram à sua terra. O pior sobre o exílio foi o fato de que estrangeiros e pagãos estavam reinando sobre o povo de Deus. Esse tipo de “exílio” continuava presente, conforme predisse o livro de Daniel (9:24-27, uma passagem amplamente estudada nos tempos de Paulo). O ponto central das acusações de Paulo nos versículos 21, 22 e 23, portanto, não é que todos os judeus cometessem adultério, furtassem ou roubassem templos (os judeus sempre eram acusados de saquear templos, porque, já que não acreditavam em ídolos, consideravam insignificantes os templos pagãos, desprovidos de sérias sanções religiosas). A questão é que até mesmo alguns judeus estavam fazendo essas coisas — e todos os judeus sabiam que havia uma porção deles que eram culpados dessas acusações, o que minava por completo seu orgulho de que, como nação, eles continuavam a ser a luz do mundo, capaz de revelar a verdade e a lei de Deus ao restante da humanidade. O fato de o pecado continuar em Israel apenas confirma a acusação do profeta: quando as nações olham para vocês, maldizem a Deus. Agora, a única solução é que a história de Israel atinja seu clímax com a chegada de um estranho Messias que também levará esse problema sobre os próprios ombros, estabelecendo uma nova aliança, segundo a qual as pessoas serão transformadas a partir de seu interior. Paulo nunca nega a reivindicação de Israel. Algumas pessoas supõem que, em sua descrição do “judeu”, nos versículos 17 a 20, ele quis dizer que a lei não era, afinal de contas, “o guia da verdade e do conhecimento”, e que Israel não fora chamado para ser a luz do mundo. Isso é um grande equívoco. Aqui, e especialmente nas passagens seguintes, o argumento de Paulo é o de que Israel é realmente o povo escolhido de Deus e que a lei é, de fato, a lei santa do único Deus verdadeiro. A nação de Israel fracassara em sua vocação. Paulo examinará esse problema também, na hora certa. Mas Deus não falhou. As passagens a seguir nos mostrarão como Deus permaneceu leal a seu chamado, apesar do fracasso do povo que ele chamara. ROMANOS 2:25-29 A MARCA DISTINTIVA, O NOME E O SIGNIFICADO 25A circuncisão, notem bem, tem valor real para aqueles que guardam a lei. Se, contudo, você descumpre a lei, sua circuncisão se torna incircuncisão. 26Enquanto isso, se os incircuncisos guardam as exigências da lei, sua incircuncisão será considerada circuncisão, certo? 27Portanto, aqueles que são incircuncisos por natureza, mas cumprem a lei, julgarão aqueles como vocês que possuem a letra da lei e a circuncisão, mas descumprem a lei. 28O “judeu” não é aquele que parece ser judeu. Nem a “circuncisão” é o que parece ser: uma questão de carne física. 29O “judeu” é aquele que o é em segredo, e a “circuncisão” é aquela feita no coração, no espírito, e não na letra. Tais pessoas obtêm “louvor” não de seres humanos, mas de Deus. Vez ou outra, uma das grandes redes de supermercados resolve tentar vender produtos de sua própria fabricação, como se fossem produtos de marcas mais famosas e conhecidas. Lembro-me de uma dessas lojas que, algum tempo atrás, vendia cereal matinal com um rótulo na embalagem que, até que você se aproximasse bem de perto e lesse o que realmente estava escrito, estaria sendo enganado, acreditando tratar-se de uma marca famosa. Isso acontece algumas vezes com sucos e outros produtos de grande saída. Nesse momento, o que importa para o consumidor não é o preço nem a aparência externa do produto, mas o conteúdo da embalagem. Rótulos podem nos iludir. Algumas vezes, inclusive, são projetados exatamente com essa intenção. A questão que Paulo levanta nesse parágrafo é que os rótulos, e até mesmo os nomes, podem de fato enganar. Ele vai mais fundo do que simplesmente abordar a questão da ilusão praticada por um marketing esperto. Algumas vezes, o próprio produto em si não é o que aparenta ser. Nesse caso, o “produto” é o povo escolhido de Deus, Israel — aqui referido como uma pessoa no singular: “você.” O rótulo externo, a marca distintiva de identidade judaica entre os homens, é a circuncisão. Paulo toma como certo que seus leitores sabem disso, portanto ele pode passar direto, tanto aqui como em outras partes, de uma discussão a respeito da identidade judaica em uma só sentença, indo para uma referência à circuncisão na próxima. A questão que ele levanta é que a marca distintiva da circuncisão e até mesmo o nome “judeu” (que pertence à origem étnica de Israel) podem enganar. Algumas vezes, o que está inserido nessa embalagem não se harmoniza com a marca distintiva e o nome do lado externo. Quando isso ocorre, a marca distintiva significa o oposto do que quer comunicar. Se um judeu descumpre a lei, sua circuncisão se transforma, na verdade, em incircuncisão — não que ele deixe de ser circuncidado em seu aspecto físico (embora alguns judeus, determinados a se incorporar ao mundo dos gentios, procurem obter a remoção das marcas da circuncisão). Entretanto, sua posição real diante de Deus é a mesma de um gentio incircunciso. Essa não era uma ideia nova. Quinhentos anos antes, o profeta Jeremias (9:26) dissera exatamente a mesma coisa. Esse ponto já causa grande surpresa (e uma porção de judeus resistiu a ele), porém ainda há mais. A anulação do lado externo em função do interno também opera na outra direção. Vamos supor, diz ele, que alguém que não tenha sido circuncidado (em outras palavras, um gentio) guarde as exigências da lei. O que acontece, então? Paulo chega a uma conclusão ousada: é como se ele fosse circundado. Além disso, ele estará na posição, contra o circunciso que descumpre a lei, que o judeu dos versículos 17 a 20 supõe, ele próprio, estar. Ele poderá assentar-se para julgar os infratores da lei. Quem, porém, são esses gentios “que guardam as exigências da lei” e que até mesmo “cumprem a lei”, embora sejam incircuncisos? Paulo sabe muito bem como deve soar estranha a última sentença a qualquer judeu bem-instruído. A circuncisão era um dos mandamentos da lei. Como, então, uma pessoa não circuncidada poderia estar “cumprindo a lei”? (O mesmo ponto é levantado em 1Coríntios 7:19, e suponho que, em ambos os casos, Paulo teve a intenção de ser engraçado de uma forma intrigante.) A resposta vem por meio das ressonâncias bíblicas nos versículos 28 e 29. Paulo está se referindo não a qualquer gentio que procura fazer um esforço moral especial, mas àqueles que possuem a lei de Deus inscrita em seus corações pelo espírito. Quando verificamos outras passagens em que ele diz mais ou menos a mesmacoisa (como, por exemplo, ele faz em 2Coríntios 3:1-6), está claro que se refere a gentios que se tornaram cristãos. Alinhado com as profecias de Jeremias 31 e de Ezequiel 36 e, quanto a isso, com a experiência espiritual fulgurante de todos os primeiros cristãos, Paulo crê que, por meio de Jesus, o Messias, o Deus de Israel renova a aliança e, agora, está recebendo na nova família todo aquele que, independentemente de sua origem étnica e, portanto, de marcas distintivas exteriores como a circuncisão, venha a crer no evangelho. Aqui ele apresenta um esboço bastante resumido do retrato muito mais completo da vida cristã, da renovação do coração pelo espírito de Deus, que ele vai retomar em trechos como, por exemplo, os capítulos 8 e 12. Isso, na verdade, o conduz a um ponto muito importante, tão controvertido em nossos próprios dias quanto, sem dúvida, na época em que Paulo escreveu pela primeira vez. Ele declara que o rótulo é irrelevante e que, caso você encontre o conteúdo essencial em uma embalagem com um rótulo diferente, deve chamar esse conteúdo pelo nome certo, ainda que tenha outra procedência qualquer. Ele toma a própria palavra sagrada e maravilhosa “judeu” e declara que, quando Deus opera mediante o espírito no coração de um gentio, visando produzir o genuíno cumprimento da lei, esse gentio deve ser chamado “judeu”, mesmo que não tenha nascido de uma família judaica. Essa mudança radical quanto ao significado do antigo nome do povo de Deus continua a assombrar a presente carta, como veremos, até atingir seu clímax em um capítulo ainda muito distante deste. O que vale para o nome vale também para a marca distintiva externa. A circuncisão que importa é a circuncisão do coração, aquela estranha operação interior originalmente mencionada nas próprias Escrituras dos israelitas (Deuteronômio 10:16; 30:6; Jeremias 4:4). Os profetas falaram (Jeremias 31:33; 32:39-40; Ezequiel 11:19; 36:26-27) a respeito da nova obra de Deus no coração das pessoas, e parece que é isso que Paulo tem em mente. Ele está falando, em linguagem judaica tradicional, a respeito da renovação da aliança e afirmando que ela já ocorreu no espírito e mediante o espírito de Deus. Ele não menciona Jesus nesse trecho, mas está claro que compreende essa nova aliança como o resultado direto da ação de Deus por meio de seu Messias. Mais uma observação interessante acerca de como a mente de Paulo funciona: depois de descrever “o judeu” e “a pessoa circuncidada” em termos não de sua origem étnica ou de um sinal físico, mas do estado de seu coração, ele declara que essa pessoa não recebe “louvor” de outros seres humanos, mas do próprio Deus. A questão é a seguinte: o nome hebraico “Judá”, que dá origem à palavra “judeu”, significa, na verdade, “louvor” (ver Gênesis 29:35; 49:8). Apesar de Paulo estar escrevendo em grego, língua em que a figura de linguagem não funciona da mesma forma, está pensando em hebraico. Se é “louvor” que você quer, diz ele — se você quer o nome que lhe permite erguer a cabeça e reivindicar uma posição de alta dignidade —, então não procure isso em outros seres humanos, jactando-se de sua origem e posição étnica por ser “judeu”. Receba esse louvor de Deus, quando Deus inscrever sua lei em seu coração pelo espírito. ROMANOS 3:1-8 A FIDELIDADE DETERMINADA DE DEUS 1Então, qual é a vantagem de ser judeu? Que benefício há na circuncisão? 2Muitos, em todos os sentidos. Para começar, aos judeus foram confiados os oráculos de Deus. 3E qual é a vantagem disso? Se alguns dentre eles foram infiéis à sua incumbência, será que a infidelidade deles anula a fidelidade de Deus? 4Por certo que não! Reconheça que Deus é verdadeiro, mesmo que todo ser humano seja falso. Como diz a Bíblia: “De modo que você seja achado certo quanto ao que diz e, assim, possa sair vitorioso quando comparecer diante do tribunal.” 5Mas, se o fato de sermos achados injustos comprova que Deus é justo, o que diremos? Que Deus é injusto por infligir sua ira sobre as pessoas? (Estou falando em termos humanos!) 6Por certo que não! Como poderia, então, Deus julgar o mundo? 7Mas, se a verdade de Deus aumenta ainda mais e lhe traz glória mediante a minha falsidade, por que ainda sou condenado como pecador? 8E por que não “fazer o mal para que venha o bem” (como algumas pessoas blasfemam contra nós e como alguns alegam que afirmamos)? Pessoas assim, pelo menos, merecem o julgamento que recebem! Certa vez, transportei uma joia valiosa para o outro lado do mundo. Minha esposa e eu estávamos a caminho da Nova Zelândia. Alguns amigos nossos queriam enviar algo — creio que era um colar — para algum membro de sua família. Não queriam confiar a joia ao correio comum, por isso nos pediram para levá-la conosco e entregá-la a seus parentes. Isso aconteceu numa época em que as companhias aéreas ainda não suspeitavam tanto de pessoas transportando pacotes para outras, porém, ainda assim, ficamos preocupados: e se o colar se extraviasse no caminho? Entretanto, conhecíamos e gostávamos daquelas pessoas, razão pela qual concordamos com seu pleito. Felizmente, a joia completou sua viagem em total segurança e foi entregue em seu destino final. Agora, é claro que poderíamos ter dito que a joia se extraviou e, então, guardá-la em segredo em nosso próprio benefício ou até mesmo vendê-la. Estaríamos sob suspeita, mas seria possível escapar ileso disso. O fato de não termos feito isso se deve a terem confiado em nós e porque desejávamos estar à altura dessa confiança depositada. Uma das formas de as pessoas descreverem esse tipo de transação é dizendo que nos confiaram alguma coisa. O ponto importante em algo lhe ser “confiado” é que o objeto que lhe foi dado não se destina a você, mas, sim, à pessoa a quem você deve entregá-lo. E, uma vez que você compreenda esse princípio, essa passagem — que alguns consideram muito complexa — torna-se comparativamente fácil. O ponto central de Paulo no versículo 2 é que, ao povo judeu — ao seu próprio povo —, foram confiados por Deus seus “oráculos”. (Aqui, ele emprega uma palavra incomum, talvez com o propósito de indicar uma “mensagem divina” em termos gerais ou para reconhecer o fato de que, apesar de os gentios não estarem esperando qualquer coisa parecida com a lei judaica, sempre tiveram o anseio de receber “oráculos” de uma divindade ou de outra.) Os judeus foram realmente chamados para ser luz do mundo, para portar em confiança a mensagem de Deus a toda a sua criação. E eles deviam entregar essa mensagem, a fim de cumprir o que lhes fora confiado, demonstrando ao mundo que Deus é Deus. Entretanto, eles falharam. Guardaram toda a mensagem para si mesmos, calculando que não passava de uma lista de privilégios para si próprios na qualidade de nação — como se um carteiro tivesse de considerar sua bolsa do correio um mero sinal de quanto uma pessoa é importante, recusando-se, assim, a entregar a correspondência. Alguns, como o filho pródigo na história contada por Jesus, venderam o valioso conteúdo que lhes fora confiado e desperdiçaram o dinheiro (esse é o ponto levantado por Paulo em 2:21-24). Mas a questão central, a única questão central no fato de alguém ser um mensageiro, consiste em entregar a mensagem conforme instruído. Sair por aí com ares de “o importante mensageiro” pode impressionar por algum tempo, mas, quando não se cumpre a incumbência, isso passa a parecer estranho. E a acusação de Paulo contra seus companheiros judeus, contra sua própria pessoa, está totalmente alinhada com as palavras dos antigos profetas de Israel: Israel foi infiel, um mensageiro inútil. Desse modo, o que Deus deve fazer? O nome de Deus, de acordo com Isaías (conforme citado por Paulo em 2:24), foi injuriado e blasfemado entre as nações, em vez de ser louvado. Não só as nações deixaram de receber a mensagem certa, como também deduziram uma errada. Ou seja, a mensagem de que o Deus de Israel é um deus ruim, que merecer serdifamado e ridicularizado. Deus, porém, permanecerá fiel a seu intento original. Não só sua fidelidade não será abolida pela infidelidade de Israel (v. 3,4), como também ele prosseguirá com seu plano original. De fato, ele precisa (e ele mesmo vai providenciar) de um israelita fiel que, por fim, leve a incumbência a cabo. Para isso, precisamos aguardar outros dois trechos da carta. Qual é o assunto do restante do presente trecho? Depois que Paulo termina de escrever o final do capítulo 2, precisa enfrentar a pergunta que faz aqui no início do capítulo 3. Se Deus está gerando um povo da “nova aliança”, um povo que deve ser chamado “judeu’, embora não seja necessariamente judeu, e ser considerado povo da “circuncisão”, apesar de muitos dentre eles não serem circuncidados, então qual seria a vantagem real de ser judeu ou circuncidado? Poderíamos esperar uma resposta como: “Nenhuma!” Na verdade, alguns já pensaram que o fato de Paulo não ter chegado a essa conclusão se deveu apenas a um orgulho nacional judaico residual. Esse, porém, é um argumento superficial. Ele continua crendo — sua total compreensão acerca de Deus, do mundo e do evangelho se baseia nessa crença — que, quando Deus fez promessas em relação à aliança a Abraão, Isaque e a Jacó, ele as levava a sério. E que, em Jesus, o Messias, ele as manteve, e que, mediante o espírito santo, ele por fim as cumprirá por completo. Paulo não abandonou a ideia de Israel como o povo escolhido de Deus. Ele ainda não pode explicar como tudo se encaixa, mas, quando voltar à mesma pergunta no início do capítulo 9, será, por fim, capaz de estabelecer as coisas em um quadro mais amplo. Seu ponto central, o qual, em certa medida, já chegamos a abordar, é o de que, apesar de Israel ter sido infiel quanto à incumbência recebida de Deus, de ser seu mensageiro, Deus se mantém fiel às suas promessas. Ao estabelecer isso no versículo 4, ele cita parte do Salmos 51:6, um dos grandes salmos de penitência que reconhece que Deus continua a ser correto apesar de os seres humanos, incluindo Israel, pecarem de forma drástica. Mas a noção de Deus ser justo, enquanto os seres humanos são injustos, faz parecer, por um instante, que Deus e os seres humanos, ou quem sabe Deus e Israel, seriam partes opostas em um processo legal. (Esse foi o erro de Jó, que imaginava que ele e Deus estariam presos a uma batalha legal que ele, Jó, devia ganhar. Foi também o erro dos consoladores de Jó, que tinham em mente a mesma batalha legal, insistindo que Deus é quem devia ganhar. O ponto central do livro de Jó é a afirmativa de que ambos estavam errados, uma vez que Deus não é uma das partes em um processo legal com os seres humanos ou Israel. Deus continua a ser soberano e transcendente, até mesmo acima desses assuntos que consideramos mais desconcertantes.) O problema em ver Deus e Israel como partes opostas em um processo legal é que Deus, então, ao julgar o mundo e condenar os perversos, pode ser visto como julgando em causa própria. Essa não pode ser a maneira certa de ver as coisas (v. 6): Deus deve ser o juiz. Isso, por sua vez, levanta outra possível objeção. Quando Israel fracassa em entregar a mensagem, de modo que Deus tenha de encontrar uma nova forma de demonstrar sua fidelidade, isso simplesmente faz com que a verdade de Deus transpareça de modo ainda muito mais claro, não é mesmo? Então, por que Deus ficaria contra Israel por não fazer o que lhe fora ordenado? De fato — aparece aquele velho sarcasmo de sempre —, por que não fazer simplesmente o que é errado, para que Deus, ao colocar tudo em ordem, possa ser visto de forma ainda muito melhor? Está claro que algumas pessoas escutaram o ensino de Paulo com apenas um de seus ouvidos, quando o ouviram falar sobre o perdão gratuito e a justificação pela fé. E, com isso, zombaram dele, acusando-o de estar dizendo às pessoas que poderiam fazer o mal para que viesse o bem. Paulo tem uma resposta pronta para eles: no caso dessas pessoas, pelo menos, o julgamento será considerado justo! Algumas vezes, esses três últimos versículos soam como mera provocação intelectual. Muitas pessoas — na realidade, muitos cristãos, de um modo geral — não raciocinam segundo esse estilo de argumentação “bate-rebate” e se sentem confusas ao ver Paulo fazendo esse tipo de jogo. Entretanto, há três conclusões possíveis aqui. Em primeiro lugar, é importante refletir profundamente sobre as questões. Podemos não ser capazes de sempre compreender Deus e sua forma de interagir com o mundo. Entretanto, não podemos nos esquivar dos desafios intelectuais com que deparamos em todos os cantos. Se estivermos dispostos a amar a Deus com toda a nossa mente, bem como de todo o nosso coração, alma e força (Marcos 12:30), é importante analisar cada argumento até o fim, da melhor maneira possível, ao mesmo tempo mantendo-nos sempre humildes quanto ao reconhecimento de que talvez não sejamos capazes de enxergar muita coisa no que diz respeito aos segredos mais profundos. Em segundo lugar, Paulo necessita enfrentar essas questões, porém, de modo interessante, ainda não está pronto para lidar com elas apropriadamente. Quando chegarmos ao capítulo 9, encontraremos o mesmo conjunto de questões: o que ocorreu com Israel? Deus permaneceu leal às suas promessas? Deus seria injusto? Por que Deus ainda condena as pessoas? Ao chegarmos lá, contudo, conheceremos as respostas em maiores detalhes. Paulo pode discuti-las mais detidamente à luz do que já disse nos capítulos anteriores. A Carta aos Romanos é como uma grande sinfonia. A passagem atual é um pequeno trecho de uma música que, mais adiante, aponta para uma declaração muito mais completa, para que os temas que surgem no meio possam ir preparando o caminho. Em terceiro lugar, Paulo não pode (e não ousa) deixar ninguém com a impressão de que ser judeu, um membro do povo da aliança de Deus, representaria, apesar de tudo, uma questão secundária. Havia muita gente em Roma, e ainda mais (conforme suspeitamos) alguns cristãos gentios, que ficariam muito contentes em chegar a essa conclusão, à qual Paulo resiste ao longo de sua carta. Uma conclusão dessas não estaria apenas errada em tese e seria desastrosa em relação à atitude cristã para com os judeus e ainda incrédulos. Ela acabaria com o fundamento básico do próprio evangelho de Paulo. A questão toda, como veremos mais adiante neste capítulo, resume-se ao fato de que, em Jesus, o Messias, Deus abre o caminho para se manter leal às suas promessas originais. Jesus, na condição de representante de Israel, ofereceu a obediência pela fé que Israel devia ter oferecido (mas falhou). O Messias é o mensageiro que finalmente entrega a mensagem. ROMANOS 3:9-20 TANTO OS JUDEUS COMO OS GENTIOS SÃO CULPADOS DE PECADO 9 E então? Estamos realmente em melhor situação? Não, por certo que não! Já apresentei esta acusação antes: Tanto os judeus como os gregos estão todos sob o poder do pecado. 10É isto que a Bíblia diz: Não há nenhum ninguém declarado certo [justo] — ninguém mesmo! 11Não há ninguém que compreenda, ou que busque a Deus; 12Todos eles, igualmente, se extraviaram, juntos, todos tornaram-se fúteis; nenhum deles age com bondade, não, nenhum deles. 13Sua garganta é um sepulcro aberto, utilizam sua língua para enganar, o veneno das víboras se encontra sob seus lábios. 14Sua boca está repleta de maldição e amargura, 15seus pés são velozes e há sangue a ser derramado, 16desastre e miséria estão em seus caminhos, 17e eles não conheceram o caminho da paz. 18Não têm temor a Deus diante de seus olhos. 19Agora, sabemos que tudo o que a lei diz é para aqueles que estão “na lei”. O propósito disso é que toda boca se cale e o mundo inteiro seja levado ao banco dos réus no julgamento de Deus. 20Vejam bem, nenhum mero mortal pode ser declarado certo, diante de Deus, com base nas obras da lei. O que se obtém mediante a lei é o conhecimento do pecado. Durante toda a minha vida, estive apenasduas vezes em um tribunal de justiça. Nenhuma das duas foi agradável. Em uma das ocasiões, foi contra uma empresa paisagística que arruinou meu jardim e, em seguida, exigiu pagamento. Quando me recusei a pagar, eles me processaram. Os procedimentos foram feitos em francês, pois estávamos em Montreal, Canadá, à época. Expus minha versão da história, mas, como o representante da empresa falava rápido, em um dialeto local, eu não tinha a menor ideia se estava conseguindo contestar seus argumentos ou não. Então, pedi para que traduzissem o que ele estava dizendo, mas o juiz indeferiu meu pedido. Perdi o caso. A outra vez foi durante a celebração de posse de um novo representante legal do município. Ficamos para assistir, o que lamento até hoje. Os excessos e a miséria humana estavam lá para todos verem como isso é feio. Senti-me como se fosse um voyeur. No mundo de Paulo, praticamente todos estavam muito mais familiarizados com os processos legais das cortes de justiça do que a maioria das pessoas hoje em dia. As comunidades eram pequenas e bem fechadas. Os casos eram julgados em público. Todos queriam saber o que estava acontecendo. Então, quando Paulo emprega, recorrentemente, a linguagem dos tribunais, como faz aqui, todos eram capazes de compreender o cenário que ele tinha em mente. É importante aprendermos a fazer o mesmo. O quadro fica mais claro no versículo 19. Primeiro, temos a voz rigorosa da “lei”. Ela se dirige ao prisioneiro contra quem é feita a acusação — nesse caso, o judeu que está “na lei” ou, como Paulo diz às vezes, “sob a lei”. Paulo já demonstrou como todos os “gentios” são culpados diante de Deus. Agora, Israel se junta ao restante do mundo no banco dos réus. No mundo de Paulo, se alguém estivesse sendo julgado e nada mais tivesse a dizer em defesa própria, colocava a mão sobre a própria boca como um sinal. Algumas vezes, os oficiais de justiça batiam na boca dos prisioneiros para indicar o dever de que suas bocas “deveriam fechar- se”. Em outras palavras, que sua culpa era óbvia e que, portanto, não deviam estar procurando se defender (isso aconteceu com Jesus, em João 18:22, e com Paulo, em Atos 23:2). Assim, quando Paulo diz “que toda boca se cale”, está retratando a imagem de que não só os judeus se haviam juntado aos gentios no banco dos réus, como também de que todos eles, juntos, eram totalmente indefensáveis. O mundo todo deve prestar contas a Deus. É óbvio, portanto, que todas as pessoas são culpadas e agora precisam ficar face a face com Deus, seu juiz. Este, portanto, é o ponto central nessa passagem: completar a tarefa de colocar toda a raça humana diante de seu criador, declarando-a culpada. O versículo 9 pinça alguns pontos da acalorada e intensa discussão da passagem anterior — aqui, Paulo devia estar imaginando ter deixado alguns de seus leitores sem fôlego e repete a pergunta feita no primeiro versículo: os judeus estão realmente em situação melhor? “Não”, responde ele, “porque já apresentei uma acusação contra ambos os grupos” (mais terminologia jurídica aqui). Não apenas os judeus são culpados de pecado, da mesma forma que os gentios; pior do que isso, eles estão sob o poder do pecado. Isso apresenta outro importante tema dessa carta: O “pecado” não é apenas um ato errado. É, antes, um poder que ousamos dizer ter vida própria. É interessante como Paulo, embora pode se referir a “o satanás” (cf. 16:20), muitas vezes emprega a palavra “pecado” como uma forma de falar sobre o mal no sentido de uma força pessoal em ação no mundo. Isso está particularmente claro no capítulo 7. Nesse momento, contudo, ele se concentra em apresentar uma acusação contra seus companheiros judeus. Ele não sugere agora, como fez em 2:21-24, pecados específicos dos quais as pessoas possam ser culpadas. Ele se contenta em citar, de forma ampla, diversas passagens bíblicas — a maioria nos Salmos. Essas citações repetem, de diferentes ângulos, a acusação de que o povo de Deus, exatamente como as nações pagãs, fracassara em honrar a Deus como Deus ou de lhe prestar a devida reverência. E que, em suas vidas, como consequência, fracassaram em refletir sua santidade, sua sabedoria e seu amor. Paulo, contudo, raramente cita versículos do Antigo Testamento sem ter ao menos um olho voltado ao contexto mais amplo de onde a citação foi extraída. Um rápido olhar nas passagens-chave — Salmos 14, 5, 140, 10 e 36, acrescentando Isaías 59 como apoio extra — é revelador. Em praticamente todas essas passagens, a acusação contra os ímpios está contextualidade pela, ou se faz acompanhar (da), promessa de que Deus vai agir com o propósito de resgatar aqueles que se encontram impotentes diante do mal, e também que fará valer sua aliança a todo custo. É precisamente esse ponto que Paulo está elaborando em 3:21 e nos versículos seguintes. Mesmo quando está abordando um vergonhoso processo de acusação contra seus companheiros judeus, ele o faz de modo a deixar pistas, para aqueles que conhecem suas Bíblias, de que a solução está bem perto. Para concluir o assunto de modo adequado, ele retorna, no versículo 20, à questão da lei. Ainda falando acerca dos judeus (aqueles que estão “na lei”), explica que “as obras da lei” jamais poderiam servir de base para alguém ser declarado “certo” — ou, em linguagem técnica, estar “justificado”. Ele acabou de citar amplamente o Antigo Testamento, e o ponto que está levantando aqui está diretamente ligado a isso. Se “o judeu” apelar para sua posição com relação à aliança, que é sinalizada pela posse da lei, a própria lei responde: “Você me descumpriu.” “Mediante a lei, vem o conhecimento do pecado”, declara Paulo. Isso aponta para 5:20 e para todo o capítulo 7, em que a confusão sobre lei e a razão para Deus tê-la dado é analisada em maiores detalhes. Entretanto, não devemos perder seu foco principal. Todos os que imaginam poder comparecer diante de Deus e apelar para “as obras da lei” como razão de sua justificação final, ou seja, para obter um veredicto favorável para si no juízo final, estão apenas desperdiçando sua energia. Apelar para a lei é o mesmo que apelar para o policial que o apanhou em flagrante delito ou ao especialista que elaborou a lei que você, sem dúvida, acaba de transgredir. O elemento com que tantos judeus, incluindo o próprio Paulo, contavam que os separasse do mundo dos ímpios (“supondo que sua esperança esteja depositada na lei”, como em 2:17) não só deixava de oferecer proteção contra o julgamento de Deus, como também funcionaria de forma oposta. ROMANOS 3:21-24 A REVELAÇÃO DA JUSTIÇA DA ALIANÇA DE DEUS 21Agora, porém, bem à parte da lei (embora a lei e os profetas lhe tenham servido de testemunhas), a justiça da aliança de Deus se fez presente. 22A justiça pactual de Deus entrou em operação mediante a fidelidade de Jesus, o Messias, em benefício de todo aquele que tem fé nele. Pois não existe distinção: 23todos pecaram e necessitam da glória de Deus — 24e, pela graça de Deus, são declarados gratuitamente certos, tornando-se membros da aliança, mediante a redenção que se encontra no Messias, Jesus. Há muitas peças de teatro e filmes que, quando estão chegando ao fim, sofrem uma guinada repentina na história. Alguém chega (algumas vezes galopando sobre um cavalo) e invade um julgamento, um casamento ou uma execução, trazendo notícias da suspensão temporária da sentença, a mensagem de um amor antigo ou algo parecido. No exato momento em que pensávamos que a ação não teria mais volta, algo de novo acontece, mudando todo o curso da história. É esse o clima que Paulo produz com seu dramático “Agora, porém!” no início dessa passagem — que também introduz uma seção totalmente nova na carta, prosseguindo assim até o final do capítulo 4. Algo especial aconteceu. O tribunal estava reunido; todos foram declarados culpados no banco dos réus; o que mais podia ser feito? Entretanto, algo tinha de acontecer. Vários escritores judeus, mais ou menos contemporâneos de Paulo, refletiram profundamente sobre o dilema enfrentado por Deus, quandotoda a raça humana voltou as costas para ele. Para início de conversa, foi Deus quem criou o mundo. Isso teria sido um grande erro? Foi Deus quem chamou Israel e agora teria de enfrentar a escolha de favorecer essa nação específica, embora Israel não merecesse, ou então teria de recuar quanto às grandiosas promessas feitas a Abraão, Isaque e Jacó, as promessas envolvidas na “aliança”. O mundo estava, de modo excepcional, repleto de perversidade; entretanto, também havia muitas pessoas que sofriam amargamente nas mãos dos opressores e que clamavam a Deus para que lhes fizesse justiça. Como Deus poderia cumprir esses seus compromissos claros, considerando todos os aspectos da questão? Esse é o problema da retidão de Deus ou, caso prefira, da justiça de Deus, ou quem sabe ainda da fidelidade pactual de Deus. Temos, diante de nós, a questão a que Paulo se refere em 1:17, quando disse, antecipando-se à presente passagem, que o evangelho revela a justiça de Deus. Se fosse apenas a questão de algumas pessoas se comportarem bem e de outras se comportarem mal, seria tudo muito mais fácil. Caso Israel, de um modo específico, tivesse se comportado bem, e o restante do mundo, mal, tudo prosseguiria sem alteração. Entretanto, a complexidade do problema — e, se perdermos de vista essa complexidade, não conseguiremos compreender os detalhes de todo esse trecho — advém do fato de que Israel recebeu uma comissão e foi infiel. Os portadores da solução para o problema do mundo acabaram se tornando, eles próprios, uma parte do problema. Para que Deus permanecesse fiel às suas promessas e a toda sua criação, teria de lidar com tudo isso de uma só vez. A grande ironia é que a própria aliança, o contrato com o qual Deus se obrigou, celebrado com Abraão e sua família, foi projetado inicialmente para tratar da perversidade humana e de suas consequências. O livro de Gênesis está estruturado de tal modo a dizer: Deus chamou Abraão (Gênesis 12) a fim de desfazer o problema causado pelo pecado de Adão (cap. 3) e, com isso, colocar o projeto original (caps. 1 e 2) de novo nos trilhos. Eis o dilema específico no qual parece que Deus ficou preso: em face de um mundo que deu errado, ele celebrou uma aliança com Israel mediante a qual tudo seria de novo consertado. Ele precisa manter-se leal a essa aliança; caso contrário, como poderá salvar o mundo? No entanto, o próprio povo da aliança o deixou totalmente decepcionado e se revelou parte do mundo que necessita de salvação. Deus não pode fazer o que o povo da aliança espera (resgatá-lo de sua situação atual, apesar de eles mesmos serem culpados) sem que seja acusado de parcialidade, de favoritismo em larga escala. O que, então, Deus deve fazer? O problema, portanto, não é somente com relação à justiça de Deus. Mas, sim, sobre a justiça pactual ou justiça da aliança de Deus. Nesse ponto, a palavra em geral traduzida como “justiça” carrega todas essas sutilezas e ainda outras adicionais. Ela fala da maneira como Deus deve ser e será leal em relação à sua aliança, e também da maneira como essa mesma aliança estava lá para colocar o mundo e os seres humanos em ordem, para endireitá-los. E agora, declara Paulo, o evangelho de Jesus de Nazaré, o Messias de Israel, demonstra como Deus resolveu todos esses problemas de uma só vez. A morte fiel do Messias revela, diante de um mundo despreparado e chocado, a maneira como o único Deus verdadeiro permaneceu fiel à aliança e, desse modo, providenciou a resposta para um mundo que dera errado e para os seres humanos perdidos em pecado e culpa. Paulo abre essa famosa passagem, uma das mais conhecidas de tudo o que escreveu, insistindo que tanto essa nova revelação se cumpriu “à parte da lei” como a lei e os profetas dão testemunho disso. Esse equilíbrio é vital. A nova palavra de Deus precisava ser “à parte da lei”, porque, caso contrário, apenas os que estivessem “na lei”, ou seja, os judeus, poderiam recebê-la. E, de acordo com o versículo 20, ela de nada lhes adiantaria de qualquer maneira. Entretanto, precisava ser uma palavra que, olhando em retrospecto, fosse vista como tendo cumprido tudo o que Deus prometera havia muito tempo. Paulo insiste, aqui e em outras partes, em que Deus não muda sua forma de pensar. Sua palavra jamais falha. O que era preciso, como já vimos no início do capítulo 3, era que a fidelidade de Deus entrasse em operação. E isso sem que se descartasse o plano da aliança de salvação do mundo através de Israel, começando tudo outra vez por algum meio diferente. De algum modo, isso ocorreria, sim, com a chegada de um israelita fiel que pudesse oferecer a Deus a fiel obediência que Israel deveria ter oferecido, porém fracassou em fazer. Israel, chamado para ser o mensageiro do plano salvador de Deus, corrompeu sua vocação, transformando-a em mero privilégio próprio e fracassando em passar a mensagem adiante. Agora podemos ver quem é o israelita fiel que Paulo tinha em mente: o representante de Israel, o Messias, Jesus. O fato de o Messias representar seu povo, de modo que aquilo que é verdade a seu respeito também é verdade a respeito deles e vice-versa, é uma das surpresas no modo de pensar de Paulo. Ainda vamos deparar com esse entendimento muitas vezes, mas, em nossa passagem atual, isso serve para explicar a noção da fidelidade de Jesus. Em geral, as pessoas traduzem as importantes palavras do versículo 22 como “fé em Jesus”, mas elas apresentam o claro significado de “a fé, ou fidelidade, de Jesus”. E, à luz de todo o capítulo, podemos verificar que isso está correto e que Paulo não quer dizer “fé’ no sentido “do que Jesus cria”, porém “fidelidade”, no sentido de “fidelidade de Jesus quanto aos propósitos salvíficos que Deus tinha em mente quando chamou Israel para celebrar com eles uma aliança”. Paulo prossegue naturalmente enfatizando, como em 1:16-17, que os beneficiários são os que têm fé, aqueles que creem no evangelho. Entretanto, a ação decisiva advém quando Jesus, como o Messias de Israel, torna-se “obediente até a morte, e morte de cruz”, conforme Paulo coloca em Filipenses 2:8. A “obediência” do Messias se torna, de fato, um dos mais importantes temas do capítulo 5, quando Paulo resume suas conclusões, recordando, em especial, o presente capítulo. “Fidelidade” e “obediência”, no final das contas, são duas formas de dizer praticamente a mesma coisa. A “fidelidade” ressalta o papel de Jesus no cumprimento da comissão de Israel, enquanto a “obediência” ressalta sua submissão à vontade do pai. O resultado disso (v. 24) é “redenção”. Esse é mais um daqueles termos técnicos de que todo cristão já ouviu falar, mas que poucos realmente compreendem. Paulo resume, no versículo 23, o ponto ao qual chegou com sua reflexão até aqui: tanto os judeus como os gentios pecaram e falharam em refletir a glória de Deus — glória à qual, como criaturas portadoras de sua imagem, foram chamados a refletir. Na perspectiva clássica bíblica, estão todos escravizados, do mesmo modo que Israel no Egito. O que Deus fez com Israel à época fez em relação ao mundo inteiro agora, em Jesus: ele providenciou “redenção”. A palavra é um termo técnico que se refere a comprar de volta um escravo do mercado de escravos, ou resgatar um objeto de uma loja de penhores. No entanto, Paulo não a usa aqui apenas como uma metáfora, como mais uma figura entre tantas outras. Ele a emprega porque, para ele, a morte de Jesus é de fato o Novo Êxodo, o momento no qual os escravos são libertados. Ele ainda tem muito a falar a esse respeito mais adiante, porém aqui ele apenas o declara. Deus supriu a necessidade do mundo, libertando-o da escravidão. Essa “redenção” provê o que as pessoas culpadas no banco dos réus dificilmente ousariam esperar: não somente o perdão, porém o veredicto de “estarem certas!”. É claro que, uma vez que são realmente culpados, esse veredicto tem o efeito de um perdão gratuito; mas, quando Paulo, no início do versículo 24, declara que eles “são gratuitamente declarados justificados”, quer dizer não apenas que são deixadosem liberdade — o que em si, de forma extraordinária, já seria suficiente —, mas também que recebem o status de o povo da aliança de Deus, o povo já declarado como “certo” no presente, muito antes do grande veredicto do último dia. Como Deus pode fazer uma coisa de tamanha magnitude? Como pode a morte, mesmo sendo a do Messias Jesus, surtir esse efeito? Como Deus pode declarar que as pessoas “estão certas”, aqui e agora, tempos antes do dia final, quando os segredos de todos os corações serão revelados? Paulo responde a essas perguntas, vez após vez, em vários pontos de seus escritos. Entretanto, os dois versículos seguintes, de tanta densidade, fornecem-nos uma explicação imediata e é para eles que nos voltamos agora. ROMANOS 3:25-26 A MORTE DE JESUS REVELA A JUSTIÇA DA ALIANÇA DE DEUS 25Deus introduziu Jesus em posição de misericórdia, mediante sua fidelidade, por meio de seu sangue. Ele fez isso para demonstrar a sua justiça pactual, através da tolerância (segundo a longanimidade divina) dos pecados anteriormente cometidos. 26Isso ocorreu para que pudesse demonstrar a justiça de sua aliança no tempo presente; ou seja, que ele próprio está certo, e que ele também declara como certo todo aquele que confia na fidelidade de Jesus. Algumas vezes — e hoje é uma dessas vezes —, minha mesa de trabalho, e outras no escritório, estão tão repletas de enormes pilhas de papéis que eu já sei que não adianta nada apanhar um ou dois deles, vez após outra, procurando colocar tudo em dia. Eu preciso adotar um procedimento diferente, reservando uma ou duas horas para trabalhar, de forma sistemática, sobre eles, respondendo às cartas, arquivando os incontáveis documentos que talvez eu queira ver de novo e (é claro) jogando um monte deles na cesta de lixo. Aqui, a última coisa que eu recomendaria é jogar qualquer sílaba dos escritos de Paulo na cesta de lixo, mas, com essa exceção em mente, a analogia é bastante útil. Existem alguns trechos de seus escritos que podemos assimilar com relativa facilidade. No entanto, existem outros, como este que temos aqui agora, de conteúdo tão denso que a única maneira de lidar com eles é sentando-se e trabalhando sobre eles de forma minuciosa e completa. Em alguns pontos, encontraremos o equivalente a cartas que demandam resposta; ou seja, haverá, ou deveria haver, partes que deveriam levar-nos à oração, à reflexão, a expressar gratidão e adoração. Em outras partes, encontraremos o equivalente a documentos a serem arquivados; ou seja, haverá (ou deveria haver) ideias, imagens e temas que desejaremos anotar para futura consulta, colocando-os em algum canto de nossa mente ou talvez até mesmo em um caderno ao qual poderemos ter acesso sempre que precisarmos. Essa passagem sugere que existem ao menos três pilhas principais nas quais necessitamos classificar o material. Muito incomum de sua parte, Paulo repete praticamente a mesma frase, que traduzi como “demonstrar a justiça de sua aliança”. A primeira vez está relacionada a Deus lidando com o pecado. A segunda vez tem a ver com a demonstração de Deus de que ele próprio está certo e com sua declaração a respeito do novo status de seu povo renovado. E, diante dessa dupla demonstração, encontramos uma breve e poderosa declaração sobre a morte sacrificial de Jesus. Vamos colocá-las em ordem. Paulo acabou de afirmar que Deus providenciou “redenção” em Jesus — ou seja, o resgate da escravidão. Agora, ele desloca o foco para a linguagem do templo e do sacrifício. Deus “introduz Jesus” do mesmo modo que um sacerdote do Templo introduziria o pão da Presença no altar (Levítico 24:8 e em outros lugares). Paulo combina essa palavra com outra especial que se refere a um item da mobília do templo em particular: O “assento da misericórdia”, o “lugar de misericórdia”, onde, entre os anjos esculpidos, Deus se encontrava com seu povo em graça e perdão. No lugar do templo e de seu simbolismo, Paulo está dizendo que, agora, o próprio Jesus é o lugar no qual (e também o meio pelo qual) o Deus de Israel encontrou-se com seu povo e perdoou seus pecados. Uma terceira ideia se une, de forma significativa, a essas duas primeiras: o perdão é efetivado mediante o sangue de Jesus. Sua morte sacrificial está no próprio cerne do plano salvífico de Deus. Paulo não explica mais do que isso, qual é sua compreensão dessas ideias ou como as vê reunidas em um só quadro. No entanto, juntas, elas declaram, de maneira poderosa, que a morte de Jesus trouxe à luz a realidade da qual o templo era apenas um sinal antecipado que indicava o caminho. A melhor forma de se compreender o que Paulo está mostrando consiste em imaginar que ele possuía como pano de fundo de seus pensamentos o perfil completo do Servo Sofredor de Isaías 53, o que inclui a ideia da morte sacrificial do Servo e pertence, dentro de uma perspectiva mais ampla, ao modo como o Deus de Israel pode ser, afinal, fiel a seu antigo plano da aliança (a justiça de Deus). Se isso nos capacita a colocar em ordem todas as ideias da primeira sentença do versículo 25, o que dizer da segunda? Deus, afirma Paulo, tolerou os pecados cometidos anteriormente e agora está demonstrando sua justiça a respeito desse fato. Como afirmou no início do capítulo 2, Deus tem sido bondoso e longânimo, paciente para com os pecadores persistentes, dando-lhes uma chance de arrependimento. Isso pode ter parecido uma fraqueza, ou ainda ter dado a ideia de que Deus não se importa tanto assim com o pecado. Nada pode estar mais distante da verdade. Deus estava obrigado, em função de ser o criador e o juiz do mundo, a agir de maneira decisiva em relação ao pecado — o que significa puni-lo. Aqui encontramos mais um significado no conceito de “lugar de misericórdia” da sentença anterior. A mesma raiz da palavra também se refere a um sacrifício “propiciatório”, ou seja, um sacrifício que não só purifica as pessoas do pecado, como também desvia a ira de Deus, a qual, de outro modo, recairia com justiça sobre o pecador. Apesar de, mais uma vez, Paulo não dar maiores explicações nem trazer mais detalhes, há toda uma gama de linhas convergentes de pensamento que torna muito provável que ele veja Jesus também dentro dessa perspectiva — em outras palavras, como aquele sobre quem a ira apropriada de Deus, direcionada contra o pecado do mundo, agora recai (de certa forma, uma declaração mais completa sobre esse mesmo tema se encontra em 8:3). No cerne da justiça da aliança de Deus, portanto, está seu “introduzir” Jesus a fim de levar sobre si mesmo a ira de Deus, da qual Paulo fala no capítulo 1. O dia do juízo final foi antecipado para o meio da história. O justo veredicto de Deus contra os pecadores foi pronunciado contra o israelita fiel, o representante de Israel: o Messias, Jesus. Creio que estamos começando a perceber ordem e significado no denso fluxo de palavras de Paulo. A última ideia, a de um veredicto sendo antecipado para o meio da história, capacita-nos a entender também a sequência final. A justiça da aliança de Deus, exibida em sua forma de lidar com o pecado mediante a morte de Jesus, também é demonstrada pela declaração gratuita, no presente, de que todo aquele que crê no evangelho está justificado [é declarado certo]. Mais uma vez, o veredicto do último dia foi antecipado para o meio da história. Não temos de esperar para descobrir quem será inocentado, quem, de fato, pertence ao povo de Deus. Eles já usam uma marca distintiva que os destaca “no tempo presente”, como diz Paulo. Aqui está o significado da expressão “justificação pela fé”: quando alguém crê no evangelho, Deus declara que ele é verdadeiramente um dos que serão inocentados no futuro. Essa declaração carrega em si um sentido jurídico: é como conhecer o veredicto antes mesmo de se ouvir o caso. Ela também guarda em si o sentido de aliança: no presente, vemos aqueles a quem Deus vai declarar como os verdadeiros filhos de Abraão (ver o cap. 4) no futuro. E,12:31b—13:7 • A necessidade do amor e o caráter do amor 1CORÍNTIOS 13:8-13 • Amor: a ponte para o futuro de Deus 1CORÍNTIOS 14:1-5 • Prioridades na adoração 1CORÍNTIOS 14:6-12 • Falando com clareza na igreja 1CORÍNTIOS 14:13-19 • Orando com a mente e com o espírito 1CORÍNTIOS 14:20-25 • Sinais para os crentes e os incrédulos 1CORÍNTIOS 14:26-40 • Instruções finais para adoração 1CORÍNTIOS 15:1-11 • O Evangelho do Messias: crucificado, sepultado e ressurreto 1CORÍNTIOS 15:12-19 • E se o Messias não houvesse ressuscitado? 1CORÍNTIOS 15:20-28 • O Reino do Messias 1CORÍNTIOS 15:29-34 • A ressurreição dá sentido à vida cristã no presente 1CORÍNTIOS 15:35-49 • O corpo transformado da ressurreição 1CORÍNTIOS 15:50-58 • O mistério e a vitória 1CORÍNTIOS 16:1-9 • A oferta e os planos de Paulo 1CORÍNTIOS 16:10-14 • Timóteo e Apolo 1CORÍNTIOS 16:15-24 • O amor que costura tudo junto Glossário 2��������� Introdução Mapa 2CORÍNTIOS 1:1-7 • O Deus de todo-conforto 2CORÍNTIOS 1:8-14 • Incrivelmente esmagado 2CORÍNTIOS 1:15-22 • Os planos de Paulo e o “sim” de Deus 2CORÍNTIOS 1:23—2:4 • Visita dolorosa, carta dolorosa 2CORÍNTIOS 2:5-11 • Tempo de perdoar 2CORÍNTIOS 2:12-17 • O cheiro da vida, o cheiro da morte 2CORÍNTIOS 3:1-6 • A letra e o espírito 2CORÍNTIOS 3:7-11 • Morte e glória 2CORÍNTIOS 3:12-18 • O véu e a glória 2CORÍNTIOS 4:1-6 • Luz que brilha na escuridão 2CORÍNTIOS 4:7-12 • Tesouros em vasos de barro 2CORÍNTIOS 4:13-18 • O Deus de todo-conforto 2CORÍNTIOS 5:1-5 • Uma casa esperando nos céus 2CORÍNTIOS 5:6-10 • O trono de julgamento do Messias 2CORÍNTIOS 5:11-15 • O amor do Messias nos faz persistir 2CORÍNTIOS 5:16—6:2 • Nova criação, novo ministério 2CORÍNTIOS 6:3-13 • Os servos de Deus trabalhando 2CORÍNTIOS 6:14—7:1 • Não se comporte como um deles 2CORÍNTIOS 7:2-10 • O Deus que conforta o desanimado 2CORÍNTIOS 7:11-16 • Nosso orgulho se provou verdadeiro 2CORÍNTIOS 8:1-7 • A generosidade das igrejas da Macedônia 2CORÍNTIOS 8:8-15 • Copiando a generosidade do Senhor Jesus 2CORÍNTIOS 8:16-24 • Os companheiros de Paulo estão a caminho 2CORÍNTIOS 9:1-5 • Por favor, tenham a oferta separada! 2CORÍNTIOS 9:6-15 • Deus ama a quem dá com alegria 2CORÍNTIOS 10:1-11 • A batalha pela mente 2CORÍNTIOS 10:12-18 • Orgulhando-se no Senhor 2CORÍNTIOS 11:1-6 • Superapóstolos? 2CORÍNTIOS 11:7-15 • Não, eles são apóstolos falsos! 2CORÍNTIOS 11:16-21a • O orgulho de um tolo relutante 2CORÍNTIOS 11:21b-33 • Orgulhando-se da fraqueza 2CORÍNTIOS 12:1-10 • A visão e o espinho 2CORÍNTIOS 12:11-18 • Os sinais de um verdadeiro apóstolo 2CORÍNTIOS 12:19—13:4 • O que vai acontecer quando Paulo chegar? 2CORÍNTIOS 13:5-10 • Testem a si mesmos 2CORÍNTIOS 13:11-13 • Graça, amor e comunhão Glossário ������� � ��������������� Introdução Mapa ������� GÁLATAS 1:1-9 • O sofrimento de Paulo em relação aos gálatas GÁLATAS 1:10-17 • A conversão e o chamado de Paulo GÁLATAS 1:18-24 • A primeira visita de Paulo a Pedro GÁLATAS 2:1-5 • Firmes contra a oposição GÁLATAS 2:6-10 • O acordo de Paulo com Pedro e Tiago GÁLATAS 2:11-14 • Paulo confronta Pedro em Antioquia GÁLATAS 2:15-21 • Justificados pela fé, não pelas obras da lei GÁLATAS 3:1-9 • A promessa de Deus e a fé de Abraão GÁLATAS 3:10-14 • Redimidos da maldição da lei GÁLATAS 3:15-22 • Cristo, a semente; Cristo, o mediador GÁLATAS 3:23-29 • A chegada da fé GÁLATAS 4:1-7 • O filho e o espírito GÁLATAS 4:8-11 • O verdadeiro Deus e os falsos deuses GÁLATAS 4:12-20 • O apelo de Paulo aos seus filhos GÁLATAS 4:21-31 • Os dois filhos de Abraão GÁLATAS 5:1-6 • Liberdade em Cristo GÁLATAS 5:7-12 • As advertências contra a concessão GÁLATAS 5:13-21 • A lei e o espírito GÁLATAS 5:22-26 • Os frutos do espírito GÁLATAS 6:1-5 • Levando os fardos uns dos outros GÁLATAS 6:6-10 • Apoio prático na igreja GÁLATAS 6:11-18 • Vangloriando-se na cruz 1��������������� 1TESSALONICENSES 1:1-5 • O evangelho chega a Tessalônica 1TESSALONICENSES 1:6-10 • A fé dos tessalonicenses 1TESSALONICENSES 2:1-8 • O ministério de Paulo em Tessalônica 1TESSALONICENSES 2:9-12 • A preocupação paternal de Paulo 1TESSALONICENSES 2:13-16 • A igreja perseguida 1TESSALONICENSES 2:17-20 • A alegria e a coroa de Paulo 1TESSALONICENSES 3:1-5 • Timóteo é enviado 1TESSALONICENSES 3:6-10 • O relato de Timóteo 1TESSALONICENSES 3:11-13 • As palavras abençoadoras de Paulo 1TESSALONICENSES 4:1-8 • As instruções de uma vida santa 1TESSALONICENSES 4:9-12 • Uma vida de amor 1TESSALONICENSES 4:13-18 • A vinda do Senhor 1TESSALONICENSES 5:1-11 • Os filhos da luz 1TESSALONICENSES 5:12-22 • Exortações finais 1TESSALONICENSES 5:23-28 • Bênçãos e desafios finais 2��������������� 2TESSALONICENSES 1:1-7a • Saudações e gratidão 2TESSALONICENSES 1:7b-12 • A vinda de Jesus 2TESSALONICENSES 2:1-12 • O homem da iniquidade 2TESSALONICENSES 2:13-17 • Exortação à perseverança 2TESSALONICENSES 3:1-5 • Pedidos de oração 2TESSALONICENSES 3:6-13 • Os riscos da ociosidade 2TESSALONICENSES 3:14-18 • Recomendações finais Glossário ������ �� ������ | �������, ����������, ����������� � ������� Introdução Mapa ������� EFÉSIOS 1:1-3 • Bênçãos ao Deus soberano! EFÉSIOS 1:4-10 • A escolha e o plano EFÉSIOS 1:11-14 • A herança e o espírito EFÉSIOS 1:15-23 • Conhecendo o poder do rei EFÉSIOS 2:1-7 • Sinais de alerta na estrada errada EFÉSIOS 2:8-10 • Graça, não obras EFÉSIOS 2:11-16 • Dois se transformarão em Um EFÉSIOS 2:17-22 • Revelando o novo santuário EFÉSIOS 3:1-7 • Por fim, o plano secreto de Deus é revelado EFÉSIOS 3:8-13 • Sabedoria para os governantes EFÉSIOS 3:14-21 • O amor de Deus, o poder de Deus — em nós EFÉSIOS 4:1-10 • Vivendo de acordo com seu chamado! EFÉSIOS 4:11-16 • Cristianismo maduro EFÉSIOS 4:17-24 • Dispa-se do velho; vista-se com o novo EFÉSIOS 4:25—5:2 • A bondade que imita o próprio Deus EFÉSIOS 5:3-10 • Escuridão e luz nas questões de sexo EFÉSIOS 5:11-20 • Luz e escuridão EFÉSIOS 5:21-33 • Esposas e maridos EFÉSIOS 6:1-9 • Crianças, pais, escravos e chefes EFÉSIOS 6:10-17 • A armadura completa de Deus EFÉSIOS 6:18-24 • Oração e paz ���������� FILIPENSES 1:1-11 • As razões de Paulo para a gratidão FILIPENSES 1:12-18a • O rei é proclamado FILIPENSES 1:18b-26 • Viver ou morrer? FILIPENSES 1:27-30 • O evangelho em público FILIPENSES 2:1-4 • Unidade em tudo FILIPENSES 2:5-11 • A mente do Messias FILIPENSES 2:12-18 • Como a salvação é revelada FILIPENSES 2:19-24 • Sobre Timóteo FILIPENSES 2:25-30 • Sobre Epafrodito FILIPENSES 3:1-6 • Advertência: não confie na carne FILIPENSES 3:7-11 • Ganhando o Messias FILIPENSES 3:12-16 • Perseguindo a linha de chegada FILIPENSES 3:17—4:1 • Cidadãos do céu FILIPENSES 4:2-9 • Celebrem no Senhor! FILIPENSES 4:10-13 • O segredo oculto FILIPENSES 4:14-23 • Agradecimentos finais e saudações ����������� COLOSSENSES 1:1-8 • Graças pela obra do Evangelho COLOSSENSES 1:9-14 • Oração por sabedoria e gratidão COLOSSENSES 1:15-20 • Em louvor ao rei Jesus COLOSSENSES 1:21-23 • Reconciliados e firmes na fé COLOSSENSES 1:24-29 • O rei que vive em você COLOSSENSES 2:1-7 • O tesouro escondido de Deus — o rei Jesus! COLOSSENSES 2:8-12 • Cuidado com os impostores COLOSSENSES 2:13-19 • A lei e a cruz COLOSSENSES 2:20—3:4 • Morrer e ressuscitar com Cristo COLOSSENSES 3:5-11 • Roupas velhas; roupas novas COLOSSENSES 3:12-17 • Amor, paz e ações de graças COLOSSENSES 3:18—4:1 • A família cristã COLOSSENSES 4:2-9 • A fraternidade da oração COLOSSENSES 4:10-18 • Saudações de outros ������� FILEMOM 1-7 • Saudações FILEMOM 8-14 • O apelo de Paulo FILEMOM 15-25 • A perspectiva de Paulo Glossário ������ ��������� | 1, 2 ������� � ���� Introdução 1������� 1TIMÓTEO 1:1-7 • Ensino verdadeiro sobre a verdade 1TIMÓTEO 1:8-11 • O propósito da lei 1TIMÓTEO 1:12-17 • Paulo como um exemplo da graça salvadora de Deus 1TIMÓTEO 1:18-20 • A batalha da fé 1TIMÓTEO 2:1-7 • A primeira regra: oração pelo mundo 1TIMÓTEO 2:8-15 • É preciso permitir que as mulheres aprendampor fim, carrega um sentido do futuro adentrando o presente em Jesus. Aqueles que conhecerão um veredicto favorável no último dia (conforme o cap. 2) são aqueles que recebem a garantia disso de forma antecipada, simplesmente ao crerem. Isso ainda demonstra que o próprio Deus “está certo”. Nós nos lembramos da confusão feita por certos escritores contemporâneos de Paulo: em face do pecado universal e das promessas de Deus a Israel, como Deus pode ser justo, como Deus pode estar certo, ser fiel à aliança e, ao mesmo tempo, fazer o que um juiz justo deve fazer — por um lado, tratando do mal, e, por outro, resgatando pessoas impotentes que a ele clamam em sua aflição? Aquilo que Paulo escreve aqui, em um estilo reconhecidamente denso e bem compactado, corresponde a essas questões. Na morte de Jesus, Deus mostrou a si mesmo (1) certo [justo] ao lidar, de maneira apropriada e imparcial, com o pecado; (2) fiel para com sua aliança; (3) tratando o pecado de forma adequada; (4) mantendo o compromisso de salvar aqueles que clamam com fé, em meio à sua impotência. Parece que a última linha desse texto, em si mesma bastante densa, quer dizer o seguinte: que, como a fidelidade de Jesus foi o meio pelo qual a própria fidelidade da aliança de Deus foi revelada, aqueles que depositam sua própria fé na ação de Deus em Jesus são sinalizados desse modo como o povo de Deus já no presente. Deus justificados [declarados certos]; nós, que confiamos em seu evangelho, estamos certos; e tudo isso por causa da morte de Jesus. Quando estamos lendo Paulo, existem muitos momentos em que a reação correta seria ficarmos de joelhos e darmos graças a Deus. Este momento é um deles. ROMANOS 3:27-31 O DEUS TANTO DE JUDEUS COMO DE GENTIOS 27O que dizer, então, da vanglória? Foi excluída! Por meio de que tipo de lei? Pela lei das obras? Não: pela lei da fé! 28Calculamos, portanto, que uma pessoa é declarada como estando certa com base na fé, à parte das obras da lei. 29Ou Deus é apenas o Deus dos judeus? Não é, de igual modo, também o Deus das nações? Sim, é claro, também das nações, 30uma vez que Deus é um só. Ele fará a declaração “de estarem certos” sobre os circuncisos com base na fé, e sobre os incircuncisos também, mediante a fé. 31Abolimos, portanto, a lei pela fé? Certamente que não! Antes, nós a estabelecemos. Uma das coisas que, regularmente, confundem os cristãos, quando saem da Grã-Bretanha e vão para a América do Norte ou vice-versa, é que, conforme diz um amigo meu, “eles cantam os hinos certos nos tons errados”. Em alguns casos, existem tons completamente diferentes, desconhecidos do outro lado do Atlântico, para os mesmos hinos. Outras vezes, cantam em tons bem conhecidos, mas com letras bem diversas. Algo semelhante a isso ocorre quando Paulo apanha a ideia de lei — a lei judaica, a Torá — e a coloca em um novo tom. Até aquele momento, ele e muitos outros judeus de seu tempo (não apenas os fariseus como ele, mas também outros grupos, como aqueles que escreveram os Manuscritos do mar Morto) pegavam a lei e a cantavam em um tom como o que segue: Deus deu a Torá a Israel, a lei santa, justa e boa. A Israel, ordena-se guardar a Torá; aqueles que o fizerem serão considerados o povo de Deus quando ele agir na história a fim de julgar as nações e resgatar Israel de suas garras. A maneira de dizer no presente quem será considerado justificado no futuro é que eles estão guardando “as obras da lei” no presente momento. Essa é sua marca distintiva no presente, o sinal presente de que eles serão justificados no futuro. Essa é a doutrina da “justificação pelas obras da lei”. É possível vê- la estabelecida com clareza em um dos Manuscritos do mar Morto (o que é conhecido, pelos rótulos aplicados pelos estudiosos, como documento 4QMMT). Muitas vezes, grupos específicos ressaltariam certas “obras” em particular, inclusive sua própria interpretação de mandamentos bíblicos específicos. Eles tomavam como certo que todos os judeus sabiam que precisavam guardar a Torá escrita, de modo que procuravam martelar na cabeça das pessoas novas leis que, segundo pensavam, expressavam a Torá de forma ainda mais precisa, levando em conta suas circunstâncias específicas. Essa questão de “identificar as pessoas de forma antecipada”, computando no presente quem seria inocentado no futuro, estava sempre restrita aos judeus. Somente eles possuíam a Torá e, portanto, em tese, tinham a chance de guardá-la (os prosélitos, ou seja, os gentios convertidos ao judaísmo, também podiam ser contados, mas somente ao se tornarem de fato judeus, mediante a circuncisão e assumindo para si as obrigações da Torá). Além disso, a questão de identificar as pessoas no presente, antes do julgamento futuro, costumava contemplar uma restrição dentro do próprio Israel. Os fariseus (e seus sucessores, os rabinos) pensavam que suas interpretações eram as únicas válidas. Havia outras divisões sobre esse ponto entre os próprios fariseus. Os escritores dos rolos pensavam que apenas sua seita seria considerada justificada — e, nesse contexto, somente aqueles dentro da seita que guardassem a lei de forma “adequada”. A palavra de Paulo para descrever tudo isso é “vanglória”, e ele declara que ela foi excluída pelo evangelho. Ele toma o tema da “lei”, colocando-o sob um tom completamente diferente, que nem ele nem seus contemporâneos podiam ter imaginado antes. Como é possível cumprir a lei? Como a lei pode dizer a você quem, no presente, está identificado como pertencente ao povo que Deus declarará justificado no futuro? A resposta é: não pode — caso você esteja entoando a “lei” em tom de “obras”. Mas pode, sim, caso você a entoe no tom chamado “fé”. Essa é uma ideia tão estranha que muitos leitores e a maior parte dos tradutores a deixaram de lado, traduzindo “lei” no versículo 27 como “sistema”, “princípio” ou algo parecido com isso. Isso parece fazer algum sentido, mas somente ao exorbitante custo de fazer Paulo entoar um hino completamente diferente. Mais adiante nessa carta, em particular em 10:4-9, ele explicará, em maiores detalhes, o que quer dizer por cumprimento da lei judaica mediante a fé que crê no evangelho do Jesus crucificado e ressurreto. Aqui, ele simplesmente toma como certa essa linha de pensamento, correndo para seus principais pontos. Há três deles, cada um deles vital para se compreender o ponto nevrálgico de Romanos. Primeiro, a própria “justificação pela fé”. Conforme enfatizei na passagem anterior, isso se refere ao fato de que, quando alguém crê no evangelho de Jesus, Deus declara antecipadamente o veredicto do último dia: essa pessoa faz parte da família da aliança, ou seja, está entre as pessoas cujos pecados foram perdoados, pertencendo ao verdadeiro povo de Abraão, o povo do Messias. Existem muitas outras conclusões a que as pessoas já chegaram sobre o que Paulo quis dizer com “justificação pela fé”. Isso, porém, está no centro de sua definição. Isso não quer dizer que Deus não esteja interessado em santidade. Não significa que as regras não são importantes, que “tudo vale”, desde que se tenha “uma fé” qualquer. Igualmente, não quer dizer que o que importa são os sentimentos ou as emoções no lugar da crença e do comportamento. Tampouco significa que Deus tentou fazer as pessoas serem boas, dando-lhes “obras” de caráter moral para fazer e, ao descobrir que isso era difícil demais para elas, baixou o nível de exigência, com o propósito de tornar as coisas mais fáceis. Significa, sim, algo mais seguro, mais garantido, mais estimulante e, sem dúvida alguma, surpreendente. Significa que, quando as pessoas creem nessa mensagem específica, de que Jesus é o Senhor e de que Deus o ressuscitou dentre os mortos, e por isso confiam a si mesmos ao Deus que realizou tudo isso, recebem a garantia agora, no presente, de pertencer à família de Deus. Isso não acontece por haver algo de meritório nessa crença, como se, no fim das contas, fosse “algo que fazemos para merecer o favor de Deus”. Antes, isso ocorre porque essafé é o sinal firme e infalível de que o evangelho já transformou o coração dessas pessoas, de modo que, agora, elas pertencem verdadeiramente à nova aliança. A fé, como ensina Paulo mais adiante nessa carta, vem pelo ouvir, e o ouvir, pela palavra proclamada do Messias (10:17). O segundo ponto principal é que, se essa fé é a marca distintiva única e exclusiva no presente para identificar o novo povo da aliança de Deus, então os judeus e os gentios pertencem, de igual modo, a esse povo, na mesma base. Por isso a “vanglória” está excluída. Se a base estivesse, sob qualquer hipótese, na “lei das obras”, então os judeus estariam, no mínimo, em posição de vantagem — como podemos ver nos fariseus e na seita do mar Morto. No entanto, se uma pessoa é considerada certa com base na fé, e não nas obras da lei, não subsistirá a tal posição vantajosa. É por esse motivo que Paulo logo parte para o confronto com todo aquele que ousa questionar sua conclusão: então, você diria que Deus, no fim das contas, é apenas o Deus dos judeus? Ele não é o único Deus, o criador de todo o mundo? Portanto, ele não providenciaria um conjunto único de regras que garanta a equidade a todos os membros da nova família da aliança? Sim, ele fará isso, declara Paulo. Quando os judeus crerem no evangelho, Deus os reafirmará como participantes da aliança com base naquela fé. E, quando os não judeus crerem no evangelho, Deus vai declarar que eles entraram para a família da aliança exatamente através da mesma fé. (Isso explica a súbita mudança em sua fala no versículo 30: os circuncisos “com base na fé” e os incircuncisos “mediante a fé”.) Em relação ao terceiro ponto, contido nesse último, vale a pena estendermos nossa reflexão um pouco mais. O monoteísmo reside no próprio cerne da fé judaica, e Paulo o emprega aqui para provocar um efeito devastador naqueles que reivindicam uma posição de privilégio permanente para os judeus. “Ouve, ó Israel, YHWH, nosso Deus, YHWH é um”: essa era e permanece sendo a confissão básica de fé, utilizada como uma oração diária por judeus devotos desde aqueles dias até hoje. Na verdade, essa oração era vista, de certa perspectiva, como o próprio centro da Torá, resumindo em si (em Deuteronômio 6:4-5) boa parte do que já fora transcrito. Foi dessa maneira que o próprio Jesus a viu (Marcos 12:29-30). Agora, Paulo aborda o mesmo tema, de modo a amarrar sua argumentação de que “não há distinção” (3:22; e, em 10:12, ele aborda mais ou menos o mesmo ponto). Se Jesus é o Messias de Israel, é chegada a hora de todas as nações serem convidadas a participar, em igualdade de condições, do povo de Deus. Isso significa que Paulo pode concluir, de forma triunfal, sua linha de argumentação: estamos entoando um hino totalmente diferente agora? Estamos abolindo a lei? Não, é claro que não! Nós a estamos dispondo em um tom muito melhor. Um tom que o próprio Deus revelou. Jamais houve a intenção de que a lei fosse cumprida “por obras”, da forma como os fariseus e outros tentaram fazer (ver 9:30 a 10:14). Desde o início, a lei foi projetada para ser entoada segundo o tom chamado “fé”. Com frequência, imagina-se que Paulo tinha uma visão negativa da lei, mas uma das razões para ele ter escrito Romanos foi deixar bastante claro que isso estava errado. A lei sempre foi a lei de Deus — e não foi abolida. Em vez disso, ela é cumprida de uma forma que ninguém jamais imaginou: mediante a fé. Esse é o tom que faz com que as palavras tenham o melhor sentido. ROMANOS 4:1-8 A ALIANÇA DE DEUS COM ABRAÃO 1O que diremos, então? Descobrimos que Abraão é nosso ancestral segundo o homem, no sentido da carne? 2Afinal de contas, se Abraão é considerado “certo [justo]” com base nas obras, então ele tem motivo para se vangloriar — mas não diante de Deus! 3Portanto, o que a Bíblia diz? “Abraão creu em Deus, e isso foi computado a seu favor, indicando que ele fora declarado certo [justificado].” 4Agora, quando alguém realiza “obras”, a recompensa que recebe não é considerada na base da generosidade, mas na base do que lhe é devido. 5Entretanto, se alguém não realiza “obras”, mas simplesmente crê naquele que declara os ímpios como “certos”, a fé que essa pessoa tem é contada como fazendo parte da justiça da aliança. 6Observamos a mesma coisa quando Davi fala da bênção que advém a alguém, a quem Deus estima como certo à parte das obras: 7“Bem-aventurados são aqueles cujas transgressões são perdoadas e cujos pecados são encobertos”; 8“Bem-aventurado é o homem a quem o Senhor não imputa pecado.” Imagine um menino de quatro anos que perdeu os pais em uma guerra terrível. Ele já tem idade suficiente para compreender o ocorrido e também para sofrer por isso, mas nem de longe tem idade suficiente para se sustentar por conta própria. Alguns parentes distantes cuidam dele por algum tempo, porém não dispõem do espaço nem dos recursos necessários para sustentá-lo de forma permanente. Eles o colocam para adoção. Ele fica imaginando o que será dele, em uma mescla de esperança e medo. Então, um dia chega uma mensagem. Um casal sem filhos pergunta se pode adotá-lo e criá-lo como seu próprio filho. Suas emoções estão imersas em uma grande confusão. É claro que ele está radiante. Surgiu uma perspectiva de futuro e a chance de uma vida nova. Ao mesmo tempo, porém, está preocupado. Que tipo de pessoas serão? Onde vivem? Que espécie de vida levam? Em resumo, de que tipo de família ele está prestes a fazer parte? A esta altura, essa é a pergunta natural que Paulo formula, considerando o que já disse em 3:21-31. Entretanto, essa nem sempre foi a pergunta natural para as pessoas que costumam ler Romanos. Muitos já leram o capítulo 3 como se fosse simplesmente a respeito de como pecadores, de forma individual, são justificados pela graça mediante a fé, sem referência às promessas de Deus para com Israel, à aliança e à “justificação” como a declaração de Deus de que, agora, o crente faz parte da família da aliança, a família na qual e através da qual Deus prometeu resolver a questão do mal. Se você deixar tudo isso de fora, então o capítulo 4, obviamente, aparecerá como uma surpresa inesperada no caminho. Por que Paulo, de repente, haveria de querer falar sobre Abraão? Várias respostas já foram dadas. Alguns sugerem que os oponentes de Paulo eram grandes admiradores de Abraão, de modo que ele quis demonstrar a possibilidade de usá-lo como estando de seu lado na discussão. Outros sugerem que Paulo simplesmente quis sustentar o que já dissera com um texto das Escrituras, a fim de mostrar que essa nova doutrina realmente “cumpre a lei”, no sentido de estar profetizada nas Escrituras Sagradas. Outros sugerem ainda que Paulo estaria apenas dando um exemplo da Bíblia de alguém que fora justificado pela fé. Todas essas são maneiras de não levar amplamente a sério o raciocínio de Paulo. Assim, para voltarmos ao ponto, após ter lido o capítulo 3 (e, no que concerne a esse assunto, também o cap. 2) da forma como lemos, a pergunta sobre Abraão é a pergunta natural a ser feita, exatamente como aquela que foi feita no assunto equivalente em Gálatas. Abraão foi o início da família da aliança, a família à qual agora pertencem os crentes. A “justificação” é a declaração de Deus de que alguém foi adotado nessa família. Mas que tipo de família é essa? Isso nos ajuda a compreender a pergunta que inicia o capítulo. É uma pergunta estranha, e a maioria das traduções falha em compreendê-la. Não existe nada no grego que corresponda ao que encontramos na maior parte das versões, sobre Abraão ter alcançado alguma coisa. Como ocorre na maior parte das vezes, Paulo começa com uma breve pergunta: “Que diremos, então? E, mais uma vez, como em tantas outras, ele propõe algo que, logo em seguida, contra-argumenta: descobrimos que Abraão é nosso ancestral segundo a carne? Em outras palavras, a família na qual agora fomos adotados é a família de sangue, a família física de Abraão? Ou somos seus parentes de alguma outra forma? Isso introduz a temática de todo o capítulo, que nada tema ver com Abraão como um exemplo de justificação ou com uma prova extraída das Escrituras, ou com qualquer outra coisa assim tão trivial. Trata-se, sim, de uma exposição da intenção de Deus de estabelecer aliança com Abraão em primeiro lugar e, a partir daí, da natureza da família de Abraão. O clímax do capítulo se apresenta em uma passagem muitas vezes considerada um aparte, no versículo 17. A questão central é que a família de Abraão não é composta de uma única etnia, mas de “muitas nações”. A espinha dorsal do capítulo é a exposição de Paulo sobre Gênesis 15. Ele cita 15:6 no versículo 3 e depois prossegue referindo-se a esse mesmo texto e aos temas mais amplos do capítulo e do contexto imediato de Gênesis, ao lonto de Romanos 4. Gênesis 15 é o capítulo no qual Deus estabelece a aliança com Abraão de forma solene, prometendo a ele uma “família” extraordinária. Foi nessa promessa que Abraão “creu” com a fé que foi “computada a seu favor, indicando que ele fora justificado”. O que vem a seguir, em Gênesis, é a cerimônia que estabeleceu a aliança. Isso deveria chamar nossa atenção para algo que muitos leitores nem imaginam: para Paulo, assim como para o judaísmo, “estar certo” com Deus é praticamente a mesma coisa que “ser um participante da aliança”. Na realidade, Gênesis 15:6 equivale a dizer: “Abraão creu em Deus, e essa foi a base da aliança então estabelecida.” A principal coisa contra a qual o capítulo argumenta, portanto, é toda e qualquer sugestão de que o cristianismo, no fim das contas, seja algum tipo de subconjunto do judaísmo étnico, conforme definido por “obras da lei”. Abraão não veio por essa via, afirma Paulo, ou ele não teria nada de que se vangloriar — o que, como Gênesis deixa claro, ele não fez. Tudo que Abraão fez foi confiar no Deus que declarou os ímpios como certos. A despeito do que alguns judeus dos tempos de Paulo estavam começando a sugerir, Abraão não teve nenhuma espécie de conhecimento antecipado da lei judaica à qual obedeceu. Gênesis não diz que “Abraão guardou as palavras da lei e por isso Deus estabeleceu sua aliança com ele”. Se dissesse, significaria, de forma veemente, que a verdadeira família da aliança de Abraão seria definida em todos os tempos pelo desempenho de tais “obras” — era nisso que, mais tarde, muitos rabinos queriam acreditar. Paulo resiste a qualquer conclusão desse tipo. Esse é o ponto que ele está procurando estabelecer nos versículos 4 e 5. Ele recorre à figura de alguém realizando um bom trabalho e, assim, ganhando simplesmente o salário de direito. E contrasta isso com alguém que não trabalha, porém apenas confia. Creio que essa imagem é apenas uma extensão da metáfora das “obras”, talvez uma ideia nova que ocorrera a Paulo naquele instante. A metáfora não funciona muito bem, porque, na segunda parte, Paulo fala de “alguém que confia no Deus que declara os ímpios como certos” — e, aqui, ele deixa de lado a questão de “trabalhar” ou “não trabalhar” e retorna a uma descrição direta do que Abraão fez de fato. Mas o que Paulo quer dizer com a afirmação de que Abraão confiou em um Deus como este, que declara os ímpios como certos? Paulo pode muito bem ter em mente o fato, ou pelo menos a tradição, de que Abraão fora um pagão típico antes de ser chamado pelo único Deus verdadeiro. E que, no momento de seu chamado, ele ainda continuava a ser, em todos os sentidos, um “incrédulo”, ignorando acerca de quem era esse Deus ou sobre o significado de segui-lo e de se sujeitar à sua vontade, adaptando-se à sua visão de vida. Mas, mesmo assim, Deus o chamou para celebrar com ele uma aliança, aliança projetada para tratar do problema da própria incredulidade e com toda a degradação, a desintegração e a perversão humana dela decorrentes (1:18-32). Em outras palavras, Abraão começou onde todos nós começamos; e, de um modo específico, Abraão começou onde os pagãos, os não judeus, começam. Foi nessa situação que Deus o encontrou. Não foi onde Deus o deixou; Deus não disse que Abraão estava bem, do modo como se encontrava. Sua confiança inicial na promessa de Deus a respeito de uma família muito maior foi apenas o início do processo de prova, de liderança e de transformação. Paulo se refere a isso mais adiante, nesse mesmo capítulo. Seu ponto principal, porém, é que os gentios, os não judeus, vêm, através da fé, para a aliança, exatamente como aconteceu com Abraão. Esse ponto será reforçado de diversos ângulos ao longo do capítulo. Paulo convoca uma segunda testemunha: Davi, o autor real de pelo menos alguns dos Salmos. No Salmo 32, citado aqui nos versículos 7 e 8, o escritor começa celebrando a felicidade das pessoas cujos pecados não lhes são imputados. Esse é o lado negativo do mesmo ponto por ele levantado. A aliança (não é possível enfatizar demais esse ponto) foi estabelecida para que se resolvesse a questão do pecado. Pertencer à aliança, no sentido que Paulo está expondo a questão, é ser alguém cujos pecados foram tratados da maneira descrita em 3:24-26. Ter os pecados da pessoa perdoados, não imputados ou contados contra essa pessoa é precisamente o que Deus se propôs a fazer ao chamar Abraão, para início de conversa. Entre muitos aspectos gloriosos em ser cristão, isto sempre estará entre os itens do topo da lista: seus pecados foram perdoados, encobertos, não imputados. Davi celebrou esse fato mil anos antes dos eventos no Calvário, e a Páscoa o colocou para sempre em um firme fundamento. Quanto mais não deveríamos nós celebrar essa realidade hoje! ROMANOS 4:9-12 ABRAÃO, O PAI TANTO DE CIRCUNCISOS COMO DE INCIRCUNCISOS 9E, então, essa bênção vem sobre os circuncisos ou sobre os incircuncisos? Eis a passagem que citamos: “A fé foi contada a favor de Abraão como um indicativo de que ele fora considerado certo.” 10Quando ela foi contada a seu favor? Depois que ele já estava circuncidado ou quando ainda era incircunciso? Não foi depois de sua circuncisão, mas, sim, quando ainda era incircunciso! 11Ele recebeu a circuncisão como um sinal e um selo de sua posição de membro da aliança, com base na fé que tinha quando ainda era incircunciso. Isso ocorreu para que ele pudesse ser o pai de todo o que crê, até mesmo dos incircuncisos, de modo que a posição de membro da aliança possa ser contada a favor deles também. 12Ele também, claro, é o pai dos circuncisos que não apenas são circuncidados, mas que também seguem os passos da fé que Abraão tinha quando ainda era incircunciso. Um dos momentos mais solenes de uma cerimônia de casamento ocorre quando a noiva e o noivo trocam alianças. Já celebrei muitos casamentos em minha vida. E também já esperei de pé lá, como um pai todo orgulhoso no casamento de meus próprios filhos. Esses momentos estão gravados para sempre em minha memória. A aliança declara a seu participante, ao cônjuge e ao mundo inteiro que um novo relacionamento se originou. Uma nova aliança foi celebrada. (O casamento, na realidade, é uma “aliança”, um acordo que une duas partes em um compromisso. Algumas vezes, os profetas do Antigo Testamento recorriam à imagem da aliança do casamento, incluindo seu estresse e sua tensão, a fim de enfatizar a natureza da aliança de YHWH com Israel.) O anel é um sinal e um selo da aliança. Ele fala de um amor eterno, que permanece firme para todo o sempre. No meu próprio caso, passaram-se muitos anos até que eu conseguisse, por fim, retirar meu anel do dedo — mais um sinal, assim creio, do laço indissolúvel entre mim e minha esposa. Quando Deus celebrou aliança com Abraão, deu-lhe algo equivalente. Era a marca distintiva da circuncisão. Dois capítulos depois de estabelecida a aliança, em Gênesis 17, Deus ordena a Abraão circuncidar a si mesmo e à criança que tivera com Hagar, a jovem escrava. Ao mesmo tempo, Deus promete a Abraão e Sara que, embora já sendo tão idosos, teriam um filho próprio. O versículo-chave (17:11) declara que a circuncisão deverá ser “um sinal da aliança” entre Deus e Abraão. Portanto, quando Paulo se refere a essa mesma passagem, afirmando que a circuncisão é “um sinale um selo do fato de Abraão ser considerado certo com base na fé”, espera que compreendamos que esse “considerado certo”, essa “justiça” (para usar o antigo termo técnico), significa o mesmo, em essência, que “ser membro da aliança”. É por esse motivo que, aqui, traduzi como “membro da aliança”. (Gostaria que existisse uma palavra na tradução que preenchesse todos os sentidos que a única palavra grega usada por Paulo tinha para ele, mas, como eu já disse, não existe. Isso faz parte da alegria e da tensão de ser um cristão pensante: sempre ter de imaginar a melhor forma de transmitir as coisas essenciais em uma cultura que está em contínua transformação.) Não é difícil descobrir o ponto principal abordado nesse parágrafo. Paulo retoma, reiteradas vezes, a questão da circuncisão versus a da incircuncisão, mas essa é a última vez que faz isso aqui em Romanos. Essa foi, claro, a questão central que estava por trás da controvérsia na Galácia: alguns cristãos judeus estavam procurando persuadir os gentios convertidos de que necessitavam ser circuncidados, de modo que pudessem tornar-se membros plenos da família de Abraão — e Paulo declara, com toda a firmeza, que eles não necessitam disso. Em Romanos, ele emprega alguns argumentos iguais aos usados em Gálatas, porém este, em particular, é novo: ele destaca, para colocar a coisa de forma simples, que Gênesis 15 vem algum tempo antes de Gênesis 17, de modo que, quando Deus estabelece a aliança, levando em conta a fé que Abraão possuía a seu favor em termos de ser declarado certo, Abraão ainda era incircunciso, e que permaneceu assim por algum tempo depois disso. Portanto, Paulo argumenta que não existe a possibilidade de alguém sequer sugerir que a circuncisão seria necessária para pertencer à família de Abraão. Caso contrário, naqueles tempos remotos, o próprio Abraão não estaria qualificado para isso. Isso conduz Paulo à primeira das duas respostas à pergunta crucial de 4:1. Em que tipo de família nós entramos? Descobrimos que Abraão é nosso antepassado no sentido físico? Em outras palavras, os gentios convertidos devem ser circuncidados e passar a considerar a si mesmos parte de Israel no aspecto étnico? A resposta clara de Paulo é não. Abraão é o pai de todo aquele que crê, inclusive dos incircuncisos. Eles também participam da aliança, simplesmente com base em sua fé (v. 11). Ao mesmo tempo, ele equilibra essa afirmação rapidamente no versículo 12. Ele não queria que ninguém concluísse (muito menos alguém na igreja de Roma, onde coisas desse tipo pegariam fogo) que, agora, o pertencimento à família de Abraão passara a ser apenas para os gentios! Não: ele é, de igual modo, o pai dos circuncisos. Entretanto, acrescenta uma importante e sempre controversa observação: Abraão é o pai dos circuncisos que não são meramente circuncidados, mas que também seguem os passos da fé de Abraão, a fé que ele possuía antes mesmo de ser circuncidado. Muitas pessoas resistem a essa conclusão, que, contudo, é inevitável. Paulo redefiniu a família de Abraão de duas maneiras. Primeiro, ele a abriu de modo a abrigar também os gentios, além dos judeus — de modo específico, os gentios que creem no evangelho. Segundo, ele a restringiu, de modo que ela não inclui mais, de forma automática, todos os judeus. Os judeus — a exemplo do próprio Paulo e de todos os cristãos mais antigos — são, obviamente, bem-vindos, e Paulo vai argumentar, mais adiante na carta, que Deus quer cada vez mais deles. Entretanto, o sinal dinstintivo que eles também precisam usar é o da fé cristã. Paulo devia estar consciente de como isso seria objeto de controvérsia naquele tempo e, de igual modo, tornou-se controverso em nosso tempo. Estamos cientes quanto ao risco de afirmar qualquer coisa que possa ser interpretada, mesmo que de forma implícita, como antijudaico e mais ainda como antissemita. E precisamos insistir que essa passagem e as demais de Paulo não se encaixam em nenhuma dessas duas categorias. Paulo, de fato, pertence ao mesmo contexto que outros líderes de movimentos judaicos dos últimos dois ou três séculos antes e depois dos tempos de Jesus. Parece ter havido uma noção, nesse período, de que Deus estaria, de algum modo, redefinindo Israel, redesenhando fronteiras, fazendo surgir uma renovação da aliança, segundo a qual nada podia ser tomado como certo. Paulo pertence a esse contexto essencialmente judaico. Mais tarde, ele rejeita firmemente a acusação de que poderia estar deixando seus companheiros judeus fora da equação. No entanto, ele se mantém claro: o pertencimento à família de Abraão é somente com base na fé. E, por “fé”, ele quer dizer, com toda a clareza, também a fé que descreverá no fim do capítulo: a fé que se concentra em Jesus e em sua ressurreição como o grandioso ato de renovação da aliança do Deus único e verdadeiro. Tudo isso será analisado mais a fundo nos capítulos de 9 a 11. Nos dias de hoje e em todas as gerações, a igreja deve garantir que a porta esteja totalmente aberta, com o propósito de permitir a entrada de pessoas de todos os grupos étnicos, de todos os tipos de famílias, de todas as regiões geográficas e de todo e qualquer histórico moral (ou imoral). Mas também deve garantir que as características que definem o pertencimento à essa família multiétnica permaneçam firmemente assentadas e concentradas na fé de que Jesus é o Senhor e de que Deus o ressuscitou dentre os mortos. Manter esse equilíbrio e fazer isso com o espírito certo ainda é a maior tarefa a ser enfrentada pelos cristãos do século 21. ROMANOS 4:13-17 ABRAÃO É O PAI DE TODOS OS QUE CREEM 13A promessa, como vocês podem ver, não chegou a Abraão ou à sua família mediante a lei — a promessa, digo, de que ele herdaria o mundo. Ela veio mediante a justiça da aliança pela fé. 14Porque, se aqueles que pertencem à lei a herdarão, então a fé é vazia, e a promessa foi abolida. 15Pois a lei desperta a ira de Deus; entretanto, onde não há lei, não há desrespeito à lei. 16Por isso é “pela fé”: para que seja de acordo com a graça, e de maneira que a promessa possa ser validada para toda a família — não apenas para aqueles que procedem da lei, mas para aqueles que compartilham a fé que Abraão possuía. Ele é o pai de todos nós, 17exatamente como a Bíblia diz: “Eu o transformei em pai de muitas nações.” Isso aconteceu na presença do Deus no qual ele creu, o Deus que dá vida aos mortos e chama à existência coisas que não existem. Hoje recebi um e-mail de um cristão judeu muito zangado, que se opôs, de forma veemente, a algo que eu disse, com todo o cuidado, sobre os atuais problemas no Oriente Médio. (Por alguns anos, morei e trabalhei em Jerusalém e ainda tenho amigos em diversas partes da surpreendente mistura de grupos étnicos e religiosos.) A questão principal que meu correspondente levanta é que Deus deu a terra a Israel e que essa promessa foi reafirmada em nossos próprios dias. Nada, portanto, deve permanecer no caminho da segurança de Israel e, por implicação, da extensão de seu território, visando abarcar toda a margem ocidental do rio Jordão. Esse é realmente um tema acalorado, e parece que ainda vai continuar assim, lamentavelmente, por um bom tempo. No entanto, eu o levanto aqui porque está relacionado diretamente ao que Paulo está elaborando no versículo 13 (ao qual conduzi meu correspondente em minha resposta). A promessa a Abraão e à sua família, diz Paulo, é que ele herdaria o mundo! Isso é espantoso. Vez após vez em Gênesis, o escritor declara que Deus prometeu a Abraão o trecho de território então conhecido como a terra de Canaã, mais ou menos a “terra santa”, tal como a conhecemos agora. Algumas vezes, escritos posteriores expandiram essa noção para abarcar tudo o que há entre o mar Vermelho e o rio Eufrates, muito além para o nordeste, mas Canaã permanecia como o foco central. E, mesmo quando os escritores expandiam o conceito de “terra santa”, ela continuava centrada no território originalmente prometido. Para Paulo, contudo, e de fato para todo o Novo Testamento, a ideiade uma terra santa, em termos de uma faixa territorial contra todos os outros, simplesmente desapareceu. Em seu lugar, começa a surgir um conceito completamente transformado de terra: o de que o mundo inteiro — em Romanos 8, é toda a criação — é reivindicado por Deus como a “terra santa” e é prometido a Abraão e à sua família como sua “herança”. Essa é uma das mais extraordinárias e impactantes revisões do pensamento padrão judaico que podemos imaginar. Certamente, é tão importante quanto a decisão de não exigir a circuncisão dos gentios convertidos. É claro que também guarda estreita relação com a revisão dramática das expectativas judaicas quanto ao futuro. O privilégio da geografia, assim como o privilégio do nascimento, nada vale no novo mundo sob o domínio do Messias crucificado e ressurreto. De acordo com o argumento de Romanos, essa promessa revista olha para a frente, como acabei de mencionar, especificamente para Romanos 8, de modo que se volta, de forma mais ampla, para um dos principais temas de toda a carta. A aliança da justiça de Deus sempre foi projetada de modo a consertar o mundo inteiro. Sem dúvida, Deus, como criador e juiz do mundo, encontra-se sob uma obrigação autoimposta de fazer exatamente isso. Portanto, não nos deveríamos surpreender que, neste capítulo, quando Paulo explica como a família de Abraão se transformou em uma entidade multiétnica, insistisse também que a intenção real de Deus, ao prometer a Abraão a terra de Canaã, foi a de reivindicar, governar e renovar o mundo inteiro. A terra santa foi, conforme parece, uma espécie de metáfora antecipada do alvo e da promessa maior. O ponto principal dos versículos 13, 14 e 15 é que, se as promessas não foram feitas com base na circuncisão, como vimos no parágrafo anterior, também não foram feitas com base na lei judaica. Abraão não possuía a lei. Ela ainda não fora dada naquele tempo. Entretanto, Paulo não emprega esse argumento aqui como faz em Gálatas 3. Em vez disso, adverte contra algo mais obscuro. Caso se insira a lei nessa equação, no fim das contas, ninguém herdará coisa alguma. O que ele quer dizer com isso? É necessário recorrermos a outras referências textuais ao mesmo problema (5:20, 6:14; e, a seguir, de maneira decisiva, 7:1 a 8:11) antes de sermos capazes de formar um painel completo do que Paulo está afirmando sobre a lei. Mesmo assim, ainda temos mais a esse respeito, especialmente em 9:30 a 10:13. Podemos, porém, iniciar o trabalho com o que já foi exposto em 2:17-29, 3:19-20 e 3:27-31. Parece que o principal problema com a lei é que sua função consiste em revelar o pecado e tratar dele — e o fato de que há muito pecado a ser revelado e do qual tratar, até mesmo entre o próprio povo da aliança. Desse modo, se a lei fosse uma característica que define o povo de Deus, ele simplesmente não teria “povo” algum. “Mediante a lei, vem o conhecimento do pecado”, conforme Paulo diz em 3:20. Ou, como no versículo 15, “a lei desperta a ira de Deus”. Se é para existir um povo renovado de Deus, deve existir, nesse sentido, uma área livre da lei para que eles possam viver e desabrochar dentro dela. Caso contrário (v. 14), a fé — especificamente, a fé de Abraão — seria inútil, e a promessa que Deus fez a ele estaria abolida. De maneira mais específica, mais uma vez, se os gentios devem entrar e participar do povo de Deus em iguais termos, deve haver espaço para que isso aconteça — espaço que não é definido pela lei judaica. A promessa deve ser válida para a família inteira, e não somente para uma parte dela (v. 16). É por esse motivo, conforme Paulo afirma, caso a tradução seja feita de forma literal, “que é ‘pela fé’, para que seja ‘de acordo com a graça’”. Isso significa, assim como em 3:27-30, que os gentios podem estar em pé de igualdade com os judeus. E tudo isso tem o propósito de dar a Abraão a família multiétnica que Deus lhe prometeu desde o início. O final do versículo 16 e o início do 17 constituem a verdadeira resposta à pergunta do versículo 1. Deus declara: “Eu o transformei em pai de muitas nações” (Gênesis 17:5). Paulo compreende isso como querendo dizer que a família por excelência prometida a Abraão jamais pretendeu ser formada simplesmente por uma única nação, derivando, sim, de todos os povos. Ele é “o pai de todos nós”. Como isso tudo surgiu? Ressaltando antigas pistas, Paulo declara que tem tudo a ver com o poder de criação do próprio Deus. Deus dá vida aos mortos e chama à existência coisas que não existiam antes. Talvez, aqui, Paulo esteja pensando como os judeus, assim como ele próprio (em certo sentido, já membros da aliança), eram “filhos da ira como o restante da humanidade” (Efésios 2:3), e necessitavam ser vivificados de uma nova maneira (compare com 11:15). E, por outro lado, em como os gentios estavam completamente fora da aliança (Efésios 2:12) e foram trazidos para seu interior, provenientes de lugar nenhum. A conversão dos judeus significa “vida dentre os mortos” (11:15); a dos gentios, uma “nova criação”. É assim que Deus, o criador, o doador da vida, chamou à existência uma nova família para Abraão, formada por judeus crentes e gentios crentes, em iguais termos. Não são muitos os cristãos que eu conheço que dão a devida importância ao fato de serem filhos de Abraão. Em geral, ficamos contentes em deixar isso para os judeus, e talvez até para os muçulmanos. No entanto, a ideia da família multiétnica de Abraão é importante no Novo Testamento (ver Mateus 3:8). Não seria a hora de retirar esse tema do armário, remover a poeira e colocá-lo em uso novamente? ROMANOS 4:18-25 A FÉ QUE ABRAÃO POSSUÍA — E A NOSSA 18Contra toda a esperança, mas ainda com esperança, Abraão creu que se tornaria o pai de muitas nações, alinhado com o que lhe fora dito: “É assim que será sua família.” 19Ele não fraquejou na fé ao considerar seu próprio corpo (que já estava quase morto, uma vez que já contava cem anos de idade) e a falta de vitalidade do ventre de Sara. 20Ele não vacilou em incredulidade quando se viu diante da promessa de Deus. Em vez disso, ele se fortaleceu pela fé e deu glória a Deus, 21estando plenamente convicto de que Deus era poderoso para realizar o que havia prometido. 22É por esse motivo que “foi contado a seu favor em termos da justiça da aliança”. 23Entretanto, não é somente para ele que foi escrito: “foi contado a seu favor.” 24Também foi escrito em relação a nós! E será contado a nosso favor também quando crermos naquele que ressuscitou nosso Senhor Jesus dentre os mortos, 25naquele que foi entregue por causa de nossas transgressões e ressuscitado por causa de nossa justificação. Quando minha família e eu emigramos para o Canadá, no início dos anos 1980, frequentemente pensávamos nos pioneiros que chegaram a um país novo e desconhecido, sem a mínima ideia do que encontrariam pela frente: como seria o clima, quais plantações vingariam ou se teriam qualquer futuro ou esperança naquele lugar. Visitamos vilas de pioneiros, com fazendas em operação que demonstravam como as coisas eram feitas, e ficávamos maravilhados com toda a coragem daquelas pessoas que haviam chegado, três ou quatro séculos antes. Pensamos muito no primeiro inverno que devem ter enfrentado. Enquanto escrevo estas palavras, em um dia de inverno em Londres, há neve nas ruas e nas calçadas, mas a temperatura está oscilando em torno do ponto de congelamento, nunca menos do que isso, e em breve a neve vai derreter. É raro isso apresentar algum problema — embora, de tempos em tempos, testemunhemos súbitas quedas vertiginosas quando, então, somos lembrados de como pode ser difícil a vida em outras partes do mundo. Imagine, porém, estar no Canadá sem aquecimento central, água quente ou transporte motorizado. Sua família adoece, alguns de seus animais estão morrendo, a lavoura que você plantou está soterrada sob uma espessa camada de neve e a terra abaixo disso está congelada a uma profundidade algumas vezes maior do que isso. Fevereiro dá lugar a março, e a neve e o gelo continuam lá, firmes. Quantotempo ainda durará o inverno? Imagine como teria sido mais fácil desejar nunca ter ido para lá, deixar de acreditar e de ter esperança. Mas eles mantiveram suas esperanças, trabalharam, constituíram famílias, edificaram comunidades e construíram um país. E isso me faz lembrar deles — não é uma ilustração perfeita, mas é um bom começo — quando penso nas absurdas fé e esperança de Abraão, a fé e a esperança que deram início à família da aliança, para início de conversa. Todas as pessoas em seu mundo sabiam, assim como todas de nosso mundo, sabem muito bem que, se um casal não tivera filhos até os cinquenta anos de idade, quanto mais se aproximando dos cem, o mais provável era que continuassem assim. E foi então, e para eles, que o Deus vivo, o criador do mundo, fez esta extraordinária promessa: vocês terão filhos tão numerosos quanto as estrelas do céu ou os grãos de areia nas praias. Essa é a promessa mencionada no versículo 18, quando Deus diz (Gênesis 15:5): “Assim será sua família.” Foi nessa promessa que Abraão creu quando disse, no versículo seguinte de Gênesis, “e foi calculado a seu favor, em termos de ser declarado certo” ou, se você preferir, “foi calculado a seu favor como a base de seu pertencimento à aliança”. (A linguagem mais antiga, “foi-lhe imputado como justiça”, possibilita-nos tantas mensagens diferentes hoje que é difícil para nós, ao ouvi-la, ter em mente tudo o que se passava na mente de Paulo.) Essa foi a fé no núcleo da família, fé no Deus que, aparentemente, prometeu coisas impossíveis e depois as realizou. A frase “esperando contra a esperança”, que algumas vezes citamos para indicar que permanecemos firmes, apesar de tudo à nossa volta parecer perdido, tem sua origem no versículo 18. A descrição de Paulo em relação à fé que Abraão teve vai ainda mais fundo do que simplesmente fazer um relato de heroica confiança, diante das chances esmagadoramente contrárias. É uma inversão deliberada de sua descrição da degeneração da raça humana no capítulo 1. Vale a pena olhar de novo 1:20 e seguintes. O que Paulo está dizendo é que, na fé que Abraão possuía e na fé do mesmo tipo de outras pessoas (as quais, como ele mesmo demonstra no fim do capítulo, significam, basicamente, a fé cristã), os seres humanos são colocados todos juntos novamente e capacitados a redescobrir como é a genuína vida humana. As coisas funcionam do seguinte modo: os seres humanos ignoraram Deus, seu criador (1:20,25); Abraão creu em Deus como o criador e doador da vida (4:17). Os seres humanos tinham conhecimento do poder de Deus, mas não o adoraram como Deus (1:20); Abraão reconhecia o poder de Deus e confiou que ele o usaria (4:21). Os seres humanos não deram a Deus a glória que lhe era devida (1:21); Abraão deu a Deus a glória (4:20). Os seres humanos desonraram seus próprios corpos ao adorarem seres não divinos (1:24); Abraão, ao adorar o Deus que concede vida nova, descobriu que seu próprio corpo recuperava suas forças, mesmo ele já tendo ultrapassado, havia muito, a idade de conceber um filho. Em cada um desses casos, o resultado é visível. Seres humanos desonrando seus corpos, com mulheres e homens deixando suas relações e se voltando para relações entre pessoas do mesmo sexo (1:26-27); Abraão e Sara, diante de sua confiança nas promessas de Deus, recebem o poder de conceber um filho (4:19). No mais profundo âmago da promessa da aliança de Deus, subjaz o cumprimento do mandamento mais fundamental no início de Gênesis 1, o mandamento que surge com a criação de macho e fêmea à imagem de Deus: Sejam férteis e multipliquem-se! À medida que vamos chegando ao fim de Romanos 4, percebemos que Paulo está dizendo, em larga escala, que o antigo sonho judaico foi cumprido. Deus chamou Abraão para desfazer o pecado da raça humana e foi assim que isso aconteceu. Deus é o Deus de uma nova esperança, de uma nova fertilização, porque ele é o Deus dos recomeços, de uma nova criação. Isso, porém, não ocorreu unicamente através de Abraão. Ele foi um sinal que apontava para mais adiante: para o início de uma estrada longa e sinuosa, e não para o alvo. O alvo, em si mesmo, foi alcançado em Jesus e nos eventos de sua morte e de sua ressurreição. Até aqui, Paulo mencionou essa realidade de forma bem resumida, nas palavras de abertura (1:3-4) e na compacta descrição da morte salvadora de Jesus (3:24-25). Entretanto, Paulo está certo de que seus leitores sabem sobre o que ele está falando e, ao concluir seu relato acerca da fé que Abraão possuía, traz o tema de volta à tona. Ele já descreveu como Deus considera, para efeitos imediatos, aqueles que creem em Jesus membros da família da aliança, garantindo que seus pecados foram perdoados (3:21-31). Agora, ele fundamenta isso em termos da própria aliança original. Abraão creu que Deus concederia vida onde não havia vida alguma. Os cristãos creem que Deus ressuscitou Jesus dentre os mortos. Em nenhum dos casos, há uma atitude de esperteza, uma posição meramente intelectual que possibilite evitar olhar o Criador face a face e confiar nele contra todas as probabilidades. Em ambos os casos, pode haver apenas o reconhecimento sincero de que Deus é Deus, de que nossa vida e a vida do mundo inteiro estão em suas mãos, de que ele já deu início à nova criação, convidando-nos a confiar nele para conduzi-la até o fim. O último versículo desse capítulo antecipa algo que Paulo vai abordar nos capítulos de 5 a 8. Ele completa cada estágio de seu argumento dessa longa seção com uma referência a Jesus. Isso não se trata apenas de um gesto piedoso, fazendo menção, de forma complacente, a Jesus, para que não pensemos que ele se esqueceu dele. Por outro lado, demonstra do que se trata todo o seu argumento. Reconduz-nos à fonte e ao poder do raciocínio de Paulo. Nesse caso, sintetiza o que fundamentou todos os quatro primeiros capítulos. Jesus foi entregue por causa de nossas transgressões; em outras palavras, todo o mal da humanidade, que desfigurou o mundo, foi reunido e, na cruz, foi tratado como merecido, sendo condenado judicialmente (3:25; 8:3). Ele foi ressuscitado por causa de nossa justificação, ou seja, nossa declaração como “estando certos”, a afirmação de nossa condição de membros da aliança. Em outras palavras, quando Jesus ressuscitou dentre os mortos, Deus não estava apenas dizendo: “Ele realmente era e é meu filho” (1:4), mas também: “Todos os que creem nele são meu povo.” Na maravilhosa doutrina de Paulo, encontramos outra referência ao Servo Sofredor de Isaías 53, aquele que vai “fazer muitos justos e levar embora suas iniquidades” (53:11). A primeira grande seção de Romanos termina com Paulo dizendo que as promessas proféticas tornaram-se realidade; a fé que Abraão tinha foi afinal justificada; a lei foi cumprida; a idolatria humana, o pecado e a morte foram enfrentados de forma decisiva; Deus enviou seu próprio filho como o Messias, o representante fiel de Israel, a fim de fazer por Israel e pelo mundo o que não puderam fazer por si próprios; aqueles que creem no evangelho, nas boas-novas de Deus a respeito de seu filho, recebem a garantia de que são o povo da nova aliança, a única família universal prometida a Abraão. Isso levanta todo o tipo de pergunta, que Paulo passará a abordar na próxima grande seção dessa carta. Porém, é preciso, igualmente, fazermos algumas perguntas a nós mesmos: Compartilhamos a fé que Abraão teve? Olhamos com amor, gratidão e confiança para o Deus criador, aquele que promete coisas impossíveis, transformando-as em realidade? Aprendemos a celebrar esse Deus e a viver como uma única família, junto a todos aqueles que compartilham essa mesma fé e essa mesma esperança? ROMANOS 5:1-5 PAZ E ESPERANÇA 1 Este é o resultado: desde que fomos declarados “certos” com base em nossa fé, temos paz com Deus mediante nosso Senhor Jesus, o Messias. 2Por meio dele, foi- nos permitido ter acesso, pela fé, a essa graça na qual permanecemos firmes, e celebramos a esperança da glória de Deus. 3E isso não é tudo. Celebramos também em nossos sofrimentos,porque sabemos que o sofrimento produz paciência; 4e a paciência produz um caráter bem-formado, e um caráter assim produz esperança. 5A esperança, por sua vez, não nos deixa envergonhados, porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações por meio do espírito santo que nos foi dado. Recentemente, ouvi falar de um famoso comediante que foi uma figura conhecida no rádio e na televisão por muito tempo. Sua sagacidade e o interminável suprimento de piadas lhe garantiam uma grande audiência. Entretanto, ao morrer, os obituários que foram publicados contaram também uma história mais sombria. Ele rompera relações com seu pai quando ainda era jovem, e a contenda entre eles jamais se resolvera. Depois, o trágico padrão se repetira mais uma vez. Um de seus próprios filhos brigou com ele, e ambos cortaram relações. Como eu vim de uma família feliz, que se apoiava mutuamente, preciso esforçar-me para imaginar como deve ser viver assim. Pense como deve ser saber que existe alguém, apenas à distância de um telefonema e que é um de seus parentes de sangue mais próximos... e, ainda assim, essa pessoa não querer falar com você, e você também não querer falar com ela, ou sequer encontrá-la, ou manter qualquer contato que seja. E calcule isso se arrastando por anos a fio. Esse é um panorama que nos deixa bastante perturbados, mas eu sei que existem, além da pessoa em questão, muitas outras que estão vivendo exatamente desse jeito em relação a alguém bem próximo com quem romperam relações. Existe, porém, uma tragédia muito maior. Uma imensa vastidão de pessoas vive exatamente assim em relação a Deus. Acabei de ouvir no rádio uma mulher muito bem-disposta que falava sobre como era fascinada por religião, sobre como tivera uma fase religiosa em sua infância (“suponho que a maioria de nós a tem”, disse ela, de modo complacente), mas que não vislumbrava a menor pista da existência de Deus. Eu queria lhe perguntar: “De que Deus você está falando?”, mas, obviamente, nunca se tem uma chance assim. Então, voltei a Romanos e refleti: bem aqui, no centro de tudo, Paulo está falando sobre uma reconciliação que levará a todas as outras reconciliações. “Desde que fomos declarados certos [justificados], temos” — o quê? Uma luz que nos aquece o coração? Um suspiro de alívio por nossos pecados terem sido perdoados e uma nova compreensão do que significa pertencer ao povo de Deus? Sim, todas essas respostas e mais ainda, porém, no centro de tudo, temos paz com Deus. Após ter lançado a base nos capítulos de 1 a 4, agora Paulo começa a edificar a estrutura: um retrato da vida cristã, em que todas as antigas promessas de Deus estão se tornando realidade. E, no centro dessas promessas, está o estabelecimento de uma amorosa e acolhedora relação pessoal entre os seres humanos e o próprio Deus criador. Hoje em dia, é claro, isso parece não fazer sentido para muitas pessoas. No mesmo programa de rádio, havia alguém falando sobre quanto era ridículo pensar que, se existe um Deus, ele pudesse importar-se com cada uma de suas criaturas humanas a todo instante: “Existem milhões e milhões de pessoas aí fora”, dizia essa pessoa, “e lá está ele me observando amarrar os sapatos!” Dito desse modo, é óbvio, parece mesmo um absurdo. No entanto, o absurdo está na tentativa de retratar Deus como um ser exatamente como nós, apenas um pouquinho maior e mais capaz de ver tudo à sua volta. O Deus da Bíblia é muito, mas muito mais misterioso em todos os sentidos. Ele é o criador do mundo, aquele que transcende toda a sua criação, mas, como sua própria natureza é amor, é (como diríamos) muito natural para ele estabelecer relações pessoais, individualmente, com cada um de nós. Natural para ele, com certeza; mas, certamente, isso não é natural para nós. As razões para isso são óbvias, uma vez que tenhamos compreendido Romanos 1:18-32. Não só nosso comportamento, como também nosso modo de pensar e de sentir, tudo foi tão distorcido por nossa rebelião e por nossa idolatria que consideramos difícil estabelecer um relacionamento com Deus e, mesmo que conseguíssemos, seria difícil e impraticável manter essa relação; seria até mesmo algo invasivo e assustador. Bem, é claro que existem dificuldades. A própria oração não é algo fácil. Paulo fala, mais para o fim desta seção da carta (8:26- 27), sobre a percepção de uns “gemidos” no espírito, sem sabermos o que está acontecendo. Não devemos, porém, confundir isso com um problema em nível estrutural no relacionamento em si. Quando somos reconciliados com Deus, que é nosso pai, descobrimos que ele não quer simplesmente usufruir esse relacionamento individual, mas nos alistar em seu serviço, para que possamos trabalhar em prol de seu reino. E isso trará todo o tipo de pressão e de problemas, exigindo de nós que nos agarremos à fé e à esperança, mesmo quando não sentimos sua presença, mesmo quando não “sentimos” algo acontecendo à nossa volta. Não devemos pensar que a sensação de estarmos próximos de Deus seja um bom critério da verdade. As emoções são muito enganosas. Paulo está nos convocando a compreender a realidade, a rocha sólida por baixo das areias inconstantes dos sentimentos e das sensações. Os dois primeiros versículos do capítulo 5, portanto, celebram nosso acesso à própria presença de Deus, de forma pessoal. Nós temos “o direito de acesso”: essa é a linguagem do templo, no qual certas pessoas podem aproximar-se do lugar no qual Deus está. Aqui, a palavra “graça” é praticamente uma síntese da presença e do poder de Deus. Como resultado de termos sido justificados pela fé, estamos, na antiga construção da frase, “em um estado de graça”, um estado, uma posição, em que nos encontramos cercados pelo amor de Deus e por sua generosidade, convidados a aspirá-los como nosso ar mais puro. E, à medida que fazemos isso, passamos a entender que para isso é que fomos feitos, que é desse jeito que deve realmente ser a existência humana, e que esse é o início de algo tão grande, tão consistente e tão incalculavelmente maravilhoso e poderoso que quase explodimos de alegria só de pensar nisso. Quando nos postamos na presença de Deus, sem tremer de medo, mas profundamente gratos, então começamos a inalar sua bondade, sua sabedoria, seu poder e sua alegria. Então, sentimos que estamos sendo convidados a prosseguir até o fim, tornando-nos verdadeiros reflexos de Deus, verdadeiros portadores da imagem segundo a qual fomos criados. Paulo explica isso do seguinte modo: “Celebramos a esperança da glória de Deus.” Essa é a mesma glória que foi perdida através da idolatria e do pecado (3:23). Quando, por fim, herdarmos essa glória, toda a criação será libertada da corrupção e compartilhará nossa recém-descoberta liberdade, a liberdade de finalmente sermos nós mesmos (8:21). Não admira que Paulo possa seguir falando de celebração, mesmo vivendo em meio ao sofrimento, o caminho necessário mediante o qual empreendemos nossa jornada, enquanto compartilhamos a obra do pai neste mundo ainda corrompido. Repare que ele não diz que celebramos nossos sofrimentos (da mesma forma que celebramos nossa esperança, no v. 2). Nós celebramos, sim, diz ele, em meio a nossos sofrimentos. Ele consegue ver uma progressão constante, segundo a qual Deus se utiliza de nossos sofrimentos com o mesmo propósito para o qual nos concede sua presença e seu amor: a fim de nos transformar no povo composto dos verdadeiros seres humanos que fomos criados para ser. Essa progressão nos conduz da paciência ao caráter e do caráter à esperança. Vivemos em um mundo que quer tudo de forma imediata, no qual não existe estabilidade de caráter, a não ser uma imagem irreal, que perambula por esse caminho por não ter ideia do destino que está tomando. O evangelho de Jesus, o Messias, convida-nos a nadar contra a correnteza em todos os sentidos. E, quando fazemos isso, ele também nos dá algo mais. Por que Paulo diz que a esperança “não nos deixa envergonhados”?Por que ela nos deixaria assim, de qualquer modo? Penso que a resposta é que o cristão, tanto quanto Abraão, é chamado vez após outra a “esperar contra toda a esperança” (4:18). Parecemos tolos aos olhos do mundo quando ficamos esperando por algo que não podemos ver (8:25). Entretanto, não parecemos tolos aos nossos próprios olhos, pois somos mantidos por algo muito mais profundo, algo que se desenvolve de forma direta a partir do dom da “paz com Deus”, a partir da reconciliação que Paulo descreverá alguns versículos adiante. Israel foi ordenado a “amar YHWH, seu Deus, de todo o seu coração”. Paulo, consciente de que a nova família que acaba de descrever é a verdadeira família de Abraão, agora declara que, mediante o dom do espírito santo, isso se torna realidade para nós. Muitas traduções, e também muitos estudiosos dos escritos de Paulo, compreendem o versículo 5 de maneira diferente. Eles pensam que significa o amor de Deus por nós é dado de uma nova maneira por meio do espírito santo. Isso é, sem dúvida, verdade, e ele dirá algo parecido na passagem seguinte. No entanto, não creio que é isso que Paulo pretende ressaltar aqui, nesse ponto em particular. O que ele está fazendo, ao longo de toda a seção que tem início aqui, é estabelecer aqueles que pertencem a Jesus como a verdadeira família da aliança, aqueles em quem todas as promessas (e todos os mandamentos) dados a Israel se tornaram realidade. Ele já se referiu ao mandamento e à oração central de Israel, o “Shemá” (3:29-30). “Ouça e obedeça, ó Israel: YHWH, nosso Deus, YHWH é um!” Agora ele demonstra como aqueles que foram cativados pelo evangelho são destacados como o povo que oferece a esse Deus “a obediência da fé” (1:5), amando-o de todo o coração. Esses versículos estão envoltos em um maravilhoso material. Poderíamos prosseguir examinando-os por muito mais tempo. A última coisa, porém, que precisamos dizer é: eles introduzem a longa seção dos capítulos 5 a 8 e, ao fazerem isso, destacam diversos temas que vamos explorar nesse intervalo. Um dos principais desafios na leitura de Romanos reside em se manter o argumento íntegro na mente, observando como ele vai crescendo e se desenvolvendo. Paulo não está simplesmente redigindo alguns breves ensaios sobre diferentes aspectos da verdade cristã. Aprenda a acompanhar sua linha de raciocínio e você ficará sem fôlego diante do poder da verdade divina. E, obviamente, diante da profundidade do amor de Deus. Faça uma pausa momentânea para celebrar, em uma oração de gratidão, o fato glorioso de ser muito bem recebido na presença de Deus, em paz e em esperança. ROMANOS 5:6-11 A MORTE DE JESUS REVELA O AMOR DE DEUS E GARANTE A SALVAÇÃO FINAL 6Tudo isso se baseia naquilo que o Messias fez: enquanto ainda éramos fracos, naquele exato momento ele morreu a favor dos ímpios. 7Coisa rara é encontrarmos alguém que morreria a favor de um justo, embora seja possível, suponho, que alguém morra por uma pessoa boa. 8Mas é assim que Deus demonstra seu amor por nós: o Messias morreu por nós enquanto ainda éramos pecadores. 9Quanto mais, nesse caso — já que fomos declarados certos [justificados] mediante seu sangue, seremos salvos da ira vindoura de Deus! 10Quando éramos inimigos, vejam bem, fomos reconciliados com Deus mediante a morte de seu filho. Se é assim, quanto mais, uma vez já reconciliados, seremos salvos por sua vida! 11E isso não é tudo. Até mesmo celebramos em Deus, por meio de nosso Senhor Jesus, o Messias, por meio de quem agora recebemos essa reconciliação. Já ouvi dizer — e é possível ouvir todo o tipo de coisas estranhas na igreja — que o evangelho de João é todo ele sobre o amor de Deus, mas as cartas de Paulo são todas sobre lei, justiça e coisas duras e severas dessa natureza. Bem, a presente passagem desafia frontalmente essa teoria. Na realidade, é claro, faz o mesmo com o Evangelho de João: a visão de João sobre o amor de Deus é temperada como aço na fornalha da amarga hostilidade expressa contra Jesus e pela incompreensão de todos, a começar pelos discípulos, passando pelas multidões, até chegar aos sumos sacerdotes e a Pilatos. Entretanto, a visão de Paulo a respeito do amor de Deus, erguendo- se aqui como o sol em uma límpida manhã de verão, brilha através de todos os detalhes que já foram apresentados até aqui. É preciso acordar cedo, sair da cama e afastar as cortinas, para que se possa ver melhor a manhã. Esse é o assunto dos primeiros quatro capítulos. Mas agora, que já fizemos tudo isso, a visão está aqui para que possamos desfrutá-la. E também para ficarmos fascinados com ela! O amor de Deus já fez todo o necessário e tudo aquilo de que ainda vamos necessitar. À medida que Paulo continua a explorar o significado da reconciliação entre Deus e os seres humanos, ele investiga em profundidade o que Deus teve de fazer para torná-la realidade. Antes, porém, de sequer voltarmos os olhos para isso, há algo de estranho e poderoso nessa passagem que Paulo ainda não tornara explícito, mas que se aproxima de nós, esgueirando-se de forma a quase passar despercebido. É o seguinte: quando olhamos para Jesus, o Messias, estamos olhando para aquele que incorpora o amor de Deus em pessoa, o amor de Deus em ação. Veja o versículo 8. O que Paulo afirma aqui não faz sentido algum, a não ser que Jesus, em sua vida e morte, seja a própria encarnação do Deus vivo e amoroso. Afinal de contas, não faz sentido algum se eu disser a você: “Vejo que você está com sérios problemas! E eu o amo tanto que vou... enviar outra pessoa para ajudá-lo a sair dessa.” Se a morte do Messias demonstra quanto Deus nos ama, isso só pode ser verdade porque o Messias é o completo ser humano (quanto mais humano alguém pode ir do que ser crucificado?), aquele em quem o Deus vivo está totalmente presente. Paulo não explica, nessa carta, como isso acontece. Ele toma isso como algo inequívoco. Em outra parte de sua carta, ele fala um pouco mais a esse respeito, embora não tanto quanto gostaríamos. Entretanto, está claro que ele cria de maneira firme que Jesus era (como costumamos dizer) plenamente divino, e que essa não era uma crença estranha, acrescentada externamente à sua forma de pensar, porém um dos elementos-chave que amarra tudo o mais. De modo específico, amarra sua visão acerca do amor de Deus e sua visão sobre a esperança cristã. Romanos 5—8, de certo ponto de vista, aborda principalmente a esperança: a esperança sólida e certa de que todo aquele que pertence a Deus, pela fé em sua ação em Jesus, recebe a garantia da salvação final. Com o que se parecerá essa salvação, essa não é a presente preocupação de Paulo. Ele vai falar mais a esse respeito no capítulo 8. Neste momento, ele salienta o ponto que seus leitores necessitavam saber desde 2:1-16, ou seja, que, quando chegar a hora do juízo final, eles serão resgatados. Não podemos esquecer como o quadro da justificação funciona na prática. Paulo mantém continuamente em foco o tempo passado, o presente e o futuro da obra de Deus. Ele apresenta o futuro derradeiro no capítulo 2. Chegará o dia em que Deus julgará todos os segredos dos seres humanos, e esse julgamento será totalmente justo, legítimo e imparcial. Se isso causa arrepios em nossa coluna — bem, tem de causar mesmo. Logo depois, porém, ele argumenta em detalhes, em 3:21 a 4:25, que, quando as pessoas creem nas boas-novas de Deus a respeito de Jesus, recebem a garantia, ainda no presente, de que já pertencem à família da aliança, o povo cujos pecados são perdoados, que já recebeu o veredicto, do tribunal divino, de “estar certos [justificados]”. Então, somos forçados a perguntar: como Deus sabe disso? Como é possível que pessoas que ainda têm o resto da vida pela frente, podendo vir a cometer todo o tipo de perversão, recebam essa garantia, com o veredicto futuro já conhecido? Uma boa parte de Romanos 5—8 foi escrita em resposta a essa pergunta (embora também se façam presentes outros temas relevantes, como veremos). Entretanto, a resposta tem inícioaqui: a esperança cristã de o veredicto emitido no presente vir a ser confirmado no futuro baseia-se, com toda a segurança, no que Deus já realizou na morte de Jesus. (Paulo retoma esse tema, com grande exultação, em 8:31-39.) A morte do Messias a nosso favor, quando ainda éramos fracos, pecadores impotentes (v. 6 e 8), demonstra quanto Deus nos ama. E, se ele nos ama a esse ponto, é possível confiar nele quanto a nos resgatar do dia do juízo vindouro (v. 9). Afinal de contas, Deus tomou a impensável atitude de enviar seu filho para morrer por nós quando não havia nada que nos recomendasse a ele; ao contrário, estavam presentes todos os elementos para que ele se revoltasse conosco — quando, em outras palavras, éramos seus inimigos (v. 10). Agora, que somos seus amigos, que fomos reconciliados com ele na forma descrita nos versículos 1 e 2, Deus, absolutamente, não está prestes a nos abandonar. O argumento assume a fórmula já conhecida de vários sistemas lógicos e não menos dos sistemas judaicos, de “quanto mais”. Se Deus já fez o mais difícil, quanto mais não estará propenso a completar a tarefa fazendo a parte mais fácil. Se alguém se esforçou escalando a face íngreme de um penhasco, contra todas as probabilidades, a fim de chegar ao cume da montanha, não estará inclinado a desistir quando, já no topo da parede vertical, se defronta com um simples passeio a pé em uma trilha gramada para chegar ao cume propriamente dito. Se alguém dirigiu até a outra extremidade do país, enfrentando chuva, neve e neblina, só para visitar um amigo que se encontra em necessidade, não vai abandonar seu objetivo ao chegar àquela casa, com o céu límpido, o sol brilhando, se tudo o que tem a fazer é atravessar o jardim da frente e tocar a campainha. Essa é a força do argumento de Paulo nos versículos 9 e 10. O versículo 11 surge como se fosse uma surpresa. A palavra-chave, aqui traduzida como “celebrar”, é a pista. Ela aponta de volta para o que Paulo disse em 2:17 e 3:27. Aqueles que vivem sob a lei de Moisés, como o próprio Paulo já fez, “celebravam” o fato de que o Deus criador era seu Deus. Eles se “orgulhavam” (a mesma palavra pode ter tanto um sentido bom como um sentido mau), acreditando que a posse da lei lhes garantia esse status especial. Paulo mostrou que essa celebração era superficial, que esse orgulho era vazio. No entanto, no evangelho de Jesus, precisamente porque elimina toda a possibilidade de orgulho humano, e porque é abraçado em meio ao sofrimento (5:3), há razão para se dizer, mais uma vez, com o salmista: “Este Deus é o nosso Deus para todo o sempre” (Salmos 48:14). E também ao lado do próprio apóstolo Paulo: “Se Deus é por nós, quem poderá ser contra nós?” (8:31). O fato de isso parecer uma atitude de extrema arrogância — o que é verdadeiro principalmente no inconsequente relativismo atual — não deveria nos fazer desistir de abraçá-lo, a partir da sempre surpreendente celebração do amor pessoal de Deus, que nos habilita a fazer essas declarações. Na realidade, a resistência a esse tipo de declaração pode advir do impulso constante de se resistir ao senhorio de Jesus, aquele por meio de quem isso se torna realidade. Paulo viveu em um mundo no qual outros “senhores” reinavam supremos e se ressentiam quando surgiam candidatos alternativos para ocupar suas posições. Nós também nos ressentimos disso. ROMANOS 5:12-17 O GRANDE QUADRO EM UMA SÓ PINCELADA: ADÃO E O MESSIAS 12Portanto, assim como o pecado entrou no mundo através de um ser humano, e a morte, através do pecado, e ao longo do caminho a morte se espalhou para todos os seres humanos, pois todos pecaram… 13O pecado estava no mundo, vejam bem, mesmo na ausência da lei, embora o pecado não seja computado quando não existe lei. 14Entretanto, a morte reinou de Adão a Moisés, mesmo sobre as pessoas que não pecaram por desobedecerem a um mandamento, como Adão havia feito — Adão, que foi um protótipo antecipado daquele que haveria de vir. 15Mas, “assim como ocorre na transgressão, ocorre com o dom”, esse não é o caso. Porque, se muitos morreram pela transgressão de um só, quanto mais a graça de Deus, e o dom da graça por meio de uma só pessoa, o Messias, abundou sobre muitos. 16Como também não é: “assim como ocorre mediante o pecado de um, também é com o dom”. Porque o julgamento que se seguiu àquela única transgressão resultou em um veredicto negativo. No entanto, o dom gratuito que se seguiu às muitas transgressões resultou em um veredicto positivo. 17Pois, se, pela transgressão de um só, a morte reinou por meio dele, quanto mais aqueles que receberam a abundância da graça e o dom de pertencimento à aliança, de “estarem certos”, vão reinar em vida por meio de um só homem: Jesus, o Messias. O escultor estava satisfeito com seu trabalho. Era uma linda estátua e ficaria ótima na praça da cidade. O personagem retratado vivera no pequeno cais do porto durante toda a sua vida e se tornou bem conhecido por organizar o serviço da Guarda Costeira. Ele ficou famoso quando, arriscando a própria vida, resgatou, praticamente com uma só mão, um barco lotado de gente que naufragou nas rochas durante uma tempestade de inverno. A cidade ficou muito agradecida e contratou um escultor para esculpir sua estátua. Mas não demorou muito para surgir um problema. No verão seguinte, uma gangue de jovens arruaceiros veio à cidade para se divertir. Eles causaram alvoroço na pequena rua principal acima, quebraram algumas poucas janelas e gritaram palavras grosseiras para os pedestres. E, ao chegarem à estátua, resolveram divertir-se. Primeiro, borraram a peça toda com tinta vermelha. Depois, atiraram pedras no objeto. Em seguida, revezaram-se correndo, saltando e chutando-a com os dois pés erguidos no ar. Passados alguns minutos, a estátua, que não fora construída para resistir a esse tipo de tratamento, descolou-se da base e caiu no meio da rua, espatifando-se em pedaços. Os jovens fugiram, ainda dando risadas. O conselho administrativo da cidade refletiu sobre qual atitude tomar diante disso e, então, decidiu convocar o escultor. Eles estavam determinados a não se deixar vencer. Queriam a estátua refeita exatamente como era antes. O escultor, porém, teve uma ideia melhor. Ele a faria de novo, sim, mas com um material muito mais resistente. Ela também seria mais bonita ainda. Ele não iria simplesmente pôr as coisas de volta como eram. Essa era a oportunidade de fazer algo realmente espetacular. Poderíamos prosseguir com a história. Gosto de pensar nos próprios jovens se encrencando em um barco, sendo resgatados pela Guarda Costeira e caindo em si. Mas já fomos longe o bastante para fazer emergir o ponto mais importante, que, de outro modo, talvez não conseguíssemos destacar em meio aos escritos densos e difíceis de Paulo. O ponto principal é o seguinte: o que Deus fez num único homem, Jesus, o Messias, é muito, mas muito mais do que meramente colocar a raça humana de volta no ponto em que se encontrava antes da chegada do pecado. A estátua foi refeita e, agora, é muito mais esplêndida do que antes. Não se trata de “o que eles derrubaram, Deus levantará novamente”. Nem é o caso de “o que eles fizeram de forma perversa, Deus fará de forma graciosa”. Deus fez muito, mas muito mais mesmo. Esse é o ponto que se destaca nos versículos 15, 16 e 17. A razão pela qual Paulo chega a essa posição é que, por fim, ele se encontra olhando sua argumentação, feita até aqui, de fora e está resumindo o resultado obtido. Isso significa contar a história de Adão e do Messias. A questão com a aliança feita com Abraão, como insistimos durante todo o tempo, consistia em desfazer o primeiro pecado da humanidade, a idolatria básica que levou à dissolução e à decadência da genuína humanidade, resultando na própria morte. Agora, Paulo demonstrou que as promessas feitas a Abraão são cumpridas em Jesus e por meio de Jesus, o Messias. E ele pôde ver à frente (5:1-11), percebendo como isso funciona em termos de futura esperança.Ele se encontra, portanto, em posição de retratar o grande quadro que agora emerge, o esboço a partir do qual desenvolverá seu relato sobre o novo povo de Deus nos capítulos 6 e 8. No entanto, “esboço” é a palavra certa. Mais do que em qualquer outra parte de seus escritos, Paulo permite que seus pensamentos sigam esse ritmo, que parece usar uma palavra apenas para cada quatro ou cinco de que ele realmente necessitaria para se fazer entender melhor. Nós o seguimos, aos tropeços, buscando captar o sentido de tudo e, gradualmente, a imagem seguinte começa a surgir. Ele inicia no versículo 12, como se fosse delinear uma imagem equilibrada: assim como, por um homem, o pecado entrou no mundo, por um só homem Deus tratou do pecado. Entretanto, ele para bem no meio caminho, onde é possível ver os três pontinhos no final do versículo. Ele se dá conta de que há duas coisas diferentes que precisam ser ditas em primeiro lugar, antes que possa apresentar esse equilíbrio sem rodeios. A primeira delas está nos versículos 13 e 14; a segunda é o tema dos versículos 15, 16 e 17, os quais já olhamos de relance. Os versículos 13 e 14 explicam a confusão que poderia atrapalhar o caminho a percorrer. Um longo tempo se passou entre Adão e Moisés. Adão recebeu um mandamento direto e desobedeceu. Deus deu um conjunto de mandamentos diretos a Israel através de Moisés e eles também os infringiram. Contudo, entre eles, nesse amplo relato da história antiga, os seres humanos prosseguiram pecando e morrendo, mesmo não havendo lei para registrar o que eles faziam. O lugar e o papel da lei de Moisés dentro do quadro geral do pecado são muito importantes para Paulo, como veremos especificamente no capítulo 7. Portanto, para ele, é vital que seja esclarecido todo mal-entendido em potencial nessa área, desde o início. Os versículos 15, 16 e 17, conforme veremos, insistem em que colocar a humanidade em ordem é algo muito maior do que simplesmente reverter o pecado de Adão e suas consequências. A “transgressão” e o “dom” não são equivalentes e opostos. A morte é puramente negativa. O dom da vida concedido por Deus não pode simplesmente ser comparado a ela, como se a morte e a nova vida fossem equivalentes e opostos. O “veredicto negativo”, a “condenação” que se seguiu à transgressão original, foi a consequência direta do que foi feito. No entanto, Deus tomou a iniciativa em uma situação na qual não existia nada além de pecado para ser visto, e chegou ao lugar no qual a humanidade se encontrava em ruínas, de modo a fazer de suas criaturas humanas algo muitas vezes melhor do que haviam sido no início. O versículo 17 põe esse contraste em relevo, levando-o a uma extensão ainda muito maior. A consequência do pecado foi o “reinado da morte”: a morte, a primeira em corrupção e em dissolução, domina no presente sobre o mundo inteiro e sobre tudo que há nele. Mas, onde nossa expectativa estaria em que a outra metade do par em contraste fosse “o reinado da vida”, Paulo vai um pouco além: agora, o que esperamos é o reinado daqueles que recebem o dom de Deus de pertencimento à aliança, da posição como “certos” [endireitados, justificados]. Paulo não fala muito sobre o “reino” vindouro daqueles que pertencem a Jesus (um tema que encontramos em outros textos cristãos antigos, como, por exemplo, Apocalipse 20:4, 6; e 22:5). Aqui, porém, como também, por exemplo, em 1Coríntios 6:2, está tudo muito claro. Atualmente, o “reino de Deus”, ou seja, o domínio soberano e salvador de Deus sobre o mundo, é exercido através do Senhor Jesus ressurreto. Entretanto, no futuro, esse governo será exercido, assim parece, por intermédio dos seres humanos plenamente redimidos, aqueles identificados, no presente, pelo dom de Deus como “certos”, por serem membros da aliança. Agora, Paulo está pronto para voltar ao versículo 12, onde iniciou, e então apresentar novamente sua comparação sem rodeios: como foi mediante um homem, assim também será mediante um homem. Antes, porém, de passarmos para a próxima seção, precisamos fazer uma pausa e refletir sobre a extraordinária generosidade da graça de Deus. Olhe de novo os versículos 15, 16 e 17 e veja a frequência com que aparece a palavra “dom”. Você consegue perceber a incrível e excessiva amplitude da generosidade divina? ROMANOS 5:18-21 O TRIUNFANTE REINO DA GRAÇA 18Portanto, assim como pela transgressão de um só a consequência foi a condenação de todos, pelo ato de justiça de um só, a consequência é a justificação e a vida para todos. 19Pois, assim como, pela desobediência de um só, muitos receberam a condição de “pecadores”, através da obediência de um só, muitos receberão a condição de serem consideradas “certas”. 20A Lei veio junto para que a transgressão atingisse seu ápice. Onde, porém, aumentou o pecado, a graça superabundou; 21de modo que, assim como o pecado reinou na morte, assim mesmo, mediante a fidelidade da justiça da aliança de Deus, a graça possa reinar até a vida da era por vir, por meio de Jesus, o Messias, nosso Senhor. Deus já o fez; Deus o fará. Essa é a mensagem da presente e pequena passagem dramática, sintetizando toda a história da carta até aqui. Isso pode parecer estranho, já que a palavra “Deus” não aparece nesses versículos. Entretanto, o que Paulo fez aqui é algo que tem um efeito muito maior. Ao falar do resultado da ação de Jesus nos versículos 18 e 19 e ao falar da “graça” nos versículos 20 e 21, ele aponta em direção ao Deus cujo plano de salvação passou agora a surtir efeito. Como um bom contador de histórias, ele nos deixa imaginando por nós mesmos quem é esse que poderia planejar algo assim e trazer a bom- termo, aquele cujo nome oculto é “graça”. Em vez de uma estátua sendo derrubada no chão e substituída, pense agora em duas estátuas, dispostas uma de frente para a outra, nas extremidades da praça de uma cidade. A primeira é uma figura triste — de fato, horrorosa. É a máscara da morte de um personagem que já fora nobre e que, por causa de uma vida insensata e de desperdícios, agora carrega em seu rosto os indisfarçáveis sinais da decadência, resultantes de um caminho dessa natureza. A segunda é só vida e entusiasmo, parecendo que, a qualquer instante, vai saltar de sua base e fazer acrobacias, por puro excesso de alegria. Isso lhe permitirá saborear, nesses versículos, uma pitada do contraste entre dois tipos de humanidade. Paulo ainda terá muito mais a dizer nos próximos capítulos a respeito desses dois tipos; portanto, faremos bem se procurarmos conhecer tudo o mais rápido possível. O primeiro ponto, obviamente, é a humanidade adâmica, a humanidade que reflete o “um só” Adão, cuja desobediência ao mandamento de Deus trouxe o pecado e a morte ao mundo. Paulo não discute (tampouco nós discutiremos) a questão sobre quais foram os fatos reais que estiveram por trás do relato altamente realista de Gênesis 3. Basta dizer que a ideia de um mundo belo e bom, estragada em determinado momento pela rebelião dos seres humanos, permaneceu como uma ideia essencial em todo o pensamento cristão, bem como em todo o pensamento judaico primitivo. O retrato da humanidade em um estado pecaminoso é lamentável. O pecado traz condenação (v. 18), o juízo final mencionado em 2:1-16. Isso significa que aqueles que vivem em um estado de pecado ostentam a condição de “pecadores” (v. 19). Ou seja, eles não são, basicamente, pessoas boas que algumas vezes cometem coisas ruins. São, antes de tudo, basicamente, pessoas falhas cujos erros reiterados revelam sua própria natureza em atos específicos de pecados. Contrastando com isso, um novo tipo de humanidade foi liberado no mundo mediante o “ato de justiça” de um só homem, Jesus, o Messias. A palavra que traduzi como “justiça” traz em si o sentido de “integridade” e “fidelidade da aliança” — uma importante parte do argumento de Paulo até aqui. Jesus agiu como a incorporação tanto da fidelidade da aliança de Deus como da obediência fiel que Israel (3:2) deveria ter apresentado1TIMÓTEO 3:1-7 • O caráter do bispo 1TIMÓTEO 3:8-13 • O caráter dos diáconos 1TIMÓTEO 3:14-16 • O mistério da piedade 1TIMÓTEO 4:1-5 • Fique atento ao ensino falso 1TIMÓTEO 4:6-10 • Envolva-se com treinamento! 1TIMÓTEO 4:11-16 • Cuide de si mesmo e do seu ensino 1TIMÓTEO 5:1-8 • As famílias humanas e a família de Deus 1TIMÓTEO 5:9-16 • Viúvas 1TIMÓTEO 5:17-25 • Presbíteros 1TIMÓTEO 6:1-5 • Escravos, mestres e ensino saudável 1TIMÓTEO 6:6-10 • Piedade e contentamento 1TIMÓTEO 6:11-16 • A aparição real do Rei 1TIMÓTEO 6:17-21 • O que fazer com o dinheiro 2������� 2TIMÓTEO 1:1-7 • Reacenda o dom! 2TIMÓTEO 1:8-14 • Não se envergonhe! 2TIMÓTEO 1:15-18 • Inimigos e amigos 2TIMÓTEO 2:1-7 • Condições de serviço 2TIMÓTEO 2:8-13 • A palavra de Deus não está presa 2TIMÓTEO 2:14-19 • A palavra tola e a palavra da verdade 2TIMÓTEO 2:20-26 • Vasos à disposição de Deus 2TIMÓTEO 3:1-9 • Inimigos da verdade 2TIMÓTEO 3:10-17 • Continue nas Escrituras! 2TIMÓTEO 4:1-5 • O julgamento está vindo — portanto, pegue firme em seu trabalho 2TIMÓTEO 4:6-8 • Esperando a coroa 2TIMÓTEO 4:9-22 • Venha logo me ver ���� TITO 1:1-4 • O plano de Deus revelado TITO 1:5-9 • Designando presbíteros TITO 1:10-16 • O problema em Creta TITO 2:1-10 • Mandamentos para o lar TITO 2:11-15 • Graça, esperança e santidade TITO 3:1-8a • A bondade e a generosidade de Deus — e a nossa TITO 3:8b-15 • Cuidado com as disputas e divisões Glossário Para Hattie “Em todas essas coisas somos completamente vitoriosos por meio daquele que nos amou.” Romanos 8:37 INTRODUÇÃO Já na primeira vez que alguém se levantou em público para falar de Jesus a outras pessoas, deixou bem claro: esta mensagem é para todos. Esse foi um grande dia — algumas vezes chamado de o aniversário da igreja. O grande vento do espírito de Deus alcançara os seguidores de Jesus, enchendo-os de uma nova alegria e da sensação da presença de Deus e de seu poder. Pedro, o líder, que, algumas semanas antes, chorava como um bebê porque havia mentido, amaldiçoado e até mesmo negado conhecer Jesus, agora se encontrava de pé, explicando a uma grande multidão que havia acontecido algo que haveria de mudar o mundo para sempre. O que Deus havia feito por ele, Pedro, agora ele começava a fazer pelo mundo inteiro: nova vida, perdão, nova esperança e poder estavam se abrindo como o desabrochar de uma flor após um longo inverno. Um novo tempo tivera início, tempo no qual o Deus vivo faria coisas novas no mundo — começando ali, ao vivo e em cores, com os indivíduos que o estavam ouvindo. “Esta promessa é para vocês”, disse ele, “e para seus filhos, e para todos aqueles que estão longe” (Atos 2:39). Não era apenas para a pessoa de pé a seu lado. Era para todos. Num intervalo de tempo incrivelmente pequeno, isso se tornou uma verdade tão grandiosa que aquele movimento recentíssimo se espalhou pela maior parte do mundo conhecido. E uma das maneiras pelas quais a promessa para todos se estabeleceu foi pelos escritos dos novos líderes cristãos. Esses escritos curtos — em sua maioria, cartas e histórias sobre Jesus — circularam amplamente e foram lidos com avidez. Esses escritos nunca tiveram como alvo uma elite religiosa ou intelectual. Desde o começo, esses escritos eram para todos. Isso ainda é verdade hoje, assim como era naquela época. Obviamente, é importante que algumas pessoas invistam tempo e cuidado lidando com as evidências históricas, o sentido das palavras originais (os primeiros cristãos escreveram em grego) e o vigor e a especificidade com que cada autor se referiu a Deus, a Jesus, ao mundo e a si mesmo. Esta série, inclusive, está fortemente baseada nesse tipo de esforço. Mas o objetivo último é que a mensagem alcance a todos, especialmente as pessoas que não leriam um livro com notas de rodapé e com citações escritas em grego. É para essas pessoas que os livros desta série foram escritos. É por isso que, no final, há um glossário contendo uma descrição simples sobre o significado das palavras essenciais, sem as quais você talvez não alcançasse um bom entendimento. Sempre que você encontrar uma palavra em negrito, poderá olhar no final e relembrar o que esse termo significa. É claro que hoje há muitas traduções do Novo Testamento disponíveis. A versão que eu proponho neste livro foi preparada pensando no tipo de leitor que não compreende, necessariamente, uma tradução mais formal e, algumas vezes, até mesmo muito tediosa no tom adotado. É claro que procurei ser o mais fiel possível ao texto original. Porém, meu objetivo principal foi garantir que a tradução ficasse clara para todos, e não apenas para alguns. A carta de Paulo aos cristãos em Roma é sua obra-prima: aborda muitos tópicos distintos de muitos ângulos, reunindo-os em uma linha de pensamento de rápida evolução e convincente. Ao lermos esta carta, algumas vezes temos a sensação de estar sendo arrastados para dentro de um pequeno barco em um rio agitado, em meio a um turbilhão de água. Precisamos segurar firmemente se quisermos permanecer a bordo. Se, porém, conseguirmos permanecer, a energia e a emoção de toda essa experiência serão incomparáveis. A razão é óbvia: o livro de Romanos tem tudo a ver com o Deus que, como diz Paulo, revela seu poder e sua graça através das boas-novas acerca de Jesus. E, como Paulo insiste reiteradas vezes, esse poder e essa graça estão disponíveis a todos que creem. Portanto, aqui está: Paulo para todos —Romanos 1-8 - Parte 1! N. T. WRIGHT ROMANOS 1:1-7 BOAS-NOVAS SOBRE O NOVO REI 1Paulo, escravo do Rei Jesus, chamado para ser apóstolo, separado para as boas- novas de Deus, 2que ele prometeu de antemão por meio de seus profetas nos escritos sagrados — 3as boas-novas a respeito de seu filho, que descende da semente de Davi segundo a carne, 4e que foi destacado poderosamente como o filho de Deus segundo o espírito de santidade, mediante a ressurreição dos mortos: Jesus, o Rei, nosso Senhor! 5Por meio dele, recebemos graça e apostolado para produzir a obediência pela fé entre todas as nações, para o bem de seu nome. 6Isso inclui vocês, que são chamados pelo Rei Jesus. 7Esta carta destina-se a todos em Roma que amam a Deus, todos os que são chamados para ser seu povo santo. Graça e paz a vocês da parte de Deus, nosso pai, e do Rei Jesus, o Senhor. De tempos em tempos, cientistas enviam sondas espaciais a Marte. O objetivo dessa ação, obviamente, é descobrir cada vez mais a respeito desse admirável planeta, que, embora seja um de nossos vizinhos, encontra-se a mais de 78 milhões de quilômetros de distância. Durante séculos, as pessoas imaginavam que poderia haver vida em Marte, talvez até mesmo vida inteligente. Sem dúvida, há muitas coisas novas para aprendermos, coisas a serem descobertas. Se ao menos pudéssemos chegar lá com segurança e investigar o que se passa... Muita gente se sente assim, de modo geral, em relação a Paulo, e, de modo específico, em relação a Romanos. A maioria das pessoas, que possui ao menos uma leve familiaridade com a fé cristã, sabe que Paulo foi um personagem admirável e importante em seus primeiros dias. Muitos sabem que Romanos é sua carta mais formidável. Alguns até já podem ter ouvido acerca do efeito poderoso que esta carta teve, tantas vezes, na história da igreja: personagens importantes como Agostinho, Lutero e Karl Barth a estudaram, trazendo uma nova e desafiadora mensagem da parte de Deus. Entretanto, para muitos cristãos no mundo ocidental, Romanos permanece, tal como Marte, um grande mistério. “Tentei ler esta carta uma vez”, dizem eles, como se fossem cientistas descrevendo mais uma sonda espacial fracassada, “porém achei muito difícil e não consegui seguir em frente”. Uma espécie diferente de problema aguarda aqueles que aprenderam a fé cristã em uma das grandes igrejas do mundo ocidental. Muitos católicos romanos tradicionais e outros de tradições similares sabem que os protestantes fizeram de Paulo um herói importante, razão pela qual passaram a suspeitar dele. No entanto, também há problemasa Deus, mas fracassou em fazer. Aqui, Paulo está resumindo o que já disse sobre a fidelidade do Messias em 3:22. Sua “justiça” (v. 18) e sua “obediência” (v. 19; compare com Filipenses 2:8) são formas de descrever o que Jesus fez, acima de tudo conduzindo a si mesmo para a própria morte, de tal modo a revelar a crença de Paulo de que esse é o clímax do plano divino da salvação. Quando Deus celebrou a aliança com Israel, ele o fez de modo que Israel pudesse ser o meio de tratar o mal que infectou seu mundo. Agora, no Messias, esse objetivo foi concretizado. Os seres humanos recriados, como resultado desse ato, são declarados certos já no presente, como já vimos. E recebem também a garantia de “vida” no futuro. Esse é o significado de “justificação e vida” no versículo 18, e também da condição de “estarem certos” no versículo 19. Esses versículos também enfatizam a universalidade do pecado de Adão, bem como do ato salvífico de Jesus. Essas coisas não foram feitas para o bem apenas de uma parte da humanidade, mas de todos, judeus e gentios, sem distinção, conforme Paulo enfatizou repetidas vezes nos capítulos anteriores. O versículo 20, contudo, apresenta uma nova e diferente observação, alinhada a um tema já abordado diversas vezes nos capítulos anteriores. Em um dos segmentos do primeiro modelo de humanidade, o modelo adâmico, foi introduzida uma nova e perturbadora observação. “A lei veio junto.” Por que Paulo introduziu a lei judaica aqui e o que está dizendo a seu respeito? Trata-se de um momento revelador. Muitos judeus à época, inclusive seu próprio autor, enxergavam a lei como o início do novo modelo de humanidade. Israel foi chamado para ser diferente do restante do mundo, e Deus deu a lei a seu povo a fim de que isso se tornasse realidade. Conforme veremos, ainda permanece o sentido segundo o qual isso continua sendo verdade. Nada é tão direto e simples em se tratando da lei em Paulo. Mas a questão que Paulo está levantando é que, quando a Torá, a lei, chegou a Israel, longe de demarcar o início de um novo tipo de humanidade, simplesmente intensificou o problema do antigo tipo. “A lei veio junto para que a transgressão atingisse seu ápice” (v. 19). Paulo precisará de metade do capítulo 7 para explicar o que quer dizer com isso; no entanto, podemos sintetizá-lo por antecipação do seguinte modo, a partir de 5:13-14 e da presente passagem: o pecado, no sentido de um erro comum do ser humano, é, em si mesmo, como um pequenino slide colorido, uma fotografia ou um pedacinho de filme que mal se consegue enxergar a olho nu quando tomado isoladamente. O que a lei faz é colocar essa pequenina imagem em um projetor com uma lâmpada forte e brilhante por trás e uma grande tela à sua frente. A lei chama a atenção para o pecado, porém, em si mesma, é impotente para fazer algo que possa evitá-lo. Volte às nossas duas estátuas. A estátua sombria, aquela com a máscara da morte, está portando um livro no qual estão anotadas todas as faltas e todos os fracassos dos quais a pessoa é culpada. O rosto olha para baixo, em direção ao livro, com uma expressão de terror inútil. Paulo, contudo, declara que, “onde aumentou o pecado, a graça superabundou”. (Paulo, aqui, emprega uma palavra que, à parte de sua utilização em 2Coríntios 7:4, não é encontrada em nenhum outro lugar no grego antigo — talvez ele mesmo a tenha inventado.) A implicação não é que Deus tenha dito que a lei não importa. A implicação é que Deus encontrou um meio de resolver o problema também com a lei, uma forma nova e estranha de fazer cumprir essa lei. Isso também será explicado mais adiante, em 8:1-11 e 10:5-9. É como se a segunda estátua estivesse também carregando um livro, mas suas páginas estão todas repletas de vida e de cor. Como isso veio a acontecer, Paulo nos explicará mais adiante. O quadro final, no versículo 21, expressa exatamente esse contraste. “O pecado reinou na morte”: “o pecado”, agora visto como um poder abstrato, dominou o mundo. Ele governa o mundo como um tirano do mal governa um país: destruindo-o pouco a pouco, sem tolerar qualquer tipo de rebelião, até que todo o lugar esteja completamente arruinado. Porém, a energia e a nova vida do modelo alternativo de humanidade surgem e transbordam em nós a partir da segunda metade do versículo. No lugar do reino do pecado — algo frio e estático —, temos o reinado da graça, um governo cheio de vida e pleno de novas possibilidades. O reino da graça avança velozmente em direção a seu alvo, que é a vida da era porvir, o tempo no qual Deus consumará a nova criação, quando, então, todos os erros serão colocados em ordem (ver 8:18-25). É importante notarmos que a tradução corrente “vida eterna” (aqui, traduzi como “vida da era porvir”) dá à maioria dos leitores modernos a impressão um tanto equivocada de que Paulo está falando de passar a “eternidade” em um mundo situado para além do espaço, do tempo e da matéria, no “céu”. Paulo jamais menciona uma ideia desse tipo. O que ele tem em mente, aqui e em outras partes, é a ressurreição física do povo de Deus, a fim de compartilhar a nova terra e os novos céus, os quais resultarão da libertação de Deus do mundo atual quanto à sua decadência e à sua corrupção. Em caso de qualquer dúvida a esse respeito, o capítulo 8 a removerá por completo. Nessa declaração final sobre o reino da graça e, portanto, sobre o segundo modelo de existência humana, Paulo acrescenta duas frases para indicar como essa nova vida foi concretizada. De um lado, é “mediante a justiça da aliança de Deus”. Mais uma vez, a tradução dessa palavra é bastante difícil, porém, quando olhamos de volta para os capítulos anteriores, fica claro o que Paulo quer dizer com isso. O novo mundo, o novo tipo de existência humana, pôde surgir porque o Deus vivo se manteve fiel à sua aliança, a aliança projetada para pôr o mundo em ordem. Por outro lado, tornou-se realidade “mediante Jesus, o Messias, nosso Senhor”. O capítulo se encerra, como acontece com quase todos os parágrafos dessa seção (ver 5:11; 6:11; 6:23; 7:25; 8:11 e 8:39), lembrando-nos que aquilo que Deus realizou em Jesus permanece sendo a força motriz de tudo. No caso do presente capítulo, a morte de Jesus foi apresentada como o amor de Deus em ação (5:8) e, acima de tudo, como o ato de obediência mediante o qual, como sempre compreendido na aliança, o pecado e a morte foram derrotados, e a graça e a vida foram revelados em seus devidos lugares. O novo modelo de humanidade desabrochou para a vida. Agora, a pergunta à qual temos de responder é: de que lado da praça da cidade estamos vivendo? ROMANOS 6:1-5 DEIXANDO O ESTADO DE PECADO MEDIANTE O BATISMO 1O que diremos, então? Continuaremos no estado de pecado para que a graça possa aumentar? 2Certamente que não! Nós morremos para o pecado; como continuaremos a viver nele? 3Vocês não sabem que todos nós que fomos batizados no Messias, Jesus, fomos batizados em sua morte? 4Isso quer dizer que fomos sepultados com ele, mediante o batismo, na morte, de modo que, assim como o Messias foi ressuscitado dentre os mortos mediante a glória do pai, nós também possamos nos comportar com uma nova qualidade de vida. 5Porque, se fomos plantados juntos na semelhança de sua morte, também o seremos na semelhança de sua ressurreição. Todos conhecem a história espetacular de Jesus sobre o filho pródigo (Lucas 15:11-32). O filho mais novo pressiona seu pai para obter sua parte na herança, vai embora de sua casa e desperdiça tudo. Após, ele imagina voltar para casa em condição de desgraça. Então, para seu total espanto, descobre seu pai correndo estrada abaixo só para ir a seu encontro e preparando uma festa grandiosa em sua homenagem. Ele é acolhido de volta como um filho, mesmo não merecendo isso. (E mesmo com seu irmão mais velho resmungando a esse respeito.) Agora, avance no tempo um ano ou dois e imagine um pensamento se infiltrando sorrateiramente na mente do jovem rapaz. Mais uma vez, a vida se estabeleceu em um ritmo razoavelmente monótono. Seu irmão mais velhoapenas tolera tê-lo por perto, e seu pai está ficando cada vez mais velho. Ele se recorda, com um suspiro feliz, do dia em que apareceu no fim da estrada e seu pai saiu correndo a seu encontro para saudá-lo... e, então, ele pensa: e se eu fizesse tudo isso de novo? Por que não me sirvo de coisas suficientes para minha sobrevivência, fujo por algumas semanas e depois banco o arrependido e volto mais uma vez? Quem sabe não posso ganhar uma nova festa? Absurdo? Impensável? Pois pode acreditar. Isso é exatamente o que muitas pessoas pensam. “Deus vai me perdoar. Esse é seu trabalho!”, declarou um famoso filósofo dois séculos atrás. E um grande número de pessoas parece crer que a única palavra que a igreja deve dirigir a todos é a mensagem do perdão. Outro dia, perguntaram-me em um programa de rádio: “Certamente, não será difícil para uma igreja que acredita em tolerância estabelecer um código de lei moral?” Devemos, como diz a conhecida expressão, ser “inclusivos”. Precisamos dizer às pessoas que Deus as aceita exatamente como são. Algumas vezes, isso vem apoiado por uma versão do que Paulo acaba de dizer: onde abundou o pecado, superabundou a graça. Portanto, a única coisa que resta dizer a uma pessoa que vive em pecado é: “Está tudo bem, Deus o ama!” Suponho que Paulo deparou exatamente com essa linha de argumentação — provavelmente, repetidas vezes. Com uma diferença: duvido que alguém tenha proposto seriamente a ele que, já que o amor de Deus chega até nós enquanto ainda somos pecadores, devemos permanecer como “pecadores”, de modo que o amor de Deus continue se achegando a nós. Suponho ainda que ele se defrontou com uma linha de pensamento que se expressa na forma de pessoas objetando contra sua doutrina da graça “gratuita” de Deus: “Não se pode sair por aí dizendo isso! As pessoas vão achar que podem fazer tudo o que quiserem!” Na realidade, como já vimos em 3:8, algumas pessoas realmente parecem ter acusado Paulo mais ou menos dessa forma. O capítulo 6 foi escrito, ao menos sob um aspecto, para responder a essa pergunta. No entanto, não se trata de um mero aparte, como se Paulo estivesse apenas fazendo uma pausa em sua linha de pensamento principal, a fim de lidar com esse problema em particular. Ele se utiliza dessa questão, tal como um lutador se utiliza da força de ataque de seu oponente, a fim de avançar no tema principal que tem a apresentar. Nesse ponto, retornaremos não a uma das histórias de Jesus, mas a uma história muito mais longa e antiga. Pense no segundo livro da Bíblia, o livro de Êxodo. Êxodo conta a história de como os filhos de Israel foram escravizados no Egito. Deus os ouviu clamar da miséria da escravidão e da opressão e, então, enviou Moisés, para que os tirasse dali e os levasse para bem longe, para a liberdade na Terra Prometida. Eles atravessaram o mar Vermelho, deixando para trás a terra da escravidão e descobrindo uma nova liberdade. Deus os conduziu ao monte Sinai, onde, então, deu-lhes a lei. Eles passaram algum tempo... bem, um tanto mais do que haviam calculado... vagando pelo deserto e murmurando contra Deus. Contudo, ele seguiu conduzindo-os por meio de sua própria presença, na coluna de nuvem e de fogo, até que, por fim, eles entraram na terra que receberam por herança. Essa história é bem conhecida. O que não se reconhece normalmente é que, aqui em Romanos, Paulo nos conta uma versão dessa mesma história, a começar pela presente passagem. Romanos 6 descreve como os cristãos atravessam as águas do batismo (assim como o mar Vermelho) e, desse modo, deixam para trás a terra da escravidão, adentrando em uma nova liberdade (assim como sair do Egito e partir para a Terra Prometida). Romanos 7 luta com a questão do que aconteceu no monte Sinai e os problemas resultantes, conduzindo-nos a um estranho e novo cumprimento da lei. Romanos 8 descreve a vida cristã em termos de Deus liderar seu povo a caminho de sua herança, que acaba por ser toda a criação redimida — e Paulo adverte precisamente contra o tipo de murmuração de que os israelitas se tornaram culpados (“vocês não querem voltar para a escravidão, querem?” — pergunta ele em 8:15). Por que Paulo agiu desse modo? Creio que existem três motivos que operam em conjunto. Primeiro, ele não se esqueceu (mesmo que nós já nos tenhamos esquecido!) de que aquilo que Deus realizou em Jesus é o cumprimento das promessas feitas a Abraão. Contudo, em Gênesis 15, o capítulo que Paulo expôs em Romanos 4, Deus prometeu a Abraão que, depois de um período de escravidão, ele conduziria Israel para fora e, por fim, para sua própria terra. Romanos 6, 7 e 8 são uma maneira de dizer o seguinte: foi isso que Deus realmente prometeu a Abraão. Esse é o supremo cumprimento da aliança. É assim que o mundo deve ser posto em ordem, como Deus sempre planejou. Segundo, muitos judeus dos dias de Paulo estavam pensando em termos de um “novo Êxodo”, um grandioso novo ato de Deus por meio do qual Israel seria liberto da opressão. Paulo concorda com essa expectativa, porém, em vez de vê-la simplesmente em termos de liberdade política de Roma, ele a traduz como a suprema libertação: a libertação de todo o cosmos do pecado, da corrupção e da morte. Terceiro, ele está, portanto, de forma deliberada, enfatizando que aquilo que Deus fez mediante Jesus, o Messias, é o verdadeiro cumprimento da esperança de Israel. Não é que Israel e sua esperança tenham sido deixados para trás como um estágio mais antigo do plano. Ao contrário: a salvação que Deus realizou no Messias, a salvação que ele vai completar pelo espírito, é o alvo de tudo que já ocorreu antes. E isso, como veremos no início do capítulo 9, levanta, da forma mais intensa possível, mais uma pergunta que esteve na mente de Paulo desde o início do capítulo 3. O que, então, temos a dizer a respeito da ininterrupta Israel étnica? Os capítulos 6, 7 e 8 foram, portanto, projetados tanto como uma exposição espetacular sobre a vida cristã em seus próprios termos quanto como uma maneira de levar adiante a força do livro como um todo, força essa da qual estes capítulos constituem uma parte central. Portanto, qual é a resposta de Paulo à espantosa sugestão do primeiro versículo? O que ele diria a alguém que declarasse que, já que Deus nos aceita como somos, é melhor, então, não mudarmos a forma como somos, uma vez que Deus a afirmou como boa? Sua resposta é que, ao se tornar cristão, você muda de um tipo de humanidade para outra e, portanto, jamais deveria voltar a pensar em si mesmo como na forma original. De modo bem específico, ao se tornar cristão, você morre e ressuscita novamente com o Messias. Aqui, deparamos, pela primeira vez em Romanos, com uma das crenças centrais de Paulo: que, uma vez que o Messias representa seu povo, o que é verdade em relação a ele também é verdade em relação a seu povo. É por isso que ele fala das pessoas passando a entrar “no Messias”, ou estando “no Messias”, ou de coisas ocorrendo a eles “com o Messias”. Esses não são enganos verbais acidentais. Não se pode substituir o nome por “Jesus” em sentenças assim. É claro que Paulo crê que Jesus era e é o Messias, mas meu ponto é que a lógica do que ele está afirmando funciona com base na suposição de que, como Messias, ele não é simplesmente um indivíduo em particular, Jesus de Nazaré. E, sim, “o Ungido”, aquele que sintetiza seu povo em si mesmo. Mais especificamente, o ato de batismo, no que diz respeito a Paulo, marcava o início prático e físico da vida cristã, envolvendo o cristão na morte e na ressurreição do Messias. Aqui e nos demais textos, Paulo compreende o batismo, em parte, em termos do Êxodo, para o qual o batismo de João apontava, e em parte em termos do próprio batismo de Jesus por João, porém, mais especificamente, em termos do “batismo” acerca do qual o próprio Jesus falou (Marcos 10:38), ou seja, sua morte. Quando as pessoas se submetem ao batismo cristão, morrem com o Messias e são ressuscitadas com ele para uma nova vida. Isso significa, em primeiro lugar e acima de tudo, uma mudança decondição. Não estamos mais situados “em pecado”; a graça nos encontrou lá (5:8,20), não para nos dizer que estávamos bem da forma como estávamos, mas para nos resgatar e nos levar para outro lugar. Paulo emprega a figura de “plantar”, como ocorre no caso de uma árvore ou de um arbusto. Uma vez tendo sido plantado em um solo específico, é lá que você deve crescer. No batismo, você é plantado na morte de Jesus, de modo a viver agora como um ser humano renovado, que também foi plantado em sua vida ressurreta. Viver de acordo com uma mudança de condição requer que se reconheça essa mudança e que se deem passos concretos a fim de alinhar sua vida real à pessoa que você se tornou. Quando alguém se casa, pode muito bem acontecer de não se sentir muito diferente, mas, de fato, ocorreu uma mudança, à qual, agora, ambos os cônjuges precisam adaptar-se. Foram feitas promessas. Essas promessas podem ser quebradas, porém não podem ser desfeitas. Em muitas culturas, quando morre um pai de família, o filho mais velho assume a responsabilidade como o chefe da família, querendo ou não assumi-la e sentindo-se ou não preparado para isso. Essa é sua nova condição, e ele deve viver à altura disso, da melhor forma possível. Uma vez batizado, é claro que você pode tentar esquivar-se ou negligenciar suas novas responsabilidades. Afinal de contas, você pode fingir que não ostenta uma nova condição. Paulo aborda esse tipo de problema em 1Coríntios 10. Mas o que você não pode fazer é tornar-se alguém não batizado de novo. Nem pense em tentar voltar para o Egito. O melhor a ser feito é refletir cuidadosamente sobre que indivíduo você se tornou agora e partir para a Terra Prometida. Em outras palavras, isso é mais ou menos o que Paulo vai dizer. No entanto, primeiro faça uma pausa para refletir. Se você foi batizado, o que isso significa para você? Será que deveria explorar o significado disso um pouco mais? E, se você ainda não foi batizado, não teria chegado a hora de pensar a esse respeito? ROMANOS 6:6-11 MORTO PARA O PECADO, VIVO PARA DEUS 6Sabemos isto: nossa velha humanidade foi crucificada com o Messias, de modo que a solidariedade do pecado pudesse ser abolida, e não fôssemos mais escravos do pecado. 7Aquele que morreu, vejam bem, foi declarado livre de todas as acusações de pecado. 8Mas, se morremos com o Messias, cremos que viveremos com ele. 9Sabemos que o Messias, após ressuscitar dentre os mortos, não morrerá outra vez. A morte já não tem mais autoridade sobre ele. 10A morte que ele morreu, perceba, foi para o pecado, uma única e exclusiva vez. A vida que ele vive, porém, é para Deus. 11De igual modo, vocês devem considerar-se mortos para o pecado e vivos para Deus no Messias, Jesus. De tempos em tempos, ouço a respeito de alguém que sofreu um acidente terrível ou que teve alguma doença específica e, por isso, já não consegue mais lembrar quem é. Deve ser extremamente perturbador — tanto para a pessoa em questão como para quem procura ajudá-la. Estamos tão acostumados com as pessoas sabendo dizer seu próprio nome, onde moram, em que trabalham, quem é sua família e assim por diante, que, só de pensarmos em falar com alguém que não consegue nem mesmo lembrar essas coisas, já nos sentimos alarmados. Levando esse caso ao extremo, existem situações ainda mais raras, em que crianças que se perderam quando ainda bebês são encontradas anos depois. Criadas por animais, sem nem mesmo ter a noção do que é ser humano, e menos ainda de que elas mesmas são humanas. Em uma situação assim, o que gostaríamos de ser capazes de fazer é ajudar a pessoa em questão a descobrir quem de fato é, para que possa alinhar de novo sua vida com sua verdadeira identidade. Aqueles que têm perda de memória podem ser trazidos de volta com calma, passo a passo, à sua vida normal, de volta ao seu caminho. A criança criada em uma selva pode descobrir, da noite para o dia, toda espécie de inimagináveis possibilidades humanas, passando, assim, a se expressar verbalmente, de forma articulada. Nessa passagem, o objetivo de Paulo é fazer algo desse tipo com pessoas que precisam aprender, ou ao menos ser lembradas, acerca de sua nova identidade como cristãos batizados. Sua estratégia básica consiste em inseri-las no mapa que ele mesmo traçou no fim do capítulo 5. E insistir para que pertençam a um lado, e não ao outro. Lembre-se do mapa: existem dois tipos de humanidade, os que estão em Adão e os que estão no Messias. Todos nós começamos a vida “em Adão” e, se formos honestos, teremos de admitir que, com frequência, nos sentimos como se ainda estivéssemos lá. Em particular, creio, se você já é cristão há um bom tempo e já esqueceu como é, na prática, ignorar o amor e o perdão de Deus. No entanto, Paulo insiste em que não estamos mais lá. Quando os cristãos dizem, eventualmente, que fizeram algo de errado por causa do “velho Adão”, ou do “velho homem”, que ainda está em operação neles, estão indo contra o que Paulo declara de forma explícita nesse trecho: que a “velha humanidade” foi crucificada com Jesus. A vida adâmica possuía sua própria solidariedade, presa rapidamente a uma rede de pecado, escravizando todos os seus participantes, da mesma forma que Faraó escravizou os israelitas. E o ponto importante sobre ser crucificado é que, uma vez que se esteja morto, não é mais possível ser escravizado dessa forma. Conforme Paulo explica no versículo 7, uma vez morto, o pecado não tem mais direito sobre você. Você está livre de todas as acusações. Desse modo, aonde isso nos leva? A uma espécie de terra de ninguém, a meio caminho entre Adão e o Messias, nem morto nem vivo? Não. Paulo insiste em que agora estamos “no Messias”, de modo que tudo o que vale para ele também vale para nós, independentemente de isso nos parecer improvável e apesar de boa parte disso não nos parecer ser verdade. E o que é verdade acerca do Messias, desde o glorioso dia da Páscoa, é que ele está vivo de novo, com uma vida que a morte não pode mais tocar. Ele não voltou para a mesma vida, como ocorreu com a filha de Jairo, com Lázaro e as demais pessoas ressuscitadas por Jesus (e, no que diz respeito a esse assunto, Elias e Eliseu). Ele seguiu em frente, através da morte, para o outro lado, entrando em uma nova vida, em um corpo que a morte não mais pode atingir — um conceito que temos dificuldade de assimilar, mas sobre o qual os cristãos primitivos são muito claros. A questão que Paulo levanta é que, se estamos “no Messias”, então nos encontramos na mesma posição que ele também se encontra. É óbvio que ainda não fomos ressuscitados corporalmente, como seremos um dia. Isso pertence ao futuro. O futuro é garantido e certo, como diz Paulo em 8:11 e em toda sua argumentação de 1Coríntios 15, mas, ainda assim, é o futuro. Contudo, parte da importância de ser cristão é que o futuro invade o presente na pessoa e na realização de Jesus, de modo que seus seguidores já podem provar a realidade daquele futuro enquanto ainda estão vivendo no presente. O cristão vive de acordo com o fundamento da ressurreição. Não estamos “em Adão”, mas, sim, “no Messias”, aquele que morreu e agora se encontra vivo para todo o sempre. Paulo diz que precisamos nos “calcular” nessa realidade (v. 11) ou, como em outras traduções mais conhecidas, nos “considerar”. Isso já foi muitas vezes seriamente mal compreendido. Algumas vezes, as pessoas supõem que Paulo está se referindo a um novo salto de fé — salto por meio do qual podemos obter um novo tipo de santidade, colocando-nos fora do alcance da tentação e do pecado. E pode ser bastante desejável para todos — espera-se que pelo menos para a maioria dos cristãos — que, ainda enfrentando problemas com o pecado, anseiam por deixá-lo para trás. Entretanto, não é isso que Paulo está falando. Aqui, a palavra usada por Paulo tem a ver com escrituração contábil, com o cálculo de contas, com análise de lucros e perdas. E é claro que, quando se faz um cálculo, chega-se a uma resposta que, em certo sentido, antes não existia. Em outro sentido, porém,tudo que o cálculo faz é tornar-nos conscientes do que, de fato, já era verdade durante todo esse tempo. Ele não cria uma nova realidade. Até que se conte o dinheiro contido na gaveta da caixa registradora, não se sabe quanto foi o ganho com o trabalho do dia. Entretanto, contar o dinheiro que se encontra lá não fará a receita do dia aumentar ou diminuir um só centavo em relação ao que já se tinha antes. Paulo está nos dizendo para fazer as contas, para calcular, para avaliar a nova posição — não para que estimulemos nossa coragem espiritual com um novo salto de fé, no qual venhamos a nos imaginar, na prática, como pessoas sem pecado. Contudo, é exatamente aqui que está o ponto principal. Muitas vezes, é difícil crer no resultado dos cálculos. No entanto, a fé, em relação a esse aspecto, consiste não em fechar os olhos e tentar crer no impossível, mas em abrir os olhos para a realidade de Jesus e de sua morte e ressurreição representativas — e para a realidade de sua própria posição como membro batizado e crente do povo de Jesus, aqueles que estão “no Messias”. Esse é o desafio do versículo 11. Precisamos lembrar quem realmente somos agora, para que possamos agir de forma coerente. Uma ilustração bem conhecida nos mostra o exato sentido desse ponto levantado por Paulo — uma ilustração que, apesar de conhecê-la já faz muito tempo, somente há pouco veio a fazer sentido na vida prática de alguém que conheço. Imagine que você alugue uma casa de um proprietário que acaba se revelando abusivo e explorador, sempre exigindo taxas extras, entrando em sua casa sem pedir permissão, ameaçando-o com processo na justiça ou com violência, caso você não atenda às suas exigências. Você se acostuma a fazer o que ele exige por medo e não parece encontrar uma saída para essa situação. Mas, então, para seu alívio, você encontra outro lugar para morar. Alguém aparece e paga seu aluguel pendente e você está livre para sair. Então, você se muda e se estabelece no novo lugar. Porém, para seu espanto, alguns dias depois, o antigo proprietário surge à sua porta e vai entrando sem autorização. Ele está zangado e exige mais dinheiro. Ele o ameaça de levá-lo à justiça. O antigo hábito retorna: você se sente fortemente tentado a pagar o que ele está exigindo, tão somente para se livrar dele. Entretanto, você sabe que não é mais seu inquilino. Você já viu todos os papéis: sua última conta já foi quitada e você não lhe deve mais nada. Ainda trêmulo, você se levanta e ordena que ele saia. Ele não tem mais direito algum sobre você. Dependendo de quão desagradável seja seu ex-locador, você pode ter ou não de chamar a polícia. O apelo de Paulo no versículo 11 é exatamente como na ilustração acima. Lembre-se da papelada, diz ele. Lembre-se de quem você de fato é. Não se entregue às vozes que dizem que, apesar de tudo, você ainda está em Adão e que, portanto, deveria comportar-se exatamente como antes. Resistir à tentação não é uma questão de fingir que você não acharia mais fácil desistir e se entregar. É, sim, uma questão de aprender a pensar da maneira correta. E de agir com base no que você sabe ser a verdade. ROMANOS 6:12-14 O CHAMADO PARA UMA VIDA SANTA 12Portanto, não permitam que o pecado domine seus corpos mortais, para fazê-los obedecer aos seus desejos. 13Nem apresentem seus membros e órgãos ao pecado com a finalidade de serem usados para seus maus propósitos. Antes, apresentem a si mesmos a Deus, como pessoas ressuscitadas dentre os mortos, e seus membros e órgãos a Deus, a fim de serem usados para os fins justos de sua aliança. 14Notem que o pecado não terá domínio sobre vocês, uma vez que vocês não estão mais sob a lei, porém sob a graça. Encerramos a última seção com o retrato de alguém se mudando de casa (e de um senhorio para outro). Vamos estender essa imagem um pouco mais e imaginar que eu sou um pequeno agricultor em uma área rural, cerca de mil anos atrás. Meu sítio situa-se na divisa entre dois grandes estados e, durante muitos anos, o senhor das terras arrendadas, onde, na verdade, eu vivo, me tem sob seu total domínio. Especificamente, sempre que desejava travar uma batalha ou participar de uma guerra, ou até mesmo de resolver uma escaramuça local, ele me convocava para me juntar a ele e lutar ao seu lado. Além disso, ameaçava-me com toda a sorte de coisas desagradáveis — como, por exemplo, incendiar minha casa —, caso eu não me unisse a ele. Como se não bastasse, mais de uma vez me fez juntar todos os meus implementos agrícolas, objetos úteis e de uso pacífico, como enxadas e pás, e levá-los ao ferreiro para que fossem transformados em espadas e escudos. Assim, vamos lutar suas guerras quando, na verdade, deveríamos estar cuidando da plantação. Bem, no fim das contas, dei-me conta do que estava acontecendo e mudei para o outro lado do rio, onde ficava o outro grande estado. Construímos uma nova casa, trouxemos todos os nossos pertences e nos estabelecemos de novo. (Felizmente, meu antigo senhorio estava fora naquele período; caso contrário, teria tentado me impedir de sair.) O nobre senhor proprietário das terras onde agora resido nos recebeu de uma forma maravilhosa e nos cobra um aluguel muito menor que o outro. De tempos em tempos, meu ex-patrão aparecia e ameaçava enviar seus cruéis seguidores para que fizessem, isso mesmo, toda a sorte de coisas desagradáveis de novo. Creio, porém, que ele, secretamente, teme meu novo senhorio. Dei continuidade a meu trabalho e, agora, cuido das tarefas do sítio. E meu novo senhor me chama para ajudá-lo em seu trabalho, que é bem diferente das batalhas para as quais meu ex-senhor me arrastava. Meu novo senhor está construindo escolas e hospitais — especialmente para os muito pobres, e algumas vezes me pede que leve meus equipamentos e ferramentas para ajudar nessa tarefa. E, se alguém estiver passando por necessidades especiais — por exemplo, morte na família, incêndio, animais enfermos, seja o que for —, ele me pede que o ajude dessa ou daquela maneira. Algumas vezes, é preciso muito esforço, mas eu fico contente em ajudar, especialmente esse homem. Essa é uma ficção inocente (até gosto de viver esse papel na Idade Média, mas estou certo de que não gostaria de vivê-lo de fato), mas atinge seu objetivo quanto a ilustrar o ponto levantado nesses versículos. O que está envolvido em se tornar cristão e, então, passar a viver a vida da humanidade recriada por Deus é uma mudança de senhorio. Isso tudo parece muito esquisito para algumas pessoas. Hoje em dia, existem muitas — como, provavelmente, havia nos dias de Paulo, já que ele considera necessário enfatizar esse ponto — que simplesmente não conseguem pensar nesses termos. Há muitas pessoas que lidam com o evangelho cristão como uma simples maneira nova de ser religioso, sem se dar conta das exigências radicais que ele faz em relação a todos os aspectos da vida. Contudo, não existe território neutro. O famoso cantor e compositor Bob Dylan declarou (em sua fase cristã, suponho) em uma de suas canções [Gotta Serve Somebody]: “Você tem de servir a alguém. Pode ser ao diabo”, e a canção prosseguia: “ou pode ser ao Senhor, mas você tem de servir a alguém.” Bem, Paulo não menciona o diabo aqui nesse texto, mas, quando fala de “pecado”, há certo senso de poder, força ou energia sobre-humana, que é mais do que a soma total de nossos instintos inúteis ou de nossas ações equivocadas. Essa força pode agir — e, na realidade, age — como um senhorio tirânico, fazendo exigências sob ameaça, do tipo: você deve viver desse jeito; você deve sair e se embebedar; você deve ceder a seus apetites sexuais ao máximo; você deve aproveitar aquilo que os outros possuem; você deve desenvolver novos tipos de armamento que sejam capazes de matar cada vez mais pessoas; você deve ampliar seu império de negócios ao máximo... e essa lista é interminável, como já era nos tempos de Paulo. E aqui estão as ameaças: se você não viver desse jeito, deixará escapar a verdadeira vida; você jamais ficará satisfeito até que se renda; vocêficará doente ou ultrapassado; as pessoas vão rir de você; suas finanças vão se desintegrar; seus inimigos vão se aproveitar de você. Sempre que alguém diz: “Ah, mas não tinha como eu desistir disso”, talvez tivesse uma visão sóbria e realista das necessidades da vida, porém é bem provável que estivesse simplesmente com medo das ameaças do velho senhorio. Talvez a palavra mais importante desse trecho sucinto seja “Portanto”. Ou você poderia traduzi-la como “Por isso”. Essa passagem se une à anterior, na qual Paulo insta seus leitores a que se lembrem, calculem e desenvolvam onde vivem agora. Eles já atravessaram o rio. Não pertencem mais ao antigo território. Eles não apenas não se encontram mais sob a obrigação de obedecer a seu antigo senhorio, como também estão sob a nova obrigação de não obedecer a ele, mas, sim, ao novo. E sua principal arma nessa batalha específica consiste em lembrar-se de quem se tornaram mediante o batismo e a fé. Martinho Lutero, quando tentado por dentro e por fora, costumava exclamar: “Baptizatus sum!” [“Já fui batizado!”]. Essa, para a surpresa de muitos cristãos que supõem que Paulo e Lutero teriam demonstrado cautela diante de uma declaração dessa natureza, é a principal base para a nova posição. De modo específico, Paulo imaginou as várias partes do corpo humano como implementos a serem empregados no serviço desse ou daquele senhor. Nossos membros e órgãos e, no que diz respeito a isso, nossas mentes, memória, imaginação, emoções e vontade, tudo deve ser colocado à disposição não do pecado, mas de Deus. Precisamos pensar e agir como pessoas que já atravessaram o rio e, portanto, já saíram do outro lado. Ou seja, que já morreram e já ressuscitaram para uma nova vida. Não podemos perder as poderosas implicações disso, apoiadas por maiores detalhes em diversos pontos da primeira carta aos Coríntios. O que fazemos no presente, ao oferecermos todo o nosso ser ao serviço de Deus, é o início da vida ressurreta. É óbvio que haverá uma enorme mudança quando a ressurreição propriamente dita ocorrer (conforme Paulo nos garante em 8:11 e outros trechos). Nossos corpos atuais se deteriorarão e morrerão. Entretanto, quando formos ressuscitados, sem dúvida para nossa própria e enorme surpresa, o que tivermos feito no presente a serviço do novo senhor acabará se revelando parte não apenas de quem somos, como também do novo mundo que ele terá feito surgir. Apresentem-se a Deus, diz Paulo, como ressurretos dentre os mortos. O versículo 14 acrescenta uma observação diferente, fazendo-nos lembrar de um tema que, como muitas vezes acontece, podemos ter esquecido; no entanto, Paulo não se esqueceu. Uma das razões pelas quais o pecado não vai dominá-lo — ou seja o motivo pelo qual o antigo senhorio não tem mais autoridade sobre você — é que, ao deixar seu território, você deixou para trás também o lugar no qual a lei domina. Pense mais vez em 5:20-21. Existem duas esferas, dois lugares para vivermos: a humanidade de Adão e a humanidade do Messias. E o mais chocante é que a lei de Deus surge como parte do mundo de Adão, e não do Messias. Paulo precisará de todo o capítulo 7 para explicar como isso ocorre. Mas, no momento, só para o caso de alguém pensar que abraçar a lei judaica o ajudaria a servir ao novo senhor, Paulo a retira de cena. Você se encontra sob o domínio da graça, e não da lei. Ou seja, sob o governo direto e generoso de Deus, mediante a morte e a ressurreição de seu filho. Uma das mentiras do antigo senhor, obviamente, é que o novo senhor é, em si mesmo, um verdadeiro tirano, que ele está realmente a fim de arrasar com sua maneira de ser e fazer com que tenha uma existência retraída e fútil, com todas aquelas regras de “não faça isso, não toque naquilo!” Uma das coisas que mais precisamos lembrar, na qualidade de cristãos, sobre quem somos e onde vivemos, é que o Deus a quem agora servimos é aquele cujo nome do meio é Jesus; o Deus, em outras palavras, cujo caráter é graça e amor generoso. ROMANOS 6:15-19 OS DOIS TIPOS DE ESCRAVIDÃO 15E então? Vamos pecar por não estarmos mais sob a lei, mas sob a graça? Certamente que não! 16Vocês não sabem que, caso se apresentem a alguém como escravos obedientes, serão realmente escravos daquele a quem obedecem, seja para o pecado, que conduz à morte, seja para a obediência, que conduz à justificação final? 17Graças a Deus, embora vocês tenham sido escravos do pecado, tornaram-se obedientes de coração ao padrão de ensino com o qual se comprometeram. 18Vocês foram libertados do pecado e agora se tornaram escravos dos propósitos da aliança de Deus. 19(Estou usando aqui uma imagem humana, devido à fraqueza humana natural!) Pois, do mesmo modo como apresentaram seus membros e órgãos como escravos da impureza, e, em certo grau, de uma ilegalidade após outra, apresentem- nos agora como escravos da justiça da aliança, a qual conduz à santidade. Um de nossos colunistas do jornal surgiu com uma brilhante ideia para realizar dois propósitos de uma só vez. A sociedade britânica (em comum com muitas outras do mundo ocidental) está enfrentando uma preocupante ascensão da criminalidade juvenil. Muitos jovens não têm emprego nem propósito de vida. Eles têm toda a energia, porém pouco dinheiro e nenhuma chance de fazer ou usufruir o tipo de coisas a que assistem na televisão. Por isso, voltam-se para o crime — e tornam-se grandes especialistas em todas as espécies de habilidades, sejam físicas, sejam mentais. Não temos, assim parece, muita ideia, na condição de sociedade, de como lidar com esse problema. Rotular essas pessoas como criminosas e trancafiá-las não é algo parece estar trazendo bom resultado. Ao mesmo tempo, muitas pessoas na Inglaterra lamentam o fato de que nossa seleção de críquete raramente consegue alcançar resultados à altura das expectativas. De tempos em tempos, tivemos sucesso em outros esportes, mas (no momento em que escrevo) já faz um longo tempo desde que o críquete inglês, que já foi o orgulho e a alegria do país, saiu-se bem. Muito bem, sugeriu o colunista, aqui está a resposta: coloquem esses jovens perigosos e cheios de energia fora das ruas. Ponham todos eles, custe o que custar, em algum tipo de centro de detenção. Mas façam com que o regime deles seja simplesmente treinamento para atuar no campo dos esportes. Treinamento físico compulsório, aprendendo todas as habilidades esportivas, com todo o tempo necessário para a prática. Antes do que se imagina, teremos uma nova geração de jogadores de críquete, prontos para dominar o mundo desse esporte. Ele não acrescentou, embora devesse, já que a Austrália é a maior inimiga da Inglaterra quanto ao críquete, que existe certa propriedade na escolha desse método. Afinal de contas, como os próprios australianos frequentemente enfatizam, seus antepassados — criminosos deportados — foram selecionados pelos melhores magistrados de Londres. Piadas à parte, o ponto que a ilustração levanta é que não há necessidade de eliminar toda a energia e toda a iniciativa que atualmente são direcionadas ao crime; é preciso apenas canalizá-las em uma boa direção. “Assim como vocês apresentaram seus membros e órgãos como escravos da impureza, apresentem-nos a Deus como escravos dos propósitos de sua aliança” (v. 19). Há um nítido desafio para os cristãos de todas as gerações e idades aqui, sem contar aqueles que abraçaram a fé quando já eram adultos. Pense nas formas como, em sua vida anterior, você empregava muita energia em busca de coisas que agora considera erradas. Você está empregando essa mesma energia, imaginação e iniciativa no trabalho para o reino de Deus? Para estender os propósitos de sua aliança no mundo? Aqui, esse desafio é a aresta afiada do contraste entre os dois tipos de “escravidão”. Paulo quer repelir qualquer sugestão de que, por sermos cristãos e, assim, estarmos livres da escravidão do pecado, isso nos daria “liberdade” para fazer tudo aquilo que nos vem à cabeça. Essa é, mais uma vez, uma acusação que ele deve ter encontrado com frequência, e não menosde judeus e de cristãos judeus que, ao ouvirem que ele considerava os cristãos pessoas livres da lei, preocupavam-se, naturalmente, com a possibilidade de deixarem de fora toda restrição moral. É realmente interessante pensar em Paulo sofrendo essa acusação quando, hoje em dia, ele é visto como um moralista rigoroso. Paulo sabe muito bem que a liberdade que os cristãos desfrutam nada tem a ver com isso — exatamente como a liberdade que você desfruta quando passa no teste de direção e passa a ter “liberdade para dirigir”. Isso não significa que, agora, você pode dirigir em alta velocidade, como bem entender, em cidades ou vilarejos, ou ainda dirigir do lado errado da rodovia, nos trilhos dos trens ou em meio às plantações. Com uma nova liberdade, sempre vem uma nova estrutura. As estruturas restringem determinado tipo de liberdade — a liberdade de se fazer qualquer coisa que seja —, de modo a se incrementar outro tipo (pois, se todos dirigissem para onde quer que desejassem, ninguém estaria livre para dirigir em qualquer lugar que fosse). Paulo expressa essa percepção de uma nova estrutura ao falar, de um modo um tanto dramático, de uma nova “escravidão”. A liberdade não existe em um vácuo moral; ela nos foi comprada por meio da morte de nosso soberano, o próprio Jesus. Precisamente por sermos pessoas livres e de modo a mantermos essa liberdade, devemos a ele nossa lealdade. Não devemos pensar que os dois tipos de “escravidão” são da mesma espécie, mas seria bom começar a ver ambos os mundos em termos de obediência a um senhor. (É provável que a sentença entre parênteses, no início do versículo 19, seja a forma de Paulo admitir que intitular o chamado para uma nova vida de “uma forma de escravidão” realmente soa muito confuso. No entanto, ele precisou disso para enfatizar o ponto em questão.) Assim, Paulo compara os dois tipos de “escravidão”. E, quando faz isso, está sempre usando termos ligeiramente diferentes, de modo que, se não tivermos o devido cuidado, a passagem pode parecer ser um pouco confusa. No versículo 16, ele fala de sermos obedientes ou ao pecado ou à própria “obediência” — é estranho pensar em ser obediente à obediência, mas ele precisava disso para contrastar com “pecado”, e isso serviu naquele momento. A obediência ao pecado conduz à morte, como ele já afirmara tantas vezes; e a obediência à “obediência” conduz à “justificação”, ao veredicto de “estarmos certos [justificados]” no juízo final, conforme temos em 2:1-16. As palavras usadas para o “veredicto”, “declaro certo”, “estar certo”, são as nossas velhas conhecidas “justiça” e “justificação”, embora , por serem termos tão complexas, (tanto no inglês [e no português] contemporâneo como na esfera do debate teológico) me esforcei ao máximo para evitá-las neste livro. Ela surge de novo nos versículos 18 e 19, em que as traduzi como “propósitos da aliança” e “justiça da aliança”. É um termo, como você vê, que pode cobrir diferentes sentidos ao ser traduzido. Sua ênfase básica está no bom propósito do criador em trazer o mundo de volta do caos para sua apropriada ordem e o de trazer os seres humanos à forma correta e à correta relação consigo mesmo. Aqui, Paulo aponta que o propósito da nova vida, a razão pela qual é necessário adotar novos padrões de comportamento, é que Deus está pondo o mundo em ordem, e ele quer e necessita que seu povo recém- nascido faça parte da obra, tanto em suas próprias vidas como no serviço em favor de seu reino. No centro dessa imagem, temos um vislumbre de como essa nova escravidão funciona na prática. Não é uma questão de mandamentos serem atirados sobre nós, de modo que tenhamos de obedecer a eles. Uma mudança de coração já ocorreu (v. 17). Paulo já havia falado, bem antes, que o problema com a humanidade adâmica situava-se no coração humano (1:21,24). Agora, embora ainda não tenha explicado isso aqui, ele compreende os cristãos como pessoas que foram transformadas a partir de seu interior. Há uma disposição interior básica para se conformar com “o padrão de ensino com o qual estamos comprometidos”. Os cristãos primitivos desenvolveram determinadas tradições básicas acerca do próprio evangelho (1Coríntios 15:3-8), sobre eucaristia (1Coríntios 11:23-26), sobre comportamento (1Tessalonicenses 4:1 e nossa atual passagem) e, provavelmente, também acerca de muitos outros assuntos. Essas regras práticas estabelecem uma estrutura de crença e comportamento, um código de prática da família. Como pastor, Paulo, sem dúvida, observava com frequência que, quando as pessoas se tornavam membros da família, algo acontecia com elas em seu íntimo, fazendo com que quisessem viver de acordo com aquela comunidade à qual haviam passado a pertencer. Obviamente, era necessário haver ensino e esforço moral. Entretanto, a vontade já estava lá, e Paulo agradecia a Deus por isso. Seria muito bom considerar, por alguns instantes, o que Paulo diria caso pudesse erguer os olhos, fazendo uma pausa enquanto escrevia esta carta, e desse uma espiada na igreja do início deste século 21. ROMANOS 6:20-23 AONDE LEVAM AS DUAS ESTRADAS 20Quando eram escravos do pecado, notem bem, vocês estavam livres quanto à justiça da aliança. 21Que fruto vocês produziram a partir das coisas das quais agora se envergonham? O destino dessas coisas é a morte. 22Mas agora, que foram libertados do pecado e escravizados a Deus, vocês produzem frutos para a santidade. Seu destino é a vida da era porvir. 23O salário pago pelo pecado, vejam bem, é a morte; entretanto, o dom gratuito de Deus é a vida da era porvir, no Messias, Jesus, nosso Senhor. Quando nos mudamos de casa, precisamos saber quais estradas tomar e para onde nos conduzem. Outro dia, eu estava fazendo compras de Natal na cidade para a qual acabamos de nos mudar. Ao sair com o carro de um estacionamento, avistei uma longa fileira de veículos fazendo o retorno na rua principal. Ansioso para chegar em casa, descobri uma rua lateral que parecia atravessar a cidade na direção que eu desejava seguir. Então, entrei nela apenas para descobrir que conduzia a um beco sem saída. Ah, mas havia uma pequena rua com uma saída no fim. Virei na tal ruazinha. Tratava-se de um retorno que me trouxe de volta ao ponto de partida. Podia ter sido pior. Certa vez, tomei o que parecia ser uma promissora estrada rural, apenas para acabar preso, quilômetros interior adentro, em um riacho que rompera suas margens, fazendo sumir parte da pista. Algumas vezes, já me senti tentado a ignorar os sinais de “Perigo” quando estava dirigindo nas proximidades de áreas militares e tomando o que, em outro contexto, seria a rota óbvia para contornar os atoleiros. E é claro que alguém poderia imaginar situações ainda piores, como, por exemplo, tentar fugir dos engarrafamentos do trânsito, passando por uma via fechada por cones de sinalização, somente para descobrir, mais à frente, que a ponte sobre a qual você está trafegando não foi concluída e que, portanto, está prestes a cair no rio. O ponto em questão é óbvio, mas, quando se trata de ética cristã, costuma ser ignorado. As regras e orientações para a vida cristã não existem simplesmente porque Deus gosta de comprimir as pessoas segundo determinado padrão, seja bom ou não para elas, deixando-as felizes ou não. As regras existem por serem as regras inerentes ao caminho, e é muito importante a estrada que se toma. Uma das estradas o levará ao fim, não apenas a um beco sem saída, mas a um verdadeiro desastre. A outra estrada o conduzirá à vida, à vida em uma nova dimensão, à vida em toda a sua plenitude. Isso também costuma ser mal compreendido. Com frequência, as pessoas supõem que a ameaça da morte final e a promessa da vida suprema funcionam segundo o princípio da cenoura e da vara. De acordo com esse modelo, Deus nos trata como se fôssemos burros ignorantes, balançando cenouras bem na frente de nosso nariz (“Vida eterna! Que tal isso! Agora, mexa-se!”), ou então, se parecermos relutantes, batendo em nós com a vara (“Você se envergonhará disso! Você morrerá!Não faça isso!”). Talvez pareça ser assim algumas vezes, mas, caso aconteça, é provável que estejamos olhando para essa situação de forma errada. A questão é bem diferente. Como já vimos no capítulo 1, se você decide viver de certa maneira, está escolhendo um comportamento que é, em sua própria natureza, destrutivo tanto para aqueles que o praticam como para aqueles cujas vidas são afetadas por ele. Se (a título de exemplo óbvio) as pessoas se embebedarem com alguma regularidade e saírem por aí quebrando tudo, estarão causando danos a si mesmas e ao mundo à sua volta. Não é tanto o caso de alguns padrões arbitrários declararem que esse tipo de comportamento é errado e, portanto, merece punição. Esse comportamento já carrega em si mesmo os sinais de seu destino. Ele tem sobre si o cheiro de morte. O castigo final não é arbitrário, como mandar alguém para a prisão por deixar de pagar uma multa. Assemelha-se muito mais ao que ocorre quando alguém dirige de forma negligente junto a um precipício, lançando a si próprio para a morte. Ao contrário, quando as pessoas se comportam de acordo com o padrão estabelecido no evangelho e no antigo ensino cristão, encontram-se sinais de vida já em curso. A vida da era por vir não é uma recompensa arbitrária, como alguém recebendo uma medalha por resgatar uma criança que estava se afogando; é muito mais como a recompensa que um pai recebe quando a criança que ele resgatou é sua própria e amada filhinha. Faça uma rápida pausa e examine a seguinte expressão: “a vida da era por vir.” Já a encontramos antes, no final do capítulo 5. Em geral, é traduzida como “vida eterna” e, claramente, sintetiza a visão de Paulo sobre o destino final do povo de Deus. Entretanto, com frequência, é mal compreendida. Muitas pessoas trazem para o Novo Testamento uma visão preconcebida do destino final: “o céu.” Elas talvez se imaginem sentadas sobre as nuvens, tocando harpas e, muito embora talvez saibam que isso seja apenas uma ilustração, elas ainda pensam na realidade em termos de uma existência fora do espaço, do tempo e da matéria. Isso, porém, com certeza não é o retrato pintado pelo Novo Testamento, e sem dúvida não é o conceito de Paulo a respeito do destino final. Como um bom judeu do primeiro século — e sua teologia cristã não alterou essa visão, apenas a aprofundou e a completou —, ele cria na existência de duas eras: a “presente era” e a “era por vir”. A presente era (veja, por exemplo, Gálatas 1:4) é um período no qual a perversidade continua a ditar as regras no mundo de Deus. Na era por vir, o governo de Deus finalmente triunfará. A conquista de Jesus, o Messias, trouxe essa “era por vir” de maneira antecipada para dentro da presente era. Os cristãos são instados a viver no presente à luz desse futuro — esse futuro que veio encontrá-los em Jesus. Caso você queira saber com que se parece a visão final do futuro de Paulo, pule para Romanos 8:18-25. É para aquela visão da nova criação, e não para uma expectativa qualquer de um “céu” descorporificado e atemporal, que o comportamento genuinamente cristão nos leva. O futuro, no entanto, permanece como um dom de Deus (v. 23). Paulo é cuidadoso em manter esse equilíbrio. Quando você peca, ganha um salário. E esse salário é a morte. No entanto, quando você vive segundo o padrão divino de santidade, não ganha a vida da era por vir. Ela permanece como um dom gratuito, muito superior a qualquer coisa que poderíamos fazer por merecer. O julgamento final ocorrerá de acordo com a vida que tivemos (2:1-16). Ou seja, ele se dará de acordo com, no mesmo sentido que uma orquestra sinfônica tocando Beethoven lança mão de todos os seus recursos, “de acordo com” as incipientes tentativas de assoviar sua melodia. Romanos 6 é um capítulo de apoio. Um capítulo ao qual a igreja precisa desesperadamente dar ouvidos em nossos próprios dias. Ele não nos dá instruções éticas específicas. Para isso, precisamos olhar outras partes — tanto dessa carta como de outros escritos cristãos antigos. Ele nos dá, sim, a estrutura para refletirmos a respeito da razão pela qual o comportamento cristão é importante e como colocá-lo em prática. As pessoas ainda pensam, seja dentro, seja fora das igrejas, que o cristianismo trata-se simplesmente de um punhado de regras morais restritivas, com algumas crenças e práticas ultrapassadas e estranhas. Até mesmo algumas poucas linhas dos escritos de Paulo farão calar essa insensatez, colocando-nos de volta na trilha do verdadeiro e necessário sentido e prática da santidade do genuíno cristianismo. ROMANOS 7:1-6 MORRENDO PARA A LEI 1Minha querida família: com certeza, vocês sabem — estou falando, afinal de contas, para pessoas que conhecem a lei — que a lei tem autoridade sobre alguém enquanto essa pessoa estiver viva. 2A lei mantém uma mulher casada unida a seu marido enquanto ele vive. No entanto, se ele morrer, ela estará livre da lei com relação a seu marido. 3Assim, portanto, ela será considerada adúltera caso saia com outro homem enquanto seu marido ainda vive. Mas, se seu marido morrer, ela estará livre da lei, de modo que não será tida como adúltera se sair com outro homem. 4De igual maneira, minha querida família, vocês também morreram para a lei mediante o corpo do Messias, de modo que podem pertencer a outro — àquele que, de fato, ressuscitou dentre os mortos — e, assim, frutificar para Deus. 5Pois, quando estamos vivendo uma vida humana mortal, as paixões do pecado que eram mediante a lei estavam em ação em nossos membros e órgãos, levando-nos a produzir frutos para a morte. 6Agora, porém, fomos libertados da lei e morremos para aquilo no qual fomos firmemente mantidos. O objetivo é que, agora, sejamos escravos na nova vida do espírito, e não na antiga vida da letra. Até aqui, fiz o meu melhor, neste livro e em outros semelhantes, para usar ilustrações que ajudem meus leitores na compreensão do âmago central da mensagem de cada trecho. Alguns revisores já questionaram tanto a sabedoria dessa tentativa como minha habilidade em atingi-la, mas eu prossigo nesse caminho. Quando chegamos a um trecho assim, contudo, deparamos com um tipo diferente de problema. O próprio Paulo faz o que eu venho procurando fazer e, à primeira vista, sua ilustração (como algumas das minhas, sem dúvida) não funciona tão bem quanto deveria. A ilustração é de uma mulher casada, uma mulher unida a seu marido pela lei — ou “a Lei”, poderíamos dizer, porque todo o capítulo refere-se à lei de Moisés, e não a outra lei qualquer ou genérica. O ponto que Paulo parece querer enfatizar é o de que, onde ocorre uma morte, ela libera as pessoas de suas obrigações legais, como, por exemplo, uma mulher casada que, após a morte do marido, não está mais presa à lei, sob a obrigação de recusar parceiros alternativos. No entanto, no segundo parágrafo, versículos 4 a 6, Paulo aplica isso aos cristãos e diz, por um lado, que eles morreram e, por outro, que eles agora estão livres para se casar de novo! O que podemos concluir com isso? Para início de conversa, por que ele se refere à lei? Podemos supor que, após ter escrito um capítulo sobre comportamento cristão, seria natural para ele continuar falando da lei como fonte de regras éticas. Afinal de contas, muitas igrejas ainda têm os Dez Mandamentos escritos na parede. Quem sabe (podemos pensar) Paulo não está caminhando nessa direção? Bem, é verdade que ele ainda considera importantes os mandamentos. Ele mencionará isso em 13:8-10, embora, ao agir assim, esteja fazendo mais do que simplesmente repetir os mandamentos e insistir em sua obediência. No momento, porém, a questão levantada é bem diferente. Aqui, a lei é parte do problema, e não parte da solução. Você pode supor, caso esteja acompanhando com atenção a argumentação da carta, que ele está escrevendo este capítulo porque, mais cedo ou mais tarde, teria de nos contar o que exatamente quis dizer com todas aquelas referências indiretas “à lei” (assim como em 3:20; 3:27-31; 4:13-15; 5:13-14;5:20; 6:14-15). Ele nos deixou diversas pistas de que a lei de Moisés, mesmo ele crendo que foi dada por Deus e que dá testemunho do evangelho (3:21), desempenha papel negativo nos propósitos de Deus como um todo (5:20), de modo que o cristão não se encontra “sob a lei” (6:14-15). Por que não? De acordo com esse ponto de vista, o capítulo 7 foi escrito para responder a essas questões remanescentes. E também é verdade que Paulo finalmente aborda essas questões de maneira mais completa. Entretanto, essa não é toda a história. Algumas pessoas leem Romanos 5—8 como uma mera descrição da vida cristã. Isso as leva a supor que o retrato da luta moral apresentada em 7:14-25 seria um panorama de como é tentar viver a vida cristã, a meio caminho, por assim dizer, entre os mandamentos de apoio do capítulo 6 e o alvo final estabelecido no capítulo 8. Isso atribui ao capítulo um papel dentro da leitura dessa seção vista como um todo, mas parece ignorar o fato de que o principal tema aqui não é a vida cristã, mas a própria lei em si mesma — e também o fato de que Paulo repete, vez após vez, que o cristão não se encontra “sob a lei”. Penso que a principal razão para Paulo escrever Romanos 7 é sua intenção de realizar duas coisas específicas. Ele quer explicar o porquê de a lei ter sido dada e como, de forma estranha, de fato cumpriu o propósito que Deus lhe conferiu, e também que agora, com um novo sentido, ela é cumprida mediante a obra do Messias e do espírito (ele aborda esse aspecto no capítulo 8), enquanto, ao mesmo tempo, explica, contra qualquer tentativa de judeus ou cristãos judeus sugerirem ao contrário, que a lei em si não pode conceder a vida que promete, pois estava destinada a trabalhar do lado negativo da equação. Se isso soar um tanto complicado (e é claro que soa), simplesmente explicaria por que Romanos 7, que resume tudo em algo semelhante a um típico poema judaico de lamentação, é, comprovadamente, de difícil compreensão. Este capítulo faz parte da estratégia maior de Paulo, ou seja, explicar aos cristãos romanos, muitos dos quais claramente com origem judaica (motivo pelo qual “conhecem a lei”, como assinalado no versículo 1), a transição profunda realizada mediante o evangelho, da família da aliança tal como definida pela lei para a família da aliança definida pelo Messias e pelo espírito. Somente se eles — e nós! — compreenderem esse ponto é que a igreja estará apta a compreender o que Deus fez e o que agora significa compartilhar a fé, a esperança e a vida cristã. A chave para a presente passagem, que introduz a longa argumentação sobre a lei, encontra-se em uma combinação de 5:20 e 6:6. Paulo continua pensando em termos dos dois tipos de humanidade (Adão e o Messias) e compreendendo o cristão como alguém cujo “velho homem” (6:6) foi crucificado com o Messias. Cada pessoa deve, portanto, ser vista como um ser composto: como uma mulher casada e, portanto (ao menos naquele universo), identificada com um marido. E o papel da lei consiste em consolidar os laços existentes entre a pessoa que está “em Adão” e o “velho homem”, ou “velho Adão”, com quem está casado. Isso explica o versículo 4, que se encontra no cerne desta passagem. A frase “Vocês morreram para a lei” refere-se ao mesmo evento de 6:6, passagem em que o “velho homem” foi crucificado com o Messias, de modo que “nós” fôssemos resgatados da solidariedade do pecado. Paulo está fazendo a espantosa e controversa declaração de que a lei, quando foi dada a Israel, firmou uma união entre Israel e... não Deus, como seria de se supor, mas Adão. Isso explica sua declaração, de outro modo desconcertante, no versículo 5 e, muitas vezes, no restante do capítulo, de que as paixões pecaminosas são “mediante a lei” (presumivelmente, ele quis dizer que “são percebidas mediante a lei”, mas eu mantive a tradução, refletindo seu grego um tanto abreviado). A lei, portanto, aparece como parte do que é errado. Dada a Israel por Deus, ela relembra continuamente Israel de que também está “em Adão”. Ela não pode retirar Israel da confusão. Simplesmente informa a Israel que ela também está envolvida nessa confusão. Na prática, o que isso transparece é que formará a parte principal do capítulo. Paulo, porém, também fornece, no versículo 6, um sinal antecipado da resposta. “Nós” — ou seja, claro, aqueles que, mediante o batismo e a fé, foram introduzidos na família definida pelo Messias crucificado e ressurreto — morremos para a lei (ver Gálatas 2:19) e, assim, fomos libertados dos laços com os quais ela nos unia à solidariedade do velho Adão, forçando-nos, assim como uma mulher unida a seu marido, a gerar seus filhos (que, nesse caso, significam a morte). Em vez disso, fomos unidos ao Messias em sua nova vida ressurreta, de modo que possamos gerar um novo tipo de fruto, o fruto para Deus. Esse é um dos lugares em que Paulo desenvolve a ideia do Messias como o Noivo de seu povo, que emerge de novo, por exemplo, em 2Coríntios 11:2-3 e Efésios 5:25-27. Ele nos deixa pistas também sobre o contraste antes mencionado, no fim do capítulo 2. Viver segundo a antiga solidariedade adâmica e, dentro disso, em Israel sob a lei, significa viver a velha vida sob a “letra” da lei. Viver a nova vida em solidariedade ao Messias significa deixar todos os aspectos da vida em Adão para trás e ser energizado de uma nova maneira, pelo espírito de Deus. Paulo mencionou muito pouco o espírito até agora (1:4; 2:29; e 5:5 foram as únicas ocorrências), mas, ao fim de sua argumentação atual, ele estará pronto para fazer um dos relatos mais importantes acerca da obra do espírito. Talvez a maior razão para ter escrito Romanos 7 seja o fato de que, uma vez que Deus realiza mediante o espírito “o que a lei não poderia fazer” (8:3), é vital que percebamos exatamente o que a lei estava tentando fazer e por que estava destinada a fracassar. O presente capítulo, embora muito difícil, é essencial para que possamos compreender a profundidade do problema humano e, a partir disso, a maravilhosa solução de Deus para esse nosso problema. ROMANOS 7:7-12 QUANDO A LEI CHEGOU: O SINAI APONTANDO PARA A QUEDA 7O que diremos, pois? Que a lei é pecado? Certamente que não. Mas eu não conheceria o pecado se não fosse mediante a lei. Eu não conheceria a cobiça se a lei não dissesse: “Não cobiçarás.” 8O pecado, porém, aproveitou a oportunidade do mandamento e produziu toda a espécie de cobiça dentro em mim. À parte da lei, o pecado está morto. 9Antes, eu vivia à parte da lei, mas, quando veio o mandamento, apareceu o pecado 10e eu morri. No meu caso, o mandamento que apontava para a vida acabou por trazer a morte. 11Pois o pecado aproveitou a oportunidade mediante o mandamento. Ele me enganou e, através dele, matou-me. 12Portanto, a lei é santa, e o mandamento é santo, justo e bom. A casa estava tranquila quando os trabalhadores chegaram e, quando alguém se aproximou da porta, presumiram ser o próprio proprietário. Eles estavam lá para instalar um novo sistema de alarme nas portas e janelas. Nos últimos tempos, o proprietário estava ansioso quanto à possibilidade de haver assaltantes, logo após uma grande onda de arrombamentos nas redondezas, e chamara a empresa para substituir o sistema atual. No entanto, o proprietário estava doente no dia da instalação e pediu a um vizinho que atendesse a porta enquanto estivesse nessas condições. O vizinho acompanhou os técnicos ao redor da casa e aprendeu, de forma precisa, como o sistema de alarmes funcionava. O que lhe deu uma ideia... e, é claro, colocou-o em uma posição privilegiada para ele mesmo assaltar a casa. Não havia nada de errado com o sistema de alarme. Na realidade, era excelente. Entretanto, ele pôs essa ideia na cabeça do vizinho e o capacitou a levá-la a cabo. Esse é outro exemplo que funciona bem até certo ponto, porém não por completo. A figura do vizinho nessa história é, na realidade, uma composição do “pecado” e do “eu” em Romanos 7. Entretanto,a figura atinge o cerne da questão no que diz respeito ao argumento de Paulo ao longo do capítulo: a lei, em si, é a lei de Deus, e ela é santa, justa e boa — assim como o sistema de alarme é algo excelente e está em perfeito funcionamento. No entanto, caso se introduza algo errado em um ponto diferente — caso exista um vizinho que não seja confiável ajudando a instalá-la —, o sistema funcionará contra você, e não a seu favor. Antes de chegarmos a esse ponto, porém, precisamos dizer algo sobre esse “eu” que tantas vezes aparece em Romanos 7. Muitos leitores imaginam que Paulo esteja simplesmente nos contando parte de sua autobiografia, de modo que a questão seria apenas: Que parte? Será que ele estaria descrevendo o momento antes de se tornar cristão? (Alguns, inclusive, já sugeriram, por exemplo, que esses versículos nos relatam como se sentia quando atingiu a puberdade ao mesmo tempo que se tornava um “filho do mandamento”, ou seja, passando por seu bar mitzvá, a cerimônia judaica de transição para a idade adulta.) Ou ele estaria descrevendo como é a vida agora, já na condição de cristão? Ou o capítulo muda de sua vida pré-cristã para sua vida cristã? Ou o que mais seria? Essas abordagens estão totalmente equivocadas em seu ponto de vista. No mundo antigo, era comum as pessoas escreverem na primeira pessoa do singular (“Eu”) quando buscavam exprimir algo em termos gerais. Algumas vezes, utilizamos esse recurso na primeira pessoa do plural (“nós”). Outras vezes, de forma ligeiramente pretensiosa, utiliza- se o pronome impessoal como em: “algumas vezes, tem-se a sensação de que (...)”. O próprio Paulo emprega esse recurso em Gálatas 2:15-21, tanto com “eu” como com “nós”. Existem diversas boas razões para supormos que é isso que ele está fazendo aqui, e não transcrevendo suas próprias lutas com a lei. Ele não está se referindo à raça humana de um modo geral. Está falando de Israel em particular — Israel, que recebeu a lei como um generoso dom de Deus, mas descobriu haver algo à espreita, assim como o vizinho não confiável da história, querendo tirar vantagem desse novo dom. Essa “alguma coisa” era o pecado ou talvez devamos dizer o “Pecado”. Israel também estava “em Adão”. No centro do problema da teologia bíblica, está o fato de que, quando Deus decidiu redimir o mundo, chamou como seu agente uma família que, em si mesma (como todas as demais), demandava redenção. De uma forma ou de outra, já deparamos com esse problema diversas vezes nesta carta. Agora, nós o enfrentamos face a face. Isso sugere outro motivo para Paulo querer dizer “Eu” em vez de “Israel” ou “os judeus”. Afinal de contas, essa também era sua própria história. Certamente, ele não iria desejar contá-la de uma maneira que implicasse seu não envolvimento na mesma história, de modo que ele já não sofresse mais com isso. Na verdade, há uma conexão direta a partir desse “Eu” na presente passagem, perplexo e aflito com os efeitos do pecado no povo de Deus, e o próprio Paulo, nos capítulos de 9 a 11, em lágrimas sobre os contínuos efeitos do pecado no povo escolhido, seus próprios conterrâneos segundo a carne. Essas linhas de conexão entre as diferentes seções são importantes se quisermos compreender a carta como um todo, e não como uma mera coleção de pequenos ensaios reunidos. Voltaremos a isso mais adiante. A presente passagem faz duas coisas ao mesmo tempo. Quando observo o lado de fora pela janela de meu escritório, posso ver não só o que se encontra no jardim lá fora, como também um reflexo da lâmpada que se encontra no peitoril da janela. Se eu tirasse uma fotografia daquela parte da janela, ela registraria ambas as coisas ao mesmo tempo, como se fossem partes da mesma vista. De igual modo, Paulo descreve o momento em que a lei chegou a Israel, de modo a refletir sobre o momento em que Adão recebeu o mandamento no jardim (veja, mais uma vez, 5:13-14 e 5:20). O ponto que ele quer destacar é que, quando Deus deu a Torá, Israel copiou Adão, ao quebrá-la. Isso implica que “o pecado” esteve latente em Israel durante todo o tempo, de modo que a santa e boa lei estava destinada a ser quebrada por Israel. A conclusão a que Paulo chega a partir disso, talvez para nossa surpresa, embora totalmente alinhada com seus próprios objetivos, é que “a lei é santa, e o mandamento é santo, justo e bom” (v. 12). Este capítulo serve basicamente para exonerar a lei de culpabilidade no desastre de Israel, enquanto demonstra sua incapacidade de conceder o que lhes fora prometido. O que a lei prometeu? De acordo com o versículo 10, “vida”. Vez após outra, mas, de forma específica, em passagens como Levítico 18:5 e Deuteronômio 30:15-20, a Torá oferecia a Israel a promessa de que aqueles que a observassem com fidelidade teriam vida, enquanto aqueles que a quebrassem sofreriam a morte. Já no Antigo Testamento, surge um paralelo entre Israel e Adão e Eva, colocados no jardim e tendo recebido o mandamento ao lado de uma advertência: quebrar isso significa morrer. A “morte” em questão envolvia serem banidos do jardim, exatamente como a punição de Israel resultou em exílio. Isso, porém, não foi um erro do mandamento dado no jardim, ou da lei dada a Israel. Foi o resultado do pecado. Em resumo, o pecado aproveitou a oportunidade em ambas as ocasiões. Assim como o vizinho citado, que poderia não ter pensado em assaltar caso não tivesse testemunhado a instalação do novo sistema de alarme, Israel descobriu o poder da cobiça ao ser advertido contra ela (v. 7 e 8). Houve um tempo em que a lei ainda não havia chegado (aquele estranho tempo entre Adão e Moisés, tempo referido por Paulo em 5:13-14). Uma vez, contudo, que a lei foi dada no monte Sinai, a pecaminosidade de Israel foi exibida pelo que realmente era. Por mais que, por um lado, a Torá prometa vida, a presença e o poder do pecado significam que tudo o que ela pode entregar é morte (v. 8-11). Tudo isso levanta uma questão para nós, à qual Paulo vai responder, ao menos em parte, mais adiante. O que exatamente é essa coisa chamada “pecado”? Se esse é o maior problema por trás de todos os nossos outros problemas, o que pode ser feito para o derrotarmos? Mais especificamente, o que Deus já fez a esse respeito? No momento, tudo o que podemos afirmar é que “o pecado” parece ser uma força que, em essência, opõe-se à criação de Deus. Ele está comprometido em estragar o mundo feito por Deus, os seres humanos que refletem sua imagem e o povo escolhido chamado para ser agente da redenção. Boa parte dessa discussão, por mais fascinante que seja em seus próprios termos e em relação aos argumentos de Paulo, pode parecer um tanto remota para muitos cristãos modernos. Muitos de nós não costumam refletir, com alguma frequência, sobre a situação de Israel sob a lei — embora talvez devêssemos fazer isso. Entretanto, essa passagem apresenta uma relevância para nós que não devemos deixar escapar. Quando nós também enfrentamos o pecado, seja em nossa própria vida, seja no mundo como um todo, não devemos subestimá-lo. O mal é real e poderoso. Ele se opõe a Deus, a seu mundo, às suas criaturas humanas, e não menos àqueles que foram chamados para seguir seu filho. Não devemos brincar com ele. Ele é enganador. E é mortal. ROMANOS 7:13-20 OLHANDO MAIS UMA VEZ A VIDA SOB A LEI 13Então, foi essa boa coisa que me trouxe a morte? Certa-mente que não! Ao contrário, foi o pecado, de modo que ele pudesse aparecer como pecado, operando mediante a boa coisa e gerando a morte em mim. Isso ocorreu de modo que o pecado se tornasse realmente bastante pecaminoso, mediante o mandamento. 14Sabemos, como você pode ver, que a lei é espiritual. Eu, porém, sou feito de carne, vendido como escravo sob a autoridade do pecado. 15Não entendo o que faço. Não faço o que quero, perceba, mas faço o que odeio. 16De modo que, se faço o que não quero fazer, estou concordando em que a lei é boa. 17Agora, porém, não sou mais eu quem faço. É o pecado que habita em mim. 18Eu sei, veja bem, que em mim não habita nada de bom, ou seja, em minhacarne humana. Pois, posso desejar o que é bom, mas não posso realizá-lo. 19Pois não pratico o bem que desejo, mas acabo fazendo o mal que não quero fazer. 20Portanto, se faço o que não quero, não sou mais eu quem o faz, mas o pecado que vive em mim. Tente ler essa passagem em voz alta, rapidamente. A não ser que tenha uma língua para uma leitura muito suave, posso garantir que, em algum ponto, você vai tropeçar. Lembro-me de terem dado isso a um rapaz membro do coro para ser lido em uma igreja, na realidade em uma cantata de Natal no período do Advento. Pobre jovem. Deviam existir leis de proteção infantil contra esse tipo de coisa. Não há como negar que essa é uma passagem bem complicada. Ela vai e volta de tal maneira que, à primeira vista, parece bastante assustadora. Alguns a elevaram à posição de um profundo mergulho na condição humana. Outros a deixaram de lado como algo confuso e incoerente. Meu ponto de vista pessoal é que não se trata de nada disso. Não se destina a ser uma descrição exata da experiência real de Paulo ou de quem quer que seja, embora encontre eco em muitos lugares, tanto na experiência de vida humana como na literatura antiga e moderna. Essa não é a questão. Paulo está tentando, e não pela primeira vez, fazer duas coisas ao mesmo tempo. Após ter descrito, na passagem anterior, o que ocorreu quando Israel recebeu a Torá (significando que Israel copiou e recapitulou o pecado de Adão, demonstrando que Israel era, de fato, pecaminoso), Paulo agora muda para o tempo presente, a fim de descrever a situação concreta (em oposição à experiência no nível dos sentimentos), de Israel vivendo sob a lei. O que acontece quando Israel, após receber a lei, faz seu melhor para viver com base nela? Algumas pessoas já viram isso como um indício de Israel, o “judeu”, tentando ganhar a justificação ou a salvação pelas obras de justiça, e de ganhar o favor de Deus mediante o cumprimento da lei. Eles procuraram sugerir que Paulo está demonstrando, na presente passagem, como essa tentativa foi fútil. Essa também, no entanto, não é a questão. Paulo exonera não apenas a lei, mas também, de modo interessante, o “Eu”: não sou mais “eu” que o faço, afirma ele (v. 17 e 20), porém o pecado que habita em mim. Não apenas a lei, mas o próprio Israel parece estar preso a um propósito maior, um propósito a serviço do qual, naquele momento, eles parecem estar presos em uma espiral negativa. Quanto mais Israel faz o que é certo, o que significa abraçar a lei santa, justa e boa de Deus (a “coisa boa” do v. 13 referindo- se, mais uma vez, ao v. 12, onde a lei é descrita desse modo), mais a lei declara: você me quebrou. Essa é a primeira coisa que Paulo está fazendo: dizer que, com efeito, Israel estava certo ao querer abraçar a Torá e fazer dela um modo de vida. Mas, enquanto a lei é espiritual, Israel, o “Eu” na passagem, é feito de carne e escravizado ao pecado (v. 14). Israel pertence, em outras palavras, ao lado de “Adão” nessa equação. A lei não capacita Israel a sair do problema; simplesmente o intensifica. Até aí, tudo bem. Estamos aqui exatamente na mesma base que nos encontrávamos em Romanos 2:17-24. Na realidade, para aqueles com uma percepção aguçada em relação à estrutura sinfônica da carta, Romanos 7 é uma versão mais longa de 2:17-24, enquanto, ao menos de uma perspectiva, Romanos 8 é uma versão bastante expandida de 2:28-29 — o que explica por que Paulo precisa fazer, em Romanos 9, as mesmas perguntas que fez no início do capítulo 3. A questão levantada em 2:17-24, para recordarmos, era que Israel, embora reivindicasse estar se saindo melhor diante de Deus do que o restante do mundo, mais ainda por possuir a lei, estava reduzido ao mesmo estado do restante do mundo (1:18―2:16), acusado, diante de Deus, de pecado. Agora, começamos a ver o segundo ponto que Paulo está procurando estabelecer — ponto bastante sutil mas poderoso para a audiência que ele tem em mente. Ele descreveu o problema de Israel sob a lei de modo que se parecesse exatamente com o problema que todo moralista pagão confuso já observara, a começar por Aristóteles e daí em diante. Havia uma longa tradição na filosofia e na poesia greco- romana segundo a qual as pessoas reclamavam e se empenhavam mentalmente, procurando descobrir qual era a coisa certa a ser feita. Porém, por uma razão ou por outra, não conseguiam fazer o que era certo. Por outro lado, conseguiam perceber que determinado curso de ação era errado, mas, ainda assim, seguiam em frente e colocavam em prática de qualquer forma. Paulo passara anos nos salões de debates do antigo mundo pagão. Ele já escutara nas ruas as pessoas citando trechos de poesias e de filosofia popular. Agora, como um de seus mais arrasadores e inteligentes trechos da Escritura, tão inteligente que passa direto por uma porção de leitores sem que, até os nossos dias, o compreendam, ele oferece uma análise da condição de Israel sob a lei e culmina dizendo: então, esse é o nível alcançado pelo povo escolhido de Deus mediante sua posse da lei — o mesmo nível que os confusos moralistas pagãos. Se havia alguma coisa capaz de demonstrar o problema enfrentado por Israel, era o fato de que, independentemente de quanto o povo de Deus se esforçasse em obedecer à sua lei, eles terminavam como o restante do mundo: em um estado de absoluta incapacidade moral. O próprio Paulo acabaria escrevendo uma conclusão para seu argumento na parte final do capítulo. No momento, entretanto, precisamos prestar atenção ao ponto que ele atingiu. Ele eximiu a lei de culpa na catástrofe que tomara conta de Israel. Ele eximiu até mesmo o “Eu”. Não havia nada de errado em ser Israel, nada de errado em querer obedecer à lei (pense nos Salmos 19 e 119, com seu quase místico anseio e amor pela lei). O verdadeiro problema era o pecado. Paulo já indicou, em uma pequena e estranha passagem no versículo 13, o que acontecerá ao pecado. O responsável por “me” trazer a morte, diz ele, foi o pecado, “de modo que aparecesse como pecado” e “de modo que o pecado se mostrasse realmente muito pecaminoso”. Esse repetido “de modo que” é, em si mesmo, um tanto confuso. Por que Deus (algo que está sempre implícito na frase “de modo que” em Paulo) haveria de querer que o pecado crescesse até sua plenitude? Acrescente-se a essa confusão a frase similar de 5:20; a lei veio juntamente, de modo que abunde a transgressão. Além disso, em Gálatas 3:22, a Escritura (ou seja, a lei) encerrou tudo sob o pecado. O que Deus planejava ao dar a lei, sabendo que não apenas ela daria a chance ao pecado de crescer até sua plenitude, como também de um modo que isso pudesse acontecer? Encontraremos a resposta em 8:3, porém precisamos antecipar esse momento se quisermos ver a razão mais profunda e uma das mais duradouras e surpreendentes relevâncias de todas as gerações de cristãos, do motivo para Paulo ter escrito este capítulo da forma como o fez. Deus queria que o pecado atingisse toda a sua plenitude, de modo a, somente então, tratar dele, condená-lo e puni-lo de uma vez por todas. Onde, porém, o pecado deveria atingir toda a sua plenitude? Paradoxalmente, em Israel, o próprio povo que Deus chamara para ser a luz do mundo. Por quê? Para que, na pessoa do representante de Israel, o Messias, o pecado fosse levado a um só ponto e condenado de uma vez por todas. O que, à primeira vista, parece um torturante e incoerente relato de incapacidade moral pessoal prepara o caminho para uma declaração a respeito do que foi realizado na cruz, o feito mais poderoso sobre o qual Paulo já possa ter escrito. ROMANOS 7:21-25 A “LEI” DUPLA E O “EU” MISERÁVEL 21É isto, portanto, que descubro sobre a lei: quando quero fazer o que é certo, o mal está bem junto a mim. 22Eu me deleito na lei de Deus, entenda bem, no mais íntimo do meu ser. 23No entanto, vejo outra “lei” em meus membros e órgãos, travando uma batalha contra a lei da minha mente e fazendo de mim um prisioneiro da lei do pecado que se encontra em meus membros e órgãos. 24Homem miserável que eu sou!para os protestantes. Desde a Reforma, no século 16, muitas igrejas passaram a ver Paulo como seu principal guia e a carta aos Romanos como o livro supremo no qual ele estabelece suas doutrinas básicas. Uma vez que parte de minha própria formação pessoal está firmemente enraizada nessa tradição — o que me motivou a passar a estudar intensamente essa carta (por minha própria conta) há trinta anos —, compreendo pessoalmente a força e a importância dessa tradição. Preciso relatar, porém, que ela conseguiu apenas colonizar algumas partes do magnífico planeta denominado Romanos. Mapeou e discutiu muitas de suas crateras, analisou muitas substâncias nela encontradas e construiu estradas bem pavimentadas em parte da superfície do planeta. Contudo, existem partes que permanecem como um mistério — e não menos importantes são as partes a respeito da reunião de judeus e gentios, assunto que Paulo retoma reiteradas vezes em toda a carta. Já é hora de uma nova sondagem, de novos mapeamentos, de se abrirem trilhas por territórios ainda não explorados. Continuamos necessitando dos antigos mapas e estradas, é claro. Não vamos desperdiçar nada do que nos acrescentaram. Na verdade, descobriremos que é possível obter mais deles observando-os na perspectiva do quadro maior, na perspectiva mais ampla do próprio Paulo, com relação a Deus, a Jesus, ao mundo e a nós mesmos. A fim de compreendermos os primeiros sete versículos dessa carta, vamos continuar com a figura da viagem espacial; no entanto, agora passaremos a ver Romanos não mais como um planeta, mas como um foguete — projetado para nos levar a uma distância bem grande e equipado com toda a espécie de coisas que nos serão úteis enquanto empreendemos nossa viagem e também quando chegarmos a nosso longínquo destino final. Um foguete desse tipo necessita de uma coisa específica antes mesmo de poder ser acionado: uma plataforma de lançamento de primeira linha, sólida e muito bem planejada. Não é possível simplesmente instalar o foguete em um campo aberto e esperar que decole com sucesso. Esse trecho inicial da carta é a plataforma de lançamento, construída de forma cuidadosa e deliberada para essa carta em particular. Portanto, vale a pena examinar cada parte bem de perto. Como na maioria das cartas escritas no mundo clássico, Paulo inicia dizendo quem ele é e para quem a carta se destina. Porém, como ocorre em algumas de suas outras cartas, ele expande essa fórmula, quase ultrapassando seus limites, ao acrescentar cada vez mais informações de ambos os lados. Sua saudação inicial poderia ser resumida a partir dos versículos de 1 e 7. Paulo, servo do Rei Jesus, a todos em Roma que amam a Deus; graça a vocês e paz. Por que ele haveria de expandir essa simples saudação, transformando-a na passagem que temos agora? Ele deseja concentrar-se, de forma específica, nas boas-novas ou, como muitas versões trazem, no “evangelho”. A palavra “evangelho” não aparece muitas vezes na carta, porém está na base de tudo o que Paulo declara. Aqui, ele define o que esse “evangelho” realmente é, em parte porque isso define quem o próprio Paulo é (ele foi “separado” para o trabalho específico de anunciar esse evangelho) e, em parte, porque o evangelho em si gera um mapa com o qual é possível ver o mundo inteiro e descobrir a qual lugar se pertence. É isso que os versículos 5 e 6 fazem: o evangelho reivindica o mundo inteiro para o Rei Jesus, e isso inclui os cristãos em Roma. Mas não é um tanto esquisito colocar as coisas dessa maneira? Não seria um tanto ousado, talvez até mesmo por demais arriscado? Imagine só alguém escrever assim a Roma de todos os lugares, a maior cidade do mundo da época, lar do homem mais poderoso da face da terra, o César, cujos títulos oficiais incluía “filho de deus”, cujo nascimento foi celebrado como sendo “boas-novas”, e que reivindicava submissão e lealdade para com o maior império que o mundo já vira! Entretanto, Paulo sabia exatamente o que estava fazendo. Jesus é o verdadeiro Rei, o Senhor por direito de todo o mundo, e era vital que os cristãos na própria Roma soubessem disso e vivessem com base nisso. Na realidade, o que Paulo afirma sobre Jesus nesse trecho, em especial nos versículos 3 e 4, parece quase designado a fazer valer o direito que põe o de César à sombra. Jesus é o verdadeiro “filho de Deus”. Ele procede de uma família real muito mais antiga do que qualquer coisa que Roma pudesse reivindicar: a de Davi, cerca de mil anos antes. Sua ressurreição, que Paulo entende não como um milagre estranho ou bizarro, mas como o princípio da “ressurreição dos mortos” — pela qual a maioria dos judeus ansiava —, é o sinal do poder que supera o dos tiranos e prepotentes de todo o mundo. A morte é sua arma final e ele a destruiu. Paulo, todavia, não está escrevendo isso apenas com um olho em César. Ele está extraindo das profundas riquezas das profecias e dos salmos de Israel, como deixa implícito no versículo 2. Circulavam muitas ideias diferentes no judaísmo do primeiro século a respeito de um rei que viria para governar sobre Israel e para resgatar a nação da opressão estrangeira (o que, na época de Paulo, significava, acima de tudo, Roma). Paulo, guiado pelo que conhecia de Jesus e, em especial, por sua crucificação e ressurreição, extrai um fio em particular dessa meada: um Rei vindouro seria o filho de Deus (2Samuel 7:14, Salmos 2:7 e em várias outras partes). Estas são as “boas-novas”: isso já aconteceu! Deus já fez isso! O Rei já veio! Portanto, de que forma o Rei reivindica o mundo como sendo seu? Enviando embaixadores por todo o mundo com a mensagem das boas- novas. Esses “embaixadores” são chamados “apóstolos”, o que simplesmente quer dizer “enviados”. Esse é o ponto que Paulo suscita ao se referir a seu próprio trabalho nos versículos 1 e 5. As “boas-novas” não são, em primeiro lugar e acima de tudo, a respeito de alguma coisa que pode acontecer conosco. O que acontece conosco mediante o “evangelho” é, de fato, algo dramático e emocionante: as boas-novas de Deus vão alcançar-nos, transformando nossas vidas e esperanças de maneira ímpar. Entretanto, as boas-novas que Paulo anuncia são, antes de tudo, boas-novas sobre algo que já aconteceu, fatos segundo os quais o mundo presente já se transformou em um lugar diferente. São a respeito do que Deus já realizou em Jesus, o Messias, o verdadeiro Rei de Israel, o verdadeiro Senhor do mundo. Isso quer dizer que os versículos 6 e 7, embora inicialmente se dirijam ao povo de uma única e antiga cidade, abrem-se para também nos incluir. Nós também somos chamados à “obediência pela fé” (v. 5). O evangelho não é como a propaganda de um produto que vamos querer ou não comprar, dependendo de como vamos nos sentir em determinado momento. Está mais para uma ordem que vem de uma autoridade à qual seríamos tolos em resistir. Os mensageiros de César não foram, por todo o mundo, dizendo: “César é o senhor, portanto, se vocês sentirem que precisam de uma experiência do tipo ‘um império romano’, devem submeter-se a ele.” O desafio do evangelho de Paulo consiste em que alguém bem diferente de César, exercendo um tipo de poder muito diferente, é o verdadeiro Senhor do mundo. Precisaremos da carta toda, agora que ela já deu verdadeiramente a partida e decolou muito bem, para descobrir o que isso significa na prática. ROMANOS 1:8-13 PAULO ANSEIA VER OS CRISTÃOS ROMANOS 8Permitam-me dizer em primeiro lugar, que agradeço a Deus por todos vocês, por meio de Jesus, o Rei, porque o mundo inteiro ouviu a respeito das boas-novas de sua fé. 9Deus é minha testemunha — o Deus que eu adoro em meu espírito, nas boas-novas de seu filho — de que nunca deixo de lembrar de vocês 10em minhas orações. Peço a Deus, vez após outra, que, de alguma forma, enfim eu possa, segundo seus bons propósitos, ir até vocês. 11Anseio por ver vocês! Quero compartilhar com vocês alguma bênção espiritual a fim de fortalecê-los; 12ou seja, quero encorajá-los e ser encorajado por vocês, na fé que compartilhamos. 13Realmente quero que vocêsQuem me livrará do corpo dessa morte? 25Graças a Deus, mediante Jesus, nosso Rei e Senhor! De maneira que, deixado por minha própria conta, sou escravo da lei de Deus com a minha mente, mas da lei do pecado com a minha carne humana. Quando se faz uma conta matemática complicada, no fim traça-se uma linha na página na qual se apresenta o resultado, ou, se você prefere, na qual se mostram as “descobertas”. O mesmo acontece após uma extensa revisão judicial de alguma situação complexa. O juiz, então, faz um relatório que termina em uma síntese do veredicto ou das “descobertas”. É exatamente isso que Paulo faz nesses últimos versículos do capítulo. “É isto o que descubro sobre a lei”: ele emprega a mesma linguagem da qual lançaria mão na matemática ou nas questões legais. É por esse motivo, apesar da ampla tradição e dos comentários, que creio ser praticamente impossível traduzir “lei” no versículo 21 como se fosse um “princípio” ou “uma lei”, no sentido de verdade genérica. Toda a argumentação é, de modo bem específico, acerca da lei, a lei de Deus, a lei de Moisés. A palavra “lei”, aqui, é precedida do artigo definido (“a”). Somente se estivermos determinados a compreender mal a passagem, decidindo forçar Paulo a fazer uma declaração sumária sobre outra coisa qualquer que não seja o assunto do restante do capítulo, poderemos ler essa passagem de outra forma. Mas o que ele “descobre” sobre a lei? Ele “descobre” que a lei se dividiu em duas — e que isso causa grande tensão no interior do “eu” a respeito de quem vem falando, o Israel segundo a carne, o Israel vivendo sob a lei. Ele aborda o segundo ponto em primeiro lugar: quero fazer o que é certo, mas o mal está bem junto de mim. Aqui, Paulo reverbera a linguagem empregada com relação a Caim em Gênesis 4:7, e é possível que esteja refletindo sobre o fato de que, assim como Israel repetiu o pecado de Adão em 7:7-12, a incapacidade moral revelada em 7:14-20 se assemelha bastante à forma tradicional com que os judeus retratam Caim. Seja esse ou não o caso, a questão, aqui e no versículo 22, é que o “eu” está muito certo em se deleitar na lei de Deus. Imagine Paulo, ainda jovem, orando o Salmo 19 ou o Salmo 119, estudando a Torá em espírito de oração dia e noite, desejando sentir-se envolvido por ela como se fora um manto, fazendo dela seu estilo de vida, sua própria respiração. Não só não há nada de errado com isso, como também é exatamente isso que Israel estava destinado a fazer. No entanto, quanto mais você abraça a lei, se ainda está “em Adão”, mais a lei estará pronta a dizer: “Mas você é um pecador!” Pior ainda: a lei não só o acusará, como também vai tentá-lo, como já vimos nos versículos 8 e 10. É como se a lei tivesse desenvolvido uma obscura cópia de si mesma, uma identidade negativa que parece estar lutando ao lado do pecado contra tudo aquilo que o “eu” anseia fazer. Isso é algo insólito de se dizer sobre a lei de Deus, mas se encaixa à perfeição em tudo que Paulo sugere ao longo da carta até aqui. Como podemos sustentar um paradoxo dessa natureza? Isso não está claro — exatamente como muitos paradoxos não são claros, como, por exemplo, a luz, que pode ser analisada de modo satisfatório em termos de ondas ou em termos de partículas, mas não pode ser analisada como ambos os critérios ao mesmo tempo. Talvez as coisas sempre se pareçam assim quando se chega perto do centro de um mistério. Com certeza, não devemos facilitar a vida para Paulo ou para nós mesmos, supondo que “lei” aqui signifique outra coisa que não a lei de Deus, a lei dada a Israel. Se esse não fosse o caso, o problema não seria nem de longe tão grave. O resultado da análise é que o “eu” se encontra na situação de um prisioneiro de guerra (v. 23). Uma batalha está sendo travada. A mente do fiel israelita (de modo interessante, à vista de 1:28) assumiu um compromisso do lado de quem quer cumprir a lei de Deus, mas o pecado luta de maneira poderosa do outro lado, por meio da humanidade adâmica que Israel compartilha com todos os outros. Parece que Israel foi chamado a suportar a enorme tensão entre ser chamado para ser a luz do mundo e se descobrir, assim como o mundo inteiro, mergulhado em pecado. Essa é a tensão na qual, em um estágio posterior de sua argumentação, Paulo se encontra em Romanos 9. E é por esse motivo que a perspectiva de Paulo sobre Jesus é tão crucial, e a resposta à pergunta “Quem me resgatará?” (v. 24) é que Deus o fará, mediante Jesus, o Messias, nosso Senhor. O Messias resume em si mesmo tanto Israel segundo a carne como o Deus que virá em seu resgate. Esse é o ponto levantado em 8:3-4 e também em 9:5. Neste ponto, algumas pessoas podem estar se perguntando, quase com raiva: por que precisamos saber disso tudo? Qual é a importância de Paulo escrever com tamanha profundidade sobre os problemas de Israel sob a lei? Vivemos no século 21, não no primeiro. A maioria de nós na igreja nunca foi composta por judeus e tem pouco ou nenhum contato com aqueles que o são. Com certeza (dirão essas pessoas), uma passagem tão central quanto essa em uma carta de tamanha importância deve falar de algo mais relevante! Essa é uma boa questão. De fato, é possível expor uma passagem da Escritura de tal maneira que se torne tremendamente irrelevante para os leitores cristãos de nossos dias, e os estudiosos devem estar sempre atentos a esse perigo. No entanto, sustento, com base em um cuidadoso estudo feito ao longo de um extenso período, que esse não só é o modo correto de ler essa passagem, como também que é nesse exato sentido que podemos preservar sua poderosa relevância para os leitores cristãos de todas as gerações e culturas. Paulo deixa bastante claro que ser cristão significa ser um filho de Abraão (Romanos 4; Gálatas 3). Ele se dirige a cristãos ex-pagãos falando a respeito de “nossos antepassados” quando se refere ao povo de Israel que saiu do Egito (1Coríntios 10:1). Se os cristãos modernos se esquecerem de que são parte dessa família maior, que se estende pelo menos a dois mil anos antes de Jesus, estarão cortando a si próprios da raiz da árvore — a raiz da qual, como novos ramos, afirmam receber vida (ver 11:15-24). Portanto, é vital sabermos em que sentido existe uma continuidade direta entre Israel antes de Cristo e a igreja cristã, e em que sentido há uma clara descontinuidade. Muitos cristãos se perguntam a respeito do lugar da lei do Antigo Testamento dentro da vida tanto do cristão individualmente como de países que se declaram cristãos ou que procuram ser cristãos de maneira “oficial”. Assim que se levantar esse tipo de questão, Romanos 7 será percebido como de extrema relevância, ainda que seja desconfortável. Particularmente, insiste que, ao dar a Torá, Deus não estava fazendo uma espécie de “primeira tentativa” de ensinar aos seres humanos, de forma geral, os primeiros princípios da moralidade — como se os seres humanos precisassem de algumas regras básicas para seguir em frente e que, no fim, fossem superadas pelo sermão do Monte. O propósito de Deus foi muito mais sutil do que isso. O problema do mal, o verdadeiro problema que subjaz as questões, tanto as de salvação como as de natureza ética, é bem mais radical do que um registro desses poderia sugerir. Ao dar a Torá, a intenção de Deus era promover os propósitos para os quais chamou Israel. Esses propósitos não diziam respeito simplesmente a ensinar ao mundo um padrão superior de moralidade. Diziam respeito, sim, ao resgate do mundo do pecado e da morte. A fim de concretizar esse objetivo, Deus enviou não só sua Torá, como também seu filho e seu espírito, a fim de que realizassem o que a Torá queria fazer, mas, por si mesma, não poderia fazer. Neste ponto, viramos a página, prontos para um dos maiores capítulos escritos por Paulo ou por qualquer outro escritor cristão. ROMANOS 8:1-4 A AÇÃO DE DEUS NO MESSIAS E NO ESPÍRITO 1Desse modo, portanto, não há condenação para os que estão no Messias, Jesus! 2Por que não? Porque a lei do espírito — aquele que dá vida no Messias, Jesus— libertou-nos da lei do pecado e da morte. 3Porque Deus fez o que a lei (estando fraca por causa da carne humana) era incapaz de fazer. Deus enviou seu próprio filho à semelhança da carne pecaminosa, e como uma oferta pelo pecado e, exatamente lá na carne, condenou o pecado. 4Isso ocorreu para que o veredicto correto e apropriado da lei pudesse cumprir-se em nós, na medida em que vivemos não segundo a carne, mas segundo o espírito. Quando morávamos na região central da Inglaterra, recebi a visita de dois homens que estavam fazendo uma pesquisa sobre um programa de televisão em potencial. Já houve muita discussão sobre a “Inglaterra Central”, disseram eles. Como eu morava mais ou menos no centro da Inglaterra, o que eu pensava a esse respeito? Era uma ideia ridiculamente frágil e, embora a conversa tenha sido bem interessante, eu jamais soube no que resultou aquela pesquisa. Na realidade, há um burburinho alguns quilômetros ao sul de onde vivemos, onde, de um modo um tanto pretensioso, intitulam-se como “o centro do país”. É claro, porém, que, num país com um formato estranho como o da Inglaterra, existem diversos lugares que poderiam reivindicar a mesma condição. Quando eu dava aula para alunos do curso de graduação, algumas vezes costumava pedir que encontrassem uma passagem que parecesse estar bem no centro do pensamento de Paulo. Assim como na questão geográfica, é impossível responder a essa pergunta devido às múltiplas perspectivas de seus escritos. Entretanto, os versículos que, agora, temos diante de nós apresentam um apelo muito mais forte do que qualquer outra passagem que conheço. Eles apresentam um retrato paulino, grande e completo de Deus, pai, filho e espírito; contêm uma das mais claras declarações de Paulo sobre o que foi realizado na cruz; eles unem suas críticas a respeito da lei judaica e as sementes de sua visão de como essa lei é estranhamente cumprida no evangelho e mediante o evangelho; e exibem a gloriosa e tipicamente paulina esperança de que, de fato, não há “nenhuma condenação” para os que estão no Messias. Sem dúvida, um festival de bons temas paulinos. Diante de toda essa riqueza — sem mencionar o fato de que essa passagem é a favorita de muitos pregadores há muitos anos, a fonte de muitas orações e hinos, e foi transformada em uma cantata completa por J. S. Bach —, poderíamos ser perdoados por ficarmos um pouco desconcertados e deixarmos de perceber o papel que desempenha no contexto da verdadeira argumentação da carta, que é para onde alguém deveria voltar-se antes de começar a sondar os detalhes. Apesar de o clima emocional e o tom de voz terem mudado de modo drástico a partir do fim do capítulo 7, o mesmo argumento ainda está em curso, conforme observamos pela contínua menção da lei nos versículos de 1 a 4 e, mais adiante, em nosso próximo trecho, até o versículo 7. A argumentação mais extensa, na realidade, a partir da qual o capítulo 7 constitui a primeira seção, prossegue no capítulo 8 até o versículo 11. Nele, descobrimos como acontece de a intenção da lei (de dar a vida) ser, por fim, alcançada de maneira gloriosa quando, mediante o espírito, Deus dá a vida ressurreta a todos que pertencem ao Messias, Jesus. Em nossa presente passagem, a base para essa conclusão é estabelecida com firmeza, à medida que Paulo revela (assim como em 3:21) o “agora, porém” do evangelho, as boas-novas que tratam dos problemas e das dificuldades que toda a raça humana, incluindo Israel, de outro modo ainda estaria enfrentando. Essa passagem também abre todo um conjunto de novos assuntos que, em sua abordagem, ocupam o restante do capítulo 8, em particular com referência à obra do espírito. Isso, por sua vez, contribui para o grandioso tema da segurança, que Paulo sintetiza no último parágrafo (8:31-39), antecipado no primeiro versículo por sua grande exclamação de triunfo, que, por sua vez, nos faz lembrar de 5:1-11 e, sem dúvida, de 5:1-2 em particular. A presente passagem e a próxima (8:1-4 e 8:5-11) se apresentam de maneira simultânea como a conclusão da argumentação de Romanos 7 e a introdução da argumentação de Romanos 8. Não admira serem tão densas e comprimidas — embora não sejam, felizmente, de elucidação tão difícil como alguns outros trechos igualmente densos dos escritos de Paulo. Já salientei muitas vezes que o estilo habitual de Paulo desenvolver sua argumentação é como o desabrochar de uma flor. Pela minha janela, eu vejo um jardim de rosas. Estamos no inverno e as roseiras estão cercadas de neve. Entretanto, aqui e ali, é possível distinguir alguns pequeninos brotos. Em algum momento na primavera, eles se transformarão em botões de rosa. Em seguida, esses botões se abrirão, revelando flores maravilhosas. Então, eu me lembrarei dos brotinhos e vou refletir sobre o fato de que o botão por inteiro já estava contido no interior do pequenino broto, caso eu pudesse enxergá-lo. O parágrafo presente é um excelente exemplo desse estilo de escrita. O versículo 1 anuncia o ponto principal que Paulo apresentará a partir de agora até o fim do capítulo: não existe condenação para aqueles que estão no Messias. O versículo 2 apresenta o início de uma explicação, mas ele é tão comprimido que será necessário haver uma inspeção acurada, feita com um microscópio, para que possamos compreender o que significa. Isso não importa; espere até que o broto se desenvolva e cresça. Os versículos 3 e 4 o fazem desabrochar de maneira que possamos entendê-lo melhor. E, em seguida, os versículos de 5 a 8 abrem ainda mais a flor. Por fim, nos versículos de 9 a 11, teremos a rosa completamente aberta, espalhando sua fragrância a todos em seu raio de alcance. Isso deve ensinar-nos algo sobre como se deve ler Paulo: não pare em um único versículo, perguntando-se por que ele é assim tão denso. Veja-o como parte de uma declaração e de uma celebração mais ampla. Nenhuma condenação! Essa garantia só pode, é claro, exercer seu pleno efeito em alguém que já refletiu com todo o cuidado sobre a gravidade do pecado e a realidade do julgamento divino. Qualquer um que calcula que o pecado não é assim tão grave, ou que Deus não iria julgá-lo de qualquer modo, provavelmente daria de ombros em relação a Romanos 8:1. Mas, de todo modo, alguém assim provavelmente não teria lido até esse ponto mesmo. A pergunta mais interessante a respeito deste versículo é a seguinte: por que Paulo diz “portanto” logo no início? O lugar no qual ele interrompe sua argumentação no fim do capítulo 7 dificilmente conduz a esse tipo de exclamação triunfante. Seria possível esperar que dissesse: “Há, portanto, muita tristeza e condenação a serem enfrentadas.” A resposta não está muito longe na sequência de sentenças iniciadas com “porque” que aparecem nos versículos seguintes. De fato, no original grego, os versículos 2, 3, 5 e 6 contêm essa palavrinha que significa “porque” ou “pois”, indicando que cada passo de sua argumentação está explicando o que aconteceu antes. Não existe condenação porque a lei-espírito os libertou da lei-pecado, porque Deus agiu em seu filho e em seu espírito, a fim de condenar o pecado e conceder vida, porque existem dois tipos de seres humanos e porque vocês são do tipo-espírito, porque esses dois tipos estão se dirigindo, respectivamente, à morte e à vida. Não existe condenação por causa disso tudo. Não devemos supor que a palavra “lei” nesses versículos signifique outra coisa que não “a lei de Deus”. Exatamente como nos versículos finais dos capítulos 3 e 7, aqui “lei” não se trata de um “sistema” ou de um “princípio genérico”. Paulo se deleita com o paradoxo de tudo isso. O espírito esteve agindo para fazer o que a lei queria fazer: conceder vida, vida moral no presente, vida ressurreta no futuro. A lei considera o que Deus está realizando, sabendo que não era capaz de fazer por si própria, mas celebrando o fato de que Deus o fez. Está feito! (v. 4). Como, porém, Deus pôde fazer isso? Será que o pecado, o velho inimigo, não vai contra-atacar? Bem, isso ainda é possível, como Paulo sabiamuito bem. O pecado, contudo, já foi mortalmente ferido. Antes de o espírito poder ser liberado para soprar como em um vendaval de primavera sobre a selva morta do mundo, o poder do mal precisa ser quebrado. E o modo pelo qual isso precisa ocorrer é mediante a condenação do pecado — não simplesmente com a promulgação de uma sentença, mas através de sua execução. Paulo declara que isso é precisamente o que ocorreu com a morte do filho de Deus, o Messias. Esse é um dos pontos que ouvimos ecoar em praticamente todos os capítulos do livro e mais ainda na declaração de abertura sobre o evangelho em 1:3-4. Como essa “teologia da expiação” funciona? Paulo está escrevendo em meio a um intenso entusiasmo, mas também com grande precisão. Primeiro, Deus enviou seu próprio filho, o que, como vimos em 5:8, significa que Deus não enviou terceiros, mas veio pessoalmente. Para que a passagem faça sentido como um todo, precisamos supor que por “filho de Deus” aqui Paulo quer dizer não só Jesus como o Messias (apesar de querer dizer isso também, e isso é vital em sua argumentação), mas Jesus como a própria segunda Pessoa de Deus. A seguir, o filho veio “à semelhança de carne pecaminosa”; em outras palavras, exatamente no ponto em que o problema do capítulo 7 foi identificado (ver especificamente 7:14 e 7:25). O pecado, como vimos em 5:20 e 7:13, tornou-se “pecaminoso em excesso” mediante a lei, pois Deus, de maneira intencional, planejou que assim fosse. Agora, Israel, em quem esse aumento de pecaminosidade ocorreu, estava sintetizado em um único homem, o rei representante, o Messias. O peso do pecado do mundo foi concentrado sobre Israel, enquanto o peso do pecado de Israel foi concentrado sobre o Messias. E o Messias, por sua vez, padeceu a morte de um criminoso, com a inscrição “Rei dos judeus” logo acima de sua cabeça. Naquele instante, Deus condenou o pecado. Ele condenou o pecado “na carne”. Ele o cercou e o condenou. Como já dissera o profeta: “o castigo que nos trouxe a paz recaiu sobre ele; e, mediante suas feridas, somos sarados” (Isaías 53:5). Repare em duas coisas a respeito de como Paulo faz essa afirmação. Ele não diz que Deus condenou Jesus, porém que condenou o pecado na carne de Jesus. Ele diz outras coisas além disso (ou seja, 2Coríntios 5:21 e Gálatas 3:13), mas essa é sua mais clara declaração. E ele também introduz uma figura diferente, a do sacrifício pelos pecados no Antigo Testamento, o sacrifício especificamente conhecido como a oferta pelo pecado. Por quê? No Antigo Testamento, a oferta pelo pecado é o sacrifício empregado quando alguém comete um pecado inconsciente (sem saber que está cometendo um erro) ou involuntário (sabendo que é errado, mas sem a intenção de cometê-lo). Paulo analisou a condição de Israel sob a lei de tal modo que recai exatamente nessas categorias. “O bem que quero fazer eu não faço, o mal que não quero, esse eu faço.” O “homem miserável” de 7:24 encontra resposta pela provisão de Deus com relação à oferta pelo pecado em 8:3, do mesmo modo que, em um nível mais genérico, o pecador condenado de 1:18 a 3:20 recebe a promessa de que não há “nenhuma condenação” para aqueles que estão “no Messias”, porque a condenação do pecado já ocorreu nele. Não resta espaço para se prosseguir na reflexão sobre o versículo 4. Ele pertence, de todo o modo, estreitamente, aos versículos seguintes, para os quais, no momento, nos voltamos. No entanto, fique mais um pouco com os primeiros versículos do capítulo 8. Talvez até seja bom você decorá-los. Poucas vezes você vai encontrar uma declaração tão completa ou mais exata acerca do que Deus realizou em Jesus, o Messias, seu filho. Como alguém no deserto que acaba de descobrir uma pequena fonte emergindo de uma enorme gruta de água, há o suficiente aqui para se viver por um bom período de tempo. ROMANOS 8:5-11 A OBRA DO ESPÍRITO 5Pense nisso da seguinte forma: aqueles cujas vidas são determinadas pela carne humana concentram sua mente nas questões relativas à carne; mas aqueles cujas vidas são determinadas pelo espírito concentram suas mentes nas questões relativas ao espírito. 6Concentre-se na carne e morrerá. Concentre-se, porém, no espírito e terá vida e paz. 7A mente centrada na carne, veja bem, é hostil a Deus. Ela não se submete à lei de Deus; na verdade, ela não consegue. 8Aqueles que são determinados pela carne não podem agradar a Deus. 9Vocês, no entanto, não são pessoas da carne. Vocês são pessoas do espírito se, de fato, o espírito de Deus habita em vocês. Repare que todo aquele que não tem o espírito do Messias não pertence a ele. 10Mas, se o Messias está em vocês, o corpo está de fato morto por causa do pecado, mas o espírito é vida, por causa da fidelidade da aliança. 11Portanto, se o espírito daquele que ressuscitou Jesus dentre os mortos habita em vocês, aquele que ressuscitou Jesus dentre os mortos concederá vida a seus corpos mortais também, mediante o espírito que habita em vocês. Imagine você vasculhando um antigo sótão e encontrando algo que se pareça com uma antiga luminária comum. Ela possui uma espécie de bulbo estranho, mas um suporte bem elegante. E o abajur, embora um pouco empoeirado, é muito bonito. Você desce com o objeto até o interior da casa e o examina. Se não conhecesse muito sobre a história das luminárias, poderia até tentar conectá-la a uma fonte de energia elétrica. E, caso fizesse isso, provavelmente receberia um choque (literal e metafórico). Esse tipo de lâmpada não foi projetado para funcionar à base de eletricidade. É do tipo antigo, feito para funcionar a gás. Uma história talvez bastante improvável. No entanto, ressalta o ponto que Paulo levanta aqui, um ponto muitas vezes perdido quando se lê Romanos de forma muito rápida. Lembre-se: ele continua falando sobre a lei judaica e o fato de que ela não podia dar a vida que prometia — e o fato agora de que Deus fez o que a lei não podia fazer, com o resultado (v. 4) de que “o veredicto correto e adequado da lei é cumprido em nós, à medida que vivemos não segundo a carne, porém segundo o espírito”. É isso o que agora Paulo está explicando em maiores detalhes e levando adiante para sua conclusão adequada. O ponto é o mesmo de 7:14: os seres humanos, em seu estado natural, diante da lei de Deus, têm a mesma utilidade que uma lamparina a gás conectada a uma fonte de energia elétrica. “Eu sou feito de carne”, disse Paulo, “vendido ao pecado”, enquanto a lei é “espiritual”. Agora vemos o que ele tem em mente: se a lei deve dar a vida que promete (7:10), de nada vale ser colocada para funcionar através de um aparelho errado. A única coisa que acontecerá é uma explosão — que é o assunto de 7:14-25. Ela deve ser posta para operar com um aparelho do tipo certo, um aparelho projetado para operar do mesmo modo. Em outras palavras, deve ser aplicada a alguém cujo próprio ser não seja mais “carnal” no sentido como Paulo emprega esse termo nestes capítulos, porém “espiritual”. Mas o que os termos “carnal” e “espiritual” significam? O primeiro, em particular, é tão problemático que seria melhor (como já tentei fazer com outros termos técnicos) evitá-lo por completo; no entanto, descobri que, ao fazer isso, cria-se mais confusão ainda. O melhor é aprender, de uma vez por todas, que, ao usar a palavra “carne” e outras similares, Paulo não tem a intenção de que pensemos simplesmente na realidade física, em nossa perspectiva natural, em oposição ao “não físico”. Ele emprega outros termos para isso. A palavra que traduzimos, aqui e em outros contextos, como “carne” refere-se a pessoas ou coisas que compartilham a corrupção e a mortalidade do mundo e, muitas vezes e sem dúvida aqui também, a rebelião do mundo. “Carne” é um termo negativo. Para Paulo, na condição de um judeu, a ordem criada, o mundo físico, era bom em si mesmo. Apenas seu mau uso e sua corrupção e deformação são maléficos. A “carne” ressalta o mau uso, a corrupção e a decadência. Já “espírito”, em contraste, refere-se, em geral, ao próprio espírito de Deus, o espírito santo. Algumasvezes, como na passagem seguinte, Paulo faz referência ao espírito humano, a realidade interior da vida de alguém. Entretanto, aqui o primeiro significado é o que importa. Paulo está pegando as categorias da humanidade adâmica e da humanidade do Messias, as duas categorias que ele vem desenvolvendo desde o capítulo 5, e as retrata em mais uma tonalidade. Dessa vez, ele será capaz de demonstrar que, visto sob essa ótica, Deus fez o que a lei pretendia fazer mas não pôde fazer, ou seja, conceder vida. Esse processo já está em andamento na vida cristã diária. É possível perceber a diferença entre aqueles que se preocupam com a “carne” e os que se preocupam com o “espírito”: Em que suas mentes estão focadas? Em que estão pensando na maior parte do tempo ou durante todo o tempo? É aqui que podemos ver que “carne” significa tanto mais quanto menos do que o “mundo físico”: alguém que esteja sendo orgulhoso, ou ciumento, ou caluniador, está com certeza se concentrando na “carne” no sentido que Paulo empresta ao termo. Mesmo que as atitudes e o tema em que ele se concentra sejam abstratos (não físico), e não concretos. Entretanto, viver dessa maneira, como já vimos no capítulo 1, significa estar cortejando e fazendo um convite à própria morte, enquanto, ao nos concentrarmos no espírito, temos vida (o principal ponto levantado aqui) e paz (relembre 5:1). Paulo explica, nos versículos 7 e 8, olhando de volta para 7:14: a mente caracterizada pela “carne” está inclinada não só a ser hostil a Deus, como também é incapaz de se submeter à lei ou de agradar a Deus. Paulo deixa implícito que a mente caracterizada pelo espírito se submete à lei, cumprindo-a. O que isso quer dizer? Mais uma vez, de forma torturante, ele não nos diz precisamente o que é. Podemos ver a parte final de sua argumentação: aqueles que têm o espírito habitando em si serão ressuscitados dentre os mortos (ou seja, eles receberão a vida prometida pela lei). Mas é somente em 10:5-9 que ele descreve a forma segundo a qual entende a fé cristã em si mesma como o cumprimento da lei. E somente em 13:8-10 ele explica que aqueles que obedecem à lei do amor estão de fato cumprindo os mandamentos morais da Torá. Em uma dedução consistente como essa, ele se vê forçado a pressupor todo o tipo de coisas, mais sugerindo do que descendo aos detalhes, de modo a manter o movimento adiante em curso. Esse movimento adiante nos leva à promessa da ressurreição, a promessa de que, no fim, seremos resgatados, de que seremos “salvos” da corrupção e da decadência da própria morte. Esse será o movimento da vindicação final, quando Deus dirá, mais alto do que poderia ser dito em palavras, “Aqui está o meu povo!” e, de fato, como podemos ver mais adiante no capítulo: “Aqui está a minha boa criação!” Repare como Paulo consegue alternar entre o Messias e o espírito: “o espírito está em vocês” (compare com Gálatas 2:20; Colossenses 1:27). Observe também como ele é cuidadoso com as palavras que se referem a Jesus. Quando Deus ressuscitou Jesus (o ser humano individualmente) dentre os mortos, ele ressuscitou o Messias, aquele que representa seu povo, e, com isso, pôde garantir a seu povo que o que aconteceu ao Messias também acontecerá a eles. O espírito, portanto, é o meio pelo qual uma das perguntas mais importantes, que fora deixada sem resposta na primeira seção da carta, encontra, afinal, sua conclusão. Como Deus pôde declarar no presente que aqueles que creem no evangelho estão “justificados” [declarados como certos], antecipando, assim, de forma correta, o veredicto do último dia? A resposta de Paulo aparece aqui. O espírito opera no coração dos crentes, de modo a produzir fé por si mesmo mediante a pregação do evangelho e, em seguida, produzir o tipo de vida descrito na segunda parte dos versículos 4, 5 e 6 e, finalmente, para operar poderosamente do outro lado da morte, a fim de conceder nova vida corporal. É por essa razão, no fim das contas, que não há “condenação” para os que se encontram no Messias. É por isso que seu veredicto futuro — de que “estão certos”, “dentro da aliança”, com seus “pecados perdoados” — pode ser antecipado para o presente. “O espírito é vida por causa da fidelidade da aliança” (v. 10) — a fidelidade da aliança de Deus e, quem sabe, da deles também. Porém, ainda há mais uma dimensão com relação a esse parágrafo poderoso. No pensamento judaico, o Deus vivo que está sobre e acima de sua criação também está presente, de forma misteriosa, dentro de sua criação. Paulo herdou uma rica tradição de diferentes maneiras de se referir a essa presença: a sabedoria de Deus, o espírito de Deus, a glória de Deus (de modo particular, quanto a habitar no templo), a Palavra de Deus e, é claro, a lei de Deus. Podemos até incluir o filho de Deus na lista, em vista das coisas elevadas ditas a respeito do rei vindouro em 2Samuel 7, em Salmos 2 e em outros textos. O que Paulo faz nessa passagem é precisamente recorrer a essas diferentes formas de expressão sobre a atividade divina, com o propósito de descrever sua operação de resgate para Israel e o mundo. Deus cumpriu a lei ao enviar seu filho, assim como a Sabedoria foi enviada ao mundo de acordo com algumas tradições. Em decorrência disso, o espírito de Deus agora habita no coração de seu povo, assim como a glória de Deus habitou no templo. Paulo não desenvolveu uma fórmula comum de se referir a Deus de um ponto de vista cristão. Entretanto, ele já possuía todos os elementos que, mais tarde, seriam conhecidos como a teologia trinitária. Uma teologia genuína sempre se manterá viva com a fé e a esperança. Não se trata de mera construção teórica com a finalidade de dar sentido a algum esquema metafísico. Romanos 8:1-11 carrega em si o poder do evangelho em cada expressão exalada nesse texto. Se a igreja içasse suas velas e aproveitasse esse soprar, não é possível descrever o que poderia acontecer. ROMANOS 8:12-17 FILHOS DE DEUS, CONDUZIDOS PELO ESPÍRITO 12Desse modo, portanto, minha querida família, estamos em dívida — contudo, não em relação à carne humana, para vivermos daquele modo. 13Se vocês viverem de acordo com a carne, morrerão; porém, se pelo espírito fizerem morrer os feitos do corpo, vocês viverão. 14Todos que são conduzidos pelo espírito de Deus, vejam bem, são filhos de Deus. 15Vocês não receberam um espírito de escravidão — ou receberam? — para retornar a um estado de temor. Não! Vocês receberam um espírito de filiação, em quem exclamamos: “Aba, pai!” 16Quando isso ocorre, é o próprio espírito testificando junto ao nosso espírito que somos filhos de Deus 17e, se somos filhos, somos também herdeiros: herdeiros de Deus e coerdeiros com o Messias, desde que soframos com ele para que também sejamos glorificados com ele. Dívida é um dos grandes problemas do mundo atual. Quando eu era mais jovem, os bancos não permitiam a muitas pessoas incorrerem em dívidas. Os cartões de crédito ainda não haviam sido inventados. Nem se pensava em se fazer empréstimos para estudantes. É claro que, ainda assim, as pessoas contraíam dívidas, porém os controles eram muito mais rigorosos, e a maior parte das pessoas fazia o melhor para viver de seus ganhos. Hoje em dia, porém, tudo isso mudou e, até onde sei, mudou para pior. Milhões de pessoas no Ocidente vivem muito além de seus próprios recursos, fazendo cada vez mais empréstimos e saques a descoberto. Também obtêm cada vez mais cartões de plástico, que, por sua vez, cobram ainda mais juros e outras taxas. Enquanto isso, o mundo ocidental estabeleceu um sistema econômico que, aparentemente, depende de manter um grande número de países inteiros que possuam uma imensa e impagável dívida. Apesar das campanhas com vistas a aumentar a consciência pública a respeito desse problema, ele ainda persiste. E está piorando. Uma das coisas mais terríveis sobre as dívidas é que elas dominam sua mente. Seja lá o que mais você esteja começando a pensar, ou esteja planejando ou esperando fazer, o fato de se encontrar endividado determina sua maneira de ver omundo. Por que, então, Paulo inicia esse parágrafo dramático afirmando que estamos em dívida? Esse parece ser mais um caso em que Paulo começa algo para, em seguida, se desviar da trilha e, após, retornar à sua linha de pensamento inicial. Desde o parágrafo anterior, talvez estejamos esperando que Paulo nos diga que devemos viver com base na gratidão ao Deus que planejou e realizou nossa completa salvação. E é isso que ele faz, começando por nos dizer que estamos em dívida, referindo-se à herança prometida que compartilharemos com o próprio Messias. Ele é o filho único de Deus; nós somos os filhos e as filhas adotados de Deus. É aí, assim parece, que Paulo queria que esse parágrafo chegasse inicialmente. Mas, tão logo se inicia, descobre que precisava ressaltar o ponto negativo já levantado nos versículos de 5 a 8. Não estamos em dívida para com “a carne” (algo que ele enfatiza mais uma vez nos v. 13-14); ela não nos fez favor algum e, portanto, nada lhe devemos. Se tentarmos viver daquele modo, estaremos simplesmente enviando um convite à morte, não — novamente — como uma punição arbitrária, mas como uma consequência direta. Em vez disso, somos chamados a uma vida de dizer “não” a todo o tipo de coisas que nosso corpo físico nos diga que quer: aqui e em Colossenses 3:9, Paulo se refere a esse dizer “não” como um “fazer morrer”. Isso está destinado a ser algo difícil e doloroso, mas é algo que precisa ser feito. Uma vida cristã que não envolva fazer morrer tudo o que nos arrasta para baixo, para dentro do mundo da “carne”, não é digna do nome que leva. A explicação adicional de Paulo para tudo isso o leva a um território que já mencionamos, mas que agora precisamos explicitar mais. É nesse ponto que ele começa a fazer ecoar passagens do Antigo Testamento que falam sobre os filhos de Israel viajando pelo deserto, em direção à Terra Prometida. Os israelitas foram conduzidos pelo próprio Deus, que seguia com eles na coluna de nuvem de dia e na coluna de fogo à noite. Por diversas vezes, eles quiseram desistir e retornar ao Egito, onde foram mantidos como escravos, mas perseveraram, apesar da rebelião, da idolatria e de uma porção de outras tolices. Por trás de tudo isso, estava a seguinte intimação, quase no início do livro de Êxodo: “Israel é meu filho, meu primogênito: deixe meu povo partir para que me sirva!” (Êxodo 4:22, citado em Oseias 11:1). O ponto principal é que eles chegariam, no fim das contas, à terra que lhes seria dada como uma herança. Quando lemos Romanos 8 com esse tema em mente, dificilmente deixaremos de ouvir os ecos — embora a forma como aparecem seja bastante reveladora. O deserto, a terra árida, parece ser o universo no qual a atração da “carne” permanece forte e à qual precisamos resistir. No lugar das colunas de nuvem e de fogo, os cristãos recebem o espírito como a presença pessoal do Deus vivo. (Não seria ótimo se todos os cristãos ficassem tão admirados com a habitação do espírito neles e junto a eles quanto os israelitas aprenderam a ficar com a presença de Deus na nuvem e no fogo?) Os cristãos serão tentados muitas vezes a desistir da luta e a retornar para o Egito, ao lugar da escravidão. Mesmo que já tenham deixado essa escravidão para trás, como Paulo deixa claro em 6:15-19, existem tantas vezes em que parece muito mais fácil estar escravizado ao pecado novamente — nada de novas lutas, nenhuma sensação mais de se estar travando uma batalha montanha acima... como também não há mais herança a se esperar, nada de presença de Deus, nenhum sentimento de companheirismo com o próprio Jesus. “Vocês não receberam um espírito de escravidão, ou receberam, para voltar a um estado de temor?” Não, é claro que não. Não se surpreendam se o caminho for difícil e pedregoso, é sempre assim quando se vai do Egito para Canaã. De modo especial, o cristão descobre uma nova identidade ao assumir a vocação de Israel no Antigo Testamento: a adoção. Quando o espírito santo vem habitar no coração de uma pessoa, o primeiro sinal disso é o reconhecimento de Deus como pai. Creio que é isso que Paulo quer dizer em 5:5 quando fala do amor por Deus sendo derramado em nossos corações pelo espírito santo. Na exclamação “Aba, pai”, ele emprega a antiga palavra em aramaico que o próprio Jesus utilizou para Deus (Marcos 14:36). Paulo faz referência à mesma exclamação em Gálatas 4:5-6, onde, mais uma vez, encontramos um poderoso eco da história do Êxodo. Dessa vez, ele interpreta o que está acontecendo em termos da união do espírito santo com nosso próprio espírito. É delicado descrever esse assunto. Trata-se, no entanto, de uma experiência cristã comum, em que, enquanto muitos de nossos pensamentos em mente parecem advir do fluxo ordinário de nossa própria consciência, algumas vezes deparamos com outros pensamentos que parecem proceder de outro lugar. Esses pensamentos apontam de forma gentil, porém muito poderosa, para o amor de Deus, para nosso chamado à santidade, para tarefas específicas às quais precisamos dedicar nossa energia e nossa atenção. Um aspecto-chave de nosso discipulado cristão reside em reconhecermos essa voz e alimentarmos a habilidade de ouvi-la. Trata-se, ou pode muito bem tratar-se, da voz do próprio espírito de Deus. E uma das primeiras coisas que o espírito nos diz, com o que nosso espírito concorda plenamente, é que somos filhos de Deus, filhos e filhas adotados de Deus. Essa verdade ainda é um importante tema na argumentação que prossegue (veja 8:29). Entretanto, o lance-chave ainda estava por vir. Ao povo de Israel, foi prometida uma herança: a terra de Canaã. Isso já fora ampliado de forma dramática quando da promessa de Deus sobre o Messias vindouro em Salmos 2:8: “Darei a ti as nações como herança e as partes mais remotas da terra como tua propriedade.” Isso, por sua vez, está relacionado com a promessa feita a Abraão, como já vimos em 4:13. A promessa feita a Abraão e sua família, afirma Paulo, é que eles herdariam o mundo. Agora, na passagem que estamos prestes a abordar, podemos entender o que isso significa em termos plenamente cristãos. Significa que o mundo inteiro — toda a criação — será transferido para o Messias e para seu povo. E, com sua vindicação final e ressurreição, toda essa criação ficará, ela própria, livre de corrupção e decadência. Isso nos dá uma pista do que realmente significa “glorificação” (já prometida anteriormente em 5:2). Não significa que vamos brilhar como se fôssemos lâmpadas elétricas humanas (embora existam promessas semelhantes, como, por exemplo, em Daniel 12:3 e Mateus 13:43). Significa, antes, que vamos compartilhar o glorioso governo do Messias sobre o mundo. Paulo já afirmara isso em 5:17. Aqui, ele chega ao mesmo ponto por outra via. É por esse motivo, portanto, que somos “devedores”. Somos devedores ao Deus que nos amou, que nos salvou e que nos está conduzindo de volta para casa, para a terra que nos foi prometida, a nova criação final. Quando herdarmos isso, estaremos para sempre em dívida com Deus — e deveríamos reconhecer isso e viver de acordo. Afinal de contas, os devedores estão sob uma obrigação. Alguns cristãos falam e vivem como se tudo simplesmente viesse de Deus para nós, enquanto ficamos tranquilamente sentados, apenas recebendo tudo. No entanto, os dons e o chamado de Deus para nós não se destinam exclusivamente ao nosso próprio bem; também têm o propósito de operar através de nós para produzir a transformação do mundo. Algumas pessoas ficam ansiosas com a conclusão de que devemos fazer qualquer coisa que seja nós mesmos, na condição de cristãos e em qualquer parte do processo, sempre que uma ação assim comprometer a livre graça pela qual somos salvos. Paulo, porém, declara que somos devedores. Precisamos viver de maneira específica, de maneira que antecipe a “glória”, o domínio sobre a criação, que, no fim, compartilharemos com o Messias. E isso, no presente, significa sofrimento. ROMANOS 8:18-25 A CRIAÇÃO RENOVADA E A ESPERANÇA PACIENTE 18É desse modo que entendo a questão: os sofrimentos pelosquais passamos no presente, quando avaliados, não merecem ser colocados lado a lado com a glória que está para ser revelada por nós. 19Sim, a própria criação aguarda com toda a expectativa, ansiosamente, pelo momento em que os filhos de Deus serão revelados. 20A criação, como vocês podem ver, também está sujeita a uma vaidade inútil, não por sua própria vontade, mas por causa daquele que a sujeitou a isso, na esperança 21de que a própria criação será libertada de sua escravidão para a decadência, a fim de usufruir a liberdade que surge quando os filhos de Deus são glorificados. 22Deixem-me explicar. Sabemos que toda a criação está gemendo unida e que está passando ao mesmo tempo por dores de parto até o presente momento. 23E não é só isso: nós também, os que temos os primeiros frutos da vida do espírito em nosso íntimo, gememos enquanto aguardamos ansiosamente por nossa adoção, a redenção de nosso corpo. 24Fomos salvos, vejam bem, na esperança. Entretanto, a esperança não é esperança se vocês puderem vê-la. Quem espera pelo que pode ver? 25Mas, se esperamos pelo que não vemos, esperamos por isso ansiosamente — porém, com paciência. Atravessei a pé o bosque diversas vezes antes de me dar conta do que a placa queria dizer. A mata era espessa, com trilhas que levavam para todos os lados. Eu conhecia algumas delas muito bem e tinha minhas preferidas dentre elas. Havia a trilha que circundava o lago, outra que levava para uma esplêndida pequena clareira, onde, em geral, era possível avistar coelhos e esquilos. Havia outra que levava a alguns antigos carvalhos, do tipo que eu imaginava terem sido testemunhas de batalhas centenas de anos atrás. Entretanto, havia uma trilha que eu jamais seguira. Parecia um pouco fechada demais pela vegetação e eu não conseguia ver aonde iria dar. Na maior parte das minhas caminhadas, quero terminar meus exercícios físicos e retornar logo ao trabalho e, por isso, jamais me preocupei com aquela trilha. Nem prestei atenção a um pequeno poste que ficava quase escondido atrás dos arbustos, exatamente ao lado do início da trilha. Tinha o que parecia ser um “V” na parte de cima, a cerca de trinta a cinquenta centímetros do chão. Por tudo o que eu sabia, não passava de um sinal entalhado na madeira. Não tinha, necessariamente, um significado. Até que, um dia, me aproximei daquele lugar e vi que alguém havia arrancado os arbustos o suficiente para que fosse possível ler as outras três letras e uma seta apontando para a trilha. As outras letras, em sequência, descendo o poste depois do “V”, eram “I”, “S”, “T” e “A”. Uma “vista”? Que tipo de vista panorâmica haveria ali? Intrigado, pela primeira vez segui por aquela trilha. No começo, era como eu esperava: Coberta pela vegetação (obviamente, eu não era o único a ignorar aquela trilha), com arbustos espessos e espinhos pelo caminho. Estava tão lamacenta que desejei estar calçando minhas botas mais grossas. Mas, então, tornou-se uma reta por entre as árvores e, logo em seguida, uma subida um tanto íngreme. Em poucos minutos, fiquei sem fôlego, mas, após uma pausa breve, segui em frente, ainda mais entusiasmado. De repente, no lugar de árvores espessas, em toda a minha volta, vi surgir um céu límpido. Logo eu havia ultrapassado as árvores e me encontrava de frente para uma laje de pedra. Então, subi e permaneci lá em cima, de pé, censurando a mim mesmo por nunca ter encontrado aquele local antes. Era, de fato, uma vista! Eu podia ver abaixo não só toda a floresta, como também a cidadezinha para além das árvores. Podia avistar outras colinas a distância e fumaça subindo das vilas incrustadas em seus vales. Metade do município parecia estar lá, bem diante de meus olhos. E eu talvez eu nunca tivesse descoberto aquilo. Romanos 8:18-25 é como essa vista panorâmica. Desse ponto, podemos avistar, com uma clareza impressionante, todo o plano da salvação, toda a criação de Deus. Uma vez tendo vislumbrado esse panorama, você jamais o esquece. E, ainda assim, durante vários anos, muitos leitores de Romanos, de muitas tradições, passaram por ela sem se dar conta de sua beleza. Estiveram ocupados demais com teorias de justificação e salvação individuais. Ansiavam por lições morais, por uma nova experiência do espírito (ou por uma teologia que apoiasse a experiência que tiveram). Estiveram em busca das grandes questões a respeito de Israel e dos gentios, que, de fato, ocupam uma boa parte de Romanos (mais ainda os próximos poucos capítulos). E o poste-placa, que poderia ter-lhes dito para tomar esse caminho e seguir por essa trilha, esteve, durante todo o tempo, recoberto de arbustos e de espinhos. A linguagem da criação no topo das expectativas não era o que eles esperavam. A estranha ideia de Deus sujeitar a criação à futilidade e à escravidão e, em seguida, do resgate da criação, simplesmente não é o que as pessoas queriam ouvir ou não sabiam como interpretar quando ouviam. A antiga versão da Bíblia inglesa, King James, também não ajudava muito ao trazer o termo “criatura” no lugar da palavra hoje usada, que é “criação”. “Criatura” gerava confusão no leitor comum, que se perguntava à qual “criatura” Paulo se referia. Desse modo, a trilha para a vista panorâmica esteve encoberta por espinhos e cardos. “Estranhas ideias apocalípticas”, as pessoas diziam, e se apressavam em mudar para um terreno mais seguro. Entretanto, esse é o lugar que precisamos visitar! Do topo dessa montanha, é possível avistar a eternidade! Afinal de contas, se você fosse Paulo, depois de escrever essa carta cuidadosamente elaborada, como é Romanos, investiria todo o tempo atingindo esse nível de entusiasmo para, em seguida, com essa linha de pensamento chegando ao fim, permitir-se vagar a esmo e discorrer sobre coisas irrelevantes ao longo de alguns parágrafos? É claro que não! Esse trecho está perto de ser o clímax do capítulo, que, em si mesmo, é o clímax da carta até o momento. Obviamente, ele é central. É claro que se mostra vital para seu raciocínio. O fato de não dizer nada similar a isso em qualquer outro lugar não vem ao caso. Uma boa parte de Romanos é exatamente assim. Paulo inicia no ponto no qual interrompeu no último parágrafo, com a promessa de que o sofrimento atual, embora seja muitas vezes intenso, será em muito sobrepujado pela “glória que está prestes a ser revelada por nós”. Repare: revelada por nós. Não “em nós”, como se a glorificação fosse, afinal de contas, nós simplesmente estarmos parecendo satisfeitos conosco mesmos. Não “para nós”, como se fosse para nos tornar espectadores da “glória”, como pessoas que assistem a uma exibição de fogos de artifício. A questão real com a “glória” é que ela significa um governo glorioso, soberano, compartilhando o domínio salvador do Messias sobre o mundo inteiro. E é por isso que aguarda toda a criação. Ela espera por nós, por você e por mim, por todos os filhos de Deus, para que sejam revelados. Então, por fim, a criação verá seus verdadeiros governantes, e saberá que chegou a hora de ser resgatada da corrupção! Para compreendermos isso, é necessário olhar para a grande história bíblica da criação. Quando olhamos para o universo da criação tal como se encontra no presente, vemos um mundo nas mesmas condições em que se encontravam os filhos de Israel quando ainda eram escravos no Egito. Do mesmo modo que Deus permitiu aos israelitas descerem para o Egito, a fim de que, ao tirá-los de lá, pudesse defini-los para sempre como o povo libertado da escravidão, Deus permitiu à criação estar sujeita a seu presente ciclo de verão e inverno, crescimento e declínio, nascimento e morte. É lindo, sem dúvida; entretanto, sempre acaba em lágrimas ou ao menos em um encolher de ombros. Se, por acaso, você vive em algum ponto extremo da corrupção da criação — sobre uma falha geológica com terremotos constantes, por exemplo, ou junto a um vulcão ativo —, pode experimentar a sensação de espanto gerada por esse poder fútil. A criação, algumas vezes, pode parecer um búfalo enjaulado: toda aquela energia, mas semproduzir um bom resultado. E, por falar em animais selvagens, que tal aquela promessa do lobo e do cordeiro deitados juntos? Seria apenas um sonho? Não!, declara Paulo. Isso não é um sonho. É uma promessa. Todas essas coisas são sinais de que o mundo no estado em que se encontra, apesar de ainda ser a boa criação de Deus, prenha de seu poder e de sua glória (1:20), não é no presente o que deveria ser. A “fidelidade da aliança” de Deus sempre teve a ver com seu compromisso de que, mediante as promessas feitas a Abraão, ele colocaria o mundo inteiro em ordem. Agora, finalmente, entendemos o que isso quer dizer. A raça humana recebeu a responsabilidade pelo cuidado da criação (como, em tantas outras vezes, Paulo tem Gênesis 1 a 3 bem perto de seus pensamentos). Quando os seres humanos se rebelaram e adoraram elementos da criação no lugar do próprio Deus (1:21-23), a criação se corrompeu. Deus permitiu que essa condição de escravidão prosseguisse não porque a criação quisesse que assim fosse, mas porque ele determinou que o mundo fosse colocado em ordem de novo, de acordo com seu plano original. (Assim como, quando Israel o decepcionou, ele não mudou o plano, mas enviou, por fim, um israelita fiel.) O plano convocava os seres humanos a assumirem suas posições debaixo de Deus e sobre o mundo, adorando o criador e exercendo gloriosa mordomia sobre o mundo. A criação não está esperando compartilhar a liberdade dos filhos de Deus, como algumas versões sugerem. Ela espera beneficiar-se de maneira maravilhosa quando os filhos de Deus forem glorificados. Ela está esperando — de fato, com grande expectativa — pela liberdade específica que usufruirá quando Deus der a seus filhos essa glória, esse sábio governo e mordomia, que sempre foi o propósito para aqueles que têm em si mesmos a gloriosa imagem de Deus. Essa perspectiva sobre a ordem de toda a criação carrega em si toda a sorte de implicações, desde a forma como pensamos a respeito do futuro final do mundo e a respeito de nós próprios (o final da história não é um “céu” descorporificado, mas um mundo totalmente novo), até nossa atual antecipação dessa nossa responsabilidade final para com o mundo de Deus. Essa é uma visão positiva, que valida o mundo, despida de qualquer risco associado ao panteísmo (a idolatria e a ausência de toda crítica ao mal). Há muitas vias aqui que gostaríamos de explorar. Paulo, porém, passa a considerar a atual situação dos filhos de Deus à luz de seu futuro. Estamos, diz ele, ansiando pelo momento em que nós mesmos seremos redimidos, de forma plena e final. E isso significa o momento em que receberemos nossos corpos ressurretos. Gememos e soluçamos quando sabemos o que estamos enfrentando, na medida em que experimentamos a tensão entre a promessa gloriosa e a presente realidade. Essa tensão está sintetizada no fato de que o espírito já está operando em nós, mas ainda não completou a tarefa de nossa renovação plena. Temos os “primeiros frutos” da vida do espírito. Paulo emprega a figura da colheita dos primeiros feixes ofertados a Deus como sinal de uma grande colheita ainda por vir. Somos deixados com uma surpreendente análise a respeito da esperança cristã, esperança que, assim como a fé, não pode ser vista (caso contrário, não seria esperança), mas esperança que, de todo o modo, é certa. Gemendo e esperando, ansiosos porém pacientes: essa é a posição que caracteriza o cristão. O quadro maior retratado por Paulo situa esse gemido no mapa da criação. No centro dessa passagem memorável, encontra-se uma de suas imagens mais vívidas acerca da esperança: a imagem das dores de parto. A criação inteira está em trabalho de parto, ansiando pelo nascimento do novo mundo de Deus. A igreja é chamada a compartilhar essas dores e essa esperança. A igreja não deve ficar à parte das dores do mundo, mas, sim, em oração, precisamente onde o mundo está sofrendo. Isso faz parte de nosso chamado e de nosso elevado papel, ainda que se mostre estranho aos propósitos de Deus para sua nova criação. ROMANOS 8:26-30 ORAÇÃO, FILIAÇÃO E A SOBERANIA DE DEUS 26De igual modo, o espírito coloca-se ao nosso lado e nos ajuda em nossa fraqueza. Não sabemos orar como deveríamos, porém esse mesmo espírito intercede em nosso favor com gemidos inexprimíveis em palavras. 27E o Perscrutador de Corações sabe o que pensa o espírito, porque o espírito intercede pelo povo de Deus de acordo com a vontade de Deus. 28Sabemos, na realidade, que Deus opera todas as coisas, de forma conjunta, para o bem daqueles que o amam, que são chamados segundo seu propósito. 29Aqueles que conheceu de antemão, vejam vocês, ele também designou antecipadamente para que fossem moldados segundo a imagem de seu filho, de modo que ele fosse o primogênito de uma família maior. 30E aqueles a quem designou por antecipação, ele também chamou; aqueles a quem chamou, ele também justificou; aqueles a quem justificou, também glorificou. Quantos nomes você pode pensar para Deus? Essa pergunta pode parecer estranha. O nome apropriado de Deus no Antigo Testamento é YHWH. Entretanto, ele é referido por uma grande quantidade de outras maneiras: “o Todo-poderoso”, “o Santo de Israel”, ou “YHWH dos Exércitos”. Ele também é chamado frequentemente de “o Deus de Abraão”, algumas vezes com Isaque e Jacó também adicionados. Outros nomes estranhos aparecem de forma breve. Aparentemente, Jacó conhece Deus como “o Temor de seu pai Isaque” (Gênesis 31:42 e 53) — ao menos até lutar com Deus face a face no capítulo seguinte. Vale a pena fazer um estudo dos diversos nomes, títulos e descrições de Deus espalhados literalmente por todo o Novo Testamento. No Evangelho de João, Jesus frequentemente se refere a Deus em termos de sua própria missão: “o pai que me enviou.” Aqui mesmo em Romanos, Deus é chamado de maneira diferente como “aquele que ressuscitou Jesus dentre os mortos” (4:24; 8:11). Agora, nessa passagem, encontramos um título igualmente poderoso, embora mais misterioso: “o Perscrutador de Corações.” Esse é um conceito inquietante e sugestivo, justificando sua análise mais de perto. Já nos foi dito que, no fim, Deus julgará todos os segredos dos seres humanos (2:16). Paulo insiste em que Deus reserva elogios para aquele que é judeu “em secreto”, em contraste com uma qualificação meramente exterior (2:29). O versículo 27, porém, da presente passagem vai um passo além. A palavra “Perscrutador” tem uma raiz que sugere alguém que acende uma tocha e vai caminhando lentamente por um recinto grande e escuro, repleto de todo o tipo de coisas, à procura de alguma coisa específica. Ou quem sabe está procurando no escuro apenas de ouvido. Pelo que estaria procurando e o que acontecerá quando encontrar? Sem dúvida, Deus, ao perscrutar os recantos obscuros de nosso coração, depara com toda a sorte de coisas que, se possível fosse, prontamente permaneceriam ocultas. Mas o que, acima de tudo, ele quer encontrar e, que segundo Paulo, deverá encontrar em todos os cristãos é o som do gemido do espírito. Na última seção, vimos que o mundo se encontra sofrendo, gemendo com dores de parto da nova criação. Também vimos que a igreja compartilha essa dor, gemendo em nosso profundo anseio pela redenção de nossos próprios corpos, sofrendo em meio à tensão entre “já” possuir os primeiros frutos do espírito e o “ainda não” de nossa atual existência mortal. Assim, a igreja não se deve apartar das dores do mundo. Agora descobrimos que o próprio Deus não se aparta do sofrimento do mundo ou da igreja, vindo, ao contrário, habitar no meio de nós na pessoa e no poder do espírito. A compreensão de Paulo acerca do espírito é nova e impactante neste ponto. No exato momento em que estamos lutando em oração, e não temos a menor ideia a respeito do que devemos orar, exatamente neste instante o espírito está operando de modo mais óbvio. O espírito exclama do mais íntimo de nosso ser não com um discurso articulado — isso seria um alívio e nós ainda não estamos prontos para receber alívio nessa obra de oração —, porém um gemido que,naquele instante, não pode ser expresso em palavras. Isso é oração para além da oração, mergulhando nas profundezas frias e escuras, para além da visão ou do conhecimento humano. Entretanto, não para além do Perscrutador de Corações. Como parte da figura retratada por Paulo, não só do mundo ou da igreja, mas de Deus, descobrimos que o criador transcendente está em constante comunhão com o espírito que habita os corações de seu povo. Deus compreende o que o espírito está dizendo; nós, não. Deus ouve e responde às orações que nós só conhecemos como dolorosos gemidos, o debater-se e o revirar-se de um espírito inquieto, colocado diante de seu criador com as dores e os conflitos de um mundo pesado em seu coração. Aqui, há um desafio para todas as igrejas e para todos os cristãos: a disposição de assumir e sustentar a tarefa de orar dessa maneira, oração na qual somos envolvidos no diálogo amoroso, feito entre gemidos, o diálogo redentor, entre o pai e o espírito. É assim, na realidade, que se apresenta nossa soberania “glorificada” sobre o mundo na era presente. O desafio de sofrer com o Messias de modo a ser glorificado com ele, significa, com toda a certeza, estar pronto para passar por todo o tipo de sofrimento físico, perseguição e coisas semelhantes (8:35-36). É isso que, com frequência, sobrevém quando se adora o verdadeiro Deus enquanto o mundo ainda se encontra desconjuntado. No entanto, exatamente como a santidade pessoal deve ser vista como o assumir da responsabilidade, no presente, pela parte da ordem criada, que está, de forma mais óbvia, sob nosso controle, como uma antecipação do dia no qual haveremos de “reinar em vida” sobre esferas consideravelmente maiores, assim também a oração, vista à luz dos versículos 26 e 27, pode ser compreendida como o ato de assumir a responsabilidade pelo mundo mais amplo em si mesmo, em antecipação à nova criação. E também como o ato de compartilhar os sofrimentos do Messias quando assim agirmos. Com toda a certeza, existem inúmeras coisas no mundo pelas quais podemos e devemos orar de forma articulada. Mas também existem inúmeras outras em relação às quais tudo o que podemos fazer é permanecer em silêncio na presença de Deus e permitir ao espírito gemer, e ao Perscrutador de Corações, sondar esse gemido e reconhecê-lo pelo que de fato é: sofrimento de acordo com o modelo do Messias. Assumirmos a forma da imagem do filho de Deus dessa maneira é, na realidade, o propósito de Deus para nós como um todo. A oração segundo esse padrão é simplesmente uma parte do processo de “conformação”, pois, a partir daí, surge, em nosso coração, aquele amor por Deus do qual, como já vimos em 5:5, a antiga oração judaica, o “Shemá”, nos fala. Quando, então, somos designados povo de Deus, não de modo externo, mas nas orações secretas e no amor, no mais profundo de nosso ser interior, podemos estar totalmente certos de que Deus está no comando, de que ele pode trazer o bem a partir de qualquer coisa que aconteça. O versículo 28 é uma promessa muito estimada por todos os que já aprenderam, através dela, a confiar em Deus nas muitas e diversas — e, com frequência, perturbadoras — circunstâncias de nossas vidas. O mundo ainda está gemendo e nós também. No entanto, Deus está conosco nesses gemidos e nos fará sair à luz para o bem. Essa crença se amplia na sublime declaração de Paulo nos versículos 29 e 30, sobre o propósito de Deus para todos os seus filhos e filhas. Assim como ocorre em relação a Israel no Antigo Testamento, Paulo compreende aqueles que agora foram trazidos para a comunhão com e mediante seu filho como os conhecidos “de antemão”. Eles não escolheram Deus; ele os escolheu, em um mistério no qual Paulo não procura penetrar, aqui ou em qualquer outra parte. Em vez disso, ele se concentra naquilo que Deus planejou e propôs a eles: que eles haveriam de ser moldados de acordo com o padrão ou modelo de Jesus. A verdadeira “imagem de Deus”, tornando-se, assim, genuinamente humanos, na medida em que se unem à família como irmãos e irmãs mais novos daquele que é verdadeiramente humano. O último versículo estabelece os passos simples mas profundos mediante os quais Deus se põe a trabalhar convocando aqueles que, segundo seu propósito, devem agora compartilhar a imagem de seu filho, a fim de estarem entre aqueles chamados para fazer avançar sua obra no mundo. De início, aqueles que foram designados para essa tarefa foram, misteriosamente, “chamados”. Paulo utiliza o verbo “chamar” como um termo técnico para o que ocorre quando a pregação do evangelho opera de maneira poderosa na vida de alguém, a fim de levá-lo à fé, instá-lo ao batismo e fazer seu coração fluir de amor por Deus por meio do espírito. Quando o evangelho produz esse tipo de fé, como já vimos, Deus declara a pessoa como, de fato, um verdadeiro membro da família: a palavra usada para isso é “justificação”. E o propósito de tudo isso, um propósito que é, sob todos os aspectos, tão garantido quanto os propósitos que já se cumpriram (tanto assim que, como os demais, é possível falar dele no pretérito), é o de que eles sejam “glorificados”, compartilhando o governo soberano e redentor do Messias sobre toda a criação. A passagem inteira parece projetada para nos fazer lembrar tanto da soberania de Deus como do fato de que essa soberania é sempre exercida em amor. ROMANOS 8:31-39 NADA NOS SEPARARÁ DO AMOR DE DEUS 31O que diremos, pois, diante de todas essas coisas? Se Deus é por nós, quem é contra nós? 32Deus, afinal de contas, não poupou seu próprio filho, mas o entregou por amor de todos nós! Como não irá, portanto, juntamente com ele, dar-nos todas as coisas gratuitamente? 33Quem apresentará alguma acusação contra os escolhidos de Deus? É Deus quem os declara como estando certos. 34Quem os condenará? Foi o Messias, Jesus, que morreu ou, antes, que ressuscitou. Que está à direita de Deus e que também intercede a nosso favor! 35Quem nos separará do amor do Messias? Sofrimento, ou miséria, ou perseguição, ou fome, ou nudez, ou perigo, ou espada? 36Como diz a Bíblia: “Por sua causa estamos sendo mortos o dia todo Somos considerados ovelhas destinadas ao abate.” 37Não! Em todas essas coisas, somos completamente vitoriosos por meio daquele que nos amou. 38Estou persuadido, vejam bem, de que nem morte nem vida, nem anjos nem dominadores, nem o presente, nem o futuro, nem poderes, 39nem altura ou profundidade, tampouco outra criatura poderá separar-nos do amor de Deus no Rei Jesus, nosso Senhor! Relatos terríveis surgem de guerras, de ações terroristas e de outras cenas de violência. Aqueles reféns mantidos no Líbano nos anos 1980 contam a respeito de mais de uma ocasião em que foram levados para fora, de olhos vendados, quando, então, lhes diziam que iriam morrer. Uma arma era pressionada contra suas cabeças, seguradas lá por alguns instantes de grande agonia e, em seguida, com uma risada cruel ou um chute, eram levados de volta às suas celas. É difícil imaginar a sensação de alívio, aliada ao fato de saberem que algo assim poderia se concretizar no dia seguinte. No fim, quando os reféns foram libertados, talvez tenham precisado de meses, se não anos, antes de acordar pela manhã sabendo que seus inimigos não estavam mais lá, que ninguém mais iria ameaçá-los. Outros relatos fazem ressonância com essa sensação de alívio inesperado. Jesus confronta alguns fariseus que se consideravam melhores do que os outros homens a respeito do apedrejamento de uma mulher apanhada em adultério (João 8:1-11). Ela estava de joelhos ou caída ao chão, aguardando, aterrorizada, que a primeira pedra se chocasse contra seu corpo, provavelmente mutilando-a de forma cruel, muito antes que viesse a experimentar o alívio da morte em si. Agora, ela olhava para cima. Todos os homens haviam partido, envergonhados pelo desafio de Jesus diante de suas próprias vidas pecaminosas. O quê?, pergunta Jesus com um estranho tipo de humor. Ninguém a condenou? Algo dessa mesma atmosfera, de um alívio inesperado, penetra a parte final dessecapítulo surpreendente. Olhamos em volta procurando saber quem nos condenou para, em seguida, descobrir que todos se foram. A pergunta é feita quatro vezes e, a cada uma delas, a resposta subentendida ressoa com toda a sua força. Quem é contra nós? Ninguém! Afinal de contas, Deus nos deu seu filho e nos dará todas as coisas com ele. Quem apresentará alguma acusação contra nós? Ninguém! O próprio Deus nos justificou, já nos declarou certos. Quem nos condenará? Ninguém! Jesus já morreu, ressuscitou e foi exaltado, e agora intercede por nós. Quem nos separará de seu amor? Ninguém! Dessa vez, há muitos disputando por uma tentativa, porém a lembrança da vitória ressoa em alto e bom som. Nada em toda a criação pode separar-nos do amor de Deus no rei Jesus! Essa é a estrutura formal do parágrafo e, como sugere seu conteúdo, está repleta de permanente entusiasmo, como ocorre em uma sinfonia que está chegando a seus momentos finais e acelera cada vez mais à medida que se vai aproximando de seu desfecho, com expressões extraídas das primeiras estrofes da música sendo repassadas rapidamente de maneira triunfante. O parágrafo é, na realidade, uma síntese de todo o tema dos capítulos de 5 a 8, apresentados agora não em uma argumentação passo a passo, como ocorreu até esse ponto, mas na forma de uma emocionante declaração da mais fina retórica. Veja o que Deus fez! Veja o que o Messias fez, e continua fazendo até mesmo enquanto estamos aqui falando! Olhe em volta e veja quantas coisas ameaçam separá-lo do poderoso amor que nos alcança a partir da cruz e da ressurreição, e entenda que não passam de adversários já derrotados. Aprenda a dançar e a cantar com a mais pura alegria, celebrando, assim, a vitória de Deus. O fim de Romanos 8 merece ser escrito em letras de fogo nas placas vivas de nossos corações. Merece também uma reflexão mais cuidadosa, com suas implicações sendo lentamente digeridas, por completo. Todo o trecho do capítulo 5 em diante refere-se a uma mesma argumentação, que trata de segurança. Zomba-se muito disso: que ideia mais fantasiosa, dizem-nos, essa de que você pode ter certeza do amor de Deus e de sua própria salvação. Quanta arrogância! Quanto egocentrismo! Mas o ferrão deixado por esse sarcasmo pode ser extraído (sem nem mesmo ter de se mencionar a verdade de que, possivelmente, provém da inveja). A declaração do versículo 31, de que “Deus é por nós”, soa lisonjeira quando pensamos em exércitos indo para a guerra e reivindicando, somente para seu lado, a divina proteção. Entretanto, soa muito diferente quando é feita por um apóstolo que enfrentou muitas dificuldades, perseguições, perigos e morte. Assim como em 5:1-5 e 8:17, a declaração de que a esperança não nos decepcionará só pode ser feita quando estamos compartilhando os sofrimentos do Messias. Uma vez compreendido isso, o peso da carta até aqui está concentrado, em grande parte, no significado de justificação: Deus declara todo aquele que crê no evangelho como estando certo e ninguém será capaz de alterar o veredicto de Deus. A justificação pela fé, afinal de contas, é a base da garantia, e não da justificação em si. Não somos justificados pela fé por crermos na justificação pela fé. Somos justificados pela fé por crermos no evangelho, por crermos em Jesus como o Senhor crucificado e ressurreto do mundo. Quando compreendemos a justificação, ganhamos não a própria justificação, mas a segurança. O Deus que nos chamou no evangelho já declarou que somos membros de sua família e que não nos deixará jamais. Essa passagem, portanto, aponta para o dia do julgamento final, completando, assim, o amplo círculo de pensamento iniciado no capítulo 2 e declarando que, no último dia, Deus confirmará o veredicto já pronunciado com base na fé. Uma das respostas revela uma dimensão da obra do Messias não mencionada em nenhuma outra parte das cartas de Paulo (lembramos que pode ter havido muitas coisas que Paulo tomava como certas e que não escreveu em suas cartas para que chegassem até nós). A obra atual de Jesus, subsequente à sua morte, à sua ressurreição e à sua exaltação, consiste em orar intercedendo por seu povo à direita do pai (v. 35; o mesmo tema aparece em Hebreus 7:25 e 9:24 e também em 1João 2:1, e provavelmente estava em foco em Atos 7:55). Essa é uma ideia reconfortante, especialmente quando a caminhada é difícil, como muitas vezes foi para Paulo e como frequentemente também será para aqueles que seguem e vivem por seu evangelho. Como ocorre tantas vezes em seus escritos, de um modo geral, e em Romanos, de forma específica, Paulo recorre à Bíblia como sua fonte básica. No versículo 32, ele menciona a história de Abraão abrindo mão de Isaque, seu único filho, em um quase sacrifício, episódio que muitos judeus consideram um momento-chave na inauguração da aliança. Deus, afirma Paulo, fez o que Abraão fez, porém numa dimensão muitas vezes maior. Ele faz ecoar, nos versículos 33 e 34, uma das “Canções do Servo” de Isaías (50:4-9). De um ponto de vista, ele vê Jesus como o “Servo”; entretanto, de outro, ele considera o papel do servo como aquele que Jesus compartilha com seus seguidores, ele próprio incluído, na medida em que vivem seu evangelho no mundo. A seguir, no versículo 36, ele cita Salmos 44:22, um salmo de lamento a Deus em meio ao sofrimento. O sofrimento, nesse salmo, não surgiu da infidelidade de Israel. Surgiu apesar do fato de Israel ter permanecido fiel. Aqui, bem como nas passagens sobre o “Servo” em Isaías, encontramos uma verdade profundamente arraigada no judaísmo e aproveitada por diversos cristãos na antiguidade, de modo que é possível sustentar-se pelo próprio Jesus: Deus salvará seu povo não apesar de seus sofrimentos, mas através deles e até mesmo em função deles. De algum modo, assim como em Colossenses 1:24, os sofrimentos do povo de Deus estão incluídos nos propósitos de Deus, não de modo a acrescentar algo àquilo que o Messias realizou de forma única e exclusiva (v. 34), mas de modo a sobreviver a eles no mundo, para que o amor de Deus tenha um alcance ainda maior. Aqueles que creem nisso podem estar certos de que, “em todas essas coisas, somos plenamente vitoriosos por meio daquele que nos amou”. É esse amor que, por fim, retorna vez após vez, não como uma reflexão tardia, mas como o tema principal de toda a seção. Nossos pensamentos são lançados de volta a 5:1-11, passagem em que o amor de Deus foi demonstrado na morte de Jesus, e tomamos consciência de que completamos o círculo. John Donne, de fato, comparou o amor de Deus a um círculo, em uma percepção de sua infinitude. Ele domina de maneira vitoriosa sobre a morte e a vida igualmente, sobre os poderes nos céus e na terra. E, uma vez que é da natureza do amor unir seu amado a si mesmo, Paulo está convencido — e, depois de oito capítulos de Romanos, ele deve esperar que nós também estejamos — de que “nada em toda a criação pode separar-nos do amor de Deus no Rei Jesus, nosso Senhor!” GLOSSÁRIO acusador, veja o satánas Alma, veja vida Aliança, pacto. No cerne da crença judaica, está a convicção de que o único Deus, YHWH, que fez o mundo todo, havia chamado Abraão e sua família para pertencer a ele de maneira especial. As promessas que Deus fez a Abraão e sua família, e as condições que foram colocadas sobre eles como resultado, vieram a ser vistas em termos tanto de um acordo que um rei faria com um povo subjugado como, às vezes, de um laço matrimonial entre marido e mulher. Uma forma comum de descrever esse relacionamento era o termo “aliança” [ou “pacto”], incluindo, assim, tanto promessa como lei. A aliança foi renovada no monte Sinai com a entrega da Torá; em Deuteronômio, antes da entrada na Terra Prometida; e, de maneira mais evidente, com Davi (Salmos 89). Jeremias 31 prometeu que, após a punição do exílio, Deus faria uma “nova aliança” com seu povo, perdoando-os e ligando-os a ele mais intimamente. Jesus acreditava que isso se tornaria verdade por meio da proclamação de seu reino, sua morte e ressurreição. Os cristãos primitivosdesenvolveram essas ideias de várias maneiras, crendo que, em Jesus, as promessas haviam sido finalmente cumpridas. Alma, veja vida Apóstolo, discípulo, os Doze. “Apóstolo” significa “aquele que é enviado”. Poderia ser um termo usado para um embaixador ou representante oficial. No Novo Testamento, algumas vezes é usado especificamente para se referir ao círculo íntimo de Jesus, os Doze; mas Paulo vê não apenas a si mesmo, como também vários outros fora os Doze como “apóstolos”, o critério sendo o fato de a pessoa ter visto pessoalmente o Jesus ressurreto. A própria opção de Jesus, no sentido de limitar doze membros, simbolizava seu plano de renovar o povo de Deus, Israel. Após a morte de Judas Iscariotes (Mateus 27:5; Atos 1:18), Matias foi escolhido ao tirarem a sorte para ocupar seu lugar, preservando o significado simbólico. Durante a vida de Jesus, eles e muitos outros seguidores eram vistos como seus “discípulos”, o que significa “pupilos” ou “aprendizes”. Arrependimento. Significa “mudar de direção”, “voltar”, “retornar”. É amplamente usado no Antigo Testamento e na subsequente literatura judaica para indicar tanto uma atitude pessoal de virar as costas ao pecado como uma atitude conjunta de virar as costas de Israel à idolatria e ao retorno a YHWH. Ambos os sentidos estão ligados à ideia de “retorno do exílio”; se Israel deve “retornar” em todos os sentidos, deve “retornar” para YHWH. Isso está no cerne da convocação tanto de João Batista como de Jesus. Nos escritos de Paulo, é mais usado para que os gentios deem as costas aos ídolos para servir ao Deus verdadeiro; também para os cristãos pecadores que precisam retornar a Jesus. Batismo. Literalmente, “imergir” a pessoa na água. A partir de uma tradição judaica mais abrangente de banhos e lavagens rituais, João Batista incumbiu-se da vocação de batizar pessoas no Jordão, não como um ritual dentre outros, mas como um momento singular de arrependimento, preparando-os para a vinda do reino de Deus. O próprio Jesus foi batizado por João, identificando-se com esse movimento de renovação e desenvolvendo-o à sua própria maneira. Seus seguidores, por sua vez, batizaram outros. Após sua ressurreição, e o envio do espírito santo, o batismo tornou-se o sinal comum e o meio de entrada na comunidade do povo de Jesus. Desde os tempos de Paulo, ele foi associado tanto ao Êxodo do Egito (1Coríntios 10:2) como à morte e à ressurreição de Jesus (Romanos 6:2-11). Boas-novas, evangelho, mensagem, palavra. A ideia de “boas-novas”, para a qual uma palavra mais antiga é “evangelho”, tinha dois significados principais para os judeus do primeiro século. Primeiro, com raízes em Isaías, o termo significa as novas da tão esperada vitória de YHWH sobre o mal e o resgate do seu povo. Segundo, era usado no mundo romano para a posse, ou aniversário, do imperador. Uma vez que, para Jesus e Paulo, o anúncio da chegada do reino de Deus era tanto o cumprimento da profecia como um desafio aos atuais governadores do mundo, “evangelho” tornou-se uma importante palavra para a mensagem do próprio Jesus, e a mensagem apostólica a seu respeito. Paulo viu essa mensagem em si mesma como o veículo do poder salvador de Deus (Romanos 1:16; 1Tessalonicenses 2:13). Os quatro “evangelhos” canônicos contam a história de Jesus de tal forma que revelam ambos esses aspectos (diferentemente de alguns outros também chamados “evangelhos” que circularam no século 2 d.C. e nos séculos subsequentes, os quais tendiam a remover as raízes escriturais e judaicas do feito de Jesus e inculcar uma espiritualidade particular, em vez de uma confrontação com os governadores do mundo). Uma vez que, em Isaías, essas boas-novas criativas e revigorantes eram vistas como palavras poderosas do próprio Deus (40:8; 55:11), os cristãos primitivos poderiam usar “palavra” ou “mensagem” como mais uma versão abreviada da proclamação cristã fundamental. Céu. Céu é a dimensão de Deus na ordem criada (Gênesis 1:1; Salmos 115:16; Mateus 6:9), ao passo que “terra” é o mundo de espaço, tempo e matéria que conhecemos. “Céu”, desse modo, às vezes refere-se, reverentemente, a “Deus” (como na expressão recorrente de Mateus “reino dos céus”). Em geral ocultado da visão humana, o céu é ocasionalmente revelado ou desvendado para que as pessoas possam ver a dimensão de Deus da vida comum (2Reis 6:17; Apocalipse 1,4–5). Céu no Novo Testamento, portanto, não é geralmente visto como o lugar para onde o povo de Deus vai após a morte; no final, a Nova Jerusalém desce do céu para a terra, unindo as duas dimensões para sempre. “Entrar no reino dos céus” não quer dizer “ir para o céu após a morte”, mas pertencer no presente ao povo que conduz seu curso terreno pelos parâmetros e propósitos do céu (cf. a Oração do Senhor: “na terra como nos céus”, Mateus 6:10) e que tem a garantia de condição de membro na era por vir. Circuncisão, circuncisos, circuncidados. Remoção do prepúcio. A circuncisão masculina era uma marca importante de identidade para os judeus, seguindo seu mandamento inicial a Abraão (Gênesis 17), reforçado por Josué (Josué 5:2-9). Outros povos, como os egípcios, também circuncidavam os meninos. Uma linha de pensamento desde Deuteronômio (30:6), passando por Jeremias (31:33), aos Manuscritos do mar Morto e o Novo Testamento (Romanos 2:29) fala da “circuncisão do coração” como o verdadeiro desejo de Deus, por meio da qual alguém pode tornar-se interiormente o que o homem judeu é externamente, ou seja, marcado como parte do povo de Deus. Em momentos de assimilação pelos judeus da cultura ao redor, alguns judeus tentaram remover as marcas da circuncisão (1Macabeus 1:11-15). Cristo, veja Messias Davi, veja filho de Davi demônios, veja o satanás diabo, veja o satanás Discípulo, veja apóstolo Escriba. Em um mundo no qual a maioria não sabia escrever, pelo menos não muito bem, uma classe de escritores (escribas) treinados exercia uma função importante na confecção de contratos de negócios, casamentos etc. Portanto, alguns tornaram-se especialistas em lei, e é bem provável que também fariseus, embora ser escriba fosse compatível com várias posições políticas e religiosas. O trabalho de um escriba cristão era de vital importância para a cópia dos primeiros escritos cristãos, particularmente as histórias sobre Jesus. Era por vir, veja era presente Era presente, era por vir, vida eterna. Nos tempos de Jesus, muitos pensadores judeus dividiam a história em dois períodos: “a era presente” e “a era por vir” — a última sendo o tempo em que YHWH finalmente agiria de forma decisiva para julgar o mal, resgatar Israel e criar um novo mundo de paz e justiça. Os cristãos primitivos acreditavam que, ainda que as bênçãos completas da era por vir estivessem no futuro, essa era já havia começado com Jesus, especialmente com sua morte e ressurreição, e que, pela fé e o batismo, eles já poderiam adentrá-la. “Vida eterna” não significa simplesmente “existência contínua, sem-fim”, mas “a vida da era por vir”. Especialistas na lei, advogados, veja fariseus espírito, veja vida, espírito santo espírito santo. [Eu sempre uso o “e” em caixa baixa para “espírito”, não por ter uma visão “inferior” da terceira pessoa da Trindade, e sim porque, no primeiro século, o uso da palavra pneuma — comum e polissêmica — pelos cristãos primitivos tinha de “encontrar” seu próprio caminho sem tal ajuda.] Em Gênesis 1:2, o espírito é a presença e o poder de Deus na criação, sem que Deus seja identificado com a criação. O mesmo espírito entrou nas pessoas, de forma especial nos profetas, capacitando-os a falar e agir por Deus. Em seu batismo por João Batista, Jesus foi especialmente provido do espírito, resultando em sua memorável carreira pública (Atos 10:38). Após a sua ressurreição, seus seguidores foram, por sua vez, cheios pelo mesmo espírito (Atos 2), agora identificado como o próprio espírito de Jesus: o Deus criador estava agindo novamente, refazendo o mundo e a eles também. O espírito os capacitou a viver uma santidade que a Torá não podia capacitar,saibam, minha querida família, que, muitas vezes, fiz planos de ir até vocês; mas, desde então, alguma coisa sempre se interpõe no caminho. Quero produzir algum fruto entre vocês, como também tenho feito entre as outras nações. Na primeira vez que fui a Roma, havia muito a ser visto. Eu já ouvira falar de muitos locais clássicos, das edificações espetaculares, dos palácios antigos, do Fórum e assim por diante. No entanto, também havia muitas surpresas. Uma em particular, e que ainda considero extraordinária, é que a parte central da cidade está sujeita a grandes inundações. O rio Tibre corta essa parte da cidade com suas curvas e guinadas, sendo que vários pontos da cidade se situam em partes mais baixas e vulneráveis. Muitas construções junto ao rio apresentam marcas que revelam a altura que as diversas inundações — e já houve muitas — atingiram. Por que, ainda me pergunto, eles construíram em uma área de tamanha periculosidade? Na antiga Roma, assim como hoje em dia, é claro, os ricos viviam no alto das colinas, as famosas sete colinas sobre as quais a cidade foi estabelecida. O palácio imperial original, onde o imperador Augusto viveu na época em que Jesus nasceu, ocupa a maior parte de uma delas. Nero era o imperador na época em que Paulo estava escrevendo essa carta, e seu palácio espetacular está situado no topo de outra colina, do outro lado do Fórum. Mas, àquela época, assim como agora, os pobres viviam nas áreas em volta do rio e, não em menor medida, do outro lado da margem do rio, cruzando em frente ao principal centro da cidade. E era lá que a maior parte dos primeiros cristãos romanos morava. É muito provável que, na primeira vez que essa importante carta foi lida em voz alta, isso tenha acontecido em um recinto lotado de alguma casa no distrito baixo e mais pobre, onde, atravessando para o outro lado do rio, situava-se a sede do poder. Paulo deseja ir até lá para estar com eles. Como de praxe, o início da carta, depois da plataforma de lançamento em si, é um relato a respeito do que Paulo tem orado sempre que os tem em mente. E sua principal oração é de agradecimento a Deus: ele agradece ao criador dos céus e da terra por haver uma comunidade em Roma, debaixo do nariz de César, que se submete a Jesus como o Senhor, uma comunidade que compreendeu a visão de um reino diferente e de uma nova esperança, e que compartilha uma nova fé. Isso está no centro de tudo, como veremos: a fé, a crença e a confiança no Deus que ressuscitou Jesus dentre os mortos (4:24 e 1:4). Era preciso ter uma fé desse tipo para ser cristão tanto no mundo antigo como no mundo moderno, e Paulo sabia que eles a tinham em abundância. Ele sabe disso, em parte, porque vários cristãos que estavam em Roma à época eram seus amigos. Alguns eram até mesmo seus parentes, conforme descobrimos nas saudações ao fim da carta. As viagens eram, em termos comparativos, algo fácil no mundo de Paulo, e as pessoas iam e vinham a negócios ou por questões de família, circulando no mundo mediterrâneo. Contudo, a carta para Roma é incomum em um aspecto específico: não foi Paulo quem plantou aquela igreja. De acordo com antigas memórias relatadas no século 2, Pedro foi a Roma depois de escapar por pouco de Jerusalém (Atos 12), sendo o primeiro a anunciar a uma capital surpresa, provavelmente com uma considerável comunidade judaica, que Deus, afinal, enviara o Messias de Israel e que, aquele homem, Jesus de Nazaré, ressuscitara dentre os mortos a fim de ser o Senhor do mundo. Portanto, Paulo se encontra em uma posição um tanto delicada ao escrever para a igreja em Roma. Ele não deseja sugerir que esteja faltando alguma coisa a eles. Ao contrário, agradece a Deus por eles e por sua fé, e demonstra seu anseio em se reunir com eles, de modo a ser encorajado pela fé que eles têm, assim como eles, conforme Paulo crê, serão encorajados pela fé que ele mesmo possui. Não devemos imaginar, obviamente, que, quando falamos na “igreja de Roma”, já houvesse um grande prédio com centenas de cristãos indo e vindo em suas cercanias. Esqueça a Basílica de São Pedro e o Vaticano! O capítulo 16 nos oferece um retrato melhor daquela realidade: um grupo de casas nas quais os cristãos podiam reunir-se para adoração e oração, ensino e o partir do pão. É provável que não houvesse, ao todo, muito mais de uma centena de cristãos, em uma cidade de pelo menos um milhão de habitantes. Talvez fosse até menos que isso. Havia muito trabalho ainda para um evangelista realizar. Muito fruto ainda a ser produzido (v. 13). É mais provável também que, nas diferentes casas, se reunissem grupos de cristãos de origens e culturas distintas. Como veremos, Paulo precisou abordar certos assuntos que podem ter causado muita tensão entre eles, com muito cuidado. Há, porém, um fator específico que precisamos mencionar neste ponto. Cerca de seis ou oito anos antes de Paulo escrever, houvera alguns problemas entre os judeus em Roma. É possível, inclusive, que isso tenha acontecido pela chegada do evangelho cristão aos grupos de judeus na cidade. No entanto, Cláudio, o imperador à época, já não suportava mais isso (afirmar que os romanos não gostavam muito dos judeus seria colocar a coisa de forma um tanto suave) e expulsou a comunidade de judeus da cidade. Quando Paulo chegou a Corinto, alguns de seus primeiros amigos se encontravam entre aqueles que deixaram Roma por essa razão (Atos 18:2). No entanto, com a morte de Cláudio, em 54 d.C., e a ascensão de Nero, os judeus receberam permissão para retornar. Não é preciso ter muita criatividade para imaginar como isso pode ter afetado a pequenina igreja cristã. Na realidade, nossa imaginação pode ser mantida na rota dos acontecimentos pelas coisas que vão surgindo depois na própria carta de Romanos. Os romanos pagãos, como já dito, não se importavam com os judeus. Eles zombavam e desconfiavam deles. Do ponto de vista romano, o cristianismo estava fadado a ser visto como duplamente estranho e indesejável: um tipo de religião judaica que deixava os demais judeus zangados! Portanto, se, como parece ser o caso, nos últimos anos do domínio de Cláudio, a igreja em Roma era composta inteiramente de não judeus (“gentios” é a palavra que usamos com mais frequência), seria fácil para eles suporem que a nova mensagem tinha — por assim dizer — deixado o mundo judaico para trás. Deus fizera algo novo. Israel pode ter sido o lugar onde tudo começou, porém agora isso fora deixado para trás. Todas aquelas ordenanças e regras, a lei com seus tabus, restrições de alimentação, dias santos especiais... tudo isso sumira. Agora, o cristianismo seria para o mundo dos gentios. É assim que devem ter pensado. Então, os judeus retornaram — inclusive os cristãos judeus. E alguns desses cristãos judeus, encontrando-se entre os amigos mais íntimos de Paulo, teriam compartilhado essa visão robusta de como Deus cumprira a lei judaica através do Messias e também a transcendera, abrangendo os gentios, igualmente, em seu povo renovado. No entanto, outros cristãos judeus levantariam profundas suspeitas quanto a isso: não há dúvida de que Deus dera a lei a Moisés! Isso não quer dizer que todas essas palavras são válidas para todo o sempre? Supondo que eles se encontrassem morando no entorno de uma das igrejas situadas nas casas, constituídas, em sua maioria, por cristãos gentios, que celebram sua liberdade da lei, como se sentiriam? Cheios de suspeitas alimentadas pelas tensões sociais em meio à mistura de povos cosmopolitas de Roma, isso poderia transformar-se facilmente em hostilidades. Paulo aborda esse assunto passo a passo nesta carta. É importante que, ao longo de todo o caminho, tenhamos em mente um panorama histórico da igreja dos romanos e de suas questões, em vez de ficarmos imaginando uma igreja ao estilo das nossas. Descobriremos outro ponto-chave no capítulo 15. Paulo espera que Roma possa vir a servir de base para uma nova fase de sua missão, percorrendo toda a parte ocidental do Mediterrâneo até chegar à Espanha. Esse, em parte, é o motivo peloproduzindo “frutos” em suas vidas, dando a eles “dons” com os quais pudessem servir a Deus, ao mundo e à igreja, e assegurando-os da ressurreição futura (Romanos 8; Gálatas 4—5; 1Coríntios 12—14). Desde muito cedo no cristianismo (Gálatas 4:1-7), o espírito tornou-se parte da nova definição revolucionária do próprio Deus: “aquele que envia o filho e o espírito do filho.” Essênios, veja Manuscritos do mar Morto Eucaristia. Refeição na qual os cristãos primitivos, e os cristãos desde então, obedeciam à ordem de Jesus de “fazer isto em memória de mim” na Última Ceia (Lucas 22:19; 1Coríntios 11:23-26). A palavra eucaristia vem do grego para “ação de graças”; isso significa, basicamente, “a refeição de gratidão”, e rememora as muitas ocasiões em que Jesus tomou o pão, agradeceu por ele, partiu-o e o deu às pessoas (Lucas 24:30; João 6:11). Outras frases antigas para a mesma refeição são “a Ceia do Senhor” (1Coríntios 11:20) e “o partir do pão” (Atos 2:42). Posteriormente, ela veio a ser chamada “a Missa” (a partir da palavra latina no final do culto, que significa “enviado”) e “Santa Comunhão” (Paulo fala de “compartilhar” ou de ter “comunhão” no corpo e sangue de Cristo). Posteriores controvérsias teológicas sobre o significado preciso das várias ações e dos elementos da refeição não deveriam obscurecer sua centralidade na vida cristã primitiva, de modo que sua importância vital continua até hoje. Evangelho, veja boas-novas Exílio. Deuteronômio (29–30) alertou que, se Israel desobedecesse a YHWH, ele enviaria seu povo para o exílio, mas que, se eles, então, se arrependessem, ele os traria de volta. Quando os babilônios saquearam Jerusalém e levaram as pessoas cativas, profetas como Jeremias interpretaram isso como o cumprimento dessa profecia e fizeram mais promessas sobre quanto tempo duraria o exílio (setenta anos, de acordo com Jeremias 25:12; 29:10). Certamente, os exilados começaram a retornar no final do século 6 (Esdras 1:11). Entretanto, o período pós-exílico foi uma grande decepção, uma vez que o povo ainda estava subjugado por estrangeiros (Neemias 9:36); e, no auge da perseguição pelos sírios, Daniel 9:2,24 falou do “verdadeiro” exílio, que duraria não setenta anos, mas setenta semanas de anos, ou seja, 490 anos. A ânsia pelo verdadeiro “retorno do exílio”, quando as profecias de Isaías, Jeremias e outros seriam cumpridas, e pela redenção da opressão pagã adquirida continuou a caracterizar muitos movimentos judeus, e era um tema principal na proclamação de Jesus e de seus chamados ao arrependimento. Êxodo. O Êxodo do Egito aconteceu, de acordo com o livro de mesmo nome, sob a liderança de Moisés, após longos anos em que os israelitas foram escravizados nesse lugar (de acordo com Gênesis 15:13, isso era parte da promessa de Deus firmada com Abraão). Isso demonstrou, a eles e ao Faraó, rei do Egito, que Israel era o filho especial de Deus (Êxodo 4:22). Eles, então, vagaram pelo Sinai por quarenta anos, guiados por Deus, em uma coluna de nuvem e fogo; anteriormente, eles haviam recebido a Torá no próprio monte Sinai. Finalmente, após a morte de Moisés e sob a liderança de Josué, eles atravessaram o Jordão, entraram e, finalmente, conquistaram a Terra Prometida de Canaã. Esse evento, comemorado anualmente na Páscoa e em outras festas judaicas, deu aos israelitas não apenas uma lembrança poderosa do que os havia tornado um povo, mas também uma forma e um conteúdo especial à sua fé em YHWH não apenas como criador, mas também como redentor; e, nas subsequentes escravizações, particularmente o exílio, eles procuravam mais uma redenção que fosse, de fato, um novo Êxodo. Provavelmente nenhum outro evento passado dominou tanto a imaginação dos judeus do primeiro século; entre eles, os cristãos primitivos, seguindo a liderança do próprio Jesus, continuamente referiam-se ao Êxodo para dar forma e sentido aos seus próprios eventos críticos, mais especialmente à morte e à ressurreição de Jesus. Fariseus, especialistas da lei, advogados, rabinos. Os fariseus eram um grupo de pressão judaico não oficial mas poderoso durante a maior parte dos primeiros séculos a.C. e d.C. Amplamente conduzido por leigos, ainda que contendo alguns sacerdotes, seu objetivo era purificar Israel por meio da intensa observância da lei judaica (Torá), desenvolvendo suas próprias tradições a respeito do significado e da aplicação precisos das Escrituras, seus próprios padrões de oração e outras devoções, além de suas próprias estimativas da esperança nacional. Embora nem todos os conhecedores da lei fossem fariseus, a maioria dos fariseus conhecia a lei. Eles efetuaram uma democratização da vida de Israel, já que, para eles, o estudo e a prática da Torá eram equivalentes à adoração no templo — embora eles fossem inflexíveis em impor suas próprias regras para a liturgia do templo, apesar da má vontade do sacerdócio (frequemente composto por saduceus). Isso lhes permitiu sobreviver a 70 d.C. e, absorvendo-se no movimento rabínico inicial, desenvolver novas maneiras daí por diante. Politicamente, eles defendiam as tradições ancestrais e estavam à frente de vários movimentos de revolta contra a soberania pagã e os líderes judeus transigientes. Nos dias de Jesus, havia duas escolas distintas: a mais rígida, de Shamai, mais inclinada para as revoltas armadas; e a mais tolerante, de Hilel, pronta para viver e aceitar o modo de viver dos outros. Os debates de Jesus com os fariseus são tanto uma questão de agenda e orientação política (Jesus se opunha veementemente ao separatismo nacionalista deles) como de detalhes sobre teologia e piedade. Saulo de Tarso era um zeloso fariseu de direita, presumivelmente um shamaíta até a sua conversão. Após a desastrosa guerra de 66—70 d.C., essas escolas de Hilel e Shamai continuaram com penosos debates sobre a orientação política apropriada. Seguindo o posterior desastre de 135 d.C. (a fracassada revolta de Bar-Kochba contra Roma), suas tradições foram mantidas pelos rabinos, que, embora olhassem os fariseus mais antigos para se inspirar, desenvolveram uma devoção piedosa baseada na Torá, com a santidade e a pureza pessoal tomando o lugar de programas políticos. Fé. A fé no Novo Testamento compreende uma ampla área de confiança e confiabilidade humana, resultando em amor de um lado do espectro e em lealdade do outro. Dentro do pensamento judaico e cristão, a fé em Deus também inclui crença, aceitando certas coisas como verdadeiras sobre Deus e a forma como agiu no mundo (tirou Israel do Egito; ressuscitou Jesus dos mortos). Para Jesus, a “fé” com frequência parece significar “reconhecer que Deus está decisivamente em ação para trazer o reino por meio de Jesus”. Para Paulo, “fé” é tanto a crença específica de que Jesus é Senhor e de que Deus o ressuscitou dos mortos (Romanos 10:9) como a resposta do grato amor humano ao soberano amor divino (Gálatas 2:20). Essa fé, para Paulo, é a única marca distintiva de pertencimento ao povo de Deus em Cristo, marcando-o de um modo que a Torá e as obras que ela determina jamais poderão fazer. filho de Davi. Um título alternativo e não frequente para o Messias. As promessas messiânicas do Antigo Testamento concentram-se, muitas vezes, de maneira específica, no filho de Davi, como, por exemplo, em 2Samuel 7:12-16 e em Salmos 89:19-37. José, marido de Maria, é chamado “filho de Davi” pelo anjo em Mateus 1:20. filho de Deus. Originalmente, um título dado a Israel (Êxodo 4:22) e ao reino davídico (Salmo 2:7); usado também para seres angelicais antigos (Gênesis 6:2). No período do Novo Testamento, já era usado como um título messiânico, como, por exemplo, nos Manuscritos do mar Morto. Tanto naquele momento como quando foi usado a respeito de Jesus nos evangelhos (Mateus 16:16), significa ou reforça “Messias”, sem o significado posterior de “divino”. Porém, em Paulo, a transição para o significado pleno (aquele que era igual a Deus e foi enviado por ele para se tornar homem e se tornar o Messias) já era aparente, sem perder o significado do próprio “Messias”qual ele deseja tanto que a igreja romana compreenda o evangelho por ele pregado da forma mais completa possível. Nesse momento, porém, o mais importante para ele é compartilhar que está orando pela igreja em Roma. Ele os sustenta dia após dia diante de Deus, agradecendo ao Senhor pela fé firme deles, orando para que seja capaz de ir visitá-los e de trabalhar entre eles antes de prosseguir em sua missão. Aqueles entre nós chamados a ser pastores e mestres na igreja devem atentar para isso com muito cuidado. Quando planejamos visitar alguém ou alguma cidade, a melhor preparação possível é orarmos antes por uma oportunidade de nos encontrar com as pessoas, bem como pelo que Deus vai realizar na vida delas. ROMANOS 1:14-17 BOAS-NOVAS, SALVAÇÃO E A JUSTIÇA DE DEUS 14Sou devedor tanto de bárbaros como de gregos, vejam vocês; tanto de sábios como de tolos. 15Esse é o motivo de eu estar ansioso por anunciar as boas-novas a vocês também em Roma. 16Não me envergonho das boas-novas, pois elas são o poder de Deus trazendo salvação a todos os que creem — primeiro, para o judeu e, também, de igual modo, para o grego. 17Isso porque a justiça pactual de Deus é revelada por meio delas, de fidelidade a fidelidade. Como está escrito na Bíblia: “O justo viverá pela fé.” Quando eu ainda era menino, uma de minhas ocupações regulares nos feriados era montar aeromodelos de plástico. Lembro-me da emoção de retirar as pecinhas da caixa, destacando-as com todo o cuidado da haste que as prendia e, em seguida, examinar o esquema, para ver onde cada uma delas se encaixava. Era algo semelhante àqueles diagramas “explodidos” que exibem a mecânica dos automóveis, com linhas pontilhadas saindo da figura do modelo completo e com figuras menores das peças individuais, inclusive das bem pequeninas ao fim de cada uma das linhas. Também era importante saber a ordem correta de encaixe de todas as peças. Primeiro, vinha a fuselagem, em seguida as asas, depois os suportes e... finalmente, temos tudo junto. Experimente fixar as peças antes da hora e você acabará frustrado, todo coberto de cola e apenas com metade de um aeroplano. Existem diversas passagens nos escritos de Paulo que me fazem lembrar esse tipo de diagrama, e essa aqui é uma delas. O único problema, claro, é que temos isso de forma invertida: aqui está um aeroplano completo (quatro versículos do escrito mais denso de Paulo envoltos em emocionantes e poderosos termos técnicos). Primeiro, precisamos pegar as peças e observar como cada uma delas funciona. Somente então, poderemos reuni-las e verificar se podem voar. Mas, antes, vamos dar uma olhada na passagem por inteiro, a fim de compreender seu objetivo. Paulo está explicando, em maiores detalhes, a razão de querer viajar para Roma. Como parte dessa explicação, também está mostrando em mais detalhes o efeito do evangelho de que falou nos versículos de 1 a 7. Ele vai a Roma como um arauto do evangelho de Deus. Isso é parte de seu trabalho, porque o evangelho é para todos. Ele não precisa envergonhar-se dele, porque é o poder de Deus para a salvação das pessoas; e ele faz isso revelando a justiça de Deus, o antigo plano de Deus recolocar o mundo e os seres humanos em ordem, endireitá-los. Mas por que Paulo diria para “não se envergonharem” do evangelho? No mundo ocidental atual, as pessoas frequentemente sentem vergonha do evangelho cristão. Caçoam tanto dele, fazem tantas zombarias e demonstram tanta rejeição nos jornais, nos programas de rádios e nos canais de TV que muitos cristãos acabam concluindo que o melhor a ser feito é manter sua fé em segredo. É óbvio que é exatamente isso que o mundo secular triunfalista à nossa volta deseja. Entretanto, nos dias de Paulo, havia um desafio diferente. Como já vimos, seu mundo estava sob domínio, e a igreja romana em particular estava dominada por uma cultura centrada em uma só cidade e em um só homem. César reivindicava o governo do mundo. O evangelho de Deus declarava que esse domínio pertencia a Jesus. O que um cristão deveria fazer? Praticar sua fé de forma privada caso ofendesse alguém? Certamente que não! Paulo devia ter em mente uma passagem como Salmos 119:46. “Falarei de seus decretos diante de reis e não me envergonharei.” Essa era sua intenção. “Ao nome de Jesus”, escreveu ele em outra carta, “todo joelho se dobrará” (Filipenses 2:10). Isso incluía o próprio César. Paulo pode estar, de fato, provocando gentilmente o orgulho de Roma. Os gregos, que haviam dominado o mundo séculos antes dos romanos, haviam dividido o mundo em dois: os gregos e os outros. Eles chamavam os outros de “bárbaros”, talvez porque a linguagem deles soasse aos gregos como resmungos sem sentido em comparação à suave música da língua grega. E, para um grego autêntico, os romanos, com seu latim, eram contados entre os bárbaros. Isso mesmo, declara Paulo no versículo 14, eu também tenho obrigação para com eles. No entanto, é com uma divisão diferente de mundo que ele se ocupa na maior parte das vezes nessa carta. Os judeus também dividiam o mundo em dois: os judeus e os outros. Algumas vezes, eles se referiam aos outros como “as nações”, algumas vezes como “os gentios” e, outras vezes, como aqui e no capítulo 2, como “os gregos”, porque, até onde sabiam, o restante do mundo falava grego. (Roma, com suas diversas populações de imigrantes, contava com um grande número de pessoas que falavam grego, incluindo a maior parte dos cristãos mais recentes.) Uma das mais explosivas características do evangelho de Paulo, enraizado como era nas Escrituras e nas tradições judaicas, é que ele rompia com as barreiras entre judeus e gregos, declarando que o amor e o poder salvífico do único Deus estavam disponíveis a todos. Isso é central nessa pequena passagem, e continua sendo central por toda a carta. Agora chegou o momento de fazermos o diagrama “explodido” das expressões-chave dos versículos 16 e 17, verificando, então, o que cada pedacinho significa e como tudo se encaixa. Começamos com as boas-novas como o poder de Deus. Paulo já falara do poder de Deus ao ressuscitar Jesus dentre os mortos, demonstrando, assim, que ele era (como, de fato, é) o filho de Deus (v. 4). Agora ele volta a falar de poder, mas de um poder que prossegue operando onde quer que pessoas como Paulo, ou qualquer uma com a mesma comissão nos dias atuais, declarem que Jesus é o Senhor. Na realidade, Paulo descobriu, após anos de experiência, que, quando se anuncia Jesus como o Senhor crucificado e ressurreto do mundo, algo acontece: o novo mundo gerado quando Jesus morreu e ressuscitou torna-se vida nova nos corações, nas mentes e nos estilos de vida dos ouvintes, ou ao menos de alguns deles. Isso não é mágica, embora algumas vezes tenha parecido ser algo assim. É o poder de Deus em operação, mediante o anúncio fiel de seu filho. O resultado é a “salvação”. Essa é uma palavra tão familiar que podemos tomar como certo que já conhecemos seu significado, considerando-a, assim, assunto resolvido. O significado que, em geral, lhe atribuímos é o de que “vamos para o céu quando morrermos”. Porém, o Novo Testamento, em geral, e Paulo, em particular, não têm praticamente nada a dizer a esse respeito. Sim, é claro que eles creem que Deus vai resgatar todo o seu povo da morte. A morte é um inimigo já derrotado, e sua corrupção e decomposição não terão a última palavra. Isso, entretanto, não significa que todos nós acabaremos em um céu, sem um corpo, mas, sim, que Deus resgatará toda a criação da corrupção e da decomposição — e também dará a todo o seu povo novos corpos, assim como o corpo ressurreto de Jesus, a fim de vivermos, de forma gloriosa, em seu novo mundo. Essa é uma das direções que uma das linhas de argumentação da carta toma, como uma rápida olhadela no capítulo 8 pode confirmar. Contudo, essa “salvação”, como Paulo sempre deixa claro, não está somente no futuro, embora lá é que será vista em sua glória plena. Ela abre seu caminho já aqui no presente, ao resgatar as pessoas de um estado pecaminoso e ao resgatar o povode Deus de seus problemas e também de perseguições. A “salvação” é tanto uma realidade presente como uma esperança futura. De fato, quando essa salvação irrompe na vida de alguém, torna-se um evento em si mesmo, através do qual essa pessoa pode olhar para trás, para seu passado. Ela foi salva, está sendo salva e será salva. Essa salvação é para todo aquele que crê. A mensagem do evangelho — anunciando que o Jesus crucificado e ressurreto é o Senhor do mundo — necessita ser crida. A palavra de Paulo para “crer” e sua palavra para “fé” são basicamente as mesmas e, juntas, significam mais do que nossas palavras “crer” e “fé” parecem significar. Se alguém pergunta “Está chovendo?” e eu respondo “Creio que sim”, estou introduzindo um elemento de dúvida: será que, de fato, eu sei que está chovendo? É claro que a fé cristã envolve a compreensão de coisas que não podemos ver ou comprovar. Entretanto, a fé é o oposto da dúvida, e não apenas do que vemos. A fé implica uma convicção profunda de que Deus ressuscitou Jesus e de que ele é, de fato, o Senhor do mundo (veja 4:24 e 10:9). Essa convicção é a primeira coisa que ocorre quando a mensagem do evangelho atinge em cheio, no poder do espírito, o coração do ser humano. E, com essa convicção, vem a promessa de Deus (um dos principais temas dessa carta) de que aqueles que creem no evangelho são declarados “certos” com efeitos imediatos, em antecipação ao dia do juízo final (veja 3:21-31). É por esse motivo que o pertencimento ao povo de Deus está disponível, em termos precisamente idênticos, para “o judeu primeiro e também para o grego”. O versículo 17 contém — enquanto prosseguimos com a perspectiva “explodida” dessa passagem — a ideia mais explosiva de todas. Os profetas e os salmos sempre falaram da “justiça” de Deus: Deus é o criador do mundo e anseia por endireitar o mundo (como costumamos dizer) em ordem. Suas palavras para “justiça”, e outras similares, como “justificar” e a palavra para “certo” e outras como “justo”, “retidão” e assim por diante, procedem da mesma raiz. Infelizmente, assim como “crer” e “fé”, não há uma forma fácil de expressar isso na tradução. Parte da arte de ler Romanos reside em aprendermos a manter as demais palavras juntas na mente quando deparamos com uma das palavras desse grupo. Na realidade, a justiça de Deus é, no fundo, um conceito de fácil assimilação. Se Deus criou o mundo e ainda o governa, então por que acontecem coisas ruins? Será que Deus fará algo a esse respeito? A resposta bíblica é que sim, é claro que Deus fará o que se requer para colocar tudo em ordem, ou seja, endireitar tudo, mas é aqui que a situação se complica. Deus não faz o que nós esperamos. Ele chama uma única família e entra em um pacto amoroso e cativante com eles. Esse acordo, em geral denominado “aliança”, não significa que eles sejam as únicas pessoas que Deus ama ou a quem deseja resgatar. Antes, quer dizer que a maneira que Deus escolheu trazer sua justiça salvífica ao mundo, o modo como tenciona endireitar tudo, se dá mediante o chamado dessa família, o povo de Abraão, a fim de serem os portadores de seu plano de resgate para o restante do mundo também. A aliança de Deus com Abraão sempre teve como propósito servir de meio através do qual o Deus, criador, resgataria o mundo inteiro do mal, da corrupção e da morte. Deus está decidido a manter seu propósito e sua promessa, de modo a levar sua justiça restauradora ao mundo inteiro. Afinal de contas, é isso que significa a “retidão de Deus” ou a “justiça de Deus”. Traduzi a palavra “justiça” aqui como “justiça pactual de Deus” ou “justiça da aliança de Deus”, de modo a manter todos os conceitos reunidos. Como se trata de um dos temas centrais da carta, é vital compreendê-lo com toda a clareza. Quando o evangelho de Jesus é anunciado, Paulo declara que, por meio dele, podemos entender, afinal, como a “justiça” de Deus, a “fidelidade pactual” ou, de acordo com o palavreado mais antigo, sua “justiça” ou “retidão”, foi revelada. Foi desse modo que Deus endireitou o mundo, declara a mensagem do evangelho, referindo-se a Jesus, e é desse modo que Deus endireitará você também. Mais uma vez, Paulo insiste — o fato de ele repetir a mesma ideia duas vezes, em dois versículos contíguos, demonstra quanto isso é importante — que, para poder beneficiar-se do desvelar da justiça pactual de Deus, de sua fidelidade em Jesus com relação às promessas feitas há muito tempo, é necessário que você mesmo tenha fé. Deus tem sido fiel a seus propósitos e promessas. Caso você queira beneficiar-se disso, precisa responder com confiança sincera, aquela “obediência pela fé” de que ele fala no versículo 5. E, para reforçar esse conceito, Paulo cita uma passagem-chave do profeta Habacuque (2:4), que enfrentou uma grande catástrofe sobre Israel e precisou aprender a se manter firme e a confiar em Deus, a ter fé em sua fidelidade. Essa é a postura que, agora, Paulo insta seus leitores a ter. Em Jesus, o Messias, Deus se mostrou fiel aos propósitos e às promessas de sua aliança, e aqueles que crerem nas boas-novas a respeito de Jesus descobrirão que essa fidelidade estende seus braços, envolvendo-os com uma salvação que jamais lhes poderá ser retirada. Ao reunirmos novamente essa passagem por inteiro, ela se apresenta, aos nossos olhos, no cabeçalho dessa carta maravilhosa, como um pequeno resumo de uma das mais importantes verdades já ouvidas por ouvidos humanos. ROMANOS 1:18-23 OS SERES HUMANOS REJEITAM DEUS E ABRAÇAM A CORRUPÇÃO 18Pois a ira de Deus se revela dos céus contra toda impiedade e toda injustiça cometida por pessoas que usam a injustiça com o propósito de suprimir a verdade. 19O que pode ser conhecido de Deus, vejam vocêm, está claro para eles, uma vez que Deus revelou a eles. 20Desde que o mundo foi criado, seu poder invisível e sua deidade são vistos e conhecidos nas coisas que ele criou. Como resultado, eles não têm desculpa: 21conheciam a Deus, porém não o honraram como Deus, nem lhe deram graças. Em vez disso, aprenderam a pensar de forma inútil, e seu coração sem sabedoria tornou-se obscuro. 22Eles se declaram sábios, mas se tornaram tolos. 23Eles trocaram a glória do Deus imortal pela semelhança da imagem de seres humanos mortais — e de pássaros, animais e répteis. Acabei de observar uma grande faia sendo abatida. Foi uma tarefa difícil e perigosa para os envolvidos, e fiquei fascinado ao ver como eles executavam o trabalho, com cordas e outros equipamentos de escalada, além de motosserras. No entanto, eu estava ainda mais interessado em ver o que só foi possível depois que seu enorme tronco foi ao chão e estava sendo seccionado em partes menores, a fim de possibilitar seu transporte. A árvore teve de ser derrubada, assim nos disseram, porque suas raízes estavam podres. Olhando para a árvore, não seria possível concluir que houvesse algo de tão errado com ela. Mas, caso alguém olhasse bem de perto os galhos mais altos, seria possível notar alguns sinais de problemas em sua saúde. Havia uma boa quantidade de fungos crescendo em volta da base, mas (assim eu pensava) muitas árvores têm isso, não? Era uma árvore grande, com cerca de duzentos anos, e, em sua maior parte, parecia ótima. Nada disso, disseram os especialistas, aquele fungo está matando o complexo de suas raízes. Mais um ano, ou algo em torno disso, e as raízes não teriam mais forças para sustentar a árvore contra fortes ventanias. A situação podia oferecer risco. Portanto, ela teria de vir abaixo. Eu ainda não estava totalmente convencido disso. Ques-tionava-me se eles não estariam fazendo uma tempestade em copo d’água. Foi então, à medida que as serras iam realizando seu trabalho implacável, que pude ver o interior do tronco. O fungo já havia tomado cerca de um metro de seu diâmetro. Os cinco a sete centímetros externos ainda eram de madeira sólida, saudável e forte. No entanto, o restante do tronco estava inteiramente salpicado por uma espécie de mancha escura. A deterioração nas raízes já começara a se espalharem seu interior, atingindo cerca de três a cinco metros de altura. E não tardaria a infectar toda a árvore. O que parecia ser, aos olhos de um observador comum, uma velha porém bela e sólida faia acabaria se transformando em um grave acidente que estava prestes a acontecer. A explicação de Paulo para a razão de o evangelho, a revelação da justiça e a salvação de Deus serem urgentemente necessários é que a árvore está totalmente apodrecida, desde a sua essência, e pode vir a desabar de modo trágico a qualquer instante. A árvore em questão é a raça humana que se colocou em uma situação de rebelião contra seu criador, em todos os níveis. Os seres humanos foram projetados para ocupar o centro do plano de Deus na administração de sua criação: isso é parte do que significa ter sido feito “à imagem de Deus” (Gênesis 1:26-27). Por isso, quando os seres humanos seguem o caminho errado, o mundo inteiro acaba adoecendo. Sabemos que Paulo tem essa visão mais ampla da salvação pelo clímax de Romanos 8. Por enquanto, contudo, ele se concentra em apresentar o cerne do problema: a rebelião dos seres humanos. Do versículo 18 ao 2:16, ele desenvolve uma acusação contra a raça humana de modo geral: a humanidade está deteriorada em sua essência, e o desastre final a que isso conduzirá (1:32; 2:5; 2:16) é antecipado pelos sinais de sua corrupção, desintegração e decadência, que nos são visíveis, por assim dizer, nos galhos mais altos (1:24-31). Nossa passagem atual, dos versículos 18 a 23, começa, acertadamente, falando do apodrecimento das próprias raízes. Os seres humanos foram feitos para conhecer, adorar, amar e servir ao Deus criador. Essa sempre foi e sempre será a maneira saudável e frutífera de o ser humano viver. Mas isso requer, é claro, certo tipo de humildade: uma disposição para deixar Deus ser Deus, de honrá-lo e celebrá-lo como tal, bem como de reconhecer seu poder no mundo e sobre o mundo. Paulo afirma que os seres humanos não perderam essa percepção do poder e da deidade de Deus, mas declara que escolheram suprimir essa verdade em vez de honrar a Deus e lhe demonstrar gratidão. É importante lembrar essa passagem, já que Paulo vai se referir a ela mais uma vez ao descrever, no capítulo 4, como a fé de Abraão e a fé dos cristãos conferem a Deus essa honra e essa gratidão. Desse modo, ela se revela como um sinal da regeneração dos seres humanos. Todas as árvores foram afetadas por essa enfermidade da raiz, mas existe cura e Paulo explica como isso é possível. Aqui, ele descreve, de forma vívida, como essa doença se espalha. O que tem início com o ser humano suprimindo a verdade a respeito de Deus não prossegue como poderíamos supor com o mau comportamento — isso vem depois —, mas com o pensamento distorcido e o coração obscurecido (v. 21). Esta é a verdade capaz de nos devolver a sensatez, mas que muitos filósofos têm tentado ignorar: existem formas saudáveis de pensar e outras nada saudáveis. O pensamento, por si só, não vai, necessariamente, produzir respostas certas. Por si mesma, a razão humana não nos oferece mais garantia de nos apontar o caminho do que uma bússola em uma sala repleta de ímãs. Uma das tragédias da humanidade rebelada é o total desperdício da capacidade intelectual dada por Deus: pense na habilidosa mente criminosa elaborando planos com astúcia e requinte de detalhes, só para cometer crimes e sair impune; ou ainda no inteligente ditador pensando em como esmagar a oposição e, assim, manter o povo na obscuridade quanto a seus verdadeiros e egocêntricos motivos, para, desse modo, perpetuar-se no poder. Imagine-se utilizando a capacidade intelectual que lhe foi concedida por Deus para objetivos dessa natureza. Ao lado do pensamento distorcido, vem o coração obscurecido (algumas versões trazem “mente” ao final do v. 21, mas Paulo emprega sua palavra usual para “coração”). O coração humano era visto por muitos pensadores da antiguidade como o centro de nossa motivação. Deveria ser uma fonte de luz, mas, quando os seres humanos se rebelam contra Deus, ele se torna imerso em trevas. Esse é o fungo na essência da raiz. A árvore pode continuar crescendo, talvez por muitos anos. Pode enganar seus observadores com a aparência de uma árvore saudável, porém já contraiu uma doença mortal. Os seres humanos podem enganar a si mesmos, e também uns aos outros, a respeito desse mal. Como Paulo ressalta no versículo 22, eles podem declarar-se sábios quando, na verdade, são ignorantes. Esse é um dos quebra-cabeças da atualidade: em um mundo de fácil comunicação global, podemos observar o que as pessoas estão pensando em culturas e ambientes muito diferentes dos nossos. Uma pessoa considera o máximo da sabedoria o fato de um país reunir um grande estoque de armas nucleares, enquanto outra crê que isso é o cúmulo da estupidez. Uma pensa que o mais sábio é que os idosos e enfermos sejam auxiliados a cometer suicídio, enquanto outra pensa que isso é o extremo oposto da sabedoria. Quem é capaz de dizer o que é mais sábio? Paulo responderá a essa pergunta também; porém, o mais importante é observar o ponto fundamental, que ele repete no versículo 32. É bem possível para o ser humano concluir que agir de uma forma é bom e sábio, e que fazer o contrário é ruim e estúpido — e, ainda assim, estar totalmente errado. Isso não significa que todos os padrões morais são relativos, resumindo-se apenas a uma questão de preferência cultural. Antes, é um sinal de que, de fato, costumamos nos enganar com muita facilidade, em especial no que diz respeito a nossos próprios interesses e desejos. O primeiro sinal de morte insidiosa, que se infiltra e vai-se espalhando a partir do pensamento distorcido e de um coração obscurecido, por toda a vida humana, é a falha na adoração. Fomos criados para adorar o Deus vivo e ser portadores de sua imagem. Paulo, que tem em mente de forma clara Gênesis 1, destaca, com grande ironia, que, em vez disso, os seres humanos criaram ídolos que se encontram a vários níveis de distância da realidade. Eles são uma representação da imagem dos seres humanos, que, em si mesmos, são mortais e, portanto, sujeitos à degeneração e à morte. Não satisfeitos com isso, eles também adoram imagens de espécies subumanas. Hoje em dia, é fácil para as pessoas rirem das antigas formas de idolatria. “Como eram engraçadas no passado”, pensam. Elas esculpiam “deuses” de pedaços de madeira e de pedra, e os adoravam! Todavia, nós fazemos exatamente o mesmo. O mundo ocidental moderno já adorou muitos ídolos — e os mais óbvios são o dinheiro, o sexo e o poder. Paulo não está dizendo que todos os indivíduos fazem tudo isso, mas que a raça humana como um todo adora partes do mundo, e não o próprio Deus. Pensamento distorcido, coração obscurecido e adoração de não deuses — essa é a doença, de um modo geral não percebida por observadores eventuais, e que trará a árvore ao chão, trazendo consigo todos os que estiverem em seu caminho. Isso nos traz de volta ao primeiro versículo da passagem. A justiça de Deus se levanta contra toda impiedade e toda injustiça, dois termos que sintetizam o que significa os seres humanos se desviarem de seu caminho. A “impiedade” alude ao que acontece aos seres humanos quando deixam de adorar, honrar e demonstrar gratidão ao Deus vivo. A “injustiça” vem logo em seguida, no sentido mais amplo da vida humana e da sociedade se desarticulando, necessitando, assim, ser acertada, endireitada. A verdade costuma ser uma das primeiras baixas na guerra — e, igualmente, uma das primeiras baixas quando os seres humanos se rebelam contra Deus. O resultado disso é a ira de Deus, ou o “castigo”, como algumas versões ainda costumam trazer. Isso não quer dizer que Deus seja malévolo, caprichoso, inclinado a perder o controle ou a sair castigando de forma descontrolada. Muito pelo contrário. Como veremos no capítulo 2, Deus é bondoso, paciente e tolerante. Entretanto, ele se importa de forma apaixonada com este mundo e com suas criaturas humanas. E, se há algum tipo de atividade capaz de descaracterizar,causar danos ou destruir o mundo e os seres humanos, Deus não permitirá que isso prossiga para sempre. Estupro, assassinato, tortura e opressão econômica — a lista poderia prosseguir e, de fato, prossegue mais adiante no capítulo: Deus odeia todos esses atos. Ele está irado contra todos eles. Sejamos bastante claros: se ele não estivesse irado, não seria um Deus bom! Não é de seu feitio ficar afirmando que a árvore está em perfeita ordem quando, na realidade, tem uma doença fatal. Tampouco essa é a natureza de Paulo. Existem dois erros que podemos cometer quando falamos a respeito do mal. Podemos pensar que o mundo todo é pervertido, de modo que não existe sequer resquício de bondade nele. Ou podemos pensar que o mal não é tão sério a esse ponto. Nossa sociedade ocidental moderna tende a adotar a segunda linha de pensamento, a despeito de tantas gerações perversas, em uma escala sem paralelo. Paulo nos leva de volta a uma avaliação mais realista. De fato, a árvore está com uma doença perigosa e necessita de um tratamento radical. ROMANOS 1:24-27 DESEJOS IMPUROS, CORPOS DESONRADOS 24Por isso, Deus os entregou à impureza segundo o desejo de seus corações, tendo como resultado o fato de desonrarem seus corpos entre si mesmos. 25Eles trocaram a verdade de Deus por uma mentira, e adoraram e serviram à criatura, e não ao criador, o qual é bendito para sempre. Amém. 26Desse modo, Deus os entregou a desejos vergonhosos. Até mesmo as mulheres, vejam vocês, trocaram a prática sexual natural por uma contrária às leis da natureza; 27e também os homens abandonaram as relações sexuais naturais com as mulheres e se inflamaram com lascívia uns pelos outros. Os homens passaram a realizar atos vergonhosos com outros homens e a receber em si mesmos a retribuição apropriada por seus caminhos equivocados. Imagine alguém que não sabe nada de música e vê, pela primeira vez, um arco de violino. Seria algo digno de confundir sua cabeça. É óbvio que a peça foi feita com todo o cuidado, pensaria essa pessoa, mas para que serve? É estreito demais para ser algum tipo de utensílio para polir, e também é delicado demais para realizar trabalhos manuais da casa ou do jardim. Tem até mesmo um pequeno parafuso para ajustar a corda, deixando-a mais esticada ou mais frouxa… mas para que serve isso, afinal de contas? Somente quando alguém aparecer com um violino, apanhar o arco e começar a tocar é que o mistério será resolvido. Sozinha, essa pessoa jamais concluiria que o arco serve para esse tipo de atividade e menos ainda que é capaz de produzir belos sons. De igual modo, dificilmente poderia saber, ao olhar para o violino de forma isolada, como tocá-lo. No entanto, durante séculos eles são produzidos um para o outro. E somente quando ambos estão juntos é que cada um se completa. Já posso pressentir vários leitores tornando-se impacientes. Todas as ilustrações são incompletas e inadequadas, e essa não é nem um pouco melhor do que a maioria. É claro que os homens e as mulheres não são como os arcos e os violinos. É claro que, em certo sentido, o homem pode ser completo — como o próprio Jesus era completo! — sem uma mulher e vice-versa. É claro que o homem é mais do que um arco, e a mulher é diferente de um violino, e vice-versa. No entanto, ainda assim, o exemplo capta algo do que Paulo dá como certo ao começar a explicar como a vida humana se desviou da intenção do criador. Não há uma forma incontroversa de abordar esse tópico por inteiro. Então, o melhor a fazer é nos lançarmos nessa tarefa com vistas a descobrir o que Paulo está dizendo. Por toda essa passagem, ele tem em mente um trecho específico da Bíblia: Gênesis 1 a 3. Talvez você pense que, para descrever as maneiras pelas quais os seres humanos se opuseram aos propósitos de Deus, teria sido melhor começar por algo como os Dez Mandamentos. Bem, Paulo retornará a eles mais adiante (especificamente em 13:8-10). Mas, como veremos, existem problemas com relação à lei de Israel que não fazem dessa escolha a mais adequada para seus objetivos no momento. Ele quer delinear o caminho pelo qual os seres humanos violaram não apenas uma “lei” dada em algum ponto da história humana, como também a própria estrutura da ordem criada em sua essência. Paulo tem certeza de que essa estrutura existe, ou seja, de que a criação não é aleatória nem arbitrária. Ao tomar Gênesis 1 como a declaração teológica básica, ele vê os seres humanos como criados à imagem de Deus e recebendo responsabilidade sobre a criação não humana. Os seres humanos são ordenados a frutificar: eles devem celebrar, em sua complementaridade “macho e fêmea”, o abundante potencial gerador de vida do bom mundo de Deus. E são encarregados de trazer a ordem de Deus ao mundo, atuando como mordomos do jardim e de tudo o que se encontra nele. Machos e fêmeas são muito diferentes, e foram projetados para trabalhar juntos a fim de produzir, com Deus, a música da criação. Algo de muito profundo dentro da estrutura do mundo reage à união da parte com sua contraparte, algo que não pode ser alcançado pela mera junção da parte com a própria parte. Isso ajuda a explicar o fato, de outro modo confuso, de Paulo ter utilizado, como primeiríssimo exemplo do que vê como a corrupção da vida humana, a prática das relações homossexuais. Afinal, pensamos: por que ele teria escolhido justamente esse comportamento específico, colocando-o no topo da lista? A resposta não é simplesmente, como muitos sugerem, porque, como judeu, ele sentiria especial repulsa por esse comportamento — comportamento que muitas culturas pagãs adotavam e até mesmo celebravam, mas que o judaísmo sempre proibiu. Tampouco pelo fato de o próprio imperador Nero ser conhecido por entregar-se a práticas homossexuais e a diversas práticas bizarras heterossexuais, de modo que, assim, Paulo teria desejado apontar o dedo contra o sistema imperial e sua essência imoral apodrecida. Essa pode ter sido uma pequena parte de sua intenção, mas, com certeza, não é o ponto central. Nem mesmo, como alguns sugerem é o caso de, no mundo antigo, as relações homossexuais serem práticas normais da prostituição cultual ou uma questão de pessoas mais velhas explorando as mais jovens, ainda que ambas as práticas fossem um tanto comuns. Os “casamentos” homossexuais não eram desconhecidos, como se sabe do exemplo do próprio Nero. Platão apresenta uma extensa discussão do amor sério e duradouro que pode haver entre dois homens. O mundo moderno atribuiu vários nomes a esse fenômeno (“homossexual” ou “gay”; e sua contraparte feminina, “lésbica”). Esses rótulos imprecisos referem-se a uma ampla faixa de emoções e ações, sobre as quais seria ingênuo imaginar que só se tornaram conhecidas nas últimas gerações. Desse modo, o ponto levantado por Paulo não é simplesmente que “nós, judeus, não aprovamos isso”, ou que “relacionamentos dessa natureza são sempre desiguais e exploradores”. Seu ponto é o seguinte: “Não foi para isso que homens e mulheres foram criados.” Ele, igualmente, não está sugerindo que todos que se sentem sexualmente atraídos por pessoas do mesmo sexo, ou que todos que se envolvem em relações homossexuais, chegaram a isso por cometerem atos específicos de idolatria. Nem supõe que todos os que chegaram a esse ponto o fizeram por uma escolha deliberada de desistir das possibilidades heterossexuais. Ler o texto desse modo reflete um individualismo moderno, e não a perspectiva mais ampla e abrangente de Paulo. Antes, ele está falando da raça humana como um todo. O ponto que ele procura estabelecer não é o fato de “existirem alguns extremamente pervertidos por aí que praticam essas coisas revoltantes”, mas que “a existência dessas claras distorções do propósito “macho e fêmea” do criador no mundo indica que a raça humana como um todo é culpada de uma idolatria capaz de distorcer a natureza humana”. Ele vê a prática de relações entre pessoas do mesmo sexo como um sinal de que o mundo dos humanos, de maneira geral, está fora de ordem. O fato de estar fora de ordem, afirma ele,