Prévia do material em texto
32 LITERATURA E DIÁSPORA: PASSADO E PRESENTE Em um artigo de 1991, o cientista político e professor William Safran reportou-se à expansão do escopo dado ao vocábulo diáspora desde que Walker Conner, dentre outros, começou a usá-lo para referir-se a grupos de pessoas que viviam fora de sua terra natal. Tendo em vista que o termo passara, assim, a abarcar expatriados, imigrantes, exilados e todo tipo de grupos minoritários étnicos, ele sugeriu que essa definição fosse, então, aplicada às comunidades minoritárias de expatriados que tivessem, ao menos, as seguintes características: A. que esses sujeitos diaspóricos ou seus ancestrais tivessem sido dispersados de um centro original para duas ou mais regiões estrangeiras; B. que retivessem uma memória, visão ou mito sobre sua terra natal; que acreditassem ser impossível a sua aceitação pela sociedade hospedeira, da qual se sentissem parcialmente alienados; C. que considerassem a terra natal como o verdadeiro lar para onde deveriam voltar um dia; D. que alimentassem o desejo de restauração da terra natal e, finalmente, DESLOCAMENTOS ESPACIAIS, CULTURAIS E IDENTITÁRIOS NA LITERATURA CONTEMPORÂNEA 33 E. que mantivessem um elo permanente com seu lugar de origem, definido por uma consciência étnico-comunitária. Essa perspectiva de Safran surgiu como uma reflexão sobre o conceito original de diáspora, que esteve por séculos associado à diáspora judaica, desde que a Septuaginta, ou seja, a tradução grega dos textos hebraicos, reportou-se ao exílio dos hebreus utilizando o termo “diáspora”. Essa primeira conotação do termo vinculava-se à ideia de deslocamento forçado, bem como à memória de perseguição, sofrimento e genocídio. Havia também a tendência a assentamentos voltados à prática de uma religião e cultura comuns. A flexibilidade na utilização do termo permitiu que ele fosse também usado no caso dos deslocamentos em massa de africanos, durante o período de vigência do tráfico negreiro, bem como de afro-americanos no continente africano, de armênios, palestinos, ciganos, entre outros, com atenção especial a estes últimos pela sua característica nômade, que implica a ausência do mito do retorno à terra natal, que, para eles, é desconhecida. Conforme Robin Cohen (2008) nos faz lembrar, a perspectiva de Safran foi questionada por Floya Anthias, para quem o discurso diaspórico dedicou pouca atenção às divisões internas nas comunidades étnicas, ignorando as possibilidades de negociações culturais seletivas entre comunidades: [...] a falta de atenção dispensada à solidariedade transétnica, à de classe, aos movimentos sociais e à luta contra o racismo é bastante inquietante do ponto de vista do desenvolvimento da multiculturalidade e de noções mais abrangentes de pertencimento. Não é possível acomodar o discurso de antirracismo e mobilização social com DESLOCAMENTOS ESPACIAIS, CULTURAIS E IDENTITÁRIOS NA LITERATURA CONTEMPORÂNEA 34 uma feição transétnica (em oposição à transnacional) ao discurso da diáspora, que mantém sua dependência à “terra natal” e à “origem”, não obstante sua configuração. (ANTHIAS apud COHEN, 2008, p. 521) Avtar Brah, por seu turno, colocou em xeque o vínculo com a terra natal, que, em seu ponto de vista, tornou-se o desejo por um “lar”, transmutando-se em um lugar simbólico e reconhecidamente lírico: Onde está o lar? De um lado, “lar” é o local mítico de desejo na imaginação diaspórica. Nesse sentido, é o local do não-retorno, mesmo que seja possível visitar o território geográfico concebido como o lugar de “origem”. Por outro lado, lar é também a experiência vivida de um local. Seus sons e aromas, calor e poeira, noites aprazíveis de verão, ou a excitação da primeira caída de neve, noites geladas de inverno, céus cinzentos e sombrios em pleno meio dia… Tudo isso, mediado pelo cotidiano historicamente específico das relações sociais. (BRAH, 1996, p. 192) Cohen (2008) chama a atenção para essas críticas sociais e construcionistas, segundo as quais, no mundo pós-moderno, as identidades foram desterritorializadas e afirmadas de modo flexível e situacional. Desconsiderando a etimologia, a história, os limites, o significado e a evolução do conceito de diáspora, esses teóricos buscaram desconstruir dois dos elementos fundamentais da diáspora, lar ou terra natal e comunidade étnico-religiosa. Há, segundo o teórico, a coexistência de pelo menos três interpretações de terra natal, sólida, dúctil e líquida, DESLOCAMENTOS ESPACIAIS, CULTURAIS E IDENTITÁRIOS NA LITERATURA CONTEMPORÂNEA 35 ou seja, a versão primeira, ligada ao território, seguida de uma versão intermediária, com laços atenuados, e, por fim, uma versão que focaliza grupos étnicos que não têm os pontos convencionais de referência territorial, seja por serem nômades por excelência, ou por pertencerem a grupos diaspóricos desterritorializados, cujos lares são virtuais ou incertos. Essas concepções têm instrumentalizado os estudos sobre as relações entre a literatura e a diáspora na literatura contemporânea, que tanto focalizam os fluxos diaspóricos de ordem econômica, fomentados pela globalização, como aqueles que são resultados das crises que afetam o mundo hodierno, como as guerras e as perseguições religiosas e políticas. Um caso especial diz respeito às neonarrativas de escravidão, que se debruçam sobre o passado histórico e colocam em xeque os registros do arquivo, suscitando novas leituras acerca da diáspora africana, termo que foi usado pela primeira vez pelo historiador George Shepperson na década de 60, em um artigo apresentado no International Congress of African History na Universidade de Dar es Salaam, Tanzânia. Nesse evento, ele estabeleceu um paralelo entre a diáspora judaica e a dispersão de africanos como consequência do tráfico de escravizados. As neonarrativas surgiram na cena literária nos anos de 1960, nos Estados Unidos, quando o Movimento dos Direitos Civis, que visava abolir a discriminação e a segregação racial no país, ganhou vulto. Bernard Bell (1987), que cunhou o termo, definiu a nova vertente literária como “narrativas modernas, residualmente orais, de fuga da escravidão para a liberdade, que combinam elementos de fábula, lenda e narrativa escrava para protestar contra o racismo e justificar feitos, lutas, migrações e espírito dos negros”. Em The Afro-American Novel and Its DESLOCAMENTOS ESPACIAIS, CULTURAIS E IDENTITÁRIOS NA LITERATURA CONTEMPORÂNEA 36 Tradition, ele estabelece como marco a publicação do romance Jubilee, de Margaret Walker, em 1966. Coube a Ashraf Rushdy uma análise mais profunda do que viria a ser considerado um subgênero do romance. Em Neo- slave Narratives. Studies in the Social Logic of a Literary Form, publicado em 1989, ele caracteriza as neonarrativas de escravidão como textos contemporâneos “que assumem a forma, adotam as convenções e a voz em primeira pessoa das narrativas de escravos produzidas antes da guerra civil americana” (RUSHDY, 1999, p. 3). As slave narratives constituem um importante gênero narrativo, surgido no fim do século XVIII e desenvolvido ao longo do século XIX, que teve grande importância política na construção e expansão dos movimentos abolicionistas no Reino Unido, no Caribe de colonização britânica e nos Estados Unidos. Consistiam em registros autobiográficos de africanos ou afrodescendentes submetidos ao tráfico e/ou à escravidão atlântica. Sua finalidade primeira era denunciar os maus tratos infringidos aos escravizados e angariar simpatizantes para a causa abolicionista. Para tanto, além de imprimir ao texto um tom que despertasse a comiseração do público leitor, havia necessidade de seguir um certo padrão de publicação, cujas características são as seguintes: • a existência de um retrato gravado, assinado pelo narrador; • uma página de rosto queincluía os dizeres “Escrito por ele mesmo”, de modo a atestar a autoria; • um prefácio ou apresentação escrito por um abolicionista branco atestando a veracidade dos fatos narrados; • a narrativa começando por uma primeira frase iniciada com “eu nasci...” e depois especificando um local, mas não uma data de nascimento; DESLOCAMENTOS ESPACIAIS, CULTURAIS E IDENTITÁRIOS NA LITERATURA CONTEMPORÂNEA 37 • uma descrição superficial da paternidade, geralmente envolvendo um pai branco; • a descrição de um mestre cruel e da violência praticada contra os escravos; • relatos sobre leilões de escravos, de famílias sendo separadas e de mães perturbadas que se apegam aos filhos quando são arrancadas deles; • descrição de patrulhas, de tentativas fracassadas de escapar, de perseguição por homens e cães; • descrição de tentativas bem-sucedidas de escapar; • uso de um novo sobrenome, mas a retenção do primeiro nome como marca de continuidade da identidade individual, e • reflexões sobre a escravidão. Embora nem sempre todas essas características fossem concomitantes, a maioria das slave narratives seguia esse padrão. Na figura a seguir vê-se como essas narrativas eram apresentadas ao público. Figura 1 - Narrative of the Life Fonte: https://s26162.pcdn.co/wpcontent/uploads/ sites/2/2019/02/Douglass_Narrative_frontispiece__tp.jpg. DESLOCAMENTOS ESPACIAIS, CULTURAIS E IDENTITÁRIOS NA LITERATURA CONTEMPORÂNEA 38 Ao estabelecer um diálogo intertextual com as slave narratives, as neonarrativas de escravidão contribuíram para uma releitura do arquivo historiográfico sobre o sistema escravocrata e o desenvolvimento de um olhar crítico sobre os mecanismos de controle subjacentes à publicação desses primeiros relatos de escravizados. À medida que se estabeleceram como uma nova vertente narrativa no século XX, as neonarrativas foram também se diversificando na forma de abordagem do passado histórico e literário, permitindo-se uma maior flexibilidade quanto à estrutura da narrativa e à abordagem do tema da escravidão. Se, assim que surgiram como vertente romanesca, elas tinham a narrativa em primeira pessoa como condição sinequa non e adotavam um enfoque realista fundamentado em dados historiográficos, conforme sinaliza Valerie Smith (2007, p. 168), a partir da penúltima década do século XX, passaram a abordar a escravatura “de uma miríade de perspectivas”, compreendendo uma “variedade ampla de estilos”1, incorporando diferentes vozes narrativas e enveredando até mesmo pela ficção especulativa no intuito de produzir contranarrativas a partir de dentro de uma tradição literária. Segundo Judith Misrahi-Barak (2014), o efetivo reconhecimento das neonarrativas só ocorreu após o lançamento de Beloved, de Toni Morrison, em 1987. Esse diálogo entre passado e presente no que diz respeito às neonarrativas de escravidão pode ser bem exemplificado ao examinarmos, por exemplo, como a migração forçadaé representada em duas obras contemporâneas: O caminho de casa, de Yaa Gyasi, e Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves. 1 O texto em língua estrangeira é: “from a myriad perspectives”; “ variety of styles of writing”. DESLOCAMENTOS ESPACIAIS, CULTURAIS E IDENTITÁRIOS NA LITERATURA CONTEMPORÂNEA 39 O processo de desterritorialização imposto aos negros que foram capturados na África para serem escravizados na Europa e nas Américas consistiu em um ato de violência física cujo impacto afetou profundamente a subjetividade desses indivíduos. A perda do lugar antropológico, no sentido que lhe atribui Marc Augé (1994), que é identitário, relacional e histórico, provocou uma ruptura irreversível com tudo o que lhes oferecia uma ancoragem. Afastados da terra natal e de seus entes queridos, eles eram levados a centenas de quilômetros do interior até a costa e amontoados em locais insalubres por uma média de três meses antes de serem forçados a embarcar em navios negreiros para cruzar o Atlântico. A travessia da passagem do meio era traumática, não apenas pela violência de seus algozes, mas também pela fome e a doença que faziam com que muitos morressem a bordo e fossem atirados ao mar. Aqueles que sobreviveram levaram adiante suas culturas, crenças e o valor da liberdade. Entretanto, não há desterritorialização sem reterritorialização e, no caso da escravidão, esse processo ocorreu segundo a ótica dominadora do sistema escravocrata, que buscava cercear qualquer tipo de vínculo com a origem. Ainda que contra a vontade dos cativos, por uma questão de sobrevivência, havia a necessidade de interação e de adaptação ao novo território. O caminho de casa e O livro dos negros, embora distintos em termos de estrutura, abordam objetivamente a narrativa da captura e da migração forçada. O primeiro foi publicado em 2016 e se tornou um grande sucesso de crítica e de público, obtendo o prêmio PEN/Hermingway em 2017 de melhor romance de estreia. Yaa Gyasi, nasceu em Gana e migrou para os EUA ainda criança e, segundo entrevistas que concedeu, a inspiração para a escrita do romance surgiu durante a sua segunda visita a terra natal e, DESLOCAMENTOS ESPACIAIS, CULTURAIS E IDENTITÁRIOS NA LITERATURA CONTEMPORÂNEA 40 em particular, ao castelo de Cape Coast, uma fortificação de onde negros escravizados eram enviados para a América. Na condição de mulher negra, aquela foi mais do que uma experiência de pisar um sítio histórico, mas um momento de reflexão em que se colocou no lugar de tantos outros negros que ali estiveram na condição de cativos. Ao contrário do modelo usual de narrativas de escravos, que, via de regra, são narradas do ponto de vista de um narrador autodiegético e pela via da memória, o romance promove um descentramento, apresentando dois diferentes pontos de vista: o dos africanos que foram levados em cativeiro e o daqueles que permaneceram em Gana, ligados, de algum modo, aos ingleses. Para tanto, Gyasi cria duas personagens, que mesmo sendo irmãs por parte de mãe, jamais se encontraram. Effia fora concebida quando a mãe, Maame, era escrava de um membro da tribo Fanti e Esi quando, foragida, ela buscou acolhimento entre os axânti. O romance acompanha a trajetória de ambas e de seus descendentes por sete gerações, desde os anos de 1760 a 1990. A história é narrada em capítulos cujos títulos são os nomes de quatorze personagens, alternando os descendentes das duas linhagens matrilineares. Interessa-nos, em particular, a história de Esí, cujo trágico destino decorre de um ato de bondade. Sua tribo, os axânti, captura e escraviza pessoas de outras tribos. Quando Abronoma, a filha do chefe de uma tribo fanti é sequestrada e passa a servir sua mãe, Esí cede aos pedidos da jovem e envia uma mensagem informando seu paradeiro. Essa imprudência leva a um ataque dos guerreiros fanti, que incendeiam a aldeia e levam os sobreviventes como escravos. É por meio de Abronoma que Esí descobre a existência de uma meia-irmã: DESLOCAMENTOS ESPACIAIS, CULTURAIS E IDENTITÁRIOS NA LITERATURA CONTEMPORÂNEA 41 Sua mãe foi escrava de uma família fanti. Ela foi estuprada pelo senhor porque ele também era um Grande Homem, e os grandes homens podem fazer o que bem entenderem, para que não pareçam “fracos”, não é? Esi desviou o olhar, e Abronoma prosseguiu, num sussurro: – Você não é a primeira filha que sua mãe teve. Ela teve outra antes de você. E na minha aldeia nós temos um ditado sobre irmãs separadas. Elas são como uma mulher e a imagem do seu reflexo, condenadas a ficar cada uma de um lado do lago. (GYASI, 2017, p. 34) Após o ataque à sua aldeia, Esí tenta se esconder em uma bananeira, mas é descoberta e obrigada a seguir com seus captores: Ela foi amarrada a outros. Quantos, ela não sabia. Não viu ninguém do seu compound. Nem suas madrastas, nem seus meios- irmãos. Nem sua mãe. A corda em torno dos pulsos mantinhasuas mãos com a palma para fora, em súplica. Esi examinou as linhas daquelas palmas. Elas não levavam a parte alguma. Nunca tinha se sentido tão desamparada na vida. Todos andavam. Esi já andara léguas com o seu pai antes e achou que poderia aguentar. E, de fato, os primeiros dias não foram tão ruins, mas, no décimo dia, os calos nos seus pés já tinham estourado, e o sangue escorria, pintando as folhas que ela deixava para trás. À sua frente, as folhas sujas de sangue dos outros. Tantos choravam que era difícil ouvir quando os guerreiros falavam, mas ela não os teria entendido de qualquer maneira [...] Os mercadores batiam DESLOCAMENTOS ESPACIAIS, CULTURAIS E IDENTITÁRIOS NA LITERATURA CONTEMPORÂNEA 42 nas pernas deles com paus, fazendo com que andassem mais depressa. Durante quase a metade daquela semana, eles andaram tanto de dia como de noite. Aqueles que não conseguiam acompanhar o ritmo eram espancados com varas até que, como que por mágica, de repente eles conseguiam. (GYASI, 2017, p. 51) Esíé levada para o calabouço do castelo de Cape Coast, onde os negros que farão a travessia da passagem do meio são aprisionados. Sem que ambas saibam, as duas irmãs se encontram no mesmo espaço, pois Effia vive nas dependências do castelo que cabem ao governador inglês que a tomou por mulher. Durante a ocupação britânica, as jovens africanas que eram escolhidas pelos oficiais viviam maritalmente com eles, embora soubessem que tinham esposas e filhos na Inglaterra. Em The Fante and the Transatlantic Slave Trade, Rebeca Shumway (2011) afirma que essa prática visava a garantir a lealdade das tribos e era denominada panyarring, um vocábulo usado desde o século XVIII, que significava capturar bens ou pessoas. Ainda segundo a autora, essas jovens recebiam nomes ingleses, tendo suas identidades subtraídas. No calabouço, as mulheres capturadas eram mantidas presas, amontoadas em meio aos próprios excrementos: O CHEIRO ERA INSUPORTÁVEL [...] Esi estava no calabouço das mulheres no Castelo de Cape Coast havia duas semanas. Passou ali o seu aniversário de quinze anos [...] As paredes de barro do calabouço deixavam todas as horas iguais. Não havia sol. Havia escuridão de dia, de noite e em todos os momentos. Às vezes, eram tantos os corpos DESLOCAMENTOS ESPACIAIS, CULTURAIS E IDENTITÁRIOS NA LITERATURA CONTEMPORÂNEA 43 acumulados no calabouço das mulheres que todas elas precisavam ficar deitadas, de bruços, para que mais mulheres fossem empilhadas por cima. (GYASI, 2017, p. 27) Imunda como estava, Esí jamais poderia imaginar que seria alvo de um estupro. O soldado que a violenta se apropria do seu corpo com um sentimento antitético de atração e repulsa: Ele a pôs sobre um encerado dobrado, abriu-lhe as pernas e a penetrou. Ela deu um grito, mas ele lhe tapou os lábios com a mão. Depois, enfiou os dedos na sua boca. Mordê-los parecia que lhe dava prazer, e ela parou [...] Quando ele terminou, pareceu horrorizado, com nojo dela. Como se fosse dele que alguma coisa tivesse sido tirada. Como se fosse ele que tivesse sido violado. De repente, Esi soube que o soldado tinha feito alguma coisa que até mesmo os outros soldados condenariam. Ele olhava para ela como se o corpo dela fosse uma vergonha para ele. (GYASI, 2017, p. 77) Do calabouço do castelo de Cape Coast, ela passa pela “Porta sem retorno” e é arrastada pela areia até o barco que mudará sua vida para sempre. Na passagem a seguir, é descrito o sentimento de Esi no momento em que é levada à embarcação: Eles as levaram para a claridade. O cheiro da água do mar entrou pelo seu nariz. O sabor do sal grudou-se na sua garganta. Os soldados fizeram com que descessem até uma porta aberta, que dava para a areia e a água. E todas começaram a sair por ela. Antes de Esi sair, aquele chamado governador olhou para ela e sorriu. Era um sorriso simpático, DESLOCAMENTOS ESPACIAIS, CULTURAIS E IDENTITÁRIOS NA LITERATURA CONTEMPORÂNEA 44 compadecido, porém verdadeiro. Mas, pelo resto da sua vida, Esi veria um sorriso no rosto de um branco e se lembraria do sorriso que o soldado lhe deu antes de levá-la para seu alojamento; de como o sorriso de homens brancos significava simplesmente que mais maldade viria com a próxima onda. (GYASI, 2017, p. 42) Alçada à categoria de ponto turístico hoje em dia, a “Porta sem retorno” é um monumento à memória dos negros que por ali passaram a caminho dos navios. É um breve trajeto através do qual os cativos experimentaram o desespero por deixar para trás a terra natal, o medo de enfrentar o mar bravio e a angústia do desconhecimento do que os esperava além-mar. Figura 2 – Door of no return, Castelo de Cape Coast, Gana Fonte: http://abcnews.go.com/International/black- americans-reconnect-roots-emotional-tripsghanas-door/ story?id=76122759. O romance não narra a viagem por mar, mas a memória do não narrado eclode por meio da narrativa da filha de Esí, Ness, nascida em cativeiro, que se recorda das histórias apavorantes contadas pela mãe: DESLOCAMENTOS ESPACIAIS, CULTURAIS E IDENTITÁRIOS NA LITERATURA CONTEMPORÂNEA 45 Ness adormecia com as imagens de homens sendo jogados no oceano Atlântico, como âncoras presas a nada: nem terra, nem gente, nem valor. No Barco Grande, Esi dizia, eles eram postos em pilhas de dez pessoas; e quando um homem morria em cima de você, seu peso esmagava a pilha, como cozinheiras esmagando alho. A mãe de Ness, chamada de Cara Amarrada pelos outros escravos porque nunca sorria, costumava contar a história de como tinha sido amaldiçoada por uma Pequena Pomba, muito, muito tempo atrás, amaldiçoada e sem irmã, ela resmungava enquanto varria[...]. (GYASI, 2017, p. 110-111) A migração forçada também está presente no romance O livro dos negros, de Lawrence Hill, autor canadense, descendente de pastores episcopais que foram escravizados nos Estados Unidos. Constituído como um memoir, o romance é narrado a partir das lembranças da protagonista, que, já idosa, registra a própria história de modo a colaborar com os abolicionistas ingleses. O relato do presente torna o leitor ciente de que naquele momento ela está em Londres, no ano de 1802, e se questiona sobre a sua surpreendente condição de sobrevivente a todo o sofrimento que tivera de enfrentar ao longo da vida: “Deve haver uma razão para eu ter vivido em todas aquelas terras, sobrevivido a todas aquelas encruzilhadas, enquanto outros foram assassinados ou fecharam os olhos e simplesmente decidiram morrer” (HILL, 2014, Livro 1, Cap. 1, p. 8). O relato da captura de Aminata é similar ao de Esí em O caminho de casa. Ambas são brutalmente privadas de suas famílias e levadas cativas. Aminata, cujo pai era muçulmano e a ensinara a ler e a escrever em árabe, sequer podia rezar durante DESLOCAMENTOS ESPACIAIS, CULTURAIS E IDENTITÁRIOS NA LITERATURA CONTEMPORÂNEA 46 os dias e noites em que caminhara nua, junto a outros cativos, presa a um libambo, sem se alimentar: Na manhã seguinte, entre a primeira luz da manhã e o nascer do sol, tentei rezar novamente, mas outro captor bateu em mim com uma vara. Na noite seguinte, depois de mais uma surra, desisti de rezar. Eu havia perdido minha mãe, meu pai e minha comunidade. (HILL, 2014, Livro 1, Cap. 3, p. 41) Ciente de que o que lhe acontecera provocaria uma ruptura com tudo que lhe dava suporte como pessoa, Aminata promete a si mesma que jamais irá esquecer suas origens ou abdicar da sua identidade. Durante a caminhada, um jovem, chamado Chekura, que acompanha os captores, se aproxima dela e inicia uma conversa, contando-lhe que, após a morte dos pais, ele fora vendido pelo tio e que aquela era a terceira vez em que os raptores usavam-no para ajudar na caminhada dos cativos até a “grande água”, termo que usava para designar o oceano, que Aminata nunca virae que jamais esqueceria. Levada finalmente à praia, diante da imagem imponente do navio, ante o olhar de duvida do rapaz, ela afirma que voltará. Ao contrário do que ocorre em O caminho de casa, em que as referências à travessia do Atlântico são vagas, em O livro dos negros, elas são vívidas e a protagonista percebe que, caso sobreviva, precisará narrar sua experiência e pensa em si mesma como uma djeli, uma contadora de histórias tribal: Quando fui carregada escada acima e jogada, como um saco de farinha, no convés do navio dos toubabus, busquei conforto DESLOCAMENTOS ESPACIAIS, CULTURAIS E IDENTITÁRIOS NA LITERATURA CONTEMPORÂNEA 47 imaginando que era uma djeli, e que precisava ver e me lembrar de tudo. Meu propósito seria testemunhar e preparar-me para depor. Papai não deveria ter ensinado sua filha a ler e escrever em árabe. Por que quebrou as regras? Talvez soubesse que algo estava por vir, e quisesse que eu ficasse pronta. (HILL, 2014, Livro 1, Cap. 4, p. 61) Investida do papel de testemunha, na perspectiva que Émile Benveniste (1969) denominou superstes2, na velhice, a personagem narra os terríveis eventos que faziam com que os sobreviventes tivessem pesadelos. É em honra dos que não sobreviveram que ela se dispõe a narrar o horror: Ao contar minha história, lembro-me de todos os que não resistiram à bala de mosquete, aos tubarões e aos pesadelos; todos os que nunca encontraram um grupo de ouvintes, e os que nunca tocaram em uma pena e em um tinteiro” (HILL, 2014, Livro 1, Cap. 4, p. 62) A habilidade de Aminata para falar fulfulde e maninka a favorece, uma vez que é a única a bordo capaz de comunicar-se com alguns dos cativos. Ao entrar no porão imundo, cheio de negros amontoados como animais, sua reação é de terror e espanto: Os homens gritavam nas mais diversas línguas. Gritavam preces árabes, gritavam em fulfulde, em bamanankan e em outras línguas. Todos pediam as mesmas coisas: água, comida, ar, luz. Um deles clamava estar acorrentado a um morto. Sob a luz 2 Benveniste distingue dois tipos de testemunho: testis (terceiro), daquele que viu e testemunhou a cena dolorosa, ou superstes (primeiro), daquele que viveu e testemunha sua própria experiência. DESLOCAMENTOS ESPACIAIS, CULTURAIS E IDENTITÁRIOS NA LITERATURA CONTEMPORÂNEA 48 bruxuleante, pude vê-lo tocar o corpo inerte preso a ele, pé com pé. Gelei e quis gritar. Não, disse para mim mesma. Seja uma djeli. Veja e recorde-se. (HILL, 2014, Livro 1, Cap. 4, p. 69) Ciente de que o que testemunha é algo além da sua compreensão, embora não pertença a nenhuma casta que a habilite para tal, ela sente que a ela caberá narrar a tragédia que se abate sobre os escravos que viajam com ela naquele navio e se prepara para assumir a função social do djeli, que é ser depositário da palavra e transmissor da tradição: Um dia, se acaso voltar para casa, talvez façam uma exceção e permitam que eu me torne uma djeli, uma contadora de histórias. À noite, na aldeia, enquanto o fogo brilhasse e os velhos bebessem chá açucarado, visitantes viriam de longe para ouvir minha curiosa história. Para ser uma djeli, era preciso ter nascido em uma família especial. Eu desejava isso, pela honra de aprender e contar as histórias da nossa aldeia e de nossos ancestrais [...]. Dizia-se que, quando um djeli morria, a sabedoria de uma centena de homens morria com ele. (HILL, 2014, Livro 1, Cap. 4, p. 61) É possível perceber nas neonarrativas de escravidão certo tom que caracterizou os registros das diásporas clássicas, que tiveram na diáspora judaica o seu modelo, ou seja, o relato do trauma, da subjugação e de um movimento de resistência ao apagamento da cultura originária. O foco na memória é, assim, outro elemento inerente às neonarrativas, na medida em que há uma evocação da ancestralidade, da memória coletiva e étnica. DESLOCAMENTOS ESPACIAIS, CULTURAIS E IDENTITÁRIOS NA LITERATURA CONTEMPORÂNEA 49 Ao elaborar o conceito de lugares de memória, Pierre Nora afirmava que eles não têm referentes na realidade, mas são construídos devido à necessidade humana de criar arquivos, de preservar culturas, de transmitir modos de identificação e de pertencimento. Assim, em seu caráter polissêmico e sua liberdade ficcional, o texto literário constitui, também, um lugar de memória, onde é posta em prática uma das estratégias do ser humano para enfrentar a sua própria transitoriedade e reagir à fragilidade da lembrança. Portanto, na reelaboração da memória individual ou coletiva, o discurso literário assume um duplo sentido: inventar e inventariar. O livro dos negros é um romance em que há um intenso diálogo não apenas com eventos históricos, mas também com a memória étnica. Conforme registramos no artigo intitulado “A representação do sujeito diaspórico em o livro dos negros, de Lawrence Hill”, o título do livro se reporta a um documento histórico, “O livro dos negros”, um registro de escravos que colaboraram com a coroa durante a Revolução Americana1 (1775- 1783). Em agradecimento a esse apoio, muitos deles foram alforriados. No romance, o registro desses nomes cabe a uma escrava, a narradora Aminata Diallo, que se distingue dos demais por saber ler, falar e escrever muito bem em inglês. (CARREIRA, 2021, p. 388) A criar uma personagem cujas habilidades linguísticas tornam-se o seu passaporte para a liberdade, Hill desconstrói a ótica desumanizadora com que os escravizados eram vistos. DESLOCAMENTOS ESPACIAIS, CULTURAIS E IDENTITÁRIOS NA LITERATURA CONTEMPORÂNEA 50 Diferentemente, em O caminho de casa, o contato de Esí com a sua filha Ness se dá em um contexto em que toda espécie de transmissão cultural é proibida. Esí tentara ensinar à filha o seu idioma natal, comunicando-se com ela em twi, mas fora severamente punida por isso: Ele açoitou Esi cinco vezes para cada palavra em twi que Ness disse; e quando Ness, vendo sua mãe ser castigada, ficou apavorada demais para abrir a boca, ele deu cinco açoitadas em Esi para cada minuto de silêncio de Ness. Antes do açoitamento, sua mãe a chamava de Maame, em homenagem à própria mãe, mas o senhor tinha chicoteado Esi por isso também. Ele a tinha chicoteado até ela exclamar “Mygoodness!” – as palavras lhe escapando da boca, sem que ela pensasse, sem dúvida aprendidas com a cozinheira, que costumava dizê-las para assinalar cada frase. E como essas tinham sido as únicas palavras em inglês que saíram pela boca de Esi, sem ela lutar para encontrá-las, Esi acreditou que o que ela estava dizendo devia ter sido alguma coisa divina, como a dádiva de uma filha. Foi assim que aquele “goodness” virou apenas Ness. (GYASI, 2017, p. 59) Como as passagens selecionadas dos romances demonstram, as narrativas contemporâneas sobre a escravidão apresentam estruturas muito diversificadas, tanto em termos da voz narrativa quanto da temporalidade. Nesse aspecto, podemos afirmar que O livro dos negros se aproxima mais do padrão das slave narratives pela utilização do narrador em primeira pessoa, enquanto O caminho de casa recorre a uma narrativa genealógica em que a justaposição de histórias individuais DESLOCAMENTOS ESPACIAIS, CULTURAIS E IDENTITÁRIOS NA LITERATURA CONTEMPORÂNEA 51 dos descendentes de Effia e Esí, é feita por meio da ótica de um narrador em terceira pessoa. Essa diferença, no entanto, não compromete o efeito de real que buscam transmitir. Se, em O caminho de casa, Esí resiste à dureza de sua condição revestindo-se de uma aparente ausência de emoções, em O livro dos negros, Aminata é a voz que impede o esquecimento. O século XX não apenas assistiu a essa busca de reinterpretação das diásporas clássicas, mas foi, também, o cenário de surgimento de obras literárias voltadas para as diásporas contemporâneas, em consonância com a extensão do conceito às comunidadesde dispersão pós-coloniais e transnacionais. Na introdução ao primeiro número do periódico Diaspora, publicado em 1991, Khachig Tölölyan afirmava que o domínio semântico do termo diáspora estava sendo compartilhado com termos como migrante, expatriado, refugiado, trabalhador estrangeiro, exilado, e que, como resultado, as diásporas tinham se tornado as comunidades exemplares do momento transnacional. Dez anos depois, em um discurso proferido no lançamento do Oxford Diasporas Programme em junho de 2011, Khachig Tölölyan (2017), enfatizou que “a ascensão do termo ‘diáspora’ como um cognato para todas as dispersões é um processo complexo, produto da convergência de vários eventos autônomos”(2017, p. 25), dentre eles a emergência do termo Diáspora Africana, a rediasporização da etnicidade, ou seja, o desenvolvimento e a defesa de compromissos translocais com a pátria ancestral e com comunidades aparentadas em outros países; a aprovação, em 1965, da Lei Hart-Celler de Imigração e Nacionalidade nos Estados Unidos; e “a emergência e a valorização definitiva, dentro dos currículos universitários, das noções de identidade, diferença e diversidade como temas de investigação” (TÖLÖLYAN, 2017, p. 29). DESLOCAMENTOS ESPACIAIS, CULTURAIS E IDENTITÁRIOS NA LITERATURA CONTEMPORÂNEA 52 Tölölyan atribui o termo diáspora a comunidades de dispersos que desenvolvem uma variedade de associações que perduram ao menos até a terceira geração e não as reduz ao que Robin Cohen (1996) denominou victim diaspora, ou seja, a uma percepção da diáspora associada ao trauma e ao sofrimento. O autor argumenta que, embora para alguns grupos diaspóricos o genocídio e o etnocídio, o estupro e a expropriação sejam mais do que reais, eles não são parte da experiência das gerações diaspóricas subsequentes, que, geralmente, são herdeiras de uma “pós-memória” (HIRSCH, 2008), construída por meio de fotografias, relatos e fontes midiáticas diversas. Na literatura contemporânea, a memória de empréstimo tem sido abordada frequentemente e um dos exemplos mais recentes pode ser encontrado no celebrado romance de estreia de Yaa Gyasi (2017), O caminho de casa. Para Tölölyan, a realidade da experiência diaspórica contemporânea é outra, e [...] um conjunto de migrantes transnacionais se torna uma diáspora quando seus membros desenvolvem alguma distância familiar, cultural e social para com sua nação, embora continuem a se preocupar profundamente com ela, não só em termos de parentesco e filiação, mas pelo compromisso com certas afiliações conscientes. (TÖLÖLYAN, 2017, p. 35) Nesse caso, há o abandono do nacionalismo do exílio em favor do transnacionalismo diaspórico e de identidades múltiplas e flexíveis que podem ser configuradas conforme a necessidade. Ainda segundo o autor, após várias gerações, o sujeito diaspórico “já não se sente comprometido por causa de vínculos de parentesco e memórias pessoais”, “é agora um cidadão em seu DESLOCAMENTOS ESPACIAIS, CULTURAIS E IDENTITÁRIOS NA LITERATURA CONTEMPORÂNEA 53 ‘novo’ país, possui uma cultura e identidade híbridas ou, pelo menos, desenvolveu uma confortável competência bicultural” (TÖLÖLYAN, 2017, p. 35). As narrativas ficcionais sobre as diásporas contemporâneas apontam na direção desse hibridismo cultural. Autores como Chimamanda Ngozi Adichie, Taiye Selasi e NoViolet Bulawayo, dentre outros, têm inserido no universo ficcional questões relacionadas ao processo de integração dos sujeitos dessas novas diásporas aos países de acolhimento. Não se pode, no entanto, ignorar que a amplitude dada contemporaneamente ao termo diáspora abrange também a complexa situação do refúgio, e não são poucas as obras ficcionais que o abordam em suas diferentes feições, ora na ótica de quem parte movido pela esperança, ora por meio da evocação da memória traumática do trânsito, ora por meio do relato de quem espera ser aceito em um novo país. A ficção sobre a diáspora, portanto, seja na perspectiva tradicional ou na ótica dos deslocamentos contemporâneos, tem se mostrado profícua e, diante da crescente massa de sujeitos em trânsito, parece estar longe do esgotamento. O impacto causado pelos inúmeros naufrágios de embarcações frágeis a transportar pessoas que buscam escapar da guerra e da fome em seus países natais tem gerado uma espécie de boom de narrativas sobre refugiados. Dentre elas, a título de exemplo, nos reportaremos ao conto “Meu mar(fé)”, de Itamar Vieira Junior, e à sensível narrativa poética de Khaled Hosseini, em A memória do mar. Hosseini é o aclamado autor de O caçador de pipas, obra que o alçou à fama. Nascido em Cabul e filho de um diplomata e de uma professora, o autor e sua família estavam na França quando DESLOCAMENTOS ESPACIAIS, CULTURAIS E IDENTITÁRIOS NA LITERATURA CONTEMPORÂNEA 54 houve a invasão soviética no Afeganistão. Impedida de retornar ao país natal, a família obteve asilo político nos Estados Unidos, onde Hosseini estudou, formou-se em medicina e vive até hoje. Seu primeiro romance, publicado em 2004, obteve um estrondoso sucesso e a ele se seguiram A cidade do sol (2007) e O silêncio das montanhas (2013). Os três romances abordam questões sensíveis, como o exílio, o refúgio e os laços com a terra natal. Em A memória do mar, obra dedicada a crianças, Hosseini se inspira na trágica história do menino Alan Kurdi, um refugiado sírio de três anos de idade que se afogou no mar Mediterrâneo quando tentava chegar à segurança da Europa. Na obra, um pai, prestes a empreender a viagem pelo mar com seu filho pequeno, rememora as coisas preciosas e simples da sua infância e lamenta que seu filho só tenha conhecido o medo da guerra, da violência: “Você aprendeu a encontrar mães, irmãs e colegas de escola, em vãos estreitos entre o concreto, tijolos e vigas expostas, pequenos retalhos de pele banhados pelo sol, brilhando no escuro” (HOSSEINI, 2018, p. 15). O texto dá a entender que a mãe da criança foi uma das vítimas dessa violência: Sua mãe está aqui com a gente esta noite, Marwan, nesta praia fria e enluarada, entre os bebês que choram e as mulheres que lamentam em línguas que não falamos. Afegãos, somalis, iraquianos, eritreus e sírios. Todos nós ansiosos pelo nascer do sol, todos nós com medo desse mesmo momento. Todos nós à procura de um lar. Ouvi dizer que somos indesejados. Que não somos bem-vindos. DESLOCAMENTOS ESPACIAIS, CULTURAIS E IDENTITÁRIOS NA LITERATURA CONTEMPORÂNEA 55 Que deveríamos levar nosso infortúnio à outra parte. (HOSSEINI, 2018, p. 18) De um modo objetivo e simples, o autor descortina o drama daqueles que estão para partir. O pai teme o futuro, o que pode acontecer com todos eles, e se ressente por ter dito ao filho uma mentira consoladora: Eu disse a você: “Segure minha mão. Nada de mal vai acontecer”. São só palavras. Truques paternos. Que destroem o seu pai, a fé que você tem nele. Porque tudo o que posso pensar esta noite é em como o mar é profundo, como é grande, como é indiferente. Como sou impotente para proteger você de suas ondas. Tudo o que posso fazer é rezar. (HOSSEINI, 2018, p. 22-23) O pai de Marwan sabe que aquela embarcação levará o que há de mais precioso para ele: o seu filho. E reza para que o mar saiba disso. Diferentemente, o conto de Itamar Vieira Junior (2021), voltado para um público adulto, carrega nas tintas nesse cenário das histórias de quem parte. O autor se consagrou como escritor ao vencer o prêmio Leya de 2018, que possibilitou a publicação do romance Torto arado, sucesso absoluto de crítica e público, que arrebatou também os prêmios Jabuti e Oceanos de 2020. Doramar ou a Odisseia, uma coletânea de narrativas curtas, DESLOCAMENTOS ESPACIAIS, CULTURAIS E IDENTITÁRIOS NA LITERATURA CONTEMPORÂNEA 56 foi lançado em 2021, e inclui alguns contos que já haviam sido publicados em A oraçãodo carrasco (2017), vencedor do Prêmio Humberto de Campos da União Brasileira de Escritores: seção Rio de Janeiro biênio 2016-2017. Dentre os contos dessa coletânea, que versa sobre temas muito presentes na literatura contemporânea, pela importância histórica e social, há narrativas que envolvem os deslocamentos de personagens, como “Alma” e “Meu mar (fé)”. Esta última está centrada em uma personagem refugiada, uma senegalesa anônima que saiu de Dakar escondida em um container, juntamente com seu companheiro e mais quatro imigrantes, para buscar refúgio na Bahia. O anonimato da personagem aponta para a experiência coletiva dos milhares de migrantes que tentam, por via marítima, chegar a um país onde possam refazer suas vidas. Muitos, como a protagonista do conto, enfrentam a travessia como clandestinos. A vida do casal em sua cidade de origem era difícil e a dificuldade de conseguir emprego foi determinante para a partida, como mostra a passagem a seguir: Andávamos todos os dias nas praias de Dakar, nos arredores dos hotéis e restaurantes, enterrando os pés na areia. Procurávamos trabalho. Entrávamos no mar ao fim da tarde e agitávamos os braços na água, observando-a alcançar o céu. Secávamo- nos nos restos de luz, e então voltávamos para Baraka, caminhávamos na escuridão por suas ruas arruinadas, seu chão de terra, suas casas se desmanchando como uma colmeia que se renova. Baraka estava cercada de boas casas, dos poucos prósperos de nosso país. Foi quando veio a proposta de partir para a América, para o outro lado do DESLOCAMENTOS ESPACIAIS, CULTURAIS E IDENTITÁRIOS NA LITERATURA CONTEMPORÂNEA 57 oceano, atravessando num navio de carga, escondidos num contêiner. Vendemos a casa que habitávamos, a outra casa que herdamos de seu pai e que rendia o parco para nos saciar a fome, para pagar a travessia até o porto da Bahia. Desembarcaríamos depois de muitos dias sem ver a terra e com a memória dos muito poucos fios de luz que nos chegavam ao longo da viagem. No contêiner, éramos seis pessoas, jovens, cinco homens e somente eu, mulher, que conhecemos o inferno da travessia. O alimento terminou antes de nossa chegada, o calor sufocante nos enchia de cansaço e mal-estar. Havia o medo de que fôssemos descobertos, havia o balanço da pesada embarcação no mar aberto, quebrando ondas, havia o perfume nauseante da maresia. (VIEIRA JR., 2021, p. 97-98) A dor da partida sem certeza do retorno, o perigo da travessia, a precariedade com que a suportaram evocam a viagem transatlântica de escravizados pela passagem do meio. O conto conjuga a temática contemporânea da migração à memória da diáspora africana: Deixávamos nosso país para trás, sem a esperança de voltar em breve. Deixávamos tudo com melancolia, sem sorrisos, sem conseguir dormir, sem banho, com dores pelo corpo nascidas das ausências, o silêncio muito incômodo que nos impúnhamos para não levantar suspeitas de que havia ilegais naquela embarcação de bandeira estrangeira [...] Nossa respiração estava carregada do ar que quase não se renovava em nossos pulmões, o cheiro do vômito, o DESLOCAMENTOS ESPACIAIS, CULTURAIS E IDENTITÁRIOS NA LITERATURA CONTEMPORÂNEA 58 cheiro da distância, carregada pelo destino. Éramos uma garrafa boiando na água, e um grande peixe nos engolia calmamente. (VIEIRA JR., 2021, p. 98) Vieira Junior é doutor em Estudos Étnicos e Africanos (UFBA) e a negritude e a ênfase em personagens femininas são recorrentes em sua obra. No conto, a narradora e seu companheiro partem em busca de uma vida melhor, embora cientes dos riscos que correm. Durante a travessia, são descobertos. A punição que sofrem é terrível: os homens são espancados, a mulher é estuprada e, posteriormente, todos são atirados ao mar. Expulsos, assim, do navio “Esperança”, são lançados à própria sorte: Promoveram as maiores humilhações, tocaram em meu queixo, tocaram em meu seio, me levaram para um lado de luz da embarcação enquanto batiam em você e nos outros homens. Eu também não escapei da violência, machucaram meu supercílio, entraram em mim, contei, quatro homens cheios de ódio deitaram sobre mim, à deriva no navio que chamamos de Esperança, morderam minha pele suja e urinaram sobre meu corpo. Assim nos despedaçaram até nos lançarem ao mar. Era o começo de uma manhã e eu via em seus olhos a vontade de nos ver morrer afogados. Apagariam nossas vidas como muitas já haviam sido apagadas e continuam a apagar nas embarcações de imigrantes e refugiados. (VIEIRA JR., 2021, p. 99) A imagem dos negros sendo atirados ao mar está presente não apenas nos relatos de ex-escravizados, mas também na ficção DESLOCAMENTOS ESPACIAIS, CULTURAIS E IDENTITÁRIOS NA LITERATURA CONTEMPORÂNEA 59 contemporânea sobre a escravidão. Vieira Junior recupera, assim, esse episódio trágico da história humana. E o faz na ótica de uma mulher negra, desfavorecida, que narra a sua experiência dolorosa na forma de um monólogo, embora entremeado por um discurso endereçado ao seu companheiro, que, na tentativa de ajudar um dos homens que afundava, descumpre a regra que ele mesmo estabelecera: que ficassem longe uns dos outros, para que o medo não os levasse para o fundo. Em seu desvario, a narradora acredita que ele está submerso, quieto, por medo das pessoas que estão em uma embarcação que se aproximara e que lançam boias aos sobreviventes; porém, o texto sugere que ele morreu afogado. A rememoração da narradora evoca o destino dos sujeitos da diáspora africana: Atravessamos oceanos há séculos, através das águas, partindo do continente do lado de lá. Partimos de muitas terras. Partimos de muitos lugares, de diferentes cores, de diferentes vozes, de diferentes falares, por diferentes ondas, de terra e de mar, de florestas e de savanas, de planícies e de montanhas. Partimos muitas vezes acompanhados de multidões, partimos em pequenos grupos, mas quase sempre partimos conosco. Partimos para fecundar a América. Partimos para perecer na América. Nascimento e morte: América. Viajamos o Atlântico, viagem nunca desejada, quase nunca sonhada, mas quase sempre necessária. Deixamos histórias, carregamos histórias, tudo o que o trazemos é o que pode ser comportado em nosso espírito, para que nossa terra não se acabe, para que floresça e seja presente, para que, talvez daqui a DESLOCAMENTOS ESPACIAIS, CULTURAIS E IDENTITÁRIOS NA LITERATURA CONTEMPORÂNEA 60 alguns anos ou séculos, possamos regressar e refundar nossas vidas, unir os fios partidos e caminhar sobre as águas. (VIEIRA JR., 2021, p. 101) Levada ao abrigo de uma igreja, ela se recusa a seguir com os homens que os acompanharam na travessia, certa de que o marido surgirá de repente. Assim como não conseguira explicar àqueles que a resgataram que o marido estava no mar, ela não tem como fazer as pessoas entenderem que precisa ficar à espera. Uma das barreiras mais sérias para o imigrante é a linguística. Desde a travessia, ela tentara se comunicar, ora em crioulo, ora em francês. A incomunicabilidade acentua a sua solidão: “eu permanecia falando ao vento. Como uma árvore que nada escuta, que não escuta ninguém, plantada indiferente e estoica à sua espera” (VIEIRA JR., 2021, p. 101). Em meio ao sofrimento, ela consegue um contato precário com outra mulher, a haitiana Dominique, que estava no abrigo há cerca de um ano e esperava encontrar o marido que viera antes para o Brasil. A busca de uma forma de interação social, etapa necessária à adaptação do imigrante, se traduz em uma complexa interlíngua: “ela fala o crioulo da terra dela, eu falo o crioulo de nossa terra, são línguas diferentes. Então juntamos os pedaços com um francês muito ruim e com o português que começamos a aprender”. (VIEIRA JR., 2021, p. 102-103). O pouco português que aprendem lhes dá a breve sensação depertencimento: “de que aos poucos passaremos a pertencer a esta terra” (VIEIRA JR., 2021, p. 103). Dominique tinha dinheiro suficiente para encontrar o marido em São Paulo, mas, na fronteira entre o Brasil e o Peru, o coiote exigiu mais dinheiro, ameaçando abandoná-la na selva DESLOCAMENTOS ESPACIAIS, CULTURAIS E IDENTITÁRIOS NA LITERATURA CONTEMPORÂNEA 61 com os outros haitianos. Essa experiência a torna mais esperta nas interações com os da terra e ela procura advertir a narradora em relação ao que pode esperar: Dominique me disse que eu não devo ter muita esperança nem contar com muita bondade por parte dos brasileiros. Falou que o preconceito contra nossa cor e nossa origem é muito forte por aqui. Ela compreende mais o português porque chegou há mais tempo e me fala coisas que eles fazem sorrateiramente, mas que ela já pôde notar. Dominique falou que mesmo os negros daqui sofrem discriminação. Ela me disse, enquanto andávamos pelas ruas até a calçada onde estendemos nossas mercadorias: “Olhe ao seu redor e veja onde estão os brancos e onde estão os pretos”, eu observava então os edifícios e ela continuava dizendo: “Olhe à sua volta e veja como estão separados, como eles andam afastados, como as mulheres negras andam atrás das suas patroas, segurando suas crianças. Olhe para as pessoas que tentam trabalhar e vão para a rua vender seus materiais, são quase todas como nós”. Ela andava rápido, mas atenta a todos os passos, “Já observou quem atende os portões dos prédios? Quem guarda os carros nas ruas? Quem dirige os ônibus?”, olhava para mim com os olhos vivos, “Sabia que as empregadas não podem usar os banheiros das patroas? Os engenheiros no Brasil cuidam de fazer um banheiro só para elas”, e concluía com pesar: “Aqui negro é um cidadão de segunda classe. Como nos Estados Unidos. Como na DESLOCAMENTOS ESPACIAIS, CULTURAIS E IDENTITÁRIOS NA LITERATURA CONTEMPORÂNEA 62 Europa” [...] os pobres, aqui, diferente do Haiti ou do Senegal, tinham cor. (VIEIRA JR., 2021, p. 104) Vieira Junior traz à baila a questão do racismo estrutural (ALMEIDA, 2019), introjetado nas relações políticas, econômicas e até familiares. Ainda assim, como De Haas (2021) nos faz lembrar, esses imigrantes ilegais “estão dispostos a suportar situações de exploração e sofrimento, por mais injustificadas que sejam do ponto de vista moral e ético”.3 Ao conceder voz a personagens periféricas, Vieira Junior mostra o olhar a partir das margens, descentrando a ótica hegemônica, o modo como esses sujeitos interpretam o Brasil e a sua própria condição: Dominique me conta histórias que viu e escutou de muitas pessoas que continuam a chegar por aqui: de lugares destruídos pela natureza, de pessoas que fugiam do narcotráfico, e continuam a chegar de lugares devastados por guerras no Oriente, de nosso continente, fugindo das crises econômicas e dos conflitos internos. São muitos rostos, em sua maioria de jovens e crianças, pessoas que dão tudo que têm para embarcar, por mar ou terra, cheios de sonhos, mas que enfrentam toda sorte de adversidades, violência, exploração. “Um imigrante aqui vale muito menos que um nativo, eles acham que valemos qualquer coisa e exigem de nós uma carga de trabalho que muitos deles não têm. Mas, ainda assim, é melhor estar aqui para 3 No original: “they are therefore willing to endure situations of exploitation and suffering, however unjustified these may be from a moral and ethical point of view”. DESLOCAMENTOS ESPACIAIS, CULTURAIS E IDENTITÁRIOS NA LITERATURA CONTEMPORÂNEA 63 ter condições de sobreviver do que continuar onde estávamos, onde muitas vezes não nos resta nada”. (VIEIRA JR., 2021, p. 105) Quando Dominique finalmente reencontra o marido e parte, cabe à narradora o retorno à solidão, à espera infinita pelo amado que ainda imagina vivo e tentando ir ao seu encontro, à qual soma-se mais uma, quando ela descobre estar grávida. A voz que, no início da narrativa, revela que vai todos os dias à praia para tentar encontrar o companheiro perdido, cede à evidência da espera infrutífera e informa a decisão de ir ao encontro dele: Caminho decidida em direção à praia, para o mesmo lugar em que desembarquei, onde você deveria ter aparecido faz muito tempo, e não posso mais esperar, preciso eu mesma fazer o trabalho de busca, qualquer dia eles negam mais uma vez a reconsideração de meu pedido de residência, então serei deportada de volta para Dakar [...] empurro com meus braços pequenos o menor barco, com a força de muitos homens, deixando um rastro na areia [...] o barco encontra o mar e eu o levo com sua ajuda, mar, para longe, o ventre me dói nessa hora, mas preciso voltar para encontrá-lo. Você está perdido lá, onde o deixamos [...] Vou seguindo decidida para onde nossas vidas se interromperam [...] Não posso cuidar desse filho sozinha, eu deixei que ele vingasse pela certeza de que você estava a caminho. [...] Afundo lentamente, a barriga é um peso, uma respiração. Desço cada vez mais, você não aparece, desço, desço, até que meu corpo, sozinho – queria permanecer descendo –, toma um impulso DESLOCAMENTOS ESPACIAIS, CULTURAIS E IDENTITÁRIOS NA LITERATURA CONTEMPORÂNEA 64 para subir, para respirar de um só fôlego tudo que não havia respirado desde que cheguei aqui, desde que nossos sonhos ruíram nesse lugar de mentiras. (VIEIRA JR., 2021, p. 110) Em sua análise de “Meu mar (fé)”, Pedro Dorneles da Silva Filho demonstra a existência de diversos intertextos no conto, ressaltando, dentre eles, o diálogo intertextual com Mar morto, de Jorge Amado na passagem mencionada, em que a força destruidora do mar confronta-se com o ímpeto de vida da personagem. Dividida entre a vontade do reencontro e o instinto de sobrevivência, a narradora vem à tona e é salva por pescadores: Um barco com dois homens se aproxima, um deles se lança à água para me ajudar, não sei dizer em sua língua que preciso descer para o fundo, que preciso encontrá-lo, que meu desespero é grande e que eu não posso mais ficar esperando até que você queira aparecer, queira estar comigo. O pescador arrasta meu corpo até o barco de onde saltara, falam muitas coisas que não consigo compreender, um deles sobe no barco que retirei da areia, e os dois barcos voltam para a praia, comigo, banhada de mar, sem nada para me aquecer, qualquer coisa para consolar... (VIEIRA JR., 2021, p. 110) Ao fim do conto, a voz narrativa não mais se dirige ao amado perdido, mas ao mar, a quem apresenta seu filho, atribuindo-lhe a paternidade: Nosso filho nasceu e eu vejo nos olhos dele o reflexo dos seus. Passo alguns dias sem ir à praia, e, num dia de sol, sigo ao seu encontro. Vou apresentar nosso filho, mar, DESLOCAMENTOS ESPACIAIS, CULTURAIS E IDENTITÁRIOS NA LITERATURA CONTEMPORÂNEA 65 porque ele é seu filho também. Eu o levanto e seus olhos se fecham pelo dia iluminado em que estamos. Apresento meu filho ao seu pai, na língua que eles falam e que aprendo aos poucos, o mar é masculino. O mar é seu pai, digo ao meu filho, e não faço muito esforço para que ouça o barulho das ondas que quebram aos nossos pés. Ele me trouxe até aqui e a você também. Ajoelho na areia, espero uma onda chegar quieta como uma manta que recobre nossos corpos, pego um pouco d’água, molho a moleira dele, vejo pequenos cristais de sal brilhando em sua fronte. O mar me irrompeu como um grande f luxo e gerou você. Irrompeu ora sereno, ora violento. Ele me acompanhou em meu passado e me acordou por muitas manhãs na nova terra, que agora será sua terra, para me trazer a esperança da chegada, mar. (VIEIRA JR., 2021, p. 110-111) Em um desfecho sutil, o conto aponta para a integração à nova terra. O mar, que lhe roubara a esperança no fatídico dia em que foram jogados do navio, é agora quem a traz devolta, do modo mais inesperado, por meio do filho gerado em meio ao trauma. Wander Melo Miranda (2021), em sua recensão à coletânea de contos, atribui-lhe o epíteto de épica dos excluídos, pois a cada protagonista cabe vivenciar uma odisseia. No caso da narradora de “Meu mar (fé)”, ao fim das peripécias, não há o retorno a casa, mas a possibilidade de fazer do chão que habita o seu novo lar. Há que ressaltar, ainda, a existência de obras, como o memoir ficcional Refuge: A Novel, de Dina Nayeri (2018), que abordam, em particular, a fase do asilo ao refugiado, as dificuldades encontradas por ele no local de abrigo, bem como um DESLOCAMENTOS ESPACIAIS, CULTURAIS E IDENTITÁRIOS NA LITERATURA CONTEMPORÂNEA 66 retorno possível ao país natal. Nayeri passou por essa experiência aos oito anos de idade, quando sua mãe precisou deixar o Irã pós-revolucionário devido a uma ameaça de morte por ter se convertido ao Cristianismo. O irmão de Nayeri acompanhou-as na fuga, mas seu pai permaneceu no Irã. Antes de conseguir asilo nos Estados Unidos, a família buscou abrigo em Dubai e Roma, portanto, a experiência das personagens do romance é pautada na vivência da autora. O gênero memoir tem se consolidado como uma importante forma de registro da experiência do refúgio, entretanto, a memória é lacunar, visto que não há como retratar fielmente algo que já aconteceu. A evocação de uma lembrança conta com a imaginação para complementar os traços que foram apagados pelo tempo. A narrativa do refúgio é, portanto, uma escrita migrante, gestada entre a memória e a imaginação, tendo como pano de fundo as crises econômicas e humanitárias dos séculos XX e XXI. Se, no passado, o conceito de diáspora era atrelado a circunstâncias específicas que envolviam o deslocamento forçado e o trauma, não se pode dizer o mesmo das diásporas contemporâneas, desencadeadas por múltiplos fatores, mas para uma parcela dessa massa de pessoas em trânsito, essa primeira definição ainda encontra consonância: aqueles que, tendo abandonado a terra natal sob intenso sofrimento, ainda buscam um lugar de refúgio. DESLOCAMENTOS ESPACIAIS, CULTURAIS E IDENTITÁRIOS NA LITERATURA CONTEMPORÂNEA 67 Referências ALMEIDA, Silvio. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019. (Coleção Feminismos Plurais). AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da sobremodernidade. Tradução de Lúcia Mucznik. Rio de Janeiro: Bertrand Editora, 1994. BELL, Bernard W. The Afro-American Novel and Its Tradition. Amherst: University of Massachusetts Press, 1987. BRAH, Avtar. Cartographies of diaspora: contesting identities. London: Routledge, p. 192, 1996. BENVENISTE, Émile. Vocabulaire dêsintitutions indo-européenes: 2. Pouvoir, droit, religion. Paris: Les Editions de Minuit, 1969. CARREIRA, Shirley de S. G. A representação do sujeito diaspórico em o livro dos negros, de Lawrence Hill. Ilha do Desterro. Florianópolis: Programa de Pós-Graduação em Letras: Inglês e Literatura Correspondente, n. 1, v. 74, p. 385-404, jan./abr., 2021. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ides/a/ ncLG3kcpmRp6pVTFCJZ7R5k/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 10 jan. 2023. COHEN, Robin. Diasporas and the Nation-State: From Victims to Challengers. Ethnicity and International Relations. n. 3, v. 72, p. 507- 520, jul., 1996. Disponível em: https://doi.org/10.2307/2625554. Acesso em: 05 jun. 2021. COHEN, Robin. Sólidas, Dúcteise Líquidas: noções em mutação de “lar” e “terra natal” nos estudos da diáspora. Caderno CRH, Salvador: EDUFBA, n. 54, v. 21, p. 519-532, set./ dez., 2008. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0103- 49792008000300008. Acesso em: 21 abr. 2021. DE HAAS, Hein. A theory of migration: the aspirations capabilities framework. Comparative Migration Studies. Berlim: Springer Nature, n. 8, v. 9, 2021. GONÇALVES, Ana Maria. Um defeito de cor. Rio de Janeiro: Record, 2006. DESLOCAMENTOS ESPACIAIS, CULTURAIS E IDENTITÁRIOS NA LITERATURA CONTEMPORÂNEA 68 GYASI, Yaa. O caminho de casa. Editora Rocco, 2017. HILL, Lawrence.O livro dos negros. Tradução de Dina Blaj Shaffer. São Paulo: Primavera Editorial, 2014. HIRSCH, Marianne. The Generation of Postmemory. Poetics Today. New York: Duke University Press, n. 1, v. 29, p. 103-28, 2008. HOSSEINI, KHALED. A memória do mar. Tradução de Pedro Bial. Porto Alegre: Globo Livros, 2018. MIRANDA, Wander M. Itamar Vieira Junior e Doramar: sobre uma épica dos excluídos. Literafro: o portal da literatura afro-brasileira. Belo Horizonte: Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade –, da Faculdade de Letras da UFMG, 9 out,2021. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/resenhas/ficcao/1593-itamar- vieira-junior-e-doramar-sobre-uma-epica-dos-excluidos. Acesso em: 12 mar. 2023. MISRAHI-BARAK, Judith. Post-BelovedWriting: Review, Revitalize, Recalculate. Black Studies Papers, n. 1, v. 1, 2014. MORRISON, Toni. (1987). Beloved. New York: Vintage Books, 2004. NAYERI, Dina. Refuge, a novel. Riverhead Books, 2018. RUSHDY, Ashraf H. Neo-slave Narratives. Studies in the Social Logic of a Literary Form. Oxford: Oxford University Press, p. 3, 1999. SAFRAN, William. Diasporas in modern societies: myths of homeland and return, Diaspora. Toronto: University of Toronto Press, v. 1, n. 1, p. 83-99, 1991. Available at: https://utpjournals. press/doi/10.3138/diaspora.1.1.83. Accessed on: 12 Jan. 2021. SILVA FILHO, Pedro D. da. Travessias marítimas, diálogos de dor antiga: Uma proposta de leitura do conto “Meu mar (fé)”, de Itamar Vieira Júnior. Revista Tabuleiro de Letras. Bahia: PPGEL, v. 17, n. 1, p. 46-55, jan./jun., 2023. SHUMWAY, Rebecca. The Fante and the Transatlantic Slave Trade.Rochester: University of Rochester Press, 2011. SMITH, Valerie. Neo-slave narratives. In: FISCH, Audrey (Ed.). The Cambridge Companion toThe African American Slave Narrative. Cambridge: Cambridge University Press, p. 68-185, 2007. DESLOCAMENTOS ESPACIAIS, CULTURAIS E IDENTITÁRIOS NA LITERATURA CONTEMPORÂNEA 69 TÖLÖLYAN, Khachig. Rethinking diaspora(s): stateless power in the transnational moment. Diaspora: a journal of transnational studies. Toronto: University Press of Toronto, n.1, v.5, p. 3-36, 1996. TÖLÖLYAN, Khachig. Estudos da diáspora: passado, presente e promessa. Translatio. Porto Alegre: Núcleo de Estudos de Tradução Olga Fedossejeva, n. 13, p. 22-39, jun., 2017. Disponível em: https:// seer.ufrgs.br/index.php/translatio/article/view/73758/42065. Acesso em: 10 dez. 2021. VIEIRA JR., Itamar. Doramar ou a odisseia. Todavia. Edição do Kindle, 2021.