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AULA 11 MOD 3 Os Povos Indígenas do Brasil AUTORIA Que o Brasil é um país miscigenado é fato, mas essa miscigenação nem sempre fora exaltada. Os encontros de nossas matrizes formadoras, indígenas, portugueses e negros, não foram pacíficos. Muito pelo contrário: trata-se de uma história de práticas violentas e escravidão. Isso legou um preconceito que gerou desconhecimento a respeito de nossas heranças indígenas e africanas. Nesta fase de nosso percurso, convido você a debruçar sobre a história dessas populações, ou melhor, a conhecer quem eram e quem são os grupos indígenas que fazem parte da construção do Brasil. Apesar de ser um caminho que traçaremos rapidamente, ele servirá como pontapé inicial para possamos buscar reconhecer nossas heranças indígenas. Vamos lá? Primeiros Povoadores da Região que Viria a Ser o Brasil Os primeiros habitantes do território que veio a se tornar o Brasil faziam parte de grupos que não ocupavam apenas o território nacional atual, afinal, este foi formado muito recentemente, quanto mais se compararmos em relação ao tempo em que os primeiros seres humanos chegaram por aqui. Essas primeiras populações se organizaram por aqui de forma variada, e é sobre elas que falaremos agora. Essa não é uma tarefa fácil, pois estamos acostumados a estudar os povos indígenas do Brasil sob o prisma do escrito de viajantes e colonos, que apresentavam um viés generalizante, além de uma visão vinda de fora, pois o seu contato esteve mais restrito a povos do litoral do que a populações do interior. E como esses povos não possuíam escrita, durante muito tempo sua história ficou negligenciada a essas fontes secundárias (viajantes e cronistas europeus). Mas as pesquisas coletadas por arqueólogos e antropólogos nos permitem hoje estudar e conhecer mais a respeito dessas populações chamadas pré-cabralinas. Os primeiros seres humanos iniciaram sua chegada às Américas na fase final do Pleistoceno: “período geológico que se estende entre 2.000.000 e 10.000 anos a.p. (antes do presente), ao qual sucede o período atual, o Holoceno” (PROUS, 2012, p. 13). A princípio, os pesquisadores acreditavam que eles teriam chegado aqui há cerca de 11.500 anos caminhando em uma geleira emersa que, em um período bem mais frio do que o atual, permitiu que existisse uma ligação entre a Ásia e a região do Alasca na América do Norte. Essas populações foram classificadas como pertencentes à Cultura de Clóvis porque seus artefatos foram encontrados primeiro na região de Clóvis, no Novo México (EUA). commons.wikimedia.org No entanto, novas pesquisas demonstram que já havia habitantes humanos na América antes desse período, entre 11.500 e 13.000 anos atrás, incluindo regiões centrais do Brasil, pois seus vestígios foram encontrados em Lapa do Boquete (MG) e Santa Elina (MT). Desse modo, temos novas teorias que ganharam força, defendendo a presença de culturas anteriores a de Clóvis, terem atravessado o Estreito de Bering. commons.wikimedia.org Elas foram fortalecidas com o achado de Luzia, o crânio de uma mulher encontrado em Lagoa Santa (MG). Ela contém em seus traços características muito mais aproximados aos de populações de origem africana e australianas que ao de populações asiáticas, que teriam chegado à América do Sul muito antes da cultura de Clóvis. PARA GABARITAR Entre os cientistas que mais colaboraram para o fortalecimento dessa segunda teoria está o biólogo, antropólogo e arqueólogo brasileiro Walter Neves, responsável por batizar Luzia, nome escolhido em referência ao australopiteco etíope Lucy, fóssil de humanoide mais antigo já encontrado no mundo. Segundo ele, Luzia e várias outras descobertas, como novos fósseis, objetos e artes rupestres descobertos no Brasil e no Chile, representam um duro golpe na teoria clovista. ACESSAR commons.wikimedia.org Mas o que sabemos a respeito desses grupos que iniciaram o povoamento da América do Sul, mais precisamente na região que veio a ser o Brasil? Eles formavam pequenos grupos, que encontraram as seguintes características territoriais: Entre 20.000 e 12.000 anos atrás, a linha de costa estava longe da atual, e os sítios que poderiam documentar sua ocupação estão hoje submersos. No interior, as temperaturas eram mais baixas cerca de 6° – o que significa invernos rigorosos no sul do país e geadas nas terras altas do sul de Minas Gerais, onde vicejavam florestas parecidas com as do planalto paranaense, dominadas pelo pinheiro Araucária. Boa parte do Brasil central e nordestino era mais seca que hoje, e os cerrados ocupavam muito espaço, oferecendo pastos para manadas de grandes herbívoros hoje extintos: preguiças terrestres gigantes, com até 4m de comprimento, em Minas Gerais, e 6m, na Bahia; mastodontes (espécie de elefantes), toxodontes (parecidos com hipopótamos) nos brejos, e camelídeos (parecidos com grandes lhamas) percorriam os espaços abertos sob o olhar atento dos últimos tigres-dentes-de-sabre e de pequenos ursos. (PROUS, 2012, p. 16). Nesse contexto, já desenvolviam algumas ferramentas líticas, movendo-se constantemente e organizando suas atividades conforme o sexo e a faixa etária. Foram desenvolvendo assim características culturais diferentes, que se expressam por meio dos vestígios que deixaram: Estes evidenciam uma razoável diferenciação dos grupos – quer tenham evoluído separadamente, desenvolvendo aptidões e gostos diferentes, quer mantivessem contatos, mas afirmassem sua especificidade em relação aos “outros” por meio de idiossincrasias – algumas delas arqueologicamente visíveis. (PROUS, 2012, p. 22). Na faixa litorânea, temos populações construtoras dos sambaquis, que eram de caçadores, pescadores e coletores, principalmente de mariscos, que transformavam os recursos (águas, madeiras, rochas, etc.) de cada parte da região que habitavam, conforme sua disponibilidade. Seus traços eram mais parecidos com os de populações asiáticas. PARA GABARITAR O que são sambaquis? São enormes montanhas erguidas em baías, praias ou na foz de grandes rios por povos que habitaram o litoral do Brasil na Pré-História. Eles são formados principalmente por cascas de moluscos – a própria origem tupi da palavra sambaqui significa “amontoado de conchas”. Mas essas elevações também contêm ossos de mamíferos, equipamentos primitivos de pesca e até objetos de arte, num verdadeiro arquivo pré-histórico. Os arqueólogos calculam que existam milhares de sambaquis espalhados pela costa do país. Os mais antigos nasceram há cerca de 6 500 anos. ACESSAR Sambaqui Figueirinha I, de 18m de altura Fonte: acesse o link disponível aqui No interior, na região Sul, encontramos pequenos bandos de caçadores e coletores nômades, pertencentes a uma tradição chamada de Umbu. Já em matas ciliares, objetos como picões, machados e cunhas, para trabalhar o solo, fazem parte de uma Tradição Humaitá. Pontas de flechas da Tradição Umbu Fonte: acesse o link disponível aqui Instrumentos de pedra da tradição Humaitá Fonte: acesse o link disponível aqui NA PRÁTICA A origem do grupo Humaitá, também presente em Presidente Epitácio, é incerta. Em sua tese de mestrado, Jean Cabrera pontua o entendimento de que eles tenham mantido contato com povoações do sul do Brasil e região fronteiriça, espalhando-se a partir dali e seguindo ambientes florestais, na transição de um clima mais seco e frio para outro quente e úmido. Suas ocupações predominantes são também a céu aberto e em trechos mais altos, como topos de morros, e sempre próximos a rios ou córregos. Neste aspecto, os Humaitás se diferenciam um pouco dos Umbus (que preferiam áreas de campo), privilegiando regiões de florestas. Isto não significa que não tenham coabitado os mesmos ambientes, como prova o Sítio Arqueológico Lagoa São Paulo 2. ACESSAR Há cerca de 2 mil anos, populações ceramistas, denominadas Taquara ou Itararé, começaram a se desenvolver no interior do sul e a construir casas subterrâneas para se proteger do frio. Posteriormente, essas técnicas foram levadas, ao que tudo indica, para a região do interior setentrional do Brasil. (PROUS, 2012). PARAGABARITAR As evidências arqueológicas colocam a Tradição Itararé-Taquara como portadora de uma das primeiras ocorrências de cerâmica no Brasil meridional. Fonte: ARAUJO, 2007 Na região pantaneira, segundo Prous (2012), foi preciso uma adaptabilidade das populações que para lá se direcionavam, para lidar com os períodos de alternação entre enchentes e emersão dos campos: Nessas condições, as populações tinham de se limitar à ocupação das terras altas marginais, ou inventar um meio de se precaver contra as mudanças do nível das águas. Isso foi feito edificando-se aterros nas zonas inundáveis, mas onde a profundidade da água nunca ultrapassa 1 ou 1,5m. Esses aterros, alinhados ao longo dos rios e canais, ou formando anéis ao redor das lagoas, medem entre 20 e 100m de comprimento, não ultrapassando 3m de altura. Foram construídos com a terra arenosa retirada da periferia, cavando-se assim um canal marginal que facilitava a drenagem. A primeira camada de areia era estabilizada com um leito de conchas de moluscos. Sucessivas capas de matéria orgânica, detritos domésticos misturados com areia, elevavam progressivamente o conjunto. (PROUS, 2012, p. 42). Adaptações que ocorreram de modo gradual a partir de 4 mil anos atrás e deram lugar a habitações mais constantes há cerca de 2 mil anos. No interior central e do nordeste brasileiro, ocupações tiveram início cerca de 9 mil anos atrás, por populações de caçadores e coletores, de uma cultura que ficou conhecida como Itaparica: Sabiam fabricar ocasionalmente – ou obtinham por troca – artefatos plano-convexos retocados numa única face para trabalhar a madeira e belas pontas de projétil retocadas bifacialmente. Esses objetos, bem como os detritos provenientes de sua fabricação, aparecem discretamente no meio dos milhares de lascas simples utilizadas como facas. (PROUS, 2012, p. 48). E ao que as cenas em pinturas rupestres indicam, eram populações que guerreavam entre si, provavelmente marcadas por traços rituais, artísticos e artesanais próprios. Sendo que entre elas, há cerca de 4 mil anos começaram a surgir os primeiros indícios de horticultura e da produção de cerâmica. A partir de então, outras culturas foram sendo desenvolvidas ao longo do território, seja pelos contatos que essas populações desenvolviam com o meio em que se encontravam, ou umas com as outras, ou ainda devido à chegada de novas ondas migratórias exteriores. Isso implicou tanto “choques quanto trocas, alianças e sincretismos” (PROUS, 2012, p. 71). Foi a partir dessas relações que se organizaram os diferentes povos indígenas que, com suas singularidades e/ou semelhanças compuseram e muitos ainda compõem os territórios do nosso país. Convido você a adentrarmos o período da chegada dos portugueses aqui para verificarmos como estavam organizados esses povos e que tipo de tiveram com o invasor externo. Os Indígenas Quando da Chegada dos Portugueses Quando os portugueses chegaram por aqui, o território era habitado por várias populações indígenas. Elas disputavam melhores territórios e se dividiam em diferentes grupos ou grandes troncos lingüísticos, como o tupi-guarani. De acordo com o etnólogo Curt Nimuendaju, existiam cerca de 1400 povos indígenas espalhados ao longo do território que compõe o Brasil atual, divididos de acordo com suas características etno-linguísticas. Entre os povos de grandes famílias linguísticas, encontravam-se os tupi-guarani, jê, karib, aruák, xiriana e tucano, dispersos geograficamente e com organizações sociais variadas. (FREIRE; OLIVEIRA; 2006). Os tupis-guaranis estavam espalhados por quase toda a costa: Os tupis, também denominados tupinambás, dominavam a faixa litorânea Norte até Cananéia, sul do atual Estado de São Paulo; os guaranis localizavam-se na bacia Paraná-Paraguai e no trecho do litoral entre Cananéia e o extremo sul do que viria a ser o Brasil. (FAUSTO, 1995, p. 37). commons.wikimedia.org Enquanto isso, outros povos habitavam da costa a demais partes do interior: Em alguns pontos do litoral, a presença tupi-guarani era interrompida por outros grupos, como os goitacases na foz do Rio Paraíba, pelos aimorés no sul da Bahia e no norte do Espírito Santo, pelos tremembés na faixa entre o Ceará e o Maranhão. (FAUSTO, 1995, p. 37). Sendo que esses demais povos eram designados pelos tupis como "tapuias" (povos de outras línguas). Quanto à dispersão tupi, por boa parte do território brasileiro, várias hipóteses são levantadas: Arqueólogos como Francisco Noelli defendem o modelo desenvolvido por Donald Lathrap e José Brochado, no qual as rotas de expansão estiveram vinculadas a um centro de origem localizado na “região junto à confluência do Madeira com o Amazonas” (Noelli, 1996:31). Segundo este modelo, a expansão dos Tupinambá se deu do Baixo Amazonas ao litoral nordestino, chegando até São Paulo, enquanto os Guarani seguiriam para o sul até a foz do rio da Prata. Os povos Tupi eram encontrados em toda a costa e no vale amazônico, onde dividiam o território com grupos da família aruák (nos rios Negro e Madeira) e Karib (nas Guianas e no Baixo Amazonas). (FREIRE; OLIVEIRA; 2006, p. 21). Entre esses diversos povos, os tupis se destacaram por serem considerados bons guerreiros, e assim conquistaram imensas áreas no litoral e na região de grandes rios: Cada núcleo tupi vivia em guerra permanente contra as demais tribos alojadas em sua área de expansão e, até mesmo, contra seus vizinhos da mesma matriz cultural. No primeiro caso, os conflitos eram causados por disputas pelos sítios mais apropriados à lavoura, à caça e à pesca. (RIBEIRO, 1995, p. 34). Nesse contexto, os portugueses chegaram por aqui e começaram a manter contato a partir de 1500. Foi com os tupis que os portugueses fizeram os primeiros contatos e a partir de então, passaram a chamar, também de forma genérica, todo inimigo índio de “tapuia” ou “tapuio”. Em geral, nos seus relatos os portugueses diferenciavam os indígenas de acordo com as relações que mantinham com eles. Os grupos que resistiam menos recebiam qualidades positivas, enquanto os mais resistentes e hostis, qualidades negativas. Entre os exemplos nesse sentido, temos o caso dos aimorés: os aimorés, que se destacaram pela eficiência militar e pela rebeldia, [e por isso] foram sempre apresentados de forma desfavorável. De acordo com os mesmos relatos, em geral, os índios viviam em casas, mas os aimorés viviam como animais da floresta. Os tupinambás comiam os inimigos por vingança; os aimorés, porque apreciavam carne humana. Quando a Coroa publicou a primeira lei que proibia a escravização dos índios (1570), só os aimorés foram especificamente excluídos da proibição. (FAUSTO, 1995, p. 38). Essas simplificações identitárias construídas pelos portugueses a respeito dos povos indígenas do Brasil acabaram ocultando informações sobre quem de fato esses povos eram. Foram responsáveis por ocultar a existência não só dessa diversidade de povos indígenas, como também de alianças intertribais, arranjos e rearranjos entre diferentes tribos, que muitos de nós não conhecemos, mas existiram inclusive como forma de resistência ao invasor europeu. Desse modo, conhecer quem são os remanescentes dessas populações, como se organizaram e ainda se organizam hoje nos permite quebrar essas generalizações. Esse é o primeiro passo para compreender o papel delas em nossa formação enquanto povo e vençamos preconceitos baseados na ignorância. 1