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Primeiras populações do Brasil Prof. Luis Henrique Souza dos Santos Prof. Rodrigo dos Santos Rainha Descrição Analisar e reconhecer as características das migrações ao território atualmente conhecido como Brasil antes da conquista portuguesa. Propósito Romper com a estrutura preconceituosa que pressupôs uma sociedade de poucos conhecimentos e organização antes da conquista. Objetivos Módulo 1 Migrações Identificar as principais linhas de ocupação do território conhecido como Brasil. Módulo 2 Expansão tupi Reconhecer a expansão das populações que ocupam o litoral conhecidas por pertencerem ao tronco linguístico tupi-guarani. Módulo 3 Tapuias Localizar a diversidade dos demais grupos do interior conhecidos de forma genérica como tapuias. Introdução O imaginário colonizado tem duas teorias básicas sobre os povos originários do Brasil: atrasados e superados (por isso, em extinção); ingênuos e naturais sobreviventes da floresta. Qualquer uma dessas visões deu o mesmo tom de invisibilidade dos conhecimentos, da produção da história e dos valores de diversas culturas ameríndias preexistentes à conquista. A história dos povos indígenas na América Portuguesa foi tratada durante muito tempo como coisa de antropólogos. Ainda que valorizemos o importante trabalho dessa área, precisamos nos reconciliar com esse passado de forma mais ampla, negando a ideia de falta de características sociais europeias nos povos nativos. Assim, precisamos assumir a possibilidade de tais sociedades que existiam no Brasil antes da conquista serem compostas por complexas redes de sociabilidade entre grupos históricos distintos. Por isso, passamos a lidar e aprender mais sobre esses homens e mulheres do nosso passado. Neste material, não lidaremos com a conquista da América pelos portugueses a partir de 1500. Estudaremos a construção do complexo quadro de organização política e social dos povos originários que ocupam os espaços atualmente reconhecidos como Brasil. 1 - Migrações Ao �nal deste módulo, você será capaz de identi�car as principais linhas de ocupação do território conhecido como Brasil. A teoria das migrações das Américas Uma história apagada: migrações Os debates sobre migrações e os caminhos das teorias. Existem teorias diversas sobre as chegadas dos homens à América do Sul. A grande maioria centrava-se em teorias sobre uma migração norte-sul, em que, a partir do estreito de Bering, os homens teriam chegado às Américas por uma ponte de terra e gelo entre os territórios atuais da Rússia e do Alasca. Estudos fenotípicos apontavam para características “asiáticas” da maior parte das populações indígenas americanas, somando-se ao fato de um dos sítios arqueológicos mais antigos até o século XX ter sido encontrado na América do Norte. A teoria defendia que, de 14 mil a 12 mil anos AEC (antes da Era Comum), os grupos teriam migrado e passariam os próximos 2 mil anos migrando e ocupando as Américas. Haveria ainda duas migrações menores, mas que não eram tão representativas como a primeira. Representações dos povos indígenas da América do Sul em 1914. Mais aceitas e ensinadas nas escolas durante mais de 50 anos, tais teorias já eram criticada desde os anos 1940. Professores, como, por exemplo, Neves e Guidon (da USP e do centro de Sergipe, respectivamente), até defendiam migrações no Brasil ainda mais antigas, descobertas a partir de vestígios arqueológicos. Exemplo Luzia, fóssil encontrado em Lagoa Santa, e vestígios de fogueiras e utensílios da região da serra da Capivara. Depois de anos de resistência, finalmente foi detectado que não seria possível uma migração tão veloz e tão intensa pelo estreito como se pensava. Em seguida, novas evidências, como fósseis humanos encontrados primeiramente no México e depois no Chile, superando 14.500 anos AEC, apontavam para um processo migratório iniciado há mais de 20 mil anos AEC. A discussão sobre a etnia predominante – a qual, fenotipicamente, é uma variação asiática – não representa a não existência de outras etnias superadas ou associadas com as primeiras. Por isso, as características negroides de Luiza ainda chamam a atenção. Dessa forma, a arqueologia defende atualmente que conjuntos diversos de migrações chegaram ao Brasil. Fóssil e representação do rosto de Luzia. Walter Neves chega a apontar o encontro de grupos antropologicamente diversos e muitas vezes de difícil mapeamento, como o de grupos oriundos de África, sul da América do Sul e grupos das florestas. Os modelos arqueológicos desde muito são barreiras para a expansão do conhecimento sobre as populações nativas das Américas. Durante muitas décadas, vigoraram modelos que estabeleciam uma hierarquia muito rígida dos grupos populacionais, tomando, em seus estudos sobre as Américas, os grandes impérios e as formações urbanas de incas, maias e astecas como um paradigma para se compreender o que faltava aos povos nômades da floresta, do cerrado e do litoral do Brasil. Nos anos 1940, as tipologias do antropólogo norte-americano Julian Steward, em seu guia sobre os índios sul-americanos, determinaram os nativos do Brasil como “povos marginais” pelas tecnologias de subsistência rudimentares e pela suposta ausência de instituições políticas. Fundada na comparação com outros povos, essa tipologia ditou muitos dos estudos subsequentes na área da Arqueologia. Somente após a década de 1950 começavam a emergir novas visões sobre a mobilidade dos povos nativos. Curiosidade Ainda há sérias dúvidas sobre as primeiras ocupações: além da presença no litoral de grupos não ceramistas de forma predominante (conhecidos como sambaqueiros), havias as tradições de caçadores, coletores e pescadores. Tampouco existem certezas sobre quais eram os limites de suas mobilidades. A grande mudança ocorreu com a chegada e a organização de grupos ceramistas no norte e no sul. Oriundos do Chile, eles aceleraram e modificaram a ocupação do território de maneira mais intensa. Vamos detalhar algumas dessas movimentações para compreender dois fatores fundamentais: ocorreu não somente um importante processo de grupos migratórios, mas também houve falta de investimento, movimentações do próprio território (em termos de floresta), expansão urbana e movimentações de rios e oceanos, assim como de suas tecnologias. As principais teorias de ocupação em nada as colocam como hierarquicamente inferiores. No entanto, tais movimentações são singulares e importantes na compreensão histórica desses grupos. A expansão do litoral Existem muitos estudos sobre os sambaquis, uma estrutura de grupos não ceramistas. Algumas delas foram encontradas praticamente ao longo de todo o litoral brasileiro. Sua estrutura aponta para grupos de caçadores, coletores e pescadores, ainda que seus membros iniciassem um processo de seminomadismo, ou seja, com grupos de forte migração tendo reduzido tais processos na constituição de aglomerados. Muitos dos seus sítios são encontrados no litoral, tornando-se marcantes pelo ajuntamento de conchas, traços de enterramentos e acúmulos de materiais). Sítio Arqueológico Sambaqui Cabo de Santa Marta, em Laguna, Santa Catarina, Brasil. Sabe-se que, nessa cultura, além de variações importantes, há desafiadores sítios muito antigos. Eles foram encontrados em pontos e localizações que não esclarecem quais eram as suas linhas migratórias nem as culturas predominantes entre esses grupos. Exemplo Nota-se que os sítios mais antigos se encontram mais ao sul, o que não significa se tratar de uma migração sul-norte. Isso aponta que os processos de colocação desses grupos passaram efetivamente por um eixo norte-sul. Calma! Não se preocupe se você não entendeu ainda. Saiba que a maior parte dos sítios apontam para uma influência no sentido de migrações em direção ao eixo vertical litorâneo oriundo do norte. Mas o tempo é impreciso pelas trocas de grupos e a velocidade dessas trocas – e, principalmente, pela perda de regiões que hoje se encontram dominadas pelo oceano. Sabe-seque uma importante interação entre as áreas do interior com os grupos do litoral também era detectada em vestígios e encontros de material dessas culturas. Escavação arqueológica de um sambaqui em Laguna, Santa Catarina. Em geral, eles eram dominantes entre caçadores e coletores de tais grupos. Comentário Existem teorias que defendem até comércio e relações de casamento, mas elas são controversas em relação aos vestígios com que temos contato. Os construtores de sambaquis são, atualmente, considerados pescadores sedentários que apresentavam uma organização sociocultural relativamente complexa. Várias pesquisas abordam um padrão de subsistência e uma organização social e encontram-se em andamento. Vejamos: Estudos zooarqueológicos mostram a importância da pesca no sistema de subsistência dos sambaqueiros desde os primórdios da ocupação das zonas costeiras. Outros estudos destacam a predominância do consumo de peixes e mamíferos marinhos. Já os moluscos não são mais vistos como a base da economia, e sim como um elemento secundário na dieta, que pode ter tido uma grande importância como material de construção. O consumo de vegetais, no entanto, permaneceu subestimado, porque as evidências diretas do uso de plantas se restringem essencialmente a algumas sementes e coquinhos queimados; e as indiretas, a objetos líticos atribuídos à preparação de vegetais. Ainda que importantes peculiaridades regionais tenham existido, os sambaquis distribuídos ao longo de todo o litoral brasileiro apresentam muitas características semelhantes. Não existem dados disponíveis sobre a integração política regional e suprarregional deles, mas a homogeneidade tipológica das indústrias lítica e óssea, assim como as características estruturais dos próprios sítios, apontam para uma grande estabilidade. Reconstrução facial de crânio encontrado em sambaqui de 5000 anos. Mas como se sabe disso tudo? Como você acha que sabemos muito sobre Roma, Grécia, Arábia ou Rússia? Resposta Investigando arqueologicamente e traçando pesquisas, vestígios e técnicas. Quer ver um bom exemplo? As professoras Shell-Ybert (do departamento de Antropologia do Museu Nacional e da UFRJ), Eggers (do laboratório de Antropologia Biológica, do Centro de Estudos do Genoma Humano, do departamento de Biologia e do Instituto de Biociências da USP), Wesolowski (da Escola Nacional de Saúde Pública e da Fundação Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro) e Blasis (do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP) fizeram um importante trabalho de investigação sobre a sociedade e a dinâmica dos sambaquis na Região Sudeste do Brasil. Ao construir um olhar sobre a organização dos grupos sambaqueiros e abordá-los de forma interdisciplinar, essa pesquisa os reconheceu em quatro grandes áreas: Lagos do Sudeste. Litoral norte, central e sul de São Paulo. Áreas do Paraná, como Joinville e Laguna. Norte e sul de Santa Catarina. Esse estudo sinaliza que ali possivelmente estavam os primeiros grupos e que dali se expandiram até Espírito Santo e Bahia, aparecendo por conta de trocas até no Nordeste. Esse trajeto é vital para a compreensão das dinâmicas e das características dos sambaquis. Notou-se que as particularidades de relevo, de clima e de sistemas ecológicos geraram diferenças vitais. Embora os padrões de ocupação de paleorestingas, de terrenos arenosos e de áreas de praia sejam uma tônica recorrente, eles são responsáveis pela seguinte ideia: o que estudamos não contempla áreas mais amplas e cobertas por mar. As comunidades não se mostravam isoladas; afinal, elas têm características que, em termos de cultivo, cultura e etnografia, chegam a englobar elevações montanhosas para além das praias no litoral brasileiro e até mesmo expansões por áreas da Mata Atlântica, adentrando a floresta tropical densa. Seus sinais se espalham do estado do Rio Grande do Norte (5ºS) até o Rio Grande do Sul (29ºS). Arqueologia e o estudos de cultura material Parte do grande desconhecimento que recai sobre as populações da Pré-História e dos povos nativos anteriores à conquista se deve à diversidade de classificações e métodos, verificado principalmente dentro dos estudos arqueológicos. Durante muito tempo, a disciplina da Arqueologia se ateve à atuação de estudiosos de antiguidades e de colecionares, os quais, em geral, dedicavam-se a tais atividades como amadores. Curiosidade Somente no século XX (e especialmente após os anos 1950) o Brasil passou a atrair e financiar estudiosos com métodos mais unificados para a investigação de seus vestígios arqueológicos. Ainda assim, mais anos foram necessários para uma decisiva institucionalização dessa área de estudos, a fim de que a compreensão e a preservação de nosso passado antes da conquista fossem levadas a cabo. Nesse esforço, uma reflexão fundamental foi realizada em torno da cultura material deixada pelos povos que viveram no país. Nesse largo período conhecido como Pré-História, eis alguns dos vestígios com os quais os arqueólogos vêm lidando: Ossos de animais fossilizados. Sedimentos com marcas de uso (como resquícios de lenha, por exemplo). Instrumentos de pedra lascada. Pinturas. Antes de falar mais sobre os desafios encontrados pela Arqueologia e sua associação com outras ciências, é necessário conhecer, pelo menos um pouco, as condições em que geralmente esses rastros são encontrados. Vez ou outra, os jornais fazem referências a agricultores ou construtores que, ao mexerem em determinado pedaço de terra, deparam-se com um objeto de valor arqueológico. Só que esse tipo de caso é bastante raro. O que vemos nos estudos mais recentes da Arqueologia (e não só no Brasil) são investigações multidisciplinares envolvendo amostras que passam por análises biológicas e exposição a reagentes químicos, fotografias em diferentes escalas visuais ou coleta de grânulos dispostos em máquinas para análise molecular. Em suma, tais trabalhos lançam hipóteses que desmistificam o romantismo que há na ciência arqueológica. Ainda que eles imponham descobertas fundamentais para aumentar o conhecimento do passado, estão longe de qualquer glamour jornalístico ou cinematográfico. Outro ponto importante é a condição dessas evidências. Exemplo Ao se depararem com pedras lascadas, é comum que os arqueólogos precisem retirar camadas de lama e terra envoltas no objeto. No caso das pinturas, eles precisam atuar sobre a decomposição dos desenhos. Também é possível que a própria superfície onde os objetos se encontram constitua um fator crucial para a possibilidade de visibilidade e, a partir daí, de estudo e lançamento de hipóteses. Ao realizar uma síntese do estado da Arqueologia brasileira (com exceção dos trabalhos sobre a Amazônia), em 1992, Niéde Guidon destacou a Toca do Boqueirão do Sítio da Pedra Furada, localizada no Piauí. Esse sítio arqueológico apresenta camadas que podem remontar a, pelo menos, 15 fases de ocupação desse local – e a primeira delas possivelmente remete a 50 mil anos atrás. Compreendendo figuras desenhadas em seus paredões, a disposição rochosa apresentava abrigo do calor e das intempéries; ao mesmo tempo, ela oferecia abastecimento de água pela formação de pequeno lago. Pinturas rupestres no Sitio arqueologico Toca do Boqueirao da Pedra Furada, no Parque Nacional da Serra da Capivara, Piaui. Atualmente, a região apresenta pouca disponibilidade para sustentação de vida mais extensiva. As escavações, porém, permitiram saber que, há milhares de anos, a realidade era outra (GUIDON, 1992, p. 39-40). Pedaços de lanças. Diversos tipos de cerâmicas. Peças de cerâmica encontrada em Sambaqui. Um dos principais focos de estudo de certos padrões de comportamento dos habitantes do passado tem sido a cerâmica.A habilidade de manipulação, queima, secagem e decoração de cerâmica tem sido associada a diferentes formas de ocupação do território e reflete concepções políticas, sociais e religiosas. No Brasil, existem diferentes tradições ceramistas que, entre 3 mil anos atrás e operíodo da conquista, teriam se chocado e provocado mutações. Segundo Guidon (1992, p. 52) e Fausto (2000, p. 21-23): Centro do país Destaca-se a tradição una. Sul amazônico Encontram-se vestígios da tradição uru. Litoral Verificam-se ocorrências da tradição aratu, que teria surgido em contato com a tradição tupi-guarani. Amazônia Outras tradições também podem ser encontradas nas escavações realizadas na região, havendo algumas distintas, como, por exemplo, as cerâmicas marajoaras. Falta pouco para atingir seus objetivos. Vamos praticar alguns conceitos? Questão 1 A chegada dos primeiros seres humanos à América é um debate ainda bastante ativo entre várias áreas de conhecimento sobre o passado. Assinale a opção correta sobre esse assunto. A A ocupação da América foi anterior à chegada de humanos em qualquer outro continente. B Achados arqueológicos nos possibilitam colocar a ocupação da América em cerca de 20 mil anos AEC (antes da Era Comum). C A Arqueologia tem tido muita dificuldade em estabelecer alguma datação para a chegada dos primeiros humanos à América. D Só poderemos alcançar datações sobre a chegada dos seres humanos à América do Sul se considerarmos os achados arqueológicos da América do Norte. Parabéns! A alternativa B está correta. %0A%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%3Cp%20class%3D'c- paragraph'%3EEm%20um%20primeiro%20momento%2C%20os%20estudiosos%2C%20a%20partir%20dos%20fen%C3%B3tipos%2C%20destacavam%2 se%20a%20hip%C3%B3tese%20de%20um%20processo%20migrat%C3%B3rio%20iniciado%20h%C3%A1%20mais%20de%2020%20mil%20AEC.%3C%2 Questão 2 Considere as afirmativas a seguir: I. Os sambaquis são estruturas de grupos não ceramistas que compreendem resquícios de suas atividades cotidianas. II. Ao contrário do que se presumiu durante muito tempo, os sambaquis não possuíam necessariamente características rituais. III. Atualmente, estudiosos consideram os sambaqueiros como grupos seminômades. IV. Por se tratar de restos e vestígios cotidianos, os sambaquis não possuem muito uso para o conhecimento das populações pré-históricas do Brasil. Assinale a opção correta. Parabéns! A alternativa C está correta. %0A%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%3Cp%20class%3D'c- paragraph'%3ESambaquis%20s%C3%A3o%20vest%C3%ADgios%20arqueol%C3%B3gicos%20de%20grupos%20n%C3%A3o%20ceramistas%20em%20f se%20majoritariamente%20pelo%20agrupamento%20de%20conchas%2C%20tra%C3%A7os%20de%20enterramentos%20e%20ac%C3%BAmulos%20d E Os estudiosos nunca consideraram possível a chegada de seres humanos à América por rotas provenientes de outros continentes. A I e III, somente. B II e IV, somente. C I, II e III, somente. D II, III e IV, somente. E II e III, somente. 2 - Expansão tupi Ao �nal deste módulo, você será capaz de reconhecer a expansão das populações que ocupam o litoral conhecidas por pertencerem ao tronco linguístico tupi-guarani. Arqueologia e linguística no estudo do tupi-guarani Consolidação da expansão tupi pelo litoral Neste vídeo, será apresentada a história de luta e resistência da expansão tupi pelo litoral brasileiro. Estudar as populações nativas do Brasil é um grande desafio para qualquer um que decida se dedicar ao tema. Como temos visto, são numerosos os trabalhos nas áreas da Arqueologia e da Antropologia. No entanto, também é possível encontrar especialistas nos campos da Linguística, do Direito e da História. Os avanços da Arqueologia têm se mostrado mais consistentes para construir uma história dos povos originários, a qual, de certa forma, foge da lente colonizadora dos portugueses após a conquista iniciada em 1500. Atenção! A premissa tem sido bem clara: a Arqueologia lança hipóteses de interpretação sobre os vestígios com que se depara, fugindo das descrições quase sempre enviesadas das populações descendentes de portugueses que aqui se estabeleceram. Assim, de certa forma, os estudos históricos sobre os povos nativos são problematizados. No campo da Antropologia, que se baseia na etnografia, o grande problema está na origem dos povos. Já cientes de que a conquista colonial operou um deslocamento colossal das populações nativas, fica a dúvida: Realizar imersões nas comunidades que atualmente sobrevivem em regiões isoladas ou razoavelmente integradas nos ajudaria a compreender o passado antes da colonização? Mesmo que não diminua em nada o trabalho antropológico – o qual, afinal, permite a nossa compreesão de visões de mundo atuais dos nativos –, a etnografia possui seus limites. Subsistem as principais áreas que até hoje permanecem na vanguarda dos estudos sobre os indígenas: Arqueologia e Linguística. Especialmente no caso da Linguística, o mapeamento da dispersão dos troncos linguísticos tem sido importante espaço de atuação. Nessa classe de estudos, tem ficado cada vez mais claro que a cultura e a língua andam associadas e que, apesar de incontáveis variações em ambas, existe certa hegemonia nos vários agrupamentos que se espalharam pelo território brasileiro antes da chegada dos europeus do tronco tupi-guarani. Francisco Noelli nos adverte que é preciso cuidado quando nos referimos a essa denominação tupi-guarani. Na verdade, ela engloba aproximadamente 41 línguas, que se estendem por territórios do atual Brasil, do Peru, da Bolívia, do Paraguai, da Argentina e do Uruguai. Além disso (e de maneira imprópria), seus falantes são chamados de “tupi”. Ou seja, ao buscar compreender melhor a variedade das línguas e culturas que possuem aspectos de semelhança, reduz-se tudo ao nome tupi de forma equivocada (NOELLI, 1996, p. 9-10). Diferentemente da Arqueologia e de determinados estudos históricos, a Linguística se tornou uma ciência essencialmente acadêmica. Formados no Brasil na década de 1960, grupos de investigação têm realizado esforços para fazer o mapeamento das línguas faladas e lançar hipóteses sobre a dispersão dos troncos nativos. Curiosidade Aryon Rodrigues, um dos linguistas de referência nessa temática, aponta que a diversidade linguística dos povos da pré-conquista girava em torno de 1.175 línguas e que, nos dias atuais, ela não passa de 180. O linguista ainda destaca que praticamente todas estão ameaçadas, pois possuem um número reduzido de falantes e têm pequenas chances de se propagar. Ainda que nosso foco seja o período anterior à conquista, é imperativo adicionar que, conforme Rodrigues (1993) destaca, apenas três línguas foram catalogadas de alguma maneira pelos colonizadores nos três primeiros séculos desde a conquista: Tupinambá Também chamada de tupi antigo, ela era falada em boa parte do litoral com variações em dialeto. Kariri Falado no interior da Bahia e de Sergipe. Manau Lí ô i Centro de expansão e rotas de deslocamento tupi Um dos principais problemas que se apresentam aos interessados na história dos grupos tupi-guarani é a datação da expansão desses nativos e da sua dispersão pelo território litorâneo brasileiro. A questão principal mobilizando antropólogos, historiadores, arqueólogos e linguistas é se eles teriam iniciado um deslocamento histórico milhares de anos antes da chegada dos europeus ou se sua dispersão teria se dado às vésperas da conquista – e, em muitas hipóteses, por causa dela. Representação dos tupinambás. Tal reflexão tem se arrastado por algumas décadas. Atualmente, considera-se mais apropriado lidar com essa noção de “expansão”, e não de “migração”, dos povos do tronco tupi. A escolha de um por outro acontece pelas evidências encontradas por arqueólogos e historiadores de movimentos de nativos com base em vários fatores. Reunimos quatro deles: Formação de facções ou disputas internas nas aldeias Crescimento demográ�co Esgotamento da natureza ao redor Simples manejo agro�orestal para que não haja esgotamento O que mais chama atenção são os vestígios de que não havia o completo abandono das antigas ocupações. Com isso, criavam-se espaços de domínio dos tupi sobre novas localizações (NOELLI, 1996, p. 11). Atenção!Não é possível estender aos povos originários os mesmos conceitos de posse e propriedade que os europeus aplicam após a conquista. Nesse caso, o domínio pode significar apenas o uso em determinados períodos ou somente o afastamento de outras etnias do uso daquele trecho de terra. Seja como for, aqui estamos longe de tratar da propriedade privada nos moldes capitalistas. Língua amazônica. Assim como para qualquer problema em história, é necessário observar os caminhos percorridos pelos estudiosos do tema da expansão tupi para uma melhor compreensão de tal processo – e a mesma lógica se aplica para as investigações arqueológicas e linguísticas. Na década de 1960, teve início o Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas (PRONAPA), que se estendeu de 1965 a 1970. A despeito do positivo esforço de levantamento de centenas de sítios arqueológicos e de datações relevantes com agentes químicos, como, por exemplo, o carbono 14, que possibilitaram a identificação de espaços em risco que remontam da Pré-História à conquista, as limitações do PRONAPA foram alarmantes. Por ter sido um trabalho técnico realizado especialmente por arqueólogos e seus auxiliares, houve uma desconsideração de dados históricos e linguísticos. No estudo do PRONAPA, as diferenças culturais entre os povos de origem tupi foram esquecidas, mesmo que estivessem inseridas na tradição de um povo conhecido não só por suas semelhanças, mas também por variações socioculturais (NOELLI, 1996, p. 16). Escavações estratigráficas no sítio do Estirão Comprido, na margem do rio Ivaí em 1951. Levando em consideração tais achados arqueológicos e datações químicas em sua análise, a norte-americana Betty J. Meggers, uma das influentes arqueólogas envolvidas no trabalho, estabeleceu em diversas oportunidades que os agrupamentos de tupis teriam origem na planície amazônica, acima dos limites do Brasil com a Bolívia, havendo nada além do Rio Madeira. A tradição cerâmica e cultural, no entanto, estaria ligada à Cordilheira dos Andes e à descida de povos desse importante conjunto montanhoso. As proposições de Meggers não foram novidade nos anos 1970. Desde 1940, informa Fausto (2000, p. 10), o antropólogo norte-americano Julian Steward propunha que a ocupação das florestas tropicais e do cerrado brasileiro estava relacionada a duas hipóteses: Decadência dos povos andinos Estagnação em estágios primitivos de desenvolvimento técnico, social e tecnológico Nessa altura de nossa discussão, não é preciso dizer que tais interpretações consideram que os povos originários do Brasil só poderiam ter surgido frente à ramificação de outros povos “mais desenvolvidos” da Cordilheira dos Andes. É importante, porém, alinhar as considerações sobre composição da cerâmica na planície amazônica, sítios arqueológicos do litoral e investigações históricas com as descrições coloniais e o estudo das línguas que compunham os troncos linguísticos, estabelecendo genealogias entre as variações de dialetos e dicções. Aryon Rodrigues considera que, se não é possível estabelecer uma localização específica para a dispersão do tupi (ou de qualquer língua), pelo menos pode-se chegar a que língua poderia ser considerada a “original” ou da qual muitas outras teriam derivado. É importante assumir que tais proposições são hipóteses que precisam de mais investigações e que despertam a curiosidade sobre a diversidade linguística das populações nativas do Brasil (RODRIGUES, 1986, p. 30). Considerando ainda as extensivas análises de Aryon Rodrigues, tomemos como exemplo algumas variações entre o tupi antigo (tupinambá) e o guarani antigo, conhecidos e de alguma maneira catalogados nos séculos XVI e XVII. Como veremos a seguir no caso da expressão “eu corri” em português, que pode ser colocada como: Tupi antigo “Aián”. Guarani antigo “Aiã”. Apesar de ser um exemplo simples, ele nos permite trazer para a discussão um dos métodos de análise de derivação linguística aplicados não só para as línguas originárias, como também para línguas românticas da Europa. Na Linguística, toma-se como pressuposto a maior facilidade para a perda de uma letra (entre uma língua e outra) que a adição dela ao fim da palavra. Ou seja, pelo método linguístico, julga-se mais provável que o tupi seja uma língua mais antiga – e, por isso, sua matriz cultural também o seja – que o guarani (RODRIGUES, 1986, p. 32). Rotas de difusão e domínio sobre o litoral Até o momento, os achados arqueológicos, as suas análises e a relação deles com investigações no campo da Linguística, têm sido o foco de nossa discussão, construindo um quadro mais amplo e claro da expansão daquele que é o principal tronco linguístico do território brasileiro. Em termos temporais, essa grande dispersão geográ�ca levou, segundo especialistas, cerca de 2.500 anos. Em resumo, sua origem pode ser localizada nas planícies amazônicas, nas proximidades do Rio Madeira, seguindo em direção ao sul do continente até o Rio da Prata e, em seguida, para o norte pelo litoral atlântico (NEVES et al., 2011). Vejamos: Modelos das expansões e dispersão geográfica. Vejamos outro exemplo: Modelos das expansões e dispersão geográfica. Tais proposições são as mais aceitas entre arqueólogos e linguistas. Foi com essa realidade que os europeus se depararam no século XVI ao chegar à América: centenas de grupos distintos entre si, com características comuns e pequenas variações na língua. Entre suas semelhanças, pesquisadores têm destacado a presença da cerâmica, a qual, além de uma manifestação técnica importante, permite delinear a genealogia dos povos originários ao longo do território. Exemplo Foi graças à cerâmica que se estabeleceram conexões dos povos tupis do Sul do Brasil com os marajoaras no norte. Além da tradição ceramista, observam-se as relações linguísticas entre povos que regionalmente se distanciaram, mas que possuem traços comuns nas inflexões e nas declinações da fala. Esses detalhes da dispersão dos tupi-guarani nos permitem compreender com mais propriedade sua ocupação massiva do litoral atlântico, já que resquícios de suas culturas podem ser observados até hoje, com descendentes desde as costas de Santa Catarina até o Rio de Janeiro, passando por Espírito Santo e Bahia. Diferentemente do que os colonizadores tentaram perpetuar, os povos localizados no litoral com os quais eles tiveram contato não eram os mesmos, apesar das semelhanças e do compartilhamento de linguagem do tronco tupi-guarani. Tais povos tampouco eram denominados da mesma maneira. Como veremos adiante no tocante à denominação “tapuia”, o mesmo ocorria para “tupi”, “tupinambá” e “guarani”: os europeus utilizavam nomes de uma ou outra tribo para designar a totalidade dos nativos. Isso, portanto, fazia parte de uma estratégia de domesticação, redução e homogeneização dos povos originários que se estendeu durante séculos da colonização do Brasil. Observe as diferenças nas típicas representações a seguir: Tupis Tupuias A distribuição dos tupis pelo território litorâneo, assim, obedece às lógicas de deslocamento desses agrupamentos nativos. Sua expansão, além disso, ocorreu por um longo período. Como dissemos, esse deslocamento teria acontecido a partir do leste da Bacia Amazônica e ocorrido especialmente por dois motivos: ongo período Conforme apontamos, a aceitação entre especialistas é de cerca de 2.500 anos Antes da Era Comum (AEC). No entanto, também se considera a possibilidade de essa expansão ser anterior, tendo até cinco mil anos. Pressão demográ�ca Presença de outros povos (especialmente os de origem arawak) Os araucanos (como ficaram conhecidos esses povos provenientes sobretudo das Antilhas, na América Central) se estenderam pelo norte da América do Sul. Da subida pelos afluentes do grande Rio Amazonas e por seus afluentes (dos quais o principal, para nossa discussão atual, é o Rio Madeira), os grupos de tradição tupi-guarani deslocaram-se para o interior e o Sul. Segundo Lathrap (1975): É importantelembrar que esse deslocamento não implica abandono. Em balanços mais recentes (PEREIRA, 2009), é possível verificar que essa dispersão a partir das regiões de várzea amazônicas – impulsionada sobretudo pela pressão demográfica – encontrou grande espaço no litoral. Os vestígios arqueológicos encontrados distribuem-se: Região Sudeste e em direção ao Nordeste Nos sítios da costa estão mais englobados na tradição tupinambá. Região Sul Nos sítios ao sul, verifica-se a presença da tradição guarani. Essas diferenciações são possíveis por causa dos métodos de trabalho das cerâmicas, pois, como dissemos, esses povos são ceramistas. Por isso, a recuperação de seus artefatos em olaria possibilita uma compreensão de seus usos e estilos (BROCHADO, 1973). Falta pouco para atingir seus objetivos. Vamos praticar alguns conceitos? Questão 1 Considere as duas afirmações a seguir: I. Quando da chegada dos europeus no território que hoje conhecemos como Brasil, diversos grupos étnicos dominavam o litoral, mas possuíam características semelhantes, como a língua e a cultura, apesar de também terem diferenças. II. O grande tronco linguístico dos tupi-guarani com as línguas aparentadas possivelmente nasceu nas planícies amazônicas; durante milhares de anos, homens e mulheres falantes de tais línguas se descolaram para o sul e, depois, para o litoral. Marque a opção que aponta corretamente a relação entre as duas afirmativas. Parabéns! A alternativa E está correta. %0A%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%3Cp%20class%3D'c- paragraph'%3EGra%C3%A7as%20a%20achados%20arqueol%C3%B3gicos%20e%20data%C3%A7%C3%B5es%20qu%C3%ADmicas%2C%20constru%C3 se%20as%20hip%C3%B3teses%20de%20que%20os%20agrupamentos%20de%20tupis%20teriam%20se%20originado%20na%20plan%C3%ADcie%20a guarani%20teria%20se%20originado%20dessa%20localidade%20e%20dali%20se%20expandido%20para%20o%20sul%20em%20virtude%20de%20pres A As duas afirmativas estão corretas, embora abordem temas distintos, não possuindo relação entre si. B A afirmativa I é correta; a II, incorreta. C A afirmativa I é incorreta; a II, correta. D A afirmativa I apresenta os motivos para o desenrolar das proposições presentes na II. E As duas afirmativas estão corretas, e a afirmativa II apresenta uma explicação para a I. Questão 2 Analise as afirmativas abaixo e assinale a correta. Parabéns! A alternativa D está correta. %0A%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%3Cp%20class%3D'c- paragraph'%3ETemporalmente%2C%20a%20grande%20dispers%C3%A3o%20geogr%C3%A1fica%20dos%20grupos%20ligados%20ao%20tronco- lingu%C3%ADstico%20tupi%20levou%20cerca%20de%202.500%20anos.%20Com%20poss%C3%ADvel%20origem%20nas%20plan%C3%ADcies%20am 3 - Tapuias Ao �nal deste módulo, você será capaz de localizar a diversidade dos demais grupos do interior conhecidos de forma genérica como tapuias. A Aquilo que chamamos de tupi-guarani era, na verdade, um grande grupo de resistência aos europeus recém-chegados à América, não possuindo relações culturais entre si a não ser essa questão. B Os grupos tupi-guarani possuíam certa homogeneidade cultural, fato que remonta à tradição cerâmica e linguística de povos que se concentravam no sul da América do Sul, de onde se expandiram para o restante da América. C A dispersão e a fragmentação dos tupi eram uma estratégia de sobrevivência cultural, já que, na fundação de cada nova aldeia, o centro decisório deles demandava variações linguísticas e culturais da nova aldeia. D A grande dispersão dos tupi-guarani pelo território brasileiro levou, segundo especialistas, cerca de 2.500 anos; apesar de suas semelhanças, esses povos possuíam muitas diferenças entre si. E A despeito das semelhanças entre as centenas de grupos nativos de tradição tupi-guarani, a cerâmica era seu principal ponto de diferenciação, uma vez que não havia uma tradição de trabalho comum a esses povos. Tapuias: uma construção A nomenclatura tapuias (ou inimigos) deriva de uma ideia de rivalidade genérica entre os grupos tupi (que pertenciam ao tronco linguístico tupi- guarani) e os grupos diversos mencionados e trabalhados por pesquisadores. Trabalhos mais tradicionais determinavam que os tupis ocupavam o litoral e os tapuias, o interior. Curiosidade Ainda que a designação genérica sobre tapuias parta do tronco linguístico tupi, que, por sua vez, representava algum tipo de unidade, tal nomenclatura serviu para apontar os seus inimigos, começando pelos guaranis e se multiplicando para grupos diversos conhecidos dessa pretensa unidade e entendidos como selvagens ou passíveis de escravidão. Após a conquista portuguesa, a historiografia e as práticas sociais costumavam distinguir o índio idealizado existente no século XIX e em parte do XX em duas categorias: Gloriosos, guerreiros e amigos do colonizador Tupis. Grupos resistentes, irascíveis, irracionais e medonhos Tapuias. Essa distinção vai muito além de sua formação: apesar de muito utilizada, ela reproduz um preconceito histórico importante. Nosso objetivo é mostrar como podemos conhecer um pouco mais desses grupos e estudar sobre eles, apontando a necessidade de romper com nosso preconceito histórico. No que chamamos de séculos XII e XIII da Era Comum (no período anterior à invasão colonial), já havia a formulação de um quadro histórico importante nos territórios que hoje tratamos como Brasil. Sem dinâmicas relacionadas à propriedade privada ou aos reinos, existiam importantes aspectos políticos, assim como circulação, trocas de tecnologias e tradições culturais. Exemplo Além de razões que desconhecemos, havia conflitos por casamento e disputas por hegemonias regionais. O certo é que destacava-se um mosaico social de grupos que ocupavam vastas regiões. Existia uma dinâmica viva não de forma territorial política europeia, e sim de processos de movimentação e de disputas responsáveis por assentar grupos e gerar mobilidades. A predominância do tronco tupi e a idealização do índio tupi durante o século XIX emprestaram aos índios do sertão a pecha de resistentes, negligentes, ignorantes e selvagens, traços diferentes do cavalheiresco tupi. Durante o período colonial, tal olhar foi se construindo. Nos relatos dos viajantes, aparecem variações importantes entre esses grupos. Eles mostram que o processo de lidar com o outro era variado e normalmente marcado pelo estranhamento. Índios tapuias retratados capturados como escravos. J.B. Debret Alguns exemplos disso são intensos: Entretanto, o foco na barbárie variava entre esses grupos, assim como os interesses deles, até haver a consolidação dos imaginários aos quais nos referimos. Essa é a base de pensamentos materializados nas praças, nas músicas, na literatura e no teatro. Por isso, é bom que fique claro: antes da conquista, para além do ponto de vista de grupos locais, não existem tapuias. Grupos diversos (muitos tidos como etnias fortes e, por isso, bárbaras ao olhar do europeu, enquanto outros eram vistos como inocentes) eram capturados e/ou se tornavam objetos da pregação e organização das missões jesuíticas. apuais A palavra “tapuia” tem origem tupi e faz referência ao outro, ao inimigo ou ao bárbaro. Exemplo As disputas entre potiguares e caetés. Apesar de ambos serem entendidos como “tapuias”, esses grupos tinham disputas no sertão do Nordeste e ocupavam regiões diversas. Diante dos apoios iniciais obtidos pelos caetés, os potiguares, um foco de aldeamentos, foram apoiados contra seus inimigos por conta de relatos que causavam terror sobre as peles mais grossas para correr nos espinhos ou que cerravam os dentes para se tornarem mais amedrontadores. Se a bibliografia histórica costuma estabelecer um quadro estável de alianças e inimizades pautado pelos pares de grupos inimigos – como no ódio imemorial entre Tupinambá e tupiniquim, entre potiguar e caeté ou entre botocudo e puri –, a documentação revela como esses grupos mudaram de visão, mostrando que seu papel, visto por um lado só, pode ser observadosob outros prismas. Com isso, podemos observar o que acontece com os tabajaras. Uma união por casamento entre potiguares e portugueses fez com que uma nova família ganhasse força de narrativa. O próprio etnônimo potiguares suscita discussão: seriam eles petíguares (povo do fumo) ou potiguares (povo do camarão)? Com o tempo, o segundo nome vingou, sendo inclusive aportuguesado na dinastia que se instalou. A trajetória de algumas lideranças potiguares também é ilustrativa dos processos de consolidação étnica no contexto das guerras coloniais. Dessa união, surgiu Antônio Felipe Camarão (note a presença do camarão no sobrenome). Ele se aliou aos portugueses, entrou na dinâmica política, A ausência de ciúmes nas uniões. As relações sexuais vistas como sinal de hospitalidade. A criação dos filhos e os ornamentos do corpo, além de haver corpos nus. liderou combates contra os aymorés e foi fundamental na conquista do Maranhão. Antônio Filipe Camarão (1600-1648). Aldeia dos tapuias. Na região litorânea, também existiram os índios conhecidos e chamados de tapuias (ou os inimigos). Também merece destaque a presença dos goitacás. Eles ocupavam a região atualmente conhecida como Quissamã/Macaé, passando ainda por Campos dos Goytacazes e sul do Espírito Santo. Existem muitos relatos sobre esse grupo durante os séculos XVI e XVII de viajantes e clérigos, o que também se registrou na tentativa de criar capitanias e vilas. A presença de todos esses grupos define uma importante dinâmica de resistência marcada pela violência e pela luta efetiva. Esse tipo de olhar acaba por criar para uma iconografia do “índio” mau, alguém totalmente selvagem e integrado com a natureza. Para reforçar isso, apontavam-se ainda os rituais de canibalismo (possivelmente práticas antropofágicas) e os hábitos de pesca de tubarões na região. Exemplo Um dos relatos que ficaram famosos faz referência a como os goitacás tinham rituais de transição para a vida adulta de meninos que partiam para os mares somente com um toco em suas mãos, a fim de matar e trazer um tubarão para só então ter seus direitos efetivos. O certo é que os goitacás resistiram durante dois séculos à ocupação da região. Esses índios só foram vencidos efetivamente pela doença graças ao uso de partes contaminadas com varíola, o que minou terrivelmente a resistência local. Os goitacás passaram para a literatura como índios bravos, perigosos e selvagens. Sobre a efetiva origem desse grupo e a intensidade que levou ao massacre dele, como diversos outros discursos nacionais, experimentamos da negação à idealização de coragem regional. Os goitacás, no entanto, deixaram mais do que isso. Na Lagoa de Cima, região de Campos, há importantes comunidades pesqueiras. Além disso, práticas artesanais eficientes foram passadas de pai para filho. Na busca para recuperar tais conhecimentos e suas raízes, foi possível chegar ao conhecimento e à cultura ancestral dos goitacás. Ilustração do grupo indígena goitacás. Tronco linguístico jê Mas isso não é passado? Nós não podemos simplesmente ignorar ou, no máximo, lamentar que tenha acontecido? Não, isso não é passado! Afinal, associado à negação e ao desconhecimento, o processo de apagamento histórico é raiz legítima de desconhecimento e deslegitimação de direitos. Re�exão Judeus se organizaram no período pós-Segunda Guerra Mundial para obter em organismos internacionais o direito ao reconhecimento de território, o qual, aliás, os palestinos da mesma região pleiteiam e disputam. No mundo inteiro, o ato de buscar raízes históricas aponta para pertencimento e valores. Fazer o mesmo, portanto, é fundamental. É necessário fazer isso até que se reconheça que esses diversos grupos tinham língua, tecnologia e formas de desenvolvimento – e, parafraseando a grande professora Manuela Carneiro, que não pararam no tempo, que continuaram e continuam produzindo tecnologias, tratamentos e desenvolvimentos agrícolas fundamentais. A fala de Carneiro, aliás, deve nos nortear. Para culturas diversas dos povos originários do Brasil, a sensação entre os grupos é de uma marginalidade terrível, de inadequação gerada pelo padrão do colonizador, o que se mostra capaz de gerar alcoolismo, negação, fragilização... Notar que esses grupos têm uma forma própria de contar o tempo, cuidar da saúde, lidar com o transcendental é legítimo. Mais do que isso: essa atitude é de interesse comum, ou seja, trata-se de algo de que precisamos e buscamos como sociedade. Note então que, daqui por diante, não chegaremos nem a 1/10 dos milhões de povos e culturas dos povos originários na época da invasão ou do período das correrias. nvasão Invasão é a caracterização da chegada e das disputas que marcam o século XVI. orrerias Termo usado pela historiografia de autores ameríndios para caracterizar os efeitos do século XVII. Diz respeito a processos relacionados à intensificação das doenças, aos conflitos e à movimentação, em especial, para o interior de grupos diversos. É preciso iniciar um processo muito mais complexo: trata-se de uma mudança de seu olhar, construído e associado de forma preconceituosa. Invasões e conquistas, afinal, não são incomuns na história. Embora sempre haja olhares diversos sobre tais eventos, ambas são consideradas de maneira “naturalizada”, a qual, por sua vez, é vista com um teor de descobertas e salvações. Registro de um massacres a que os indígenas americanos eram comumente submetidos pelos conquistadores europeus. Verifica-se, assim, um olhar único, tendo em vista a ideia “civilizatória”, como se tais processos de conquista cultivassem um bem intrínseco. Veja! Mapa da presença indígena na costa. A domesticação de certas espécies vegetais – cujas características foram lentamente moldadas para otimizar o uso que certos grupos humanos faziam delas – constitui a base de todas as civilizações graças à possibilidade de produzir mais alimentos em uma área menor de solo, sendo capazes, portanto, de prover o sustento de cada vez mais bocas humanas em um mesmo lugar. Com o tempo, a consequência disso tende a ser o surgimento de populações numerosas, mais sedentárias e com hierarquias sociais complexas, indicando, por exemplo, os líderes políticos, as forças de guerra e as disputas de recursos. Observe que o grupo indígena jê não é uma etnia, e sim um tronco linguístico. Ele foi possivelmente consolidado na circulação de homens pelo interior do planalto brasileiro, o que lhe garantia certa condição de similitude – ao menos em termos técnicos. Atenção! Nesse momento, vamos nos basear na tese de doutorado de Andrey Nikulin, um trabalho bastante reconhecido na área, para explicar o que representaram esses grupos e o seu significado. Mas por que estudar troncos linguísticos para o estudo das organizações dos povos originários? Primeiramente, porque precisamos recuperar o papel da própria linguagem. Ela é muito mais do que um mero sistema comunicativo: trata-se de um conjunto histórico de símbolos e estruturas sociais. Em uma perspectiva sociocultural, a linguagem revela repositórios importantes de movimentações, compreensões do mundo, tecnologias e valores, permitindo a compreensão de grupos de formas diversas. A busca por informações e as trocas sobre tais grupos, assim como a compreensão dessa dinâmica, transformam a necessidade em fundamento. Para visualizar um pouco a complexidade do tronco linguístico e as suas relações, veja este mapa: Mapa com a representação dos troncos linguísticos. A família linguística jê é o agrupamento mais ramificado de todo o tronco macro-jê. Jê, jaikó, maxakalí, krenák, kamakã, karajá, ofayé, rikbáktsa, jabutí e (com algumas ressalvas) chiquitano. Os falantes das línguas macro-jê habitam uma vasta região que se estende, no eixo longitudinal, desde o litoral atlântico até o Bosque Seco Chiquitano e o Rio Guaporé e, no eixo latitudinal, desde o baixo Tocantins até o norte do atual estado do Rio Grande do Sul. Atualmente, totalizam aproximadamente 80 mil indivíduos,sendo as línguas mais faladas o kaingáng (~30 mil), o xavánte (~15 mil) e o mẽbêngôkre (~13,5 mil). (NIKULIN; SILVA, 2020, p. 27) Ao recuperar o que compreendemos como família linguística jê (ou macro-jê), Nikulin tinha como objetivo entender como grupos tão diversos e com trocas tão vivas mantiveram relações de tronco. Isso seria uma relação direta em estrutura de descendências ou de seus traços. A partir de investigações, também é possível que ela seja o gerador de vários termos e o primeiro em termos do número de línguas e de seus falantes. Pensar sobre isso nos ajuda a perceber tecnologias, histórias, visões de mundo e valores. Sabemos que a tradição, por exemplo, ainda é rica para perceber e compreender muitas das histórias e culturas locais. Saiba mais Ailton Krenak tornou-se notório em documentos, como Índios do Brasil na TV Brasil e Guerras do Brasil, nos quais mostra como vivemos um profundo desconhecimento. Krenak é de uma etnia do tronco linguístico jê na região de Minas Gerais. O tronco jê se “esparrama” e mostra o efeito dinâmico em nossa sociedade. Ele se subdivide em dois ramos: cerratense (= jê do Cerrado) e paranaense (= jê meridional lato sensu). Além disso, cada um deles também se subdivide em dois sub-ramos constituintes. O macro-jê é um dos troncos mais importantes da América do Sul em termos da profundidade temporal de sua diversificação. Até o presente momento, não houve nenhuma proposta reconstrutiva referente à sua protolíngua. Vários fatores teriam contribuído para a persistência dessa lacuna. Listaremos duas possibilidades: Diversas famílias e línguas têm sido incluídas nesse tronco erroneamente, impedindo, com isso, a detecção de correspondências sonoras regulares e conjuntos de cognatos que contemplassem todas as famílias do tronco (NIKULIN; SILVA, 2020, p. 46). A escassez de documentação das línguas macro-jê antes da década de 2000 seria outra questão, embora a situação venha se modificando com a aparição de novas descrições gramaticais e lexicográficas de alta qualidade. Investigações nos mostram como as culturas e as dinâmicas explicadas e investigadas pela antropóloga Manuela Carneiro têm sentido e se materializam em toda a sociedade. Uma explicação: o tronco jê não unifica os tapuias, mas mostra a historicidade de sua etnia, de suas marcas e de suas estruturas de desenvolvimentos. A adoção de palavras relativas à pesca, à guarda de alimentos e aos recursos de caráter político nos permitem vivenciar e experimentar tal historicidade de maneiras complexas. Por isso, esse tipo de estudo é o caminho para uma compreensão longa e complexa de tais grupos. Amazônia O uso das línguas indígenas, como demonstramos, merece atenção e precisa ser prestigiado, até porque há coisas que, para serem lembradas, exigem o conhecimento da língua do povo. As línguas indígenas, afinal, guardam nomes e conhecimentos que apenas quem as fala e entende pode ter acesso. Somos responsáveis por proteger e entender tanto os processos sociais quanto os de memória e esquecimento desses bens culturais, os quais, além de pertencerem aos povos indígenas, constituem um patrimônio da humanidade. A natureza e a língua se conectam como o elo de um povo. Basta pensar: uma planta é apenas uma planta; assim, esse ser vivo depende de uma relação estabelecida para ela se tornar remédio, símbolo, beleza, veneno, enfeite... É pela língua e pela estrutura de debates que se forma o elo de um povo e do seu entorno. Vejamos um exemplo de como a natureza é nomeada entre buritizais: Para você, são apenas palavras – e assim é quando ocorre o desconhecimento das narrativas que protegiam e viviam o território a partir do uso de nomes e pelos conhecimentos das histórias. Com isso, perdem-se os símbolos, os valores associados, as metáforas e os valores que dali se inserem. Os wapichana acreditam no mudo apelo das coisas por meio dos panaokarus (bicho, animal selvagem): trata-se da “alma das coisas”. Talvez a preservação do território, no que se refere à biodiversidade, tenha até uma relação direta com valores e nomes que as línguas indígenas transportam pela oralidade ao longo dos tempos. Saiba mais Filmes como Avatar, segundo o próprio diretor, James Cameron, reproduzem narrativas de povos amazônicos e sua relação com a floresta. Awaruykuwaru Tynyz (redemoinho). Arutynyz (avô veado mateiro). Kuwitotynyz (avô calango). Tynyz (o mais velho, o primeiro). Perceba que as tradições culturais da Amazônia trazem sua histórica tecnologia no todo. Pare para pensar na tecnologia e nos processos da construção de uma casa. Com suas paredes e seus esteios, as casas, para os wapixana, possuem panaokaru (ou neles habitam os panaokarus dos materiais de que são feitos). Talvez, por isso, os mais velhos tenham tanta preocupação diante da necessidade, por falta de matéria-prima, de se construir uma casa de cimento e telha. Se compararmos as matérias-primas da casa com a língua wapichana, será possível ver a língua indígena como esteios da morada dos wapichana. Tal hipótese talvez nos permita ver a língua indígena semeada dentro de cada um e pensar que basta usá-la, lembrar sua história, para ela florescer e voltar a dar os frutos que sempre alimentaram a alma do povo. Índia wapichana colhendo mandioca, Terra Indígena Malacacheta. Precisamos virar nosso olhar para a construção do discurso e da memória, além de estarmos atentos às questões linguísticas, pois: Nas línguas amazônicas se encontram fenômenos que não se encontram em línguas de outras partes do mundo, ou então que aqui sejam mais frequentes fenômenos que são raros noutros lugares. [...] Em alguns casos esses fenômenos exigem a revisão de pontos de teoria da linguagem antes propostos sem seu conhecimento. (RODRIGUES apud QUEIXALÓS, 2000, p. 26) O estudo de aspectos linguísticos só ocorreu na pesquisa quando eles destacaram algum aspecto cultural importante para o povo e que acontecia com frequência. Algumas particularidades linguísticas são inventariadas para que futuros estudos possam aprofundar cada uma de suas questões. Porém, se as políticas de desenvolvimento – ou a falta delas – continuarem a determinar a rápida extinção das línguas amazônicas, é mais provável que fenômenos raros ou únicos, ainda que possuam uma importância crítica para a melhor compreensão da linguagem humana, venham a desaparecer sem sequer terem sido identificados (RODRIGUES apud QUEIXALÓS, 2000, p. 26). Floresta Amazônica no Brasil, América do Sul. Placa na Ilha de Itamaracá, em Itapissuma, Brasil, explicando o nome da ilha (origem na língua indígena Tupi). Se “a língua é uma força ativa na sociedade, um meio pelo qual indivíduos e grupos controlam outros grupos ou resistem a esse controle, um meio para mudar a sociedade ou para impedir a mudança, para afirmar ou suprimir as identidades culturais” (BURKE, 1995, P. 41 ), em Roraima, esse campo ainda precisa ser mais trabalhado. As pesquisas históricas, em suma, precisam problematizar mais a questão – e nós estamos dispostos a continuar esse estudo. Mas havia povos na Amazônia? A �oresta não é um problema, gerando a não ocupação humana? Essas teses de determinismos geográficos estão vencidas e devem ser abandonadas. Antes da chegada do colonizador, a Amazônia já era ocupada por inúmeras etnias indígenas, e algumas delas viviam sob um governo centralizado. Exemplo Eram regimes muito equivalentes às diversas ocupações espalhadas pelo mundo em termos de política e poder, ainda que sem centralidade. Onde hoje está localizada a Amazônia brasileira, já existiam várias etnias com culturas distintas entre si. Conhecemos todas? É claro que não! Mas sabemos que eram etnias complexas com traços linguísticos importantes, como aruak, karib, tucano, pano e jê. Seus modos de vida permitiam uma integração com a natureza, isto é, eles conheciam a terra e seus segredos, sabiam onde e quando poderiam plantar e colher, caçar e pescar, construir suas malocas ou realizar outras atividadesno cotidiano. Note que essa visão não é um chute ou uma idealização de tais figuras – são mecânicas, registros e materiais. Saiba mais A forma da agricultura nos trópicos dialogou com os conhecimentos desses grupos. A adoção da mandioca, por exemplo, permitiu a própria expansão em grandes distâncias. Do mesmo modo, as tecnologias de cerâmica e de trancamento de palha não eram genéricas, e sim específicas, o que propiciou a criação de produtos, ferramentas e artes absolutamente complexas. Vejamos agora esta reflexão sobre o impacto da conquista: Entretanto, com a chegada da colonização, os modos de vida foram modificados, sendo que a ocupação portuguesa na região amazônica se deu no início do século XVII, com a fundação do Forte do Presépio, o que deu origem à cidade de Santa Maria de Belém do Grão-Pará. A Amazônia foi ocupada inicialmente por exploradores luso-brasileiros, tropas de resgate, droguistas do sertão e por missões religiosas. Essas últimas tiveram participação significativa na ocupação espacial da região, que, juntamente com as tropas de resgate portuguesas, visavam caçar os indígenas e torná-los escravos das lavouras. As primeiras cidades a surgirem na região foram Belém, Bragança, Santarém, Óbidos e Monte Alegre. O contato com o colonizador foi violento desde o início. O não indígena português precisava garantir as fronteiras contra os espanhóis e, para isso, era necessário expulsar e manter afastado o indígena que lutava contra esse avanço. Com isso, inicia-se o processo de “amansamento”, tendo como consequência três formas de sujeição: os descimentos, os resgates e as guerras justas. (PORTUGAL; HURTADO, 2015, p. 67) Imagens construídas Chegou a hora de falar sobre o encontro. Já mostramos como a invasão e a conquista impactaram os povos nativos, mas o chamado período das correrias, com a consolidação da colônia, é fundamental. Você conheceu esse período com outros nomes: entradas e bandeiras ou a expansão do Brasil. Esse conhecimento foi consolidado aos poucos – às vezes, até de modo romantizado, como a narrativa sobre a chegada dos jesuítas em São Paulo; outras, de maneira mais etnográfica, o que é explicado pelas outras "castas de gentio". Quadro Fundação de São Paulo, produzido em 1909 por Oscar Pereira da Silva. Contudo, no século XVI, ainda prevalecia uma visão que adere estreitamente ao etnocentrismo tupi. Desse modo, pela visão dos colonizadores, o outro era assim retratado: São nômades, não lhes conhecendo aldeias. Não plantam roças e vivem de caça e coleta de frutos silvestres; sua fala é travada e não é passível de escrita. São traiçoeiros e não enfrentam os inimigos em campo aberto, senão lhes armam ciladas. Comem sua caça crua ou mal assada, omofagia que prenuncia o que constitui o paroxismo da selvageria, sua antropofagia alimentar. (SOUSA; VARNHAGEN, 1971, p. 58) Esse é um assunto crucial sobre o qual falamos acima. E as representações sobre a prática e os grupos distingue-os a partir de uma representação que evidencia sua visão de mundo, como: Canibalismo de vingança O dos tupi. Canibalismo alimentar O dos bárbaros aimorés, dos goitacás, e alguns mais. Uns seguem à risca um ritual elaborado e se comem carne humana, "não é por gosto ou apetite que a comem", mas por vingança. Os outros apenas comem para se alimentar: "Comem estes selvagens carne humana por mantimento, o que não tem o outro gentio que a não come senão por vingança de suas brigas e antiguidade de seus odios" (SOUSA; VARNHAGEN, 1879 (1587), p. 74). Notem que tais relatos – que não constituem nosso objeto de estudo – criaram debates históricos sobre a selvageria, o barbarismo e os civilizados, colocando na figura do canibal, um medo histórico entre os europeus, uma iconografia perfeita e repetida. Em 1500, Pero Vaz de Caminha viu "gente" em Vera Cruz. Falava-se então de homens e mulheres. O escambo povoou a terra de "brasis" e "brasileiros" . Os engenhos distinguiram o "gentio" insubmisso do "índio" e do "negro da terra" que trabalhavam. Os franceses, que não conseguiram se firmar na terra, viram "selvagens". Temas aos quais os responsáveis por esses relatos não resistiam, gerando para a Europa eternos debates sobre paraíso ou inferno, sempre envolviam: Pelo fim do século XVI, estavam consolidadas, na realidade, duas imagens de índios que só muito tenuamente se recobrem: a francesa (que o exalta) e a ibérica (que o deprecia). Uma era a imagem de viajante; a outra, de colono. As índias reservavam uma parte da produção para fins próprios, com implicações não apenas materiais como também simbólicas. As cuias são os pratos, os copos e toda a baixela dos índios. Cada um tem em sua casa uma delas reservada para dar a beber, ou água ou os seus vinhos ao Principal, quando o visita, ou casualmente, ou em algum dia de convite. Consiste o distintivo dela, em ser ornada de algum búzio, seguro por uma bola de cera, toda cravada de miçanga, e sua muiraquitã, em cima, que lhe serve de asa em que pega o Principal. Oferece-se ao dito, em cima de uma salva que é feita de ponteiros de patauá... Por mais diligência que fiz por comprar uma dessas, à satisfação da sua dona, não foi possível, tanto é o apreço que fazem da taça por onde bebe o seu Principal. (MONTEIRO, 2001, p. 71) Ao comentar esse e outros exemplos de mitologias que tematizam a gênese do homem branco, Manuela Carneiro da Cunha aponta que o aspecto a ser salientado "é que a opção, no mito, foi oferecida aos índios, que não são vítimas de uma fatalidade mas agentes de seu destino. Talvez A sexualidade. A liberdade. A nudez. A figura do casamento não focado em uma monogamia rígida. A forma como as crianças são criadas. As relações entre homens e mulheres de mesmo gênero. escolheram mal. Mas fica salva a dignidade de terem moldado a própria história" (CUNHA, 1992, p. 19). Certamente, reconhecer as lideranças indígenas como sujeitos capazes de traçar a própria história se trata de um avanço para a historiografia brasileira. No entanto, é necessário considerar que as escolhas pós-contato sempre foram condicionadas por uma série de fatores postos em marcha com a chegada e a expansão dos europeus em terras americanas. A descoberta da América pelo navegador Américo Vespúcio, em gravura de 1580. Estreitamente ligada às estratégias militares, evangelizadoras e econômicas dos europeus, a catástrofe demográfica que se abateu sobre as sociedades nativas deixou um quadro desesperador de sociedades fragmentadas e conectadas em uma trama colonial cada vez mais envolvente. Diante de condições crescentemente desfavoráveis, as lideranças nativas esboçavam respostas das mais variadas, frequentemente lançando mão de instrumentos introduzidos pelos colonizadores. A resistência, nesse sentido, não se limitava ao apego ferrenho às tradições pré-coloniais: ela ganhava força e sentido com a abertura para a inovação. Confederação dos tamoios Neste vídeo será apresentado um em estudo de caso sobre a Confederação dos Tamoios. Falta pouco para atingir seus objetivos. Vamos praticar alguns conceitos? Questão 1 Marque a alternativa correta sobre o uso da denominação “tapuia”. Parabéns! A alternativa A está correta. %0A%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%3Cp%20class%3D'c- paragraph'%3EA%20nomenclatura%20%E2%80%9Ctapuias%E2%80%9D%20se%20caracteriza%20pela%20ideia%20de%20inimigos%20e%20deriva%20 guarani)%20e%20os%20grupos%20diversos%20que%20eram%20mencionados%20e%20trabalhados.%20Trabalhos%20mais%20tradicionais%20desc A Eram os povos considerados inimigos ou bárbaros pelos tupis. B Eram os povos de origem tupi-guarani que circulavam no litoral. C Eram os indivíduos que realizavam guerra entre os tupis. D Eram os grupos não tupis considerados amigos e parceiros de guerra. E Eram os povos considerados aliados dos portugueses na costa. Questão 2 A conquista da América pelos europeus contou com o domínio e o extermínio de populações nativas. No entanto, ela também se deu graças à assimilaçãoe ao estabelecimento de alianças. Sobre esse tema, assinale a opção que descreve o significado de uma aderência dos portugueses a um “etnocentrismo tupi”. Parabéns! A alternativa D está correta. %0A%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%3Cp%20class%3D'c- paragraph'%3EDurante%20os%20primeiros%20s%C3%A9culos%20de%20coloniza%C3%A7%C3%A3o%2C%20as%20principais%20descri%C3%A7%C3% Considerações �nais Chegamos ao final deste nosso conteúdo. Exploramos nele a riqueza e a diversidade dos povos originários do Brasil antes mesmo que o país existisse. Abordamos os estudos mais aceitos na atualidade sobre a presença humana na América do Sul e, em especial, no território que chamamos de Brasil, frisando que sua ocupação pode ser mapeada e datada entre 50 mil e 25 mil anos atrás. A tendência é que essa longa variação temporal seja mais reduzida à medida que as investigações se mostrarem cada vez mais interdisciplinares e profissionais. Também estivemos atentos ao processo de dispersão e ocupação do tronco linguístico tupi-guarani sobre o território brasileiro. Com cerca de 41 línguas aparentadas, esse grande tronco dominou a costa atlântica da América do Sul e, apesar de suas variações linguísticas e dialetais, imprimiu certa hegemonia cultural no litoral quando da chegada dos europeus. Esses grupos, contudo, provinham de regiões mais ao interior, tendo realizado, durante cerca de 2.500 anos, um deslocamento das planícies amazônicas em direção à costa. Só foi possível realizar um mapeamento desses deslocamentos graças aos trabalhos de arqueólogos, antropólogos, historiadores e linguistas. A Apesar da violência do processo colonizador, houve uma grande valorização dos ideais de mundo dos tupis, como a divisão em aldeias, que foi utilizada durante todo o período colonial em respeito aos nativos. B Falar de etnocentrismo tupi significa citar a força dos tupis frente à colonização, já que, em muitos espaços, eles conseguiram se tornar a principal força do processo colonizador. C Com a conquista da América pelos europeus, os tupis conseguiram estabelecer seu domínio sobre o interior, emergindo desse processo o “etnocentrismo tupi”, isto é, a submissão dos demais povos nativos à sua força. D Os portugueses que colonizaram a América aliaram-se a grupos de matriz tupi e tomaram determinados conceitos e noções emprestadas sobre os tupis e outros nativos, como, por exemplo, o uso da denominação “tapuias”. E No processo de colonização, os tupis conseguiram impor derrotas à estratégia de domínio europeia, pois eles impediram, por exemplo, a catequização dos indígenas na colônia. Destacamos os demais grupos nativos que estavam presentes na ocupação do território brasileiro muito antes da conquista e que sobrevivem até os dias atuais. Marcados pela alcunha de “tapuias”, eles, na verdade, são bastante diversos. Além disso, mostramos que essa nomenclatura obedece a uma lógica dos tupis, que se descreviam como superiores aos tapuias, considerados bárbaros e inimigos. Por fim, ao abordar essa diversidade linguística e cultural, tratamos sobretudo de goitacás, aymorés e potiguares, assim como das etnias presentes no tronco linguístico jê (ou gê). Podcast Para encerrar, ouça um panorama sobre os principais assuntos abordados. Referências BROCHADO, J. P. Migraciones que difundieron latradición alfarera tupi-guarani. Relaciones de la Sociedad Argentina de Antropología. tomo 7. 1973. p. 7-39. BURKE, P. A arte da conversação. São Paulo: Unesp, 1995. CUNHA, M. C. da. Legislação indigenista no século XIX. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1992. FAUSTO, C. Os índios antes do Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. GOODY, J. A domesticação da mente selvagem. Petrópolis: Vozes, 2012. GUIDON, N. História dos índios do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. LATHRAP, D. O Alto Amazonas. Lisboa: Verbo, 1975. MONTEIRO, J. M. Tupis, tapuias e historiadores: estudos de história indígena e do indigenismo. Tese apresentada para o concurso de livre docência. Área de Etnologia. Subárea: História Indígena e do Indigenismo. Campinas. ago. 2001. NEVES, W. A. et al. Origem e dispersão dos tupi-guarani: o que diz a morfologia craniana?. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas. v. 6. 2011. p. 95-122. NIKULIN, A.; SILVA, M. A. C. da. As línguas maxakalí e krenák dentro do tronco macro-jê. Cadernos de etnolinguística. v. 8. n. 1. 2020. p. 1-64. NOELLI, F. S. As hipóteses sobre o centro de origem e rotas de expansão dos tupi. Revista de Antropologia. v. 39. n. 2. 1996. p. 7-53. QUEIXALÓS, F. Langues de Guyane Française. As línguas amazônicas hoje. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2000. p. 299-306. PORTUGAL, A. R.; HURTADO, L. R. de. (Orgs.). Representações culturais da América indígena. São Paulo: UNESP/Cultura Acadêmica, 2015. RODRIGUES, A. D. Línguas brasileiras. Para o conhecimento das línguas indígenas. São Paulo: Edições Loyola, 1986. RODRIGUES, A. D. Línguas indígenas: 500 anos de descobertas e perdas. Delta: Documentação e Estudos em Linguística Teórica e Aplicada. v. 9. n. 1. 1993. p. 83-103. SOUSA, G. S. de; VARNHAGEN, F. A. de Tratado descritivo do Brasil em 1587. Nabu Press, 2010. SOUSA, G. S. de; VARNHAGEN, F. A. de Tratado descritivo do Brasil em 1587. Rio de Janeiro: Typographia de João Ignacio da Silva, 1879. Explore + Sugerimos que você consulte os seguintes textos: Ideias para adiar o fim do mundo, de Ailton Krenak, publicado pela Companhia das Letras, em 2019. História dos índios no Brasil, de Antônio Porro e Manuela Carneiro da Cunha, publicado pela Companhia das Letras, em 1992. Falando dos índios, de Darcy Ribeiro, publicado pela Fundação Darcy Ribeiro, em 2010. Negros da terra: formas de escravismo indígena Prof. Luis Henrique Souza dos Santos Descrição Os processos de redução da diversidade dos povos indígenas à lógica de exploração colonial e a agência nativa pela sobrevivência de seus costumes e visões de mundo. Propósito A compreensão da relação entre os povos indígenas e os colonizadores e seus descendentes na estrutura colonial é fundamental para os profissionais de Educação e cidadãos, de maneira geral, poderem se posicionar diante dos desafios contemporâneos em torno da questão indígena no país. Objetivos Módulo 1 O Novo Mundo com velhos habitantes Reconhecer a diversidade étnica das populações nativas antes e durante a conquista da América pelos europeus. Módulo 2 Negros da terra: formas do escravismo indígena Identificar as formas que o escravismo assumiu sobre os povos indígenas no Brasil colonial. Módulo 3 Guerras contra a conquista Analisar a configuração das resistências indígenas nas ações coloniais para com os povos nativos. Introdução O mês era agosto, no ano de 2021. Você, caro estudante, deve ter acompanhado nos noticiários e nas redes sociais as manifestações com numerosos indígenas nas largas avenidas de Brasília e, mais especificamente, no acampamento de milhares deles na Esplanada dos Ministérios. De forma simbólica, o acampamento recebeu o nome de “Luta pela vida”, e contou com mais de seis mil indígenas, de mais de 170 etnias distribuídas pelo Brasil. Essa mobilização tinha um propósito: demonstrar a insatisfação dos povos nativos para com a tese do “Marco Temporal”, que estava em julgamento no Supremo Tribunal Federal. O “Marco Temporal” foi assim denominado por estabelecer um limite – a promulgação da Constituição de 1988 – para que os povos originários pudessem demandar a demarcação de suas terras, garantindo dessa maneira a inviolabilidade de seu território. Com essa determinação, os indígenas só poderiam recorrer à justiça para requerer a demarcação se comprovassem, juridicamente, a ocupação daquelas terras até a promulgação da Constituição de 1988. Entre os dizeres dos indígenas em agosto de 2021, disseminou-se a frase: “Nossa história não começa em 1988”. É aqui que nossa atenção deve estar ao nos depararmos com casos como esse relativoàs populações originárias. Como pode o Estado brasileiro determinar uma data para que esses povos reivindiquem suas terras, quando eles existem muito antes da própria fundação do Brasil? A sobrevivência dos povos indígenas no mundo contemporâneo tem sido creditada à mudança de mentalidade da legislação portuguesa (durante o período colonial) e brasileira (após a independência) com relação às populações nativas aldeadas, isoladas e assimiladas. No entanto, esse discurso predominante ignora a própria agência dos povos originários na sua conservação, apesar dos avanços do “homem branco” sobre suas terras e cultura. Será a respeito desses problemas que nos debruçaremos no decorrer deste tema. 1 - O Novo Mundo com velhos habitantes Ao �nal deste módulo, você será capaz de reconhecer a diversidade étnica das populações nativas antes e durante a conquista da América pelos europeus. Comunidades indígenas e formas de organização nativas em 1500 O que hoje chamamos de Brasil compreende um território vasto, limitado pelo Oceano Atlântico desde a fronteira com o Uruguai até as franjas do Amapá com a Guiana Francesa, sem contar as fronteiras com outros oito países no interior continental. Atlas Atlântico Português, 1519. Todo esse longo emaranhado de regiões é fruto de um processo histórico de ocupação dessas terras, fundamentalmente por portugueses, pela apropriação do trabalho negro escravizado e de imigrantes europeus, além do gozo da mão de obra indígena. Entender a complexa trama de relações que levaram à colonização e criação do Brasil é um desafio com o qual não conseguiremos lidar neste momento. Porém, iremos abordar, com o máximo de profundidade possível, as relações estabelecidas entre os povos nativos e a colonização: Quem são os povos indígenas? De partida, deve-se destacar que o termo “índio” é impróprio, assim como a própria denominação indígena, já que, originalmente, foi utilizada pelos europeus para caracterizar, como sendo a mesma coisa, povos de corpos, línguas e costumes muito distintos uns dos outros. Além disso, seu uso pode ser traçado como aquele que é natural da Índia, ou seja, do subcontinente asiático ao qual os europeus buscaram chegar no período das Grandes Navegações, nos séculos XV e XVI. Então, como denominar esses povos? Atualmente, antropólogos, historiadores, indigenistas e os próprios órgãos estatais responsáveis por estipular políticas e lidar com essas populações aceitam nomes como “povos nativos”, “povos originários”, “povos indígenas” (sempre no plural), ou mesmo as designações que esses próprios povos estabelecem para sua autodeterminação, muitas vezes apropriando-se de denominações dadas pelos colonizadores. Em suma, estamos diante de uma rede de significados ao tratar dos povos nativos no período colonial: Primeiro O olhar dos colonos sobre os indígenas. Segundo O olhar dos indígenas sobre outros indígenas. As áreas de conhecimento que têm realizado maiores avanços nos estudos dessas populações no território brasileiro são a antropologia e a arqueologia. Especialmente a arqueologia tem conseguido mapear o longo período de ocupação desses povos, que remonta a, pelo menos, 12 mil anos. Sendo assim, estamos aqui diante de uma história que conhecemos muito pouco, já que, com frequência, começamos a falar da vida dos povos originários a partir da colonização, que ocorreu há apenas cinco séculos. Nas escavações que vêm sendo realizadas por todo o país, destaca-se a presença da cerâmica, manipulada de diferentes formas, especialmente nas tradições aratu e uru (FAUSTO, 2000, p. 54). Pensemos em um exemplo: Atentos aos efeitos provocados pelo ato de nomear povos tão distintos, podemos refletir sobre a palavra “tapuia”. Ao aportar no litoral atlântico do Brasil, os portugueses encontraram agrupamentos nativos do grupo linguístico tupi-guarani. Nas regiões da Bahia, deparam-se com os tupinambás, povo que ficou conhecido por sua disposição para a guerra e pelos rituais de canibalismo. Nesse contato com os tupinambás, os portugueses assumiram muitas de suas estratégias de relação com outros povos mais para o sertão, chamados de tapuias, significando bárbaros, desprovidos “de aldeia, agricultura, canoa, rede e cerâmica” (FAUSTO, 2000, p. 48). Aratu É proveniente do nordeste brasileiro. Parece ter desaparecido antes mesmo dos efeitos da conquista no século XVI, já apresentando decadência nos séculos X-XI. Uru É proveniente da região amazônica. Parece ter se tornado predominante a partir dos séculos X-IX (FAUSTO, 2000, p. 54). Essas formas de se confeccionar e manipular peças em cerâmica são relevantes para a datação e o mapeamento do deslocamento de povos e seus respectivos costumes, além de destacarem a própria organização das aldeias ou ocupações. Outro lugar-comum ao tratar dos povos indígenas é a aldeia, pensada sempre de maneira circular e as habitações, em formato de oca. Disposição anelar em povoado Xingu. A disposição anelar das aldeias, no entanto, está identificada com as povoações na região do Alto Xingu, com tradições linguísticas distintas que, antes do período da conquista, parecem ter construído espaços de convívio e fortificação contra tupis ou jês – quem sabe até os dois –, que eram menos sedentarizados e mais belicosos. É provável que essa disposição anelar tenha se expandido com o passar dos séculos e com as realocações, tópico que retornará ao nosso diálogo. A população que vivia na floresta amazônica, assim, era diversa, complexa e, fundamentalmente, descentralizada. Uma das principais preocupações de antropólogos e arqueólogos do século XX – talvez se apropriando de preocupações presentes nos textos de autoridades coloniais – era a ausência de estado entre esses povos. Muitas explicações foram aventadas, com destaque para a suposição que vigorou durante muito tempo de que a não formação de um estado, à semelhança do que ocorreu no império inca, se dava pela presença da própria floresta. Não era possível construir estradas, não havia plantações extensivas, nem era possível concentrar grande contingente nos núcleos populacionais. No entanto, olhar para os povos da várzea amazônica e das margens dos principais rios do sul amazônico somente pela sua falta foi o principal erro dessas interpretações. Diante da profusão de povos pelo território, uma estratégia adotada pelos antropólogos e por linguistas tem sido a de mapear os troncos linguísticos e suas variações. Podemos destacar dois esforços de fôlego na apresentação e preservação da diversidade cultural e linguística nativa no Brasil. Mapa etno-histórico do Brasil e regiões adjacentes de Curt Nimuendajú. O primeiro é o “Mapa etno-histórico do Brasil e regiões adjacentes”, de Curt Nimuendajú, etnólogo alemão que se estabeleceu profissionalmente no Brasil e desenhou algumas versões desse monumental mapa nos anos 1940 para diferentes instituições (NIMUENDAJÚ, 2017). Além do mapeamento, esse documento propicia uma compreensão de certos deslocamentos de grupos indígenas, destacando sua mobilidade e adaptação. O outro esforço, mais recente, é do Centro de Documentação de Línguas Indígenas (CELIN) localizado no Museu Nacional/UFRJ, que lida com a grande diversidade indígena e estabelece conexões sem apresar a cultura multiétnica nativa. Conversão e deslocamentos indígenas no sertão No processo de conquista da América portuguesa, portugueses e seus descendentes estabeleceram-se, em um primeiro momento, no litoral. Construíram postos mercantis, em que exerciam pouco poder sobre os grupos populacionais locais, mas seu foco e efeito de controle se deu na constituição de cidades, com instâncias políticas e administrativas. No império português, as Câmaras Municipais têm uma função fundamental na organização local e, apesar de congregarem os chamados “ homens bons” da região, tornaram-se apoio e utilizavam suas ações para reivindicar privilégios com a Coroa lusitana. Guida Marques, em artigo de 2014, destaca essa posiçãodupla das câmaras, estudando mais especificamente o caso da Bahia durante o século XVI e XVII e sua luta contra os “gentios” (MARQUES, 2014). Os índios que não eram vertidos ao cristianismo, considerados “bravos” ou “bravios”, passavam à categoria de “bárbaros”, podendo, assim, ser caçados e feitos escravos. Pela limitação de expansão dos europeus sobre a América, esses índios geralmente ocupavam o que era chamado de “sertão”, terra desconhecida e para dentro. Homens bons Homens pertencentes ao que convencionamos chamar de "elite" colonial. Nesse grupo, ao longo do período colonial, podemos incluir os grandes proprietários de terras, de fazendas de cana, de fumo, de algodão e, principalmente, senhores de grandes plantéis de escravos. Somente no século XVIII e XIX podemos incluir, nessa denominação genérica, os grandes comerciantes, que, nos séculos XVI e XVII apesar de vultuoso patrimônio, eram considerados de condição social inferior aos senhores de engenho e de fazendas. Nesse longo processo de assentamento das populações de origem europeia, principalmente portuguesas, chamadas no geral de colonos, o contato com os povos nativos gerou conflitos e acomodações. No que se refere aos conflitos, podemos destacar as incursões indígenas às fazendas, as incursões para expulsar e apresar índios lideradas pelos bandeirantes (aspecto que trataremos mais à frente), entre outras rusgas de colonizadores e seus descendentes com os indígenas. Obra de Jean Baptiste Debret, 1830. Já com relação às acomodações, destacam-se esses mesmos conflitos nos quais os nativos tomam partido. Ou seja, ao tratar com diferentes povos, europeus aliavam-se a determinado grupo, ao passo que guerreavam com outros. Tupinambás – Gravura de Jean de Lery Um dos exemplos mais conhecidos dessas parcialidades entre indígenas e europeus está na tentativa de colonização francesa no Rio de Janeiro, com a construção do forte de Coligny sob a liderança de Nicolas Durand de Villegaignon, nos anos 1550. Após disputas religiosas entre os franceses, um grupo de protestantes decide abandonar a fortaleza e buscar a sorte de sobrevivência entre os tupinambás. Do relato de um dos missionários que decidiu aventurar-se por pequeno período entre os índios, Jean de Léry, depreende-se, também, que os franceses não eram os únicos a estabelecer alianças com os povos nativos, nem mesmo a viver entre estes. Assim, abrimos espaço para tratar de dois tipos bastante comuns no período da conquista. Muito corriqueiros para várias nações europeias, eram os náufragos e o que em português convencionou-se chamar de lançados. Um costume dos marinheiros, quando se colocavam em direção a terras desconhecidas, era recolher meninos para a viagem; à medida que se aproximavam da costa, lançavam esses jovens em terra firme, para que estabelecessem contato, por imersão, com as populações nativas. De outra feita, buscando a sobrevivência, os náufragos das embarcações se assentavam com os povos nativos, descobrindo seus modos e sua linguagem. O caso mais conhecido na história do Brasil talvez seja o de Diogo Álvares Correia, o Caramuru, que passou a vida entre os indígenas na Bahia e se tornou conexão importante para o estabelecimento dos portugueses no Recôncavo, costurando casamentos de seus filhos e filhas com homens lusitanos (AMADO, 2000). Obra Episódios da vida de Diogo Álvares Correia, o Caramuru, autor desconhecido. O segundo tipo, que recebe maior atenção da historiografia e da memória popular acerca da colonização e seus contatos com os indígenas, foram os missionários religiosos. No caso do Brasil, a ordem religiosa que mais se destacou foi a Companhia de Jesus, fundada em Roma na esteira do Concílio de Trento e do movimento de Contrarreforma. Voltados para a conversão de pagãos e para a luta contra o protestantismo na Europa, os jesuítas rapidamente se dedicaram à redução das populações ameríndias ao cristianismo romano. Representativa dessa importância foi a presença dos inacianos nas embarcações que chegaram à Bahia para a fundação de Salvador e do sistema de Governo-Geral, com o Governador Tomé de Sousa, em 1549. O missionário espanhol José de Anchieta foi, junto com Manuel da Nóbrega, o primeiro jesuíta que Ignacio de Loyola (fundador da Companhia de Jesus) envia para a América. Por fim, cumpre destacar que a ocupação do litoral pelos europeus e seus descendentes na construção de fazendas e cidades voltadas para o comércio atlântico, durante o século XVI e XVII, contou com a assimilação e dizimação das populações indígenas, como já é conhecido pelos debates mais recentes da historiografia. Contudo, as populações nativas sobreviveram à conquista. E essa sobrevivência está relacionada tanto a um isolamento em virtude dos limites de avanço da conquista no território quanto aos próprios deslocamentos de grupos inteiros na busca por segurança e por mitos de salvação. Nesse sentido, destacamos dois exemplos bastante elucidativos da sobrevivência pela transumância: Busca pela “terra sem mal” Trata-se de uma prática conhecida como messiânica pela historiografia, liderada pelos caraíbas, aos quais eram atribuídos poderes de cura e profecia no tronco linguístico tupi (VAINFAS, 1995). Os caraíbas, diferentemente do que se considera sobre as religiosidades nativas, não estavam fixos em uma tribo e eram caracterizados justamente pela sua desterritorialização e por ocupar a floresta (FAUSTO, 2000, p. 58). Família Caraíba. Exerceram função fundamental na construção de “heresias”, de concepções religiosas metamorfoseadas e na articulação de grandes contingentes indígenas para se deslocarem em direção ao sertão. Ainda em termos religiosos, aparece também uma “religião nativa”, construída pelos missionários com nomes e cosmogonias indígenas modificadas. Cristina Pompa chama atenção para essa construção por conta do principal problema dos missionários: a dificuldade de ensinar nova religião a populações que não tinham uma religião institucionalizada como eles conheciam e estavam conhecendo entre maias e astecas na América Hispânica, a quem chamavam de pagãos (POMPA, 2003). Formação de novos agrupamentos É o caso dos bororo (FAUSTO, 2000, p. 50). Sendo uma das populações ameríndias mais conhecidas da atualidade, ocupando regiões do sul do Brasil, com uso de adereços e costumes bastante característicos e estudados pelos antropólogos no século XX, é possível que sua origem esteja associada ao deslocamento de outros grupos indígenas e de sua mistura a povos já estabelecidos no sul do país há alguns séculos. Índios Bororo. Ou seja, os deslocamentos em virtude da pressão da conquista sobre o sertão podem ter sido fatores motivadores para a miscigenação e criação de novas identidades e novas práticas entre povos indígenas. Encontros e contatos dos europeus com os “selvagens” A descrição desse Novo Mundo e de seus habitantes, com corpos distintos, costumes exóticos e habilidades diferenciadas coube aos chamados “cronistas”, europeus enviados juntamente à expedições, que se destinavam a escrever sobre o que viam e viviam. Acontece que se tornou lugar-comum tomar as descrições dos cronistas como descrições acuradas dos modos de vida dos indígenas. Somente após a especialização dos estudos históricos e antropológicos começou-se a chamar atenção para o enviesamento desses escritos. O olhar colonizador desses cronistas passou a ocupar esses estudos, que questionavam as descrições e os dados que expunham, tornando um pouco mais difícil a tarefa de chegar a relações dos costumes indígenas, já que havia muitos exageros em suas descrições. Carta de Pero Vaz de Caminha. Tomemos aquele que ficou marcado como o primeiro relato do encontro entre portugueses e indígenas – conhecidos mais tarde sob a denominação de botocudos, do tronco linguístico macro-jê –, a célebre carta de Pero Vaz de Caminha ao rei de Portugal sobre a descoberta das terras de Vera Cruz. Sem nos debruçarmos sobre toda a carta, algunstrechos são interessantes para notarmos tópicas da relação entre europeus e os ameríndios (HOLANDA, 2000). Depois de aportarem na foz de um rio, encontraram-se com um grupo de cerca de vinte indígenas, todos nus, os quais não “estimam nenhuma cousa cobrir nem mostrar suas vergonhas. E estão acerca disso com tanta inocência como têm em mostrar o rosto.” (CAMINHA, fl. 2v). A inocência do indígena era uma das tópicas mais recorrentes da cronística portuguesa, assim como associá-la à infância, estabelecendo os degraus de evolução social no qual o ameríndio se encontra no primeiro estágio (HOLANDA, 2000). Outro aspecto fundamental eram os interesses portugueses nas conquistas de novas terras: ouro e prata. Para tal, Caminha constrói interessante contato entre indígenas e o capitão-mor da frota. [...] entraram e não fizeram nenhuma menção de cortesia nem de falar ao capitão nem a ninguém. Um deles, porém, pôs olho no colar do capitão e começou d'acenar com a mão para a terra e depois para o colar, como que nos dizia que havia em terra ouro. E também viu um castiçal de prata e assim mesmo acenava para a terra e então para o castiçal, como que havia também prata. Mostraram-lhes um papagaio pardo, que aqui o capitão traz, tomaram-no logo na mão e acenaram para a terra, como que os havia aí. Mostraram-lhes um carneiro, não fizeram dele menção. Mostraram-lhes uma galinha, quase havia medo dela e não lhe queriam pôr a mão e despois a tomaram como espantados. (CAMINHA, fl. 3) Na esperança de encontrar na Terra de Vera Cruz o que os espanhóis já descobriam mais ao norte, para além dos mitos disseminados entre navegadores, os portugueses colocam nas ações dos indígenas o prenúncio de grandes riquezas no Brasil. Somente no final do século XVII, nos sertões da América portuguesa, se achou ouro. Porém, as suspeitas e expectativas existiam desde a primeira hora da colonização. Para além de propaganda de um território com possíveis metais preciosos, as descrições do Novo Mundo sob domínio português tiveram outras funções. Comentário As histórias, crônicas, cartas e os mapas tornaram possível o conhecimento da geografia local, apesar de vários espaços desconhecidos e das populações – sob o olhar de determinadas parcialidades dos próprios indígenas que iam estabelecendo contatos. Ao habilitar a apreensão da forma de organização e alguns poucos aspectos de sua cosmogonia e formas de vida, tanto no Reino (em Portugal e Espanha) quanto nas cidades, durante os séculos XVI, XVII e XVIII se estabeleceram normas e legislações para lidar com os indígenas. Essas leis, é claro, não foram uniformes e contaram com contradições e modificações recorrentes. Simultaneamente à aparição das primeiras notícias que circularam na Europa sobre habitantes no Novo Mundo nos anos finais do século XV, tiveram início debates sobre a natureza da alma “selvagem” e de como lidar com esses seres. Todo questionamento era possível, inclusive se eram homens. Se sim, como chegaram lá, uma vez que, até onde sabiam, esse novo continente estava completamente separado da Europa e da África? Na tradição de pensamento judaico-cristã opera-se o conhecimento por meio da relação com o já conhecido. Ou seja, doutores no direito romano, na teologia e na história buscaram adequar a nova descoberta a um quadro, que julgavam completo, das tradições legais, teológicas e históricas já estabelecidas. Nesse sentido, vale destacar que, na temática que nos importa, o principal debate se estabeleceu entre jesuítas e dominicanos ao longo do século XVI sobre a natureza e a liberdade do indígena. O índio era passível de livre- arbítrio? Ele conhecia a verdade do evangelho e a esqueceu – como ocorria com africanos e indianos – ou ele era inocente, sem qualquer conhecimento de Jesus? Esse tipo de questionamento motivou uma verdadeira guerra de tinta com a defesa de diferentes pontos de vista. Tal debate emerge de um esforço de legitimação tanto da conquista dos novos territórios quanto da submissão – seja pela vassalagem ou pela escravidão – dos povos nela descobertos (ZERON, 2005). Domingos de Gusmão, dominicano e padroeiro da ordem. Um dos grandes problemas dessa controvérsia era estar baseada nas descrições de navegadores impressionados com as descobertas e com a tentativa de enquadrar todo o novo em velhos quadros teóricos. Daí emergem figuras míticas nos mares e na terra, como o ibupiara, monstro descrito pelos nativos e temido pelos portugueses (CAMENIETZKI; ZERON, 2000). Obra Fundação de São Paulo, de Antônio Parreiras, 1913. Emergem, também, os títulos que permitiram encaixar os ameríndios na escada civilizacional europeia, como “selvagens”, “gentios”, “bárbaros”, entre outros. Essas categorias foram mobilizadas de diferentes formas. Quando interessados na defesa da conversão à fé católica, o índio era gentio, pois podia ouvir e assimilar a palavra dos missionários; quando fazia investidas contra as fazendas, resistindo e se opondo à presença dos brancos, o indígena era bárbaro e bravo. As diferentes categorias nas quais os ameríndios eram classificados geraram distintas posições tomadas pela Coroa, pelas Câmaras Municipais e pelos colonos. Por isso a importância das descrições de Pero Magalhães Gandavo, Gabriel Soares de Sousa, Frei Vicente de Salvador, Antonil, entre outros cronistas dos primeiros séculos de ocupação portuguesa da América. A partir desses relatos de viagens e do cotidiano da conquista, são publicadas leis que, em alguns momentos defendem a liberdade inquestionável dos indígenas, depois sua possibilidade de apresamento em caso de “guerra justa”, para, no século XVIII, restringir o contato com os índios à atuação do Estado. Por fim, outro aspecto fundamental do contato entre europeus e nativos foi a língua. Comumente temos referência à “língua tupi” quando nos deparamos com nomes de origem indígena. A língua é um aspecto crucial para a construção de conceitos e categorias, como temos visto, além da redução e compreensão do outro. Assim, chama atenção uma das primeiras anotações sobre a língua dos nativos da costa por Pero de Magalhães Gandavo, cronista real: A língua de que usam, toda pela costa, é uma: ainda que em certos vocábulos difere em algumas partes; mas não de maneira que se deixem uns aos outros de entender: e isto até altura de vinte e sete graus que daí por diante há outra gentilidade, de que nós não temos tanta notícia, que falam já outra língua diferente. Esta de que trato, que é geral pela costa, é muito branda, e a qualquer nação fácil de tomar. Alguns vocábulos há nela de que não usam senão as fêmeas, e outros que não servem senão para os machos: carece de três letras, convém a saber, não se acha nela F, nem L, nem R, cousa digna de espanto porque assim não tem Fé, nem Lei, nem Rei, e desta maneira vivem desordenadamente sem terem além disto conta, nem peso, nem medida. (GANDAVO, 2008, p. 134) “Vivendo desordenadamente”, cumpria aos portugueses ensinar-lhes como viver da maneira correta. Por isso a importância que foi dada para o ensino de latim aos indígenas, nos primeiros anos da colonização, e para a compilação da chamada “língua geral” tupi. Esse esforço foi empreendido por José de Anchieta, que, em 1595, publica um vocabulário da língua brasílica. Era necessário reduzir a dispersão de línguas em uma só a ser ensinada para os missionários e tornar possível a domesticação do selvagem (DAHER, 2012; GOODY, 1988). Uma história apagada Assista agora a uma explicação sobre o apagamento do papel dos povos locais, desde a idealização dos europeus como bons selvagens até a ideia de não adaptação por determinismos geográficos e afins. Determinismos geográ�cos Peças do cientificismo do século XIX que defendiam que as características das raças humanas eram determinados, melhorados ou piorados, dependendo das condições climáticas. Falta pouco para atingir seus objetivos. Vamos praticar alguns conceitos? Questão 1 No processo de conquista da América, os portuguesescriaram categorias e denominações, muitas vezes generalistas, sobre os povos que encontraram. A seguir, estão algumas dessas categorias e nomeações, com sua explicação. Assinale aquela que está correta: A Aratu era a tradição cultural na qual estavam inseridos todos os povos nativos da América portuguesa, percebida pelos colonos logo em sua chegada. B Atentos às diversidades culturais dos povos indígenas, os portugueses evitaram o uso de termos generalistas, para respeitar as denominações tradicionais dos ameríndios. C Os povos que viviam na floresta amazônica eram conhecidos por uru, principalmente pela sua integração econômica e social com os povos do cerrado e do semiárido. D Os portugueses, estabelecendo contato e alianças com os tupinambás, designavam todos aqueles outros nativos como tapuias. Parabéns! A alternativa D está correta. Com sua chegada pelo litoral atlântico do que se constituiu, posteriormente, como Brasil, os portugueses encontraram agrupamentos nativos que faziam parte do grupo linguístico tupi-guarani. Nas regiões do que chamamos hoje de Bahia, encontraram os tupinambás. Do contato com os tupinambás, os portugueses construíram muitas de suas estratégias para relação com outros povos mais para o sertão, que ficaram conhecidos como tapuias, que significava bárbaros, desprovidos “de aldeia, agricultura, canoa, rede e cerâmica” (FAUSTO, 2000, p. 48). Ou seja, havia uma rede de significados ao tratar dos povos nativos no período colonial: em um primeiro lugar o olhar dos colonizadores sobre os indígenas; e, depois, o olhar dos indígenas sobre outros indígenas. Questão 2 Considere as afirmativas a seguir: I. Os primeiros contatos entre europeus e nativos se davam pelos “lançados”, homens que, muitas vezes, tornavam-se completamente integrados à cultura ameríndia. II. No Brasil, os missionários religiosos mais importantes foram os jesuítas, que construíram colégios nas cidades e aldeamentos dos indígenas nas proximidades dos centros urbanos. III. Em função da pressão sobre as terras no litoral e no sertão, é possível observar o deslocamento das populações indígenas em busca de mitos de salvação e de novos espaços para se isolar dos colonizadores. Assinale as alternativas que relacionam de forma correta as afirmativas acima: E Jê era a forma de designação do tronco linguístico dos povos tupis. Possuíam características completamente distintas dos tupinambás encontrados na costa do Atlântico. A I e II estão corretas. B I e III estão corretas. C II e III estão corretas. D I, II e III estão corretas. Parabéns! A alternativa D está correta. Os náufragos ou “lançados” eram meninos recolhidos e embarcados. À medida que se aproximavam da costa, eram lançados para terra firme, para que estabelecessem contato, por imersão, com as populações nativas. Por outro lado, esses náufragos se assentavam com os povos nativos, descobrindo seus modos e sua linguagem. Já os missionários religiosos, no caso do Brasil, em especial a Companhia de Jesus, estavam voltados para a conversão e rapidamente se dedicaram ao ensino do cristianismo romano das populações ameríndias. Os deslocamentos em virtude da pressão da conquista sobre o litoral e o sertão podem ter sido fatores motivadores para a miscigenação e criação de novas identidades e novas práticas entre povos indígenas. 2 - Negros da terra: formas do escravismo indígena Ao �nal deste módulo, você será capaz de identi�car as formas que o escravismo assumiu sobre os povos indígenas no Brasil colonial. E Apenas uma das afirmativas está correta. Debates teológicos sobre a liberdade ou escravização indígena A escravidão, atualmente, está associada à submissão de alguém ao trabalho compulsório sem remuneração e sem liberdade de decisão. Em consultas a dicionários, ainda vemos as referências recorrentes a condições subalternas de uma raça em relação a outra, considerada superior, seja do ponto de vista teórico ou em quesitos materiais. Eleanor Roosevelt segurando a versão impressa da Declaração Universal dos Direitos Humanos em espanhol. Há, contudo, uma barreira legal imposta à escravização de outrem na contemporaneidade, mais especificamente após a promulgação da Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948, na esteira dos documentos e decisões da recém-criada Organização das Nações Unidas, três anos antes. Essa obstrução, no entanto, é recente. Autoridades, leigas ou religiosas, durante séculos se lançaram no ofício de construir consensos para justificar a existência da escravidão. Atenção! Conhecer o processo de fundamentar a escravização – com frequência um trabalho intelectual que recorre a motivos teológicos e históricos – é fundamental para compreender como ela se dá na prática – com suas consequências legais e a violência com a qual ocorre. No contexto das Grandes Navegações, do século XV em diante, muito foi escrito sobre o tema da escravidão, a liberdade e a legitimidade de comércio de seres vivos do continente descoberto e dos já conhecidos, porém com novas rotas e novos agentes envolvidos. Em outras palavras, apesar da distância e das diferentes populações que foram encontradas nesses locais, o esforço de conquista da América, África, do subcontinente indiano e do extremo oriente esteve permeado pelo interesse comercial e pela vontade de descobrir como lidar com esses povos desconhecidos. Nau de Pedro Álvares Cabral. Para tal, os aventureiros que se lançaram nessas conquistas produziam descrições sobre os costumes e práticas dos nativos; esses relatos rodavam a Europa, em diferentes proporções, claro; e nos principais centros intelectuais – universidades, principalmente – realizaram-se discussões acaloradas sobre o tema. Não é possível mensurar os debates sobre a liberdade dos indígenas da América portuguesa sem considerar que contendas semelhantes ocorriam para outras regiões do globo (SCHWARTZ, 1988). Era necessário, para os intelectuais espanhóis e portugueses interessados em intervir nas expansões de suas nações, construir um arcabouço ideológico sobre o qual seus conterrâneos pudessem operar nas terras recém-descobertas. Lançam mão das tradições já recorrentes, como o modelo aristotélico, e realizam novas proposições para encaixar esses desconhecidos habitantes da América. Alunos em uma aula da Universidade de Salamanca, no século XVII. Um dos principais espaços de onde emanam interpretações foi a Universidade de Salamanca, de onde teólogos de relevo, como Francisco de Vitoria e seus discípulos, constroem definições para articular a teoria político-religiosa corrente e o domínio ibérico sobre as novas conquistas (ZERON, 2005, p. 208). Nesse sentido, a legitimidade da escravidão dos ameríndios foi largamente discutida, sendo pilar de controvérsias que se estendem por todo o século XVI. Na tradição político-teológica moderna, um dos pontos de partida era o chamado direito natural, uma forma de considerar atribuições divinas à dignidade humana e seu uso costumeiro. Em outras palavras, eram o conjunto de normas que, não codificadas em leis estatais, não poderiam ser emitidas pelos monarcas nem tocadas por eles. Dentro do direito natural estaria o direito à vida e à liberdade – para ficar em dois tópicos que foram amplamente discutidos a partir do Renascimento na Itália e a respeito dos domínios ibéricos sobre a América. Como conciliar, então, o direito natural à liberdade com a submissão de outrem? Nos centros intelectuais ibéricos se construiu um consenso, ainda que tenha sido fruto de décadas de controvérsias, em torno de três justificativas possíveis para a escravidão do indígena: Guerra justa Articulando categorias como “bárbaros” e “índios bravios” era possível driblar a oposição que existia na sociedade colonial portuguesa, especialmente na figura dos jesuítas que buscavam converter e aldear os indígenas. Nesse cenário, qualquer episódio de violência executado por nativos podia ser interpretado como “guerra justa”, tornando juridicamenteseguro verter aquele ser humano em escravo (CUNHA, 2009, p. 174). Compra de índios escravizados por outros índios Os “legitimamente havidos”. Aqui estamos diante de uma solução menos clara, mais dúbia do que a “guerra justa”, bastante complexa para ser efetivamente clara (CUNHA, 2009, p. 174). Nesse ponto, nos deparamos com diferenças objetivas entre as sociedades portuguesas e ameríndias: Existiam escravos na cultura indígena? Caso existissem, tinham função mercantil? Se nos guiarmos pelos cronistas, os índios vendiam seus conterrâneos de outras etnias vertidos em escravidão; contudo, há pouca evidência menos tendenciosa sobre o assunto (FAUSTO, 2000, p. 39). Possibilidade de escravizar indígenas que fossem resgatados da posse de outros indígenas Os colonos poderiam escravizar aqueles índios que fossem resgatados de condições de “extrema necessidade”, como o risco de estarem submetidos ao rito canibal de seus apresadores indígenas. Essa categoria da “extrema necessidade” foi recorrente, por exemplo, nos tratados teológicos da escolástica, pois descrevia um sem-número de situações possíveis para se contornar algum direito natural para salvaguardar outro (CUNHA, 2009, p. 175). Guerra justa e pressões sobre o sertão no apresamento indígena Você pode ter notado que, até aqui, falamos pouco dos bandeirantes e menos ainda da denominação “negros da terra”. Esse silêncio foi proposital. É preciso ter duas coisas em mente: primeiro, que todo o processo de violência contra os indígenas e sua expulsão de regiões que habitavam tradicionalmente para explorar a terra e seus recursos naturais faz parte da estrutura da expansão colonial. E, segundo, que as demandas por escravização dos povos nativos e sua utilização em serviços diversos, especialmente nos séculos XVI e XVII, não foi monopólio dos bandeirantes. Quadro de Henrique Bernardeli intitulado O Ciclo da Caça ao Índio, mostrando um bandeirante em primeiro plano. De partida, importa destacarmos o que seria esse “interior”. Entre os séculos XVI e XVII, a ocupação da América portuguesa esteve concentrada no litoral, ainda que houvesse tentativas de construir cidades na subida de importantes rios, como o São Francisco, e no interior de baías, como a Bahia de Todos-os-Santos e a Baía de Guanabara. Sendo áreas profícuas para o abastecimento externo e o escoamento de produções locais, posicioná- las próximas a rios permitia um controle maior sobre a zona urbana, especialmente no que se refere à preocupação para com investidas de índios bravios, mocambos e quilombos que viriam a se formar com o desenvolver do processo de colonização. Nesse cenário, o interior era o desconhecido, espaço com dinâmicas incertas e sem muitas descrições. Assim, a investida de aventureiros, quase sempre protegidos pela concessão de sesmarias com grandes proporções, oferecia algum conhecimento sobre esses “sertões” – outro título bastante utilizado no período colonial para qualquer zona interiorana distante A marcha de missionários era outra grande fornecedora de informações sobre o interior, na busca de almas para conversão e para aldear. Outro fator da interiorização do Brasil foi a pecuária. Contrariamente ao que se afirma no senso comum sobre a criação de gado na América portuguesa, esta não era realizada por homens livres e com conhecimento bem delimitado de suas terras. Na esteira dos importantes trabalhos sobre História Agrária, sob liderança de Maria Yedda Linhares, Francisco Carlos Teixeira Silva esclarece o intricado cenário de expansão da pecuária com base nas sesmarias e no arrendamento de terras (SILVA, 1997, p. 120). Fundamentalmente, o gado era criado por escravos, constantemente em contato e conflito com povos nativos, quase sempre de maneira hostil, e com fronteiras quase inexistentes. Tela de Frans Post (1612-1680) que mostra uma paisagem brasileira com um carro de boi. Era comum a concessão de terras pela Coroa por intermédio de seu Governador-Geral – que era como funcionava a concessão de sesmarias – sem muito critério de distâncias. Esse padrão se modifica no final do século XVII, quando ocorre a tentativa de estipular dimensões de três por uma léguas por sesmaria (SILVA, 1997, p. 121). Tais medidas, contudo, não resolveram as discordâncias com relação à propriedade e na legítima ocupação das terras do sertão. Na mesma medida em que o gado se expande, rotas de deslocamento são construídas no interior, aproveitadas pelos tropeiros. Não é possível, assim, discutirmos a existência de estradas no interior sem compreender que esse espaço não era vazio; era desconhecido aos portugueses e seus descendentes, porém ocupado por populações indígenas que dali foram expulsas ou dizimadas. Quadro Rancho Grande (dos Tropeiros), de Benedito Calixto, de 1921. Apesar de estarem atualmente identificados com as regiões centro-oeste e sul, os tropeiros eram recorrentes nas demais regiões do território, uma vez que realizavam o transporte de produtos no mercado interno. A própria presença dos tropeiros, assim, nos permite pensar a respeito de um dos problemas sobre os quais a historiografia brasileira se debruçou com afinco no século XX: a existência de um mercado interno no período colonial. Se o foco da ocupação extensiva do território era no litoral, e as fazendas e terras produtivas mais cobiçadas estavam próximas à costa, correr o risco de se expor aos perigos do interior prova a necessidade de circulação de mercadorias nesse espaço. Existiam, assim, produtos a serem comercializados que não vinham das frotas do Atlântico nem se destinavam ao consumo europeu. Em meados do século XVIII, era comum, inclusive, a circulação de peles e carnes da região do Prata com a Região Sul do Brasil (GIL, 2002, p. 33-34). Com o agravamento dos interesses portugueses no interior, passa a ser recorrente a figura dos sertanistas, homens com alguma experiência militar, especializados nas investidas a esse espaço. Como foi comum entre os bandeirantes paulistas, tais sertanistas com frequência falavam línguas nativas, compartilhavam de certos hábitos dos indígenas e da presença de muitos índios. Mais uma vez, devemos estar atentos à possibilidade de parcialidades entre as populações indígenas, aliando-se, quando julgavam necessário e interessante, aos europeus, mesmo na redução, caça e extermínio de outros nativos. Comentário No decorrer dos séculos XVII e XVIII, com a expansão territorial que temos descrito, seja pela busca por novas terras produtivas ou para criação de gado, as Câmaras Municipais atuam como agentes importantes no financiamento e no apoio legal de expedições de dizimação e apresamento de indígenas. Aspecto pouco coberto na historiografia sobre a administração municipal brasileira, o suporte dos concelhos aos sertanistas está largamente documentado. Apresamento indígena pelas entradas paulistas no sertão Vamos conversar agora sobre a denominação “negros da terra”. É preciso ter duas coisas em mente: primeiro, que todo o processo de violência contra os indígenas e sua expulsão de regiões que habitavam tradicionalmente para explorar a terra e seus recursos naturais faz parte da estrutura da expansão colonial. E, segundo, que as demandas por escravização dos povos nativos e sua utilização em serviços diversos, especialmente nos séculos XVI e XVII, não foi monopólio dos bandeirantes. O bandeirante paulista é um personagem em disputa na historiografia: Há um esforço realizado pela historiografia tradicional paulista, sobretudo com autores como Afonso de Taunay, que buscaram no bandeirante o herói de um período áureo da história paulista. Encontramos Capistrano de Abreu, que viu na ação dos sertanistas paulistas a ação devastadora da diversidade indígena do interior. Contudo, há trabalhos – como os de Alcântara Machado e Sérgio Buarque de Holanda – que visam descortinar a atuação desses homens do passado sem considerar heróis nem vilões (SANTOS, 2009, p. 47), além do livro incontornável deJohn Monteiro, Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo, de 1994. Desde então, muitos trabalhos têm versado sobre as motivações e implicações dos sertanistas paulistas. Comentário O movimento historiográfico revela, na verdade, uma disputa social em torno da figura do bandeirante e dos efeitos de sua ação no sertão. O século XX foi marcado também pela mudança de mentalidade em relação aos indígenas, com a sua condição de tutela pelo Estado sendo – pelo menos – deixada de lado, e sua agência política sendo reconhecida a partir da Constituição de 1988. Voltando-nos então para a sociedade colonial, os bandeirantes foram, sim, figuras centrais no conhecimento do interior. Foram, também, fundamentais no entendimento da língua. Apesar da imagem que a literatura, a pintura histórica e a historiografia elogiosa buscaram construir, os bandeirantes possuíam hábitos similares aos indígenas. Há relatos de sua dificuldade de comunicação, na língua portuguesa, com habitantes de outras capitanias (HOLANDA, 1994, p. 20; p. 28). A Capitania de São Vicente, integrada no século XVIII a São Paulo, se tornou o principal ponto de partida de expedições do litoral em direção aos sertões. Durante o período da União Ibérica – quando a coroa espanhola exerceu domínio sobre a coroa portuguesa, entre 1580 e 1640 – havia certa tolerância às investidas dessas expedições, pois os limites entre a América hispânica e a América portuguesa, além de bastante indefinidos, eram fluidos. Mapa da Capitania de Pernambuco, com representação do Quilombo dos Palmares (1647). Nesse sentido, havia incentivo das autoridades coloniais para essas expedições: buscar rotas para conectar os portos do Atlântico com o Potosí; estabelecer relações entre o litoral e as populações que se constituíram nas margens dos principais rios do interior; e, é claro, exercer pressão, expulsar e apresar os indígenas (MONTEIRO, 1994). No período de atuação de grandes nomes do bandeirantismo, como Manuel de Borba Gato, Raposo Tavares e Sebastião Pais de Barros, entre outros, muitos foram os serviços que prestaram à Coroa e às elites coloniais. Desses três mencionados, destaca-se Raposo Tavares e Sebastião Pais de Barros, que, junto a outras centenas de bandeirantes, riscavam o interior do Brasil, chegando aos rios afluentes do Amazonas no norte e sua desembocadura no Atlântico. Domingo Jorge Velho. Outro exemplo de deslocamento e de serviço às autoridades coloniais foi Domingos Jorge Velho, sertanista paulista responsável pela destruição do famoso Quilombo dos Palmares, em 1694, em Pernambuco. Apesar de ser foco de resistência de negros escravizados, ex-escravizados ou livres, Palmares também tinha presença de indígenas. Jorge Velho foi contratado para dar fim aos numerosos mocambos que confederados compunham em Palmares (LARA, 2021, p. 14). Vemos, assim, uma versatilidade desses bandeirantes. Mais do que andar pelo interior atrás de índios para escravizar e revender no litoral – aspecto questionado atualmente pela historiografia – e de buscar as “drogas do sertão”, eles podiam ser contratados para realizar entradas no território, afugentar índios bravos e impedir ou destruir os quilombos. Apesar de ficarem para a história tradicional como figuras marginais, que viviam quase como bárbaros e nas matas, estiveram bastante integrados na economia e na política colonial, voltados para as atividades em que se tornaram especialistas. Imagem de indígenas escravizados trabalhando com as "drogas do sertão. Podemos, assim, aproveitar nossa menção ao trabalho escravo africano e tratar de outro tema problemático no senso comum sobre a escravidão no Brasil e as contribuições recentes da historiografia para esse assunto: É comum observarmos nos livros didáticos a assumpção de que existe uma sequência no que se refere à escravidão indígena e africana na economia colonial. Essa premissa coloca em primeiro plano as iniciativas legais da Coroa em proibir a escravidão indígena, ao passo que incentivava, especialmente pelo valor comercial, a escravidão negra africana. Tal processo teria se dado em finais do século XVI, juntamente a uma indisposição dos nativos de trabalho ostensivo na lavoura. Além de falsa, essa afirmação está permeada pelo racismo para com os povos nativos, sempre apresentados como preguiçosos e não afeitos ao trabalho nas descrições de naturalistas e viajantes europeus a aldeias durante nossa História, tópica também recorrente nos cronistas dos séculos XVI e XVII. Muito pelo contrário: A escravidão indígena conviveu com a escravidão africana, e a sobreposição da última pela primeira se deu, sobretudo, por dois fatores: a expressiva baixa demográfica indígena por doenças e pela violência da conquista; e os lucros significativos do tráfico atlântico de escravos negros africanos (SCHWARTZ, 1988, p. 57). Assim, torna-se mais clara a acepção que se assume de “negros da terra”, ou “gentios da terra”, pelas quais constantemente os indígenas eram referidos no período colonial. Apesar das restrições legais impostas à escravidão indígena, foram criadas formas institucionais de contornar as contingências. Foi o caso dos “administradores particulares dos índios”, como aparece em São Paulo, ou dos “capitães dos índios”, no Rio de Janeiro (MONTEIRO, 1994, p. 137). Efetivamente, executava-se um uso forçado do trabalho; porém, na lógica colonial, assumia função de tutela ante os índios, considerados na infância social. Tomados ao pé da letra, ao nos depararmos com a expressão “negros da terra”, poderíamos assumir uma referência à cor da pele. Contudo, era uma categoria, entre muitas, mobilizadas pelos portugueses para classificação social e política. Nas distinções que aplicaram às populações que nasceram e se desenvolveram nas Américas, são conhecidas aquelas compiladas pelos espanhóis (chapetones), com uma hierarquia bem definida entre espanhóis, seus descendentes na América (criollos), brancos pobres, povos nativos (índios) e negros (sejam eles escravos ou libertos). No Brasil, a distinção assumia também qualificações econômicas e profissionais, pois em primeiro lugar estavam portugueses, senhores de engenho (fossem eles nascidos ou não na terra), militares e membros da burocracia, oficiais mecânicos, pobres, indígenas e negros. Guerra justa Veja agora uma apresentação sobre o que foi e a noção de guerra justa. Essas concepções teóricas acerca da raça e da condição social importam, pois refletem as maneiras de uma sociedade interpretar a si mesma, além de expressarem quais setores dominantes realizam tal interpretação. No caso dos “negros da terra”, era relativamente disseminada a concepção – ao longo dos séculos XVI e XVII – da possibilidade de sua escravidão, adaptada, depois, aos critérios da guerra justa, compra legítima ou salvamento da escravidão de outros grupos indígenas. Em uma sociedade colonial baseada na escravidão, moldada pela mentalidade escravista em todos os seus aspectos, a legislação limitadora da Coroa para a redução do indígena ao cativeiro não era suficiente para barrar o apetite por mão de obra mostrado pelos sertanistas que varreram o sertão atrás de nativos. Falta pouco para atingir seus objetivos. Vamos praticar alguns conceitos? Questão 1 Assinale a opção que contém as três as justificativas aceitas pela intelectualidade ibérica para a escravização indígena: Parabéns! A alternativa C está correta. O pensamento intelectual ibérico construiu um consenso de três justificativas possíveis para a escravidão do indígena. A primeira delas, e mais usual, era a “guerra justa”, ao articular as noções de “bárbaros” e “índios bravios”. Outra maneira de justificar a escravização ameríndia era a mercantilização de indígenas que já haviam sido escravizados por outros. Por fim, justificou-se a escravização de indígenas que fossem resgatados da posse de outros indígenas, principalmente aqueles que estivessem destinados a rituais canibais. Questão 2O bandeirantismo recebeu atenção de muitos historiadores ao longo da nossa história. Entre muitas de suas características. Assinale a única opção a seguir que contém uma das muitas características desse movimento: A Guerra justa; profanação de igrejas; roubo de fazendas. B Heresias; compra legítima; salvamento de rituais canibais. C Guerra justa; compra legítima; salvamento de rituais canibais. D Profanação de igrejas; concubinato; saída dos aldeamentos. E Compra legítima; ataques a fazendas e cidades; heresias. A Os bandeirantes eram homens com títulos de nobreza concedidos pela Coroa portuguesa para ocupar o território brasileiro. B Os sertanistas, ou bandeirantes paulistas, eram um grupo difuso que servia às autoridades coloniais por todo o território em diversas ocupações, como na caça a índios bravos e na Parabéns! A alternativa B está correta. A Capitania de São Vicente tornou-se um ponto de partida de expedições em direção aos sertões. Durante a União Ibérica havia certa tolerância às investidas dessas expedições, pois os limites entre a América hispânica e a América portuguesa, além de bastante indefinidos, eram fluidos. Havia incentivo das autoridades coloniais para essas expedições na busca de rotas para conectar os portos do Atlântico com o Potosí; no estabelecimento de relações entre o litoral e as populações que se constituíram nas margens dos principais rios do interior; e na pressão, expulsão e apresamento dos indígenas (MONTEIRO, 1994). destruição de quilombos. C Os bandeirantes eram conhecidos pela adaptação aos costumes ameríndios, pois viviam entre eles e construíam relações de parentesco que consolidaram a defesa que realizavam para a liberdade dos índios. D Os bandeirantes estiveram concentrados, ao longo do século XVI, nas capitanias do sul, raramente saindo de suas imediações. E As entradas que os bandeirantes realizavam ao sertão estavam sempre alinhadas às diretrizes da monarquia portuguesa, uma vez que buscavam se afastar das autoridades locais. 3 - Guerras contra a conquista Ao �nal deste módulo, você será capaz de analisar a con�guração e as consequências das resistências indígenas e as mudanças nas ações coloniais para com os povos nativos. Resistência indígena no nordeste seiscentista Neste conteúdo, abordaremos um pouco do que foi a resistência indígena em dois momentos específicos e a mudança de mentalidade que o Estado português executa na segunda metade do século XVII e na segunda metade do século XVIII com relação aos nativos. Desses episódios, destacamos a Guerra dos Bárbaros e a Guerra Guaranítica. Aquilo que podemos encontrar, especialmente em livros tradicionais de História do Brasil – pouco se vê sobre o tema nos livros didáticos –, com o título de “Guerra dos Bárbaros”, em verdade se trata de um conjunto bastante longevo de conflitos entre colonos, militares, sertanistas e indígenas. Segundo Pedro Puntoni, é preciso desmembrar esses episódios, pois, em uma abordagem generalista, perdemos a agência dos grupos indígenas e dos próprios colonos, bem como seus interesses na repressão aos nativos. O momento de maior destaque, e que pode ser lembrado, denomina-se Guerra do Açu (1687-1704), ocorrida na capital do Rio Grande do Norte. Cena da Expedição do Tenente-Coronel Affonso Botelho. Aquarela de Joaquim José de Miranda (Séc. XVIII). Porém, Puntoni destaca que o mesmo ciclo de conflitos se estende desde o que denomina de Guerras do Recôncavo da Bahia (1651-1679) até o princípio do século XVIII (PUNTONI, 2002, p. 13). Assim, de partida, observamos que não faz parte de um processo único e direcionado de colonos contra grupos indígenas específicos. Nesse sentido, devemos ter em mente algumas categorias: Relembrando “Bárbaros” eram aqueles que não comungavam dos mesmos valores e, de maneira mais direta, da mesma língua e costumes praticados por aqueles que se consideravam civilizados. Em outros termos, portugueses e seus descendentes consideravam bárbaros todos aqueles índios que não se curvavam facilmente à conversão e à assimilação. No caso desses índios bravos, a teologia cristã vigente na época moderna – e amplamente discutida por grandes intelectuais ibéricos – previa a possibilidade da “guerra justa”. Ainda a partir da guerra justa, era legítima, inclusive, a escravização do indígena capturado, o que se plasmou na legislação portuguesa sobre o tema. Note-se que essa forma de encarar a resistência indígena e assumir possibilidades de resposta era bastante vaga, abria margens para interpretações e não previa uma verdadeira fiscalização das ações no sertão. A Guerra dos Bárbaros opera com a mesma “inconsistência”. Foi motivada e realizada a partir de noções muito gerais sobre as populações indígenas. Assim, o título “bárbaros” se torna apropriado, já que muitas vezes não havia o trabalho de registrar quem se estava dizimando. Portugueses e seus descendentes na colônia tomaram, por exemplo, a denominação tapuias para descrever povos que não eram tupis, assumindo as concepções desses últimos sobre uma diversidade de povos. “Os tapuias eram tomados por ampla e duradoura muralha que se erguia no sertão, obstando a expansão do Império e a propagação da “verdadeira” fé, como empecilho ao desenvolvimento da economia pastoril e à exploração dos minérios” (PUNTONI, 2002, p. 17). Em um sentido mais geral, então, a Guerra dos Bárbaros assume a função de libertar territórios dos índios bravios e torná-los passíveis da expansão colonial. Sobre o tema central da guerra, é preciso elucidar que os índios não chegaram às guerras coloniais somente como foco de ataque. Felipe Camarão, foi indígena brasileiro que lutou junto aos portugueses contra a dominação holandesa. Os nativos estiveram integrados nos contingentes militares em diversos momentos. Tomemos o período de dominação holandesa sobre o Nordeste brasileiro, rigidamente entre 1630 e 1654, quando são profícuas as descrições sobre a presença de índios nas batalhas entre portugueses e batavos, em ambos os lados (MIRANDA, 2011; LENK, 2013). Outro episódio conhecido da intimidade dos indígenas nas guerras em que colonos se envolviam, ainda na luta contra os holandeses, foi a chegada de Salvador Correia de Sá e Benevides, em 1649, para libertar Angola dos batavos na companhia de centenas de índios flecheiros. O capitão-mor do Rio de Janeiro atravessou o Atlântico com indígenas para rechaçar os inimigos e, assim, conseguir retomar para Portugal o controle sobre o comércio de escravos (BOXER, 1973). A denominação Guerra dos Bárbaros, assume, então, uma entonação planificadora, ou seja, deu sentido único a uma multiplicidade de conflitos ocorridos no interior por distintos grupos indígenas contra a expansão colonial. Puntoni compara a confecção de tal conjunto com a sonhada Confederação dos Tamoios no poema romântico de Gonçalves de Magalhães no século XIX, uma vez que também em contexto de guerra se supõe uma união em que, na verdade, há diversidade. Na esteira dessa estratégia discursiva, historiadores do século XIX e do início do século XX denominaram a resistência dos índios do semiárido nordestino como “Confederação do Cariri”, supondo que se tratavam todos da mesma etnia (PUNTONI, 2002, p. 77). Estamos, dessa forma, diante de uma generalização tão dissonante com a realidade diversa dos indígenas quanto chamá-los de tapuias ou bárbaros. Em meados dos anos 1650 inicia-se um longo processo de contenção das “descidas” dos gentios em direção a Salvador. O foco dos nativos hostis à presença portuguesa, contudo, não era a capital do estado do Brasil, e sim as cidades, vilas e fazendas mais para o interior do Recôncavo, como Jaguaripe, Cachoeira e, mais ao sul, Boipeba e Camamu. Interessante notar que essas vilas eram responsáveis pelo fornecimento de alimentos a Salvador, especialmente a farinha de mandioca, base alimentar da colônia (LENK, 2013; KRAUSE, 2015, p. 29). Dança dos Tapuias. As chamadas “jornadas do sertão” eram organizadasde maneira esparsa ao longo do século XVII; porém, foi a partir dos anos 1650 que assumiram um papel integrador da política centralizadora do Governo-Geral – sob comando de diferentes governadores – e da utilização de sertanistas provenientes de São Vicente ou que lá haviam adquirido alguma experiência. Às campanhas amparadas em sistemas de “jornadas” sucederam-se períodos de guerra e de paz no Recôncavo da Bahia, compiladas por Pedro Puntoni (2002, p. 91-120) da seguinte forma: Longe de estabelecer uma periodização fixa e estável, essa demarcação é importante para compreendermos que, assim como as populações nativas se adaptavam aos avanços portugueses no território, mobilizavam de maneira dispersa ataques e empreendiam guerras aos colonos pela sua sobrevivência. Não se tratava, assim, de uma guerra única. Ao abordarmos esse extenso tema das Guerras dos Bárbaros, o principal episódio com o qual nos deparamos é a destruição da resistência nativa à expansão agrária e pecuária no sertão das Capitanias do Norte. Em termos da 1651-1656 Jornadas do Sertão 1657-1659 Guerra do Orobó 1669-1673 Guerra do Aporá geografia atual, estamos falando sobretudo dos atuais estados do Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e Alagoas. Essas regiões foram dominadas pelos holandeses em meados do século XVII, onde também estabeleceram contatos com os indígenas que, segundo as descrições portuguesas, estiveram sempre abertos às alianças com os neerlandeses. O parco domínio dos lusitanos sobre a região, mesmo após a expulsão dos holandeses, levantava a preocupação dos moradores que se dedicavam sobretudo à pecuária. Os tapuias nativos, na grande maioria pertencentes à nação dos janduís, reagiram à presença e aos abusos dos moradores desde os primeiros anos da década de 1670. Alguns levantes isolados de grupos indígenas precederam o movimento que tomaria maiores dimensões e seria denominado, à época, de ‘levante geral dos tapuias’ ou de a ‘Guerra do Açu’. (PUNTONI, 2002, p. 124) Para tal levante, outro nome tornou-se corrente entre os colonos das Capitanias do Norte: Muro do Demônio, em clara referência à concepção religiosa que assumia a oposição nativa à presença portuguesa. Em termos objetivos, essa Guerra do Açu se estendeu até 1713, porém foi na década de 1680 que seus desdobramentos mais sangrentos se deram. Com tropas comandadas por Manoel de Abreu Soares, Antônio de Albuquerque Câmara, Domingos Jorge Velho e Matias da Cunha, foram reunidos homens, entre brancos, índios e negros. Os esforços não surtiram o efeito esperado em reprimir os nativos do Açu e decorreram na devastação de fazendas e em mortes tanto de portugueses alocados no Norte quanto de indígenas “domesticados”. O encaminhamento do fim da Guerra foi fruto, inclusive, de acordos costurados por Canindé, principal das aldeias dos janduís, que comandava por volta de vinte e duas aldeias, com o governador-geral Antônio Luís da Câmara Coutinho. Guerras guaraníticas e as disputas entre Portugal e Espanha Entre 1785 e 1789, o astrônomo e matemático português José de Saldanha realizou uma, entre muitas, das campanhas de demarcação de limites no extremo sul do Brasil. Percorreu, fundamentalmente, o rio Jacuí e foi mais abaixo, chegando aos limites da Capitania do Rio Grande de São Pedro, realizando medições das posições longitudinais e latitudinais do território, de maneira a delimitar as fronteiras entre os domínios de Portugal e Espanha. No tempo que Saldanha examinou essas terras, as principais questões já haviam se resolvido. A realidade, trinta anos antes, era completamente outra. Mapa geográfico da América do Sul onde foi traçada a linha divisória que dividiu os domínios de Espanha e Portugal. Em 1750, foi assinado o Tratado de Madrid, na esteira de negociações entre Portugal e Espanha sobre disputas territoriais na região da Amazônia e do sul, mais especificamente entre a Colônia de Sacramento e os Sete Povos das Missões. No norte, com uma ocupação bastante restrita da floresta por portugueses e seus descendentes, o mesmo ocorrendo do lado espanhol, as tensões não eram tão altas. Ao sul, contudo, a assinatura do tratado implicou revolta dos índios guaranis. Antes de nos determos na revolta, passemos a lidar com as tensões que envolvem a assinatura do Tratado de Madri. À semelhança dos demais conflitos estabelecidos entre colonos e indígenas, esse foi um documento negociado e assinado na Europa e que apresentava reverberações e interesses na América. Seu conteúdo versava sobre o argumento já antigo de Portugal quanto à titularidade da Colônia de Sacramento, localizada na embocadura do rio da Prata, região de interesse dos portugueses pelo escoamento de mercadorias e metais vindos do Potosí. Em contrapartida, os chamados Sete Povos das Missões foram fundados por jesuítas com índios aldeados na porção portuguesa de uma área em disputa entre Portugal e Espanha nas regiões em que hoje encontram-se os limites de Brasil, Argentina e Paraguai. Com a assinatura do tratado em 1750, as coroas ibéricas buscaram resolver o impasse trocando a posse das regiões. Portugal abandonaria sua reivindicação da Colônia de Sacramento, prometendo deslocar os portugueses de lá para o Brasil; e a Espanha defendia a ocupação das Missões no “continente” do Rio Grande – como era então conhecida a região da América portuguesa –, fazendo com que índios e jesuítas abandonassem seus povoados (QUEVEDO, 1996, p. 12-13). Ruínas do povoado de São Miguel das Missões, no Rio Grande do Sul. Porém, as autoridades reinóis, de ambas as cortes, depararam-se com uma realidade distinta na América. Os portugueses que lidavam com o comércio da Bacia do Prata não tinham interesse em abandonar seus negócios e trocar de posto. Já no interior do Rio Grande, guaranis e jesuítas rejeitaram abandonar suas povoações. Os Sete Povos, na verdade, faziam parte de um conjunto de quase trinta povoados fundados pelos jesuítas no processo de aldeamento e reorganização diante do avanço de bandeirantes sobre as populações ameríndias desde o século XVII (ALMEIDA, 1997, p. 42-43). O domínio da Companhia de Jesus sobre diferentes aspectos da sociedade colonial encontrou amparo, desde o século XVI, no financiamento e apoio legal dos monarcas ibéricos. Na Cabana de Pindobuçu, 1920 Benedito Calixto Óleo sobre tela, c.i.d. 42,00 cm x 65,50 cm Tais concessões, seja em matéria de ensino, de gestão de um vasto patrimônio subordinado aos Colégios Jesuíticos (LEITE, 1938, p. 530-544), ou na catequese e aldeamento indígenas, concederam grande poder aos jesuítas na Europa, mas principalmente nas conquistas, em especial na América. Na prodigalidade real, os jesuítas construíram hegemonia na admoestação dos nativos na região do Rio Grande. O que parecia ser um benefício para a Coroa hispânica ao conseguir articular os povos missioneiros-guaraníticos, em meados do século XVIII tornou-se empecilho para efetivação de seus acordos com Portugal. Buscando orientar a fixação dos limites na América meridional, as monarquias ibéricas enviam para as fronteiras comissões que estariam responsáveis pela demarcação a partir de 1752. Do lado português, o enviado foi o governador do Rio de Janeiro e das Minas, Gomes Freire de Andrada, e do lado espanhol, Gaspar de Munive León Tello y Espinosa, marquês de Valdelírios (GOLIN, 2014, p. 61). O trabalho de demarcação, no entanto, encontra o empecilho da revolta guaranítica, parcialmente apoiada pelos jesuítas nos povoamentos do Rio Grande, após serem impedidos de adentrarem as áreas das missões em 1753. Mais do que cobrir cada detalhe da guerra, importa atentarmos para a capacidade de articulação dos missioneiros guaranis, àquela altura convertidos e instalados em vilas de tradição hispânica em território reivindicado por Portugal. Ou seja, é relevante considerar que, apesar da influência e autonomia que os jesuítas exerciam sobre as populações indígenas, os índios guaranis tiveram capacidade deconstruir uma oposição generalizada aos esforços da demarcação. Em 1756 as resistências à aliança luso-espanhola são definitivamente dizimadas, com a morte de um grande contingente de indígenas até aquela data (QUEVEDO, 1996, p. 28). Apesar de possíveis semelhanças com outros esforços de oposição dos indígenas à intervenção das autoridades coloniais nas suas formas de organização, a Guerra Guaranítica apresenta algumas características que a distinguem nos processos de resistência. Represetanção do índio missioneiro Sepé Tiarajú. Esteve em jogo a sobrevivência de uma forma de organização já mudada, ou seja, não se tratava de um povoamento sem interferências da cultura europeia. Eram povos já bastante cristianizados, com títulos, interesses e cultura completamente integrados. A expulsão dos jesuítas dos países ibéricos na década seguinte, assim como a dissolução do Tratado de Madrid pelo Tratado de El Pardo (1761) – em referência a um dos rios relevantes para os conflitos –, demonstram uma mudança de mentalidade das coroas para com os indígenas. O indígena passava, assim, a ser assunto do Estado; sua administração e seu futuro não poderiam mais estar na mão de uma ordem religiosa que havia construído quase que um governo autônomo dos trópicos. Além da reviravolta intelectual que o século XVIII representou para os países europeus, representou também uma reviravolta nas políticas indigenistas. O Diretório dos Índios tornou as relações das autoridades coloniais mais complexas com relação às populações indígenas, visto que transferia para o Estado português a responsabilidade de garantir uma correta aplicação da legislação, que, antes, fazia vista grossa para a não aplicabilidade. Confederação dos Tamoios Assista agora um estudo de caso sobre a Confederação dos Tamoios. Falta pouco para atingir seus objetivos. Vamos praticar alguns conceitos? Questão 1 Considere as afirmativas a seguir: I. As elites coloniais buscavam formas de expulsão e redução dos chamados “índios bravios” para expandir a fronteira agrícola e pecuária. II. As “Guerras dos Bárbaros” foram conflitos entre diferentes povos nativos no sertão nordestino, especialmente nas “Capitanias do Norte”. Assinale a alternativa que apresenta exatidão a respeito das afirmativas acima: Parabéns! A alternativa E está correta. A Ambas as afirmativas estão equivocadas. B A afirmativa I está correta e a II, errada. C A afirmativa II está correta e a I, errada. D As afirmativas I e II estão corretas e se complementam, e a II se destaca por ser a motivação para o que se afirma na I. E As afirmativas I e II estão corretas e se complementam, sendo a I motivo para o que se afirma na II. O que se convencionou chamar de “Guerra dos Bárbaros” pela tradição, na verdade se trata de um conjunto de conflitos entre colonos, militares, sertanistas e indígenas, com certa longevidade. É necessário desmembrar esses episódios, a fim de superar uma abordagem generalista que coloca em xeque a agência dos grupos indígenas e colonos. Os principais objetivos das guerras que aconteceram no sertão eram a expulsão dos nativos de suas terras e a exploração agrícola e pecuária. Questão 2 Assinale a alternativa que relaciona de forma correta o contexto de atuação da Companhia de Jesus e as Guerras Guaraníticas na segunda metade do século XVIII: Parabéns! A alternativa A está correta. O tratado de 1750 entre as Coroas ibéricas buscava resolver o impasse da posse das regiões. Nesse sentido, Portugal findaria a reivindicação da Colônia de Sacramento. Já a Espanha defendia a ocupação das Missões A As Missões constituídas pelos jesuítas nos indefinidos limites da América portuguesa e da América hispânica, no que ficou conhecido como Sete Povos das Missões, tiveram papel central na resistência aos deslocamentos propostos pelo Tratado de Madrid de 1750 e nas Guerras Guaraníticas que se seguiram. B Aquilo que chamamos de Guerra Guaranítica foi uma resistência das populações nativas guaranis ao abuso de poder político e religioso dos jesuítas na região. C Apesar do esforço de resistência dos jesuítas, os guaranis buscaram se integrar aos povoados portugueses na capitania do Rio Grande, o que gerou uma revolta dos padres da Companhia, que ficou conhecida como Guerra Guaranítica. D As Guerras Guaraníticas se deram pela tentativa dos portugueses e espanhóis em tirar da zona de influência os povos guaranis aldeados pelos jesuítas. Para tal, invadiram as principais igrejas e colégios da Companhia por todo o território da América portuguesa. E As estratégias para missionar os jesuítas na Amazônia desempenharam papel fundamental nos conflitos entre colonos e autoridades reais de Portugal e Espanha com os indígenas alocados nas Missões nos afluentes do rio Amazonas. do Rio Grande na região da América portuguesa, fazendo com que índios e jesuítas abandonassem seus povoados. Os Sete Povos faziam parte de um conjunto de quase trinta povoados fundados pelos jesuítas quando do aldeamento das populações ameríndias desde o século XVII. Como resistência em se adequar às determinações, os indígenas dos Sete Povos fizeram guerra às comissões demarcadoras até 1756, quando foram definitivamente destruídos. Considerações �nais Chegamos ao fim de nosso estudo sobre as populações indígenas e sua intricada relação com o processo de colonização do Brasil. Como vimos, os povos nativos do nosso passado colonial devem ser encarados pela sua diversidade no longo processo de conquista, pelos portugueses, do território da América portuguesa. Nesse sentido, a arqueologia e a antropologia têm se apresentado como disciplinas fundamentais para o conhecimento desses povos e de suas práticas culturais, políticas e sociais. Durante a conquista, entre os séculos XVI e XVII, observamos o avanço da mentalidade escravista ibérica sobre as populações nativas, deslindando o mito de proteção da liberdade do indígena que vigorava na legislação e que tinha pouca relação com a realidade dos ameríndios em face dos avanços dos bandeirantes sobre o sertão. O uso de categorias teóricas como “bárbaros” e “guerra justa” permitiu o desenvolvimento de estratégias para manutenção da escravização indígena. Outras categorias foram fundamentais para a expansão desse modelo, como as hierarquias sociais impostas aos nativos, considerados os “negros da terra”. Por fim, descortinamos as formas de resistência dos nativos, seja pelas conhecidas “Guerra dos Bárbaros”, conjunto diverso de conflitos violentos no sertão e nordeste do Brasil no século XVII, ou pela articulação dos guaranis aldeados nas “Guerras Guaraníticas” no século XVIII, na região dos Sete Povos das Missões. Podcast Escute agora uma revisão sobre o escravismo dos povos indígenas no Brasil. Referências ALMEIDA, M. R. C. de. Metamorfoses indígenas. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003 AMADO, J. Diogo Álvares, o Caramuru, e a fundação mítica do Brasil. In: Estudos históricos: heróis nacionais, n. 25, p.3-40, 2000 BOXER, C. Salvador de Sá e a luta pelo Brasil e Angola, 1602-1686. São Paulo: Editora Nacional, 1973. CAMINHA. Carta de Pêro Vaz de Caminha, 1 maio de 1500. Portugal, Torre do Tombo, Gavetas, Gav. 15, mç. 8, n. 2. CAMENIETZKI, C. Z.; ZERON, C. Quem conta um conto, aumenta um ponto: o mito do Ipupiara, a natureza americana e as narrativas da colonização do Brasil. 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Propósito Compreender a trajetória histórica das políticas indigenistas é fundamental para uma avaliação crítica da participação dos povos indígenas na sociedade brasileira atual, demarcando a valorização da sua contribuição para a formação da identidade nacional para além de teses clássicas assimilacionistas. Objetivos Módulo 1 A questão indígena no Brasil: disputa dos discursos Reconhecer as bases históricas da política indigenista brasileira. Módulo 2 As Forças Armadas e a questão do indigenismo Relacionar a política indigenista com as questões associadas à segurança nacional e às Forças Armadas. Módulo 3 A decolonialidade do debate Analisar as formas tradicionais de pensar a política indigenista a partir dos conceitos do debate decolonial. Introdução – Professor, acho que você se enganou! Não são “índios”, essa era uma visão antiga... Hoje, falamos em “povos originários”, ou “povos indígenas”, para dar uma pluralidade, não é isso? – Muito bem observado! Mas o termo usado é o termo datado mesmo, para que você consiga ver como eram tidos como uma entidade, algo único. A partir do momento que reconhecemos suas singularidades, hoje, é que notamos que são etnias diversas, daí a valorização de termos plurais. Nosso olhar passa por essa transformação. Vamos entender melhor? Quando pensamos nos povos indígenas brasileiros, somos reféns de duas imagens: de um lado, o indígena dizimado pelo contato com os povos europeus, reduzido a um refugiado na própria terra; de outro, o indígena fossilizado, preso a formas de sociabilidade arcaicas e estagnado em sua cultura material. A realidade, contudo, é muito mais complexa: os povos indígenas são um elemento vivo da sociedade brasileira que atua no cenário nacional desde antes do início da ocupação portuguesa. Seus diversos papéis ao longo da história, assim, se traduzem no complexo drama nacional. 1 - A questão indígena no Brasil: disputa dos discursos Ao �nal deste módulo, você será capaz de reconhecer as bases históricas da política indigenista brasileira. A idealização do século XIX Inicialmente relatada por Lévi-Strauss e recontada por Viveiros de Castro (2014), uma das anedotas mais famosas acerca da relação entre os povos originários do continente americano e os exploradores europeus, ainda no século XVI, servirá de ponto de partida para nossa jornada. Diante da descoberta de um continente inteiramente novo, ausente de todos os mapas e desconhecido pela antiga civilização greco-romana, a intelectualidade europeia do período ficou em choque. Era preciso, afinal, encaixar aquela nova massa de terra não apenas nos mapas, mas também na cosmovisão europeia da época. Isso significou um acalorado debate entre os jesuítas, vanguarda não apenas da exploração desse mundo desbravado, como também da fronteira intelectual na Europa, acerca da seguinte pergunta: seriam os habitantes do novo mundo dotados de alma? Naturalmente, essa era a forma que um europeu do século XVI, imerso na religiosidade típica do período, marcada pela Reforma Protestante, encontrava para indagar se os povos da América eram pessoas ou não, dada inclusive a ausência de menções ao continente americano nos textos religiosos cristãos. Após anos de discussão e argumentos extensos, os jesuítas se deram por satisfeitos e decretaram que tais povos tinham alma e deviam, portanto, ser convertidos e salvos. Retração da América, Jan Galle, por volta de 1615. Enquanto conduziam esse debate nos círculos intelectuais europeus, os indígenas daqui estavam igualmente estarrecidos com a presença dos europeus, pois se tratava de um povo que viera do mar, de uma terra distante, e que precisava ser encaixado na cosmovisão dos povos americanos. Por isso, capturaram alguns exploradores e iniciaram um debate próprio em torno da humanidade dos visitantes: seriam os habitantes da Europa dotados de corpo? Para os indígenas antropofágicos que fizeram esse contato inicial, essa era a pergunta-chave a ser respondida, porque humano era aquele que tinha corpo e que, por isso, podia ser ritualisticamente devorado e participar do universo religioso. Desse modo, após cozinharem os exploradores e realizarem o ritual adequado, eles chegaram à conclusão de que os europeus eram dotados de corpo, sendo, portanto, gente. O desembarque dos portugueses no Brasil em 1500, Roque Gameiro, por volta de 1900. Essa história é muito ilustrativa não apenas da forma específica pela qual o debate toma corpo, mas também pela simetria dos processos: de ambos os lados do Atlântico, havia um esforço para encaixar cada um dos novos habitantes do mundo na sua cosmovisão vigente. Nos dois casos, o veredito alcançado foi o da humanidade do outro, ainda que com os percalços da época. São justamente esses percalços que nos interessam! A condição humana é sempre idealizada, seja na forma da alma ouna forma do corpo. Por isso, quando observamos o século XIX, vemos um tensionamento entre duas visões distintas sobre os indígenas: Busca pela assimilação dos indígenas por parte do Estado brasileiro Pelo meio que o Estado julgasse conveniente, os indígenas deveriam ser convertidos em trabalhadores disciplinados e produtivos. Busca por justi�car-se como país por parte do Estado brasileiro Como jovem nação, precisavam construir para si uma memória comum e uma unidade simbólica capaz de converter todos os habitantes do território em brasileiros. Para que isso acontecesse, a multiplicidade de nações indígenas mostrava ser um grande entrave: não é possível que haja uma memória coletiva comum se existem tantos povos distintos e – mais grave – se a institucionalidade herdada do antigo regime português reconhece tal multiplicidade. Os indígenas brasileiros não eram simplesmente povos submetidos: muitos deles foram incorporados como súditos do rei pelos mecanismos de vassalagem europeus adaptados aos trópicos. O problema para a política brasileira da época era, portanto, o de contornar essa herança típica das monarquias europeias e homogeneizar os súditos da nova Coroa brasileira. Para isso, deslocou-se o foco do indígena real, que participava da vida política, tinha acordos com o imperador e era reconhecido como vassalo, para um imaginado, idealizado e que, segundo os formuladores dessa ficção, existira no passado, mas já não existia no presente. ecanismos de vassalagem europeus adaptados aos trópicos Um povo que atuasse como aliado da Coroa em uma guerra podia requisitar a mercê de ser reconhecido como um vassalo parcialmente autônomo e dotado de um estatuto próprio que o tornava, diante da Coroa e dos demais vassalos, um sujeito dono de direitos e deveres. O último Tamoio, Rodolpho Amoêdo, 1883. Um belo dia era o dia 7 de setembro de 1822, Ângelo Agostini, 1883. Essa separação entre um suposto indígena do passado (heroico e digno, sendo convertido em símbolo nacional) e aquele concreto e contemporâneo (mesmo violento e insubmisso) dialogava com a política assimilacionista do Império. O chamado “índio” simbólico do passado funcionava como um ideal que norteava a política do presente e contribuía para o apagamento dos movimentos indígenas problemáticos ao regime. Iracema, José Maria de Medeiros, 1881. A arte brasileira e os povos originários Confira agora a questão dos povos originários na representação artística do século XIX e sua ressignificação no século XX. A República e a questão indígena Esse processo de apagamento indígena continuou com a transformação do Império em República. Se antes ele era formulado como um súdito do imperador, agora devia ser pensado como um cidadão nacional, submetido, portanto, à égide do Estado brasileiro. Assim como todos os demais cidadãos, o indígena deveria diluir-se na pátria como um em muitos e igual a todos. Apesar disso, foi definido no Código Civil de 1928 que o indígena não era cidadão pleno, sendo sujeitado ao chamado poder tutelar, de modo que a participação política dos povos originários foi, ao longo de quase todo o século XX, mediada pelo próprio poder estatal. Essa mediação tomou forma institucional primeiramente a partir do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e, posteriormente, da Fundação Nacional do Índio (Funai). Iracema, José Maria de Medeiros, 1881. O SPI teve um papel importante na mediação do contato com os Ka’apor no Pará. Também conhecidos como Urubus por conta dos seus adornos com plumas, os Ka’apor eram um povo habitante da Amazônia que vivia em constante contato com os habitantes brasileiros do Pará. Fotografia de Darcy Ribeiro de um membro do povo Ka’apor, de 1951. Em 1911, o SPI fez um primeiro contato para iniciar os chamados “esforços de pacificação”, oferecendo algumas ferramentas de aço aos Ka’apor. Entretanto, esse primeiro contato terminou com um integrante do SPI ferido pela flechada de um dos indígenas. Os anos subsequentes foram marcados por: Expedições punitivas conduzidas pelo Estado às aldeias Ka’apor. Incursões dos Ka’apor às cidades brasileiras, quase sempre em busca de ferramentas de aço que eles convertiam em pontas de �echas. Esse processo violento só terminou em 1928, quando os Ka’apor dirigiram-se pacificamente a um posto do SPI para sinalizar que as hostilidades deveriam ter fim. Ao mesmo tempo que essas relações do SPI eram marcadas pela violência estatal contra os indígenas, o órgão, ainda na missão do século XIX de “civilizar” e “pacificar” os povos nativos a fim de incorporá-los ao Estado, teve um papel relevante: estabelecer uma linha de contato entre os indígenas e uma nova abordagem etnográfica que ganharia corpo no século seguinte. Escola do Posto Indígena Rodolfo Miranda, Amazônia, 1922. Uma das figuras que sintetiza esse movimento é Curt Nimuendajú, etnólogo alemão que dedicou sua vida ao estudo dos indígenas brasileiros. Na segunda década do século XX, a serviço justamente do SPI, ele esteve em contato com indígenas amazônicos – entre os quais, os Ka’apor. Curt Nimuendajú. Nimuendajú usou de sua posição com o SPI para denunciar crimes contra os indígenas da região, mesmo no caso de seus perpetradores terem sido inocentados pela justiça da época. Sua postura trazia como norte a preservação da cultura indígena, opondo-se à linha dominante de assimilação ao país. Da mesma forma, os indígenas Ka’apor divergiam entre si quanto à forma de se aproximarem do Brasil que se apresentava a eles. Por isso, seus membros alternavam-se entre incursões militares e negociações pacíficas, o que gerou reflexos tanto nas tensões externas quanto nas divergências internas. Esses tensionamentos também indicavam fraturas no projeto geral do Estado brasileiro. Seus objetivos, afinal, já se tornavam menos monolíticos e os processos de idealização, diferentes. Duas vertentes atuavam dentro do próprio Estado e tensionavam a política nacional: De um lado, havia o campo estabelecido de que os indígenas devem ser assimilados à sociedade como um em muitos e igual a todos. De outro, um conjunto novo de etnógrafos pauta a autonomia do indígena e a defesa de uma política de não contato. O indígena na segunda metade do século XX Em 1967, o SPI, como apontamos, foi convertido em Funai, embora sua missão institucional permanecesse a mesma. Contudo, alguns novos tensionamentos surgiram. Exemplo Ganha destaque a política de demarcação de terras indígenas, cujo caráter inalienável passa a ser estabelecido pela Constituição de 1967. As décadas seguintes são marcadas por uma crescente transformação da linha dominante da política indigenista brasileira. Se até então a tônica era sua incorporação na sociedade brasileira, começa a ganhar destaque agora uma política de preservação cultural. Essa transformação veio acompanhada de outros atores, que passaram a ocupar o palco da questão indigenista. A resistência indígena aos processos de submissão ao Estado geraram frutos dentro da própria sociedade brasileira. Exemplo Conselho Indigenista Missionário (CIMI), que é vinculado à Igreja Católica. Criado em 1972, o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), ao longo da década de 1970, foi responsável pela organização de grandes assembleias entre diversos povos indígenas diferentes. Isso contribuiu para a articulação de uma agenda indígena mais ampla, desfazendo o caráter fragmentário das lutas locais e colocando as reivindicações dos diversos povos como uma questão coesa a ser trabalhada pela institucionalidade brasileira. É também na esteira dessa transformação que surge a União das Nações Indígenas (UNI), em 1981, cujos coordenadores levaram uma proposta para a Constituinte de 1987 acerca da questão indigenista. No ano seguinte, ela foi convertida no capítulo VIII (“Dos índios”) da Constituição de 1988. Indígenas de diversas etnias fazendo vigília no Congresso Nacional para garantir seus direitos na Constituinte, em junho 1988. Trata-se, portanto,da consolidação na lei da busca por autonomia frente ao próprio Estado brasileiro. A partir de 1988, a noção de tutela do Estado sobre os indígenas torna-se uma figura do passado, sendo reconhecido o direito de os indígenas pleitearem frente aos órgãos públicos sem a mediação de nenhum órgão específico, por exemplo, a Funai. Evidentemente, essa transformação não foi realizada sem obstáculos. A própria existência de um regime ditatorial ao longo desse período já indica uma situação de tensão que transbordava em violência estatal. Um indígena foi mostrado no pau-de-arara em Belo Horizonte, durante solenidade de formatura da primeira turna do reformatório Krenak, em fevereiro de 1970. Esses centros de detenção arbitrária de indígenas tinham como objetivo liberar terras para posseiros. Exemplo Em 1982, a Funai assina um contrato com uma empresa de mineração permitindo a exploração econômica das terras dos Waimiri-Atroari no estado do Amazonas. Anos antes, entre 1972 e 1974, uma incursão do Exército brasileiro para a construção da BR-174, que liga Manaus a Boa Vista, causou a morte de mais de 2.000 membros dessa etnia por conta do uso de armas de fogo pelas tropas brasileiras contra as populações indígenas locais. Esses massacres e a relação dos órgãos estatais (tanto o SPI quanto a Funai) com o ocorrido ficaram conhecidos por conta do trabalho de dois missionários do CIMI: Egydio Schwade e sua esposa, Doroty Schwade. Egydio Schwade em Roraima, na aldeia Yawara. ao lado dos Waimiri-Atroari, a quem ajudou a alfabetizar entre 1985 e 1986. Ambos descobriram a tragédia após terem implementado um projeto de alfabetização na língua nativa entre 1985 e 1986, pois seus arquivos contavam com desenhos dos alunos da alfabetização retratando os massacres, além de diversos recortes de fontes oficiais em que havia algum registro das violações de direitos que vitimizaram os indígenas. Falta pouco para atingir seus objetivos. Vamos praticar alguns conceitos? Questão 1 O projeto indigenista nacional apresenta transformações e permanências ao longo do século XX. Com base nisso, é correto afirmar que Parabéns! A alternativa C está correta. Em oposição à linha tradicional de incorporação do indígena ao Estado brasileiro, o reconhecimento da inalienabilidade da terra indígena representa uma maior autonomia desses povos, já que eles podem exercer suas formas de reprodução social sem a tutela do Estado. A forma atual dessa jurisdição é, em si mesma, fruto das reivindicações dos anos 1980 e representa uma conquista frente às formas tuteladas de existência anteriores. A o projeto de integração do indígena como trabalhador nacional é a tônica atual da legislação indigenista presente na Constituição Federal. B a integração do indígena visava à sua transformação em trabalhador industrial, contribuindo para o desenvolvimento econômico do país. C a garantia do direito inalienável à terra foi uma conquista de autonomia indígena e ampliou suas possibilidades de autodeterminação. D o reconhecimento pela Constituição Federal de 1967 do direito das comunidades indígenas à inalienabilidade da terra representa uma continuidade da política do SPI de incorporação do indígena à cidadania brasileira. E as transformações na política indigenista ocorreram sem sobressaltos, sendo fruto da continuidade política vigente desde o fim do Império. Questão 2 A idealização romântica do indígena no século XIX foi um fenômeno basilar da construção da identidade nacional, porque Parabéns! A alternativa C está correta. O esforço de idealização do indígena heroico está associado à criação de um exemplo pacífico que teria existido no passado, sendo distinto dos indígenas violentos com os quais o Império tinha contato. Ao criar o exemplo de um indígena a ser seguido, tal figura mitológica não apenas permitia uma referência comum de um passado brasileiro, como também norteava o projeto assimilacionista. A permitiu a unificação do povo brasileiro a partir das experiências concretas das relações com os indígenas. B representou uma tendência jurídica herdada do antigo regime europeu, no qual a identidade nacional era moldada pela relação de vassalagem ao rei. C transformou os indígenas reais em figuras conflituosas e justificou a política de assimilação pela força. D permitiu substituir o indígena real dos conflitos armados por um indígena pacificado, o qual, sendo imaginário, seria capaz de homogeneizar a população indígena e nortear a política de assimilação. E representou os ideais de nacionalismo europeus adaptados para a figura do indígena real em constante guerra com o antigo Estado português, sendo, portanto, um ícone de rebeldia e insubordinação. 2 - As Forças Armadas e a questão do indigenismo Ao �nal deste módulo, você será capaz de relacionar a política indigenista com as questões associadas à segurança nacional e às Forças Armadas. Questão nacional No âmbito nacional, a questão fundamental para as políticas indigenistas é a relação com a terra e os recursos naturais a elas associados. Tanto os recursos minerais quanto os hídricos, assim como a própria utilização das terras para a agropecuária, são elementos de tensão entre as comunidades indígenas e a economia nacional. Um exemplo típico dessa tensão é a questão do garimpo em terras indígenas. Mesmo proibido, ele é praticado em larga escala desde os anos 1970 com a corrida do ouro na região Norte do país. Estimativas apontam a entrada e a atuação ilegal de cerca de 40 mil garimpeiros na região, o que teria aumentado o conflito com os indígenas, além de expor populações isoladas a doenças infectocontagiosas. Atividades de extração ilegal de ouro no Rio das Tropas, na Terra Indígena Munduruku, na região do Alto Rio Tapajós, no sudoeste do Pará. Esse processo não acontece sem a anuência do Estado. Pelo contrário: ele costuma ser um agente promotor da exploração econômica das terras indígenas, muitas vezes opondo-se às próprias determinações legais elaboradas por outros agentes estatais. Um caso emblemático foi a exploração das terras Yanomâmi pelo garimpo nos anos 1980 que contou com o apoio da Funai. Essa fundação atuou para remover as organizações internacionais e religiosas que atuavam na região sob o pretexto de que elas estariam incentivando a hostilidade contra os garimpeiros. Esse processo só foi revertido com a demarcação definitiva das terras Yanomâmi em 1992. Porém, com a elevação da cotação do ouro, o problema retornou na década de 2020. Planet/MapBiomas / site-antigo.socioambiental.org Planet/MapBiomas / site-antigo.socioambiental.org A Terra Indígena Apyterewa em 2017 e 2020. A Terra Indígena Apyterewa foi uma das áreas que mais sofreu com a interrupção das operações do Ibama em abril de 2020. O recrudescimento dos problemas diante da elevação do valor monetário de determinado recurso associado às terras indígenas se repete quando o assunto é a questão fundiária. Conforme o preço da terra sobe e ela se valoriza como ativo, há também movimentos para incorporar as terras indígenas ao setor dinâmico da agricultura, ou seja, o agronegócio. Essa incorporação ocorre principalmente na fronteira agrícola do país. Trata-se, no caso atual, da Amazônia, que também se destaca como um espaço de expansão da mineração associada ao garimpo, o que se verifica no caso das terras Yanomâmi. Uma das construções incendiadas nas terras Yanomâmi, Roraima, em maio de 2022. Pensando no processo de ocupação territorial da Amazônia, existe uma sequência da exploração econômica que cria desafios para a territorialidade indígena. A ponta de lança costuma ser a instalação de uma empresa mineradora ou a descoberta de algum recurso mineral de alto valor que estimule o influxo de garimpeiros. Com a instalação da mineradora ou dos próprios garimpeiros, é construída uma infraestrutura básica necessária para a circulação e o escoamento dessa matéria- prima. Durante sua construção, o que se verifica predominantementeno caso das estradas, iniciam-se os contatos com os territórios indígenas, já que as estradas construídas, muitas vezes, passam pelo interior das suas terras. Essa violação inicial é acompanhada pelo avanço de outras empresas extrativistas, como as madeireiras, que usam a infraestrutura construída pela mineração e pelo garimpo para o transporte dos seus produtos. Isso significa maior fluxo de carga e de pessoas pelas estradas que cortam as terras indígenas. Nesse cenário, as tensões se acirram, aumentando os riscos de confronto entre indígenas e mineradores ou madeireiros. Garipeiros usando mercúrio, substância altamente poluente, para separar o metal dos dejetos, em Roraima, fevereiro de 2021. Como a exploração de madeira reduz a densidade florestal, isso possibilita a chegada dos primeiros fazendeiros. Eles não ocupam a terra inteira, mas se apossam de pequenos lotes das terras abertas, eventualmente convertidas em propriedade privada própria por meio da chamada grilagem das terras. A grilagem é o processo de conversão de um assentamento irregular em um título legal de propriedade com a chancela do Estado. Trata-se de um processo típico da ocupação de terras na fronteira dos assentamentos existentes, sendo muito associada ao processo de expansão sobre a Amazônia. Ela é uma grande fonte de conflito com os indígenas, já que, às vezes, o assentamento inicial ocorre em terras indígenas em processo de demarcação. Isso cria uma dupla titularidade dessas terras, que passam a ser disputadas por indígenas e grileiros. Terra Indígena Piripikura após a invasão de grileiros, madeireiros e criadores de gado, Mato Grosso, em março de 2022. Por fim, com as terras convertidas em propriedade de fato, os pequenos lotes são adquiridos por algum empreendimento do agronegócio e convertidos em latifúndios, entrando de fato no mercado de terras mais amplo. Esses latifúndios consolidam a ocupação do território e sedimentam a infraestrutura irregular inicial, o que cristaliza um cenário de violação da integridade territorial indígena. Atenção! É importante notar que, por mais que o direito à terra inalienável seja garantido aos povos indígenas, boa parte dessa operação descrita ocorre às margens da legalidade. Muitas vezes, o Estado entra no fim do processo para chancelar as mudanças na paisagem e reconhecer o direito à propriedade dos agentes privados que ocuparam aquele território. Isso cristaliza a divisão territorial construída ao longo do assentamento dessas novas populações, fator que, às vezes, envolve alguma violação das terras indígenas – mesmo daquelas previamente demarcadas. Resultado: a situação de conflito original é perpetuada. Questão internacional Até agora vimos a política indigenista a partir de um prisma histórico nacional. No entanto, existe também uma dimensão internacional nessa questão, já que a convivência entre as populações de origem colonial e os indígenas não é um fenômeno exclusivamente brasileiro, estando presente em diversas partes do globo. A partir da década de 1970, a causa indígena dá início a um processo de internacionalização a partir de uma série de conferências entre líderes regionais. O marco inicial desse processo é a Primeira Reunião de Barbados (1971), seguida pela Segunda Reunião de Barbados (1977) e pela Reunião de São José na Costa Rica (1981). Vicente Kañas, o Kiwxi, membro do Conselho Indigenista Missionário, assassinado em 1987 a mando de fazendeiros interessados nas terras do povo Enawenê-Nawê, com os quais atuava. . Consolidadas na Declaração de São José (1981), essas reuniões internacionais pautaram dois temas gerais da causa indígena americana que estão intimamente relacionados. Vamos conferi-los! Etnocídio Trata-se de um termo usado para descrever a destruição da cultura de um povo, em vez do povo em si mesmo. Na leitura de tais conferências, o maior responsável pelo etnocídio era justamente a política de crescimento econômico associada a uma visão de modernização e de exploração econômica do território que via nas comunidades indígenas um entrave a esses processos. Direito ao etnodesenvolvimento O etnodesenvolvimento surge, portanto, como uma resposta. Ele propõe que as comunidades indígenas sejam as protagonistas da própria trajetória de evolução, construindo um novo paradigma de desenvolvimento no qual a preservação das características étnicas seja valorizada. Tal protagonismo na trajetória de desenvolvimento significa algum grau de autonomia (administrativa e política) sobre o próprio território para tomar as decisões que a comunidade julga necessárias, a fim de concretizar esse ideal próprio de evolução. Isso, porém, abriu margem para alguns questionamentos por parte dos Estados que convivem com a questão indígena, como o Brasil, porque essa previsão de autonomia poderia dar margem a um processo de secessão do território no qual os movimentos indígenas atuariam como movimentos separatistas. Diante dessa ressalva sobre a integridade territorial, a qual constituiu uma preocupação de diversos Estados signatários da ONU, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) organizou, em 1991, a Convenção nº 169. Nessa convenção, a OIT explicitamente desfez a relação entre o termo “povo” e o direito internacional, o que, em tal debate em particular, significa que: a autonomia indígena não se confunde com a soberania nacional. Organização Internacional do Trabalho (OIT). Outro tema que surgiu a partir desse debate foi a questão das terras de fronteira, já que a noção de autonomia político-administrativa representaria um problema ao patrulhamento nas fronteiras e poderia ser instrumentalizada de modo a torná-las mais porosas. Esse fato seria agravado pela existência de comunidades indígenas em mais de um Estado nacional cujas fronteiras cortassem as áreas de tais comunidades. Atenção! Sobre alguns movimentos a esse respeito, a questão da fronteira é um falso problema, pois a soberania territorial se estende sobre as áreas indígenas e necessariamente sobre o seu entorno. A questão nesse âmbito diz mais respeito a disputas políticas internas do que propriamente a uma questão internacional do indigenismo. Lógica vinculada ao Exército A questão da fronteira reaparece quando nos voltamos para a relação entre os indígenas e o Exército. Uma das grandes preocupações dessa corporação é a integração territorial brasileira, com um apreço peculiar às terras fronteiriças, onde seria mais necessário resguardar a soberania nacional. Essa relação triangular entre exércitos, indígenas e fronteiras adquiriu diversos matizes ao longo da história brasileira. Ainda na década de 1930, o SPI foi transferido para o Ministério da Guerra, e uma de suas diretrizes passou a ser a incorporação dos indígenas como guardas de fronteiras. Lideranças indígenas, em protesto, deixaram em frente ao Ministério de Minas e Energia (MME) um rastro de sujeira similar àquele que o garimpo tem deixado para povos, como os Yanomami, os Munduruku e os Kayapó, em Brasília, em março de 2022. Tal processo envolvia uma modalidade de “educação cívica” desenvolvida para fomentar o sentimento de: A postura do Exército brasileiro com as regiões afastadas dos grandes centros populacionais (e, em especial, a Amazônia) pode ser condensada nas palavras de ordem “Integrar para não entregar”, cunhadas ainda na época da ditadura militar. A preocupação com a soberania nacional se traduz na ocupação e na integração do território fronteiriço à economia nacional. Isso ganha contornos mais visíveis quando setores do Exército se manifestam contra a demarcação dos territórios Yanomâmi na parte norte de Roraima, levantando o fantasma do risco da porosidade das fronteiras em função da autonomia das terras indígenas. Além disso, existe o risco aventado de uma partição do território nacional à luz da soberania indígena, possibilidade trabalhada pelos militares brasileiros como um risco real, mesmo nunca sendo concretizada. Nacionalidade brasileira.Rejeição a qualquer tentativa dos estrangeiros do outro lado da fronteira de aproximação e de criação de vínculos. Yanomamis, Mundurukus e Kayapós se cobrem de sangue e lama para protestar contra o Projeto de Lei nº 191/2020, que libera a mineração e o garimpo em terras Indígenas, em Brasília, em março de 2022. Além dos debates da intelectualidade militar ou as manifestações políticas de suas lideranças, houve casos mais concretos, estando associados à construção da infraestrutura que atravessa as terras indígenas. Exemplo Temo o caso da BR-174 nos anos 1970, em que o Exército foi responsável pelo massacres de indígenas da etnia Waimiri-Atroari. Outro caso é a mobilização das Forças Armadas contra o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF) acerca da demarcação das terras indígenas de Raposa/Serra do Sol, em Roraima, sob a alegação de que ela representaria um risco à soberania territorial nacional, uma vez que eram terras de fronteira. Muito disso se deve ao fato de que, dentro da doutrina de segurança nacional, o indígena conceitualmente deixa de ocupar a posição de aliado – prevista, por exemplo, na política do SPI de treinar guardas de fronteira indígenas – e passa a ser categorizado como inimigo (real ou potencial). Trata-se de uma doutrina do inimigo interno na qual o próprio povo do país pode entrar nessa categoria, já que ele se opõe a um projeto político próprio das Forças Armadas. Rondon A despeito da relação conflituosa entre o Exército e os povos indígenas, houve também alguns momentos de convivência positiva. Uma figura central que demonstra as possibilidades de um contato pacífico e benéfico é a do Marechal Rondon. Marechal Rondon. Nascido ainda na época do Império, em 1865, na cidade de Mimoso, próximo a Cuiabá, hoje no estado do Mato Grosso, Cândido Mariano da Silva Rondon entrou no Exército aos 16 anos, em 1881. Por meio dos estudos nas academias militares, ele conseguiu galgar degraus na hierarquia e formou-se como oficial de engenharia nove anos depois, capacitando-se para o trabalho que lhe abriria as portas do sertão brasileiro. Bem situado no pensamento positivista que vigorava entre os militares brasileiros da época, Rondon acreditava na missão civilizatória do Estado brasileiro que tomava muitas vezes a forma de uma expansão tecnológica pelo interior do país. No contexto de então, isso significava a criação de linhas telegráficas entre algumas cidades espalhadas pelo sertão. Em 1890, Rondon participou de sua primeira missão, integrando a equipe que deveria construir a linha telegráfica entre Cuiabá e Araguaia. Outras missões vieram em seguida: até 1910, Rondon liderou os trabalhos para estabelecer linhas de comunicação do Rio de Janeiro ao Acre. Foi no contexto dessas missões que o militar desenvolveu suas técnicas de contato com as populações indígenas. Tais técnicas seriam adotadas pelo Serviço de Proteção aos Índios (SPI), instituição fundada pelo próprio Rondon em 1910. Ao contrário das experiências de contato anteriores, profundamente marcadas pela violência, Rondon buscava, antes de tudo, estabelecer uma relação de amizade com os indígenas com os quais tinha contato, preconizando uma postura defensiva que minimizasse os conflitos. Após o estabelecimento de um vínculo de confiança, ele fazia a mediação entre os indígenas e o governo (local ou nacional) para garantir, de um lado, a disponibilidade de terras para a sobrevivência daquela população e, de outro, o espaço necessário para a passagem da linha telegráfica em construção. Tal postura diplomática e apaziguadora foi encapsulada no princípio norteador das expedições rondonianas: “Morrer, se preciso for; matar, nunca”. Essa posição era pautada pela percepção de Rondon de que havia legitimidade na visão indígena de que aquelas terras eram deles, e não do Brasil. Assim, as expedições eram, à sua maneira, uma forma de invasão! Consciente, portanto, do seu caráter de invasor, Rondon buscava negociar com os indígenas o reconhecimento da legitimidade do pleito brasileiro ao uso daquele espaço, sem, entretanto, impor isso a eles. Rondon explicando o funcionamento de um relógio aos indígenas Caianã. Um jovem Tacuatépe e Marechal Rondon. Rondon estava inserido na tradição positivista e civilizatória, uma vez que, nas missões de exploração e instalação de linhas telegráficas, sua lógica militar e suas preocupações com a segurança nacional são patentes. Mesmo assim, ele tinha características que o destacavam dos demais personagens de seu tempo – em especial, por ter uma visão que se refinava com o passar dos anos. Apesar de inicialmente pensar suas expedições como dotadas de um caráter civilizatório, esse militar foi um dos primeiros a reconhecer o direito à diferença no sentido de uma proposição étnica, isto é, os povos indígenas não deveriam ser necessariamente convertidos em brasileiros. A eles, portanto, deveria ser dada a escolha sobre o próprio destino. É sob a égide de Rondon que os irmãos Villas-Bôas – Leonardo, Cláudio e Orlando – e o SPI idealizaram o Parque Nacional do Xingu (chamado, hoje, de Parque Indígena do Xingu). Orlando, Leonardo e Cláudio Villas-Bôas, indigenistas e prosseguidores da obra de defesa das populações indígenas iniciada por Marechal Rondon e fundadores do Parque do Xingu, primeira reserva indígena brasileira. Isso não apenas marcou a garantia de sobrevivência material e cultural dos povos do alto Xingu, como também inaugurou uma nova fase do projeto indigenista, que passa a ser pautado também pela antropologia nacional. A disputa pela demarcação de terras do Xingu Confira agora um caso famoso e que nos ajuda a entender as relações entre política indigenista com questões associadas à segurança nacional e às Forças Armadas. Falta pouco para atingir seus objetivos. Vamos praticar alguns conceitos? Questão 1 Dois conceitos fundamentais para o indigenismo atual são o etnocídio e o etnodesenvolvimento. Qual relação podemos estabelecer entre ambos? A Segundo a visão atual, a principal causa do etnocídio é a política de crescimento econômico associada à exploração das terras indígenas. Nesse sentido, o etnodesenvolvimento configura uma forma de frear o etnocídio, trazendo uma alternativa ao programa desenvolvimentista tradicional. B Parabéns! A alternativa A está correta. Sabendo que o etnocídio é a destruição de determinada etnia e de sua cultura, e que o etnodesenvolvimento se refere a uma forma de desenvolvimento na qual a diversidade étnica é valorizada e cada povo tem autonomia para traçar a própria trajetória de desenvolvimento, o etnodesenvolvimento constitui uma forma de evitar o etnocídio. Questão 2 Considerando a trajetória de vida de Rondon e a transformação de seu pensamento ao longo do tempo, assinale a alternativa correta. Atualmente, vigora a compreensão de que o etnocídio é causado pelo etnodesenvolvimento, já que este envolve a exploração de terras indígenas por grandes conglomerados econômicos. C Na concepção atual, o etnodesenvolvimento é a forma para atingir o etnocídio, isto é, garantir a autonomia dos povos indígenas, para pautar a própria trajetória de desenvolvimento, em oposição ao programa desenvolvimentista clássico. D De acordo com as interpretações contemporâneas, o etnodesenvolvimento é o caminho para evitar o etnocídio, porque permite a assimilação das populações indígenas ao corpo nacional, homogeneizando a diversidade étnica. E No século XXI, consolidou-se a ideia de que o etnocídio é um fator causativo do etnodesenvolvimento, isto é, a destruição étnica dos indígenas é o caminho pelo qual é possível realizar o programa de crescimento nacional. A O pensamento de Rondon começa muito vinculado ao positivismo, mas, no fim da vida, ele adota posições similares ao assimilacionismo contemporâneo. B Rondon considera que os indígenas são os legítimos senhores do seu espaço; portanto, as tropas brasileiras devem sempre proceder como se fossem os estrangeiros.Parabéns! A alternativa B está correta. Apesar de inserido na mentalidade do Exército brasileiro, que é profundamente marcada pelo positivismo desde o século XIX, Rondon mostrava uma forte preocupação com o direito à diferença. No fim da vida, preconizou projetos fundamentais, como a consolidação do Parque Indígena do Xingu, com o intuito de garantir as condições para a reprodução cultural e material dos povos indígenas, com a manutenção da sua autonomia e o direito à diferença. C A postura de Rondon pode ser bem entendida na constituição do Parque Indígena do Xingu, espaço que ajudou a obter reconhecimento do Estado, pois nele se manifesta a missão civilizatória do Estado brasileiro a partir do reconhecimento do direito à diferença. D A tônica da abordagem rondoniana está na importância conferida às tecnologias de comunicação. Se, no início da sua vida militar, o objetivo era instalar linhas telegráficas, com o passar dos anos, sua preocupação se voltou para as linhas telefônicas e a infraestrutura de transporte. E Rondon é um personagem multifacetado, porque, ao mesmo tempo que estava vinculado ao Exército brasileiro, ele foi diretor do SPI quando da sua fundação. Esse conflito de missões fez com que o militar saísse da visão positivista típica dos antropólogos do SPI para uma postura civilizatória associada ao Exército brasileiro. 3 - A decolonialidade do debate Ao �nal deste módulo, você será capaz de analisar as formas tradicionais de pensar a política indigenista a partir dos conceitos do debate decolonial. De Darcy a questões internacionais de crítica Outro personagem importante no indigenismo nacional é Darcy Ribeiro. O autor nasceu em Minas Gerais, na cidade de Montes Claros, em 1922. No começo de sua trajetória, Darcy foi influenciado pelas ideias positivistas, assim como Marechal Rondon, chegando mesmo a visitar brevemente a Igreja Positivista do Rio de Janeiro. Mas foi em São Paulo, na Escola de Sociologia e Política, que consolidou sua formação, concluindo o bacharelado em 1945 e o mestrado dois anos depois. Darcy Ribeiro. É nesse contexto intelectual que Darcy Ribeiro teve contato com os intérpretes do Brasil e começava a se preocupar em trazer os grandes esquemas teóricos da intelectualidade da época para as questões específicas da brasilidade, dentro da qual se destaca a relação com os povos indígenas. Ao pensar a formação do povo brasileiro e de sua especificidade, ele enfatizava a matriz indígena (em especial, a tupi) na configuração do país nascente, ênfase essa bastante original para a época, uma vez que até mesmo as obras mais relevantes do período colocavam o enfoque sobre os colonos portugueses ou sobre os africanos escravizados. Para Darcy Ribeiro, o fenômeno de formação do povo brasileiro seria, antes de mais nada, a criação de um rosto pelos povos descaracterizados pelo processo de colonização. Por isso, apesar de não poder ser caracterizado como um pensador decolonial, ele apresentava em sua obra características que permitem um diálogo com a decolonialidade contemporânea. Especialmente ao expandir o conceito de universal para além da experiência ocidental, associada ao norte global, Darcy colocou o terceiro mundo no centro da questão. Não se trata apenas de formular uma lógica local diferente, e sim de pensar que lógica gestada nesse terceiro mundo tem validade e importância gerais. Darcy entre os Urubu-Ka’apor, Maranhão, 1949. Darcy com pintura Kadiwéu, Mato Grosso do Sul, 1947. Nessa nova proposta, a violência do projeto colonial, na forma de massacres e genocídios, tem de ceder espaço a uma convivência positiva, que é regida pela diversidade oriunda da periferia do mesmo sistema. Ao negar os conceitos de pureza e unidade, tal diversidade abre brechas para que se reconheça no outro possibilidades de existência diferentes, o que aproxima o pensamento de Darcy Ribeiro das pautas contemporâneas associadas, por exemplo, ao etnodesenvolvimento presente na Convenção nº 169 da Organização internacional do Trabalho (OIT). Esse pensamento indigenista (de valorização da perspectiva de outro agente que não está inserido no campo semântico da modernidade colonial) também aproxima a visão de Darcy de tendências intelectuais internacionais associadas ao pensamento crítico pelo olhar dos excluídos nos processos históricos de colonização. Assim, embora seja anacrônico – no sentido mais literal – associar a antropologia brasileira do século XX a um movimento intelectual pós-colonial ou decolonial, pois, quando Darcy nasceu, o Brasil já não era colônia havia um século, existe ainda um sentido figurado desse rótulo colonial. Dica No sentido figurado, “colonial” refere-se ao pensamento orientado pela noção de modernidade com a qual estão associados outros termos do mesmo campo semântico, como uniformidade, pureza e Ocidente. Desse modo, o anticolonial, nos seus múltiplos rótulos, é o pensamento que se pauta pela valorização do que é multifacetado e misturado, assim como das ideias do outro, que está subjugado ao sistema colonial intelectual. Isso é justamente o que configura o cerne da contribuição de Darcy Ribeiro para a questão indígena. Darcy Ribeiro e um outro olhar sobre os povos originários Conheça agora a perspectiva de Darcy Ribeiro sobre a questão indígena. A valorização dos grupos e suas ideias Seguindo nessa toada da valorização da etnicidade própria dos povos indígenas, chegamos ao cenário contemporâneo. Tal cenário é profundamente marcado pela Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e pela mobilização internacional de diversos grupos indígenas, como verificamos no módulo anterior. Se atualmente a tônica é dada pela garantia da autonomia indígena no uso de suas terras para que eles busquem aquilo que coletivamente julgam fazer parte de sua trajetória de desenvolvimento, esse processo não pode prescindir de uma reflexão intelectual própria que balize conceitualmente o seguinte ponto: em que consiste essa autonomia? Mulher com cinzas e lágrimas passadas no rosto – uma forma de luto dos Yanomami, Roraima, 1996. Uma das vertentes que cria possibilidades interpretativas para isso é a ideia de valorização dos saberes indígenas a partir de uma perspectiva decolonial. Isso significa recolocar os diferentes paradigmas interpretativos formulados por diversas sociedades indígenas no centro da reflexão, substituindo a homogeneidade das formulações coloniais pela diversidade oriunda desse giro decolonial. O primeiro passo nessa trajetória intelectual é a recolocação da hierarquia do sistema-mundo colonial. Se a modernidade colonial foi pautada pela sobrepujação do outro pelo colonizador, então as formulações intelectuais da decolonialidade precisam traduzir-se em não hierarquias, fazendo com que o outro (sujeito relegado aos aspectos secundários ou submissos do projeto colonial) torne-se um agente autônomo do próprio destino. Mulher Kaxinawá, Acre, 1994. Caçadores Zo'é, Pará, 2009. Isso, por sua vez, se traduz, em primeiro lugar, na diversidade de propostas. Se, no início do século XX, como vimos, a tônica era a integração dos povos indígenas ao projeto desenvolvimentista nacional, que pode ser entendido como crescimento econômico, modernidade e industrialização regidos pelo republicanismo moderno, busca-se, no século XXI, reconhecer a multiplicidade de destinos elegida pelos diversos povos. Atenção! Não se trata de erigir uma nova hierarquia pautada pela autenticidade, isto é, determinado povo não é mais importante ou digno por viver da mesma forma há 500 anos. Trata-se, na verdade, de reconhecer a autonomia dos diversos povos para escolher como viver e fornecer os meios sem realizar qualquer julgamento pelas escolhas tomadas. Esse mundo novo pela diversidade ecoa ideias presentes nas diferentes cosmovisões indígenas, sobretudo aquelas associadas aos lugares de enunciação (ou de fala). O que se identifica como pensamento colonial envolve sempre a enunciaçãoda verdade a partir de um não lugar, isto é, toma-se o valor do que é dito como universal. A guinada decolonial se propõe a enfatizar a raiz do enunciador e tratar do que é dito como uma possibilidade entre muitas, sendo todas elas igualmente válidas. Em oposição às dicotomias típicas do pensamento colonizado, essa multiplicidade serviria como vetor de renovação intelectual geral não apenas dos povos indígenas de onde os saberes se originassem, mas também de todos os outros, incluindo-se aí os povos coloniais. Em essência, ela é a tradução epistemológica do que os pensamentos de Darcy Ribeiro e de Rondon (em suas manifestações já no fim da vida) preconizavam, por exemplo, na concretização do Parque Indígena do Xingu. O Parque Indígena do Xingu vem registrando altas taxas de desmatamento nas últimas décadas. O espaço preserva menos os modos fossilizados de reprodução material (análogos ao cativeiro de um zoológico humano), e mais as possibilidades inerentes a qualquer modo de reprodução vivo. A voz do pajé Confira agora a luta e a sua importância para os povos indígenas, a partir da fala dos próprios. Falta pouco para atingir seus objetivos. Vamos praticar alguns conceitos? Questão 1 Considerando o pensamento de Darcy Ribeiro, em que medida a valorização da matriz indígena antecipa pontos do debate decolonial? Parabéns! A alternativa E está correta. A matriz indígena da formação do povo brasileiro, conforme Darcy Ribeiro propõe, envolve a valorização da perspectiva de um agente histórico que se encontra excluído do campo semântico norteador do pensamento colonial. Conferida a uma perspectiva tradicionalmente excluída, essa ênfase o coloca em diálogo direto com o campo decolonial. Questão 2 Considerando as propostas de autonomia indígena que preconizam o direito de cada povo de pautar o próprio caminho, por que podemos dizer que o pensamento decolonial fundamenta esse tipo de A No pensamento de Darcy Ribeiro, o indígena possui caráter secundário ao ser situado como um dos elementos constitutivos do povo brasileiro, o que está em sintonia com a ideia decolonial de valorização da multiplicidade étnica. B Darcy Ribeiro se aproxima do debate decolonial ao tratar da matriz indígena como uma unidade que se sobrepõe aos conceitos do pensamento colonial, por exemplo, modernidade e pureza. C A obra de Darcy Ribeiro compartilha da preocupação do pensamento decolonial de valorizar a multiplicidade como uma construção hierarquicamente superior à unidade moderna colonial. D Para Darcy Ribeiro, a ênfase na matriz indígena é uma forma de contrarrestar os processos coloniais de valorização de multiplicidade étnica. E Ao enfatizar a matriz indígena, Darcy Ribeiro propõe uma valorização da perspectiva dos excluídos pelos processos de colonização, estando em sintonia com os debates decoloniais do século XXI. proposta? Parabéns! A alternativa A está correta. O principal conceito da decolonialidade a balizar a proposta de que cada povo deve pautar o próprio caminho de desenvolvimento é o da multiplicidade, já que, a partir dela, é possível justificar a tese de que os diferentes projetos de desenvolvimento são igualmente válidos e que a opção por um caminho ou outro precisa ser tomada pelo próprio povo. A Ao substituir a homogeneidade do pensamento colonial pela multiplicidade de formulações oriundas dos povos indígenas, o pensamento decolonial coloca em pé de igualdade tanto os projetos gestados pela matriz de pensamento ocidental/colonial quanto aqueles desenvolvidos pelos povos indígenas. B O pensamento decolonial inverte as hierarquias tradicionais e possibilita que os projetos de desenvolvimento próprios dos povos indígenas sejam considerados melhores que o projeto de desenvolvimento tradicional. C É a igualdade dentro da multiplicidade proposta pelo pensamento decolonial que permite que os saberes indígenas sejam valorizados e, portanto, que cada povo indígena possa formular a própria trajetória de crescimento econômico. D A substituição do conceito colonial de unidade pelo decolonial de multiplicidade confere uma abertura para a consolidação de um desenvolvimento próprio para o povo indígena associado a determinada pureza étnica própria em contraste com as vertentes assimilacionistas coloniais. E Enquanto o pensamento moderno/colonial tratava do desenvolvimento como uma possibilidade acessível a todos, a abordagem decolonial visa garantir que ele não atinja as comunidades indígenas, de modo que elas continuem com os mesmos modos de vida anteriores ao contato com os povos europeus. Considerações �nais Vimos neste conteúdo que a questão indígena brasileira é um fenômeno multifacetado. Desde os tempos do Brasil Colônia, os povos indígenas possuem relações com a institucionalidade da Coroa portuguesa, já que, nos moldes clássicos da vassalagem do antigo regime, eles eram possuidores de um estatuto próprio como súditos da monarquia. Com a independência, demonstramos que a preocupação com a formação de uma identidade nacional se tornou a tônica da política do Império. Nesse contexto, a busca por uma unidade simbólica aos moldes do nacionalismo europeu contribuiu para o apagamento da multiplicidade étnica dos povos originários, utilizando-se de um ideal de indígena romantizado em consonância com a pauta política da época. Destacamos ainda que, no século XX, a política indigenista ganhou contornos institucionais mais definidos com a formação de órgãos específicos para a questão: em primeiro lugar, o SPI; e, em seguida, a Funai. Ambos tiveram uma atuação-chave nesse processo, constituindo os vetores tanto das políticas assimilacionistas associadas ao etnocídio quanto das políticas de defesa dos indígenas, como é o caso da demarcação da terra indígena do Xingu. Frisamos também que é nesse período que tal questão passa a ter um caráter internacional patente, havendo a realização de grandes conferências mediadas por organismos internacionais. Isso vem acompanhado de maior destaque da questão indígena dentro do debate de segurança nacional, sobretudo no que diz respeito à segurança das fronteiras. Por fim, no século XXI, destacamos a consolidação de uma perspectiva decolonial sobre os indígenas. Segundo esse viés, a valorização dos saberes indígenas ganha centralidade no debate com a valorização da multiplicidade étnica como riqueza coletiva. Podcast Ouça agora os principais aspectos da questão indígena no Brasil. Referências ALMEIDA, M. R. C. Os índios na história do Brasil no século XIX: da invisibilidade ao protagonismo. História hoje, v. 1, n. 2, 2012, p. 21-39. ALVES, D.; VIEIRA, M. V. A legislação indigenista no Brasil republicano do SPI à FUNAI: avanços e continuidades. Albuquerque: revista de história, v. 9, n. 18, 2017. CASTRO, E. V. de. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac Naify, 2014. CUNHA, M. C. da. O futuro da questão indígena. Estudos avançados, v. 8, 1994, p. 121-136. ESCADA, M. I. S. et al. Processos de ocupação nas novas fronteiras da Amazônia: o interflúvio do Xingu/Iriri. Estudos avançados, v. 19, 2005, p. 9-23. FIGUEIREDO, A. M. de. O índio como metáfora: política, modernismo e historiografia na Amazônia nas primeiras décadas do século XX. Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados de História, v. 41, 2010. MIGLIEVICH-RIBEIRO, A. Estudos em Darcy Ribeiro: um capítulo do pensamento crítico latino-americano e decolonial. In: CALIXTRE, A. B.; ALMEIDA FILHO, N. (Orgs.). Cátedras para o desenvolvimento: patronos do Brasil, 2014, p. 109-130. RIBEIRO, M. I. F. da C. A. Mineração e garimpo em terras indígenas. Rio de Janeiro: CETEM/MCTIC, 2016. Série Estudos e Documentos, 92. VERDUM, R. Etnodesenvolvimento: nova/velha utopia de indigenismo. 2006. Tese (doutorado em Ciências Sociais). Brasília: Universidade de Brasília, 2006. Explore + Confira as indicações que separamos para você! Conheça mais sobre a diversidade étnica dos povos indígenas brasileiroscom os recursos virtuais do Museu do Índio. Confira a trajetória dos irmãos Villas-Bôas e da criação do Parque Indígena do Xingu, que foi adaptada para o cinema no filme Xingu, em 2012. Recomendamos ainda a leitura destes três textos: Povos indígenas, segurança nacional e a Assembleia Nacional Constituinte: as Forças Armadas e o capítulo dos índios da Constituição brasileira de 1988, de Fernandes Pádua (2015). Por que saberes indígenas no século XXI ? - uma guinada decolonial, de Morgan Ndlovu (2017). Povos indígenas, fronteiras amazônicas e soberania nacional. Algumas reflexões a partir dos Ashaninka do Acre, em Proceedings from the 61st Annual Meeting of the Brazilian Society for Scientific Progress: Amazon Science and Culture, de José Pimenta. Ancestralidade e tradições africanas Prof. Arthur José Baptista Descrição Rompimento da ignomínia de povos africanos como uma cultura inferior, explicando de forma clara e direta a importância de sua cultura e ancestralidade. Propósito Fomentar a formação de profissionais mais bem preparados para apreender a diversidade. Objetivos Módulo 1 Para uma antropologia da ancestralidade Reconhecer o impacto da antropologia para o conhecimento da ancestralidade e tradições africanas. Módulo 2 Recuperando histórias e tradições Identificar o conceito de ancestralidade e suas categorias para sua historicização. Introdução Se a escravidão acabou e vivemos todos na mesma sociedade, para que remexer esse passado? Se você pensa assim, é bem possível que seu pensamento esteja mergulhado no sucesso do processo de colonização. História se faz na tradição europeia, seu mundo se modifica a partir de feitos e homens brancos e isso está naturalizado para você. Essa naturalização é uma construção histórica com o objetivo de consolidar domínios e naturalizar paisagens e imagens, que acaba por gerar uma percepção de que aquela é a verdade. Muitos fatores entram nesse processo: ética, religião, moral, comportamentos, ideais, só para ficar em um primeiro plano. Para romper com esse olhar, essa tradição, de nada adiantaria dizer: isso não é verdade. Seriam meras palavras. Palavras que só vão obter sentido se as velhas crenças forem revistas, ressignificadas e reassumidas. É isso que passaremos a fazer, em um texto leve, mas profundo. Pense sobre o conjunto de informações que tradicionalmente você não obteve: agora é o momento de recuperá-las. Para isso, vamos rumar para o continente africano. 1 - Para uma antropologia da ancestralidade Ao �nal deste módulo, você será capaz de reconhecer o impacto da antropologia para o conhecimento da ancestralidade e tradições africanas. Valores das sociedades tradicionais africanas Culturas tradicionais africanas A maioria dos seres humanos nascidos no continente africano que vieram para o Brasil e para as Américas ao longo de aproximadamente 350 anos, tempo que durou o comércio de seres humanos na época Moderna, foi proveniente de sociedades portadoras de culturas tradicionais. O tráfico atlântico de escravizados foi a base da acumulação de capitais que permitiu aos países do continente europeu a arrancada de seu padrão de desenvolvimento moderno. As culturas tradicionais africanas (de agora em diante denominadas CTAs) eram, geralmente, portadoras das seguintes características gerais: O elemento estruturante das CTAs eram as religiões tradicionais. A religiosidade cobria todas as esferas da existência e influenciava os comportamentos individuais e coletivos. Seu alcance começava antes do nascimento dos indivíduos e se prolongava para além de suas mortes físicas, ligando-os aos seus ancestrais e àqueles que ainda estavam por nascer. Cerimônia de adivinhação e dança, Brasil, década de 1630. Para a maioria das CTAs, os valores civilizatórios mais característicos poderiam ser resumidos nos seguintes termos: A oralidade e o poder da palavra O poder dos ritos e dos símbolos A autoridade dos anciãos na transmissão da tradição do grupo A O princípio da relação e da participação comunitária na força vital universal. Nas CTAs, a educação tradicional assume uma grande importância que marca o indivíduo mais que todas as outras educações que ele recebe na sociedade. Uma educação caracterizada pelo método iniciático. A iniciação tradicional é baseada na concepção da vida como uma longa jornada de crescimento em que o indivíduo, guiado pela mão dos mais velhos, vai passando, gradual e progressivamente, de uma fase da vida a outra; de “menos ser A crença na imortalidade. A prevalência do bem comum sobre os interesses individuais. O forte sentido de família alargada. O valor da solidariedade, da hospitalidade e da partilha. O amor à vida e à fecundidade. O respeito e a veneração pelos mais velhos e crianças. O sentido da paciência e da esperança na vida. para mais ser”, até atingir o pleno estatuto de pessoa madura, consciente, autônoma, responsável, solidária e comunicadora da vida. O mundo nas culturas tradicionais africanas Na concepção das CTAs, a pessoa não nasce já feita, mas vai se fazendo gradualmente no processo iniciático por meio de instruções, ritos e cerimônias. A pessoa passa por uma renovação interior profunda que modifica não apenas seus comportamentos, atitudes, mentalidade e vida, mas também o próprio ser. Trata-se de uma verdadeira transformação ontológica. Referindo-se particularmente às culturas tradicionais banto, diz um estudioso das CTAs: A chave para a compreensão dos costumes e instituições dos bantos é a comunidade, que se apresenta como a unidade de vida. O segredo parece ser um princípio único, a participação. A participação na mesma vida, ou a união vital, aparece como o princípio-base da cultura banto. Do princípio da união vital fluem todas as instituições políticas, sociais, econômicas, artísticas e nele se fundamenta a religião tradicional banto. A vida, princípio e fim de todo o criado e das comunidades banto, tem uma causa primeira. Nzambi (Deus), princípio formador e informador de todos os seres, inundou a criação com esse princípio vital. Nzambi é a origem e a plenitude da vida. (ALTUNA, 2006, p. 22) Em outras palavras, a cultura dos bantos, uma das mais importantes em difundir traços e organização na África, tem como o seu maior dom e uma realidade sagrada e de preço inestimável a ancestralidade de sua formação. Os primeiros antepassados receberam-na de Nzambi para a comunicar e defender. A vida, que podemos entender como energia vital, manifesta-se em cada um, seu movimento, força e dinamismo. Essa ligação contínua e poderosa impregna todo o universo. Todo o universo pulsa porque é dinâmico, ativo, vivo, pujante. Porque existe uma única corrente vital, brota uma “unidade ontológica de todos os seres”, uma comunhão universal, um dinamismo interno que se expressa sobretudo pela palavra e pelo movimento. Mundo invisível e mundo visível parecem unidos em uma simbiose de vida indestrutível. Nesse sentido, todo o universo visível e invisível, desde Nzambi até um grão de areia, passando pelos espíritos, antepassados, animais, plantas e minerais, está composto de “vasos comunicantes”, de forças vitais solidárias, que emanam de Nzambi. Estátua de madeira representando Nzambi. O seu universo forma uma unidade indivisa, o “ntu” humano (o ser) vive em uníssono com o mundo visível e invisível. O homem não está situado frente ao cosmos, mas no cosmos. A partir da integração na sua família- comunidade pelo sangue-vida recebido dos antepassados, os bantos sentem-se em comunhão com o universo, envolvidos na corrente vital. Os mundos visível e invisível, embora muito amplos e complexos, estão unidos por relações vitais com intercâmbios permanentes. As aparências sensíveis apresentam-se sob formas divergentes nos reinos vegetal, animal e mineral. Mas estas são essencialmente manifestações de uma só realidade fundamental: O universo, rede de forças divergentes, porém suplementares. A realidade completa é o resultado da comunhãoperfeita, ainda que em mutação, do visível e invisível. Aquele, tangível e sensorial, significa a existência atual, concreta e representa o invisível. A aparência de um objeto, seu ser concreto é a representação da sua natureza íntima. Ambos os mundos constituem uma só realidade, se interacionam. Os elementos exterior e interior, misteriosamente unidos, integram a realidade de tudo o que existe. Longe de manifestar qualquer sentimento de mal-estar, ante o invisível, o banto encontra-se adaptado; pelo contrário, desorienta-se ante os fenômenos exteriores, onde o choque perturba a sua harmonia interior. Re�exão Mas podemos definir toda a ancestralidade como algo único? Claro que não, essa interpretação, como um fenômeno cultural e social, circula e marca sua presença de forma maior ou menor em grupos diversos, sendo ressignificada e renomeada, e até mesmo renegada, mas isso não representa o fim ou a negação absoluta, e sim a compreensão de como ela permanece viva, para muito além de um passado esquecido. Assista a cultos religiosos, mesmo cristãos, e manifestações musicais de Gana, Nigéria ou Congo, você perceberá como eles mantêm diálogos com essa concepção de cultura e sociedade. As culturas tradicionais africanas na diáspora Na diáspora, as CTAs se reconfigurariam e criariam uma miríade de novas culturas, guardando os traços característicos das CTAs originárias, seus valores, suas características e suas formas de ver e interpretar a vida e o mundo. Nos dizeres de Sweet (2007), os membros dessas culturas precisaram “recriar Áfricas” como estratégias de sobrevivência, resistência e reexistência. iáspora A palavra diáspora deriva dos termos gregos dia (através, por meio de) e speirõ (semear, disseminar). Utilizaremos a expressão, entendendo-a nos termos de Butler (2020). Saiba mais A obra basilar de Mintz e Price (1992) dá conta de como essas culturas se amalgamaram nas Américas e contribuíram para o surgimento do que esses autores denominaram de culturas afro-americanas com todas as suas variações em termos de artes, religiosidade, modos de ser e de viver. Para Mintz e Price, os africanos que povoaram o Novo Mundo não compartilhavam da mesma cultura. Eles conceituam cultura como um corpo de crenças e valores socialmente adquiridos e padronizados, que servem de guias para a conduta em um grupo organizado (em uma “sociedade”). Se os colonos europeus já representavam tradições culturais nacionais específicas, os africanos seriam privados dessas tradições. Estes eram retirados de diferentes locais do continente africano, de numerosos grupos linguísticos e de múltiplas sociedades das mais diversas regiões. Assim, não se poderia afirmar que os africanos trazidos à diáspora formavam uma única cultura. Navio negreiro com escravizados na costa da África. Obra Mercado de escravos. A começar, era incomum grupos de africanos de culturas específicas poderem viajar juntos ou se instalarem no mesmo local ao chegarem às Américas. Não havia uma cultura africana no singular, mas, de uma perspectiva transatlântica, um “conglomerado etnicamente heterogêneo” de indivíduos com sua cultura específica (DOMINGUES, 2004, p. 245). Mintz e Price ainda asseguram que a população escravizada não reproduziu no Novo Mundo o mesmo padrão cultural da África. Exemplo O sistema religioso não sobreviveu inalterado e intacto no novo contexto. Assim, “não mais parece suficiente afirmar que o culto dos gêmeos no Haiti, a adoração de Xangô em Trinidad ou na Bahia, ou o uso de oráculos no Suriname são simples exemplos de uma transposição da África, ou mesmo de continuidades culturais étnicas específicas” (MINTZ; PRICE, 1992, p. 63). Por fim, as continuidades formais diretas da África teriam constituído mais uma exceção do que a regra em qualquer cultura afro-americana. A tarefa do historiador, portanto, seria entender como o material cultural, que foi preservado, serviu para os escravizados construírem (e reconstruírem) uma identidade específica e conquistarem certo grau de autonomia face ao domínio senhorial (DOMINGUES, 2004, p. 246). Segundo Mintz e Price, as culturas africano-americanas plenamente formadas desenvolveram-se nos primeiros anos de povoamento de muitas colônias do Novo Mundo. Tal processo, fundado no dinamismo e na criatividade dos africanos escravizados, resultou no surgimento de uma “nova cultura” (MINTZ; PRICE, 1992, p. 76). A diáspora se posicionou não como um processo contínuo em que todos os povos da mesma maneira foram direcionados. Esteve em meio a disputas políticas, como revela a história da líder angolana Nzinga, que vinha de uma histórica relação com os entrepostos portugueses, e passa a uma luta pela vitória sobre eles. Ana de Sousa (1582-1663) foi a rainha do Reino do Dongo e do Reino da Matamba. A cultura da diáspora acaba por gerar um híbrido entre o que aparece de forma inteiramente negada – culturas dos grupos ancestrais –, mas que foi mantido e repetido de pessoa a pessoa, de tradição em tradição dos grupos que se estabeleceram e pela memória e reafirmação manteve e demonstra o peso histórico dessa maneira de pensar o mundo, a vida e o ser. Se fosse em outra cultura, como os gregos, debates como esse chamariam atenção. Note seu ânimo neste momento: se você leu como uma curiosidade distante, então releia, você ainda não sentiu o que significa. Culturas africanas Assista ao vídeo a seguir em que o professor Rodrigo Rainha recupera culturas tradicionais africanas. Falta pouco para atingir seus objetivos. Vamos praticar alguns conceitos? Questão 1 As culturas tradicionais africanas são um desafio importante à compreensão, uma vez que A não sobraram vestígios. B muito pouco foi produzido. C eram sociedades orais e desorganizadas. D os europeus queimaram e destruíram tudo. Parabéns! A alternativa E está correta. A questão das escolhas na construção das ideias de pensamento fez com que as culturas tradicionais africanas fossem colocadas como primitivas em relação ao ideal civilizado europeu. Questão 2 Ao lidar com cultura, devemos ter o cuidado de não perceber um grande todo, ou uma cultura africana. A visão que é importante construir para recuperar traços é Parabéns! A alternativa E está correta. A busca de ressignificar características invisibilizadas requer tempo, comparações e novos olhares a serem desenvolvidos. E a tradição colonial optou por invisibilizar o passado dessas culturas. A africanizar recuperando passado. B vingar as violências sofridas. C apagar os passados escravistas e coloniais. D recontar a história a partir de linguagens exclusivamente africanas. E reconhecer e buscar linhas históricas, linguísticas e antropológicas. 2 - Recuperando histórias e tradições Ao �nal desse módulo você será capaz de identi�car o conceito de ancestralidade e suas categorias para sua historicização. A noção e a função do conceito de ancestralidade nas CTAs Nas CTAs, o mundo dos antepassados é entendido como contínuo e análogo ao dos vivos, e as interações entre os dois mundos são, por senso comum, base regular da existência. Nessa realidade, os ancestrais podem ser chamados de guardiões extramundanos da ordem moral; toda a sua preocupação é cuidar dos assuntos dos membros vivos de suas famílias, recompensando a conduta correta e punindo o seu oposto, com justiça inquestionável, ao mesmo tempo que, em todos os momentos, trabalham para o bem-estar deles. A ancestralidade revela-se como base da organização social nas CTAs. Como foi possível, então, para as diversas culturas africanas exiladas na diáspora manter os traços de ancestralidade tão fundamentais nas suas visões de mundo e de existência? Resposta Para Sodré (2017), as manifestações culturais de CTAs, particularmente da área conhecida como terra yorubá, teriam sido preservadas por meio de recriações religiosas que, no Brasil, em particular, transmutaram-se naquilo que hoje conhecemos como religiões de matrizes africanas. Esses complexosculturais nagôs eram portadores de princípios filosóficos existenciais que poderiam ser resumidos como culturas de Arkhé. Vejamos, a seguir, as palavras de Sodré a esse respeito: agô Nagô tornou-se um nome genérico para a diversidade do complexo cultural, na verdade equivalente à palavra iorubá. A insistência na denominação “nagô” – mas também “jeje-nagô” – conota, para nós, a pouca familiaridade brasileira com a diversidade étnica dos escravizados, mas, ao mesmo tempo, a preponderância do comércio intenso entre a Bahia e a costa da África Ocidental, portanto, a manutenção do contato permanente entre os nagôs da diáspora escrava e as suas regiões de origem (SODRÉ, 2017, p. 103). Os deuses gregos e os orixás. “Se estabelecermos uma analogia entre o grego e o nagô, as próprias divindades (orixás) são Arkhai, isto é, princípios a serem cultuados como theos ou como epítetos divinos. Esse princípio é propriamente filosófico (pois não se trata apenas de crença religiosa, mas principalmente de pensamento cosmológico e de ética, cuja terminologia é variável) com roupagem religiosa, ou seja, pertencente a uma filosofia trágica, que afirma o divino como uma faceta da vida, mas sem teologia.” (SODRÉ, 2017, p. 105) Comunidade terreiro. “Nessa composição complexa, uma metade é claramente humana, a outra pertence à ordem do ‘suprarracional’ ou do ‘divino’. A esse pensamento se deveram a recriação e a preservação de uma forma social caracterizada por organizações litúrgicas (egbé) ou comunidades terreiros, que se firmaram como polos de irradiação de um complexo sistema simbólico, continuador de uma tradição de culto a divindades ou princípios cosmológicos (orixás) e ancestrais ilustres (egum).” (SODRÉ, 2017, p. 105) Os orixás nagôs. “Assim como o Eros platônico não é mera entidade religiosa, mas o princípio motor de uma dinâmica que busca compensar por plenitude (poros) uma carência ou uma penúria (penia), os orixás nagôs são zelados como princípios cosmológicos contemplados no horizonte de restituição de uma soberania existencial.” (SODRÉ, 2017, p. 105) É por esse motivo que os antepassados são tão venerados. Nota-se que, nessa mostra, a orientação da vida após a morte na escatologia africana é completamente imanente a este mundo (WIREDU, 1992). Não surpreendentemente, muitos costumes e instituições africanas têm alguma ligação com a crença nos antepassados, em particular, e com o mundo dos espíritos, em geral. O que, no entanto, é a justi�cativa para chamar a atitude em relação aos ancestrais e aos outros "espíritos" de religiosa? É evidente que isso se baseia em certas formas de compartimentar ontologicamente a cosmovisão apenas delineada. As ordens de existência acima da esfera humana são categorizadas como sobrenaturais, espirituais e, em alguns casos, transcendentes, enquanto o resto é designado como natural, material e temporal. Se a isso se acrescenta a caracterização das atividades dedicadas ao estabelecimento de relações úteis com os poderes extra- humanos e forças de culto, então a cena está montada para atribuir aos povos africanos não apenas um sentido religioso intenso, mas também uma particular religião institucional penetrante, com impressões inequívocas em todos os aspectos principais da vida (ver MBITI, 1970, introdução e passim). As CTAs e o conhecimento histórico Amadou Hampâté Bâ, grande estudioso da cultura tradicional do Mali, nos adverte sobre a importância de validarmos as epistemologias e a produção da história em sociedades de oralidade. Segundo ele, conhecedor das grandes tradições de oralitura das culturas mandê, deve-se relativizar a pretensa superioridade da história europeia que se considera a priori científica, portanto, verdadeira, frente às demais experiências de relatos e transmissões não europeias. andê Grupo étnico da África Ocidental. Os falantes das línguas mandês são encontrados na Gâmbia, Guiné, Guiné-Bissau, Senegal, Mali, Serra Leoa, Libéria, Burquina Faso, Costa do Marfim e parte do Norte de Gana. Nada prova a priori que a escrita resulta em um relato da realidade mais fidedigno do que o testemunho oral transmitido de geração a geração. As crônicas das guerras modernas servem para mostrar que, como se diz (na África), cada partido ou nação ‘enxerga o meio‑dia da porta de sua casa’– através do prisma das paixões, da mentalidade particular, dos interesses ou, ainda, da avidez em justificar um ponto de vista. Além disso, os próprios documentos escritos nem sempre se mantiveram livres de falsificações ou alterações, intencionais ou não, ao passarem sucessivamente pelas mãos dos copistas – fenômeno que originou, entre outras, as controvérsias sobre as ‘Sagradas Escrituras’. (HAMPÂTÉ Bâ, 2012, p. 169) Com Hampâté Bâ, aprendemos que o desafio que se propõe à historiografia ocidental na compreensão da história feita pelos tradicionalistas em culturas de oralidade é o de se alargar a compreensão da própria ideia de humanidade, só possível com um diálogo interepistêmico e intercultural nos dizeres dos pensadores decoloniais. Re�exão A princípio, a grande desconfiança ocidental nasce de uma dúvida, a de que, para alguns estudiosos, podemos resumir que o olhar para a oralidade é hierarquicamente inferior ao registro escrito. Não é essa a maneira correta de se colocar o problema. O testemunho, seja escrito seja oral, no fim não é mais que testemunho humano, o texto e a oralidade são registros diversos e devem ter modelos de análise singular. A visão hierarquizada da escrita – que é sempre limitada – em relação à oralidade é o que se encontra por detrás do testemunho, portanto, é o próprio valor do homem que faz o testemunho, o valor da cadeia de transmissão da qual ele faz parte, a fidedignidade das memórias individual e coletiva e o valor atribuído à verdade em determinada sociedade. Um grande estudioso das sociedades de história oral, Jan Vansina, adverte-nos escrevendo sobre história oral, tal como a praticada pelas CTAs, para a importância de compreendermos as atitudes de uma cultura oral em relação ao discurso, totalmente diversas da experiência da civilização ocidental, na qual a escrita teria registrado todas as informações ditas importantes. Vansina nos assegura que a oralidade é uma atitude diante da realidade, e não uma ausência de habilidade. A tradição oral na cultura africana é passada de uma geração para outra, geralmente pelos mais velhos e transmitida em discursos, histórias e canções.. Prova disso pode ser facilmente constatada percorrendo-se o continente africano e verificando-se que a escrita está presente em toda parte, mas a sua existência não foi suficiente para varrer das sociedades e CTAs (e afrodiaspóricas, como em nosso caso) a importância e a proeminência da palavra falada. Uma sociedade oral reconhece a fala não apenas como um meio de comunicação diária, mas também como um meio de preservação da sabedoria dos ancestrais, venerada no que poderíamos chamar elocuções‑chave, isto é, a tradição oral. A tradição pode ser definida, de fato, como um testemunho transmitido verbalmente de uma geração para outra. Quase em toda parte, a palavra tem um poder misterioso, pois palavras criam coisas. Isso, pelo menos, é o que prevalece na maioria das civilizações africanas. Os dogon sem dúvida expressaram esse nominalismo da forma mais evidente; nos rituais constatamos em toda parte que o nome é a coisa, e que ‘dizer’ é ‘fazer’. (VANSINA, 2012, p. 149.) A educação e os valores civilizatórios das CTAs Os valores civilizatórios afro-brasileiros aplicados à educação não são propriamente tema recente de reflexões. Re�exão A grande educadora brasileira, Azoílda Trindade, nos diz que “tais valores estão arraigados em nossa sociedade uma vez que, ao falarmos de valores civilizatórios afro-brasileiros, temos a intenção de destacar a África, na sua diversidade, e que os africanos e africanas trazidos ou vindos para o Brasil e seus e suas descendentes brasileiras implantaram, marcaram,instituíram valores civilizatórios neste país de dimensões continentais que é o Brasil” (2005, p. 30). Azoílda Trindade prossegue afirmando: “Valores inscritos na nossa memória, no nosso modo de ser, na nossa música, na nossa literatura, na nossa ciência, arquitetura, gastronomia, religião, na nossa pele, no nosso coração. Queremos destacar que, na perspectiva civilizatória, somos, de certa forma ou de certas formas, afrodescendentes. E, em especial, somos o segundo país do mundo em população negra” (2005, p. 30). Com base nisso, observe a obra a seguir: Obra de Jean-Baptiste Debret com representações de diferentes nações negras a partir da visão europeia. A África e seus descendentes imprimiram e imprimem no Brasil valores civilizatórios, ou seja, princípios e normas que corporificam um conjunto de aspectos e características existenciais, espirituais, intelectuais e materiais, objetivas e subjetivas, que se constituíram e se constituem em um processo histórico, social e cultural. Apesar do racismo, das injustiças e desigualdades sociais, essa população afrodescendente sempre afirmou a vida e, consequentemente, constitui o(s) modo(s) de sermos brasileiros e brasileiras. Azoílda Trindade (2005, p. 32-35) lista os valores das CTAs, por ela chamados de valores civilizatórios nos seguintes termos: Energia vital Tudo que é vivo e que existe tem axé, tem energia vital: planta, água, pedra, gente, bicho, ar, tempo, tudo é sagrado e está em interação. Oralidade Muitas vezes preferimos ouvir uma história a lê-la, preferimos falar a escrever... Nossa expressão oral, nossas falas são carregadas de sentido, de marcas de nossa existência. Circularidade A roda tem um significado muito grande, é um valor civilizatório afro-brasileiro, pois aponta para o movimento, a circularidade, a renovação, o processo, a coletividade: roda de samba, de capoeira, as histórias ao redor da fogueira. Corporeidade O corpo é muito importante, na medida em que com ele vivemos, existimos, somos no mundo. Um povo que foi arrancado da África e trazido para o Brasil só com seu corpo aprendeu a valorizá-lo como um patrimônio muito importante. Musicalidade A música é um dos aspectos afro-brasileiros mais emblemáticos. Um povo que não vive sem dançar, sem cantar, sem sorrir e que constitui a brasilidade com a marca do gosto pelo som, pelo batuque, pela música, pela dança. Ludicidade A ludicidade, a alegria, o gosto pelo riso, pela diversão, a celebração da vida. Se não fôssemos um povo que afirma cotidianamente a vida, um povo que quer e deseja viver, estaríamos mortos, mortos em vida, sem cultura, sem manifestações culturais genuínas, sem axé. A obra de Azoílda nos chama a atenção para a importância de lembrarmos aos alunos das nossas escolas os valores civilizatórios africanos. Essa preocupação foi, durante décadas, uma demanda do movimento negro no Brasil, até a promulgação da Lei nº 10.639/03 que tornou obrigatório o ensino de história africana e afro-brasileira nos estabelecimentos de ensinos públicos e privados no nosso país. Re�exão A África e os saberes que permeiam as CTAs são os grandes ausentes nos currículos das escolas brasileiras. Os silenciamentos são sempre significativos, são indiciários, como aponta a psicologia e as teorias da educação. O silêncio sobre a África pode ser entendido como uma manifestação do racismo epistêmico, alimentado por um racismo estrutural, que entendemos, juntamente com Almeida, como sendo “uma decorrência da própria estrutura social, ou seja, do modo ‘normal’ com que se constituem as relações políticas, econômicas, jurídicas e até familiares, não sendo uma patologia social nem um desarranjo institucional” (ALMEIDA, 2021, p. 50). Cooperatividade A cultura negra, a cultura afro-brasileira, é cultura do plural, do coletivo, da cooperação. Não sobreviveríamos se não tivéssemos a capacidade da cooperação, do compartilhar, de se ocupar com o outro. Ensino de história da África Nossa persistente desigualdade na distribuição dos recursos econômicos, naturais e simbólicos (por meio dos currículos) é reforçada por aquilo que Petronilha Gonçalves chamou de “alienação de processos pedagógicos”. Um currículo marcado, principalmente, por ausências de conhecimentos deixados como herança dos povos africanos em suas diásporas. As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana detêm-se pouco nesse aspecto, destacando, no item “Ações educativas de combate ao racismo e a discriminações”, a “valorização da oralidade, da corporeidade e da arte, por exemplo, como a dança, marcas da cultura de raiz africana, ao lado da escrita e da leitura” (GONÇALVES, 2004). Meninas e suas famílias participando de atividades como aulas de yorubá e de dança na escola. Estudantes participando de um projeto sobre ancestralidade na escola. Desse modo, “o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana se fará por diferentes meios, em atividades curriculares ou não, em que: se explicitem, busquem compreender e interpretar, na perspectiva de quem o formule, diferentes formas de expressão e de organização de raciocínio e pensamentos de raiz da cultura africana” (BRASIL, 2004a, p. 15). O parecer da CNE considera fundamental a incorporação de saberes provenientes das contribuições dos povos e das culturas africanas no Brasil quando aponta para a urgente tarefa de garantir a oferta de um currículo que explicite a história do continente africano, nesses termos: Em história da África, tratada em perspectiva positiva, não só de denúncia da miséria e discriminações que atingem o continente, nos tópicos pertinentes se fará articuladamente com a história dos afrodescendentes no Brasil e serão abordados temas relativos: ao papel dos anciãos e dos griots como guardiões da memória histórica; à história da ancestralidade e religiosidade africana; aos núbios e aos egípcios, como civilizações que contribuíram decisivamente para o desenvolvimento da humanidade; às civilizações e organizações políticas pré-coloniais, como os reinos do Mali, do Congo e do Zimbabwe; ao tráfico e à escravidão do ponto de vista dos escravizados; ao papel dos europeus, dos asiáticos e também de africanos no tráfico; à ocupação colonial na perspectiva dos africanos; às lutas pela independência política dos países africanos; às ações em prol da união africana em nossos dias, bem como o papel da União Africana para tanto; às relações entre as culturas e as histórias dos povos do continente africano e os da diáspora; à formação compulsória da diáspora, vida e existência cultural e histórica dos africanos e seus descendentes fora da África; à diversidade da diáspora, hoje, nas Américas, Caribe, Europa, Ásia; aos acordos políticos, econômicos, educacionais e culturais entre África, Brasil e outros países da diáspora. (BRASIL, 2004a, p. 12) Além disso, o parecer pretende superar a colonialidade dos currículos, a racialização e o pensamento abissal, pois este toma como conhecimento universal aquele que, na realidade, é produzido por apenas uma parte da humanidade: a Europa. Tudo isso se tornará possível apenas se a interculturalidade crítica “sulear” as práticas pedagógicas. Enrique Dussel mostra as possibilidades de resistência dessas culturas subalternizadas de indígenas e africanos pela modernidade quando aponta: A capoeira surgiu entre os escravizados como um grito de liberdade e foi declarada patrimônio imaterial da humanidade em 2014 pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO). “Essas culturas foram, em parte, colonizadas, mas a maior parte de suas estruturas de valores foram sobretudo excluídas, desprezadas, negadas, ignoradas mais do que aniquiladas. O sistema econômico e político foi dominado no exercício do poder colonial e da acumulação gigantesca de riqueza, mas essas culturas têm sido interpretadas como desprezíveis, insignificantes,sem importância e inúteis.” (DUSSEL, 2015, p. 12) Obra Africanos escravizados recém-chegados, Rio de Janeiro, Brasil, 1819-1820. O período de escravidão no Brasil foi marcado por uma rotina de trabalho pesado e violência. Os escravizados sofriam punições públicas com frequência. “Esse desprezo, no entanto, permitiu-lhes sobreviver em silêncio, desdenhadas simultaneamente por suas próprias elites modernizadas e ocidentalizadas. Essa alteridade negada, sempre existente e latente, indica a existência de uma riqueza cultural insuspeita, que renasce lentamente como chamas de carvão enterrado no mar de cinzas centenárias do colonialismo.” (DUSSEL, 2015, p. 12) Portanto, retornamos ao texto das Diretrizes Curriculares de 2004, quando se afirma o caráter político propositivo da lei enquanto assevera apontando para uma educação antirracista e uma educação das relações étnico-raciais no trecho a seguir: Oferecer uma resposta, entre outras, na área da educação, à demanda da população afrodescendente, no sentido de políticas de ações afirmativas, isto é, de políticas de reparações, e de reconhecimento e valorização de sua história, cultura e identidade. Trata, ele, de política curricular, fundada em dimensões históricas, sociais, antropológicas oriundas da realidade brasileira, e busca combater o racismo e as discriminações que atingem particularmente os negros. Nessa perspectiva, propõe a divulgação e produção de conhecimentos, a formação de atitudes, posturas e valores que eduquem cidadãos orgulhosos de seu pertencimento étnico-racial – descendentes de africanos, povos indígenas, descendentes de europeus, de asiáticos – para interagirem na construção de uma nação democrática, em que todos, igualmente, tenham seus direitos garantidos e sua identidade valorizada. (BRASIL, 2004, p. 10) Em tudo isso, o tema de luta política subjaz às disputas curriculares, uma vez que não podemos dissociar a luta pelas reparações históricas do povo negro das políticas curriculares produzidas pelo Estado brasileiro. Portanto, estarmos atentos aos projetos de formação continuada de professores é também contribuir para que se construa uma prática pedagógica antirracista e uma educação libertadora. Sim, luta política, pois, como apontam as mesmas diretrizes: “a obrigatoriedade de inclusão de história e cultura afro-brasileira e africana nos currículos da educação básica trata-se de decisão política, com fortes repercussões pedagógicas, inclusive na formação de professores. Com esta medida, reconhece-se que, além de garantir vagas para negros nos bancos escolares, é preciso valorizar devidamente a história e cultura de seu povo, buscando reparar danos, que se repetem há cinco séculos, à sua identidade e a seus direitos. A relevância do estudo de temas decorrentes da história e cultura afro- brasileira e africana não se restringe à população negra, ao contrário, diz respeito a todos os brasileiros, uma vez que devem educar-se como cidadãos atuantes no seio de uma sociedade multicultural e pluriétnica, capazes de construir uma nação democrática” (BRASIL, 2004, p. 17). As leis e as políticas a�rmativas no Brasil O professor Rodrigo Rainha discute sobre os avanços e as necessidades desse conjunto legislativo. Falta pouco para atingir seus objetivos. Vamos praticar alguns conceitos? Questão 1 “Um turbante tornou-se o epicentro de um acalorado debate [...]. Identificado como um símbolo da população negra e da ancestralidade africana no Brasil, o adereço ganhou, nos últimos anos, destaque em editoriais de moda e passou a ser encontrado com facilidade em lojas, multiplicando seu uso por pessoas de diversas origens. A produção em massa do objeto e o uso motivado apenas por interesses estéticos, inspira, porém, críticas e ressalvas feitas pela população negra, que aponta problemas com essa prática, se feita sem reflexão, como a invisibilização de quem produziu aquela cultura” (CARTA CAPITAL, 2019). Assinale a alternativa que aponta um termo comumente utilizado para fazer referência à discussão abordada no texto. A Produção cultural. B Apropriação cultural. C Identificação cultural. Parabéns! A alternativa B está correta. Quando determinados elementos são retirados de seu contexto e tornam-se ícones descolados, sem constituir valor aos grupos que o produziram, isso é apropriação cultural. Questão 2 A diáspora é um conceito que acaba por gerar compreensão e novos debates. Ao lidar com o termo, estamos sinalizando que Parabéns! A alternativa E está correta. A percepção da escravidão como um evento duro e que gerou disputas e resistência na organização e reorganização de seus símbolos. D Anulação cultural. E Simbolização cultural. A grupos étnicos migraram de sua terra. B grupos sociais entram em crise política. C existiu escravidão na África. D as práticas africanas eram próximas à judaica. E de maneira compulsória muitos africanos deixaram seu lar. Considerações �nais A necessidade de rediscutir os paradigmas é fundamental. A crença de que a história e as tradições culturais de diversas regiões africanas eram inexistentes, reproduzida até mesmo pelos descendentes mais claramente identificáveis, é fruto de um projeto histórico de colonialidade. A única forma de vencer é o efetivo mergulho nos debates de reconhecimento, investigação e ressignificação desse passado. Discute-se uma reafricanização como se retomar o passado fosse possível e não é esse o princípio, é a percepção vívida do presente, da história que temos e das construções históricas que nos constituem como sociedade. É preciso lidar com diáspora, reparação, leis que impõem a demanda de educação pertinente aos debates e as demandas que efetivamente se materializam em nossa sociedade. Podcast Para encerrar, ouça os principais aspectos sobre o debate de ancestralidade e tradições africanas. Referências ALMEIDA, S. L. de. Racismo Estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro/Jandaíra, 2021. ASÚA, R. R. de. Altuna. São Paulo: Paulinas, 2006. BRASIL. Lei Federal nº 10.639/2003. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e cultura afro-brasileira” e dá outras providências. Brasília – DF, 2003. Consultado na Internet em: 10 de outubro de 2022. BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília, MEC. 2004. BUTLER, K. D. Definições de diáspora. In: BUTLER, K. D.; DOMINGUES, P. Diásporas imaginadas. São Paulo: Perspectiva, 2020. DUSSEL, E. Europa, modernidade e eurocentrismo. In: LANDER, E. (Org.). A Colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. BuenosAires: Clacso, 2005, pp. 55-70. GONÇALVES E SILVA, P. B. Relatório. Brasil. Ministério de Educação e Cultura. Conselho Nacional de Educação. Diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações étnico-raciais para o ensino de história e cultura afro–brasileira e africana. Conselho Pleno, v. 3, p. 2002-96, 2004. HAMPÂTÉ BÂ, A. A tradição viva.In: KIZERBO, J. Metodologia e Pré-Historia da África. História Geral da África. v. 1. São Paulo: Cortez, 2012. MBITI, J. S. Concepts of God in Africa. London: SPCK, 1970. MINTZ, W. S.; PRICE, R. O nascimento da cultura afro-americana, uma perspectiva antropológica. Rio de Janeiro: Pallas, 1992. SODRÉ, M. Pensar nagô. Petrópolis: Vozes, 2017. TRINDADE, A. de L. da. Valores civilizatórios africanos na educação infantil. In: Brasil. Ministério da Educação. Valores afro-brasileiros na educação. Um salto para o futuro. Brasília, DF: MEC, 2005. VANSINA, J. A tradição oral e suas metodologias. In: KIZERBO, J. Metodologia e Pré-Historia da África. História Geral da África. v. 1. São Paulo: Cortez, 2012. WIREDU, K. Death and the Afterlife in African Culture. In: WIREDU, K.; GYEKYE, K. (Eds.). Personand Community: Ghanaian Philosophical Studies. Washington, D.C.: Council for Research in Values and Philosophy, 1992. Explore + Vamos mergulhar na decolonialidade? Indicamos as seguintes leituras: FANON, F. Pele Negra, máscaras brancas. Tradução de Renato da Silveira. Salvador: Edufba, 2008. LANDER, E (Org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: 2005. QUIJANO, A. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: SWEET, J. H. Recriar África: cultura, parentesco e religião no mundo afro-português. Lisboa: Edições 70, 2007. WALSH, C.; OLIVEIRA, L. F.; CANDAU, V. M. Colonialidade e pedagogia decolonial: para pensar uma educação outra. Arquivos Analíticos de Políticas Educativas, 26(83), 2018. Agora, indicamos dois filmes: Pantera Negra – 2018. Direção: Ryan Coogler. A Mulher Rei – 2022. Direção: Gina Prince-Bythewood. Quilombos e a cultura africana no Brasil Prof.ª Renata Figueiredo Moraes Descrição A presença dos africanos no Brasil e a contextualização das resistências empreendidas por homens e mulheres contra a escravidão. Propósito A história do Brasil precisa ser vista a partir da escravização de homens e mulheres originários de diferentes partes do continente africano. Só assim é possível entender a construção do Brasil na colônia e na riqueza do Império, principalmente na agricultura e no cultivo do café, e o empenho de transformar esse processo no pós-abolição, a partir dos descendentes dos povos que lutaram contra a escravização, e pela preservação de suas raízes e cultura. Objetivos Módulo 1 A escravização de africanos no Brasil Identificar o processo de escravização dos africanos no Brasil e as formas de atuação. Módulo 2 Os africanos e a resistência à escravização Identificar as diferentes formas de resistência à escravidão empreendida pelos africanos no Brasil. Módulo 3 Os africanos livres no Império Reconhecer como homens e mulheres africanos tiveram uma vida em liberdade durante a escravidão no Brasil. Módulo 4 O pós-abolição e a resistência da cultura africana Listar nos estudos do pós-abolição sobre a presença de africanos e afrodescendentes no Brasil. Introdução Os povos africanos foram escravizados pelos europeus durante o processo de colonização das Américas. Homens e mulheres, de diferentes idades, tiveram suas vidas arrancadas do seu local de origem e na travessia do Atlântico viveram um tempo de morte. Os que sobreviveram à violência do trajeto tiveram que recriar formas de vida e de convivência, ainda sob o jugo da escravidão. Este conteúdo propõe uma abordagem sobre os diferentes povos que sofreram essa violência e que sobreviveram à escravidão no Brasil. Os seus vestígios e as formas de resistência serão abordados neste texto, pensando em suas trajetórias de vida desde a escravidão até o contexto de liberdade e o pós-abolição. O conteúdo foi divido em quatro módulos: o primeiro trata do início da escravização dos africanos no Brasil, ressaltando que a chegada dos portugueses no continente africano desestruturou sociedades e afetou a forma como a escravidão era ali praticada. Tratamos das identidades destruídas e reconstruídas na escravização no Brasil e a atuação econômica desses africanos escravizados. O segundo módulo indica as formas de resistência à escravização que homens e mulheres africanos realizaram no Brasil. Entre quilombos, revoltas e fugas, eram todas ações legítimas e temidas por autoridades e escravistas. O terceiro módulo aborda a categoria de “africanos livres” e outras histórias de africanos que após a liberdade reconstruíram sua vida ainda sob um ambiente de escravidão. O quarto e último módulo aborda o pós-abolição como um campo de pesquisa para pensar os africanos e seus descendentes após o fim da escravidão, oferecendo novas chaves de leitura sobre a história do homem e da mulher negro e negra no Brasil. 1 - A escravização de africanos no Brasil Ao �nal deste módulo, você será capaz de identi�car o processo de escravização dos africanos no Brasil e as formas de atuação. Escravidão moderna Escravismo A escravidão não foi inventada por um único povo, ela é produto do homem e está presente na sociedade desde a Antiguidade. A existência milenar da escravidão não a fez menos cruel, à medida da passagem dos séculos, pelo contrário. Africanos escravizados sendo retirados de seu continente. O marco da escravidão moderna é a chegada dos europeus no continente africano, desestruturando sociedades e formas de convivência, entre elas a escravidão ali existente. A escravização dos povos africanos foi acentuada em um cenário de desenvolvimento das redes comerciais e de conquistas, com a participação de grupos africanos que já tinham estabelecidos rotas comerciais e de exploração em outras regiões. A emergência do mercantilismo e do colonialismo europeu causaram uma mudança estrutural em relação ao passado africano e ao conceito de escravidão existente até então, explorando ao máximo o trabalho do ser escravo em proporções até então desconhecidas, atitude essencial para garantir o sistema econômico e produzir enriquecimento de mercadores e todos os envolvidos nesse lucrativo comércio de pessoas. Tais considerações são essenciais para entendermos o fenômeno da escravidão africana no Brasil nos primeiros anos da colonização. Vejamos: Objeti�cação do humano A primeira violência da escravização africana promovida pelos europeus foi a retirada de homens e mulheres, entre eles crianças, do seu local de origem. Homem escravizado sendo inspecionado para venda. Essa primeira ação transforma o ser humano em “objeto” e o insere em uma lógica mercantil, a fim de satisfazer uma necessidade econômica impulsionada pelo avanço da colonização. Perda de identidade Outro ponto dessa escravização moderna foi o apagamento das identidades desses homens e mulheres trazidos às Américas. A respeito dos que chegaram ao Brasil, a identificação foi dada a partir dos esquemas econômicos escravistas. Africanos escravizados sendo colocados à força em navio com destino às Américas e Europa. Ou seja, dependendo do porto de origem de determinada embarcação, o grupo nele presente poderia ganhar uma identificação totalmente distante da sua original. Ainda sobre o apagamento das identidades, na maioria das vezes, nomes e terminologias dadas aos africanos ocorreram a partir do tráfico atlântico ou na sua chegada ao ponto da escravização. Muitos historiadores se debruçaram sobre os registros paroquiais, a fim de entender as primeiras gerações de africanos chegados ao Brasil e que foram batizados, sepultados ou construíram matrimônio, deixando nesses registros algum dado que pudesse servir para a construção de uma trajetória de vida ou de um grupo específico. Mas a tarefa é árdua visto que nem todos foram registrados por seus senhores e nem todos os registros paroquiais foram preservados. Assim, temos uma grande lacuna sobre os primeiros anos da escravidão africana no período colonial, especialmente daqueles que foram destinados para as plantações de cana-de-açúcar da região Norte, como Pernambuco e Bahia. A presença dos africanos e a economia colonial A economia escravista Os africanos que chegaram ao Rio de janeiro foram destinados aos engenhos de açúcar, especialmente os localizados na região chamada de “recôncavo da Guanabara”, e atuaram junto aos indígenas escravizados. Durante algumas décadas do século XVII, foi próspera a área produtora de açúcar, produzindo considerável quantidade de açúcar destinada a Portugal (GOMES, 2012). Os registros paroquiais indicam para essa região os africanos batizados e sua origem, a partir de uma classificação dada a posteriori, ou seja, surgida com a escravização. Curiosidade De acordo com algumas pesquisas, a maioria dos africanos adultos batizados são de origem “mina” e um segundo grupo tido como “guiné” (GOMES, 2012). Os dados de óbitos e nascimentos de crianças também são ferramentaspara entender as origens dos africanos escravizados nas lavouras de açúcar no período colonial. Esse predomínio dos minas foi também objeto de estudo de inúmeros pesquisadores, a fim de entender suas identidades ou traçar trajetórias que os fizessem pertencentes a um grupo, com características específicas relacionadas à: Cultura Religião Modos de trabalho As menções a “pretos minas” e “nação mina” indicam grupos de africanos, escravos ou libertos, de procedência da costa ocidental africana conhecida como Costa da Mina, por causa do Castelo de São Jorge da Mina. No entanto, tal denominação não correspondia exatamente à origem de muitos homens e mulheres que partiram dessa região para as Américas. Ou seja, o termo “mina” ou a ideia de “nação mina” pode ser considerada uma construção criada a partir do comércio negreiro e na experiência da escravização vivida pelos africanos (FARIAS, 2013). Se em um primeiro momento esses homens e mulheres tinham poucas características comuns (étnicas, linguística e de origem), a experiência da escravidão nas Américas permitiu que eles se reagrupassem e redefinissem regras e limites de pertencimento a determinados grupos. Pessoas em condição escrava numa fazenda do Rio de Janeiro. O local de convivência, principalmente as ruas e as senzalas, permitiram a construção de outra vida nas Américas e de novos padrões de comportamento e convívio. Esse seria o momento de construção de grupos mais amplos e com uma autoconsciência coletiva (FARIAS, 2013). O escravismo e o Rio de Janeiro Voltando para o caso do Rio de Janeiro, apesar dos registros paroquiais de algumas regiões, os dados que os historiadores têm sobre a origem dos africanos ainda é inconclusivo, mas é possível levantar questões: Uma hipótese que não pode ser descartada seria a proeminência dos africanos centrais, a partir do trá�co de Luanda, e dos africanos ocidentais, vindos da Alta Guiné. A possibilidade de africanos ocidentais embarcados para o Brasil a partir da Senegâmbia e Cabo Verde e chegando – diretamente ou por intermediação – ao Rio de Janeiro deve ser mais investigada, em função das redes de trá�co, existentes ainda na primeira metade do século XVII. (GOMES, 2012, p. 66) Ainda de acordo com Flavio Gomes (2012): O que esses dados informam? Após analisar diversos dados demográficos, haveria no Rio de Janeiro um grande número de africanos ocidentais e de grupos mais dispersos da África Central. A partir de 1740 haveria um predomínio dos africanos centrais e em grupos mais concentrados. Duas décadas depois, permanecera na região uma quantidade considerável de crioulos, descendentes desses africanos centrais, com os ocidentais chegando na segunda metade do século XVIII. Demanda pela cana-de-açúcar A região de produção de açúcar no Rio de Janeiro demandou mão de obra africana, sendo um destino certo os negros escravizados que chegassem à essa área. Mudança pós-descoberta do ouro Após a descoberta do ouro pode ter tido uma mudança nas características da escravidão africana, principalmente com a diferença entre as gerações de escravizados e com a constante entrada de africanos de outras regiões. O comércio transatlântico de africanos para o Brasil, especialmente para área que demandavam mão de obra para as lavouras, proporcionou uma constante alimentação de culturas e identidades africanas que no contexto da escravização se transformaram e se ressignificaram. Essa afirmação e mais outros dados representam o avanço das pesquisas sobre demografia da escravidão africana no Brasil, sendo essenciais para compreendermos a complexidade da formação cultural, política e religiosa do Brasil, a partir desse grupo. As variações da economia colonial Explorações humanas e as expansões do modelo Os estudos sobre o volume de pessoas escravizadas do continente africano nas Américas ganharam uma grande contribuição nos últimos anos, principalmente após a junção de inúmeras pesquisas feitas em diferentes países, que investigaram dados sobre as embarcações e os preços dos africanos para a escravização. Com essas pesquisas, é possível saber: A trajetória de um navio negreiro, a sua origem, as paradas feitas por ele, o seu destino, no Brasil ou nas Américas. Quantos homens e mulheres embarcaram e quantos chegaram vivos ao fim da travessia. As pesquisas de David Eltis e David Richardson são apenas uma de tantas que contribuíram para a formação de um grande banco de dados. Saiba mais Tal banco de dados hoje está disponível no site Slavevoyages.com. Nele, os interessados nos dados estatísticos sobre o comércio transatlântico de pessoas conseguem informações preciosas, mas apenas de um tempo em que esse comércio gozava de uma legalidade perante as autoridades do Império do Brasil ou de outros países. Citando alguns dados e estudos (GOMES, 2012): Dados de Eltis Identificaram que no período entre 1811 e 1830, cerca de 470 mil africanos chegaram ao Rio de Janeiro. Estudos de Mary Karasch Identificaram africanos de diferentes origens: congos, angolas, cabindas, benguelas, caçanjes, moçambiques. A concentração de alguns africanos ou sua dispersão na cidade, assim como em qualquer outra região, dependia das políticas de migração e comércio intrarregional, uma vez que nem todos que chegaram em cidades portuárias e tiveram essa entrada registrada pela alfândega permaneceram nela. Infelizmente, a frieza desses números não nos permite entender os pormenores dessas travessias e das chegadas, muito menos saber como teve início o processo de escravização desses sujeitos em solo americano. Há ainda algumas lacunas sobre a história da escravidão no Brasil para as quais a historiografia dificilmente conseguirá respostas, uma vez que o interesse no registro do cotidiano da escravidão era inexistente por parte daqueles que escravizavam e das autoridades. Escravizados na colheita de café. Além da legalidade ou não da escravização dos africanos, os senhores tratavam os seus escravos como propriedade com os quais pudessem obter grandes lucros, fosse na produção de mercadorias, como o café, na região do Vale do Paraíba, fosse no comércio de africanos para as regiões necessitadas de mão de obra. Logo, possuir escravos e usar essa propriedade era algo disseminado na sociedade do Império, que adaptava os ideias liberais europeus à sua realidade escravista. A expansão da produção do café ocorreu no Vale do Paraíba nas décadas seguintes à independência e quando o tráfico de escravos africanos era ilegal no Brasil. No entanto, com essa ilegalidade, como ter mãos para a lavoura do café? A escravização de africanos também foi presente no contexto urbano, com exercício de inúmeras atividades, desde as domésticas, até as mais especializadas ou no comércio e nas ruas. A africanização do Brasil era evidente nas vésperas da segunda lei do tráfico, em 1850, e esse era um temor de muitos parlamentares que temiam que esse processo fosse irreversível. O esforço para uma nova lei que terminasse definitivamente com a entrada ilegal de africanos para a escravização fez parte desse temor, além do pensamento de que quanto mais africanos, maior o risco de revoltas e insurreições escravas. Mercado de pessoas escravizadas no Rio de Janeiro. A todo momento se esperava uma grande revolta conforme ocorrera no Haiti, porém, isso não ocorreu, mas os africanos e seus descendentes resistiram à escravidão o tempo todo e de diferentes maneiras. Sistema Econômico A economia dependente da escravidão? Antes de 1830 Nessa época houve um enorme volume de africanos desembarcados no Brasil, principalmente na região Centro-Sul, destinado às primeiras fazendas de café do Vale. Entre 1831 e 1835 No período entre 1831, data da primeira lei, e 1835, foi pequena a quantidade de entrada de africanos de forma ilegal, por causa de uma vigília das autoridades, uma vez que a lei deveria ser cumprida. Após 1835 O volume de entrada aumentou, chegando a cerca de 315 mil africanos até 1850. Grande parte desseshomens e mulheres foram para as grandes fazendas de café. Os africanos foram os responsáveis pela derrubada da mata, pelo plantio e pela colheita do café, além de terem erguido grandes construções que abrigavam senhores de café e seus familiares. Um complexo debate vem da forma e viabilidade do comércio de homens. Valendo-se dos pensamentos dos séculos XVIII e XIX, afirma-se ao menos uma superioridade material e intelectual para defender o sucesso da empreitada escravista. Outro grupo defende que o quadro de “barbárie” na África e o histórico do escravismo muçulmano explica tudo, uma vez que os europeus só se inseriram no comércio e nem precisaram capturar homens. Essas explicações preconceituosas usam meias verdades para legitimar suas maneiras de diminuir o peso da Diáspora Africana. O continente sente bastante o escravismo, mas não é isso que explica muito de sua história, que seguiu e foi cuidadosamente explorada ao longo do século XIX e palco da Guerra Fria no século XX. O escravismo, entre os séculos XVI e XVIII, fez parte de um processo de consolidação lenta e contínuo de um mundo comercial. Pintura retratando o mercantilismo na Cidade de Goa, na Índia. O mercantilismo transformava o mundo em mercadorias e tornava-se o mecanismo de fortalecimento financeiro dos governos europeus. Enriquecendo pela exploração e se estabelecendo em entrepostos comerciais, inseria-se nas relações locais, aliava-se, disputava, buscava produtos que podiam ser interessantes para sua inserção. A consolidação de sistemas econômicos e a expansão e territórios – muito menores do que o nosso imaginário – inicia um lento e contínuo processo que se tornará, ao longo dos séculos seguintes, um grande negócio. Pessoas, empresas e governos buscando esses sistemas comerciais criaram verdadeiros sistemas de vendas de direitos, de traficar, de negociar. Porto francês no momento fundamental do mercantilismo. Junto, veio uma lógica de status vinculado ao escravismo e a diminuição do outro. Esse foi um fenômeno que nos ajuda a entender o eurocentrismo e como o mecanismo marcou nossa Era Contemporânea sem, no entanto, representar uma força indelével e superior para sempre. Vamos pensar um pouco mais sobre isso! urocentrismo Reflete a ideia de que a Europa é o centro cultural e a referência a todas as outras sociedades do mundo. A escravidão foi um modelo econômico? Professor Rodrigo Rainha e Renan Bayer fazem um videocast discutindo o olhar para os estudos de escravidão como um modelo econômico. Falta pouco para atingir seus objetivos. Vamos praticar alguns conceitos? Questão 1 As práticas relativas ao escravismo no Brasil foram importantes para a economia nacional. Esses grupos foram inseridos em que setor da economia? Parabéns! A alternativa E está correta. %0A%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%3Cp%20class%3D'c- paragraph'%3EA%20din%C3%A2mica%20econ%C3%B4mica%20brasileira%20era%20complexa%2C%20variando%20de%20cidade%20para%20cidade% Questão 2 A prática econômica do escravismo é um dos grandes problemas históricos no que tange a seu papel. Se por um lado, é visto como imoral, rompedor de práticas sociais e cultura, por outro, existem grupos que defendem sua validade. Sobre o papel econômico da escravidão podemos afirmar que A Principalmente nos serviços e nas práticas domésticas. B Especificamente na lavoura de algodão e pecuária. C Nas práticas de guerra e polícia. D Nos comércios da cidade como escravos de ganho. E Setores diversos, em que se destaca a agricultura. A sustentava o sistema colonial. B era exclusivo do governo português. C era mais um modelo social de status. D era parte de uma dinâmica. Parabéns! A alternativa A está correta. %0A%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%3Cp%20class%3D'c- paragraph'%3EA%20economia%20colonial%20e%20depois%20imperial%20estava%20vinculada%20ao%20ideal%20de%20status%2C%20dessa%20for 2 - Os africanos e a resistência à escravização Ao �nal deste módulo, você será capaz de identi�car as diferentes formas de resistência à escravidão empreendida pelos africanos no Brasil. Africanos? Resistência! Quilombos O processo de escravização dos africanos ocorreu simultaneamente à resistência que homens e mulheres empreenderam contra essa dominação. De diferentes maneiras, foi possível resistir à escravidão e reivindicar a liberdade. Neste módulo, trataremos dessa experiência da resistência, a partir de maneiras clássicas e já muito exploradas pela historiografia, como fugas, aquilombamento e negociação. O cotidiano da escravidão foi de resistência e faltam registros de todas elas. E só cresce efetivamente durante o período do café. Parte sul da Capitania de Pernambuco, com representação do quilombo de Palmares. O quilombo de Palmares foi o maior de todos, pelo tempo de existência e pela quantidade de pessoas abrigadas. Sua organização ocorreu na região de Pernambuco e alguns escravizados aproveitaram a presença dos holandeses em Pernambuco para a fuga e organização em região afastada. As autoridades pernambucanas e portuguesas fizeram inúmeras expedições, a fim de atacar a ocupação. Porém, mesmo com algumas vitórias, os membros de Palmares se reerguiam e resistiam, durando até meados do século XVIII. As histórias sobre Palmares foram escritas por aqueles destinados a acabar com o quilombo e, por isso, descreveram as batalhas e os enfrentamentos contra o “inimigo” da Coroa portuguesa, principal desafio a ser enfrentando após a expulsão dos holandeses da região. Entre os escritos que relatam Palmares, há o texto do Padre Antônio da Silva, uma testemunha dessas batalhas e que registrou o final de Palmares. Vale a pena ler o início do seu texto, a fim de identificarmos a grandiosidade desse quilombo: Restituídas as capitanias de Pernambuco ao domínio de Sua Alteza, livres já dos inimigos que de fora as vieram conquistar, sendo poderosas as nossas armas para sacudir o jugo que tantos anos nos oprimiu, nunca foram eficazes para destruir o contrário que das portas adentro nos infestou, não sendo menores os danos deste do que tinham sido as hostilidades daqueles. Não foi o descuido a causa de se não conseguir este negócio, porque todos os governadores que nesta praça assistiram com cuidado se empregaram nesta empresa, a impossibilidade das conduções fizeram invencível a quem o valor não fez poderoso. Os melhores cabos desta praça, os mais experimentados soldados desta guerra se ocuparam nestas levas. E não sendo pouco o trabalho que padeceram, foi muito pouco o fruto que alcançaram. (LARA, 2021, p. 15-16) No texto, o padre ressalta o desafio enfrentado por muitos governantes e como eram resistentes o inimigo, no caso, os aquilombados que, não necessariamente eram todos africanos. Algumas gerações se formaram em Palmares e não conheceram a escravidão. Ainda sobre o texto do padre, destacamos que o autor faz questão de informar que após “os inimigos de fora”, fazendo menção aos holandeses, compara os de Palmares com os holandeses e como não foram suficientes todos os tipos de profissionais, armas e estratégias para derrotar esse outro inimigo “das portas adentro”, que parecia mais forte e poderoso que as armas usadas por seus opositores. O relato do Padre continua dando uma noção da geografia do lugar e da natureza até chegar a descrever como se reuniram em Palmares. Confira! A este inculta e natural couto se recolheram alguns negros, a quem ou os seus delitos ou a intratabilidade de seus senhores fez parecer menor castigo do que o que receavam, podendo neles tanto a imaginação que se davam por seguros, onde podiam estar mais arriscados. Facilitou-lhes a comédia a estância e com presas que começaram a fazer e com persuasões da liberdade que começaram a espalhar, se foram multiplicando. Há opinião que do tempo que houve negros cativos nestas capitanias começaram a ter habitadores os Palmares. No tempo que Holanda ocupou estas praças engrossou aquele número, porque a mesma perturbação dos senhoresera a soltura dos escravos. O tempo os fez crescer na quantidade e a vizinhança dos moradores os fez destros nas armas. Usam hoje de todas, umas que fazem, outras que roubam e muitas que compram são as de fogo. Os nossos assaltos os têm feito prevenidos e o seu exercício os tem feito experimentados [...] São grandemente trabalhadores, plantam todos os legumes da terra, de cujos frutos formam providamente celeiros para os tempos da guerra e do inverno. O seu principal sustento é o milho grosso, dele fazem várias iguarias. As caças os ajudam muito, porque são aqueles matos abundantes delas. (LARA, 2021, p. 18-19) O relato confirma a antiguidade do quilombo, desde quando existiram escravos havia um quilombo. O autor mostra o aprendizado dos aquilombados adquirido com os anos, principalmente no manejo das armas, no apoio das vizinhanças e na agricultura. A região de Palmares era forte e rica em alimentos e talvez por isso tenha durado tanto tempo. O longo relato do padre caracteriza o cotidiano dos moradores de Palmares, entre eles o que ele identifica como Rei, Ganga Zumba. Haveria também uma cidade principal, capela com batismos e demais cidades. O relato informa as inúmeras tentativas de acabar com Palmares e quem estava à frente da expedição. Em uma dessas batalhas, o autor informa que um “negro de singular valor” de nome Zambi havia sido ferido e aleijado de uma perna (LARA, 2021, p. 27). Zumbi dos Palmares. As batalhas se seguiram com feridos em ambos os lados, mas com resistência singular dos habitantes de Palmares. A batalha vencida pelos portugueses é relatada pelo Padre como um alívio. Veja! Esta é a relação da ruína em que vieram cair os Palmares tão temidos nestas capitanias e tão poderosos na sua opinião. Chegou-lhe o tempo da sua declinação para ter Sua Alteza a glória do seu vencimento, que como se julgava impossível pelas di�culdades, deve recrescer na estimação pela fortuna. Já se correm livres aquelas montanhas que até agora eram impenetráveis a toda a diligência. [...] agora é que se concluiu a restauração total destas capitanias de Pernambuco, porque agora se acham dominantes do mesmo inimigo que das portas adentro as inquietava há tantos anos. (LARA, 2021, p. 47-48) O padre admite o temor existente em relação a Palmares e o desafio enfrentado por algumas tropas para adentrar e tomar a região. A presença dos holandeses e dos homens de Palmares parecem equivalentes, e com a vitória dos portugueses a capitania de Pernambuco estaria totalmente restaurada. Nesse relato, o inimigo “das portas adentro”, os escravizados e “negros rebelados”, parecem ter desaparecido da história de Pernambuco. Busto de Zumbi dos Palmares em Brasília. Na historiografia, Palmares parece ser o único polo de resistência à escravidão em Pernambuco, não havendo grande atenção às outras manifestações de africanos e seus descendentes contra a escravidão. Porém, não ter existido nada semelhante a Palmares não indica que outras revoltas não existiram. De acordo com Rafael Marquese, a atividade quilombola se ampliou no século XVIII diante do aumento do tráfico negreiro transatlântico. Além dela, outra modalidade de resistência surgiu e amedrontou autoridades: as revoltas africanas, principalmente as coletivas, entre elas, as ocorridas na Bahia já no Brasil Império. Resistir além de Palmares Formas de luta De acordo com João José Reis, nem todas as revoltas eram destinadas a destruir o regime escravocrata. Algumas eram para reduzir excessos da tirania de senhores ou reivindicar benefícios específicos (REIS, 2018). O autor estudou uma peculiar revolta de africanos, a greve negra ocorrida em 1857, em Salvador (REIS, 2019). Durante essa paralisação, a maioria dos carregadores de mercadorias da cidade eram africanos escravizados e paralisaram suas atividades por dias, a fim de reclamar do valor cobrado para a licença necessária para exercer a atividade. O alto valor dessa taxa prejudicava esses escravizados e foi um dos motivos para essa paralisação de grande porte ocorrida em uma região portuária. Antes disso, em 1835, também em Salvador, aconteceu uma grande revolta de escravos africanos conhecida como a Revolta dos Malês. O levante envolveu cerca de 600 escravos e libertos e foram liderados por mestres muçulmanos. Na grande batalha nas ruas de Salvador, cerca de 70 rebelados morreram e poucas baixas do lado repressor foram sentidas. Revolta dos Malês. As fugas também foram modalidades importantes de resistência à escravidão e muitas informações sobre quem fugia e suas características podem ser vistas nos anúncios de jornais, que indicavam o nome do escravo, suas vestimentas e características físicas. Esses anúncios alimentava um ofício peculiar, o de capturar escravos fugidos por uma recompensa. Por meio desses anúncios, foi possível perceber que os africanos (homens e mulheres) eram os que mais fugiam no Rio de Janeiro, nas primeiras décadas do século XIX, e entender a origem desses africanos: minas, monjolos, benguelas, entre outros. A resistência à escravidão foi vivida por todos escravizados, principalmente africanos que haviam sofrido a violência ainda na travessia. É impossível conhecermos todo o cotidiano da escravidão, uma vez que faltam registros detalhados. Ainda assim, podemos afirmar que o medo e a violência faziam parte dele, medo de revoltas e fugas e violência para reprimir qualquer tentativa de ação por parte dos escravizados. Enquanto isso, autoridades brasileiras criavam medidas legislativas para evitar o aumento de africanos no Brasil. Entre essas medidas estão as leis de fim do tráfico, que criaram outras categorias de africanos. Anúncio de jornal de captura de 1854. Anúncio de jornal de captura de 1854. Por que eu nunca ouvi falar disso? Resistir é recuperar A discussão sobre os olhares que as escolas construíram para a escravidão é muito importante. Na ordem do discurso, devemos debater sobre pessoas de culturas diferentes que por fatores econômicos foram escravizados. Lutaram contra sua condição e conseguiram por meio dessas lutas sua liberdade. Mas esse não é o discurso que dominamos da escola. Ali ele aparece da seguinte forma: As coisas começaram a mudar muito com a ascensão de debates acadêmicos que passaram a buscar e discutir mais sobre os movimentos de resistência. O problema é que muitas documentações foram perdidas ou estão em arquivos voltados à perseguição e ao controle. Exemplo Querelas sobre a compra de direitos de liberdade, alforrias não cumpridas e levadas à Justiça. Fugas são amplamente noticiadas nos jornais, com prêmios e grupos especializados em capturas. Grupos de quilombos menores, urbanos, formação de comunidades, mudanças de estados são documentadas de forma frágil, mas demonstram a existência. As ordem religiosas de homens pretos que escondia e financiavam fugas, também não o fazem de maneira clara, mas é presente ao longo de toda a história. Por fim, uma relação como ganho, ainda que não seja uma resistência direta, mas um processo de resistir dentro das brechas do sistema. Note que não é só pela venda, mas também pelas trocas. Muitas religiões afro-brasileiras são frutos das memórias reconstruídas nas ruas dos grandes centros. Tradições de povos diversos dialogavam, as potencialidades e os acordos entre os escravizados começavam a criar e organizar uma nova identidade, coletiva, construída e que é matriz do próprio movimento. Resistências dos descendentes de africanos no Brasil Por favor, se habitue, não falamos de escravos, mas de grupos que passaram pelo processo de escravidão, lutaram, se organizaram e mesmo negados pela suas características físicas constituíram uma cultura singular e importante. Professor Renan Bayer e Rodrigo Rainha te apresentam um pouco mais da resistência dos descendentes de africanos no Brasil. Os europeus escravizaram os africanos, que eram atrasados e ainda viviam em condição tribal, por isso foram vencidos. Como escravos, foram vendidos em mercados, foram paraas fazendas, onde se tornaram os pés e as mão do Brasil. Converteram-se e contaram com a assistência e a proximidade dos donos de fazenda. Sempre existiram grupos que defenderam o �m da escravidão e graças à Princesa Isabel, em 1888, essa triste história acabou. Falta pouco para atingir seus objetivos. Vamos praticar alguns conceitos? Questão 1 Dentro da perspectiva de resistência, o quilombo pode ser entendido como A uma ruptura social. B uma ruptura política. C uma ruptura economia. Parabéns! A alternativa D está correta. %0A%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%3Cp%20class%3D'c- paragraph'%3EA%20escravid%C3%A3o%20impacta%20o%20social%2C%20o%20pol%C3%ADtico%20e%20a%20economia%2C%20fazendo%20com%2 Questão 2 A história tradicional apresenta formas de resistência urbanas como algo pouco visto. Um estudo apurado pode, muitas vezes, surpreender. Por exemplo, uma forma de resistência urbana que protegeu fugidos e comprou alforrias foi? Parabéns! A alternativa C está correta. %0A%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%3Cp%20class%3D'c- paragraph'%3EAs%20irmandades%20atuavam%20na%20associa%C3%A7%C3%A3o%20de%20escravos%20e%20libertos%2C%20criando%20um%20e D uma ruptura do status quo. E uma ruptura do tecido do trabalho. A Os governadores para mudar a economia. B Os fazendeiros de café em fábricas urbanas. C As irmandades religiosas de homens negros. D Os terreiros das cidades e casas cômodos. E As milicias de capoeiras. 3 - Os africanos livres no Império Ao �nal deste módulo, você será capaz de reconhecer como homens e mulheres africanos tiveram uma vida em liberdade durante a escravidão no Brasil. Africanos Livres Vozes A escravidão e a forma como eram trazidos homens e mulheres do continente africano criou uma categoria singular: “africanos livres”, aqueles que foram resgatados da escravização ilegal após o fim do tráfico em 1831. No período entre as duas leis contra o tráfico (1831 e 1850) houve um aprofundamento da entrada de africanos via tráfico e com pouco combate das autoridades do Império. Africanos escravizados trabalhando. Antes disso, no período da independência, 1/3 da população do Império era de escravos e esse número poderia variar de acordo com a região, podendo chegar a 2/3 da população, em áreas como Vassouras, que contava com 2/3 de escravos e com uma grande quantidade de africanos livres e libertos. A fim de reduzir a entrada de africanos para a escravização, algumas medidas foram tomadas, ainda com o Brasil sob domínio de Portugal. 1810 F i i d t t d t P t l I l t “li it é i t ê d à ó i lô i A lei de 1831 no seu primeiro artigo determinava: “todos os escravos que entrarem no território ou nos portos do Brasil, vindos de fora, ficam livres”, criando a categoria de “africanos livres”. De acordo com Jaime Rodrigues, a lei também previra a reexportação para a África daqueles trazidos para o Brasil após 1831, mas enquanto o trâmite para essa ação era feito, o governo deveria encontrar meios para a sobrevivência desses homens e mulheres, os obrigando à prestação de serviços (RODRIGUES, 1997). Africanos trabalhando no Rio de Janeiro. De acordo com Beatriz Mamigonian, especialista nesse campo de estudo, eram africanos livres os que fossem emancipados em obediência à repressão ao tráfico. Os considerados assim ficariam sob a responsabilidade do Estado imperial e deveriam “cumprir catorze anos de trabalho compulsório para alcançar a ‘plena liberdade’”. De acordo com a autora, estiveram sob esse regime, entre 1821 e 1864, cerca de 11 mil pessoas. No entanto, estudos já mostraram que entraram no Brasil, entre 1830 e 1856, cerca de 800 mil africanos para a escravização ilegal (MAMIGONIAN, 2017). Diante do não cumprimento do dispositivo que previa a reexportação dos africanos apreendidos no Brasil, em 1834 houve uma determinação do Ministério da Justiça, atendendo a um pedido do presidente de província da Bahia, para que esses “ilegais” fossem empregados nas obras públicas, estando proibida a arrematação dos africanos livres a particulares. Porém, no mesmo ano, foi concedida a permissão de arremate daqueles que estavam na Casa de correção da Corte, sendo necessário o pagamento, em juízo, de um salário ao curador dos africanos, cujo valor serviria para a reexportação dos africanos. Foi assinado um tratado entre Portugal e Inglaterra que “limitava o comércio português de escravos às suas próprias colônias e territórios”. 1815 O tratado “reiterava a proibição desse comércio fora das possessões coloniais portuguesas e vetava expressamente aquele conduzido ao norte do equador”. 1826 No contexto pós independência, Brasil e Inglaterra assinaram um tratado que proibiria todo o comércio de escravos para o Brasil, a partir da vigência em março de 1830. A lei de 7 de novembro de 1831 confirmava essa proibição e declarava livres todos os que entrassem no país a partir dessa data. 1850 Uma nova lei reforçava a proibição, diferenciando-se da lei anterior a partir das penas impostas aos que burlassem a lei. Após a lei de 1850, que novamente proibiu o tráfico, aqueles que fossem apreendidos estariam por conta do governo, sob sua tutela e atuando em serviços do Estado sem poder estar sob a tutela de particulares. As fraudes com o “uso” dessa mão de obra eram constantes, o que impedia que os direitos desses africanos fossem respeitados, principalmente o de reexportação. Em 1853, voltou a permissão para a tutela de particulares, mas após prestarem serviços por 14 anos, os africanos deveriam ser emancipados, devendo permanecer no local determinado pelo governo e com ocupação reconhecida (RODRIGUES, 1997). Ou seja, colocariam esses homens e essas mulheres sob a condição de trabalhadores com salários, mas com o estigma da escravidão diante da não possibilidade de uma vida autônoma e livre, de acordo com seus próprios parâmetros. Africanos trabalhando na produção de cana-de-açúcar. Funcionários públicos? Formas de relação de liberdade Os africanos livres tutelados pelo Estado foram usados como mão de obra em muitas regiões, como em Manaus, onde atuaram em olarias e serviram como pedreiros e carpinteiros, entre outras funções necessárias para uma cidade em construção e desenvolvimento. Os africanos livres que atuavam em obras públicas tinham a companhia de outros tipos de trabalhadores, como indígenas e homens livres nacionais. O historiador Jaime Rodrigues pesquisou o uso de africanos livres na fábrica de ferro Ipanema, em Sorocaba. Essa fábrica foi criada em 1811 e desde 1834 recebera africanos livres para o trabalho. As listas de trabalhadores indicam homens e mulheres sob a condição de “africanos livres” atuando em diversas atividades na fábrica. Acompanhe a seguir: A convivência entre africanos livres e as formas de trabalho estabelecidas na fábrica fez com que houvesse constantes problemas disciplinares. O depoimento do dirigente da fábrica indica a ideia que faziam deles: “[...] eles são relaxados, mostram sempre uma cara feia, e parece que são seduzidos por algum mal-intencionado, pois há entre eles alguns de cinco a oito fugidas, e não servem correções” (RODRIGUES, 1997). Apesar dessas reclamações, havia uma forte demanda por esse tipo de trabalhador para a fábrica. No entanto, esse grupo de africanos passou a reivindicar sua liberdade por acreditar que o trabalho que exerciam era irregular. Para isso, mandaram um documento por escrito para o juiz de órfãos local, tratando da sua condição. De acordo com Rodrigues: “os africanos afirmavam terem sido contratados para trabalhar dez anos e já trabalhavam 16. ‘continuavam a servir como escravos, quando são livres, e que não estavam dispostos a se conservarem assim’, disse o juiz, reproduzindo a conversa que manteve com os africanos (RODRIGUES, 1997). Esse caso demonstra a noção que muitos desses homens tinham sobre a condição em que viviam no Brasil, semelhante a de escravos, mesmo não estando legalmente sob o regime da escravidão.A reivindicação da liberdade não era feita apenas por meio de fugas e revoltas, mas também utilizando meios legais, como a solicitação feita ao juiz da região. Assim, é visível por esse estudo que a realidade da escravização africana no Brasil, até na sua ilegalidade, produziu inúmeras formas de resistência e conceitos sobre trabalho e liberdade. Exemplo Entre essas funções, que apareciam como marginais, mas altamente reconhecidas, temos as benzedeiras e produtoras de unguento, óleos e garrafadas. Muito se discute a influência e a troca das populações africanas com as indígenas, que se manifesta também na religião – como a umbanda –, para marcar o intercâmbio de conhecimentos sobre os produtos naturais, os serviços de cura e afins. Para que tenhamos ideia sobre esse papel, eles garantiam influências e trocas. Recompensas e, muitas vezes, registros literários e jornais reforçam que os médicos eram vistos com mais ressalvas do que os donos desses conhecimentos. Escravizados em prática de capoeira. Outro papel utilizado pelos setores públicos era a força. Temos que pensar em capoeiras, em serviços de proteção, carregadores e armadores do porto, libertos que atuavam no saneamento e na limpeza da cidade, além de funcionários que faziam papéis de cobranças e papéis públicos. Muito além de o longínquo imaginário de pés e mãos do engenho, as cidades se relacionavam com esses grupos que iam ganhando espaço, recuperando elementos de sua cultura e pressionando para que direitos fossem reconhecidos. No século XIX? Sim! Ainda que al�ados dos poderes políticos, iam ganhando espaço na economia e na mecânica social. No entanto, o cientificismo do século XIX vai prestar um perigoso e complexo desserviço social, ao defender teorias de branqueamento, apontar para a ideia de que o Brasil não pode ter duas raças, devendo fazer suas escolhas, uma escolha que fica clara na política de imigração empreendida entre o século XIX e o XX. Ofícios Barbeiros e quitandeiras Outro caso interessante de mencionar é a respeito dos africanos que viveram no Brasil, detentores de um ofício. Entre eles estão os barbeiros sangradores. A prática da sangria era regulamentada em Portugal, usada como uma técnica de tratamento em diversos ambientes, não apenas em áreas de hospital, e seu aprendizado era passado de forma oral e empírica pelos mestres barbeiros (JEHA, 2017). Essa atividade era exercida no período colonial e no Império majoritariamente por homens negros (africanos, escravos ou livres) e foi bastante retratada por Debret. Mulheres em barbearia. Quintandeira vendendo caju. Um ofício ocupado por muitas mulheres africanas era o de quitandar. As vendas nas ruas eram feitas por mulheres, algumas forras ou escravizadas africanas, e constituía em uma atividade lucrativa, sendo regularizada pela Câmara, com o crescimento das cidades. Inúmeras pesquisas já foram feitas sobre essas mulheres, buscando características comuns e que identifiquem na arte da quitanda, ou seja, a prática do comércio, uma ancestralidade africana. De acordo com esses estudos, a prática da quitanda é uma invenção social dos povos bantos da África Central, sofrendo adaptações no Brasil, sendo, na África, um ofício exclusivamente feminino. Confira! O termo quitanda é de origem quimbundo, mas aparece em todos os povos de língua bantu de Angola. Em Luanda colônia, as quitandeiras vendiam seus produtos e se distribuíam pela cidade de forma muito semelhante ao que ocorria no Rio de Janeiro no mesmo período. Assim, as quitandeiras ocuparam com muita proximidade as duas margens do Atlântico Sul, ajudando a conformar sociedades articuladas nos dois lados do oceano, como bem apontou Alencastro [Luiz Felipe Alencastro] (SOARES; GOMES, 2002) No Brasil, essas mulheres africanas ocuparam as ruas, praças, os largos e foram retratadas por Debret e descritas por viajantes e cronistas de jornais. Para exercerem o ofício era necessário tirar uma licença anual a fim de manter seu local de trabalho, pagando impostos e oferecendo mercadorias em todas as partes da cidade. As atividades exercidas por essas mulheres eram ouvidas por aqueles que passavam pelas ruas e que ouviam os anúncios dos produtos vendidos. Uma dessas africanas quitandeiras teve sua história contada por historiadores que reconstruíram sua biografia a partir do processo de escravização no Rio de Janeiro. A história de Henriqueta é semelhante à de muitas mulheres africanas que chegaram ao Rio de Janeiro. Sua dona a colocou nas ruas para exercer a atividade de ganho, ou seja, tarefas para terceiros em troca de uma quantia que deveria ser paga a sua dona. Com tal atividade, Henriqueta ainda conseguiu acumular um dinheiro que a permitiu comprar sua alforria. Após liberta, continuou nas ruas da Corte, mas carregando cestos com produtos e andando pelas ruas da região central exercendo a atividade de quitandar. Ela e tantas outras mulheres, africanas ou não, dominavam as ruas da cidade com o uso de códigos que permitiam a ocupação de determinadas ruas por um grupo específico. Além disso, parte dessas mulheres e muitos outros homens tinham nas irmandades religiosas um ambiente de encontro e sociabilidade. A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário é um exemplo desse tipo de organização religiosa e agregou muitos africanos entre seus membros. Uma parte do conhecimento que temos sobre a vida dessas mulheres passa pelos processos com os quais se envolveram ou pelas reclamações feitas por autoridades sobre a presença delas nas ruas. Sobre Henriqueta um pouco da sua vida foi conhecido por causa de um processo movido por ela: Henriqueta processou o seu então marido, um africano liberto com quem se casou logo quando foi liberta. Por conta das violências sofridas, Henriqueta solicitou e conseguiu um divórcio eclesiástico. Ela não foi a única a fazer tal reivindicação e inúmeros processos envolvendo casais de libertos e africanos existem em arquivos eclesiásticos, sem cuidado da historiografia. A vida de Henriqueta mudou após conseguir a separação e ela pôde reunir uma quantia que a permitiu ter a licença de duas barracas no mercado localizado no Largo do Rosário, bem perto da Igreja da Irmandade. A história de Henriqueta foi objeto de estudos que associam a presença de mulheres africanas nos espaços urbanos, permitindo contar duas histórias: a da escravidão e a das cidades escravistas. O site desenvolvido pela Universidade Rice (EUA) sobre o cotidiano de Henriqueta nas ruas do Rio de Janeiro em 1850 é uma valiosa fonte de informação sobre o tempo de uma cidade africana, a corte do Brasil. Africanos livres, homens e mulheres, estavam em toda a parte das grandes cidades e no campo, e, mesmo sendo “livres” viviam sob o jugo de outra forma de escravização, aparentemente ilegal. No entanto, assim como no tempo da escravidão, esses “livres” tiveram que recorrer a juízes ou outras autoridades para terem reconhecida sua liberdade. Durante a vigência da escravidão, a liberdade ainda era um conceito em construção. Debret e os africanos no Brasil Conheça Jean Baptiste Debret e a forma como foram retratados os africanos no Brasil. Falta pouco para atingir seus objetivos. Vamos praticar alguns conceitos? Questão 1 Sobre os modelos de ordenamento e cultura dos africanos no Brasil, é importante pensarmos as formas como homens e mulheres descendentes ressignificaram a cultura e o valor. É uma manifestação que permite uma reflexão sobre essa questão Parabéns! A alternativa D está correta. %0A%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%3Cp%20class%3D'c- paragraph'%3EOs%20escravos%20de%20ganho%20deixam%20como%20herdeiros%20as%20formas%20de%20ganho%20financeiro%20e%20estrutura Questão 2 As vozes sobre os libertos não são restritas ao império, mas ali ganhamos mais força e notoriedade. Sobre a questão dos libertos podemos afirmar que A a presença política de nomes como André Rebouças. B o processo social de transformação das benzedeiras em médicos. C o usode capoeiras como policiais militares nas grandes cidades. D a presença das quituteiras e suas formas de ganho nas cidades. E a adoção de funcionários remunerados na fábrica. A não existiam libertos verdadeiros, só escravos de ganho. B libertos eram alforriados presenteados pelos senhores. C libertos só entravam em relações políticas complexas. Parabéns! A alternativa E está correta. %0A%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%3Cp%20class%3D'c- paragraph'%3EA%20liberdade%20dos%20grupos%20de%20descendentes%20africanos%20foi%20pouco%20estudada%20durante%20muito%20tempo se%20que%20as%20formas%20de%20presen%C3%A7a%20na%20sociedade%20eram%20culturalmente%20muito%20mais%20complexas.%3C%2Fp% 4 - O pós-abolição e a resistência da cultura africana Ao �nal deste módulo, você será capaz de listar nos estudos do pós-abolição sobre a presença de africanos e afrodescendentes no Brasil. A cultura dos descendentes africanos Um novo mundo O fim da escravidão em 1888 representou o início de um novo tempo para homens e mulheres africanos escravizados e seus descendentes. Esse fim somente ocorreu por causa das inúmeras lutas empreendidas por esses sujeitos e combinado com uma conjuntura desfavorável para a escravidão. E para onde foram esses novos homens e mulheres livres? Essa é uma pergunta constante por parte daqueles que leram uma história republicana que apagou a presença de homens e mulheres negros da sua história. Nas últimas décadas, novos pesquisadores se debruçaram sobre o período conhecido como pós-abolição, a fim de problematizar essa e D os ex-escravos trabalhavam na Igreja, principalmente, agente de sua alforria. E libertos participavam da relação complexa do império, tendo formas diversas. outras questões. Crianças negras em um rancho em Teresópolis. Os estudos do pós-abolição recontextualiza os conceitos de cidadania e liberdade e os seus significados para diversos atores sociais em diferentes tempos, como ex-escravizados que ainda durante a escravidão tiveram contestada a sua liberdade e para africanos que mesmo livres não tiveram acesso à cidadania. Esses estudos também tratam dos projetos dos libertos e as inúmeras possibilidades surgidas com a conquista da liberdade, antes ou depois da abolição. O pós-abolição foi vivido de forma diversa em diferentes partes do país: Primeiros anos republicanos O final do Império e os primeiros anos republicanos foram de reconstrução de vidas de ex-escravizados, alguns africanos, e seus descendentes. As opções para viver a vida de liberdade passava pela cidade e pelo campo, alguns preservando ofícios anteriormente exercidos. Cultura e religiosidade A cultura e a religiosidade, exercida de forma distinta pelos diferentes grupos de ex-escravizados ou de negros livres, foi uma via de leitura de historiadores e outros profissionais que focaram apenas nesse aspecto a vida de homens e mulheres recém saídos da escravidão. Fora do “padrão” P é it f i d d t ti id d líti t ti d lt ã t i d t d As pesquisas recentes sobre o pós-abolição indicam uma autonomia desses homens e mulheres, ex-escravizados, para a decisão da vida em liberdade, tirando o peso negativo que esse deslocamento tinha numa historiografia anterior. Uma dessas novas pesquisas indicam a migração como um ato consciente e como desejado por aqueles que teriam as oportunidades que a vida livre daria, apesar dos vestígios da escravidão e do seu passado violento. Tal prática não seria novidade em países como Cuba e Estados Unidos, que ao terem eliminado a escravidão, também testemunharam casos de grandes migrações dos ex-escravizados. Migrações de africanos no Brasil Em busca de uma vida melhor As migrações foram realizadas para os seguintes locais: Corte ou cidades Com um contingente populacional vindo do campo. Áreas rurais Buscando se distanciar do antigo local de escravização. Porém, para a Corte, nos primeiros anos, o aumento demográfico no pós-abolição indica a região como sendo alvo desses ex-escravizados até os primeiros anos iniciais da República e se intensificando ao longo da década de 1920. Para a região do campo, principalmente o Vale do Paraíba cafeeiro, houve a permanência de um grupo de ex-escravizados nas fazendas como resultado de uma estratégia usada pelos senhores para fixar esses trabalhadores na região, surgindo posteriormente as comunidades remanescentes de quilombolas e que foram reconhecidas pela Fundação Palmares. Porém, muitos africanos e seus descendentes exerceram atividades na política e em outro tipo de cultura que não estaria dentro do espectro pensado para homens e mulheres negros. Outro caso encontrado no pós-abolição por Ana Maria Rios foi daqueles que ficaram mudando de fazenda em fazenda, com trabalhos temporários e instáveis, gerando ainda mais pobreza, violência e sem construir laços de parentescos extensos. Curiosidade Segundo a autora, os centros urbanos cresceram no pós-abolição, principalmente pelas gerações (filhos e netos) de ex-escravizados que não conseguiram se manter no campo. As causas para essa migração, segundo novos estudos, devem estar associadas à busca por uma educação que pudesse alterar a perspectiva de futuro dessas famílias, que não deveriam mais ficar presas ao campo. Pesquisas que trataram de cidades mais afastadas da Corte e capital da República indicam que os migrantes contemplaram cidades próximas à área rural a fim de, talvez, aproveitar seus ofícios ligados ao campo. Diante das dificuldades que alguns historiadores tiveram em identificar a origem desses migrantes, é necessário recorrer a outras fontes que possam indicar a origem de homens e mulheres afrodescendentes em algumas regiões, principalmente as cidades. O censo do Distrito Federal realizado em 1906 é um valioso instrumento para vermos apenas uma cidade nas primeiras décadas do século XX. No entanto, por esse exemplo conseguimos problematizar a presença dos afrodescendentes na capital federal. Nesse censo, o objetivo era contabilizar apenas os moradores da cidade do Rio de Janeiro, não sendo um censo nacional, nem inserido em uma dinâmica específica. As perguntas feitas eram simples e abrangiam nome, idade, nacionalidade, estado civil, grau de instrução (se sabia ler ou escrever) e profissão. A cor não era uma questão importante e desde o censo de 1890 não era perguntada. Porém, mesmo sem essa pergunta específica, conseguimos identificar homens e mulheres africanos e africanas na cidade. Comentário “Africano” era uma nacionalidade que não considerava a diversidade do território do continente africano, não sendo contabilizado como “europeu” os italianos, portugueses e espanhóis, por exemplo. Os africanos contabilizados no censo de 1906 no Rio de Janeiro, totalizara 274 homens e 428 mulheres, 702 no total, localizados em diferentes distritos da cidade. Entre esses africanos existiam os “centenários”, homens e mulheres com mais de 100 anos. Muitos desses centenários estavam localizados no Distrito da Gamboa, local chamado atualmente de “pequena África”. Exemplo Uma dessas centenárias é Maria das Dores, africana, com 105 anos e que chegou ao Brasil com 5 anos de idade. No censo não há detalhes sobre sua chegada, nem a indicação de que veio para ser escravizada. Em 1906, a escravidão é apagada pelos recenseadores, desejo também das autoridades do Brasil República. Lugares de memória Raízes ancestrais O pós-abolição no Brasil também é marcado pelas novas pesquisas que identificaram os lugares de memória da escravidão africana, projeto apoiado pela Unesco e que envolveu pesquisadores de diversas áreas do Brasil. Essa identificação quebrou o silêncio existente sobre a história do tráfico, principalmente no período da sua ilegalidade. O grande volume de escravizados ilegais que entraram no Brasil e que produziram as fortunas do Vale do Café foi exposto em pesquisas recentes e alguns desses locais podem ser identificados por pesquisadores que não pretendiam silenciar a violência daescravidão. Observe uma importante justificativa para esse projeto. A estratégia de dar visibilidade a estes temas através da visitação dos locais de memória não só consolidava novas formas de rememoração, para públicos que desconheciam ou se recusavam a falar desse passado, mas também abria caminhos de sustentabilidade para os grupos que sofriam o peso do estigma de serem descendentes dos antigos escravizados. (MATTOS; ABREU; GURAN, 2014) Esse movimento faz parte do processo de reconhecimento de comunidades quilombolas do Sudeste e que envolveu historiadores e antropólogos. Logo, a memória dos africanos escravizados não poderia ser apagada junto com a história que muitos pretendiam apagar após a abolição da escravidão. Para esses pesquisadores, a publicização da história da escravidão e do tráfico era uma forma de reparação moral e possibilidade de construção de uma sustentabilidade econômica para comunidades negras presentes nesses locais e herdeiras de um patrimônio (MATTOS; ABREU; GURAN, 2014). Ex-escravizada da Reserva Extrativista do quilombo de Frechal. O pós-abolição é um campo de estudo profícuo para a história da escravização de diferentes grupos africanos no Brasil iniciada por volta de 1530. Não é mais possível pensar nesses sujeitos apenas como escravizados e com a sua história encerrando em 1888, com o fim da escravidão. Antes e depois da abolição, muitos homens e mulheres lutaram pela liberdade com inúmeras estratégias. São essas lutas que os estudos do pós-abolição mostram, tirando do silenciamento vozes importantes para a compreensão total da história do Brasil. Um debate recente e complexo dessas relações se manifesta nas religiões afro-brasileiras. Note-se que herdeiros das práticas urbanas foram tratados de maneira a tornar presente a organização e ressignificação de processos religiosos. Tambor de Mina, Umbanda, Candomblé são manifestações, entre muitas outras, que reorganizam e explicam as relações de poder das comunidades. Ao mesmo tempo, eram manifestações toleradas pelo status quo cristão, desde que mantidas em segundo plano. Mais recentemente, vivemos ataques relativos a esses grupos e o reposicionamento de seus seguidores por aspectos políticos, modificando suas relações ancestrais. Re�exão Quando se discute os lugares de memória, fazendo uma relação direta com essas ressignificações devemos pensar sobre o efeito do pensamento colonial, que constrói uma história em que as tradições vinculadas aos grupos africanos foram associadas às memórias da escravidão, e de alguma forma como algo a ser vencido, segundo nomes como Rui Barbosa, até apagado. O branqueamento populacional, de alguma forma, também foi ícone de um processo de esbranquiçar as manifestações vinculadas a essa memória. Memórias esbranquiçadas Assista ao vídeo e pense um pouco sobre essa questão. Falta pouco para atingir seus objetivos. Vamos praticar alguns conceitos? Questão 1 Com a abolição, podemos afirmar que a situação das populações descendentes de africanos no Brasil caracteriza-se por Parabéns! A alternativa B está correta. %0A%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%3Cp%20class%3D'c- paragraph'%3EA%20estrutura%20pol%C3%ADtica%20demonstra%20que%20a%20ideia%20de%20comunidades%20dependentes%20%C3%A9%20cl%C Questão 2 Uma das formas de agressão afrodescendente foi a negação e o apagamento da memória. Esse processo foi reforçado por dinâmicas diversas, entre elas podemos sinalizar A indigência e abandono. B organização de comunidades. C igualdade de direitos e possibilidades com os cidadãos. D indiferença, pois a abolição não mudou nada. E cultura dominante que marca o Brasil. A política de perseguição. Parabéns! A alternativa B está correta. %0A%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%3Cp%20class%3D'c- paragraph'%3EAs%20pr%C3%A1ticas%20relativas%20ao%20branqueamento%20em%20uma%20l%C3%B3gica%20que%20se%20pretendia%20cient%C Considerações �nais O texto oferece caminhos para entender as diferentes formas como homens e mulheres africanos e africanas viveram a vida na escravidão e na liberdade do Brasil do século XIX e primeiros anos do XX. Os africanos que chegaram ao Brasil eram um grupo heterogêneo, mas perderam essa distinção na experiência da escravidão, que tendia a torná-los um só, sem vida e sem identidade. Porém, uma forma de resistir era o de construir identidades e laços com outros grupos e assim promover formas de viver a escravidão sempre em busca da liberdade. A historiografia dedicada aos estudos dos africanos escravizados, seus descendentes e o pós-abolição inseriram esse grupo como sujeitos da história, permitindo que a sociedade brasileira conheça com maior profundidade não só o processo da escravização mas, principalmente, as diferentes formas de buscar a vida em liberdade. As pesquisas que enfocam a memória da escravidão cobram das autoridades o reconhecimento dos direitos desses povos não só à terra mas também a uma história que revele com maior cuidado e eficácia a trajetória de vida de tantos homens e mulheres escravizados. O pós-abolição é um novo campo de estudo e abordagem e por meio dele devemos pensar nos africanos e afrodescendentes. Podcast Para encerrar, ouça sobre os principais aspectos dos quilombos e a cultura africana no Brasil. B política de branqueamento. C políticas afirmativas. D políticas de controle religioso. E políticas voltadas a uma história separada. Referências BOSI, A. A escravidão entre dois liberalismos. 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Conheça O cotidiano de Henriqueta nas ruas do Rio de Janeiro nos anos de 1850, um story map de Sandra Lauderdale Graham e Alida Christine Metcalf, com tradução de Ludmila de Souza Maia. Assista aos vídeos: Labuta – Mundos do trabalho e independência #01 – com Beatriz Mamigonian; Historiografia brasileira sobre a escravidão/ ONHB Formações: África e Cultura Afro-Brasileira,com Silvia Lara. Assista ao filme Memórias do cativeiro. Conheça o site Slavevoyages.com, a historiografia brasileira sobre a escravidão. Movimentos negros na história do Brasil Prof.ª Renata Figueiredo Moraes Descrição A presença do movimento negro na história do Brasil desde as primeiras décadas do século XX até a contemporaneidade. Propósito A história do Brasil foi feita por homens e mulheres negros que não apareciam nos livros. Por isso, estudar os diferentes movimentos negros que apareceram na história do país ajuda a refletir sobre a exclusão dessa parcela da sociedade e a construção de alguns mitos – entre eles, o da democracia racial, importante instrumento de opressão de regimes políticos que se abstiveram de pensar a sociedade como um tudo. Objetivos Módulo 1 O conceito de raça e o racismo no Brasil Reconhecer o conceito de raça para aprofundar a discussão sobre racismo. Módulo 2 As ações dos movimentos negros (1930-1970) Identificar o surgimento dos movimentos negros na República. Módulo 3 O movimento negro uni�cado – ações e sujeitos Identificar as diferentes estratégias de ação do MNU na segunda metade do século XX. Módulo 4 O século XXI – novas e antigas questões Reconhecer avanços, retrocessos e desafios para o futuro do movimento negro nas primeiras décadas do século XX. Introdução Ao falarmos do movimento negro, precisamos ampliar nosso olhar para o século XIX e, principalmente, para o século XX. Primeiramente, porque a movimentação social de homens e mulheres negros existiu desde os tempos da escravidão e foi primordial para a lei que acabou com esse regime de mais de três séculos. Em segundo lugar, porque a diversidade existente entre eles produziu inúmeras formas de atuação política. Não é uma tarefa fácil inserir dentro de um mesmo conceito a ideia de movimento negro devido à multiplicidade de ações de homens e mulheres negros. Desse modo, este texto é um caminho para entendermos a movimentação política, cultural e social de uma parte da sociedade brasileira que lutou por muito tempo para ser reconhecida como pertencente a ela. Por isso, ao pensar em sociedade brasileira, é fundamental entender o processo de racialização ocorrido após o fim da escravidão a fim de ver a “raça” como um conceito político e um fator essencial na luta do movimento negro. Os diferentes projetos de mobilização de homens e mulheres negros mostram até que ponto tais ações não foram homogêneas e como diferentes regimes políticos sofreram as demandas dessa parcela da população. As ações culturais, a produção de escritos e a atuação das mulheres precisam ser vistas como um dos fatores de desenvolvimento de uma identidade negra durante o período republicano no Brasil. Afinal, o movimento negro mais contemporâneo é o resultado de um processo de luta de mais de 100 anos que atualmente enfrenta novos desafios – e um deles é a derrubada do mito da democracia racial. 1 - O conceito de raça e o racismo no Brasil Ao �nal deste módulo, você será capaz de reconhecer o conceito de raça para aprofundar a discussão sobre racismo. A mobilização O fim da escravidão em 1888 representou a continuidade da mobilização de homens e mulheres negros para uma vida com direitos políticos e sociais retirados deles no período da escravidão. Se antes da libertação muitos se reuniram em irmandades negras, gerando laços de solidariedade e políticos, no período do pós-abolição novas identidades foram construídas na ocupação de diferentes espaços. No entanto, o processo de racialização da sociedade se aprofundou no período pós-abolição, criando barreiras para aqueles que fossem não brancos. Desse modo, é essencial discutir como o conceito “raça” foi visto por intelectuais e governos em diferentes épocas, o que oferece suporte para se entender algumas dinâmicas criadas pelo movimento negro na resistência ao racismo. Manchete do jornal Gazeta de Notícias no dia 13 de maio de 1888. A “raça” surgiu como um subproduto do processo de expansão europeia iniciado no século XV, já que os europeus passaram a estabelecer distinções sistemáticas entre eles próprios e os povos fisicamente diferentes. A própria ideia de europeu, até então inexistente, foi construída a partir da comparação e da dominação do outro. Desse modo, “raça” passa a ser uma categoria analítica necessária para organizar a resistência ao racismo. A categoria “classe” não é suficiente para explicar o racismo sofrido pelos negros no Brasil, pois as discriminações e as desigualdades estão ligadas majoritariamente à noção de “cor” (GUIMARÃES, 1999, p. 11). As “raças sociais”, portanto, constituem construções permanentes sobre as quais se organiza a luta antirracista. Nesse caso, é importante ler a definição de Antonio Sérgio Guimarães acerca da estrutura do racismo brasileiro: O racismo brasileiro está umbilicalmente ligado a uma estrutura estamental, que o naturaliza, e não à estrutura de classes, como se pensava. Na verdade, também as desigualdades de classe se legitimam por meio da ordem estamental. O combate ao racismo, portanto, começa pelo combate à institucionalização das desigualdades de direitos individuais. Ainda que o racismo não se esgote com a conquista das igualdades de tratamento e de oportunidades, esta é a precondição para extirpar as suas consequências mais nocivas. (GUIMARÃES, 1999, p. 16) Como as desigualdades de classe aprofundam as diferenças sociais, no Brasil, ocorre uma institucionalização de tais desigualdades fortemente ligada à cor dos indivíduos. Nesse caso, até em condições iguais de classe negros serão alvos de preconceitos, seja de forma individual ou institucional, como é o caso das ações policiais. Atenção! Discutir raça é identificar a existência de um problema, e não de reafirmar uma diferença entre os homens pela sua origem biológica. A diferença que emperra o ir e vir de muitos cidadãos brasileiros foi determinada institucionalmente a partir da cor da pele e da ideia de que não brancos podem receber tratamento diferenciado. Desse modo, o conceito de raça age como um dos critérios mais relevantes na regulação dos mecanismos de recrutamento para ocupar posição na estrutura de classes (HASENBALG, 1979, p. 192). Entretanto, identificar a existência de um racismo ou de diferenças raciais entre cidadãos brasileiros nunca foi uma ação do Estado brasileiro no século XX. Pelo contrário: o Estado sempre reforçou a ideia de que brasileiros viviam em uma harmonia racial na qual o sucesso da miscigenação contribuía para a construção de uma identidade brasileira, sem ódios raciais tais como os vividos pelos afro-norte-americanos. Monumento em homenagem à Zumbi dos Palmares. Diferentes orientações políticas silenciaram o racismo e a violência gerada pelo Estado e incentivaram uma produção intelectual disposta a defender a harmonia racial no Brasil. Ao longo do século XX, diferentes governos fecharam os olhos para uma parcela significativa da sociedade cujos membros não se reconheciam como brancos e que não tinham direitos sociais por serem negros. O caso brasileiro A década de 1930 deu margem para a construção do conceito de “democracia racial”, encabeçado por intelectuais, por exemplo, Gilberto Freyre, que, ao interpretar a origem do Brasil e não identificar nela ódios raciais, louvou a miscigenação,que seria um sinal da boa convivência entre as “raças”. Como não havia um sistema legalizado de segregação racial no país no período pós-abolição, acreditava-se na sua inexistência de fato. Gilberto Freyre. O mestiço, a partir dos anos 1930, tornou-se o ícone nacional e a cultura mestiça, a representação oficial da nação. Para isso, foi necessário um investimento de intelectuais e do próprio Estado na construção de uma “autêntica” identidade brasileira baseada na mestiçagem que gerava a verdadeira nacionalidade (SCHWARCZ, 2013). Um dos tipos de investimento se deu por meio da educação, em que formas de vida do grupo social se tornaram hegemônicas em detrimento das diferenças de língua, cultura e história, o que evitaria uma nação cindida, como a dos Estados Unidos (SISS, 2003, p. 68). Porém, a depender do grupo que tenha sofrido a violência da discriminação, podemos pensar que também existe no Brasil uma cisão velada ou evidente. Desse modo, resta a pergunta: Quais foram os efeitos das políticas que não propuseram de fato uma pretensa harmonia racial a partir da identificação das diferenças existentes na sociedade brasileira? Essa questão poderá ser respondida à medida que formos tratando dos movimentos negros existentes em diferentes épocas. Uma primeira resposta à questão está em Carlos Hasenbalg, o qual, na década de 1970, em seu livro Discriminação e desigualdade racial, indicou alguns motivos para a permanência da desigualdade. Para ele, “brasileiros de cor” sofriam formas de dominação, além de uma desqualificação peculiar e das desvantagens competitivas que provêm de sua condição racial (HASENBALG, 1979, p. 20). Para Hasenbalg, era preciso tirar a ênfase do legado do escravismo como uma explicação das relações raciais contemporâneas. O sistema educacional também teria uma parcela de culpa, já que, segundo o autor, reproduzia o caráter elitista e aristocrático da sociedade, produzindo símbolos de status e de diferenciação social. No entanto, uma prática de negação do racismo e de exaltação da miscigenação se fez presente no campo das letras e dos estudos sociológicos e literários com Silvio Romero e João Batista de Lacerda, autores que enalteceram a mestiçagem como um instrumento de assimilação racial dos supostos grupos inferiores. Já outros, como Manoel Bonfim e Alberto Torres, fizeram críticas às teorias raciais, expondo seus aspectos políticos, imperialistas e falaciosos, enquanto intelectuais negros, como Juliano Moreira, Monteiro Lopes e o professor Hemetério dos Santos, por exemplo, sustentaram posições antirracialistas e antirraciais. Revistas do movimento negro mostravam mulheres usando vestidos da moda do início do século XX. Identidade nacional Como pensar em uma identidade nacional diante da diversidade étnica e cultural existente? Esse conceito de identidade nacional é válido, uma vez que, para haver a existência de uma identidade, outras são anuladas? Para tais respostas, vale a pena conhecer uma reflexão sobre as identidades no mundo contemporâneo. Trata-se do autor Stuart Hall, cujo questionamento sobre a pós-modernidade pode nos ajudar. Segundo Hall (2006), não existe uma identidade plena e unificada. Por conta disso, como se pode definir o que é nacional em um quadro de mobilidade vivido, na visão do autor, pelo sujeito desses novos tempos? Para Hall, a identidade é formada e transformada no interior da representação. Existem elementos que identificam uma pessoa a uma nacionalidade. Além disso, as identidades nacionais não subordinam todas as outras formas de diferença. Outra coisa para a qual o autor chama a atenção é a forma como as “culturas nacionais contribuem para ‘costurar’ as diferenças numa única identidade” (HALL, 2006, p. 65). Para ele, a identidade nacional e as outras “locais” ou particulares estão sendo reforçadas pela resistência à globalização. Se a identidade nacional está em declínio, isso significa que novas identidades híbridas estão tomando seu lugar. Para alguns teóricos, aponta Hall, um dos efeitos dos processos globais é o enfraquecimento das formas nacionais de identidade cultural. A diversidade de identidades nacionais. Em compensação, também haveria um reforço de outros laços e lealdades culturais. As identidades locais, regionais e comunitárias, assim, têm se tornado mais importantes. Vejamos! [...] o fortalecimento de identidades locais pode ser visto na forte reação defensiva daqueles membros dos grupos étnicos dominantes que se sentem ameaçados pela presença de outras culturas. (HALL, 2006, p. 85) Sobre tal fortalecimento, é importante destacar as demais identidades existentes dentro de uma nação – entre elas, a negra e indígena. Entre outras formas, isso pode ser feito por meio do ensino da origem dessas identidades e da forma com que elas se conjugam. Para entender as ações de alguns sujeitos, é preciso ter uma compreensão sobre o impacto das identidades e da raça para a construção política de ações de combate à discriminação. Dessa maneira, o fortalecimento que Hall vê para as identidades locais e étnicas nada mais é do que uma resposta à violência sofrida por determinados grupos durante anos. Se a ideia de nacional não satisfaz a todos, é preciso construir novos laços identitários, que podem ser vistos no aprofundamento de movimentos sociais (entre eles, o negro) ao longo das décadas. O movimento negro resistiu ao processo de construção da identidade nacional feita no Brasil por meio de métodos eugenistas que visavam ao embranquecimento da sociedade (MUNANGA, 2019). Mesmo com o fracasso do projeto de embranquecimento, porém, houve a permanência de mecanismos psicológicos que propunham um embranquecimento das identidades, da cultura e de outros fatores. A falha de um não destruiu a perpetuação de outro – e o racismo é um desses métodos. Exemplo de prática eugenista. Em seu livro Antirracismo, liberdade e reconhecimento (2006), Jacques d’Adesky indicou que o racismo aspira impor uma uniformização da humanidade pela diluição das diferenças mediante a assimilação cultural, a educação escolar e a mestiçagem física, conduzindo também ao menosprezo cultural e às violências físicas, morais e psicológicas. Uma forma de combatê-lo, assim como à sua violência, seria a adoção de cotas e políticas públicas, a qual, ao mesmo tempo que provoca um debate e expõe quem se opõe a tais medidas, põe em evidência argumentos perigosos para a condução da sociedade e a eliminação das diferenças. Um dos argumentos contrários era de que as ações afirmativas racializavam o Brasil e o problema social. No entanto, de acordo com d’Adesky, os críticos às cotas não entendiam que: [...] uma política consistente de luta antirracista passa por ações específicas, sem prejuízo de soluções tradicionais que focalizam a luta contra a pobreza. Além disso, alguns tendem a evitar a discussão alegando que, no Brasil, não se sabe direito quem é negro. Subentende-se dessa forma que a mistura racial tem diluído tanto a população que torna-se difícil discernir quem é pardo, mulato, preto, negro etc. Diante dessa realidade difusa, o bom senso recomendaria mesmo em preocupar-se com os problemas sociais e econômicos, e não com o racismo. (D’ADESKY, 2006, p. 60) O discurso da miscigenação, portanto, será benéfico quando houver propostas de políticas públicas específicas para uma parcela da sociedade. Para d’Adesky, os que criticam um reconhecimento adequado da imagem de negros e indígenas o fazem por um desejo de cultivar o ideal de homogeneização racial, acreditando nas virtudes da assimilação cultural como soluções para diluir as diferenças étnicas e as desigualdades socioeconômicas. Não há dúvidas de que houve um esforço público e intelectual para a promoção de uma pretensa igualdade racial e um projeto de assimilação e eliminação de identidades, principalmente das que fossem divergentes de um projeto maior de sociedade. Contudo, muitas gerações de homens e mulheres enfrentaram de diferentes formas os fundamentosda ideologia racial elaborada desde o século XIX. Repare no quadro, como a ideia de que os descendentes de Cam - equivocadamente entendidos como negros, ou marcados pela cor na história bíblica - vão se livrando dessa marca pelo branqueamento. A Redenção de Cam, do pintor Modesto Brocos. Registro do embranquecimento como solução de melhoria para o povo brasileiro. Essa ideologia racial que pregava a miscigenação (e, consequentemente, o branqueamento da sociedade) colocou em lados opostos negros e mestiços. Ao fazê-los diferentes, dividiu a força que eles poderiam ter para combater o racismo, o qual, aliás, atinge os dois. Por isso, historicizar as ações desses movimentos é fundamental para entender os diferentes instrumentos de luta e sua adequação a projetos políticos vigentes (e quase sempre racistas). Conceito de raça e o racismo Assista agora uma análise sobre o conceito de raça para aprofundar a discussão sobre racismo. Falta pouco para atingir seus objetivos. Vamos praticar alguns conceitos? Questão 1 No senso comum, resultado de um processo de apagamento, o fim da escravidão é descrito como um momento que se concretizou pela atuação da princesa Isabel em 1888. Essa descrição falaciosa, no entanto, não dá conta do processo de luta abolicionista ou estimula o conhecimento sobre o período pós-abolição. Sobre tal período, avalie as alternativas: I - O fim da escravidão representou uma continuidade da mobilização de homens e mulheres negros quanto a seus direitos políticos e econômicos suprimidos no período de escravidão. II - O fim da escravidão representou o fim das demandas e mobilizações de homens e mulheres negros quanto a seus direitos políticos e econômicos suprimidos no período da escravidão. III - Se, no período da luta abolicionista, as irmandades negras geraram laços de solidariedade e políticos, no pós-abolição, elas constituíram um espaço de construção de identidade. Marque a alternativa correta. Parabéns! A alternativa E está correta. %0A%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%3Cp%20class%3D'c- paragraph'%3EO%20fim%20da%20escravid%C3%A3o%20em%201888%20representou%20a%20continuidade%20da%20mobiliza%C3%A7%C3%A3o%2 aboli%C3%A7%C3%A3o%2C%20novas%20identidades%20foram%20constru%C3%ADdas%20na%20ocupa%C3%A7%C3%A3o%20de%20diferentes%20 Questão 2 O conceito de democracia racial é um debate intelectual formulado na década de 1930. Qual intelectual brasileiro interpretou a origem do Brasil por meio da democracia racial? Parabéns! A alternativa C está correta. %0A%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%3Cp%20class%3D'c- paragraph'%3EA%20d%C3%A9cada%20de%201930%20deu%20margem%20para%20a%20constru%C3%A7%C3%A3o%20do%20conceito%20de%20%E A Somente I está correta. B Somente II está correta. C Somente III está correta. D I e II estão corretas. E I e III estão corretas. A Caio Prado Jr. B Sergio Buarque de Holanda C Gilberto Freyre D Celso Furtado E Florestan Fernandes 2 - As ações dos movimentos negros (1930-1970) Ao �nal deste módulo, você será capaz de identi�car o surgimento dos movimentos negros na República. Anos iniciais da República Os primeiros anos republicanos, também conhecidos como o pós-abolição, foram de construção de uma nova ideia de Brasil, distante da que predominou durante o período do Império, cuja duração, em sua maior parte, deu-se sob o regime da escravidão. Porém, ao romper com esse sistema, não houve nenhuma política de inserção desses homens e mulheres egressos da escravidão em uma política pública de educação. Exemplo Um dado alarmante indica que, em 1918, 2/3 da população negra era analfabeta. Grande parte desse contingente servia de mão de obra barata, não podendo concorrer com os imigrantes europeus por melhores postos de trabalho. A realidade da população negra no pós-abolição mobilizou homens e mulheres negros para ações mais efetivas de melhoria de vida. Tais ações se deram a partir de um associativismo capaz de: A Frente Negra Brasileira realizava eventos e bailes, como essa festa de aniversário da entidade em 1935. Reconstruir laços de solidariedade e políticos A Frente Negra Brasileira oferecia aulas e palestra aos associados. Tinha até uma banda, como mostra a imagem da década de 1930. Gerar mudanças signi�cativas a longo prazo Na capital da República (à época, Rio de Janeiro), sobrevivia um passado da escravidão a despeito das obras de embelezamento de uma cidade que desejava refletir uma cidade europeia. João Cândido (primeira fileira, à esquerda do homem com terno escuro), líder da Revolta da Chibata. Com isso, enquanto as britadeiras do progresso construíam novas avenidas, a violência contra a população negra era sistemática. Uma delas foi a Revolta da Chibata. Liderado por João Cândido em 1910, esse movimento era formado por marinheiros (no caso, homens negros) que se revoltaram contra as chibatadas recebidas. Afinal, a prática de castigo da escravidão não poderia ter sobrevivido no século XX. Ainda assim, essa prática existia nas costas de homens negros que não eram e nem nunca tinham sido escravizados. A República não deixava passar a escravidão. Ao mesmo tempo, práticas culturais negras, como a capoeira e os batuques, também eram combatidas. Herança dos tempos da escravização, tais práticas serviam como um ambiente de reconstrução de identidades durante o Império, permanecendo fortes na República. Capoeira no Porto de Salvador. Roda de samba no Rio de Janeiro em 1936. O surgimento do samba é um dos exemplos de práticas negras que resistiram a despeito das ações policiais e da imprensa, que combatiam atitudes de trabalhadores (homens e mulheres) negros para o divertimento. Ainda no tema divertimento, clubes negros foram criados na capital da República, já que os clubes brancos, em muitos casos, não aceitavam como sócios homens e mulheres negros. Há diversos exemplos desse tipo de associativismo. Chamamos a atenção agora para as associações recreativas criadas por trabalhadores negros. Tais associações reafirmavam uma cultura de ritmos negros, tendo, entre sócios e fundadores, africanos e seus descendentes. Esse tipo de organização é uma marca das primeiras décadas do pós-abolição e mostram até que ponto homens e mulheres negros poderiam se organizar para defender uma opção de lazer e reconstruir laços sociais perdidos ou inexistentes por conta dos anos de escravidão. A necessidade de se organizarem em associações evidenciava a distinção existente entre homens e mulheres brancos e negros, porque não era permitido, de forma subliminar, frequentar os mesmos ambientes de diversão. Essa restrição não era compatível com a propaganda existente: a de que, no Brasil, reinava um “paraíso racial”. Nas primeiras décadas do século XX, tal crença começava a ganhar adeptos, principalmente entre políticos e intelectuais que viam com interesse a ideia de um Brasil mestiço, pensado a partir da construção de uma nacionalidade que pegaria elementos das camadas populares. Enquanto isso, a cultura popular de homens e mulheres negros era rechaçada pelas autoridades policiais e pela imprensa, que tentavam evitar a propagação de algo que, para eles, era bárbaro e do tempo da escravidão. Para homens e mulheres negros, sobreviver na República só seria possível a partir de uma mobilização entre seus pares. Podemos classificar tal mobilização como uma espécie de movimento social, o qual, hoje em dia, caracterizamos como negro. Institucionalização de batalhas Na década de 1930, surgiu uma importante iniciativa de movimento negro, a qual, estabelecida em São Paulo, gerou ressonâncias em outras cidades. Diante de um processo de urbanização e industrialização existente na capital paulista que excluía o negro, em 1931, foi criada a Frente Negra Brasileira (FNB). Com forte caráter nacionalista, a FNB tinha filiais em outros estados. Para alguns estudiosos, a Frente Negra foi o primeiro movimento ideológico e com caráter eminentemente urbano. Entre suas ações, destacava-sea criação do Departamento de Instrução e Cultura para os membros, já que seus fundadores acreditavam que a educação era um importante requisito para solucionar os problemas da população negra nas primeiras décadas do século XX. Militantes da Frente Negra Brasileira. Desde esse período, as iniciativas educacionais da FNB identificavam o problema relativo aos conteúdos ministrados nas escolas, que colocavam os negros como “desgraçados”, e o preconceito existente nos livros didáticos sobre a história do negro e sua participação na formação do Brasil. Não fazia sentido alunos negros aprenderem uma história que destacava uma visão dos seus antepassados apenas na esfera do fracasso. Tal narrativa, afinal, não contribuiria para a formação desse aluno. Para driblarem isso, os educadores pertencentes ao Departamento de Instrução da Frente Negra faziam abordagens de eventos nos quais o negro tivesse destaque. A expulsão dos holandeses e o Quilombo de Palmares são dois exemplos. Comentário Há quase um século, já existia uma demanda do movimento negro por uma reavaliação dos conteúdos de história ensinados nas escolas. Tratava- se, aliás, de algo que mais tarde seria a bandeira de movimentos sociais no final do século XX. A Frente Negra foi a mais importante organização do movimento negro do início do século XX, chegando a reunir cerca de 40 mil associados em diferentes estados. Ela serviu como referencial para a luta contra o racismo no Brasil e no exterior. Os analistas desse movimento indicam que sua existência foi o resultado do acúmulo de experiências organizativas dos afro-paulistas e uma reação à forte discriminação vivida por eles em anúncios de jornais e associações. A FNB ainda é vista como o primeiro movimento ideológico que buscou sintetizar o assimilacionismo e a prática cultural com o caráter urbano. Antes dela, houve, também em São Paulo, o Centro Cívico Palmares (1923-1929), que acabou sendo visto como o embrião para a Frente Negra. Outra iniciativa anterior foi a publicação de um jornal que, mais tarde, entrou para a galeria dos jornais da “imprensa negra” paulista. O primeiro número de Clarim d’Alvorada foi publicado em janeiro de 1924 e, além de circular pela cidade de São Paulo, era distribuído em outras cidades. As diferentes fases pelas quais passou o jornal mostrava um amadurecimento da necessidade de uma consciência política e social da comunidade negra na busca por uma cidadania plena. O impresso sobreviveu até o ano de 1933, tendo cerca de 64 edições publicadas. A Frente Negra também teve seu órgão oficial, A voz da raça, cujo cabeçalho tinha a seguinte frase: “O preconceito de cor no Brasil só nós os negros podemos sentir”. Capa da primeira edição do Clarim d’Alvorada. Esse periódico circulou entre os anos de 1933 e 1937, totalizando cerca de 70 edições. Vendido sob um sistema de assinaturas, ele tinha uma produção em grande escala, pois era distribuído para outras cidades. Mesmo atenta aos problemas da educação no Brasil, principalmente quanto à abordagem da história do negro, a Frente Negra não conseguiu sistematizar uma proposta de política educacional mais abrangente, muito menos a elaboração de um material didático específico ou de uma grade curricular. Ainda assim, a FNB foi o prenúncio das críticas ao ensino do país que excluía homens e mulheres negros da construção da sociedade brasileira e, consequentemente, da história do Brasil. Em 1937, a FNB preparava-se para se tornar um partido político a fim de disputar as eleições. No entanto, com o golpe do Estado Novo, que fechou uma série de partidos, a Frente Negra também foi fechada, encerrando suas atividades. Livro Casa-grande & senzala, escrito pelo pernambucano Gilberto Freyre. Ao mesmo tempo que a Frente Negra valorizava a história negra e dava espaço em seus jornais para textos que abordassem essa temática, uma importante obra sobre a origem do Brasil – e que marcaria toda a pauta do movimento negro a partir dali – era lançada. Casa-grande & senzala, livro escrito pelo pernambucano Gilberto Freyre, foi publicado em 1933 e privilegiava a história do Brasil colonial. Em sua abordagem, Freyre identificava elementos do cotidiano de um grande engenho para exemplificar a sociedade brasileira, em que a harmonia racial e, consequentemente, a mestiçagem seriam elementos de construção de tal sociedade. O reforço da inexistência de uma guerra racial serviu durante muitos anos para que diferentes regimes políticos justificassem a falta de políticas públicas para uma parte da população brasileira. Se não havia guerra racial, o racismo também não existiria e, logo, não deveria ser combatido. Os efeitos da famosa “democracia racial” estão até hoje na mentalidade de muitos brasileiros (todos eles brancos), que acreditam que o grande problema do país é a questão social, a pobreza, embora não percebam que ela atinge a maioria da população negra, a qual, por sua vez, não ocupa os principais postos de trabalho – mesmo que tenha estudos para tal. Quando estão em pé de igualdade, membros dessa população são preteridos de oportunidades por serem negros. Charge de Bira sobre o mito da democracia racial. A partir da segunda metade do século XX, as principais pautas das lutas dos coletivos e dos movimentos negros foram marcadas pelo combate à propagação do “mito da democracia racial”. Seu objetivo é justamente evitar que essa “democracia” se espalhasse ainda mais nas políticas públicas, já que elas são as únicas que poderiam reverter o quadro de desigualdade social no Brasil. Todos contra o mito Enquanto combatiam o “mito da democracia racial”, as iniciativas particulares ou coletivas não deixaram de existir. Perto do fim do período do Estado Novo, surgiram outras associações negras. Listemos duas delas: Escola de música e canto orfeônico da União dos Homens de Cor. União dos Homens de Cor Fundada em Porto Alegre em 1943, ela teve filiais em outros estados. Privilegiava a assistência médica e jurídica, assim como a promoção de cursos de alfabetização (SANTOS, 2022, p. 231). Teatro Experimental do Negro ensaiando Sortilégio, com Abdias Nascimento e Léa Garcia, 1957. Teatro Experimental do Negro (TEN) Criado por Abdias Nascimento, o TEN surgiu no Rio de Janeiro em 1944. Apesar de a iniciativa de Abdias Nascimento ser a formação de uma companhia teatral, o TEN assumiu outras funções culturais e políticas. Para seu idealizador, a alfabetização do negro era fundamental, principalmente no caso das mulheres trabalhadoras, cuja maioria ocupava a função de empregadas domésticas. O projeto de Abdias alfabetizou cerca de 600 pessoas. Já no ano seguinte da sua construção, o TEN encenou a peça O imperador Jones no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Dessa iniciativa, saíram importantes atrizes, como Ruth de Souza, Léa Garcia e Mercedez Batista. A respeito dos efeitos do TEN, Abdias Nascimento sintetizou: ercedez Batista Primeira bailarina negra do Municipal, a figura de Batista foi imortalizada em uma estátua situada em uma praça no bairro da Saúde, importante lugar de herança africana, na cidade do Rio de Janeiro. A um só tempo, o TEN alfabetizava seus primeiros participantes e oferecia-lhes uma nova atitude, um critério próprio que os habilitava também a ver, enxergar o espaço que ocupava o grupo afro-brasileiro no contexto nacional. (NASCIMENTO, 2006, p. 211) Junto com a alfabetização, o TEN tinha outro importante papel: discutir a situação do negro na sociedade. A companhia dava o protagonismo de suas apresentações aos negros, ou seja, o papel principal das peças. Saiba mais A companhia teatral de Abdias Nascimento influenciou, décadas mais tarde, outros coletivos negros teatrais. O mais famoso deles é o Olodum, em Salvador. O TEN encerrou suas atividades em 1968, no auge da ditadura militar no Brasil, obrigando seu fundador a se exilar nos Estados Unidos. O período de existência do TEN e de ações do movimento negro foi marcado por iniciativas que tentaram incluir a populaçãonegra na sociedade brasileira. Para isso, valorizavam-se as experiências vindas do exterior e tentava-se afirmar a dignidade, a busca de reconhecimento social e a igualdade da maioria dos negros. Essa fase também foi marcada por maior agitação intelectual e política, havendo uma presença de representantes dos setores progressistas brancos junto às entidades negras (GONZALEZ; HASENBALG, 1982, p. 24). Integrantes do TEN. Além das iniciativas de coletivos e associações negras, é importante ressaltar os estudos de intelectuais que tinham como objeto de estudos a questão racial. Na década de 1950, houve um projeto de apoio a estudiosos (em sua maioria, brancos) com patrocínio da Unesco. Nesse projeto, importantes obras foram produzidas, o que permitiu a ampliação de conhecimentos e questionamentos a respeito da questão racial no Brasil. Um desses autores foi Luís de Aguiar Costa Pinto, que publicou em 1953 O negro no Rio de Janeiro. Essa obra destacava a diferença entre as vidas de pessoas brancas e negras. O autor também apontou a discrepância relativa aos estudos sobre a população negra. Vejamos: O negro brasileiro, ou melhor, o brasileiro negro e o processo de sua integração nos quadros da sociedade brasileira – da condição de escravo à de proletário e da condição de proletário à de negro de classe média – jamais despertaram o interesse sério dos estudiosos do negro no Brasil, porque um arraigado estereótipo os convencera de que nada havia a estudar em relação ao negro igual a nós, ao negro não africano, não analfabeto, não escravo, não trabalhador rural, não separado do branco pela distância imensa que separa o vértice da base de uma pirâmide social rigidamente estratificada. O que o negro tinha de diferente de nós era o que se oferecia ao estudo: suas matrizes africanas, o drama de sua vinda para o novo mundo, sua condição de escravo, o estoque de influência que ele trouxe para cá e despejou fartamente na argamassa com que a história cimentou o chão e as vigas da civilização brasileira. (COSTA PINTO, 1952, p. 26) A denúncia feita por Costa Pinto dizia respeito à colocação do negro, como objeto de estudo, em um nicho que o estereotipava. Ou seja, só era permitido estudá-lo como alguém na miséria e ligado à escravidão. Parecia não haver outra posição para o homem e a mulher negro e negra na história e na sociedade. Por que o negro não poderia, por exemplo, ser estudado como trabalhador, brasileiro, político e intelectual? Essa questão de Costa Pinto nos instiga a continuar pensando na força do movimento negro, o qual, na segunda metade do século XX, parecia gritar ainda mais para a sociedade. Uma parte desse grito dizia que a democracia racial não existia – principalmente em um período de ditadura militar – e que a história do Brasil excluía grande parte da população da sua própria história. Junto ao movimento negro, estavam intelectuais como Florestan Fernandes e Thales de Azevedo. Ambos corroboravam a denúncia da inexistência não só da democracia, mas também – e principalmente – de uma democracia racial. Refletir sobre esse movimento é ver ações contra um mito que, ainda no século XXI, precisa ser constantemente desmobilizado. Historicizando o movimento negro Veja agora uma explicação sobre o surgimento dos movimentos negros na República. Falta pouco para atingir seus objetivos. Vamos praticar alguns conceitos? Questão 1 No período pós-abolição, a condição de homens e mulheres negros era muitas vezes marcada pelo analfabetismo e pelo fato de que eles serviam como mão de obra barata. Tais questões foram pautas de mobilização desse grupo, o que se deu a partir de: Parabéns! A alternativa D está correta. A Irmandades religiosas B Irmandades de ofício C Universidades D Associações E Igrejas %0A%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%3Cp%20class%3D'c- paragraph'%3ENa%20primeira%20metade%20do%20s%C3%A9culo%20XX%2C%20grande%20parte%20da%20popula%C3%A7%C3%A3o%20negra%20 aboli%C3%A7%C3%A3o%20mobilizou%20homens%20e%20mulheres%20negros%20para%20a%C3%A7%C3%B5es%20mais%20efetivas%20de%20mel Questão 2 “Art. 1° - Fica fundada nesta cidade de São Paulo, para se irradiar por todo o Brasil, a Frente Negra Brasileira, união política e social da gente negra nacional, para a afirmação dos direitos históricos da mesma, em virtude da sua atividade material e moral no passado e para reivindicação de seus direitos sociais e políticos, atuais, na comunhão brasileira.” (Estatuto da Frente Negra Brasileira. Diário Oficial do Estado de São Paulo, 1931.) Avalie as assertivas sobre a FNB: I - Tinha um apelo regional no estado de São Paulo. II - Tinha um caráter nacional com filiais nos estados. III - Foi um movimento com caráter rural. IV - Seu principal foco era a educação como solucionadora de problemas da população negra. Marque a alternativa correta. Parabéns! A alternativa D está correta. %0A%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%3Cp%20class%3D'c- paragraph'%3EEm%201931%2C%20%C3%A9%20criada%20a%20FNB.%20Com%20forte%20car%C3%A1ter%20nacionalista%20e%20urbano%2C%20a% A Somente I está correta. B Somente II e II estão corretas. C Somente I e IV estão corretas. D II e IV estão corretas. E III e IV estão corretas. 3 - O movimento negro uni�cado – ações e sujeitos Ao �nal deste módulo, você será capaz de identi�car as diferentes estratégias de ação do MNU na segunda metade do século XX. Respeita minhas vitórias! Como movimento social, o movimento negro tem como particularidade a atuação relativa à questão racial e engloba um conjunto de entidades, organizações e indivíduos que lutam contra o racismo e por melhores condições de vida. Ele é uma resposta à forma com que a sociedade brasileira trata a população negra e ao mito da democracia racial, mais próximo de um senso comum do que obra exclusivamente de Gilberto Freyre. No entanto, é essencial que tenhamos a seguinte noção: os negros não são um bloco monolítico com características únicas e universais. Houve, afinal, diferentes tipos de mobilização – e, neste módulo, falaremos justamente dessa diversidade. A característica que uniu esses diferentes movimentos foi a consciência de que apenas com o reforço de uma identidade negra seria possível encarar o inimigo comum: o racismo. Por ser complexo, de acordo com uma própria militante do movimento negro, Lélia Gonzalez, não é possível falar dele no singular. Na verdade, destaca Gonzalez, há uma especificidade comum, o negro, embora existam divergências quanto à sua mobilização. Por conta disso, o movimento deve ser visto no plural (GONZALEZ; HASENBALG, 1982, p. 19). Para Joel Rufino, historiador e intelectual negro, o ideal seria pensar o movimento negro como um conjunto de entidades e ações iniciadas após a década de 1930 e que lutaram contra o racismo e a marginalização. Dessa forma, é interessante pensar nas mobilizações que aglutinaram homens e mulheres negros na segunda metade do século XX, período de transformação política e social. Placa sobre o Renascença Clube. Uma iniciativa importante promovida pela intelectualidade negra do Rio de Janeiro foi a fundação do Renascença Clube, em 1951, como um espaço de sociabilidade de homens e mulheres negros de classe média que, por conta da cor, não poderiam frequentar clubes ocupados majoritariamente por brancos. Entre as atividades realizadas no clube, havia concursos de beleza para a escolha da mulher negra mais bonita, danças de salão e, da década de 1970 em diante, bailes soul, que ficaram conhecidos como Black Rio. O Renascença Clube existe até hoje no Rio de Janeiro, reforçando, com isso, sua ancestralidade e a valorização da cultura negra. Em 1976, um grande jornal noticiava a mobilização de jovens negros para uma música nada parecida com o samba ou o batuque, sons tipicamente associados à cultura negra. O ritmo do soul, somado a um orgulho da negritude, veio dos Estados Unidos e tomou conta da juventude negra no Rio de Janeiro e em São Paulo – mais precisamente,nas periferias dessas duas cidades. Em plena ditadura militar, os bailes black foram um fenômeno da década de 1970 e uma das facetas do movimento negro do período. De algum modo, tanto o movimento dos direitos civis dos Estados Unidos quanto a mobilização dos norte-americanos exerceram influência sobre os jovens negros brasileiros, que se reuniam em grandes bailes black para dançar e pensar a questão racial, já que ela não estava desconectada das ações musicais desses jovens. Baile soul na década de 1970, no Rio de Janeiro. Outro ponto de ação dizia respeito a uma estética negra. Ela, afinal, resgatava o amor a seus traços e cabelos, que passam a ser valorizados e crescem ao natural, ganhando o nome de “black”. Ao mesmo tempo, quem aderia a tal estética sofria discriminação. Por conta de suas roupas e de seus cabelos, esses jovens mobilizavam outros, os quais, sem perceber, acabavam por fazer política. Foto da exposição de Carlos Vergara sobre o Carnaval no Rio de Janeiro. A repressão a essa movimentação foi forte, tendo sido mais uma das realizadas no período da ditadura, especialmente porque, ao valorizar uma estética e cultura “black”, ela evidenciava que a democracia racial pregada por esse regime político era inexistente, assim como o era a própria democracia. Artistas como Toni Tornado e Tim Maia foram testemunhas e promotores de tais eventos e dessa estética, demarcando para a contemporaneidade que a arte negra poderia ser diversa – e não apenas a que vinha do samba e do batuque. Toni Tornado. Tim Maia. Contudo, as ações desses jovens irritavam os defensores da harmonia racial, como Ibrahim Sued, o que fez com que o colunista social d’O globo escrevesse em 1977 sobre o fenômeno: A tônica do movimento é lançar o racismo no país, como existe nos States. Eles chamam uns aos outros de “brother”, e o cumprimento é com o punho fechado para o alto. Nos shows que estão promovendo no Rio e em São Paulo conseguiram a presença de 10 mil pessoas. Os brancos são evitados, maltratados e até insultados. As autoridades estão atentas a esse movimento, pois pode se tratar de problemas de segurança nacional. E mais: no Brasil não existe racismo. Existem pessoas que alcançam posições mais elevadas e outras menos. Nos espetáculos, os negros aproveitam a oportunidade para a agitação, jogando negros contra brancos e fazendo a preleção para o domínio da raça no Brasil, a exemplo do que acontece nos States. (PEDRETTI, 2022, p. 86) A imprensa se esforçava em dizer que não existia racismo no Brasil e que alguma menção a isso era algo importado. Ao mesmo tempo, jornalistas se espantavam com a adesão ao movimento musical promovido por negros que tentavam, aos olhos de Ibrahim Sued, racializar a sociedade brasileira. Estudiosos do movimento conhecido como Black Rio negam qualquer tipo de segregação a pessoas brancas, mas indicam que os bailes eram oportunidades para a reafirmação de uma identidade negra. Saiba mais Foi na década de 1970 que o Grupo Palmares, do Rio Grande do Sul, pregou o deslocamento das comemorações do 13 de maio, data de assinatura da Lei da Abolição, para 20 de novembro, dia de morte do Zumbi dos Palmares, herói mais apropriado para se pensar a liberdade em um tempo de ditadura militar. As mulheres negras também começaram a se mobilizar nos movimentos negros existentes, principalmente no Rio de Janeiro, e alguns relatos de militantes históricas desses movimentos indicam a existência de um machismo estrutural que não permitia uma ação completa delas como articuladoras políticas. A década de 1970 seria de transformação em muitos sentidos nos movimentos sociais. Os militantes dos movimentos existentes em diferentes cidades começaram um profícuo diálogo em meados dos anos 1970, articulando um movimento de caráter nacional. Como resultado disso, com uma diferença de 11 dias, houve a fundação do movimento negro em Salvador em 7 de junho de 1978 e, no dia 18, em São Paulo, do Movimento Negro Unificado (MNU). Ato que deu início ao MNU. Em novembro desse mesmo ano, foi publicado o manifesto Cadernos negros, uma publicação do MNU contra a discriminação racial. Nesse momento, constituía-se uma ampla articulação desses movimentos, assim como uma denúncia do racismo na sociedade brasileira. Na segunda Assembleia Nacional do MNU, realizada em Salvador no dia 4 de novembro de 1978, ficou estabelecido o 20 de novembro como dia de luta e da consciência negra, ao mesmo tempo que se negava o dia 13 de maio, visto como o dia da assinatura de uma lei que havia ficado apenas no papel e que pouco tinha feito para mudar a situação do negro (GONZALES, 1982, p. 58). Para os membros do MNU, não era mais possível acreditar na ideia da democracia racial, já que ela representava fortes barreiras para a luta contra o racismo. Saiba mais Uma denúncia feita por esse movimento foi o projeto assimilacionista, que visava ao branqueamento das populações negras e indígenas (D’ADESKY, 2006, p. 71). Ninguém solta a mão de ninguém! Para Joel Rufino dos Santos, a fundação do MNU foi o desfecho de um caminho que transitou por diversas ações até chegar à organização política e ideológica, sendo um fruto do “milagre brasileiro” e das suas frustrações sociorraciais. Ela era também uma resposta ao “mito da democracia racial” e a todas as imagens que amenizavam a condição racial no Brasil, criando uma ideologia sobre uma história: a da escravidão (SANTOS, 1985). MNU da Bahia. O MNU tornou-se uma organização com representações em vários estados brasileiros e acabou influenciando na criação de outras organizações negras. O contexto da criação do movimento e das suas intenções estava totalmente relacionado a um período de ditadura militar que já dava indícios de abertura política. Na iminência de uma abertura, era preciso ocupar espaços para garantir a participação de todos e todas a fim de promover uma verdadeira transformação social. Ou seja, um caminho para isso era a denúncia e a derrubada do mito da democracia racial, além de dar uma atenção maior à complexidade da sociedade brasileira. Um dos aspectos de reivindicação de transformação da sociedade passava também pela reavaliação do papel do negro na história do Brasil e pela denúncia da existência de desigualdades materiais e simbólicas, gerando desvantagens gritantes entre os brasileiros, principalmente no caso dos afrodescendentes (D’ADESKY, 2006). Estudos que problematizavam a questão negra na nação aproveitaram o ensejo para repensar o papel do negro e do indígena na história do Brasil. Exemplo Esses estudos estão no bojo das reivindicações futuras de obrigatoriedade de um ensino que ampliasse a abordagem de uma história do Brasil que há muito tempo privilegiava homens brancos e de origem europeia. Fora do Brasil, a Unesco patrocinou a coleção História geral da África. De seus 8 volumes, 4 saíram primeiramente no Brasil, embora atualmente todos os volumes estejam digitalizados e disponíveis em português. Essa coleção reuniu um material escrito por especialistas de diversos países e abordou diferentes temas, regiões e períodos da história africana, sendo pioneira na reunião de historiadores, incluindo os africanos, dispostos a pensar um projeto maior acerca da história de um continente. Livros da coleção História geral da África. História geral da África representou, por fim, um esforço para combater uma visão do continente construída durante o período colonial (XIX e XX), dando um caráter negativo à história do continente europeu e ao seu direito à história, além de colocar os africanos no papel de sujeitos dela (LIMA, 2004). A obra de oito volumes também: Instigou novos estudos. Gerou um campo de conhecimento inédito até então. Foi uma base teórica e mais detalhada sobre o continente e sua formação cultural e histórica. Serviu àqueles interessados em não só estudar o continente, como também em conhecer as origens de uma parte do povo ancestral da sociedade brasileira. Na década de 1990, anos após aConstituição de 1988 e com um novo período republicano (dessa vez, distante dos horrores da ditadura), a questão racial passou a constar na agenda de debates de políticas públicas de diferentes órgãos, como: sociedade, escolas, universidades e mídia. Todos eles passaram a discutir o racismo e a discriminação racial. Essa discussão foi essencial para gerar um movimento de luta por meio da articulação de políticas públicas efetivas para o combate a um mal tão secular. Convenção Nacional do Negro, de 1986. Uma das propostas foi a de transformar o 13 de maio em dia nacional de denúncia contra o racismo. A data – que, em 1988, foi marcada por protestos diante do centenário da abolição e da ideia de que ela teria sido uma farsa – passava a ser ressignificada, ficando disponível para um novo campo de luta. Uma forma de combater o racismo era educar a população e inserir mais pessoas negras no ensino superior. Essa constatação fez com que uma das ações do movimento negro fosse a de criação de pré-vestibulares comunitários para jovens negros e carentes, servindo como uma ponte para a universidade. Apenas por dentro seria possível mudar a estrutura desse sistema de ensino. As ações da sociedade civil para o reforço na educação de jovens negros e carentes surgiram na Bahia (mais precisamente, na periferia de Salvador). Já no Rio de Janeiro, na Baixada Fluminense, elas foram uma iniciativa da Pastoral do Negro (SISS, 2003, p. 157). Essas ações de pré-vestibulares negros alimentaram as reivindicações por ações afirmativas cujo resultado mais visível é o das cotas raciais nas universidades brasileiras. Desse modo, o movimento negro do século XX foi amplo e complexo, tendo enfrentado diferentes regimes políticos. Ainda assim, ele foi essencial para mobilizar a sociedade brasileira e acordá-la para o problema do racismo, o qual, a despeito de atingir a todos, é vivido cotidianamente por homens e mulheres negros. Marcha "Zumbi está vivo", realizada no Rio de Janeiro em 1983. O século XXI iniciaria com uma perspectiva de mudança que passava pela educação. Mais uma vez, ela se revela como um caminho seguro para a mudança da mentalidade da sociedade. O movimento negro uni�cado Assista agora uma apresentação sobre as diferentes estratégias de ação do MNU com o objetivo de unificar o movimento negro. Falta pouco para atingir seus objetivos. Vamos praticar alguns conceitos? Questão 1 “Funcionando no Lins de Vasconcelos, numa casa antiga, pequena, com grande quintal arborizado, a sede do Renascença reunia ‘pessoas que apesar de intelectualmente e economicamente capazes, não tinham acesso a diversos tipos de diversões por serem negros’. A origem do clube é tema recorrente nas conversas com os antigos e novos associados“ (GIACOMINI, S. M. A alma da festa: família, etnicidade e projetos num clube social da Zona Norte do Rio de Janeiro, o Renascença Clube. Belo Horizonte: UFMG, 2006. p. 28-19). No início dos anos 1950, a fundação do Renascença Clube como espaço de convivência demonstra o(a): Parabéns! A alternativa C está correta. %0A%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%3Cp%20class%3D'c- paragraph'%3EEm%201951%2C%20uma%20intelectualidade%20negra%20no%20Rio%20de%20Janeiro%20fundou%20o%20Renascen%C3%A7a%20Cl Questão 2 (IBFC – PM/MG – analista de gestão da Polícia Militar – Pedagogia – 2015) Ao longo do século XX, em diferentes momentos e lugares do Brasil, surgiram associações e movimentos organizados em prol do atendimento às necessidades de populações negras. A intensa mobilização emergiu em fins dos anos 1970 e, nesse cenário, aconteceu uma reorganização do movimento negro, podendo-se considerar como um de seus importantes marcos a criação do MNU, em 1978, com intuito de articular entidades diversas e demarcar o caráter político da luta contra a discriminação racial. Tratou-se, assim, de um momento de rearticulação e instauração de uma nova agenda política de combate antirracista, que passa a se organizar em frentes de luta, como: A inexperiência associativa que levou a elite negra a imitar os clubes dos brancos. B isolamento da comunidade destacada que ignorava a democracia racial brasileira. C interesse de um grupo de negros na afirmação social para se livrar do preconceito. D existência de uma elite negra imune ao preconceito pela posição social que ocupava. E criação de um racismo invertido que impedia a presença de pessoas brancas nesses clubes. I - A recuperação da autoestima negra por meio da modificação de valores estéticos, da reapropriação de valores culturais, da recuperação de seu papel na história nacional e do avivamento do orgulho racial. II - O processo de abertura política e a emergência dos movimentos sociais em consonância com a transição democrática no Brasil. III - O combate à discriminação racial por meio da universalização da garantia dos direitos e das liberdades individuais, incluindo os negros, mestiços e pobres. IV - O combate às desigualdades raciais por meio de políticas públicas que estabeleçam, a curto e médio prazo, maior equilíbrio de riqueza, prestígio social e poder entre brancos e negros. Assinale a alternativa correta. Parabéns! A alternativa B está correta. %0A%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%3Cp%20class%3D'c- paragraph'%3EOs%20militantes%20dos%20movimentos%20existentes%20em%20diferentes%20cidades%20articularam%20um%20movimento%20de 4 - O século XXI – novas e antigas questões Ao �nal deste módulo, você será capaz de reconhecer avanços, retrocessos e desa�os para o futuro do movimento negro nas primeiras décadas do século XX. A I, II e III, somente. B I, III e IV, somente. C I e III, somente. D I e IV, somente. E II e IV, somente. Orgulho de ser preto! O século XXI teve início com as comemorações voltadas para os 500 anos do Brasil, havendo a crença de que seria um tempo de progresso e mudanças. No entanto, algumas permanências podem ser sentidas até os dias de hoje, duas décadas depois do seu início. O fato é que estamos vivendo tempos de retrocesso e descrença sob a sombra de um futuro sem igualdade social. Ignorar a presença de homens e mulheres negros e indígenas na construção da sociedade brasileira e, consequentemente, da sua história, é recriar velhas questões. III Conferêncial Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Conexa. Por isso, pensaremos nessas primeiras décadas do século XXI como uma curva ascendente de conquista de direitos, principalmente dos raciais, e que teve uma forte queda nos últimos cinco anos. Mesmo que essa queda seja sentida por eles, os movimentos sociais não esmoreceram, tendo feito um resgate para a história de homens e mulheres negros esquecidos que contribuíram para o fortalecimento da democracia política. Já no primeiro ano do novo século, o Brasil enviou para Durban, na África do Sul, uma delegação para a Conferência Mundial das Nações Unidas de 2001 contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e a Intolerância. Nosso país foi um signatário do relatório da conferência, que pregava ações concretas para esse combate. Apesar de não ser um resultado direto dessa participação, o sistema de cotas raciais foi estabelecido no Brasil no ano seguinte: a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) foi a pioneira dessa ação em universidades públicas. O Decreto nº 30.766/2002 estabelecia cotas de até 40% para as populações negra e parda. Atualmente, ele fixa: istema de cotas raciais Lei nº 3.708, de 9 de novembro, regulamentada pelo Decreto nº 30.766, de 4 de março de 2002. 20% para negros 20% para alunos da rede pública 5% para pessoas com de�ciência ou membros de minorias étnicas A questão racial entraria de vez para a agenda pública nos primeiros anos do século XX. Ainda no governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC), em 13 de maio de 2002, foi aprovado o Segundo Plano Nacional de Direitos Humanos (COSTA, 2011, p. 67). O primeiro plano, também no governo FHC, alertava para o combatea injustiças sociais e violações de direitos humanos no país. O segundo, publicado em data significativa, tinha ações para a população negra e indígena como um importante enfoque. Entre elas, o Segundo Plano Nacional de Direitos Humanos pregava a política de ações afirmativas para o combate à desigualdade social e apontava que os currículos escolares que deveriam estar atentos à questão da discriminação. Também em 2002, o Ministério das Relações Exteriores incentivou a entrada de afrodescendentes na carreira diplomática por meio de bolsas. No ano seguinte, já no primeiro mês do governo Lula, foi assinada a Lei nº 10.639/2003, uma importante alteração na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), de 1996, que estabeleceu a obrigatoriedade do ensino da história e cultura afro-brasileira. Essa lei resultou de uma ação política e histórica de grupos ligados a movimentos sociais. O mesmo ano ainda reservou outras conquistas, como a Criação da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) (COSTA, 2011, p. 68) e o estabelecimento do dia 20 de novembro como Dia da Consciência Negra, com a inclusão da data no calendário escolar. A importância do ensino da história e cultura afro-brasileira para todas as idades. O mesmo ano ainda reservou outras conquistas, como a Criação da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) (COSTA, 2011, p. 68) e o estabelecimento do dia 20 de novembro como Dia da Consciência Negra, com a inclusão da data no calendário escolar. Atenção! Mudança no ensino era pauta do movimento negro, no mínimo, desde a década de 1930, quando a Frente Negra já alertava para a existência de uma história na qual o negro tinha papel secundário. Tais ações afirmativas tiveram como resultado: Práticas para o reconhecimento sociocultural. Promoção da igualdade. Universalização de direitos civis, políticos e sociais (política de universalização de direitos). Organizações ligadas ao movimento negro investiram em iniciativas voltadas para a educação, principalmente na linha do acesso ao ensino superior e na formação de educadores. Um dos motivos disso é o fato de tais organizações considerarem a educação um dos mais importantes mecanismos a se acionar para a redução das desigualdades sociais e raciais. Exemplo Em 2008, a lei inseriu a história e cultura indígena como obrigatória no currículo escolar, alertando-se para o etnocídio existente na sociedade brasileira. tnocídio Destruição da civilização ou da cultura de uma etnia por outro grupo étnico. As ações do que chamamos de movimento negro se ampliaram. Se antes elas ficavam restritas a encontros presenciais e ações nas ruas, nos partidos políticos e nas universidades, atualmente, é possível identificar mobilizações individuais. Além disso, alguns coletivos estão atentos a outras necessidades. Uma delas é pensar o papel da mulher negra e resgatar o protagonismo de muitas delas, que, atuando nas décadas de 1970 e 1980 nas ações do movimento negro, foram apagadas de uma história que não individualiza essas ações. Exemplo Um movimento importante para isso foi a sanção, em 2014, por parte da presidente Dilma Rousseff, da data do 25 de julho como o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha e o Dia Nacional de Tereza de Benguela. Por isso, vale destacar algumas dessas mulheres, que falaremos na próxima seção. Vamos lá? Pensamento preto! A primeira dessas mulheres é Lélia Gonzalez (1934-1994). Bacharel em Filosofia, História e Geografia, ela foi professora do CAP-UERJ e da Puc-Rio. No carnaval, o mito da democracia racial é atualizado. Por ter participado da fundação do MNU nos anos 1970, Gonzalez foi fortemente vigiada no regime militar. Sua produção intelectual é uma crítica ao caráter eurocêntrico das Ciências Sociais e do feminismo ocidental. Lélia Gonzalez também atuou na assessoria de filmes que tinham a temática racial e em mandatos políticos, principalmente os da deputada constituinte Benedita da Silva. Em sua obra, Gonzalez alertou para o racismo e o sexismo na cultura brasileira, principalmente no caso do carnaval: O mito que se trata de reencenar aqui é o da democracia racial. E é justamente no momento do rito carnavalesco que o mito é atualizado com toda a sua força simbólica. E é nesse instante que a mulher negra transforma-se única e exclusivamente na rainha, na “mulata deusa do meu samba”, “que passa com graça/fazendo pirraça/fingindo inocente/tirando o sossego da gente”. É nos desfiles das escolas de primeiro grupo que a vemos em sua máxima exaltação. Ali, ela perde seu anonimato e se transfigura na Cinderela do asfalto, adorada, desejada, devorada pelo olhar dos príncipes altos e loiros, vindos de terras distantes só para vê-la. Estes, por sua vez, tentam fixar sua imagem, estranhamente sedutora, em todos os seus detalhes anatômicos; e os “flashes” se sucedem, como fogos de artifício eletrônicos. E ela dá o que tem, pois sabe que amanhã estará nas páginas das revistas nacionais e internacionais, vista e admirada pelo mundo inteiro. Isso sem contar o cinema e a televisão. E lá vai ela feericamente luminosa e iluminada no feérico espetáculo. (GONZALEZ, 1984, p. 69) A autora denunciava a persistência do mito da democracia racial em momentos nos quais a mulher negra é fortemente sexualizada e objeto de desejo de todos aqueles que não a enxergam no seu cotidiano. A tal harmonia racial parecia ocorrer em algumas épocas do ano, e o carnaval é uma delas. Outra historiadora é Beatriz Nascimento (1942-1995). Graduada pela UFRJ em 1971, ela foi pesquisadora do Arquivo Nacional e da FGV, além de professora da rede pública. Em 1975, Beatriz Nascimento organizou na UFF a Semana de estudos sobre a contribuição do negro na formação brasileira, antecipando as abordagens que hoje são essenciais para se pensar a história do Brasil. Sua intelectualidade negra foi influenciada também pelas viagens que fez a Angola e Senegal na década de 1980 – e podemos ver parte dessa reflexão no filme Ôrí (1989). Em suas pesquisas, a professora e pesquisadora colocou homens e mulheres negros como protagonistas e questionou como a negritude tornava-se sinônimo de escravidão e objetificação: As manifestações preconceituosas são tão fortes que, por parte de nossa intelectualidade, dos nossos literatos, dos nossos poetas, da consciência nacional, vamos dizer, somos tratados como se vivêssemos ainda sob o escravismo. A representação que se faz de nós em literatura, por exemplo, é a de criado doméstico, ou, em relação à mulher, a de concubina do período colonial. O aspecto mais importante do desleixo dos estudiosos é que nunca houve tentativas sérias de nos estudar como raça. (NASCIMENTO, 2006, p. 34) Para Beatriz, não era mais possível ver os negros nos mesmos lugares, isto é, o da subalternidade, e tendo vivido apenas um período da história do Brasil: o da escravidão. Ela propunha uma quebra de paradigmas, propondo como a história deveria ser feita: a partir de um outro olhar e de novas questões que colocassem o homem negro e a mulher negra no centro do debate. Beatriz e Lélia mantinham um diálogo e permaneciam atentas ao machismo existente (principalmente dentro do movimento negro) na sociedade. Ambas deixaram um importante legado seguido por outras mulheres negras. Entre elas, vale destacar Sueli Carneiro. Nascida em 1950, ela é filósofa, escritora e ativista, tendo recebido em 2002 o título de doutora honoris causa pela UnB. Carneiro fundou em 1988 o Geledés – Instituto da Mulher Negra, uma organização da sociedade civil para a denúncia e o combate ao racismo, ao machismo e à desigualdade social, além de dar protagonismo às mulheres negras. Para ela, é preciso “enegrecer o feminismo”: Com essas iniciativas, pôde-se engendrar uma agenda específica que combateu, simultaneamente, as desigualdades de gênero e intragênero; afirmamos e visibilizamos uma perspectiva feminista negra que emerge da condição específica do ser mulher, negra e, em geral,pobre; delineamos, por fim, o papel que essa perspectiva tem na luta antirracista no Brasil. (CARNEIRO, 2003, p. 11) Para Carneiro, é urgente haver medidas que tirem a mulher negra do estrato social mais baixo da sociedade. O feminismo de outrora, para ela, não é capaz de responder às demandas de mulheres negras; por isso, a autora defende seu “enegrecimento” para gerar reflexões que atinjam esse grupo social de forma mais específica. Lélia Gonzalez. Beatriz Nascimento. Sueli Carneiro. Essas três mulheres são insuficientes para demonstrar a complexidade de todo o movimento social negro existente no Brasil nas últimas décadas do século XX e do início do XXI. No entanto, a valorização das suas biografias tem gerado uma reflexão importante que provoca novos estudos – entre eles, o da branquitude e dos seus efeitos para a leitura racial da sociedade. Desse modo, refletir sobre Lélia, Beatriz e Sueli é ver as muitas mulheres negras silenciadas e assassinadas, às vezes, apenas por serem mulheres ou negras. O movimento negro no século XXI Veja agora quais foram os avanços, os retrocessos e quais são os desafios para o futuro do movimento negro no século XXI. Falta pouco para atingir seus objetivos. Vamos praticar alguns conceitos? Questão 1 (FGV – Prefeitura de Paulínia/SP – coordenador pedagógico – 2021 – adaptada) As leis nº 10.639/2003 e 11.645/2008 tornaram obrigatória a inclusão da história e cultura afro-brasileira e indígena no currículo oficial da rede de ensino. Analise as afirmativas a seguir a respeito dessas leis: I - Pretendem inverter a narrativa eurocêntrica, pois a cultura brasileira é indígena e africana. II - Constatam que a historiografia sobre o passado brasileiro havia secundarizado a importância da cultura indígena. III - Valorizam o estudo do passado dos africanos como aspecto fundamental para a compreensão da história brasileira. Está correto o que se afirma em: A I. B II. C I e II. D II e III. Parabéns! A alternativa D está correta. %0A%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%3Cp%20class%3D'c- paragraph'%3EA%20Lei%20n%C2%BA%2010.639%2C%20a%20qual%2C%20por%20sua%20vez%2C%20%C3%A9%20uma%20altera%C3%A7%C3%A3o% brasileira%20e%20ind%C3%ADgena.%20Essa%20lei%20%C3%A9%20resultado%20de%20uma%20a%C3%A7%C3%A3o%20pol%C3%ADtica%20hist%C3 Questão 2 (Fundação Carlos Chagas - educador social - nível superior – 2018) O termo “ação afirmativa” ficou diretamente relacionado ao sistema de cotas para a população negra e indígena para acesso às universidades. Sobre essa temática, é correto afirmar que Parabéns! A alternativa E está correta. %0A%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20%3Cp%20class%3D'c- paragraph'%3EAs%20a%C3%A7%C3%B5es%20afirmativas%20tiveram%20como%20resultado%20pr%C3%A1ticas%20para%20o%20reconhecimento%2 Considerações �nais Vimos neste conteúdo que os movimentos sociais foram responsáveis por muitas mudanças políticas. A primeira delas é a própria abolição da escravidão, que ocorreu por meio de uma lei clamada pelo movimento abolicionista (hoje em dia, visto como movimento social). As ações de homens e mulheres negros que vieram depois serviram para suprir a falta de políticas públicas específicas para uma população recém- saída da escravidão. Afinal, desde sempre se notou a urgência de uma nova educação, que não só abrangesse a todos, como também incluísse todos e todas como sujeitos da história do Brasil. Nas décadas seguintes, percebemos as manifestações daqueles que, cientes do seu papel político, não se calaram diante da permanência da discriminação racial e da reprodução de alguns mitos, como o de que não havia racismo, de que todos eram irmãos de raça e de que o Brasil vivia uma democracia racial. Derrubar tais mitos é fundamental – e o movimento negro tem isso como pauta até hoje. E I e III. A as ações afirmativas potencializam a diversidade, fortalecendo que todos possam ter o mesmo mérito educacional. B a delegacia da mulher e do idoso não podem ser consideradas ações afirmativas. C as ações afirmativas deveriam se concentrar na inclusão e no acesso à educação de pessoas em situações de desigualdades. D as ações afirmativas podem ser adotadas de modo espontâneo no combate às desigualdades. E as ações afirmativas abrem portas para a universalização e a participação de todos os segmentos da população. Na segunda metade do século XX (em grande parte vivido em um período de ditadura), o movimento negro se reconstruiu e se fortaleceu, principalmente na sua diversidade de papéis. Apesar da forte repressão às suas manifestações, a cultura negra é um ponto de apoio para essas ações. O processo da redemocratização no Brasil, com o fim da ditadura militar, a promulgação da Constituição em 1988 e a eleição democrática de novos presidentes, alimentou homens e mulheres na busca por mais direitos sociais e políticos, além de construir medidas mais afirmativas – entre elas, as cotas. Por isso, o Brasil do século XXI é resultado direto da mobilização de homens e mulheres negros insatisfeitos com o papel dado a eles por uma sociedade racista, machista e homofóbica. A tendência é que nos transformemos com o fim das ilusões e, ao encararmos a realidade da desigualdade brasileira, possamos reverter esse quadro nas próximas décadas. Podcast Escute agora uma análise sobre os movimentos negros na história do Brasil. Referências CARNEIRO, S. Mulheres em movimento. Estudos avançados. v. 17. n. 49. 2003. COSTA PINTO, L. DE A. O negro no Rio de Janeiro: relações de raça numa sociedade em mudança. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1952. COSTA, R. C. R. DA; OLIVEIRA, L. F. DE. 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Acesse o YouTube para assistir a quatro vídeos: 25 de julho – feminismo negro contado em primeira pessoa (canal Do Moro Produções); 1976 movimento Black Rio (canal TV da Rua); Cultne – Lélia Gonzalez – Pt 1 (canal Cultne); O outro em branco – reflexo reverso (canal Lab Afrikas). Outra dica é assistir ao documentário Ôrí, de 1989. Basta acessar canal Curta! e digitaro nome do filme no campo de busca da página. Acesse o site do Ipeafro para conhecer seus projetos.