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Antropologia Filosófica Material Teórico Responsável pelo Conteúdo: Prof. Dr. Antonio Auresnedi Minghetti Revisão Textual: Prof. Me. Luciano Vieira Francisco O Surgimento do Antimodernismo • Era da Informática – a Prevalência dos Signos Sob a Fala, no Conhecimento e na Informação; • A Convicção de não Existência da Recompensa Celeste, Tampouco de Sentido para a História, Originando a Prevalência do Presente, Representado pelo Prazer, Consumo e Individualismo; • Estilos de Vida e de Filosofia nos Quais Viceja o Nihilismo, o Nada, Vazio, a Ausência de Valores e de Sentido para a Vida; • O Retorno às Antropologias de Períodos Anteriores – o Homem Racional, Natural, Pessoal, Social; • Tendência de Isolamento do Mundo pelos Indivíduos, que ao se Relacionarem Prioritariamente Através de Equipamentos Eletrônicos, Afastam-se da Realidade do Real e se Voltam para Dentro de Si; • Retorno à Fuga Mundi Estoica, como Tema Recorrente na Filosofia e na Espiritualidade do Pós-Modernismo, como Defesa às Ilusões e Frustrações Causadas pela Vida em Sociedade – Retorno ao Ciclo de Vida e Fenecimento da Natureza; • O Efeito Borboleta – o Fim das Certezas: Tempo, Caos e as Leis da Natureza – o Acaso Determinando as Nossas Vidas. • Problematizar e contextualizar as questões que envolvem a relação entre a história, cultura e crise da Ciência Moderna no uso da tecnologia em sua concepção dominante, enquanto crítica ao paradigma científi co, através da refl exão fi losófi ca sobre a infl uência da tecnologia na vida humana; • Refl etir sobre a relação de causa e efeito diante das nossas possibilidades de escolhas e sobre a responsabilidade pelas nossas decisões, onde a análise de pequenos eventos que mostram como resultante grandes mutações, cujos resultados são absolutamente desconhecidos para o nosso futuro. OBJETIVOS DE APRENDIZADO O Surgimento do Antimodernismo Orientações de estudo Para que o conteúdo desta Disciplina seja bem aproveitado e haja maior aplicabilidade na sua formação acadêmica e atuação profissional, siga algumas recomendações básicas: Assim: Organize seus estudos de maneira que passem a fazer parte da sua rotina. Por exemplo, você poderá determinar um dia e horário fixos como seu “momento do estudo”; Procure se alimentar e se hidratar quando for estudar; lembre-se de que uma alimentação saudável pode proporcionar melhor aproveitamento do estudo; No material de cada Unidade, há leituras indicadas e, entre elas, artigos científicos, livros, vídeos e sites para aprofundar os conhecimentos adquiridos ao longo da Unidade. Além disso, você tam- bém encontrará sugestões de conteúdo extra no item Material Complementar, que ampliarão sua interpretação e auxiliarão no pleno entendimento dos temas abordados; Após o contato com o conteúdo proposto, participe dos debates mediados em fóruns de discus- são, pois irão auxiliar a verificar o quanto você absorveu de conhecimento, além de propiciar o contato com seus colegas e tutores, o que se apresenta como rico espaço de troca de ideias e de aprendizagem. Organize seus estudos de maneira que passem a fazer parte Mantenha o foco! Evite se distrair com as redes sociais. Mantenha o foco! Evite se distrair com as redes sociais. Determine um horário fixo para estudar. Aproveite as indicações de Material Complementar. Procure se alimentar e se hidratar quando for estudar; lembre-se de que uma Não se esqueça de se alimentar e de se manter hidratado. Aproveite as Conserve seu material e local de estudos sempre organizados. Procure manter contato com seus colegas e tutores para trocar ideias! Isso amplia a aprendizagem. Seja original! Nunca plagie trabalhos. UNIDADE O Surgimento do Antimodernismo Era da Informática – a Prevalência dos Signos Sob a Fala, no Conhecimento e na Informação Georg Gusdorf, em A Fala, indica uma das passagens do entretien que segue ao Rêve de d’Alembert, de Denis Diderot (1713-1784), no qual há no jardim do rei, den- tro de uma jaula de vidro, um orangotango que se posta com o aspecto de um São João a pregar no deserto. O cardeal de Polignac, um dia, admirando o animal que o fitava, aproximou-se e, olhando em seus olhos, ter-lhe-ia dito: “Fala e eu te batizo”. Adiante, Gusdorf admite que um sábio de uma espécie estranha ao nosso planeta que se limitasse a examinar os restos mortais de um homem e de um grande macaco não discerniria provavelmente a diferença capital entre os dois, tantas seriam as semelhanças que os seus organismos apresentam. Certamente não descobriria que no homem existe a função da fala (GUSDORF, 1970, p. 8). Evidentemente, o orangotango não respondeu ao cardeal, e assim não ultrapas- sou o portal da animalidade para a humanidade. Gusdorf utiliza desse conto de Diderot para enfatizar a curta distância entre animal e homem e ainda a superiori- dade deste último, que no exemplo citado julga ter a sua dignidade aumentada por força de um sacramento. “Arbol porphyriana”, disponível em: http://bit.ly/2Gp4rAv Ex pl or A Árvore de Porfírio é uma representação do filósofo grego Porphyrios de Tiro, que ilustra a subordinação de conceitos, a partir do mais geral, que é o de substância, até chegar ao conceito homem, o de menor extensão, mas o de maior compreensão. Ex pl or Do animal à pessoa falta apenas uma palavra articulada; assim, a linguagem é a condição necessária e suficiente para o acesso ao reino dos humanos. O homem é o animal que fala e que se constitui em sociedades deste reino, nas quais as suas relações se apoiam na linguagem. A fala surge como uma função sem órgão próprio e exclusivo que tornasse possível localizá-la em um ponto determinado do organismo. A evolução histórica proporcionou uma pré-determinada disposição anatômica disper- sa no organismo para contribuir para a fala; cordas vocais, pulmões, língua, boca, aparelho auditivo e principalmente estruturas cerebrais. Ora, todos estes componentes existem no macaco, porém este não articula palavras! Se este tem a possibilidade da linguagem, mas não detém esta realidade, configura-se evidentemente que em essência a função da palavra não é de origem orgânica, mas intelectual. (GUSDORF, 1970, p. 8) 8 9 Essa concepção funcional da linguagem abre espaço à linguística do discurso, que em nossos dias é o ramo piloto da pragmática e fenomenologia ao iluminar a origem psicossocial do ato de falar e de ser no mundo, pela qual encontra sua pertinência epistemológica. O animal não conhece o signo, não processa as informações dos significados das palavras, apenas identifica o sinal dado, o que denota uma reação condicional a uma situação reconhecida de forma global, mas não raciocinada e analisada em seus detalhes. Assim, não existindo um órgão específico da fala, admitimos a linguagem como um subproduto da razão do homem levado à consciência de si, que se configu- ra como um desenvolvimento cultural. Ainda, se determinado órgão houvesse, pro- vavelmente falaríamos a mesma língua em nosso planeta, pois nasceríamos falando. A fala transformada em palavra não intervém para facilitar estas relações sociais, ao contrário, as constituem em uma linguagem, num processo discursivo que permanentemente transfigura e dinamiza sua ambiência. A linguagem é o instrumento graças ao qual o homem modela seu pensa- mento, seus sentimentos, suas emoções, seus esforços, sua vontade e seus atos, o instrumento graças ao qual ele influencia e é influenciado, a base última e mais profunda da sociedade humana. (HJELMSLEV, 1975, p. 1) A invenção da linguagem talvez tenha sido a primeira das grandes inven- ções da humanidade, e dessa surgiram os germes de todas as outras. Ao exprimir, o homem cria e intenta dominar, senão as realidades de sua ambiência, ao menos o sentido dessas. Pela fala o homem nomeia as coisas; é um ato de substituição de uma percepção ou uma ideia por um sinal sonoro convencionado que a anuncia, evoca, abriga as coisas no reinoe de onde emergem o individualismo, a fluidez e efemeridade das relações humanas, em especial no projeto político pedagógico da escola, cuja educação e aprendizagem devem ser contínuas e permanentes. Bauman (2001) entende que no hodierno as relações demudam, tornam-se vo- láteis à medida que os seus parâmetros concretos de classificação se dissolvem. Segundo esse sociólogo, ante a individualização do mundo, sob determinados as- pectos, o sujeito se encontra absolutamente livre para idealizar a sua vida a partir de suas próprias forças e possibilidades. A internet torna possíveis coisas que antes eram impossíveis. Potencial- mente, dá a todos acesso cômodo a uma quantidade indeterminada de informações: hoje, temos o mundo na ponta de um dedo. Além disso, a rede permite a qualquer um publicar seu pensamento sem pedir permis- são a ninguém: cada um é editor de si mesmo, algo impensável há poucos anos. A diferença entre a comunidade e a rede é que você pertence à comunidade, mas a rede pertence a você. É possível adicionar e deletar amigos, e controlar as pessoas com quem você se relaciona. Isso faz com que os indivíduos se sintam um pouco melhor, porque a solidão é a gran- de ameaça nesses tempos individualistas. [entrevista de Bauman ao jornal El País, em janeiro de 2016] Para Bauman, essa mutação ocorreu em face da ruptura de determinados para- digmas, que foram pilastras de sustentação da Modernidade sócio-histórica, cons- tituídas de narrativas e ideologias que ilustravam o mundo social moderno, em perspectivas que ao final do século XX e início do XXI não mais se sustentam. Na verdade, para Bauman, não mais existe a Pós-Modernidade, mas sim uma 32 33 combinação de Modernidade com aspectos díspares, de modo que para distinguir as características dessa Modernidade hodierna, Bauman utiliza o termo Moder- nidade Líquida, mais por considerá-la uma nova ideologia, instável tal qual a sua propriedade de fluidez: “A extraordinária mobilidade dos fluidos é o que os associa à ideia de leveza” (BAUMAN, 2001, p. 8). Bauman (2001) contrapõe a sua Modernidade Líquida para aquilo que denomina Modernidade Sólida, o resultado de profundas mutações que se iniciaram com o Renascimento, quando os ideais racionalistas sobrepujaram o pensamento tradicio- nal, afirmando-se como um ponto de ruptura com as formas de organização social do Medioevo. A religião deixou de ser unívoca instância dos preceitos morais, além de mediadora das ações humanas, sendo substituída pela racionalidade das leis civis, momento histórico, ao qual Bauman (2001) confere o predicado de Modernidade Sólida ao lhe admitir ainda determinada fixidez nas relações sociais entre sujeitos e instituições sociais como, por exemplo, o sentimento de nacionalismo. Outra mutação substancial a marcar este período se deu quanto ao progresso embasado no pensamento racional e na Ciência, os quais se fizeram os “moto- res” dos avanços tecnológicos a partir do Renascimento, alterando profundamente o conceito de trabalho, que antes estava fundeado na aprendizagem por imitação, ou na tradição familiar e que naquele momento se estabelecia formalmente em escolas técnicas, em face da complexidade das tarefas laborais implementadas nos equipamentos industriais. A religião e o nacionalismo davam à comunidade um sentimento de pertença, tal que a partir dessas referências o homem construía a sua identidade. A partir das décadas de 1960 e 1970 ocorreu uma mudança radical no mundo, quando começaram a enfraquecer as instituições que forneciam as claves ao indi- víduo construir a sua identidade, tais como as crenças religiosas, a família e escola. Convém, neste ponto, retornar ao estudo e recordar a Revolução Cultural levada a efeito no século XX, com reflexos profundos no modus vivendi da população, onde uma nova e jovem cultura internacional chegou ao clímax em 1968, considerado o ano que não terminou, o qual caracterizou uma revolução cultural mundial. Devido à concorrência dos mercados e ao aumento da competitividade, o in- divíduo deixou de ter certezas. Dessa maneira, foram questionadas todas aquelas verdades que a Modernidade Sólida tinha como imutáveis. Por isso, na Modernidade Líquida esses conceitos estão em permanente adap- tação, pois se adaptam ao meio onde estão inseridos, de forma tal que o indivíduo moldará a sociedade à sua personalidade. Sem referências externas e em uma sociedade onde tudo é permitido – ao me- nos em teoria –, os indivíduos devem construir a própria identidade a partir de sua experiência pessoal, o que gera a angústia e o desconforto já preconizados por Jean-Paul Sartre, mas também a sensação de liberdade, onde o indivíduo tem a responsabilidade total de seus atos. Confira, no seguinte Quadro, um resumo das diferenças entre as modernidades sólida e líquida: 33 UNIDADE O Surgimento do Antimodernismo Quadro 1 Modernidade Sólida Modernidade Líquida Sociedade de consumidores e produtores Sociedade de consumidores Consumo para a sobrevivência Consumo para ser aceito socialmente Instituições sólidas Instituições fluidas Imobilidade geográfica e trabalhista Mobilidade geográfica e flexibilidade trabalhista Durabilidade Obsolescência programada Bauman (2001) faz uso de uma metáfora para ilustrar a liquidez dessa ideolo- gia, que identifica um estado temporário das relações sociais, incapaz de manter a identidade por muito tempo, por se apresentar amoldável e, ao mesmo tempo, conservar os seus atributos originais: O que todas essas características dos fluidos mostram, em linguagem sim- ples, é que os líquidos, diferentemente dos sólidos, não mantêm sua for- ma com facilidade. Os fluidos, por assim dizer, não fixam o espaço nem prendem o tempo. Enquanto os sólidos têm dimensões espaciais claras, mas neutralizam o impacto e, portanto, diminuem a significação do tem- po (resistem efetivamente a seu fluxo ou o tornam irrelevante), os fluidos não se atêm muito a qualquer forma e estão constantemente prontos (e propensos) a mudá-la; assim, para eles, o que conta é o tempo, mais do que o espaço que lhes toca ocupar; espaço que, afinal, preenchem ape- nas “por um momento”. Em certo sentido, os sólidos suprimem o tempo; para os líquidos, ao contrário, o tempo é o que importa. Ao descrever os sólidos, podemos ignorar inteiramente o tempo; ao descrever os fluidos, deixar o tempo de fora seria um grave erro. Descrições de líquidos são fotos instantâneas, que precisam ser datadas. (BAUMAN, 2001, p. 8) A liquidez referenciada por Bauman (2001) diz respeito à incerteza de refe- renciais gerais e socialmente estabelecidos, o que fez o sujeito líquido não ter referências para a sua ação, fazendo com que toda a autoridade decorrente de seus atos seja, em si, o que lhe obriga à responsabilidade de construir ou deliberar nor- mas a serem seguidas. Bauman (2001) observa que o século XX se viu envolvido por um movimento que partiu da sociedade de produção para a sociedade de consumo, do que re- sultou na fragmentação da vida humana e eliminação do conceito de comunidade, preponderando as conexões individualizadas, com prejuízos ao conceito de identi- dade, de pertença a determinado grupo social, a uma nação específica, tal que o propósito da vida e felicidade se viu restrito a tudo que advém de cada pessoa, indi- vidualmente. O conceito de progresso comunitário se reduziu à sobrevivência do indivíduo. São esses padrões, códigos e regras a que podíamos nos conformar, selecionar como pontos estáveis de orientação e pelos quais podíamos nos deixar depois guiar, que estão cada vez mais em falta. Não quer dizer que os nossos contemporâneos 34 35 sejam livres para construir os seus modos de vida a partir do zero e segundo as suas vontades, ou que não sejam mais dependentes da sociedade para obter as plantas e os materiais de construção. Mas quer dizer que: [...] estamos passando de uma Era de grupos de referência predeter- minados, a uma outra de comparação universal, emque o destino dos trabalhos de autoconstrução individual [...] não está dado de antemão, e tende a sofrer numerosas e profundas mudanças antes que alcancem seu único fim genuíno: o fim da vida do indivíduo. (BAUMAN, 2001, p. 15, grifos nossos) A obra Modernidade Líquida reporta uma série de mudanças ocorridas nas últimas décadas, cujo reflexo exerceu ampla influência sobre o atual mundo social, com destaque à globalização e sua consequente transformação na estrutura social moderna, cujo processo de comunicação se viu minimizado em suas distâncias e alterado em suas relações humanas sob diversas formas. Os tempos modernos encontraram os sólidos pré-modernos em estado avança- do de desintegração e um dos motivos mais fortes por trás da urgência em derretê- -los era o desejo de, por uma vez, descobrir ou inventar sólidos duradouros, solidez em que se pudesse confiar e que tornaria o mundo previsível e, portanto, adminis- trável. O derretimento dos sólidos levou à progressiva libertação da economia de seus tradicionais embaraços políticos, éticos e culturais; sedimentou uma nova or- dem, definida principalmente em termos econômicos. Essa nova ordem deveria ser mais “sólida” que as ordens que substituía porque diferentemente dessas era imune a desafios por qualquer ação que não fosse econômica (BAUMAN, 2001, p. 10). Bauman (2001) aponta duas particularidades em sua proposição de uma moder- nidade líquida, que a faz ser nova e, ao mesmo tempo, díspar: A primeira se deve ao esgotamento e decaimento da antiga ilusão moderna, que acreditava na existência de um caminho com um objetivo final, que implicaria um estado de perfeição porvindouro, uma sociedade de ordem perfeita, justa e sem conflitos, de equilíbrio e satisfação de todas as necessidades humanas; de um pre- sumível e completo domínio sobre o futuro, que colocaria fim a toda contingência e ambivalência dos empreendimentos humanos. A segunda mudança é a desoneração dos deveres modernizantes, onde o que era considerada uma tarefa para a razão humana, vista como dotação e propriedade co- letiva da espécie humana, foi individualizada, atribuída aos indivíduos e seus recursos. Ainda que a ideia de aperfeiçoamento pela ação legislativa da sociedade como um todo não tivesse sido completamente abandonada, a ênfase se deu na autoafirmação do indivíduo, assegurado no discurso ético/político do quadro da sociedade justa, de preservação dos direitos humanos, de os indivíduos permanecerem diferentes e, livre- mente, escolherem os seus modos de vida e arquétipos de felicidade. 35 UNIDADE O Surgimento do Antimodernismo Retorno à Fuga Mundi Estoica, como Tema Recorrente na Filosofia e na Espiritualidade do Pós-Modernismo, como Defesa às Ilusões e Frustrações Causadas pela Vida em Sociedade – Retorno ao Ciclo de Vida e Fenecimento da Natureza O estoicismo foi fundado por Zeno, um rico mercador da Cidade de Cítio, no Chipre, mais conhecido por Zenon de Cítio (340-264 a.C.). Após sobreviver a um naufrágio no qual submergiu tudo o que possuía, Zenon foi para Atenas, onde teve contato e absorveu parte da filosofia de Sócrates, Platão, Aristóteles e de seus se- guidores. Ao retornar a Cítio, passou a uma vida de despojamento, quando então fundou a sua própria Escola Filosófica e a primeira estoica que rejeitava a metafísica e todo tipo de transcendência, pregando como filosofia a arte de bem viver. O vocábulo estoicismo tem a sua raiz no termo grego stoá poikílê, cujo signi- ficado é pórtico multicolorido, provavelmente porque Zenon de Cítio lecionava nos pórticos de mármore de Atenas, de onde se originou a filosofia do pórtico (ULLMANN, 2008), que se divide em três fases de estoicismo: • Primitivo, com os seus três principais representantes: Zenon, Cleantes e Crisipo; • Médio, com Panécio e Posidônio; • Romano, com Sêneca, Musônio Rufo, Epicteto e Marco Aurélio. Os primeiros estoicos tinham uma visão de mundo particular: criaram uma filo- sofia que oferecia uma ideia unificada do mundo e do lugar que o homem neste ocupa, concentrando a sua filosofia, basicamente, em três partes: ética, lógica e física, as quais primavam pelo conceito de vida em harmonia com a natureza, o que por consequência significava viver em harmonia consigo, com a humanidade e o Universo: A filosofia da natureza deve começar pela análise daquilo que representa o dado fundamental da consciência do ser humano: ser ou estar-no-mun- do. Com efeito, o homem não é um ser solitário nem pode refugiar-se no solipsismo, porquanto vive no mundo com outros e lhe é parte integran- te, pois não é só espírito, mas também matéria, não somente pensante, mas igualmente corpo vivente e sensível. Ele tem algo em comum com o reino vegetal e animal, porém distingue-se deles por sua dimensão es- piritual. Por consequência, uma visão integral do ser humano não pode prescindir de uma filosofia do mundo em que está situado e do qual é par- ticipante. Como eu, ele vive no mundo com os outros em íntima relação 36 37 e recíproco influxo que os estoicos denominaram sympátheia tôn hólôn. Foi Posidônio quem observou atentamente a interconexão de todas as coisas e a enfatizou. Atribui-se a Heráclito [...] a ideia da “simpatia” (sýn + páschein) entre todas as coisas. A filosofia da natureza ou do mundo constitui a fase inicial da reflexão filosófica. Por isso, Aristóteles chama os primeiros filósofos de physikoí. Na segunda fase, voltam-se os pensa- dores à mente, à interioridade, sem, contudo, esquecer o mundo circun- dante. Aliás, todos os grandes sistemas antigos, medievais, modernos e contemporâneos sempre incluem em seus tratados filosóficos a natureza como parte essencial, a par da Antropologia Filosófica e da Filosofia da Religião. (ULLMANN, 2008, p. 6) O engano à vida proporcionou a fuga mundi estoica, a busca pela vida em co- munhão com a natureza. A ética estoica pregava a consciência da efemeridade da vida, onde só existe a permanência do Universo governado pela razão, ou a per- manência do logos presente na natureza, um princípio da providência divina que permeava tudo, atualmente conhecida como a pronoia, que implicava em especial viver com virtude; assim, estar harmonizado com esse princípio significaria estar harmonizado com a própria divindade: O Deus dos estoicos não vem do Olimpo, nem é um Dionísio; é um Deus que vive em sociedade com os homens e com os seres racionais, e que dispõe todas as coisas do Universo em favor deles; sua potência penetra todas as coisas e, à sua providência, não escapa nenhum detalhe, nem o menor que seja. Sua relação com o homem e com o Universo é concebida de uma maneira inteiramente nova; ele não é mais o solitário estranho ao mundo, que seduz com sua beleza; ele é o próprio autor do mundo, que foi por ele concebido em seu pensamento. (BRÉHIER, 2006, contracapa) O vocábulo pronoia surgiu em oposição à perturbação mais conhecida como paranoia, que identifica ideias insensatas que pregam a falsa convicção de que o Universo conspira para prejudicar os homens, em um conluio universal de um poder superior como, por exemplo, o demônio. Na pronoia ocorre uma constru- ção similar, mas com uma interpretação distinta: os poderes superiores conspi- ram para que tudo ocorra imperativamente da melhor forma possível. Para Ullmann (2008), o logos1 perpassa tudo, por isso o mundo é animado. Em outras palavras, nada sem vida e razão pode gerar um ser vivo e seres racionais; ora, o mundo gera seres vivos e racionais; logo, o mundo é vivo e possui razão. Segundo Ullmann (2008), ao lado da elevada concepção moral, os estoicos cultivavam deferências à natureza e ao seu aspecto etiológico, ramo do conhecimento cujo objeto é a pesquisa e determinação das causas e origens de certos fenômenos, que para os estoicos envolviam, principalmente: 1 Logos é um conceito filosófico traduzido como razão e, a capacidade de racionalização individual ou como um princípio cósmico da Ordem e da Beleza. 37 UNIDADE OSurgimento do Antimodernismo • O tempo é incorpóreo e é o intervalo do movimento dos corpos; nisso coin- cidem com a definição de Aristóteles. O passado e futuro são infinitos, o pre- sente é limitado; • Os terremotos nada mais são do que doenças do globo terrestre; • O Cosmos tem figura esferoidal, pois é a mais adequada ao movimento, fora do qual há o vazio ilimitado que, por certo, é incorpóreo e, por isso, capaz de receber corpos; trata-se da definição de espaço, engendrada pelo Estagirita – spatium est capacitas recipiendi corpora; • O relâmpago é inflamação de nuvens que se entrechocam; trovão é o ruído em consequência da colisão; • Granizo é nuvem gelada desintegrada pelo vento; • O Cosmos é um continuum, caracterizado por uma singular sympátheia tôn hólôn. Significa que tudo está interligado por uma maravilhosa lei de afinidade e com recíproco nexo de causalidade; • A Terra é um corpo minúsculo, que ocupa o centro do Universo, o que signifi- ca proclamar o geocentrismo. Para os estoicos, todos os homens estariam aptos à virtude porque seriam livres, nasceram livres e dado que nenhum seria naturalmente escravo, pois o homem sábio é essencialmente livre, soçobrando apenas ao pueril se fazer escravo. Para Zenon, os homens alcançariam a plena felicidade ao renunciarem as paixões, con- trariedades e aos ascos, o que implicava viver na apatia e se conduzir pelo destino, nada temendo e tampouco ansiando. Zenon ainda entendia que o homem seria um animal ligado a uma comunidade, que se abre a todos os seus afiliados, tal a considerá-los sem quaisquer distinções, quer seja por títulos de nobreza, sangue ou referências outras, que indicassem qualquer superioridade de uns sobre os outros. Quanto ao conhecimento, à semelhança do que bem mais tarde defendeu Im- manuel Kant (1724-1804), Zenon entendia que a base dos nossos saberes surge das sensações que os objetos imprimem em nós, uma representação do objeto, que é transportada à nossa alma, o que implica não termos ideias inatas – os objetos é que imprimem em nós as sensações. Ao consentirmos essa represen- tação, apreendemos intelectualmente a ideia desse objeto. Para os estoicos, tudo faz parte de um grande organismo vivente, semelhante ao corpo humano, tal que qualquer alteração em um membro será sentida em todos os outros; essa seria a inter-relação recíproca do Cosmos. A Escola Estoica causou profunda influência na civilização greco-romana e, por conseguinte, no pensamento ocidental, com presença no cristianismo, budismo e em conceitos de diversos filósofos modernos, em especial no pensamento de Im- manuel Kant. 38 39 O Efeito Borboleta – o Fim das Certezas: Tempo, Caos e as Leis da Natureza – o Acaso Determinando as Nossas Vidas Para Glenn Packiam (2010), autor do livro Efeito borboleta, um movimento tão débil como um bater de asas de uma borboleta, em algum lugar do Brasil, poderia gerar um tornado nos Estados Unidos? Evidentemente, a afirmação é retórica, mas serve ao seu autor como um convite aos seus leitores, para aderirem a esse princípio de fazer a diferença no mundo e transformá-lo a partir das atitudes mais básicas. O efeito borboleta se presta a diversas situações, que em comum mos- tram o potencial de iniciativas simples, mas que têm o poder de promover grandes mudanças no Planeta. A questão que Packiam nos propõe é fazer a diferença no mundo a partir das atitudes mais básicas, iniciativas simples, porém, carregadas de valores, tal que promovam a transformação social no Planeta. O nome do livro é uma referência ao meteorologista Edward Lorenz que, em 1963, realizou simulações do clima em um grande computador e, ao reproduzir vá- rias vezes a simulação, identificou resultados notadamente diferentes entre si, o que era um indicativo da presença, em seu experimento, de uma propriedade da Física já identificada pelo matemático francês Henri Poincaré, no século XIX, conhecida como sensibilidade às condições iniciais. Lorenz introduziu esse princípio à pes- quisa que realizava sobre a previsão do tempo e concluiu que mínimas alterações existentes no processo produziriam uma reação em cadeia com efeitos de largo alcance. Ao defender as suas conclusões, Lorenz o fez apresentando à plateia uma questão: “O bater de asas de uma borboleta no Brasil poderia provocar um tor- nado no Texas?” Nascia a atualmente conhecida teoria do caos. O desenvolvimento do trabalho de Lorenz, na década de 1960, originou os primeiros estudos daquilo que na teoria do caos posteriormente se denominou atrator estranho, ou seja, a partir de estados iniciais ligeiramente diversos, o sistema de equações diferenciais para um estado flui- do em convecção térmica, resultaria em soluções completamente diferentes entre si. Benoit Mandelbrot, matemático polonês, em 1958 criou uma associação com os laboratórios de investigação da IBM, em Nova Iorque. Mandelbrot estava des- contente com relação à Geometria Clássica, uma vez que ao explorar e resolver diversos problemas, os pontos, as linhas retas, os círculos, entre outros elementos não forneciam resultados adequados para se abarcar a complexidade da natureza. Mais tarde, na década de 1970, cientistas concluíram que a mesma imprevisibili- dade de Lorenz aparecia em diversas outras situações, quando, então, Mandelbrot 39 UNIDADE O Surgimento do Antimodernismo percebeu que as equações de Lorenz eram semelhantes às que tinha encontrado quando desenvolveu a teoria dos fractais, figuras geradas a partir de fórmulas que retratam matematicamente a geometria da natureza, tais como o relevo do solo, ou as ramificações de nossas veias e artérias. A dimensão fractal de um objeto mede o seu grau de irregularidade, a estrutura e o comportamento, por exemplo: • Um ponto possui dimensão zero; • Uma linha reta, dimensão um; • Uma superfície plana, dimensão dois; • Um sólido, dimensão três. Os fractais têm dimensões diferentes e próprias de cada imagem ou som, por exemplo, uma curva irregular tem dimensões entre um e dois, enquanto uma su- perfície irregular tem dimensões entre dois e três. Fractais: Os fractais foram nomeados, ao invés de descobertos. O neologismo fractal surgiu do adjetivo latino fractus, que significa irregular ou quebrado.Ex pl or O fractal não surge de um processo de criação tal como o de um artista plástico, mas como resultado de um processo caótico, o caos matemático, não no sentido da desordem, mas da imprevisibilidade, do incontrolável. A junção do experimento de Lorenz com a matemática de Mandelbrot indica que o caos parece estar na es- sência de tudo, moldando o Universo. Pesquisas recentes revelaram algo ainda mais surpreendente, equações idênticas aparecem em fenômenos caóticos totalmente diferentes, a ponto de o matemático Steven Strogatz, da Universidade Cornell, considerar que pode haver uma estra- nha ordem por trás de toda a imprevisibilidade. Para Glenn Packiam, a ideia é que pequenas alterações no início podem levar a grandes mudanças no final, o que se tornou um tema de debates e discussões, assim como de inspiração para filmes. Assista ao filme Efeito borboleta, disponível em: http://bit.ly/2OgNw9H Ex pl or O paradoxo2 de Janus antecede a obra de Ilya Prigogine, O fim das certezas: tempo, caos e as leis da natureza, um percurso da mudança da perspectiva de visão do mundo, no qual Prigogine realça a necessidade premente de um novo modo de pensar, em que a incerteza, instabilidade, efemeridade e diferença sejam avaliadas enquanto parâmetros válidos, tais como instrumentos da Física e Matemática, como uma hipótese que pode explicar o funcionamento de sistemas complexos e dinâmicos. 2 Paradoxo é uma referência a uma ideia estranha ou oposta ao que é considerado verdadeiro. É uma aparência ou proposição que leva a uma contradição lógica, ou a uma determinada situação que viola o senso comum. Na retórica, é uma figura de pensamento que implica uma contradição. 40 41 Janus, na mitologia romana é o deusdas mudanças e transições, das portas, partidas e chegadas e dos princípios; a sua imagem de duas faces opostas contem- pla, simultaneamente, o dentro e fora, início e fim; como ponto de junção entre o passado e futuro, representa o tempo presente. O autor de As metamorfoses, Públio Ovídio Naso (43 a.C.-17/18 d.C.), denominou Janus de Caos. Analise a letra da música Metamorfose ambulante, de Raul Seixas: Eu prefiro ser Essa metamorfose ambulante... Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo... Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo... Sobre o que é o amor... Sobre que eu nem sei quem sou... Se hoje sou estrela, Amanhã já se apagou... Se hoje eu te odeio, Amanhã lhe tenho amor... Lhe tenho amor... Lhe tenho horror... Lhe faço amor... Eu sou um ator... Jules Henri Poincaré (1854-1912) matemático, físico e filósofo, ainda no final do século XIX, propôs a sua teoria do caos, na qual as certezas nas Ciências Exa- tas seriam relativas ao grau de profundidade da investigação objetiva. A teoria de Poincaré serviu de fundamento para a teoria do russo Ilya Prigogine (1917-2013), Nobel de Química em 1977, em face de sua contribuição e pesquisa no campo da incerteza e especificamente por sua teoria das estruturas dissipativas, das quais afirma “[...] não mais existir situações estáveis ou permanência que nos interessem, mas sim evoluções, crises e instabilidades” (PRIGOGINE, 1979. p. 15). Prigogine se destacou por trabalhos que desenvolveu no campo da termodinâ- mica e de métodos de compreensão de processos químico-físicos irreversíveis. Aqui se destaca a sua contribuição para a criação do que ficou conhecido como comple- xidade e teoria do caos, segundo a qual a aparente desordem de determinados sistemas físico-químicos pode, na verdade, ser fonte de um novo tipo de ordem, possibilitando o surgimento de inéditas estruturas nesses sistemas. Segundo o professor Rodrigo França Carvalho (2014, p. 3), as contribuições do físico-químico Ilya Prigogine serviram, em especial, para uma nova compreensão da história: 41 UNIDADE O Surgimento do Antimodernismo Ao longo de sua carreira científica, Prigogine tornou-se um verdadeiro defensor da existência, na natureza, de um tempo irreversível e dotado de um sentido que vai do passado para o futuro – portanto, assimétrico, ou seja, o futuro não é igual ao passado. Para caracterizar essa unidireciona- lidade, fez uso da expressão – emprestada ao astrofísico britânico Arthur Eddington (1882-1944) – flecha do tempo. Essa percepção temporal da natureza possibilitou a visão de uma nova aliança entre o ser humano e a natureza, identificando uma nova relação entre ambos que se alicerça em um ponto de partida mais complexo e criativo. A Ciência proposta por Prigogine tem como principal meta estabelecer um diálogo dinâmico e aberto entre o ser humano e a natureza que não separe um do outro e que leve em conta a própria criatividade nos elementos mais básicos dos próprios fenômenos naturais. No prólogo do livro O fim das certezas, Prigogine chama a atenção ao deter- minismo e à relação dos homens com o mundo, particularmente com o tempo, questionando: “O futuro é dado ou está em perpétua construção? Seria uma ilusão nossa crença na liberdade? Seria uma verdade a nos separar do mundo?” Assista ao documentário “É sempre agora”, de Sam Harris. Disponível em: http://bit.ly/2Y2Jiae Ex pl or Com relação à liberdade, convém conhecer a definição de Jacqueline Russ, que afirma existir para a liberdade múltiplos sentidos, no que por vezes se confunde com o significado de autonomia, que é o caráter daquele que se dá a si mes- mo e obedece à sua própria. Filosoficamente, a definição de liberdade se enleia com a de autonomia, incidindo em um ato a partir da razão para assumir decisões próprias. Nessa perspectiva, não existe condicionamento à ação, mas um lançar- -se à responsabilidade ética. No dicionário dessa autora encontramos que em Immanuel Kant: “Servir-se da sua própria razão é ser autônomo e, portanto, livre” (RUSS, 1994, p. 23-165). Prigogine (1996) afirma que para Epicuro de Samos (341-271/270 a.C.), filósofo grego do período helenístico, o problema da Ciência, inteligibilidade da natureza e do destino dos homens seria inseparável. Sobre tal correlação, em correspondência a Meneceu, Epicuro (apud PRIGOGINE, 1996, p. 18, grifos nossos) assim escreveu: Quanto ao destino, que alguns consideram o senhor de tudo, o sábio ri-se dele. De fato, mais vale ainda aceitar o mito sobre os deuses do que se sujeitar ao destino dos físicos. Pois o mito nos deixa a esperança de nos conciliarmos com os deuses através das honras que nós lhe rendemos, ao passo que o destino tem um caráter de necessidade inexorável. Para Prigogine (1996), a questão do tempo se apresenta na encruzilhada do problema da existência e do conhecimento, como um fundamento da existência humana, mas também se encontra na física galileana como ponto de partida da Ciência ocidental, mormente quando Einstein afirmou inúmeras vezes que o tempo 42 43 é uma ilusão. O desenvolvimento da Física atual – a ideia de caos – requer revisar a noção de tempo formulada desde Galileu, principalmente a partir das estruturas dissipativas da Física de não equilíbrio, fatores caracterizados por um tempo unidi- recional, o que Prigogine denominou flecha do tempo, ressaltando que tanto na dinâmica clássica quanto na Física Quântica as leis fundamentais exprimem agora possibilidades – e não mais certezas. Como vamos mostrar, podemos conceber hoje o Big Bang como um evento associado a uma instabilidade, o que implica que ele é o ponto de partida de nosso universo, mas não o do tempo. Enquanto o nosso universo tem uma idade, o meio cuja instabilidade produziu este universo não a teria. Nesta concepção, o tempo não tem início e provavelmente não terá fim! (PRIGOGINE, 1996, p. 13) Para Erwin Schrödinger (1887-1961), os filósofos atomistas, em suas explicações sobre a phýsis, incluíram à alma o fundamento eterno de todas as coisas que lhe conferissem unidade e permanência no Universo, e assim inviabilizaram a teoria na base, dando origem a um paradoxo reiterado por Epicuro, que denota um pro- blema ético sem solução aparente: Todo o acontecimento é rigorosamente determinado no início e por isso não conseguimos ver de que forma é que pode abarcar igualmente o comportamento dos seres vivos, incluindo nós próprios, que sabemos ser capazes de escolher em grande medida os movimentos do nosso corpo através da livre decisão da nossa mente. Então se esta mente ou alma for ela própria composta por átomos que se movimentam num mes- mo sentido indigente, parece que deixa de haver espaço para a ética ou para o comportamento moral. Somos obrigados pelas leis da Física a fazer em qualquer momento precisamente aquilo que fazemos; de que vale a pena pensar se está certo ou se está errado? Onde é que há espa- ço para a Lei moral se a Lei natural frustra completamente a Lei moral? (SCHRÖDINGER, 1999, p. 76, grifo nosso) A formulação das leis na natureza, leis enunciadas pela Física só visam descrever a mudança, os movimentos ao longo do tempo, tal como a Lei de Newton, que liga a força à aceleração: Se conhecermos as condições iniciais de um sistema submetido a essa lei, ou seja, seu estado num instante qualquer, podemos calcular todos os estados seguintes, bem como todos os estados precedentes. A Lei de Newton bem justifica, o famoso demônio de Laprace, capaz de obser- var o estado presente do Universo e, dele deduzir toda a evolução futura. (PRIGOGINE, 1996, p. 19, grifos nossos) O demônio de Laplace foi um experimento mental concebido pelo físico Pierre Simon Laplace, cujo objetivo era provar que de posse de todas as variáveis que determinam o estado do Universo em um instante o demônio poderia prever o seu estado no instante seguinte. Ex pl or 43 UNIDADE O Surgimento do Antimodernismo Prigogine (1996) chama a atenção para o fato de que a concepçãopassiva, sub- metida a leis deterministas, é uma especificidade do Ocidente. Na China e no Ja- pão, natureza significa o que existe por si. Para Prigogine (1996), um sistema pode estar em equilíbrio, perto do equilíbrio, ou distante do equilíbrio. Porém, um sistema em equilíbrio não gera nova informação, apenas processa a já existente. Um sistema perto do equilíbrio gera pouquíssima informação, apenas adapta-se – e muito lentamente. Já um sistema distante do equilíbrio gera muita informação, não somente se adapta, como evolui rapidamente para convulsões – essa é a teoria do caos, sistemas que não podem evoluir se em estado de equilíbrio. Da imprevisibilidade das leis da natureza em face do efeito borboleta, com o fim das certezas às metamorfoses geradas no tempo e a elasticidade deste, onde paira a necessidade do caos para o pleno desenvolvimento da humanidade, restou o acaso a determinar a vida dos homens. Nesse sentido, merece grande destaque a obra O acaso determinando nossas vidas, de Leonard Mlodinow, doutor em Física pela Universidade da Califórnia, Berkeley, professor no Instituto de Tecnologia da Califórnia e pesquisador no Ins- tituto Max Planck, em Munique, Alemanha. Mlodinow escreveu também para a televisão, colaborando em séries famosas, tais como MacGyver e Jornada nas Estrelas. É autor dos livros O grande projeto e Uma nova história do tempo – ambos com Stephen Hawking – e os best-sellers Subliminar e O andar do bêbado – este aqui reportado. Para Mlodinow (2009), não estamos preparados para lidar com o aleatório, do que resulta não nos apercebermos o quanto o acaso interfere em nossas vidas. Em um tom irreverente, citando exemplos e pesquisas presentes em todos os âmbitos da vida, Mlodinow (2009) apresenta as ferramentas necessárias para identificar os indícios do acaso; o questionamento de algumas certezas sobre o funcionamento do mundo, levando o seu leitor ao entendimento de que muitas coisas são tão previsíveis quanto o próximo passo de um bêbado depois de uma noitada. O título O andar do bêbado vem de uma analogia que descreve o mo- vimento aleatório, como os trajetos seguidos por moléculas ao flutuarem pelo espaço, chocando-se incessantemente com suas moléculas irmãs. Isso pode servir como uma metáfora para a nossa vida, nosso caminho da faculdade para a carreira profissional, da vida de solteiro para a fami- liar, do primeiro ao último buraco de um campo de golfe. A surpresa é que também podemos empregar as ferramentas usadas na compreensão do andar do bêbado para entendermos os acontecimentos da vida diária. O objetivo deste livro é ilustrar o papel do acaso no mundo que nos cerca e mostrar de que modo podemos reconhecer sua atuação nas questões humanas. (MLODINOW, 2009, p. 9) Mlodinow (2009) inicia a sua obra abordando a habilidade humana em reconhe- cer padrões, a denominada heurística, a arte de descobrir e inventar, caracte- rística típica dos seres humanos, mormente quando diante de questões complexas. A heurística pode ser considerada uma técnica de pensamento e comportamento 44 45 automático nos humanos, os quais agem e reagem intuitiva e inconscientemente para obter respostas possíveis para os seus problemas, tal como se fosse uma senda mental que induzisse respostas instantâneas às questões complexas, mesmo que se saiba a priori serem imprecisas: “O ônus é que, às vezes, também percebemos padrões que, na realidade, não têm nenhum significado. Nossa mente funciona dessa maneira – assimilando dados, preenchendo lacunas e buscando padrões” (MLODINOW, 2009, p. 193). Para Mlodinow (2009), buscar padrões e lhes atribuir significados faz parte da natureza humana e, para isso, a heurística é muito útil, mas assim como o modo de processar informações visuais pode levar às ilusões óticas, a heurística também pode levar a erros sistemáticos e, o que é pior, temos o costume de avaliar equivocadamente o papel do acaso em nossas vidas, tomando decisões que a posteriori se fazem comprovadamente prejudiciais aos nossos interesses: “Quando estamos diante de uma ilusão – ou em qualquer momento em que tenhamos uma nova ideia, em vez de tentarmos provar que nossas ideias estão erradas, geralmen- te tentamos provar que estão corretas” (MLODINOW, 2009, p. 201, grifo nosso). Um bom exemplo de acaso se deu com o best-seller mundial de Richard Bach, autor de Fernão Capelo Gaivota, lançado em 1970 e que o seu autor jamais poderia imaginar que se tornaria um escritor de 40 milhões de cópias vendidas em todo o mundo. A obra conta a história da gaivota que cita a importância dos sonhos e da persistência, tal como procedeu o próprio Richard Bach, quem “penou” por três anos até encontrar uma editora que aceitasse publicar essa obra, pois fora rejeitada antes por 26 editoras. 45 UNIDADE O Surgimento do Antimodernismo Material Complementar Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade: Vídeos Sartre e o Existencialismo – Franklin Leopoldo e Silva https://youtu.be/B7PX0-ER4go O Final Trágico do Malabarista Karl Wallenda https://youtu.be/HZ3cvRD1V1o Documentário Milênio – entrevista com Leonard Mlodinow https://glo.bo/2XZV2Kt Leitura O Mito de Sísifo, de Albert Camus http://bit.ly/2Y205u6 46 47 Referências ANDRADE, A. de. As Duas Faces do Tempo. Ed. USP, São Paulo: 1971. ANDRADE, A. C. Ricœur e a formação do sujeito. EDIPUC, Porto Alegre: 2000. ARENDT, H. A Condição Humana. Trad. de Roberto Raposo. Ed. Forense Uni- versitária. São Paulo: 2001. ________. Entre o Passado e o Futuro. 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Portanto, nomear pela fala é cha- mar algo à existência, tirá-lo do nada e dar-lhe luz na vida vivida; esta denominação fundamenta o direito à sua existência no mundo real. Adão era o onomatólogo da obra divina, ao qual cabia dar os nomes a todas as coisas advindas do Creador, e qualquer que fosse o nome dado por Ele, seria o nome da creatura (AMATI-MEHLER, 2005, p. 35) Creador: com e, do latim credere, significando crear a partir do nada, o que diferencia do Criador em português, onde o criar tem a conotação de transformação, criar algo a partir de outra substância (ROHDEN, 2007). Ex pl or Todo pensamento se constitui na medida em que é formulado e como a lingua- gem é a expressão mais direta do pensamento, poder-se-ia dizer que este se forma geralmente nas palavras. Através da fala o homem acessa o portal do mundo e este lhe vem ao pensamento, para depois desse sair em forma de palavras. Situar-se e traduzir esse mundo é estar em harmonia com a rede de palavras que coloca as coi- sas em seu lugar, dentro de um determinado contexto. Dessa forma, sendo a língua 9 UNIDADE O Surgimento do Antimodernismo um complexo orgânico desenvolvido historicamente, comportando-se como um organismo vivente, realiza em cada época uma construção coletiva e inconsciente, que reporta a história de um determinado grupo social. Uma língua é para os seus usuários um sistema que permite exprimir um nú- mero indefinido de pensamentos com um número finito de sinais, os quais recom- põem o que se pode querer dizer, comunicando as designações das coisas, ou como afirmou Gusdorf (loc cit), a linguagem é a condição necessária e suficiente para o acesso à pátria humana, ou seja, para o homem se tornar um cidadão. Pela linguagem o homem estabelece nexos associativos entre sons e significado, torna prenhe o espaço e tempo vital, dando sentido a si dentro de um mundo co- dificado e decodificado permanentemente pelas palavras suscitadas por uma fala comum. Assim, a linguagem seria uma essência que representaria a parte pensante do ser humano, distinta de outras representações, embora também seja verdade que este processo está condenado a sofrer incontáveis e imprevistas extensões, pelas imposições do tempo, face à acumulação de costumes e modas linguísticas. A língua dispõe de certo número de sinais fundamentais, arbitrariamente li- gados a significações-chaves; ela é capaz de recompor qualquer significação nova a partir daquelas, consequentemente de dizê-las na mesma linguagem, e finalmente se exprime porque reconduz todas as nossas experiências ao sistema de correspondências iniciais entre tal sinal e tal significação de que nos apoderamos aprendendo a língua, e que é, ele, absolutamente claro, porque nenhum pensamento se arrasta nas palavras, nenhuma palavra no puro pensamento de alguma coisa. (MERLEAU-PONTY, 1974, p. 21) A fala não é nem o ser nem a ausência deste, mas um comprometimento entre a designação das coisas e as pessoas que a designam, não existe a priori da ini- ciativa pessoal que a coloca em movimento. A linguagem não está submetida ao dicionário, mas sim é este que se dá à tarefa de avaliar a palavra e catalogar o seu significado, a partir da realidade humana vivida, encontrando na fala um modo de afirmação de si e de seu estabelecimento no mundo; a função das palavras não é nomear tudo o que se vê e o que se ouve, mas salientar os padrões recorrentes da experiência humana. Qualquer empenho em compreender como as abelhas se comunicam, implica apreender algo sobre a natureza íntima das abelhas, a forma pela qual se organizam socialmente em seu ambiente físico. George Steiner (2005, p. 302) afirma: “[...] somos capazes de dizer fantastica- mente mais do que precisaríamos para os fins de nossa sobrevivência física [...] e significamos infinitamente mais do que dizemos [...]”. A operação da fala cria para os homens mais que o presente, cria uma natureza consentânea, conforme escreve Santo Agostinho (2006), apta a memorizar o passado, criar uma expectativa do futuro e vivenciar o presente do presente. Pensar na fala enquanto uma linguagem sonora ou escrita que retrata um pen- samento significa traduzir, a priori, a própria intralinguagem. 10 11 Há que se considerar que não é fácil discernir na própria linguagem o es- tatuto da língua; ela se realiza na fala; em si mesma, é uma abstração do sistema institucionalizado dos esquemas e normas que presidem ao uso. Provavelmente ela oferece um semblante de objeto ao indivíduo para o qual é exterior, estrangeira, e que a apreende: ele a encontra nos léxicos e gramáticas; mas esses livros são fala fixada, eles falam a respeito da língua, eles não são a língua. (DUFRENNE, 2004, p. 110) Todo o texto até aqui supracitado foi retirado do artigo intitulado Da desconstrução ao mito de Ninive – uma teoria de tradução literária (da homogrossia de Babel à hetrogrossia em Derrida) (MINGHETTI, 1996). A discussão sobre a origem, naturalidade e o desenvolvimento da linguagem falada foi retratada no filme “A guerra do fogo” (1981). Assista ao filme “En busca del fuego”, de 1981, dirigido por Jean-Jacques Annaud, com Everett McGill, Rae Dawn Chong, Ron Perlman, Nameer El Kadi. Disponível em: https://youtu.be/UfNtQQpT0Bc Ex pl or Figura 1 Fonte: Reprodução A guerra do fogo, de Jean-Jacques Annaud, é uma interessante especulação a respeito do desenvolvimento da fala e ajuda a refletir sobre a questão do processo de comunicação entre os humanos. O filme retrata um período da Pré-História e grupos distintos de hominídeos em diferentes estágios evolucionais, dois dos quais logo no início do filme entram em conflito pela posse do fogo; um grupo mais evo- luído com habilidade de conservar o fogo obtido de acidentes da natureza e outro que pouco se diferencia dos primatas. 11 UNIDADE O Surgimento do Antimodernismo Após a batalha entre esses dois grupos, o fogo dos mais evoluídos se apaga e dado não saberem como criá-lo, somente reproduzi-lo a partir de fenômenos da natureza, três dos quais saem em missão para reencontrá-lo. Nessa jornada, conhe- cem uma mulher da espécie Homo Sapiens e com a qual aprendem não apenas a produzir o seu próprio fogo, mas coisas outras pertinentes a um estágio de desen- volvimento mais avançado, formas diferentes de comunicação, expressando sons, risos, além de construir casas, pintura corporal, e principalmente a confeccionar e usar novas ferramentas. A utilização, aqui, do filme A guerra do fogo se estabelece sob a perspectiva das teorias evolutivas da linguagem, nas quais existe a prevalência dos signos sob a fala, uma vez que esta seja um subproduto do desenvolvimento humano, como afiançado no início, talvez, uma de suas primeiras invenções, fruto de seu alargamento cultural. O enredo do filme mostra os personagens de cada grupo se comunicando de formas distintas, onde a intenção primeira foi mostrar que, embora a tribo do fogo não tives- se uma linguagem articulada, possuíam um processo de comunicação gestual. A interpretação desse modo de comunicação, principalmente entre os seres hu- manos, na qual a linguagem corporal se faz uma forma de comunicação não verbal, é corroborada por Pierre Weil e Roland Tompakow (2015), autores da obra O corpo fala: a linguagem silenciosa da comunicação não verbal. A comunicabilidade se dá, principalmente, por meio de gestos, expressões faciais, movimentos dos olhos, na proximidade entre locutor e interlocutor etc. Weil e Tompakow (2015) buscam deparar a comu- nicação não verbal do corpo humano, a partir dos princípios subjacentes que regem e conduzem o corpo e fazem surgir expressões, gestos e atos corporais, a expressar sentimentos, concepções, via de regra, sin- gulares a determinada cultura. Os primeiros estudos científicos sobre linguagem corporal foram realizados por Charles Darwin (2009) e publicadas em seu livro A expressão das emoções em homens e animais, no qual Darwin defende que os mamíferosdemonstram as suas emoções atra- vés de expressões faciais, tais como olhares, gestos e outras sinalizações. Para Darwin (2009), a linguagem corporal foi uma das primeiras formas de comu- nicação humana e, ainda hoje, constitui-se de forte e expressiva comunicabilidade, sendo uma das mais intensas e expressivas; utilizada desde há milhões de anos, esse sistema de comunicação se vincula, mormente, ao mesencéfalo do sistema límbico – estrutura do sistema nervoso central, mais especificamente do tronco cerebral –, que seria a segunda estrutura mais primitiva do nosso cérebro. Figura 2 Fonte : Divulgação 12 13 A linguagem corporal é compatível com aquilo que Jean-Jacques Rousseau (2010) afirmou em seu Ensaio sobre a origem das línguas, a primeira manifes- tação de linguagem no homem, a expressão de suas paixões, tais como a dor e o prazer, diferenciando os homens dos animais; longe de ser tão somente expressão do pensamento humano, pode-se considerá-la sob duas formas: uma primeira en- volvendo símbolos, signos e gesticulações e uma segunda calcada efetivamente na emissão de distintos sons. Acenos e sons também são encontrados em animais, nos quais surgem de uma consignação natural, pois a emissão de sons dentro de cada espécie específica, visivelmente, quase não se altera, enquanto que os seres huma- nos, em seu desenvolvimento cultural, criaram o que Rousseau (2010) denominou linguagem de convenção, composta por gestos e palavras, o que proporciona a dinâmica no tempo de cada língua em particular, pelo simples fato de não estar balizada por uma predeterminação natural. O mundo cultural dos símbolos, atualmente, faz parte de duas disciplinas: Se- miologia e Semiótica. Os gregos foram pioneiros na percepção da diferença entre semeion – natureza – e symbolon – cultura –, no que originou duas elocuções distintas, a onomasiológica – nome, objeto – e semasiológica – palavra, concei- to: Semiologia se refere a sinais provenientes da natureza, então composta por significantes e significados; Semiótica está relacionada às relações abstratas de significação, acrescidas de atributos imaginários do nosso cérebro, dos quais compõem o mundo cultural dos símbolos. Em ambas, Semiologia e Semiótica, está implícita a realidade primária da linguagem, mental ou proferida, resultante da capacidade humana intelectual, em sua particular cultura. O vocábulo grego signum, em latim passou a abranger tanto o que em portu- guês conhecemos por símbolos, quanto aquilo que interpretamos como signos; tinha um vasto significado: marca, sinal, efígie, imagem, insígnia, vestígio, pegada, selo, senha etc., no que abrangia as inúmeras classes e subclasses, então postuladas por equevos de uma disciplina específica, que atualmente conhecemos por Semió- tica. Entre os derivados de sua raiz estão os verbos latinos signo, signare – marcar, selar, assinalar –; assigno, assignare – assinar –; consigno, consignare – consignar –; designo, designare – designar –; persigno, persignare – tomar nota de, registrar –; sigillo, sigillare – selar –; significo, significare – dar a entender por sinais, signi- ficar –; e ainda os substantivos, adjetivos e advérbios correlatos. Charles Sanders Peirce (1838-1914), a partir de representações simbólicas, am- pliou a interpretação grega para um sistema de representação triádica, a envolver signo-objeto-pessoa, a partir de atributos pragmáticos de sinais expressivos, tanto da realidade natural, quanto da realidade humana, tais como propriedades da dis- ciplina de Semiótica, a qual não pretende ser idealista, tampouco realista, ultrapas- sando essa predicação ao se referir a um mundo peculiar de características virtuais, contudo, não irreais. 13 UNIDADE O Surgimento do Antimodernismo A Era da Informática tem como a sua característica principal a prevalência dos sig- nos sob a fala, no estabelecimento do conhecimento e da informação, regulamentados pela Norma S51 da International Society of Automation (ISA) – antiga Instrumenta- tion Society of America –, a qual estabelece os símbolos gráficos para identificação de instrumentos e dos sistemas de instrumentação utilizados para medição e controle, apresentando um sistema de designação que inclui código de identificação. Nesse âmbito, merece destaque a Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC), área que utiliza ferramentas tecnológicas com o objetivo de facilitar a comunicação e o alcance de melhor aprendizagem, então derivada de melhor comunicação; assim, a educação é uma das áreas que mais se beneficia com a implementação das TIC, além de revolucionar processos e pesquisas científicas. A Convicção de não Existência da Recompensa Celeste, Tampouco de Sentido para a História, Originando a Prevalência do Presente, Representado pelo Prazer, Consumo e Individualismo O existencialismo foi o nome dado a uma escola de filósofos dos séculos XIX e XX, os quais, não obstante divergirem em termos doutrinários, eram partícipes da ideia de que o pensamento filosófico teve o seu início nas ações do sujeito contemplativo, a partir de seus sentimentos e de sua vida enquanto ser humano individual e determinado por uma atitude existencial, que nesse evoca a presença de uma sensação de insensa- tez, ansiedade e conflito, ante um mundo visivelmente sem sentido e absurdo. Os filósofos existencialistas deparavam as filosofias acadêmicas e sistematizadas como absor- tas e distantes da concreticidade da experiência humana. Entre os defensores do exis- tencialismo surgiram Sören Kierkegaard (1813-1855); Jean-Paul Sartre (1905-1980); Friedrich Nietzsche (1844-1900); e, sob alguns aspectos, Martin Heidegger (1889-1976). Essa tendência filosófica se acentuou na Europa entre as duas grandes guerras mundiais (1918 e 1939) e se caracterizou por centrar a sua crítica na existência, entendida não como fática, ou do fato de ser, mas como uma realidade mundana singular. O existencialismo é, portanto, um conceito filosófico centrado na análise da existência e dos seres humanos no mundo, buscando encontrar o sen- tido da vida através da liberdade incondicional, da livre escolha e consequente responsabilidade pessoal. Para os existencialistas, os seres humanos primeira- mente existem e depois cada indivíduo altera a sua vida em face das circunstâncias que se lhe apresentam, no que também alteram as suas essências, conforme a definição do Tratado de Theodoricvs Teutonicvs de Vriberg (1250?-1320) (2009). 14 15 Para Vriberg (1300), o actus essendi, a essência seria aquilo mesmo que dá a existência, o ato de ser; não o puro ato de ser pelo qual se compõe com uma essência, mas antes o ato de ser uma essência, ou por outra via o que faz com que uma coisa seja a sua essência e o ser não seria, senão, a essência seja do que fosse. Para Vriberg ser e essência não se distinguem entre si realmente, apenas segundo a noção e forma como são denotados. Ex pl or O existencialismo ateu começou a ser reconhecido após a publicação, em 1943, de ĹÊtre et le néant – essai d´ontologie phénoménologique – O ser e o nada –, de Jean-Paul Sartre (1905-1980) (2002), principal representante do exis- tencialismo ateu, que mais tarde aludiu explicitamente a isso em L’existentialisme est un humanisme – O existencialismo é um humanismo –; em 1946, Simone de Beauvoir (1908-1986), companheira de Sartre, filósofa, escritora, professora e feminista francesa, defensora da liberdade feminina, enveredou pela via do existen- cialismo; afirmava: “Não se nasce mulher: torna-se”. Sartre revolucionou a compreensão da visão do existencialismo a respeito do ho- mem, ao não aceitar a sua concepção a partir de uma criação divina; entendeu que, ao contrário das coisas outras e de diversos animais, no homem, a existência precederia a essência: [...] o homem primeiramente existe, se descobre, surge no mundo; e só depois se define. O homem, tal como o concebe o existencialista, se não é definível, porque primeiramente ele não é nada. Só depois seráalgo tal como se conceber depois sua existência, na forma como ele se deseja após este impulso para a existência; o homem não é mais que aquilo que ele faz de si. (SARTRE, 1978, p. 216) Sartre rejeita que qualquer tipo de noção que coloque o homem preso a uma natureza humana ou a um deus que o cria. O homem faz parte da espécie huma- na, mas é a sua liberdade que o afasta dessa espécie; que ultrapassa o humano em direção à humanidade. Para Sartre o homem é aquilo que faz de si próprio. O que Sartre faz é transformar esse subjetivismo em ética, à medida que o se construir constitui o espaço da dignidade. A liberdade não é algo levianamente construído, senão que existe uma responsabilidade absoluta pelo que resulta. Para Sartre, Deus não existe, portanto, não existe uma natureza humana, dado que não exista um Deus para concebê-la; a única natureza que se pode admitir como pré-existente seria a biológica, que permite a sobrevivência e todo o restante da for- mação humana procede da construção advinda do mundo exterior, a que o homem se submete através de sua liberdade. Portanto, o homem está condenado por estar livre em um mundo que condena os seres humanos à liberdade e dado que a existência preceda à essência, o homem é o único responsável por aquilo que é. Nesse sentido, o homem é desamparado, sem um presente eterno e com um futuro sempre por se fazer, onde a sua moral depende se a sua escolha e liberdade se res- tringem ao necessariamente ter de agir, engajando-se em uma luta pela vida da qual o próprio homem é contingente. 15 UNIDADE O Surgimento do Antimodernismo Arthur Schopenhauer (1788-1860), ao tratar da vida e morte, em sua obra O mundo como vontade e representação (livro 4), assim escreve: Antes de mais nada é preciso que nos convençamos de que a forma de fenômeno da vontade, ou por outras palavras, a forma da vida ou da realidade, é o presente, e não o futuro, nem o passado; estes não exis- tem senão na abstração por meio da concatenação do conhecimento submisso ao princípio de razão. Ninguém viveu no passado e ninguém viverá no futuro; o presente, somente ele, é a forma exclusiva da vida, propriedade certa, que nada poderá jamais subtrair-lhe. O presente está sempre ali, com tudo quanto abrange: continente e conteúdo quedam-se parados, imóveis, como o arco-íris sobre a catarata. Por isso que a vida é assegurada à vontade, e o presente é assegurado imutavelmente à vida. (SCHOPENHAUER, [20--], p. 6) Sartre já havia escrito, no “espírito” do existencialismo ateu, o romance La nausée – A náusea – e os contos de sua coleção Le mur – O muro –, de 1939. Em O ser e o nada, Sartre trata da Filosofia Existencial, na qual busca a concreticidade da vida mesmo na abstração da Modernidade; para tanto, Sartre indica que a existência precederia a essência, no que implicaria o homem primeiro existir e somente depois determinar a sua essência, o que se daria via as suas ações e na plena liberdade de escolhas de viver a vida; de forma incisiva, Sartre cita que o homem está condenado à liberdade para criar o seu projeto de vida, lembrando que o vocábulo projectus, em latim, significa ser lançado à frente; ou seja, o homem tem o ensejo de programar a sua vida futura. Na verdade, todo o seu tempo de vida envolve um eterno se projetar, tornando-o inacabado, sempre por se fazer, ou seja, o homem é uma eterna indeterminação. Assim, em Sartre, a essência do homem surge a partir de suas escolhas na vida. Ao ser lançado no mundo, o homem não teria essência, seria um não ser, ou a au- sência de ser, progressivamente tomando consciência de sua existência, concomi- tante apresentar o seu desejo de ser. Porém, ser implica algo acabado, realizado e se assim o homem fosse, estaria no mesmo nível das coisas outras, um ser em-si, coisas prontas, acabadas. Mas com o homem acontece diferente, porque no momento em que é impelido ao mundo, inicia a sua construção a partir de um projeto em que vive subjetivamente, ou seja, é uma permanente indeterminação, um impulso para a exis- tência. Desse raciocínio se conclui que não existe natureza humana, uma vez que não exista Deus para concebê-la; não existindo Deus, não existirá a recompensa celeste e o homem estará absolutamente só em suas convicções subjetivas. Para isso, é necessário destacar que existem dois tipos de subjetivismo: “[...] a escolha do sujeito individual por si só; e, a impossibilidade do homem em superar a subjetividade huma- na” (SARTRE, 1978, p. 6). À questão sobre a diferença entre o homem e as coisas, responder-se-á que so- mente o homem é livre, para ser nada mais que o projeto que fez para si. A palavra projectus, em latim, significa ser lançado adiante, uma ação de extensão assim como o vocábulo latino exsisto, que significa elevar-se para fora ou para cima de, 16 17 surgir, nascer, provir, quando principalmente o ex da palavra existir significa fora. Em outras palavras, apenas o homem existe porque o existir do homem é “sair de si” “para si”, uma vez que consciente que é, faz-se “ser-para-si” e, dado que a sua consciência seja autorreflexiva, pensa sobre si e é capaz de se colocar “fora de si”. Portanto, a consciência do homem o distingue das coisas e dos animais que são “em si”, ou seja, como não são conscientes de si, não são também capazes de se colocarem “do lado de fora” para se autoexaminarem. Quanto ao homem, ao se perceber um ser “para si”, vê-se aberto à possibilidade de construir a própria existência, dado que em não existindo essência ou modelo para lhe indicar um caminho, o seu futuro está aberto a múltiplas possibilidades, o que faz recordar uma dúvida contida no célebre silogismo ilustrado por Fiódor Dostoiévski (1821-1881), em uma das questões levantadas por Ivan Karamazov, na obra Os irmãos Karamazov (1879): “Se Deus não existe, então tudo é permitido?” [...] ele (Ivan Fiodorovitch Karamazov) declarou em tom solene que em toda a face da Terra não existe absolutamente nada que obrigue os ho- mens a amarem seus semelhantes, que essa lei da natureza, que reza que o homem ame a humanidade, não existe em absoluto e que, se até hoje existiu o amor na Terra, este não se deveu à Lei natural, mas tão- -só ao fato de que os homens acreditavam na própria imortalidade. Ivan Fiodorovitch acrescentou, entre parênteses, que é nisso que consiste toda a Lei natural, de sorte que, destruindo-se nos homens a fé em sua imor- talidade, neles se exaure de imediato não só o amor como também toda e qualquer força para que continue a vida no mundo. E mais: então não haverá mais nada amoral, tudo será permitido, até a antropofagia. Mas isso ainda é pouco, ele concluiu afirmando que, para cada indivíduo particular, por exemplo, como nós aqui, que não acreditamos em Deus nem na própria imortalidade, a Lei moral da natureza deve ser ime- diatamente convertida no oposto total da Lei religiosa anterior, e que o egoísmo, chegando até ao crime, não só deve ser permitido ao homem mas até mesmo reconhecido como a saída indispensável, a mais racional e quase a mais nobre para a situação. (DOSTOIÉVSKI, 1970, p. 296) Para Carlos Leger Sherman Palmer (2017), a obra Os irmãos Karamazov, de Dostoiévski, foi imortalizada por uma questão retórica, na qual se entende por Deus a verdade e o princípio: “Se Deus não existe, então tudo é permitido?” Ou, em outros termos: “Se Deus está morto, então tudo é permitido”; trata-se de uma viável interpretação do diálogo desenvolvido entre os irmãos Karamazov, com a “intervenção” do Diabo: [...] esta obra é, sem sombra de dúvidas um clássico da literatura russa e mundial; um clássico da reflexão sobre a condição moral e humana, crenças e descrenças. Portanto, trata-se de uma literatura filosófica, em suas quase 3.232 páginas. A obra surpreende por seus diálogos e refle- xões de cunho existencial e, em elevado tom e nível para a sua época. (SHERMAN, 2017, p. 159) 17 UNIDADE O Surgimento do Antimodernismo O homem não é “em si”, é “para si”,o que a rigor não significa absolutamente nada, pois se a consciência não tem conteúdo, então não é coisa alguma. Mas, para Sartre (1978), é exatamente esse vazio que constitui a liberdade fundamental do “para si”, que ao se mover entremeio às possibilidades que se apresentam ao homem, que este poderá criar um conteúdo “para si”. Eis aqui o grande problema do homem, quando os valores não são dados nem por Deus, nem pela tradição e somente ao próprio homem caberá construí-los, mas que ao experimentar a liber- dade e ao sentir-se em um vazio existencial, vive a angústia da escolha. O homem é livre, mas consequentemente responsável por tudo o que escolher e fizer, pois a liberdade só se constituirá efetivamente na ação, capacidade do homem em operar modificações em sua realidade limitada: “Não somos aquilo que fizeram de nós, mas o que fizermos com o que fizeram de nós”, ou ainda: “O importante não é o que fazemos de nós, mas o que nós faremos daquilo que restou do que fizeram de nós” (SARTRE, 1978). Para Sartre, ser livre não significa a obtenção de tudo o que se queira, mas o se determinar à escolha, pois o êxito dessa ação não importa em absoluto à liberda- de; somos livres para pensar e conceber os nossos próprios paradigmas. Em ĹÊtre et le néant – O ser e o nada –, Sartre contesta o subconsciente freu- diano, desvinculando-se do determinismo religioso, para responsabilizar o homem por seus próprios atos, expondo a ideia de liberdade como um aprisionamento do ser – “Não somos livres de ser livres” –, já que o homem é o único ser capaz de criar o nada: “Ao tomar uma decisão, percebo com angústia o medo de arcar com sua própria liberdade, mesmo que nada me impeça de voltar atrás, pois minha liberdade é o único fundamento dos meus valores”. Almir Andrade (1971) comenta que para Sartre o nada seria a centelha de liber- dade e a esperança de ressurreição; o homem nasce e vive para o nada e justamente por isso introduz o nada no mundo, o que lhe possibilita extrair da náusea e an- gústia desse nada, um novo ser, uma nova essência, seria o arquiteto de sua própria vida. Daí a necessidade de “engager” a tarefa de neutralizar o absurdo da morte, tanto quanto da própria existência. Para os existencialistas, a existência pre- cede a essência, o que leva necessariamente a acreditar que a essência do homem vem de escolhas de sua livre vontade; em ĹÊtre et le néant, Sartre (apud Andrade, 1971, p. 116, grifos nossos) assim escreveu: O nada está contido no próprio seio do ser, no seu coração, na sua carne, como um verme; e, de onde surge e como se origina o nada? O ser que se mostra capaz de introduzir o nada no mundo deve ser o seu próprio nada; ora, somente o ser do homem revela condição capaz de permitir o aparecimento do nada: a liberdade, Como condição de nihi- lificação do nada, néantisation du néant, a liberdade humana precede a essência do homem e a torna possível; a essência do homem está em suspenso em sua liberdade. Esta tem por instrumento a consciência que é um être-pour-soi, um ser-para-si, que dialeticamente se opõe ao être-em-soi, ou ao ser-em-si das cousas [sic] outras do mundo, possibi- litando ao homem, não só criar o nada de sua própria essência, mas também introduzir o nada no mundo. 18 19 Muito embora o existencialismo ateu exclua quaisquer crenças transcendentais, metafísicas e/ou religiosas, compartilha a angústia da finitude e limitação humana, com o existencialismo metafísico, principalmente através da fenomenologia, es- tudo da experiência subjetiva de consciência. Essa angústia, no homem, reflete uma condição de desesperança por se sentir desamparado. Desespero que para Sartre (1978, p. 12) seria “agir” sem esperança. Quanto ao desespero, esta expressão tem um papel extremamente sim- ples. Quer ela dizer que nós nos limitamos a contar com o que depende da nossa vontade, ou o conjunto das probabilidades que tornam a nossa ação possível. Quando se deseja uma coisa, há sempre uma série de ele- mentos prováveis […] a partir do momento em que as possibilidades que considero, não são rigorosamente determinadas pela minha ação, devo me desinteressar porque nenhum Deus, nenhum desígnio pode adaptar o mundo e seus possíveis à minha vontade. No fundo quando Descartes dizia: “vencemo-nos antes a nós do que ao mundo”, queria ele dizer a mesma coisa, um agir sem esperança. Para Sartre (1978), as censuras que se fazem ao existencialismo não visam o seu pessimismo, mas fundamentalmente a sua rigidez esperançosa, com a qual o homem demonstra realmente como é, com a sua nobreza e tacanhez. Existem, pois, dois tipos de existencialismo: o cristão acedido por Karl Theodor Jaspers (1883-1969), Gabriel Honoré Marcel (1889-1973) e Sören Kierkegaard (1813-1855); e o ateu, representado por Martin Heidegger (1889-1976), Jean- Paul Sartre (1905-1980) e, de certa maneira, figura também o ateísta Friedrich Nietzsche (1844-1900). Tanto uma corrente quanto a outra está fundamentada em um mesmo e único princípio fundamental: a existência humana. Aqueles que concebem a Criação Divina, tem em Deus o construtor supremo que confere existência a tudo que habita o Universo, modelando-o conforme o Seu desígnio; enquanto os ateus concentram a sua atenção na criatura humana, diferenciando-a de coisas outras da natureza, a partir do pressuposto de que o homem tem a sua essência precedida pela existência, argumento que serviu a Sartre para negar a existência de Deus e exaltar a existência humana. Sempre é conveniente recordar que toda essa geração de filósofos viveu os horrores da Segunda Grande Guerra Mundial, o que certamente influenciou sobremaneira a sua forma de ver o mundo. O existencialismo ateu enfrenta a angústia da morte sem recorrer a uma espe- rança divina e sem aspirações outras, tal como a da reencarnação. Para alguns pen- sadores, o mal-estar existencial é principalmente teórico, como o é com Jean-Paul Sartre, para quem o homem está condenado a ser livre; condenado porque não se cria a si próprio e livre porque, lançado ao mundo, passa a ser responsável por tudo quanto fizer. Por isso o existencialismo é considerado uma moral da ação, uma vez que sopesa a única coisa que define o homem, o seu ato, que é livre por excelência. Para outros pensadores o homem seria afetado por uma angústia existencialista, como no caso de Albert Camus, em sua discussão sobre o absurdo humano. O exis- tencialismo ateísta não inclui a “ilusão” acedida no início desta discussão, bem como em várias escolas outras do pensamento; o existencialismo ateísta é uma condição de existencialismo que diverge intimamente das obras cristãs de Søren Kierkegaard. 19 UNIDADE O Surgimento do Antimodernismo Estilos de Vida e de Filosofia nos Quais Viceja o Nihilismo, o Nada, Vazio, a Ausência de Valores e de Sentido para a Vida O vocábulo latino nihil implica uma dissonância, pois a grosso modo, literalmente significa o “nada”, uma pura inexistência; mas, ao afirmar que algo significa, o vocábulo deixa de ser um nada, passando a ser alguma coisa, do que desse faz um absurdus est. Amplamente conhecida é a expressão: Ubi nihil vales, ibi nihil velis – Onde nada podes, lá nada queiras –, da conhecida fábula En bateau – O barco –, de Arnold Geulincx: “[...] a existência do homem se assemelha a uma viagem de barco; onde ele pode decidir livremente mover a popa para a proa ou vice-versa, mas não deve deixar o navio balançar livremente pelas correntes do oceano” (BECKETT; GEULINCX, 2012). Nihil é empregado tanto como substantivo – evidencia a substância, essência – e como advérbio – palavra invariável que acompanha o verbo, adjetivo, ou ou- tro advérbio. A grosso modo, a sua tradução se dá por nada, nulidade, inutilidade etc. De nihil derivou o nihilismo, que adquiriu várias interpretações por conta de autores, filosofias e culturas distintas. Igualmente a grosso modo, recebeu várias interpretações, tais como aniquilamento, redução a nada; descrença absoluta.José Ferrater Mora (1951), em seu Dicionário de Filosofia, descreve o nihilismo como uma tendência à negação absoluta, aniquilação. Nihilismo pode oferecer aspectos tanto teóricos quanto práticos, aparentemente independentes entre si, mas intimamente vinculados a um eixo comum. Qualifica-se habitualmente de nihilistas todas as doutrinas que negam a possibilidade do conhecimento de um modo radical; nihilismo seria a dogmatização do escepticismo – doutrina que nega a possibilidade do conhecimento. Figura 3 Fonte: Getty Images 20 21 Para Ferrater Mora (1951), sem o seu aspecto prático, o nihilismo se refere qua- se sempre a moral e é, como Nietzsche proferiu, a desvalorização dos valores su- periores e a colocação de distintos valores em lugares que não correspondem à sua hierarquia e categoria. Segundo Nietzsche, o nihilismo moral é a conse- quência da interpretação da existência segundo a Europa cristã e moderna. Via de regra, o nihilismo se apresenta sob a forma de nihilismo existencial, quando se submete ao argumento de que a vida não tem sentido objetivo, um propósito, ou um valor intrínseco, advogando a ideia de que um único ser humano ou mesmo toda a espécie humana seria anódina, sem finalidade e vazia, tal a não alterar em absolutamente nada a totalidade existencial do Universo. Entrementes, na outra extremidade dessa afirmação existe a teoria do pré-socrático Demócrito de Abdera (460-370 a.C.) (2000, p. 260), quem afirmava ser o homem um micro- cosmo, a partir de sua célebre afirmação: “[...] nada nasce do nada, nada retorna ao nada, portanto, o nada existe tanto quanto alguma coisa”. Em Gorgias de Leontinos (485-380 a.C.), o nihilismo é encontrado em suas três teses, onde conclui que nada é; ainda que fosse, seria incognoscível; ainda que fosse cognoscível, seria incomunicável: “O Tratado do não-ser contém uma impiedosa sucessão de antinomias que destroem todas as doutrinas filosóficas, cada uma delas nadificando a outra e, que por sua vez também se autonadifica” (BARBOSA; CAS- TRO, 1993, p. 212, grifo nosso). Nihilismo por vezes é confundido com ceticismo. Enquanto o nihilismo é uma doutrina filosófica pela qual a criação universal é um acaso sem causa definida ou conhecida, o ceticismo se refere a uma postura na qual as pessoas tendem a examinar o conhecimento e as percepções de forma crítica, tal a questioná-los quanto à sua real veracidade – este é um ceticismo filosófico. O criador dessa es- cola filosófica foi o pensador grego Pirro de Élida (365-275 a.C.), que prescrevia o cultivo de um estado permanente de dúvida e de refração aos dogmas, às certezas inquestionáveis e, primordialmente, à ideia de verdade. O século I a.C. registrou a figura do poeta e filósofo romano Titvs Lvcretivs Carvs (99-55 a.C.), autor de uma única obra, mas grande a seu tempo, o poema didático De rervm natvra: Antes de mais, nada provém do nada, pois que então tudo nasceria sem necessidade de sementes. E, se se dissolvesse no nada tudo o que desaparece, todas as cousas seriam destruídas, anulando-se as partes nas quais se decompunham. E também é certo que o todo foi sempre tal como é agora e será sempre assim, pois nada existe nele que possa ser mudado. Com efeito, mas além do todo não existe nada que penetrando nele produza a sua transformação. (CARVS, 1962, p. 24, grifos nossos) O filósofo Józef Maria Bocheński (1902-1995), igualmente conhecido como Innocentivs Marie Bochenski, de certa forma contrapõe Gorgias e Lvcretivs: 21 UNIDADE O Surgimento do Antimodernismo É absolutamente certo que existe alguma cousa; também é certo que podemos conhecer muitas cousas; e, é igualmente certo que podemos comunicar a outros, algumas das cousas que conhecemos. [...] Não obstante não temos meios para afirmar que existe uma realidade fora de nós, fora de nossa consciência; poderia ser que existam cousas e realidades, mas que estas se encontram somente dentro de nós, em nossas ideias, o que levaria à distinção entre realidade e aparência, mas não entre o interno e o externo. Dessa exposição se segue que tudo que cremos conhecer seja de fato assim como o vemos. É certo que alguma cousa existe, mas como essa cousa é na realidade, é outra questão [...]. É certo que existem muito mais cousas do que aquelas que podemos conhecer e, conhecemos muito mais do que podemos comunicar aos outros. (BOCHENSKI, 1977, p. 39-40) Conforme Almir de Andrade (1971), da oposição entre ser e não ser, natural- mente surgiu o problema do ex nihilo, como extensão da ideia de negação de algo ou de todas as coisas; as filosofias gregas dos eleatas e epicuristas mantinham a tese de que ex nihilo nihil fit – do nada, nada se segue –, refutando Lvcretivs, Gorgias e Demócrito de Abdera, recomposto por Agostinho de Hipona (354-430) e posteriormente pelo religioso e filósofo francês Jean Buridan (1300-1358), am- bos partícipes da crença de que Deus “Creara” o mundo a partir do nada; por isso pregavam o princípio reconhecido à Escola Neoplatônica de Alexandria, particular- mente por Plotinvs: ex nihilo fit ens creatum – do nada, tudo se criou: Seguindo as pegadas de Platão, Plotinvs admite que, se existe algo a que se possa chamar de nada, seria o mundo dos seres creados, a matéria mesma, que de início informe e perenemente em busca de alcançar a plenitude da existência; porquanto a matéria, abstraída da totalidade dos seus atributos, não pode ser chamada ser, sendo mais correto asseverar que seria um não-ser, porém no sentido em que dizemos, por exemplo, que o movimento e o repouso não são; pois é ela o verdadeiro não- ser, imagem e fantasma de massa corporal, mera aspiração à existência. (PLOTINVS apud ANDRADE, 1971, p. 112, grifos nossos) Aliás, seria na filosofia pirrônica – de Pirro de Élida – de Michel de Montaigne (1533-1592), escritor, jurista, político e filósofo francês, considerado um dos maiores humanistas franceses, que Blaise Pascal (1623-1662), físico, matemático, filósofo e teólogo francês, descobriria a temática da razão cética, o grande fato expressivo da racionalidade humana, pelo qual a própria razão careceria de fundamentação racional. Para expor a contrariedade das filosofias pagãs, Pascal, tal como os céticos pirrônicos, distingue os dogmáticos – que almejam saber a verdade –, dos novos acadêmicos – que negam a possibilidade de conhecimento da verdade – e os próprios céticos ou pirrônicos – que suspendem quaisquer juízos. Pascal (2001) unifica acadêmicos e pirrônicos, contrapondo-os aos dogmáticos. Durante o Renascimento, William Shakespeare eloquentemente resumiu a perspectiva do nihilista existencial quando, de uma passagem perto do final de Macbeth, este verte o seu desgosto pela vida: 22 23 Seyton – A rainha morreu, senhor! Macbeth – Ela teria de morrer, mais cedo ou mais tarde. Morta! Mais tarde haveria um tempo para essa palavra. Amanhã, e amanhã, e ainda outro amanhã arrastam-se nessa passada trivial do dia para a noite, da noite para o dia, até a última sílaba do registro dos tempos. E todos os nossos ontens não fizeram mais que iluminar para os tolos o caminho que leva ao pó da morte. Apaga-te, apaga-te, chama breve! A vida não passa de uma sombra que caminha, um pobre ator que se pavoneia e se aflige sobre o palco – faz isso por uma hora e, depois, não se escuta mais sua voz. É uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria e vazia de significado. (Grifos nossos) O nada de Macbeth revela um indivíduo que, fora do palco, é um ser isolado, imiscuído em um universo bizarro e sem respostas, compelido a se inventar tal qual acha que é aquilo que pensa ser – essa condição é nada menos que o absurdo da existência humana. A partir do século XIX, o termo nihilista deparou novas derivações e significações, das quais merecem destaque o nihilismo existencialista de Sartre, o nihilismo absurdista de Albert Camus e, principalmente, o nihilismo agônico de Emil Cioran. O ser humano primeiro vive, depois se vê antea necessidade de pensar e entre pensamentos se percebe em um caminho sem retorno em direção à morte, uma empreitada na qual, talvez, o importante não seja nem tanto o caminho, mas o próprio caminhar, o seguir em frente mesmo ante os entroncamentos da dúvida, que se apresentam ao longo desse percurso inexorável. Tal condição faz parte da Filosofia do Absurdo, que refere o conflito entre a tendência humana de buscar significados inerentes à vida e a impossibilidade em encontrá-los. A predicação de absurdo não se deve tanto ao logicamente impossível, mas à incapacidade huma- na de, por seus próprios recursos, encontrar uma resposta para esse fenômeno. Para Martin Heidegger (1889-1976), o homem seria o único animal que sabe que é um ser-para-a-morte, um mistério da existência que acompanha o homem em seu cotidiano e se vincula a todos os aspectos de sua vida, onde é entendida como a finitude, a cessação de sua existência. Para Heidegger o homem, enquan- to ser-no-mundo, encontra-se diante do significado autêntico do ser, ser-para-a- -morte. Como fenômeno existencial, a morte está entranhada na vida do homem como ser-no-mundo, enquanto um ser-de-projeto. Em Heidegger, a morte não consiste meramente de um aspecto finalista, ou de um fim trágico; requisita uma análise ontológica, a qual mostre a necessidade de esse homem passar pelo mundo e, para este, contribuir de alguma forma para o seu desenvolvimento e para a sua lucidez – trata-se do contributo do fenômeno humano. Esse conceito faz recordar o Evangelho segundo São João: “Em verdade, em verdade vos digo que, se o grão de trigo caído na terra não morrer, ficarão infecundo; mas, se morrer, produzirá muito fruto” (JO, XII, verso 24). 23 UNIDADE O Surgimento do Antimodernismo As consequências da Segunda Guerra Mundial, na Europa, proporcionaram um ambiente social propício às visões irracionais, especialmente na devastada França. A Filosofia do Absurdo originada na destruição da Europa, proporcionou íntima relação com o existencialismo e nihilismo – muito embora não se deva confundi-los. O absurdismo nasceu do movimento existencialista, com conceitos enraizados no século XIX, resultante, principalmente, das reflexões do filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard, considerado o “Pai do existencialismo”, do filósofo e escritor ar- gelino Albert Camus (1913-1960) e, em especial, daquele considerado o “Arauto do pessimismo”, Emil Michel Cioran (1911-1995), filósofo francês de origem romena; todos esses pensadores a proclamaram uma filosofia advinda do paradoxo entre a busca individual por um objetivo e a falta de sentido provida pelo Universo. Emil Cioran, cujo pensamento é caracterizado por um pessimismo extremo, fru- to de um niilismo exacerbado, foi um dos prosecutores da tradição irracionalista, a aludir à impossibilidade do homem em se evadir das aflições humanas, em face de não poder afirmar, tampouco negar a sua vontade, restando-lhe tão somente conviver em um mundo de dor, de agonia e sem propósito, competindo-lhe ape- nas aceitá-lo ou odiá-lo. Essa crítica de Cioran era extensiva à produção acadêmica de sua época, a qual não visava os problemas e flagelos da existência, mas tão somente um exercício filosófico maquinal e, por vezes, sob um aspecto mercadoló- gico, o que levou Cioran a considerar Sartre uma “fábrica de ideias” e a tomar Kant como a personificação desse modelo: “Afastei-me da filosofia no momento em que se tornou impossível para mim descobrir em Kant alguma fraqueza humana, algum acento de verdadeira tristeza” (CIORAN, 2011a, p. 69, grifo nosso). Cioran enfatiza o instinto em detrimento da razão, ao se colocar contra o modo pelo qual a Filosofia é abordada em seu tempo, predicando-a de um saber artifi- cial e gélido, que não alcança as aflições humanas. Essa filosofia seria indiferente ao homem e apática à realidade do mundo, ao suprimir os pensamentos mais su- blimes em proveito de uma cultura imersa em si: Nunca se criticará demasiado o século XIX por haver favorecido essa cor- ja de glosadores, essas máquinas de ler, essa malformação de espírito que encarna o Professor, símbolo do declínio de uma civilização, do avilta- mento do gosto, da supremacia do trabalho sobre o capricho. (CIORAN, 2011b, p. 20, grifo nosso) Em Cioran, o estágio da contemplação, angústia e do encantamento são balizas indissociáveis do fazer filosófico, que nesse filósofo se localiza entre a angústia e rigidez com a ideia prescrita: “Sem nossas dúvidas sobre nós mesmos, nosso ceticismo seria letra morta, inquietude convencional, mera doutrina filosófica” (CIORAN, 2011b, p. 11). Para Cioran, o fazer filosófico se liga mais às emoções que às razões, no que dá primazia ao sentir em relação ao pensar; para tanto, faz menção à metáfora do equi- librista nietzschiano, a fim de realçar a diferença entre o macaco e super-homem, ao citar a falha do homem em sua travessia na corda, como uma empreitada repugnante 24 25 da racionalização para um sentimento mais elevado, assim como também o faz com a ideia da morte de Deus em Nietzsche, que não implicaria um defunto divino, mas na extinção do axioma religioso, que se vê superado: Zaratustra assim falou à gente: Eu vos ensino o super-homem. O homem é algo que deve ser superado. [...] Que é o macaco para o homem? Uma risada, ou dolorosa vergonha. Exatamente isso deve o homem ser para o super-homem: uma risada, ou dolorosa vergonha. Fizestes o caminho do verme ao homem, e muito, em vós, ainda é verme. Outrora fostes macacos, e ainda agora o homem é mais macaco do que qualquer ma- caco. O mais sábio entre vós é apenas discrepância e mistura de planta e fantasma. [...] Eu vos imploro, irmãos, permanecei fiéis à terra e não acrediteis nos que vos falam de esperanças supra terrenas! São envene- nadores, saibam eles ou não. São desprezadores da vida, moribundos que a si mesmos envenenaram, e dos quais a terra está cansada: que partam, então! Uma vez a ofensa a Deus era a maior das ofensas, mas Deus mor- reu [...]. (NIETZSCHE, 2000, p. 15-19) Cioran destaca o incidente da queda do equilibrista aos pés de Zaratustra, retra- tado por Nietzsche: Figura 4 Fonte: Getty Images Zaratustra ficou imóvel, porém e justamente ao seu lado caiu o corpo, ferido e quebrado, mas ainda vivo. Após um instante, a consciência retornou ao homem destroçado e este viu Zaratustra ajoelhado junto a si: Que fazes aqui? disse ele (o moribundo) afinal; há muito tempo eu sabia que o demônio me passaria a perna. Agora ele me leva para o inferno; queres impedi-lo? [...] Os inimigos da verdade não são as mentiras, mas as convicções! [...] Por minha honra, amigo, nada do que falas existe: não existe demônio nem inferno. Tua alma morrerá antes ainda que teu cor- po: nada temas, portanto! (NIETZSCHE, 2000, p. 15-19) Em uma carta-prefácio de Cioran a Fernández-Savater Martín, escritor e fi- lósofo espanhol, catedrático de Ética na Universidade do País Basco, Cioran (1992) escreveu: 25 UNIDADE O Surgimento do Antimodernismo Não foram, as minhas leituras que me formaram, mas os acidentes e os encontros. Tudo o que descrevi é fruto de circunstâncias, azares, conversas, ruminações noturnas, crises de abatimento mais ou menos cotidianas, ob- sessões intoleráveis. Meu estado de saúde, felizmente comprometido, é em grande medida responsável pela direção e pela cor, dos meus pensamentos. Para os defensores da Filosofia do Absurdo, a história mostra que os ho- mens buscaram historicamente – e ainda procuram – deparar sentidos para as suas vidas e, via de regra, chega(ra)m a duas conclusões: ou a vida não tem sen- tido, ou contém em si um propósito deliberado por uma força maior, Deus, ou quaisquer conceitos outros, mas que sempre se apresenta em abstrato. Por isso, Camus apreende a existência de uma lacuna em quaisquer crenças ou sentidos, apresentando-se como um mero ato de ilusão, que contorna o problema, mas não o resolve, quando talvez melhor seria reconhecer o absurdo, dadoque deste escapar tão somente evita um confronto. Søren Kierkegaard e Albert Camus buscaram entender as razões do absurdis- mo. Kierkegaard o fez por meio de sua obra O desespero humano, de 1849, sob o pseudônimo Anti-Climacus que em dinamarquês recebeu uma denomi- nação que literalmente significa A doença até à morte. A ideia de desespero tratada por Kierkegaard nessa obra contempla conceitos utilizados, mais tarde, por Sigmund Freud (1856-1939), mantendo certa verossimilhança ao conceito cristão de pecado. A filosofia de Søren Kierkegaard deu fundamentação teórica ao existencialismo no século XIX. Kierkegaard se opôs à irredutibilidade da existência humana, a quaisquer tentativas modelares do ser humano; por isso propôs uma filosofia na qual o su- jeito estivesse implicado vivamente em sua própria reflexão, não se limitando a uma pura objetivação abstrata do real. Já o filósofo franco-argelino Albert Camus (1913-1960), prêmio Nobel de Li- teratura em 1957 e um dos principais pensadores do absurdismo, ramificação teórica do existencialismo, abordou, concomitantemente a Kierkegaard, essa te- mática; entregue a si o eu do cogito cartesiano faz parte da Filosofia do Absur- do, reportada no ensaio filosófico de Camus, Le mythe de Sisyphe – essai sur l’absurde – O mito de Sísifo –, escrito em 1941, uma excêntrica narrativa mítica grega que retrata um episódio de punição divina: Zeus, Deus do Olimpo, condenou Sísifo a rolar interminavelmente uma pedra de mármore, com suas próprias mãos, até o cume de uma mon- tanha, onde a pedra lhe escaparia e rolaria morro abaixo, sendo preciso recomeçar este trabalho todos os dias, eternamente. Imaginava, Zeus com alguma razão que não existisse castigo mais terrível do que trabalhar inutilmente e sem esperança. (CAMUS, 1942, p. 163) 26 27 Figura 5 Fonte: Getty Images Em Le mythe de Sisyphe, Camus reporta dualismos humanos tal como entre a felicidade e tristeza, mas se concentra naquele existente entre a vida e morte, que na obra Camus admite ser paradoxal, dado que os seres humanos valorizam, evi- dentemente, a própria existência, mesmo cientes de que são seres que caminham inexoravelmente para a morte. Ante a dificuldade de conciliação desse paradoxo, o filósofo cria a competência da humanidade em aceitar esse absurdo. Camus não era um ateu existencial estrito, pois a acessão ao absurdo não implicaria neces- sariamente a existência, tampouco a inexistência de um deus, tanto que Camus rejeita certos aspectos do existencialismo quando publica O mito de Sísifo. O arquétipo instado no mortal Sísifo mitológico, estaria condenado por Zeus a eternamente subir e carregar o enorme rochedo de sua certeza na contraencosta da dúvida, até o topo de uma montanha situada na morada dos mortos do deus Hades, para se prostrar impotente ante as sucessivas e inevitáveis quedas de re- torno do bólido; esse episódio, para Camus, exemplifica a consciência da falta de sentido para a vida, como condição humana. [...] a condenação pelos deuses do personagem, em repetir indefinida- mente uma mesma penalidade: empurrar uma pedra até o topo de uma montanha, contando que, toda vez que se aproximasse do topo, a pedra lhe escaparia e rolaria montanha abaixo até o ponto de partida, fazendo- -o repetir todo o duro esforço já despendido. (CAMUS, 1942, p. 163) Essa foi uma alegoria desse filósofo, que referencia o fato de cada homem saber que pode ter um amo, portanto, está inciso em uma liberdade delimitada e que cada homem sempre terá o seu fardo de inutilidades. A aceitação do absurdismo de Camus implica viver apesar desse, sem resignação, dado que aceitá-lo imperiosamente forçaria o indivíduo a se valer de sua parca liberdade para explorar as suas próprias escolhas e decisões. Para Camus, a liberdade não pode ser alçada além do permitido pela absurdidade existencial, 27 UNIDADE O Surgimento do Antimodernismo conquanto o mais próximo que se possa chegar da liberdade absoluta é exatamente pela aceitação do absurdo. Este pode implicar a falta de esperança, mas é exatamente nessa ausência que se encontra o fator motivador, para que o homem persista em viver cada momento de sua vida como se o último fosse. O absurdista não se guia pela moralidade, mas pela sua própria integridade, que lhe informa ser, sim, um amoral, o que não significa dizer que é imoral. A qua- lidade da moralidade alude a um senso rigoroso de certo e errado, conquanto a integridade é uma propriedade que o homem honesto se propõe consigo e parte da coerência subjacente às suas ações e decisões. O Retorno às Antropologias de Períodos Anteriores – o Homem Racional, Natural, Pessoal, Social Anteriormente tratamos da corrente dos novos filósofos, em especial da França e do regresso da sociedade de sua posição jurídica e institucional, para o nível da consciência da preservação de valores éticos através da consciência moral e da ética de cada indivíduo. Utilizamos uma citação do professor Felipe Aquino (2010), na qual os novos filósofos denunciam toda ideologia sob qualquer de suas aparên- cias ou máscaras, os quais fazem genuíno eco ao cansaço e à frustração de certas populações da Europa e de outras partes do mundo. Aquino (2010) é partícipe da ideia de que os novos filósofos voltam a seguir os fundadores gregos da Filosofia, concentrando os seus esforços na ordem moral da humanidade, no despertar das consciências do homem para um novo com- portamento ético, único e realmente autêntico caminho ao erguimento de uma sociedade justa, na solução das crises sociais de nossos dias, principalmente na manutenção de valores da consciência, tais como a honestidade, retidão, ve- racidade, fidelidade, dignidade na vida política e, fundamentalmente, o respeito ao semelhante, fazendo o homem na Pós-Modernidade questionar a si. À proposição de Felipe Aquino (2010), compete citar Michel Foucault (1926- 1984), filósofo francês, incluso entre os pensadores estruturalistas, cujo pensamen- to exerceu grande influência sobre os intelectuais contemporâneos; Foucault (1999, p. 448, grifos nossos) afirmava que a sociedade fazia uso abusivo do poder através das instituições: O cogito (referência a Descartes) não conduz a uma afirmação de ser, mas abre justamente para toda uma série de interrogações em que o ser está em questão: que é preciso eu ser, eu que penso e que sou meu pen- samento, para que eu seja o que não penso, para que meu pensamento seja o que não sou? Que é, pois, esse ser que cintila e, por assim tremeluz na abertura do cogito, mas não é dado soberanamente nele e por ele? 28 29 O descentramento da consciência implica em a filosofia atual abandonar a ingenuidade e segurança da consciência imediata. Trata-se de uma operação que lembra a desconstrução de Jacques Derrida (1930-2004), que a vê enquanto uma passagem em direção a um antes, ou um aquém do sentido. Esse momento an- terior é um movimento constante de retorno à coisa mesma. Para Derrida (2006, p. 50) existe uma procura intensa pela verdade, busca do próprio reflexo, sendo que essa procura pode trazer a possibilidade de se alçar ao momento histórico anterior. Ao proceder sempre a um retorno a partir do problema que se mostra, Derrida denominou desconstrução, que não significa destruição, mas desmontagem, de- composição dos elementos. A desconstrução como fenômeno serve nomeadamente para acenar partes de um todo que estão dissimuladas em um desvelamento da visibilidade que não aparece em uma visualidade imediata. Com a desconstrução da consciência imediata surge o desapossamento da consciência como caminho do se tornar consciente, de modo que já não se poderia mais pensar a consciência humana como puro princípio ou ponto de partida. Uma reflexão sobre a desconstrução em Derrida nos leva ao ponto de vista fenomenológico de Edmund Gustav Albrecht Husserl (1859-1938), ou seja, de um retorno à coisa mesma, exigindo uma palavra com prefixo trans, significando um movimento de volta:translação, transferência, transliteração, transladação, translato, translocação etc. Este viver, onde a consciência objetiva não coincide jamais com as estruturas ordenantes presentes, permeia o ente e impede que o seu fazer encontre o seu pensar, constituindo-se no lastro da cultura ocidental, que se apresenta como um sistema racionalizado, em um imaginário abrigo, mas que no descompasso do fa- zer-pensar, instaura a angústia nos viventes deste mundo artificial, para o qual é necessário entender que nem sempre cinzas são traduções de um fogo anterior. Francis George Steiner (1929-), ao abordar a questão dos signos convencionais, ressalta a ambivalência do signo do fogo: Pelo fato de todo o dizer humano consistir de signos arbitrariamente se- lecionados e intensamente convencionalizados, o significado não pode nunca ser totalmente separado da forma da expressão. Mesmo os termos mais puramente ostensivos e aparentemente neutros estão incrustados em peculiaridades linguísticas, num intrincado molde de costumes so- cioculturais. Não há qualquer superfície de transparência absoluta [...]. O ponto é sempre o mesmo: as cinzas não são traduções de fogo. (STEINER, 2005, p. 263, grifo nosso) O professor de Antropologia Paul Rabinow (1944-), da Universidade da Califórnia, insere-se na corrente pós-moderna norte-americana, que transformou a Antropolo- gia em uma questão crítica cultural e de leitura intertextual, admitindo-a como uma forma ultrassofisticada de construção e desconstrução de imagens e textos. Rabi- now parte do princípio de que os indígenas produzem interpretações de sua própria experiência, de modo que a tarefa do antropólogo não se resume a compreender a maneira pela qual formatam as suas vidas, mas como veem essa formalização. 29 UNIDADE O Surgimento do Antimodernismo A Antropologia Pós-Moderna – ou Crítica – surgiu na década de 1980 e está preocupada com a reinterpretação textual das etnografias clássicas e contemporâ- neas. Assim, retornando ao pensamento de Michel Foucault, de que a sociedade usaria abusivamente o poder através das instituições, convém recordar a Indústria Cultural e a sua produção de uma cultura de massa, conceito distinguido pelos filósofos alemães Theodor Adorno (1903-1969) e Max Horkheimer (1895-1973), fundadores da Escola de Frankfurt. Essa escola pregava que a Indústria da Cultura representava os grandes gru- pos midiáticos que controlavam os meios de comunicação de massa e, assim, determinavam o padrão de consumo, de notícias e de outros serviços, produzi- dos para atingir a maioria da população, com o objetivo essencialmente comercial, ou seja, gerar produtos ao consumo, alimentando e, ao mesmo tempo, alienando as pessoas, no que ignoravam quaisquer distinções sociais. Os meios de comunicação de massa – rádio, televisão, jornais, revistas e, princi- palmente, a internet – são os principais aliados da Indústria Cultural para a disse- minação da cultura de massa, ajudando no processo de homogeneização cultural e na alienação dos consumidores. O vocábulo massa não é uma referência a de- terminada classe social, mas a um grupo forjado midiaticamente. Os produtos da cultura de massa são feitos para serem descartados rapidamente, pois é neces- sário “girar o estoque” de produções para manter a rentabilidade da indústria. A cultura erudita diz respeito a uma produção de maior elaboração técnica, o que requer maior conhecimento intelectual, sendo, portanto, comumente restrita às elites sociais. A cultura popular, diferentemente da erudita, nasce naturalmente no seio do povo e tem como característica principal manifestações da identidade cultural de raiz de uma comunidade específica. Deve-se atentar à distinção entre a cultura popular – fruto de manifestações populares – e de massa – produto da Indústria Cultural que, embora possa utilizar elementos tanto da cultura erudita quanto da popular, não tem a intenção de preservação dos valores simbólicos, vi- sando exclusivamente o lucro obtido pelo seu consumo. Cultura em massa, disponível em: http://bit.ly/2y1Lbof Ex pl or A Escola de Frankfurt defende uma razão crítica, daí produzir a teoria crítica da Filosofia contra a ação de massificação cultural da humanidade; a Escola visou denunciar a sociedade de massa, ainda atual, na qual o avanço tecnológico foi colocado a serviço da lógica capitalista, ao enfatizar propositadamente o consumo 30 31 e a diversão de massa – televisão, rádio, cinema, revistas etc. – como “cortina de fumaça” para encobrir os problemas sociais e, ao mesmo tempo, auferir lucros, não se importando com a homogeneização de comportamentos , com a massificação das pessoas e a manutenção da ignorância cultural. Aqui, um problema maior se esconde, afinal, a ausência de desenvolvimento de uma consciência autocrítica, implica diretamente no cerceamento da própria liberdade do indivíduo. Esse cerceamento é a própria “morte” do sujeito, tal como afirma Fredric Jameson (1993, p. 29, grifos nossos): Agora, porém, precisamos introduzir neste quebra-cabeça uma nova peça, que talvez ajude a explicar por que o modernismo clássico é coisa do pas- sado, e, por que o pós-modernismo tomou seu lugar. Esse novo compo- nente é o que geralmente se denomina de morte do sujeito, ou, para dizê- -lo numa linguagem mais convencional, o fim do individualismo como tal. Foucault (1979) comentou sobre a “morte” do sujeito moderno no capítulo inti- tulado A casa dos loucos (p. 113-128), de sua obra Microfísica do poder, onde ar- gumenta sobre a relação entre saber e poder em seu período genealógico; associa- ções de poder que fazem parte ou não do processo de produção do conhecimento. Para Foucault (1979) será no encontro com a genealogia que os vínculos com a submissão dos saberes históricos serão rompidos por parte de uma ciência pretensamente universal; ao se colocar contra a hierarquização científica e os seus efeitos de poder, a genealogia destravará uma contenda e liberará os saberes contidos por amarras impostas pela Ciência entendida “[...] como a política disci- plinadora dos saberes” (FOUCAULT, 2010, p. 170). Em sua obra Eclipse da razão, Horkheimer distingue dois tipos de razão: cognitiva, que busca conhecer a verdade; e instrumental, que é a razão ope- racional, agindo sobre a natureza para transformá-la. A razão instrumental é utilizada no sistema capitalista, através das Ciências Aplicadas, com o objetivo de minimizar a razão cognitiva e construir uma sociedade de alienados. Superar essa alienação é o que se impõe atualmente como tarefa da An- tropologia, significando acordar para a realidade em volta, intuindo que toda realidade é fruto de uma realidade anterior que lhe deu causa, a desconstrução e o retorno de Derrida, a fim de compreender que existe um processo histó- rico que antecede a atual realidade subjetiva, o qual funda e justifica todas as atividades humanas hodiernas. 31 UNIDADE O Surgimento do Antimodernismo Tendência de Isolamento do Mundo pelos Indivíduos, que ao se Relacionarem Prioritariamente Através de Equipamentos Eletrônicos, Afastam-se da Realidade do Real e se Voltam para Dentro de Si A prevalência do presente, representado pelo prazer, consumo e individualismo, é encontrada na obra Modernidade líquida, do sociólogo Zygmunt Bauman (1927- 2017), para quem vivemos em tempos líquidos, uma vez que hodiernamente nada seja feito para durar. A Modernidade atual é imediatista e líquida, perpassando mu- danças em ritmo intenso, ao se revelar mais célere e dinâmica que a Modernidade sólida – a sua antecessora –, alterando todos as feições da vida humana e gerindo um mundo repleto de códigos, símbolos e sinais ambíguos e aleatórios, cuja única propriedade em comum é a celeridade e imprevisibilidade de suas mudanças. Essa liquidez e volatilidade seriam características que vieram desorganizar todas as esfe- ras da vida social, tais como o amor, a cultura, o trabalho etc., tais quais conhecía- mos até o momento