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O camarada Enrolevich: O que restou do Imbecil, vol. VII Olavo de Carvalho 1ª edição — maio de 2024 — CEDET Copyright © by Herdeiros de Olavo de Carvalho Os direitos desta edição pertencem ao CEDET — Centro de Desenvolvimento Pro�ssional e Tecnológico Rua Armando Strazzacappa, 490 CEP: 13087-605 — Campinas, SP Telefone: (19) 3249-0580 E-mail: livros@cedet.com.br CEDET LLC is licensee for publishing and sale of the electronic edition of this book CEDET LLC 1808 REGAL RIVER CIR - OCOEE - FLORIDA - 34761 Phone Number: (407) 745-1558 e-mail: cedetusa@cedet.com.br Direção editorial: Silvio Grimaldo Editor: omaz Perroni Preparação de texto: Verônica van Wijk Rezende Diagramação: Maurício Amaral Capa: Vicente Pessôa Conselho editorial: Adelice Godoy César Kyn d’Ávila Silvio Grimaldo de Camargo Carvalho, Olavo de. O camarada Enrolevich: O que restou do Imbecil, vol. VII / Olavo de Carvalho — Campinas, SP: Vide Editorial, 2024. ISBN: 978-85-9507-236-7 1. Filoso�a moderna — Ensaios. 2. Ensaios e estudos �losó�cos. I. Título II. Autor CDD – 190-2 / 501-01 1. Filoso�a moderna — Ensaios — 190-2 2. Ensaios e estudos �losó�cos — 501-01 Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica ou mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer outro meio de reprodução, sem permissão expressa do editor. Sumário A M L D A C N , : A O D A S P A O E C A O L E O É A F C O R N E D P A J K D T V A A D O F M E S D O A I O G, C C M D É H O G I P T M D D, . M A N P N B C L P Q I R E P D Q D P A D Z B, . C B F M O B Q É R A C A - P F N Q S R S P-P P O Q O N B V G N R A Este volume se compõe de todos os artigos que Olavo de Carvalho publicou no ano de 2004, nos jornais Zero Hora, O Globo, Jornal da Tarde, Folha de São Paulo, e também na revisa Bravo! — além de um inédito, escrito em 2004 mas não publicado até o momento. Os textos vêm para integrar a série O que restou do Imbecil, que, dando seqüência a O Imbecil Coletivo, de 1996 (reeditado agora em 2021), já conta com seis volumes: A longa marcha da vaca para o brejo (2019), O imbecil juvenil (2020), O leão e os ossos (2021), O irracional superior (2023), A morte do pato (2023) e A felicidade geral da nação (2023). Nos artigos de 2004, Olavo mais uma vez discute a natureza suprapolítica do comunismo e seu poder de regeneração, ou melhor, sua capacidade de se transmutar em diferentes movimentos e partidos, que adotam variados nomes de fachada, e assim continuar vivo e atuante como uma das principais forças políticas e culturais do mundo. À época, o Brasil ainda vivia os inícios do primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, cuja incompetência administrativa e conhecida sanha por fazer alianças com o que há de pior na política latino-americana e mundial também receberam críticas e análises de Olavo. Foi o ano em que, nos cinemas, estreou a obra-prima de Mel Gibson, A Paixão de Cristo, duramente acusada de promover o antissemitismo — o assunto, por essa razão, também ganhou algumas páginas desta nossa coletânea. Ainda em 2004, nos Estados Unidos, Bush era reeleito ao vencer o representante do Partido Democrata John Kerry; Olavo comenta o impacto da vitória do republicano e os motivos que levavam toda a casta jornalística e pseudointelectual do Brasil a apoiar Kerry. E muito mais... Vinte anos depois desses acontecimentos, vale rever registrada aqui a nossa própria história, a �m de que, ao contemplá-la, compreendamos o nosso estado presente e saibamos o que esperar do porvir. Uma coisa é certa: jamais nos esqueceremos da divisa do autor, que tinha razão ao dizer: “Muitas coisas que eu escrevi vão ser úteis depois da minha morte”. Campinas, abril de 2024 — O editor M Quando digo que o marxismo é uma “cultura”, está aí implícito que compará-lo a uma “religião” é abusar de uma analogia. Essa analogia só funciona, em parte, se por “religião” se entendem os primitivos complexos mitológicos em que crenças, ritos, governo e sociedade se fundiam numa totalidade inseparável. As religiões universais são por excelência transportáveis para fora da sua cultura originária, e o são, precisamente, porque nelas o depósito inicial da revelação se transmuta numa formulação teológico-dogmática racional com pretensões de verdade universal, a qual se oferece para ser validada ou impugnada no plano do exame teorético. Já o marxismo não admite de maneira alguma ser discutido nesse plano, porque a essência do seu conteúdo intencional, como já expliquei, não está expressa em discurso, mas imbricada organicamente, como um segredo mudo, no tecido da prática revolucionária, do qual deve ser desentranhada por meio de sutis mutações de signi�cado, procedimento esotérico cuja autoridade transcende a dos escritos do próprio Marx. Antonio Negri, escrevendo em 1994 sobre uma discussão com Norberto Bobbio, a�rma: Para Bobbio, uma teoria marxista do Estado só poderia ser aquela que derivasse de uma cuidadosa leitura da obra do próprio Marx. Para o autor marxista radical (Negri), no entanto, era a crítica prática das instituições jurídicas e estatais desde a perspectiva do movimento revolucionário — uma prática que tinha pouco a ver com �lologia marxista, mas pertencia antes à hermenêutica marxista da construção de um sujeito revolucionário e à expressão do seu poder. Se havia algo em comum entre Bobbio e seu interlocutor era que ambos consideravam o socialismo real um desenvolvimento amplamente externo ao pensamento marxista. De um lado, o marxismo não consiste nas formulações expressas de Marx, mas transmuta-se na “construção de um sujeito revolucionário”. De outro, também não se identi�ca com o “socialismo real”, isto é, com a situação historicamente objetiva produzida por essa mesma construção. Mas, se o “verdadeiro” marxismo não está nem no projeto nem no edifício, nem nas intenções da teoria nem nos resultados da prática, onde está então? Está no trajeto, no processo em si. Está nas profundezas ocultas e moventes da praxis, veladas a seus protagonistas e agora em parte desveladas peloadministração pública e privada e o apoio de variadas organizações co-irmãs, adquiriu há tempos um verdadeiro poder de polícia, investido dos meios de subjugar e destruir os adversários que bem entenda e, no mesmo ato, pelo próprio terror que inspira a sua retórica moralizante, bloquear qualquer investigação séria dos crimes em que se envolva. E o sr. José Dirceu que apadrinhou Waldomiro é o mesmo que, na dos “anões do orçamento”, brilhava com revelações espetaculares, citando até mesmo os números das cédulas recebidas como propina por fulano ou beltrano — informação só acessível a quem tivesse olheiros escondidos por toda parte. Essas duas faces não se excluem, mas se exigem mutuamente. O juiz temível e o gatuno sorrateiro são o mesmo personagem. Já ensinava Lênin: “Fomentar a corrupção e denunciá-la”. Não há um bom e um mau: o que há é estratégia, organização, informação, planejamento, convergência de todos os meios lícitos e ilícitos para o objetivo �nal: a conquista do poder, a fusão de Partido e Estado, o domínio sobre a “sociedade civil organizada” (“o Partido ampliado”, como a chamava Gramsci), a demolição total das instituições e sua substituição por um “novo modelo de democracia” que já era velho no tempo em que Fidel Castro usava fraldas. As habilidades requeridas para conduzir uma operação tão complexa estão fora do alcance dos políticos “normais”, cuja ciência não vai além das espertezas eleitoreiras, mercadológicas e parlamentares necessárias para o exercício corriqueiro da política provinciana. Quase todos os líderes do têm uma longa prática da ação clandestina, e, não por coincidência, precisamente aquele a quem o episódio recente deu a mais triste notoriedade é um agente treinado pelo serviço cubano de inteligência militar, o mais poderoso e e�caz do continente. Suas aptidões nesse campo incluem a organização de redes subterrâneas de espionagem e propaganda, in�ltração, terrorismo, bem como todas as artes da desinformação e camu�agem das quais a média da classe política nacional só tem uma idéia longínqua e fantasiosa, adquirida, na mais erudita das hipóteses, em �lmes de James Bond. Entre o e seus acusadores, a única luta possível é a da astúcia organizada contra uma pululação anárquica de indignações cegas. Sem a consciência do que está verdadeiramente em jogo, essas indignações correm o risco de se esfarelar numa poeira de protestos vãos. O Globo, 21 de fevereiro de 2004 O Ninguém, mais que os gaúchos, conhece o lado tenebroso do . O acervo de informações que coletaram a respeito é tão vasto que, não cabendo mais em páginas de jornais, acabou se condensando em livros e formando uma pequena biblioteca da teratologia política esquerdista. Obras como as de Adolpho João de Paula Couto (A face oculta da estrela), Onyx Lorenzoni (Os 500 dias do no governo), Denis Rosen�eld ( na encruzilhada), Paulo Couto e Silva (O impeachment de Olívio Dutra), José Hildebrando Dacanal (A nova classe e o pedagogo do ), Dagoberto Lima Godoy (Neocomunismo no Brasil) e José Giusti Tavares (Totalitarismo tardio) são absolutamente indispensáveis a quem queira conhecer o verdadeiro funcionamento dessa engenhoca política sui generis, capaz de somar aos rendimentos publicitários do mais agressivo moralismo as vantagens indiscutíveis da amizade com bicheiros, narcotra�cantes e seqüestradores. Se esses livros tivessem sido lidos pelo Brasil a fora, provavelmente o jamais teria conquistado a Presidência da República no instante mesmo em que perdia o governo do Rio Grande. Infelizmente, sua difusão �cou restrita a este Estado, por mais que eu �zesse para divulgá-los na mídia carioca e paulista. Foi justamente por tê-los lido que percebi, antes de qualquer outro comentarista da grande mídia nacional, a profunda e essencial articulação entre dois aspectos da organização petista que, para a opinião ingênua da maioria, permanecem separados e antagônicos: a máquina de investigação e acusação que elevou o à condição de juiz supremo da moralidade nacional e a máquina de corrupção organizada que fez dele o partido mais rico e poderoso do país. Simplesmente não pode ser coincidência que o líder petista que apadrinhou Waldomiro Diniz seja o mesmo que anos atrás, com sua experiência de agente secreto treinado em Cuba, era acusado de ter sob seu comando batalhões de olheiros e “arapongas” in�ltrados em todos os escalões da administração pública, brilhando nas ’s com informações espetaculares das quais nem as autoridades policiais dispunham. Simplesmente não pode ser coincidência que o partido mais intimamente associado a organizações internacionais criminosas como as e o chileno esteja, na escala nacional, tão próximo de quadrilhas de contraventores que, como ninguém ignora, são a fachada incruenta da indústria global do narcotrá�co e dos seqüestros. Só uma organização desse porte — e dessa complexidade — poderia realizar o prodígio de meter-se em tantas atividades suspeitas e, ao mesmo tempo, conservar a imagem de autoridade moral com que destrói a reputação de tantos adversários e reduz os demais à condição de colaboradores servis. Tudo indica que no a retórica de acusação moralista e a promiscuidade com o crime não são dois aspectos contraditórios. São peças perfeitamente articuladas de uma engrenagem gigantesca voltada para um só objetivo: a conquista do poder total por todos os meios possíveis e imagináveis, pouco importando se lícitos ou ilícitos. Está na hora de os gaúchos contarem ao Brasil tudo o que descobriram durante a era Olívio Dutra. Só assim este país poderá fazer uma idéia do tamanho da encrenca em que se meteu quando resolveu brincar de “ética” no teatro de marionetes do . Zero Hora, 22 de fevereiro de 2004 L Em alguns lugares da Europa medieval, contar que uns quantos judeus condenaram Jesus Cristo à morte no tempo de Pôncio Pilatos equivalia a dizer que todos os judeus eram culpados da morte de Jesus Cristo e deviam pagar pelo crime, mesmo tendo nascido séculos depois do ocorrido e nada sabendo a respeito. Essa interpretação fantástica do texto evangélico acabou sendo impugnada, é claro, pelas próprias igrejas cristãs, e parecia sepultada para sempre. Quem diria que ela viria a ressurgir no século , por iniciativa justamente de suas próprias vítimas? Quando o velho guerreiro Abraham Foxman farejou indícios de anti-semitismo no �lme de Mel Gibson que transpunha para a tela a narrativa bíblica da Paixão de Cristo com a maior �delidade já alcançada no cinema, o raciocínio em que se baseou foi aquele que na retórica greco-romana se chamava “argumento suicida”, em que o orador, sem perceber, argumenta contra si próprio. A colunista Jami Bernard, do New York Times, exempli�cou esse desastroso loop lógico ao a�rmar, por um lado, que Gibson fez “um traslado tecnicamente correto das últimas doze horas da vida de Cristo” e, por outro, que A Paixão é “o �lme mais virulentamente anti- semita desde os tempos da propaganda nazista”. A conclusão inevitável é que a própria narrativa evangélica é um pan�eto anti-semita. Abraham Foxman reconheceu que o problema do �lme não estava nas intenções, mas nos possíveis resultados estatísticos: contar essa história para multidões de cristãos arriscava insu�ar neles o ódio aos judeus. A dúvida poderia ser resolvida da maneira mais simples: exibir o �lme a uma platéia de cristãos e depois perguntar se saíram com raiva dos judeus ou inclinados à compaixão universal. Aliás o mesmo teste poderia ser feito com a leitura de exemplares do Evangelho, que só produziram anti-semitismo quando interpretados por monges que hoje em dia ninguém hesitaria em quali�car de loucos furiosos. Fanatizados pela propaganda nazista, os alemães �zeram um bocado de estragos no mundo há pouco mais de meio século — 1939 anos depois da morte de Cristo. Seus feitos macabros foram exibidos por milhares de �lmes e ainda sublinhados pela doutrina da “culpa coletiva”, segundo a qual todos os alemãese não somente os nazistas eram responsáveis pelo acontecido. Bem, das pessoas que assistiram a esses �lmes, quantas saíram odiando todos os alemães desde Lutero até Michael Schumacher? O número dos que odiariam os judeus depois de ver o �lme de Mel Gibson di�cilmente seria maior, mesmo porque não há, para induzi-los a esse sentimento, nenhuma doutrina da “culpa coletiva” judaica em circulação entre cristãos com maior que doze. A discussão toda é tão extravagante que sugere a existência de alguma esperteza por trás da loucura. A esperteza é a seguinte. A aliança de cristãos e judeus é a base do movimento conservador que hoje resiste ao “globalismo progressista” propugnado, na e na mídia internacional, por um comitê central de comunistas, radicais islâmicos e neonazistas. É preciso rompê-la a todo custo, e para isso trabalham incansavelmente agentes de in�uência capazes de armar as intrigas mais perversas, usando como instrumentos, de preferência, velhinhos bem-intencionados e insuspeitos como Foxman e o Papa João Paulo . Quando o primeiro, sem querer, restaura a interpretação anti-semita do Evangelho ou o segundo fala contra o muro protetivo erguido por Ariel Sharon, ambos se tornam inocentes úteis a serviço de uma manobra pér�da que se volta contra eles mesmos e suas respectivas comunidades. Mas nem todo mundo entre os judeus e cristãos é idiota de cair nessa. De um lado, os principais defensores da idoneidade de Mel Gibson são intelectuais judeus — o escritor David Horowitz e o advogado James Hirsen, além da própria atriz principal do �lme, a judia romena Maia Morgenstern. De outro, o repentino acesso de anti-sharonismo do Vaticano foi respondido com o surgimento, nos , de um enérgico movimento de “Católicos Pró- Israel”. Ainda não vi o �lme, mas, se ele é �el ao relato evangélico, não pode ser anti-semita exceto se interpretado à luz da teoria segundo a qual todos os judeus são Caifás (ou todos os alemães são o Führer). Restaurar essa teoria ou fazer de conta que o muro de Sharon é o muro de Berlim só é bom para quem seja, ao mesmo tempo, inimigo de Israel e da cristandade. Jornal da Tarde, 26 de fevereiro de 2004 E Quando soube que George W. Bush havia decidido invadir o Iraque, perguntei a mim mesmo: Por que o Iraque? Por que não o Paquistão, que tem bomba atômica e distribui tecnologia nuclear no mercado do terrorismo internacional? Por que não o Irã? Por que não a própria Arábia Saudita, de onde jorra dinheiro para Al-Qaeda, Hamas, Hezbollah e tutti quanti? Leitores, por e-mail, cobravam-me uma “tomada de posição” sobre a guerra, mas eu não tinha nenhuma. Não costumo ter opiniões sobre assuntos em que não posso interferir, e, ao contrário da quase totalidade dos articulistas deste país, não escrevo como quem espera insu�ar o pânico na Casa Branca, tirar o sono do Papa ou elevar a pressão arterial de Vladimir Putin. Tudo o que espero é falar a alguns leitores neste canto obscuro do universo, ajudando-os, na medida dos meus recursos, a orientar-se um pouco na confusão mundial. Por isso, nada opinei sobre a guerra, mas adverti meus leitores quanto à farsa dos freis Bettos que já acusavam o presidente americano pela morte iminente de “milhões de crianças iraquianas” (sic) e denunciei a estupidez dos inumeráveis “especialistas” que auguravam a destruição das tropas americanas pela todo-poderosa Guarda Republicana de Saddam Hussein. Nos últimos dias da guerra, porém, quando se abriram os cemitérios clandestinos nas prisões iraquianas e começou a contagem dos cadáveres, não pude deixar de perceber — e escrever — que a decisão de George W. Bush tinha sido moralmente acertada e até obrigatória: qualquer país que mate trezentos mil prisioneiros políticos tem de ser invadido e subjugado imediatamente, ainda que não represente perigo nenhum para as nações vizinhas ou para a suposta “ordem internacional”. As soberanias nacionais devem ser respeitadas, mas não para além do ponto em que se arrogam o direito ao genocídio. Escrevi na ocasião e repito: cada protelação da custou, em média, a morte de trinta iraquianos por dia, mais de vinte mil ao longo de dois anos de blá-blá-blá paci�sta, isto é, só nesse período, cinco vezes mais que o total de vítimas da guerra. Por ter estancado esse �uxo de sangue inocente, com um número reduzido de baixas de ambos os lados e com a menor taxa de vítimas civis já observada em todas as guerras do século , o presidente norte-americano, quaisquer que tenham sido os seus erros, merece a gratidão e o respeito de toda a humanidade consciente. A correção moral intrínseca da ação americana é tão patente e inegável, que, em todas as discussões que se seguiram na mídia internacional e brasileira, esse aspecto da questão teve de ser sistematicamente escamoteado, para concentrar o foco da atenção pública no problema de saber se Saddam Hussein tinha ou não as tais armas de destruição em massa e, portanto, se ao alegar esse motivo em particular — entre inumeráveis outros — George W. Bush tinha acertado ou não. Ora, um governo que mata trezentos mil de seus governados não precisa ter altos meios tecnológicos de destruição em massa, porque, com meios rudimentares, já começou a destruição em massa no seu próprio território e tem de ser detido, incontinenti, por quem quer que tenha os meios de fazê-lo. Os tinham esses meios, e �zeram a coisa certa. A os tinha e não fez nada. Quem, dos dois, é o criminoso? Não é à toa que aqueles que tentaram deter a ação americana — e vingar-se dela depois de vitoriosa — sejam aqueles mesmos “paci�stas” dos anos 60, que, pressionando as tropas americanas a sair do território vietnamita, entregaram o Vietnã do Sul e o Camboja nas mãos dos comunistas, os quais aí �zeram rapidamente três milhões de vítimas, três vezes mais do que o total de mortos de décadas de guerra. Nenhum americano alfabetizado ignorava que o resultado da campanha antiamericana seria esse, que a paz seria mais assassina do que a guerra. Mas as Janes Fondas e os Kerrys queriam precisamente isso. Passadas quatro décadas, só uns poucos dentre aqueles “amantes da paz” tomaram consciência do crime hediondo em que se acumpliciaram na ocasião, e esses, por confessar seu pecado, são hoje alvos de intensas campanhas de ódio e difamação. Os outros não só varreram seu velho crime para baixo do tapete da História, mas, variando levemente de pretextos, se apressam hoje em reincidir nele com alegria feroz, fazendo de conta que trezentos mil mortos não são nada, que deter pela força o genocídio iraquiano foi — para falar como o ridículo e perverso José Saramago — “uma atrocidade”. Que argumentos como esse só possam prevalecer por meio da total falsi�cação do noticiário, é coisa que não espanta. Por toda parte a mídia alardeou, por exemplo, a con�ssão do inspetor David Kay de que não encontrara armas de destruição em massa no Iraque — porque essas palavras criavam a má impressão de que George W. Bush havia atacado um país inocente —, e escondeu do público a continuação da frase: “Depois descobrimos que o Iraque era muito mais perigoso do que imaginávamos”. Folha de São Paulo, 27 de fevereiro de 2004 O O senador Jefferson Perez tem toda a razão ao a�rmar que “pela primeira vez no Brasil um partido domina o poder e a sociedade civil organizada”. Onde ele erra é no termo geral com que sintetiza o estado de coisas. “Mexicanização” não é sequer um conceito descritivo, é uma �gura de linguagem, que alude a um fenômeno pela vaga semelhança com outro. Mas o que se passa aqui não é tão misterioso que nem tenha um nome apropriado. O sr. Perez chega perto dele ao usar a expressão “sociedade civil organizada”, mas logo perde a pista ao derivar para uma analogia imprópria. “Sociedade civil organizada” é o termo técnico com que Antonio Gramsci designa a rede de entidades extrapartidárias controladas pelo Partido. Dizer que o Partido as controla é portanto redundante: elas constituem, segundo Gramsci, “o Partido ampliado”. Quando essarede abrange os principais canais de expressão da sociedade, não há mais opinião pública: há apenas a voz do Partido, ecoada em muitos tons e oitavas que simulam variedade espontânea. É a materialização da “hegemonia cultural” que monopoliza as idéias em circulação e forja até o vocabulário dos debates públicos, adquirindo sobre a mentalidade geral “o poder onipresente e invisível de uma lei natural, de um imperativo categórico, de um mandamento divino” (sic). O fato mesmo de aquela expressão ser usada por muitos como termo neutro, sem a menor consciência de sua origem e de suas implicações estratégicas, basta para mostrar o alcance da “hegemonia”. A organização da sociedade civil, diz Gramsci, deve preceder de muito a conquista do Estado. Nos tempos da ditadura, quando os generais imaginavam dominar tudo porque tinham a guerrilha sob seus pés, a elite do Partidão, bem tolerada pelo governo porque alheia à violência armada, tratava de estudar a estratégia gramsciana e colocá-la em prática diante dos olhos cegos da autoridade. O Brasil de hoje nasceu aí. O próprio sr. Perez admite que naquela época a esquerda já adquiriu o controle da sociedade civil. Mas ele erra também quando limita as possibilidades de explicação do fenômeno a uma alternativa paralisante: “conspiração” ou “coincidência”? O que há não é uma coisa nem a outra. É “grande estratégia”. A adesão do ao gramscismo obedeceu à nova “linha geral” adotada pelo Politburô soviético entre 1958 e 1960,3 que, inspirada no exemplo da leninista de 1921, recomendou a todos os partidos comunistas o �m do monolitismo stalinista, concessões aos interesses capitalistas privados, o eventual abandono da identidade comunista explícita e a fragmentação num pluripartidarismo aparente, a penetração ampla na sociedade civil para absorver todas as correntes de opinião aproveitáveis, de modo a marginalizar o anticomunismo e seduzir até os conservadores para as belezas do “socialismo com face humana” encarnado na perestroika. No plano internacional, essa política, calculada para durar quatro décadas, visava a formar uma Europa socialdemocrática “unida do Atlântico aos Urais”, isolando os e induzindo-os a desarmar-se ideologicamente (e militarmente) em nome da “convergência” anunciada de capitalismo e socialismo numa “nova ordem global” apadrinhada pela . Anestesiado o sentimento anticomunista, os festejaram o “�m da Guerra Fria”, sem perceber que com isso apenas cediam ao inimigo o direito de prossegui-la unilateralmente em condições ideais, nas quais toda resistência já estava de antemão condenada como saudosismo, desamor à “paz” e, é claro, paranóia. Com alguns percalços vistosos que não abalaram em nada o seu centro orientador, a estratégia alcançou o objetivo desejado, como se vê hoje pela hostilidade global anti- e anti-Israel. No tempo de Stálin, isso seria sonhar demais. Hoje é uma realidade. Perto disso, a Revolução Mexicana foi apenas um fuzuê de caipiras. O que se passa no Brasil é a Revolução Gramsciana, manifestação local da grande estratégia comunista mundial. É preciso estar muito, muito alienado para não enxergar uma coisa tão patente. O Globo, 28 de fevereiro de 2004 É Depois dos estudos de Eric Voegelin, Norman Cohn, Stefan Rossbach, James Billington e tantos outros, não se pode mais negar seriamente que os modernos movimentos revolucionários — socialismo, nazismo, etc. — descendam em linha direta das seitas gnósticas do início da era cristã. O essencial da mitologia gnóstica é o sentimento de que o ser humano é uma entidade celeste aprisionada no mundo mau que uma divindade rebelde criou contra a vontade do verdadeiro “deus”. Essa anástrofe da narrativa do Gênesis traduz-se numa prática ascética que é, por sua vez, a inversão parasitária, a caricatura demoníaca da obediência judaica e da humildade cristã. O gnóstico, ao tomar consciência de sua condição de prisioneiro do cosmos, decide se libertar dela, seja pela evasão subjetivista ou pela destruição ativa do mundo e de seu cortejo de injustiças, a começar pela “desigualdade social”. Por meio da conversão gnóstica, o sujeito adquire uma dignidade espiritual excelsa e já não pode ser julgado pela moral comum. Mesmo que cometa crimes e atrocidades piores do que aqueles que denuncia, ele está previamente justi�cado pela esperança redentora e trans�guradora que o anima. Quando, a partir do século , o desejo de supressão do universo criado evoluiu para a idéia aparentemente mais factível de transmutar a estrutura do tempo e inaugurar na Terra um paraíso milenarista de igualdade e justiça, o gnosticismo estava maduro para transformar-se, de um aglomerado de seitas exóticas, num esquadrão de poderosos movimentos de massas. O peculiar ethos gnóstico — a convicção da impecabilidade essencial do revolucionário — confere a esses movimentos o direito de elevar a quota de mal no mundo até um nível que os profanos não teriam podido sequer imaginar, e de não obstante, ou por isso mesmo, continuar a considerar-se a encarnação máxima do bem. As lideranças revolucionárias podem promover a seu bel- prazer o genocídio, o terrorismo, o narcotrá�co, o contrabando, os seqüestros, bem como a corrosão das defesas morais da sociedade por meio de modas intelectuais como o desconstrucionismo, o relativismo, a utopia lisérgica ou a teologia da libertação, ao mesmo tempo que, vendo a devastação resultante, jamais reconhecem aí a obra de suas próprias mãos e, quanto mais pervertem a ordem social, mais jogam sobre ela a culpa de todos os pecados, adquirindo com isso uma considerável autoridade moral sobre as multidões. O cidadão comum, ignorante das correntes históricas que geraram esse estado de coisas, �ca atônito ante a degradação geral e dá tanto mais crédito aos discursos de acusação revolucionária, sem suspeitar que vêm da mesma fonte dos horrores que o atormentam. A mentalidade vulgar, incapaz de explicar as condutas humanas senão pelos motivos banais que se aplicariam a ela própria — hipocrisia, busca de vantagens materiais, compulsão neurótica etc. —, torna-se presa fácil da manobra revolucionária justamente porque não pode atinar com as complexidades tenebrosas da alma gnóstica. Por isso, a cada nova revelação de seus crimes e desvarios, o movimento revolucionário emerge fortalecido e não debilitado. O método de gerenciamento de danos é constante e auto-reprodutível há mais de um século. Primeiro espalha-se o mal por toda parte, impugnando seus denunciadores como agentes a soldo do pér�do mundo presente, empenhados em defender seus “privilégios” contra o advento do “outro mundo possível”. Quando, como sempre acontece, as denúncias se con�rmam, o movimento se salva in extremis entregando ao patíbulo alguns militantes apanhados com a boca na botija — ou bodes expiatórios escolhidos a esmo —, mas acusando-os, não de ter feito precisamente o que ele próprio os mandou fazer, e sim de ter-se vendido aos adversários. Se o cristianismo condena o pecado absolvendo o pecador, a moral gnóstica sacri�ca o pecador para proteger o pecado, que assim renasce interminavelmente de sua própria punição simulada. Por favor, poupem-me de detalhar como esse processo se veri�ca no Brasil de hoje. É demasiado óbvio para merecer um artigo. O Globo, 6 de março de 2004 A Informado de que Porto Alegre sediará em breve um Tribunal Popular internacional para o julgamento e previsível condenação dos transgênicos, apresso-me em colaborar com o sucesso do empreendimento, fornecendo aos excelentíssimos senhores magistrados alguns elementos de prova sem os quais a identi�cação e punição dos criminosos se revelará demasiado problemática. As sementes transgênicas são atualmente denunciadas como engenhos alimentares malignos concebidos pelo imperialismo americano para envenenar a população do Terceiro Mundo e ainda tomar o dinheiro dela em troca de um catastró�co arremedo de comida. Mas o fato é que, na América Latina, o maior produtor e ao mesmo tempo consumidorde transgênicos é Cuba. Praticamente toda a agricultura cubana depende hoje de sementes transgênicas, cujo sucesso econômico e virtudes alimentícias são constantemente louvados pelo governo do sr. Fidel Castro. Ora, não está certo que o tribunal, sendo composto essencialmente de militantes e simpatizantes do socialismo, se empenhe em banir os transgênicos da parte capitalista do globo, sobre a qual os partidos de esquerda desfrutam no máximo de uma autoridade parcial e relativa, e nada faça para expulsar essas plantas malignas de um país socialista, onde os capitalistas não mandam nada e não podem oferecer resistência a tão salutar medida saneadora. Também não está direito combater o ingresso das referidas sementes num território onde ainda mal penetraram e onde há tantos requiões solícitos para impedi-las de circular, enquanto nada se faz para deter sua expansão num pequeno país que essas malvadas já dominaram quase por completo e que, sobretudo, não foi dotado pela natureza com a presença pro�lática de um único requião sequer. Pela ordem das prioridades, pois, venho requerer ao egrégio tribunal que estabeleça como item prioritário da sua pauta de trabalhos a seguinte palavra-de-ordem: “Transgênicos fora de Cuba!”. Nada poderia ser mais lógico, mais sério, mais conseqüente. No entanto, observo que não somente os transgênicos cubanos continuam bem recebidos em sua terra natal, mas já estenderam suas patinhas (se é que os vegetais têm patas) ao território brasileiro, através do principal instituto cubano produtor dessas sementes, o qual instalou uma �lial no Rio de Janeiro através de convênio com uma universidade local. Caso o tribunal não diga uma palavra contra essa ameaça iminente de envenenamento de nossa população pela agrotecnia caribenha, ao mesmo tempo que faz desabar implacavelmente a mão da justiça sobre os pér�dos agentes vegetais do imperialismo, terei de concluir que, no seu entender, deve haver uma diferença bioquímica essencial e irredutível entre os transgênicos politicamente corretos e os incorretos, voltando-se o instinto justiceiro daquela instituição tão somente contra estes últimos, jamais — oh, jamais! — contra os primeiros. Nessa hipótese, será preciso admitir ainda, em boa lógica, que o próprio tribunal, tendo oposto uma barreira de requiões aos transgênicos ianques, deixará tudo pronto para a livre circulação de seus equivalentes socialistas e revolucionários, contra os quais, �ndos os trabalhos da corte, já ninguém terá mais nada a dizer, exceto eu, é claro, que não tenho a mínima importância na ordem das coisas e ademais não entendo lhufas de agricultura. Donde se depreende, na mesma linha de raciocínio, que, se o próprio governo cubano não está dando uma forcinha para a instalação desse tribunal, e porventura nem sabe da existência dele, é obrigação de seus simpatizantes e colaboradores informá-lo a respeito o quanto antes, para que não perca a oportunidade comercial de ouro que a condenação dos transgênicos imperialistas abrirá para seus concorrentes ideologicamente puros e santíssimos. A�nal, socialismo também é business. Zero Hora, 7 de março de 2004 F A primeira vez que vi no cinema uma assembléia de judeus condenar Cristo à morte não foi em A Paixão de Cristo. Foi em Barrabás, dirigido em 1962 por Richard Fleischer. Embora os defensores de Barrabás fossem ali apresentados como uma corja de bandidos, o �lme não suscitou nenhum escândalo. A imagem dos judeus em A Paixão não é pior do que em Barrabás. Caifás, por exemplo, aparece como juiz duro mas consciencioso, ralhando com os apressados que lhe trazem acusações sem provas e só se enfurecendo ante o que julga sinceramente ser uma blasfêmia. A diferença é que o �lme de Fleischer era um espetáculo neutro — “nem cristão nem anticristão”, escreveu o crítico Bernard Gratadour —, ao passo que o de Mel Gibson exige uma tomada de posição radical: ou você é pró-cristão ou é anticristão. Se é cristão ou pró- cristão, sua reação será provavelmente a do pastor protestante e radialista Paul Harvey: “A Paixão evocou em mim mais profunda re�exão, compunção e reação emocional do que qualquer coisa desde meu casamento, minha ordenação ou o nascimento de meus �lhos. Francamente: nunca mais serei o mesmo”. Se você é anticristão, o núcleo espiritual do �lme lhe escapará por completo e, transpondo algum elemento marginal para o centro do quadro, você entenderá a narrativa por um viés subjetivista deformante. Em qualquer obra de arte, o sentido das partes só se elucida na estrutura do todo. Desligados do sentido geral, os fragmentos isolados são matrizes de falsas interpretações, não só do conjunto como também deles próprios. É aí que o �lme se torna o que o espectador quiser: apologia do anti-semitismo, culto da violência ou até, na cabeça do dr. Jacob Pinheiro Goldberg, cine-pornô. É por isso que a polêmica em torno do espetáculo não opõe pró- judeus a antijudeus, como ocorreria num caso de anti-semitismo inequívoco, e sim, de um lado, materialistas, secularistas, marxistas, etc. (tanto judeus quanto não-judeus), e, de outro, cristãos e judeus pró-cristãos. Umas poucas exceções em ambos os lados con�rmam a linha divisória geral, análoga àquela que, no Evangelho, divide inimigos e amigos de Jesus. A perspectiva do primeiro partido é torta por de�nição, já que seus membros, odiando a espiritualidade cristã, não querem enxergá-la no �lme. Desprezando a emoção religiosa que ele infunde na platéia cristã, chegam a proclamar, com o dr. Goldberg, que “é um �lme anticristão”, como se a eles e não aos �éis da Igreja coubesse decidir o que é e o que não é da sua fé. O rabino Shmuley Boteach, autor de best-sellers, confessa que sua opinião hostil nasceu de uma fantasia subjetiva: O �lme terminou e a platéia caminhou lentamente para fora do cinema, num silêncio de pedra. Todo mundo parecia um tanto meditativo e contemplativo, isto é, todo mundo menos eu. Eu estava muito ocupado me escondendo dentro do meu paletó, paranoicamente �xado na minha semelhança com os rabinos deicidas retratados no �lme. “Rapaz”, pensei eu comigo mesmo, “seguramente essas pessoas vão pensar que fui eu quem fez isso”. Com esse viés, ele não podia mesmo perceber que, à luz do cristianismo, seus temores eram vãos, já que o próprio Cristo na cruz intercedera pelo perdão de seus algozes e, a�nal, “tudo o que pedirdes em Meu nome vos será dado”. Quem quer que tenha perseguido os descendentes dos tais “rabinos deicidas” fez isso contra a ordem de Cristo e cometeu um pecado tão grande quanto o deles. O Holocausto foi uma segunda Paixão — e tão judeus quanto aqueles rabinos eram o próprio Cristo, Sua família e Seus discípulos, bem como os homens que O defenderam no tribunal, as mulheres que gritaram de horror ante a crueldade romana e o rapaz valente que O ajudou a carregar a cruz. Este último, aliás, é o único personagem que, no �lme, é chamado depreciativamente de “judeu”, o que já basta para mostrar acima de qualquer possibilidade de dúvida o que Mel Gibson pensa do anti-semitismo. Não querendo entender isso, o rabino viu na platéia cristã uma assembléia de nazistas em potencial, prontos para cruci�car Shmuley Boteach na primeira esquina. Não consta, no entanto, que até agora um único espectador de A Paixão de Cristo tenha sido induzido pelo �lme a manifestar sentimentos anti-semitas. Fanáticos insu�ados pela campanha anti- Gibson é que já começaram a expressar abertamente seu ódio a qualquer cristianismo que lhes pareça politicamente incorreto. Jim Caviezel e outros atores do �lme, não podendo sair à rua sem ser xingados por grupos de manifestantes enragés, tiveram de contratar guarda-costas. Isso era mais que previsível. O alegado potencial anti-semita do �lme, se existe, é sutil e evanescente até à completa invisibilidade, pois não foi percebido nem pelos atores judeus que participaram da produção (Olek Mincer e Maia Morgenstern), nem por centenas de intelectuais judeus que, como David Horowitz, Don Feder, Burt Prelutsky ou James Hirsen,defendem o trabalho de Gibson. Mas, na imprensa bem-pensante, a expressão coletiva de ódio aos cristãos conservadores — e mesmo ao cristianismo tout court — não é sutil nem disfarçada. A resenhista do New York Times, Jami Bernard, por exemplo, reconhecendo que A Paixão é traslado correto da narrativa evangélica, proclama que “é o �lme mais anti-semita desde os tempos da propaganda nazista”. O sentido do raciocínio é claro: anti-semita é o Evangelho. Tão anti-semita quanto qualquer produção do Ministério da Propaganda do Terceiro Reich. É verdade que, muitas vezes, o episódio do julgamento foi interpretado em sentido anti-semita. Mas todas as igrejas cristãs impugnaram essa interpretação. Por que, então, a polêmica contra um �lme que não faz senão reproduzir a cena tal como descrita no Evangelho? Bernard et caterva não ocultam seu objetivo: querem que a Igreja risque a cena mesma, impugne a narrativa evangélica, abjure de capítulos inteiros do texto sacro, contrita e genu�exa ante a pressão da mídia e do mundo. Aí torna-se claro por que tantos detratores não precisaram nem ver o �lme para condená-lo. O assalto geral ao cristianismo já vinha num crescendo aterrador desde muitas décadas, e recentemente passou a uma etapa superior: quer adquirir o estatuto de norma o�cial, criminalizando o cristianismo. No ano passado, trechos dos Evangelhos foram condenados por um tribunal canadense como “literatura de ódio”, enquanto no ensino público dos toda mensagem cristã está formalmente proibida. Se o anti-semitismo intelectual espalhado na cultura do Ocidente ao longo dos séculos carrega a culpa de ter preparado a barbárie nazista, o anticristianismo também não �cou no céu das idéias puras mas se exteriorizou em perseguições genocidas que não �zeram, pelo mais modesto dos cálculos, menos de dez milhões de vítimas. A matança organizada de judeus cessou depois da Segunda Guerra, mas a de cristãos continua, e em doses crescentes. Segundo o historiador (judeu) Michael Horowitz, na década de 90 ela chegou a 150 mil mortos por ano. A guerra de extermínio contra o cristianismo, que vem desde o século , mudou de estilo e redobrou de intensidade a partir dos anos 60, quando a indústria cinematográ�ca passou a produzir �lmes anticristãos em massa, ao mesmo tempo que, nas universidades, o anticristianismo militante se tornava prática acadêmica regulamentar por meio de teses e livros soi-disant cientí�cos, publicados em quantidade tal que nenhum grupo cristão teria, na mídia que os aplaude, o espaço necessário para contestá-los. Se hoje em dia nenhum anti-semitismo pode escapar de responder pelo crime de incitação ao genocídio, por que o anticristianismo continua livre de acusação idêntica? Como dizia Richard Weaver, “as idéias têm conseqüências” — e as da guerra anticristã já se tornaram visíveis desde que a Revolução Francesa, em poucos meses, matou dez vezes mais gente do que a tão falada Inquisição matara em quatro séculos. Não obstante, o anticristianismo é ainda aceito na sociedade como opinião decente, até mesmo charmosa. Boteach diz que achou o �lme “uma grosseira difamação, não só dos judeus mas sobretudo do cristianismo, que é mostrado como uma religião de sangue, chacina e morte em vez de bênção, amor e vida”. Não sei se é loucura ou cinismo. Se mostrar os romanos torturando Cristo é acusar Cristo de violência e crueldade, mostrar judeus sendo assassinados pelos nazistas é acusar os judeus de genocídio. Ou isso, ou Boteach é o Bilinguis maledictus de que fala a Bíblia, jogando contra os cristãos uma insinuação diabolicamente venenosa e ainda se fazendo de amigo deles. Nos , as igrejas católicas e protestantes recomendaram o �lme a seus �éis. Mas decerto elas não entendem nada de cristianismo. Quem entende é Shmuley Boteach, é o dr. Goldberg, é a srta. Bernard. São eles e o exército de materialistas, secularistas e anticristãos militantes que os apóia. Tão arrogante é a pretensão da confraria, que se permite até excomungar os cristãos tradicionalistas, tratando-os pejorativamente como “uma seita” e desprezando a autoridade da Igreja que os recebe como �lhos e lhes reconhece o direito de freqüentar a missa pré-conciliar. No dia em que as igrejas cristãs se curvarem a esse tipo de “�scalização externa” da sua ortodoxia, o cristianismo terá desaparecido da face da Terra, exatamente como Lênin queria. Aliás, como perguntou Barbara Simpson, apresentadora de um talk- show de grande sucesso, onde estava o zelo pró-cristão desses �scais quando um cruci�xo imerso em urina foi premiado como arte? Onde estava quando uma imagem da Virgem coberta de cocô de elefante foi celebrada como obra de gênio? Onde estava quando �lmes incensados pela mídia mostravam um Cristo homossexual ou promíscuo? Não há sinceridade nem honradez numa campanha que, alegando zelo e amizade, exige que as igrejas cristãs se prosternem ante a opinião mundana. Tenho sido, na mídia brasileira, o único colunista persistentemente pró-judeu, o que já me valeu ser chamado até de “agente do Mossad”. Mas tudo tem um limite. Estou com Israel, mas não estou com a srta. Bernard, o rabino Boteach, o dr. Goldberg e sua quadrilha de intrigantes empenhados em humilhar a Igreja sob o manto da falsa amizade. Sua afetação de zelo judaico também não me convence. Na mesma semana em que se reuniam para destruir um inocente, o beautiful people de Hollywood prestava homenagem a Leni Refensthal, cineasta o�cial do Terceiro Reich, e eles não disseram uma palavra contra. Por quê? Porque o beautiful people não é cristão, e aqueles zelotes não têm coragem bastante para comprar uma briga contra o secularismo moderno. Mais prudente, no entender deles, era voltar a ira da assembléia contra o cristão Mel Gibson. O que não mediram foi o preço de colocar em risco, por uma suspeita �ngida, a aliança entre cristãos e judeus, da qual depende hoje a segurança do mundo. Bravo!, 10 de março de 2004 C Duas semanas atrás, escrevi aqui que nada, exceto mudanças imprevisíveis do quadro internacional ou uma intervenção da vontade divina, abalaria o poder do . Nos dias seguintes, a eclosão do escândalo Waldomiro pareceu desmentir minhas palavras, mas, passadas duas semanas, revelou ser a mais cabal con�rmação que elas poderiam esperar. Se algo esse acontecimento demonstrou, foi que: 1º) o partido governante não tem a menor intenção de curvar-se às exigências morais e legais das quais se serviu durante uma década para destruir reputações, afastar obstáculos, chantagear a opinião pública e conquistar a hegemonia; 2º) denúncias e acusações não têm a mínima condição de obrigá-lo a isso, porque não há força organizada para transformá-las em armas políticas como o fez com as denúncias contra Collor, Magalhães, Maluf e tutti quanti; 3º) se por um motivo qualquer o cair em total descrédito e não tiver mais condições de governar, entrará em ação o Plano : suicidar o governo alegando que falhou porque estava muito “à direita” e aproveitar-se da oportunidade para acelerar a transformação revolucionária do país, seja radicalizando a política o�cial, seja reciclando o partido dominante por meio de expurgos e autocríticas, seja transferindo sua militância para outra e mais agressiva organização de esquerda. Os condutores do processo terão nisso a colaboração servil e sonsa das oposições “de direita”, que, hipnotizadas pela ilusão de normalidade constitucional que criaram para se proteger do medo da realidade, ainda insistem em imaginar o adversário apenas como uma legenda partidária e não como uma estratégia revolucionária abrangente. Na verdade, não é nem exato dizer que “o ” está no poder. Quem está no poder é o “Foro de São Paulo”, entidade tentacular da qual o partido do sr. José Dirceu é apenas um dos braços. Os demais estão espalhados em outros partidos, incluindo e . O mais certo, para �ns de diagnóstico, seria reconhecer logo a unidade estratégica por trás de tudo isso — o que não é nada difícil, basta ler as atas do Foro — e chamaro conjunto por um nome uni�cado, que pode ser o do velho , Partido Comunista Brasileiro, ou qualquer outro. Esse partido tem um exército de militantes, formados ao longo de quatro décadas de arregimentação, doutrinação e organização, treinados e prontos para, num instante, promover agitações em qualquer ponto do país, simulando mobilização espontânea da opinião pública ao ponto de a própria opinião pública acreditar nisso. Tem um segundo exército de reserva, constituído pelas massas de agitadores do , dispostos a matar e morrer para destruir os inimigos da revolução socialista. Tem uma vasta rede de espiões in�ltrados em todos os escalões da administração estatal, bem como na mídia e em empresas privadas. Tem o apoio internacional armado das , a mais poderosa organização militar da América Latina, e de outras entidades similares, todas ligadas de perto ou de longe ao banditismo organizado local. Tem uma rede de contatos na mídia européia e americana para lhe dar respaldo em qualquer campanha que mova contra quem quer que seja, tornando o infeliz, aos olhos do mundo, um virtual inimigo da espécie humana. Tem uma rede de ’s milionárias, subsidiadas do Exterior, para dar um e�ciente simulacro de legitimidade moral e respaldo social a qualquer palavra de ordem emanada do comando partidário. Tem uma fonte ilimitada de dinheiro, constituída pelo artifício do “dízimo” dado em troca de cargos públicos. E tem, agora, o controle da máquina �scal e policial do Estado. Perto disso, que são os partidos “de oposição”, senão castelos de geléia, trêmulos e prontos a desabar ao primeiro sopro do lobo petista? Por não levar em conta esse estado de coisas, as opiniões que circulam na mídia sobre a atual situação brasileira são de uma irrealidade a toda prova. Treinados para lidar com as pequenas intrigas da política constitucional corriqueira, nossos “comentaristas”, “especialistas” e “politólogos” de plantão �cam inermes ante uma estratégia revolucionária continental que transcende in�nitamente o seu horizonte de consciência. Exceto, é claro, aqueles que ajudaram a formular essa estratégia e têm interesse em evitar que ela seja objeto de exame. Por isso o chamado “debate nacional” é apenas uma troca de idéias fúteis entre a inconsciência e a desconversa. Jornal da Tarde, 11 de março de 2004 O Poder moderador é aquela instância suprema que paira acima das disputas de partidos, grupos, seitas, idéias e indivíduos. Tivemos um na pessoa do imperador. Pedro não era liberal nem conservador, nem progressista nem reacionário. Era o molde pelo qual se recortava a sociedade, tanto nos seus limites externos quanto nas suas diferenciações internas. Era o ponto arquimédico da coincidentia oppositorum, a medida de todas as coisas, o primeiro motor imóvel do microcosmo nacional. Destronado, foi substituído por uma oligarquia que tentou copiar sua imobilidade olímpica mas fracassou pela impotência de controlar seus con�itos internos. Getúlio Vargas, que a derrubou, soube assumir o lugar de Pedro , apenas variando o método. Onde o imperador se mantivera como eixo da roda por meio de um distanciamento aristocrático que raiava a indiferença, Getúlio se conservava no centro pela sua habilidade de ir simultaneamente em todas as direções, de se meter em tudo sem se comprometer com nada, chegando a criar ao mesmo tempo um partido trabalhista e um conservador, e fazendo en�m, como notou José Ortega y Gasset, “política de esquerda com a mão direita e política de direita com a mão esquerda”. Esgotadas as possibilidades desse leque de arranjos, a mesma entidade que derruba o ditador — a força armada — assume as funções de poder moderador. De início, mantém-se num discreto segundo plano, mas impondo de longe o padrão e a medida, aparando excessos e desequilíbrios de um lado e de outro, demarcando sutilmente — às vezes não tão sutilmente — a fronteira entre o proibido e o permitido. A classe política se agita, berra, esbraveja, mas sabe que, sem o “nihil obstat” dos generais, nada se fará. Daí a intensa necessidade de persuadi-los, de conquistá-los, ou então de usurpar a base mesma do seu poder: a liderança da tropa. Ao �m de duas décadas de sedução, de envolvimento, de in�ltração, as dissensões que minam o corpo da sociedade vazam para dentro dos quartéis. Tropas rebelam-se, o�ciais alinham-se com este ou aquele partido, o poder moderador naufraga. O fracasso da vigilância discreta deságua no movimento de março de 1964, quando a elite militar assume diretamente o comando do processo. Mas assume-o querendo conservar, ao mesmo tempo, suas prerrogativas morais de casta nobre superior às contingências da “mera política”. Para a “política” criam-se dois partidos, mas, como o poder moderador já não controla somente o Estado e sim também o governo, a “política” se esgota em dar ou tirar legitimação simbólica às decisões da autoridade suprema. Numa curiosa inversão da ordem monárquica, é a classe política que reina mas não governa. Como isso não podia durar, não durou. De 1988 a 2002, as Forças Armadas retiram-se para uma posição cada vez mais recolhida, mais humilhante, lutando para conservar seu sentimento de honra sob as cusparadas da mídia, o corte drástico de recursos, o desmantelamento da indústria bélica e a perda das cadeiras militares no ministério. A ascensão da classe política faz-se sob a forma de uma proliferação cancerosa de entidades partidárias das quais só uma tem programa a longo prazo, estratégia abrangente, vasta militância organizada e apoio externo — numa gama que vai desde a grande mídia internacional até um feixe de organizações terroristas e narcoterroristas. Será de estranhar que essa entidade, subindo ao poder, não queira se comportar como um partido entre outros, ocupante ocasional e cíclico do executivo, mas tenda a elevar-se ao estatuto de novo poder moderador, remoldando o cenário político à sua imagem e semelhança e reduzindo os demais partidos à condição de forças auxiliares ou de oposições consentidas, cingidas à discussão de picuinhas sem o menor alcance estratégico? O Brasil jamais viveu — parece que não sabe viver — sem um poder moderador. Destronado o imperador, esvaziada a oligarquia, caído o ditador, subjugadas as Forças Armadas, quem poderia ocupar o posto, senão aquele partido que aprendeu em Gramsci a só operar dentro do sistema para engoli-lo e tornar-se ele próprio o sistema? O Globo, 13 de março de 2004 R Tenho estudado bastante a questão do anti-semitismo; algumas entidades judaicas já me ouviram falar a respeito e sabem que não sou, no assunto, nenhum novato, nenhum ingênuo, nenhum palpiteiro leviano. Quem dedica longo tempo a um problema acaba por levantar perguntas que não ocorreriam ao recém-chegado — e às vezes encontra respostas que parecem incompreensíveis e chocantes a quem não fez sequer as perguntas. Em maio de 2002, quando a mídia esquerdista fazia alarde da ameaça anti-semita personi�cada no sr. Le Pen, escrevi: Por que os judeus haveriam de con�ar em quem os adverte contra um inimigo desarmado ao mesmo tempo que ajuda o inimigo armado? Por que a esquerda mundial estaria tão ansiosa para protegê-los contra um perigo futuro e hipotético na França, quando se esforça para entregá-los às garras de um perigo real e imediato na sua própria terra? Mas o anti-semitismo de Le Pen, por desarmado que fosse, ao menos era explícito e inegável. Já Mel Gibson proclama que os judeus não foram mais culpados do que ele próprio pelo assassinato de Cristo, e no entanto, segundo a mídia iluminada, há motivos para temê-lo como se fosse a Inquisição rediviva. Deixarei para analisar mais tarde o �lme que deu pretexto à celeuma. Por enquanto só quero chamar a atenção para um detalhe: vocês não notaram nada de estranho no súbito acesso de �lojudaísmo que se apossou da intelligentzia esquerdista mundial? Aqueles mesmos que endossaram a farsa do “massacre de Jenin”, aqueles mesmos que comparavam Ariel Sharon a Adolf Hitler aparecem hoje como coração transbordante de zelos fraternais, vendendo ao povo judeu proteção contra o temível genocida Mel Gibson. Vocês vão cair nessa? O Papa, que sempre foi seu amigo leal, diz que não há perigo, que A Paixão de Cristo não infunde sentimentos anti-semitas em ninguém (recentes sondagens do Institute for Jewish Research mostram que não infunde mesmo), e vocês hão de preferir dar ouvidos àqueles sujeitos que na conferência de Durban tramaram para condenar o sionismo como “ideologia racista”? O próprio Abraham Foxman já reconheceu que o �lme em si não é anti-semita, intelectuais sionistas como David Horowitz asseguram que Gibson é inocente, e vocês hão de dar mais crédito àquelas lindas criaturas que, contra a intervenção no Iraque, saíram gritando pelas ruas de Nova York de mãos dadas com Louis Farrakhan e David Duke? Hão de se precaver contra uma hipótese rebuscada enquanto se expõem ao perigo manifesto de aceitar os serviços de advogados indignos de crédito, entre os quais, no Brasil, gente bem articulada com o Foro de São Paulo e, através dele, com o terrorismo islâmico? Hão de se deixar manipular como os eleitores espanhóis e, ludibriados pelos inimigos, voltar-se contra os amigos? Algo no meu íntimo diz que não, que essa tragédia postiça não chegará ao medonho desenlace planejado. Mas a mídia esquerdista sabe combinar a supressão dos fatos com a produção de factóides. O pronunciamento o�cial do Papa em favor do �lme foi omitido ou abafado em quase todos os jornais brasileiros. As opiniões de judeus americanos pró-Gibson foram totalmente excluídas, para criar a falsa impressão de unanimidade hostil. Em compensação, publicou-se uma longa entrevista com o líder de um grupo ultramontano em São Paulo, que endossa a culpabilidade hereditária “dos” judeus. Vocês lêem e vêem aí a prova de que “os” católicos conservadores são mesmo anti-semitas. O que ninguém lhes informa é que o referido é um tipo isolado, detestado igualmente na , na Sociedade de São Pio e em todos os meios tradicionalistas que ele ali parece representar. Meu recado aos judeus é simples: nenhum mal lhes virá pelo lado cristão. Os inimigos de Israel são hoje os inimigos da cristandade. Se vocês querem mesmo saber de onde vem o perigo, leiam o livro do rabino Marvin S. Antelman, To Eliminate the Opiate,4 e acordem. Não precisam endossar o diagnóstico em detalhes. Mas verão que, em linhas gerais, ele está na pista certa — e essa pista passa a muitas léguas de Mel Gibson. O Globo, 18 de março de 2004 N As duas notícias mais importantes da semana foram omitidas, uma pela totalidade dos jornais brasileiros, outra pela quase totalidade. Primeira: a prova de que os atentados de Madri foram planejados para eleger os socialistas. Segunda: o pronunciamento — agora o�cial — do Vaticano sobre o �lme A Paixão de Cristo. “O governo espanhol não agüentará mais dois golpes, três no máximo”, diz uma mensagem interna de Al-Qaeda, escrita em dezembro e agora divulgada pela : depois disso, prossegue o comunicado, “a vitória do Partido Socialista estará quase garantida, e com ela a retirada das tropas”. A idéia de que os terroristas manipularam as eleições é, portanto, a simples expressão de um fato. Mas, no entender de muitos dos nossos jornalistas, talvez seja melhor o leitor brasileiro não saber disso. Tanto mais que, segundo as últimas sondagens, publicadas no , 56% dos iraquianos (contra 18%) acham que o país melhorou graças à invasão americana. Só 15% querem a saída imediata das tropas, e 71% (contra 6%) acreditam que, com americanos e tudo, a vida no Iraque estará ainda melhor daqui a um ano. A campanha dos Kerrys e Zapateros contra a presença americana é, portanto, fundada apenas no ódio aos e não em qualquer zelo sincero pelo bem do povo iraquiano. Quanto à Paixão de Cristo, o Vaticano é taxativo: ali não há anti- semitismo nenhum, o �lme segue �elmente o relato evangélico, atacá- lo é atacar o Evangelho, proibi-lo é proibir o Evangelho. Quem quiser doravante falar mal do trabalho de Mel Gibson deve fazê-lo em nome do anticristianismo explícito ou decretar-se, de uma vez, mais teólogo que o Papa. Vi o �lme. O único tipo grotesco e repugnante que aparece é Herodes, assassino de crianças judias. Caifás, o sumo-sacerdote que condena Cristo, é mostrado como juiz criterioso, embora de mentalidade estreita, que ralha contra acusações sem provas e só se enfurece quando o próprio acusado repete uma declaração que, tomada literalmente, parecia mesmo blasfematória. As mulheres judias choram e gritam de pena do condenado que os romanos espancam. E o único personagem que vem a ser chamado de “judeu” em tom depreciativo é Simão, o jovem corajoso que ajuda Cristo a carregar a cruz. Se isso é anti-semitismo, eu sou o Emir Sader em pessoa. Não me espanta que o grosso da tagarelice anti-Gibson na mídia venha dos mesmos intelectuais iluminados que endossaram a farsa do “Massacre de Jenin” e compararam a cerca de Sharon ao muro de Berlim. Para desviar as atenções do perigo real que eles próprios representam para Israel, esses crápulas tentam vender à comunidade judaica uma proteção �ctícia contra o temibilíssimo Mel Gibson. Querem jogar os judeus contra a Igreja como os espanhóis foram jogados contra os . *** Circulou pela internet um protesto ridículo contra o que escrevi aqui sobre John Kerry. Alegação: nada daquilo pode ser verdade, porque se fosse teria chegado ao conhecimento da Casa Branca e seria usado contra o candidato democrata. Que estupidez! Os não são o Brasil, onde o governo pode tudo nas eleições. As informações que dei circulam livremente em publicações importantes como WorldNetDaily (dois milhões de leitores por dia), e foram obtidas de comissões de inquérito do Congresso. Na verdade, Kerry é bem pior do que o descrevi. Se houver espaço, voltarei ao assunto. Zero Hora, 21 de março de 2004 E Creio já ter mencionado a lição de Lênin, que, quali�cando os atos terroristas de “propaganda armada”, acrescentava serem eles inúteis quando não acompanhados da correspondente “propaganda desarmada” incumbida de tirar proveito político do crime. Uma organização terrorista, pois, não se compõe só das equipes combatentes, mas também da rede de “agentes de in�uência” espalhados pela mídia e pela sociedade civil, que, protegidos sob uma aparência inofensiva de meros observadores jornalísticos ou de militantes dos partidos legais, são na verdade as peças decisivas na engenharia do pânico. A lição é novamente ilustrada pelos atentados de Madri. O encadeamento dos fatos tem aí a ordem e a nitidez de uma exempli�cação didática: 1. Em dezembro de 2003, uma mensagem interna de Al-Qaeda, divulgada pela após o atentado, a�rmava: “O governo espanhol não agüentará mais dois golpes, três no máximo”. Depois disso, prosseguia o comunicado, “a vitória do Partido Socialista estará quase garantida, e com ela a retirada das tropas espanholas do Iraque”. O objetivo da operação era, portanto, bem nítido: desacreditar o governo espanhol e eleger os socialistas. 2. Vinte e quatro horas depois das explosões, uma multidão de manifestantes acorreu às ruas, não anarquicamente, mas organizada, portando cartazes e berrando slogans que atribuíam ao governo Aznar e à aliança com os a responsabilidade moral pelo acontecido. Uma reunião espontânea de milhões de pessoas simplesmente não acontece da noite para o dia. Muito menos acontece que já venham com um discurso pronto, coerente, uniforme e, por mera coincidência, convergente com os objetivos de uma operação terrorista. É evidente que, com antecedência, a rede de ’s solidárias com o terrorismo já estava pronta para acionar a massa de militantes, simpatizantes e idiotas úteis, a “sociedade civil organizada”, para — como diria Karl Marx — completar com as armas da retórica o trabalho iniciado pela retórica das armas. 3. No dia 11 o governo espanhol, embora apostando na hipótese , divulgava pistas que incriminavam os terroristas islâmicos. Nodia seguinte, novo indício, mais eloqüente: o video tape gravado por um colaborador de Bin Laden, que assumia a autoria do atentado. 4. Poucas horas antes da eleição, os manifestantes voltaram às ruas, acrescentando em seus cartazes e refrões mais uma acusação a Aznar: a de ter ludibriado o povo, levando-o a supor que o ataque fora obra do e não dos terroristas islâmicos. Novamente, a rapidez e uniformidade da reação não podem ter sido coincidências. Tanto mais que o apelo dos slogans era rebuscado e postiço: um governo que quisesse incriminar unilateralmente o não teria, é claro, divulgado e sim ocultado as provas contra Al-Qaeda. 5. Transcorridas as eleições, alcançado o objetivo político do atentado, a mensagem que mencionei acima não havia ainda sido divulgada pela (até agora, aliás, não saiu na mídia brasileira). Mesmo assim não escapou a ninguém, por ser óbvia demais, a conexão ao menos psicológica entre a pressão terrorista e os resultados da votação. Que outra conclusão se poderia tirar dos acontecimentos senão que o eleitorado espanhol se rendera ante uma chantagem brutal? 6. No intuito de neutralizar essa impressão, uma nova campanha de propaganda foi desencadeada imediatamente em escala mundial, proclamando que os espanhóis não votaram no Partido Socialista pela razão alegada, mas sim porque estavam revoltados com o fato de Aznar, por motivos eleitoreiros, haver tentado induzi-los a crer na culpabilidade do . 7. Como os espanhóis poderiam ter interpretado as coisas assim depois de o governo ter divulgado provas que incriminavam Al- Qaeda, ninguém explica. Em vez disso, repete-se o discurso uniforme, espalhado às pressas por milhares de agentes de in�uência: os espanhóis não votaram sob o impacto de uma emoção perturbadora, não foram manipulados pela articulação de propaganda armada e desarmada. Ao contrário, escolheram com serenidade e sabedoria, rejeitando um governante mentiroso. Essa versão será repetida obsessivamente nos jornais, nas revistas e na , até que o público se esqueça dos fatos que a invalidam e só lhe reste na memória o chavão: “A vitória socialista na Espanha, exemplo de maturidade política”. Exemplo? Sim, exemplo, mas não de maturidade política. Exemplo da teoria de Lênin. Jornal da Tarde, 25 de março de 2004 D No site www.ternuma.com.br, o leitor encontrará uma lista de 120 brasileiros mortos pelos terroristas nos anos 60–70. As vítimas não identi�cadas somam por volta de oitenta. O terrorismo de esquerda não matou menos de duzentas pessoas neste país. Ao contrário dos terroristas mortos e vivos, essas pessoas não são homenageadas nos livros de História, não são pranteadas em reportagens de , não são sequer lembradas. Seus familiares não mereceram indenizações, não mereceram sequer um pedido de desculpas dos assassinos remanescentes que, hoje, brilham em altos postos do governo e repartem com seus cúmplices, num festival de interbajulação ma�osa, o dinheiro público transformado em prêmio do crime. Cada um desses criminosos foi armado, adestrado, protegido e subsidiado pelo governo cubano, servindo-o devotadamente como agente informal ou funcionário do serviço secreto. Até hoje alegam, para quem deseje acreditar, que, se ajudaram a consolidar um regime que havia encarcerado cem mil pessoas e fuzilado dezessete mil, foi por amor à democracia e à liberdade. Se aderiram ao frio maquiavelismo da estratégia comunista, foi por amor cristão e sentimentalidade romântica. Quem note aí alguma falta de lógica ainda não viu nada. Nas escolas, nossas crianças estão sendo adestradas para acreditar que a intervenção armada de Cuba no Brasil, tendo começado em 1961, foi uma justa reação aos acontecimentos de março de 1964. Para os adultos há uma lição parecida. A historiogra�a superior, após ter registrado que nesse mês de março de 1964 Luiz Carlos Prestes, secretário-geral do , proclamava com feroz alegria: “Estamos no poder!”, ensina que a iminência da tomada do Estado pelos comunistas foi uma invenção retroativa da “direita” para justi�car o golpe que eclodiu logo depois. Mais coerente ainda que a história o�cial, porém, é a Presidência da República, quando expressa horror ante os atentados da Espanha ao mesmo tempo que remunera com dinheiro, festinhas e cargos públicos os atos similares praticados em terra brasilis. No entender dos nossos governantes, bomba na estação ferroviária de Madri é crime hediondo; no aeroporto de Guararapes é obra de caridade. Os pedaços das vítimas, colados às paredes, não atinaram até hoje com essa sutil distinção. Não creio que tivessem a �nura dialética para compreendê- la. “Dialética”, aliás, é aqui a palavra-chave. Se o leitor se espanta com esses aparentes contra-sensos, mostra apenas sua falta de prática dialética. Para o militante esquerdista, ter duas línguas, das quais uma diz “sim” enquanto a outra diz “não”, é mais que um direito: é obrigação. Hegel, pai espiritual do marxismo, ensina que todo conceito traz dentro de si o seu contrário, o qual, do choque com o primeiro, gera um terceiro que, sem ser um nem o outro, e aliás nem ambos ao mesmo tempo, é a sua “superação dialética”, um treco in�nitamente melhor. Por exemplo, quando Jesus fundou a Igreja Católica, ela trazia no ventre seu adversário Lutero, o qual veio a nascer após uma breve gestação de quinze séculos. Do con�ito emergiu então Georg W. F. Hegel em pessoa, o qual, sem ser Lutero nem Jesus e nem mesmo a soma dos dois, era um sujeito ainda mais importante porque os “superava dialeticamente”. É claro que Hegel usa desse esquema com muita argúcia e delicadeza, camu�ando a enormidade do que está dizendo. Mas, quando passa pelas simpli�cações requeridas para se adaptar ao dos militantes, a dialética de Hegel volta a mostrar aquilo que era no fundo: a arte de proferir enormidades com uma expressão de fulgurante inteligência. Daí derivam algumas artes secundárias: a de cometer crimes para fomentar a justiça, a de construir prisões e campos de concentração para instaurar a liberdade, a de condenar o terrorismo dando-lhe prêmios etc. etc. Só um profano vê aí contradições insanáveis. Para o dialético, tudo se converte no seu contrário e, quando isso acontece, �ca provado que o contrário era a mesma coisa. Quando não acontece, ele faz uma forcinha para que aconteça, e em seguida arranja uma explicação dialética absolutamente formidável. O Globo, 27 de março de 2004 P “A História me absolverá”, dizia Fidel Castro. A con�ança do ogro caribenho no tribunal do futuro já deveria alertar-nos para uma realidade elementar: se a história-fato é feita por homens, a história- narrativa não é escrita por deuses. A conquista da verdade sobre o passado não é nunca um benefício automático trazido pelo decurso do tempo: é um prêmio que cada geração tem de reconquistar na luta contra o esquecimento e a falsi�cação. Essa luta veio a tornar-se ainda mais premente na modernidade, quando — simultaneamente e em concorrência desleal com a constituição da história como ciência — se disseminou entre os guias �losó�cos da multidão um modus ratiocinandi que chamo de “messiânico”, o qual consiste em inventar um futuro para depois remoldar à imagem dele a visão do passado e do presente. Maquiavel, Hobbes, os enciclopedistas, Comte, Karl Marx, todos erguem sua concepção da realidade não sobre a análise da experiência efetiva, mas sobre suposições pseudoproféticas que encobrem essa experiência e terminam por torná-la inacessível. Mesmo dentro de culturas ricas e pujantes a luta contra a remoldagem ideológica do passado é limitada e di�cultosa, pois o ofício de historiador não se exerce no ar e sim entre as malhas de uma rede de organizações pro�ssionais facilmente dominadas por movimentos políticos. Nos últimos 150 anos, praticamente um único desses movimentos se empenhou de maneira contínua e sistemática na conquista da hegemonia sobre as instituições culturais, não encontrando senão resistências parciais e temporárias. Foi assimque, como o descreve Harvey Klehr no recém-publicado In Denial, a Organização de Historiadores Americanos () se tornou uma central de desinformação comunista, mais e�ciente até do que suas equivalentes estatais soviéticas. A história da “guerra fria” ainda é, nas universidades americanas, um feudo intelectual comunista, só agora ameaçado pelos protestos de estudantes conservadores que exigem a divulgação de documentos longamente ocultados, como por exemplo a lista dos agentes soviéticos in�ltrados no governo americano na década de 50, bem maior do que aquela cuja revelação pelo senador Joe McCarthy deu a este último a fama de acusador leviano e perseguidor de inocentes. Se isso é assim nos , imaginem quanto mais facilidade uma classe acadêmica organizada em militância da falsi�cação não terá para impor a um país culturalmente raquítico como o Brasil um recorte histórico ideologicamente interesseiro, baseado na supressão sistemática de fatos e documentos. Por exemplo, a famosa “intervenção americana” no movimento de 1964 ainda é aceita como verdade consagrada, duas décadas depois de o espião tcheco Ladislav Bittman ter confessado que ele e seus assessores inventaram essa lenda, forjando documentos e distribuindo-os à mídia local. Quem tem esse dom de reinventar o passado pode com ainda maior facilidade alterar a �sionomia do presente. Nada mais previsível, nesse sentido, do que a destreza com que o governo petista se salvou de acusações de corrupção, jogando sobre os acusadores a suspeita de tramarem um golpe de Estado, na mesma semana em que dava uma recompensa em dinheiro ao por sua promessa de abrir as portas do inferno. Se alguém achava que investigando Waldomiros podia abalar no que quer que fosse o esquema de poder que nos governa, foi simplesmente porque não mediu bem as forças em jogo e, na verdade, não entendeu coisa nenhuma do que se passou neste país nos últimos vinte anos. Os políticos de oposição têm de ser prodigiosamente sonsos para crer que podem acuar o governo com denúncias de corrupção no mesmo instante em que, desamparados, apelam à piedade dele contra as ameaças do . Há duas décadas nossas lideranças políticas e empresariais não fazem senão deixar-se intoxicar-se passivamente de cultura esquerdista, endossar a versão esquerdista da história, contemplar com indiferença ou simpatia a ocupação de espaços e a conquista da hegemonia. Que pretendem, depois disso? Desa�ar o ídolo que construíram, ao mesmo tempo que imploram por sua proteção? O Globo, 3 de abril de 2004 A J K Como andaram reclamando dos fatos que contei sobre John Kerry, vou contar mais um. O candidato democrata, ex-combatente no Vietnã e participante ativo nos movimentos anti- da década de 70, diz que na primeira dessas condições teve uma carreira honrosa e na segunda não fez nada de especialmente impatriótico. Em �agrante contraste com essas alegações, no entanto, ele tem oposto obstinada resistência à divulgação dos documentos sobre sua atividade naquele período, vinte mil páginas arquivadas no . Gerald Nicosia, conhecido historiador da guerra do Vietnã, comprou em 1999 uma cópia integral desses documentos. Durante a semana passada, três mil das vinte mil páginas do arquivo foram roubadas da casa dele em San Francisco. A parte ín�ma divulgada antes disso dá uma idéia do conteúdo explosivo do restante. Em 1971 o grupo ativista “Veteranos Contra a Guerra” reuniu-se para tramar o assassinato de sete senadores republicanos. Kerry negou com veemência ter participado do encontro, mas foi obrigado a voltar atrás quando a prova de que ele estava lá apareceu no meio dos papéis de Gerald Nicosia. Poucos dias depois, a casa do historiador foi arrombada. Segundo a polícia de San Francisco, a invasão foi obra de pro�ssionais que, além de ter suprimido dos arquivos só páginas selecionadas, nem mexeram em outros bens valiosos que havia no local. A notícia foi dada pela , que não pode ser acusada de simpatias pela candidatura Bush. *** A maioria dos iraquianos acha que a invasão americana melhorou o país. Mas que importam os iraquianos? A população brasileira em peso, ecoando os discursos de Kerry e Zapatero, acredita que a operação foi uma violência e um fracasso, que os americanos são exploradores imperialistas, que George Bush é Adolf Hitler em pessoa e que Saddam Hussein tinha todo o direito de governar o Iraque à sua maneira. Em nenhum país do mundo o ódio aos é tão intenso, tão geral, tão profundo e tão imotivado quanto no Brasil. A destruição da cidade de Torres é uma pequena amostra material do preço que este país está disposto a pagar pelo prazer de cultivar suspeitas psicóticas contra os americanos. Depois que meio mundo acreditou na lenda do mapa amazônico cortado pela metade, nada mais lógico que desacreditar de informações cientí�cas �dedignas vindas do “Grande Satã”. *** Não uso a esmo a palavra “psicóticas”. A politização radical da visão do mundo é de fato uma psicose. Desde os estudos clássicos de Joseph Gabel (A falsa consciência e As ideologias e a corrupção do pensamento), não pode mais haver muita dúvida a esse respeito. Vejam por exemplo a reação dos nossos comentaristas internacionais às eleições espanholas. Se dizemos que os atentados de Madri foram planejados com antecedência para dar a vitória aos socialistas, acusam-nos de “teóricos da conspiração”. Em contrapartida, querem nos fazer crer que, nas vinte e quatro horas que se seguiram ao morticínio, José Camón Aznar armou, de improviso, toda uma conspiração maquiavélica para enganar o povo espanhol e, no último instante, foi desmascarado pela mídia salvadora. Todo o senso das proporções, toda a lógica das ações humanas, todos os padrões normais de verossimilhança são aí brutalmente invertidos. Mas, se você se atreve a apontar nisso algum sinal de fanatismo psicótico, ai da sua boa reputação entre as pessoas decentes! Zero Hora, 3 de abril de 2004 D O projeto do ministro da Educação, de empurrar goela abaixo das universidades privadas uma quota anual de humilhados e ofendidos, vem sendo discutido somente desde o ponto de vista econômico e jurídico. Esse aspecto da questão existe, sem dúvida, mas a concentração exclusiva nele re�ete a própria degradação mental brasileira. Desde que, num teste de compreensão de leitura entre alunos do ensino médio de 32 países, os nossos tiraram o último lugar (resultado que seria indiscutivelmente o mesmo entre universitários), nenhum educador deveria ser maldoso o bastante para pensar em submeter ainda mais vítimas ao tratamento que produziu esse efeito. Nem uma vaga a mais deveria ser aberta antes de um sério exame de consciência quanto ao conteúdo da educação nacional. Mas no Brasil é sempre assim. A quantidade antes de tudo, a qualidade só num futuro hipotético sempre adiado. Primeiro é preciso distribuir a todos; só depois — ou nunca — perguntar o que, a�nal, se distribuiu. Assim torna-se fácil ser um benfeitor dos pobres: basta democratizar a ignorância e em seguida imprimir uma estatística impressionante em cartazes de propaganda eleitoral. O que me pergunto é se, submetido a teste entre ministros da Educação de 32 países, o nosso não �caria também em último lugar. *** É claro que, em graus variados, idêntico fenômeno de degradação se observa um pouco por toda parte. A democratização do ensino é a fraude constitutiva do mundo moderno. Ela prometia distribuir a um número cada vez maior de pessoas as criações mais elevadas do espírito humano, mas, pelo menos desde o estudo de Richard Hogarth, e Uses of Litteracy (1961), está provado que ela não faz nada disso e sim exatamente o contrário. A cada sucessiva ampliação do público atingido, ela cria uma nova onda de produtos culturais nivelados às capacidades de uma platéia de inteligência mais baixa e interesses limitados, de modo que, quanto mais gente tem acesso ao ensino, mais a cultura elevada se torna inacessível sob densas camadas de lixo substitutivo. A democratização doensino criou uma elitização sem precedentes da verdadeira cultura superior, hoje só acessível a um círculo cada vez mais estreito de privilegiados da sorte que, no matagal da subcultura, tenham imaginação bastante para buscar os atalhos discretos, se não secretos, que levam a coisa melhor. Qualquer camponês da Idade Média sabia onde estavam os centros de cultura superior. Se fosse diretamente a eles, entraria em cheio no núcleo vivo onde germinavam as melhores idéias. A sociedade estava tão preparada para amparar os pobres vocacionalmente dotados quanto a universidade para distingui-los dos ineptos, de modo que nem o acesso ao conhecimento era difícil nem a atmosfera dos debates mais sérios era poluída por uma avalanche anual de arrivistas, necessitados de alimento intelectual cada vez mais ralo. Se tivesse sido possível ampliar quantitativamente a rede de ensino assim constituída, sem quebra da exigência qualitativa, a democratização teria sido uma bênção para a humanidade. Em vez disso, foi um �agelo. Por quê? Porque a educação não foi só expandida quantitativamente e sim transmutada: passou a atender a necessidades novas e completamente diversas, que terminaram por abolir suas �nalidades próprias. Fornecer mão-de-obra para a burocracia estatal e a indústria em expansão, distribuir às classes a�uentes os novos emblemas convencionais da ascensão social, forjar e impor novos padrões de conduta adequados aos valores políticos do momento, adestrar massas de eleitores e militantes — são alguns dos novos objetivos a que a educação teve de se adaptar. Mais recentemente, as escolas tornaram- se uma rede auxiliar da distribuição de comida e assistência médica e um mercado privilegiado para o comércio de drogas. Tão longínquas se tornaram as �nalidades próprias da educação, que, tentando descrever o que eram as universidades medievais,5 o cientista político Kenneth Minogue teve de admitir a di�culdade quase intransponível de explicar ao público de hoje que pudesse ter havido algum dia uma instituição fundada no amor ao conhecimento. A degradação cultural re�ete-se também numa progressiva incapacidade de compreender o passado. Jornal da Tarde, 8 de abril de 2004 T Quando Boris Yeltsin abriu ao público os arquivos do Instituto de Marxismo-Leninismo do Partido Comunista Soviético, em 1992, dois pesquisadores americanos, John Earl Haynes e Harvey Klehr, recolheram dali milhares de páginas de documentos que comprovavam a in�ltração de mais de trezentos agentes soviéticos no governo dos durante a Guerra Fria — uma acusação que durante décadas tinha sido sistematicamente impugnada como “calúnia direitista” pelo establishment acadêmico e jornalístico americano. Esses documentos foram publicados em vários volumes na série “Annals of Communism” da Yale University Press. Nenhum pesquisador ou jornalista brasileiro — com a imperdoável exceção deste que lhes fala — deu até hoje o menor sinal de ter tomado conhecimento desse material ou de desejar falar a respeito. O motivo da omissão é mais que evidente: as dimensões mastodônticas e a durabilidade da mentira esquerdista na história da Guerra Fria, se chegassem ao conhecimento do nosso público, poderiam instilar no seu coração o desejo pecaminoso de esboçar comparações e fazer perguntas — uma catástrofe que tem de ser evitada a todo preço. A versão o�cial da história deste país nas últimas quatro décadas é tão uniforme, tão linear, tão isenta de dúvidas e problemas, que sem a menor di�culdade foi possível registrá-la em milhares de livros que se con�rmam uns aos outros e repassá-la aos jornais, aos programas de e aos manuais escolares, de modo a fazer dela o patrimônio comum e inquestionado de todos os brasileiros de oito a oitenta anos. Seria realmente uma impiedade, um crime perturbar a harmonia da memória coletiva exibindo-lhe fatos que não cabem na perfeição geométrica de um edifício tão lindamente construído. Ninguém que leia os documentos de Haynes e Klehr deixará de conjeturar, por exemplo, como foi possível que a ação clandestina soviética, tão onipresente nos altos escalões federais americanos, se abstivesse por completo de dar uma mãozinha ao governo pró- comunista do sr. João Goulart que, naquela mesma ocasião, abria rachaduras formidáveis na hegemonia continental dos . E quem quer que faça essa pergunta, contemplando a imensidão da bibliogra�a existente sobre o período, não pode deixar de se perguntar como foi possível escrever tanta coisa sem usar jamais as três letras , e . Tanto mais que outras três letras, , e , aí comparecem praticamente em cada página. Levado por uma curiosidade malsã, talvez o leitor então salte desse detalhe para outro ainda mais espantoso: das bibliotecas inteiras que se escreveram para ensinar que naquela época o Brasil estava superlotado de agentes da em permanente conspiração, não consta um só documento americano que forneça o nome de algum desses agentes; ao passo que um alto funcionário da inexistente espionagem soviética no Brasil já confessou publicamente ter tido a seu serviço, na ocasião, pelo menos duzentos jornalistas brasileiros, pagos como agentes de in�uência. Depois que alguém se deu conta disso, é difícil persuadi-lo de que aquele problema das letrinhas faltantes e sobrantes é apenas uma anomalia ortográ�ca sem maior signi�cação histórica. Por isso é que neste país reina completo silêncio sobre a mais importante descoberta historiográ�ca dos últimos cinqüenta anos. Se você �car sabendo o que se passou nos , pode querer saber o que se passou no Brasil. E então já não aceitará com passividade bovina — ou “cidadã” — a mentira-padrão imposta a um país inteiro por obra e graça de toda uma geração de historiadores, jornalistas e memorialistas. *** Este artigo estava pronto quando recebi a notícia de que a História oral da Revolução de 1964, impressionante coleção de depoimentos recém- publicada pela Bibliex, tinha sido retirada de circulação por ordem do ministro do Exército. Entenderam bem? Ninguém, seja civil ou milico, está autorizado a sacri�car a meros fatos a coerência estética da história o�cial. O Globo, 10 de abril de 2004 V Já mencionei aqui a norma leninista segundo a qual a polêmica contra o adversário direitista, cristão, sionista etc. “não visa a argumentar com ele, ou a refutar os seus erros, mas a destruí-lo”. A tradução disso na prática aparece — para citar um exemplo entre milhares — no “Manual de Organização” escrito por J. Peters, dirigente do Partido Comunista Americano, publicado em 1935, no qual várias gerações de militantes encontraram guiamento para a luta partidária e a conduta na vida. Uma das regras típicas que nele se encontram diz respeito ao modo de lidar com os inimigos do Partido: “Mobilizem contra ele as mulheres e as crianças. Tornem a vida dele miserável. Façam as crianças boicotarem os �lhos dele. Escrevam na porta da casa dele: Aqui mora o espião fulano de tal”. Que estado de alma é necessário para um ser humano se permitir usar de expedientes tão baixos, tão sujos, sem sentir a mínima vergonha, o mínimo repuxão na consciência, e até imaginando que haja algo de meritório no seu procedimento? O ódio, é claro, não o explica. Uma alma pode odiar sem aviltar-se. A demonização do adversário também não basta. Para ter repulsa ao demônio não é preciso endemoninhar-se. O aviltamento consentido a que o militante revolucionário se submete com paradoxal orgulho tem raiz mais funda. Re�ete uma deformação estrutural da consciência, uma perversão dos critérios subjacentes aos mais espontâneos julgamentos morais. Aí o bem e o mal, o justo e o injusto, o sublime e o abjeto já não se manifestam na realidade concreta das ações presentes, mas na alegação de um futuro hipotético ao qual, também hipoteticamente, devem concorrer. Quando Luís Carlos Prestes manda estrangular uma menor de idade, isso é o bem, porque concorre para o advento do socialismo. Se mandasse fuzilar dezessete mil pessoas e encarcerasse cem mil, comotirocínio hermenêutico do sr. Negri, para grande surpresa de seus predecessores que se imaginavam marxistas. Longe de ser uma religião dogmática apegada à letra da revelação, o marxismo é um �uxo esotérico de símbolos em movimento perpétuo cujo sentido só vai se revelando ex post facto, cada nova geração provando que os ídolos revolucionários de ontem não eram revolucionários e sim traidores, como numa Igreja auto- imunizante em que a primeira obrigação de cada novo Papa fosse excomungar o antecessor. Compreende-se o risco temível de discutir com marxistas. Você tem um trabalho medonho para vencê-los, só para depois aparecer alguém alegando que, da derrota deles, o marxismo saiu não somente incólume, mas engrandecido. Nessa linha, o sr. Negri a�rma que “uma crítica muito radical do direito e do Estado tinha se desenvolvido no curso do processo revolucionário e tinha sido reprimida nas codi�cações e constituições da União Soviética e do ‘socialismo real’”. Num estalar de dedos, a máxima realização histórica do movimento socialista se torna o seu contrário: a repressão do socialismo. Mas, com a mesma desenvoltura com que se isenta de responsabilidade por suas ações, a “prática revolucionária” atribui a si própria os méritos de seus inimigos: na perspectiva do sr. Negri, o “conjunto de lutas pela libertação que os proletários desenvolveram contra o trabalho capitalista, suas leis e seu Estado” abrange “desde o levante de Paris em 1789 até... a queda do muro de Berlim”. A leitura esotérica transmuta a derrocada do comunismo em rebelião anticapitalista. Como raciocínio �losó�co, cientí�co, dogmático ou mesmo ideológico, não faz o menor sentido. Como argumento retórico, é ridículo. Como trapaça, é pueril demais. Mas, como operação de emergência para a salvação da unidade cultural ameaçada, faz todo o sentido do mundo. As culturas são a base da construção da personalidade de seus membros, que desmorona junto com elas. A defesa da cultura é uma urgência psicológica absoluta, que justi�ca o apelo a medidas desesperadas. Jornal da Tarde, 1º de janeiro de 2004 L Se Homero tinha razão ao dizer que os moinhos dos deuses moem lentamente, o cérebro nacional deve ser divino, pois é in�nita a lentidão com que processa as mais óbvias informações. O �lósofo Raymond Abellio, que nos conhecia bem, observava que nesta parte do universo a germinação das idéias não segue o ritmo histórico, mas o tempo geológico. Nada o ilustra melhor do que a renitente ignorância das elites brasileiras em torno da questão do governo mundial. Nossos líderes empresariais e políticos ainda vivem na época em que toda menção ao assunto podia ser tranqüilamente rejeitada, com um sorriso de desdém, como “teoria da conspiração”. No entanto, há pelo menos dez anos a já declarou o�cialmente sua intenção de consolidar-se como administração planetária: “Os problemas da humanidade já não podem ser resolvidos pelos governos nacionais. O que é preciso é um Governo Mundial. A melhor maneira de realizá-lo é fortalecendo as Nações Unidas”.1 A autoridade avassaladora desse projeto constitui hoje a fonte única e central de onde jorram sobre toda a população terráquea legislações uniformes em matéria de indústria, comércio, ecologia, saúde, educação, quotas raciais, desarmamento civil, etc. A docilidade com que até nações poderosas como a Inglaterra se vergam às suas exigências — embora nenhuma com o entusiástico servilismo brasileiro — deve-se em parte à natureza informal, sutil e tácita do processo, que vai se implantando em doses homeopáticas, delicadamente, sem assumir sua existência de conjunto, transferindo para o recinto fechado das comissões técnicas as decisões rotuladas complexas demais para a competência da opinião pública e antecipando, assim, o fato consumado à mera possibilidade da discussão aberta. As únicas resistências que tem encontrado vêm dos e de Israel. Mas os permanecem num constante vaivém entre o desejo de a�rmar sua independência contra as pretensões do globalismo e a tentação de tomar as rédeas do processo para conduzi-lo a seu modo. Assumir a liderança da uniformização mundial, arriscando perder a soberania e desarmar-se contra agressões letais, ou então entrincheirar-se numa auto-a�rmação nacionalista com o risco de desmantelar a aparente “ordem internacional” e suportar a hostilidade conseqüente, eis as opções que se oferecem aos . A primeira dessas tendências predominou no governo Clinton. O resultado foi que os americanos, de concessão em concessão, consentiram em se enfraquecer militarmente e em curvar-se à intromissão estrangeira em campos vitais como ecologia, educação e imigração, ao mesmo tempo que, envergando a máscara de líderes e bene�ciários maiores da globalização, se tornavam o bode expiatório do próprio mal que os debilitava. Com o governo Bush, a orientação girou 180 graus. A virada veio em 2001, com a rejeição do Protocolo de Kyoto e a decisão de reagir ao 11 de setembro sem o beneplácito da . O projeto do governo mundial é originariamente comunista,2 e os grupos econômicos ocidentais que se deixaram seduzir pela idéia, esperando tirar proveito dela, sempre acabaram �nanciando movimentos comunistas ao mesmo tempo que expandiam globalmente seus próprios negócios. As fundações Ford e Rockefeller são os exemplos mais notórios. Nesses como em outros casos, a contradição entre o interesse econômico envolvido e as ambições políticas de longo prazo é origem de inumeráveis ambigüidades que desorientam o observador e, se ele é preguiçoso, o induzem a não pensar mais no assunto. Uma coisa é certa: nos anos 70 e 80, a globalização parecia favorecer os , mas na década seguinte ela tomou o rumo bem claro de uma articulação mundial antiamericana e, por tabela, antiisraelense. A eleição de George W. Bush e a política de a�rmação nacional que ele tem seguido são as respostas lógicas a essa nova situação. Como isso afeta o Brasil? O sr. Luís Inácio da Silva foi posto no poder com o apoio da rede global de partidos e organizações tecida em torno da . Essa rede constitui o núcleo do governo mundial em avançada fase de implantação. A exorbitância de aplausos internacionais que saudaram a eleição do candidato petista não veio do nada: foi a expressão natural de júbilo do criador ante o sucesso da criatura. Se a própria escolha do Brasil como sede do Fórum Social Mundial poucos meses antes das eleições já não fosse prova su�ciente da articulação planetária montada para esse �m, bastaria como con�rmação ex post facto a pressa obscena com que a rede se mobilizou para tentar dar ao cidadão um Prêmio Nobel pelo “Fome Zero” antes que uma só colherada de feijão estatal chegasse à boca de algum faminto. O primeiro Nobel-a- crédito da História não chegou a ser conferido, mas é revelador. Nesse quadro, a mobilização contra o “império americano” é hoje apenas uma vasta operação diversionista para camu�ar a implantação do verdadeiro império e para colocar a serviço dele as veleidades nacionalistas de povos pouco esclarecidos, mais propensos a esbofetear espantalhos convencionais do que a identi�car e enfrentar as verdadeiras fontes das limitações que os oprimem. Lutando contra a mera possibilidade teórica de um domínio mundial americano, as nações de cretinos tudo cedem ante uma ditadura global já praticamente vitoriosa no presente. O Globo, 3 de janeiro de 2004 D Caracterizado o marxismo como cultura, é necessário dar mais precisão ao diagnóstico por meio de algumas diferenças especí�cas. O marxismo não é um processo cultural autônomo, mas uma transmutação ocorrida no seio do movimento revolucionário mundial, que àquela altura já tinha uma tradição centenária e uma identidade cultural de�nida, ao ponto de ser popularmente designado pela simples expressão “o movimento” ou “a causa”, malgrado a coexistência, nele, de uma in�nidade de correntes e subcorrentes em disputa. O Manifesto comunista de 1848 apresenta-se como superação e absorção desse movimento desordenadoFidel Castro, faria um bem ainda maior, acelerando o motor da História. Mas, se um direitista socorre um doente, ampara um aleijado, dá de comer a um mendigo, isso é o mal, porque ajuda a eternizar o “status quo”. Todo ser humano normal sabe que os motivos alegados para legitimar um ato só são válidos se a ligação deste com eles é direta e evidente. Mas a distância entre um crime e seus supostos benefícios sociais futuros é tão imensa, tão inumeráveis e imprevisíveis os fatores coadjuvantes que devem somar-se ao ato para assegurar a produção do resultado prometido, que ninguém, de boa intenção, se permitiria jamais apostar tão alto na dignidade vindoura da baixeza presente. A conclusão é óbvia: ninguém jamais se tornou militante revolucionário por boa intenção. Quem quer que entre nisso, entra em busca de um salvo-conduto para a prática do mal. Entra para livrar-se do peso da consciência moral pessoal, substituída por uma indulgência plenária assinada pela autoridade do partido e sustentada pela aprovação calorosa dos “companheiros”. Tudo isso já seria perverso o bastante, se limitado aos quadros partidários. Mas, com a “revolução cultural” gramsciana, a ética comunista, dissolvida sua identidade própria, se espalhou por toda a sociedade. O que era instrução aos militantes tornou-se padrão geral de conduta entre meros esquerdistas informais que nenhum compromisso partidário obriga. Não conheço neste país um só articulista de esquerda, com ou sem partido, que, ao falar de seus desafetos ideológicos, não se permita gostosamente aplicar-lhes o tratamento Lênin–Peters, acusando-os de “agentes a soldo de interesses inconfessáveis”, de nazistas, de racistas ou de qualquer outra coisa que os des�gure e os torne odiosos ao público, especialmente juvenil, de modo que este se recuse a ouvi-los e pre�ra dá-los como condenados a priori. E não conheço um só que, ao fazer isso, não sinta o reconforto moral de ser aprovado por milhões de almas-gêmeas, unidas pela mesma crença redentora nas graças salví�cas do “futuro mais justo”. Repetida a operação um certo número de vezes, o sujeito adquire nisso até mesmo uma certa unção sacerdotal, e espalha veneno contra os inocentes como quem vertesse água benta sobre os pecadores. O Globo, 17 de abril de 2004 A A O tom em que um autor escreve é o cartão de visita com que ele exibe sua identidade social e mostra a fonte da autoridade em que se apóia. A impessoalidade neutra denota o pro�ssional que fala em nome da ciência ou da técnica. Um estilo indignado e veemente, o tribuno que aspira a ser porta-voz da moralidade pública. A solenidade aristocrática revela o estadista, o magistrado, encarnação das leis e do poder. O deboche, o sincerismo espalhafatoso assinalam o “artista” que pretende passar por superior às convenções sociais embora ele próprio seja o tipo mais convencional hoje em dia. Um escritor autêntico foge dessas poses e não descansa até acertar seu tom pessoal, em que sinta falar com sua própria voz. Escrever assim tem um preço: você aí não personi�ca nenhuma autoridade exceto aquela inerente ao conteúdo mesmo do que diz. Oferece suas idéias ao julgamento direto do público, sem a proteção de uma embalagem grupal. Por incrível que pareça, esse tom tem uma força própria que às vezes se sobrepõe à das várias autoridades, reais ou �ngidas, em disputa pelas atenções do público. Mas o que ele dá sobretudo a seu praticante é a habilidade de reconhecer, pelo contraste, os vários estilos padronizados e o uso perverso que deles se faz. Pois eles não servem só para exibir identidades sociais genuínas, e sim sobretudo para investir o falante de uma autoridade falsa. Conheço, por exemplo, um jornalista que há vinte anos não faz senão cortejar militares e, de vez em quando, ainda tem a cara-de-pau de lançar sobre alguém a pecha de “vivandeira de quartel”. Quem o ouve, tem a impressão de estar diante de um antimilitarista in�amado, sem notar que ele está apenas fazendo uso da receita leninista para o trato com os inimigos: “Xingue--os do que você é”. Mas ninguém supera nessa prática o tal “Frei Betto” (entre aspas porque é frei como os fazendeiros do Nordeste eram coronéis). Nos seus escritos, o tom homilético e o apelo convencional aos bons sentimentos — “fraternidade”, “paz”, “amor” — denotam seu intuito de ser ouvido como autoridade sacerdotal. A encenação é reforçada pelo apelido, que o público iludido toma como emblema de uma condição eclesiástica ao menos informal. Mas o sr. Betto não é sacerdote, não é frade, não é sequer um membro leigo da Igreja. Cortesão de Fidel Castro, co-redator da constituição cubana, um dos responsáveis pela longevidade de uma ditadura anticristã, ele incorreu na penalidade de excomunhão automática destinada aos colaboradores de regimes comunistas por um decreto assinado sucessivamente por dois Papas, Pio e João . Está, literalmente, fora da Igreja. Continuar a assinar-se “Frei”, depois disso, é sobrepor aos mandamentos de Cristo uma presunção vaidosa (ou publicitária) cuja origem na hubris demoníaca não poderia ser mais evidente. Leitor e discípulo de Antonio Gramsci, o sujeito levou ao pé da letra a lição do mestre que ensinava a não combater a Igreja Católica, mas a verter fora o seu conteúdo espiritual e utilizar-lhe a casca vazia como canal para a propaganda comunista. Ele fez literalmente isso ao encenar um arremedo de missa no Palácio do Planalto, lavando os pés de um militante do , proclamando Lula uma encarnação de Jesus e igualando a farsa estelionatária do “Fome Zero” ao milagre da multiplicação dos pães. Não é preciso entender de teologia para perceber aí a macaqueação satânica em estado puro. Basta o senso estético que distingue entre o sublime e o grotesco. Não é de estranhar que esse militante do Anticristo busque seduzir não só os católicos, mas os �éis de outras religiões. Sua recente investida anti-Gibson poderia até torná-lo simpático aos judeus, se eles fossem idiotas o bastante para aceitar proteção de um cúmplice de Yasser Arafat. Zero Hora, 18 de abril de 2004 D Tão logo a existência da desinformação soviética foi divulgada no Ocidente, a intelectualidade esquerdista mobilizou-se em escala mundial para diluir o sentido técnico da palavra e atribuir a governos ocidentais a prática costumeira de desinformação, como se algum deles tivesse um controle da mídia similar àquele de que desfrutavam os governos comunistas, controle absolutamente indispensável ao exercício da desinformátsia. Hoje a palavra é usada predominantemente no segundo sentido. No Brasil, não há um só leitor de jornais que não jure que George W. Bush manipulou a mídia na guerra do Iraque. E não há um só que perceba a simples impossibilidade física do que está dizendo. Quem quer que conheça algo da mídia dos sabe de duas coisas: (a) todos os canais de e jornais de grande porte, com as únicas exceções da Fox e do Washington Times — o menor entre os grandes — são maciçamente pró-esquerdistas, anti-Israel e até antiamericanos; (b) a base de apoio a George W. Bush está nas estações de rádio — especialmente nos talkshows —, numa multidão inabarcável de pequenos jornais conservadores e sobretudo no jornalismo eletrônico. Dessas duas observações pode-se obter a compreensão de uma terceira: das duas correntes de opinião predominantes nos , só uma tem repercussão no exterior. No Brasil, a visão que se tem da atualidade americana é moldada pelo material reproduzido do New York Times, do Washington Post, da etc. Aqui não chega nada do que um americano diga em favor do seu próprio país. Mesmo sem contar as contribuições da esquerda tupiniquim (praticamente a totalidade da classe jornalística local), só isso já basta para explicar por que 90% dos brasileiros são contra os . E o ódio que sentem é tão intenso que, no instante mesmo em que ecoam servilmente o discurso anti-Bush da grande mídia americana, acreditam piamente que essa mídia é... um instrumento de propaganda a serviço doimperialismo ianque! O público brasileiro está sendo treinado para não perceber nem as fontes e nem o sentido de suas próprias opiniões. A mídia tornou-se aqui um instrumento perfeito de embotamento da consciência. A�nal, a desinformação não seria desinformação se não conseguisse camu�ar sua própria existência. Mas a camu�agem total requer a onipresença. Só um adversário desprovido por completo de meios de expressão pode ser acusado verossimilmente de todos os crimes, até o de monopolizar os meios de expressão. É o milagre da “hegemonia”, como de�nido por Antonio Gramsci: invisível por onipresença, a ideologia dominante dirige todos os ódios contra um inimigo cuja ausência mesma é usada como prova de uma onipresença dominadora, misteriosa e por isso mesmo supremamente abominável. O brasileiro de hoje odeia tanto mais a “propaganda americana” quanto menos enxerga sinais dela. De todos os feitos da desinformação nacional, porém, nenhum se iguala à exploração da revolta nacionalista contra a “ocupação da Amazônia”. Essa ocupação existe, mas o noticiário a respeito é invertido. Quem está metendo as patas na Amazônia são entidades pró-comunistas como o Conselho Mundial de Igrejas, as ’s indigenistas protegidas pela , etc., cujos objetivos estratégicos no continente são pelo menos tão antiamericanos quanto os das . Jornalistas cúmplices da operação conseguem camu�á-la por meio de arremedos de denúncias que, ressaltando a gravidade da invasão, ocultam a identidade de seus autores, fazendo-os passar por “imperialistas americanos”. Semelhante inversão só se conseguiu em outros países por pouco tempo e com objetivos limitados. O exemplo mais clássico foi a Ofensiva do Tet, na guerra do Vietnã. Os vietcongues lançaram um ataque em massa e se deram muito mal. Suas tropas foram arrasadas. Perderam 50 mil homens e todos os objetivos conquistados. Só obtiveram sucesso num único lugar: invadiram a embaixada americana em Saigon durante algumas horas. O noticiário, porém, concentrou-se nesse detalhe visualmente impressionante, omitindo todo o resto e dando a impressão de que os vietcongues tinham vencido a guerra. A opinião pública acreditou, a popularidade do presidente Johnson despencou e a impressão de derrota dos foi o�cializada como derrota autêntica. O próprio general Giap admitiu que sua principal arma na guerra foi a mídia americana. Jornal da Tarde, 22 de abril de 2004 O “A desinformação vem da profusão da informação, de seu encantamento, de sua repetição em círculos”, diz Jean Baudrillard, citado pelo meu caro Merval Pereira no dia 21. A descrição é exata, mas, como seria de se esperar num autor que é hoje a encarnação mais completa da impostura intelectual na França, ele só enuncia uma verdade genérica para poder lhe dar em seguida uma aplicação particular monstruosamente falsa. Pois o homem pretende — nada mais, nada menos — que haja no mundo um processo de desinformação em marcha... para justi�car a invasão americana do Iraque. Alan Sokal, em Imposturas intelectuais, já mostrou que um dos procedimentos argumentativos mais constantes no autor de Le Système des Objets é o blefe. Pela milésima vez, Baudrillard joga o peso de uma sentença ex cathedra contra fatos objetivamente veri�cáveis, e não perde a aposta. Embora todos os leitores estejam conscientes do maciço antiamericanismo da grande mídia na Europa e nos , o mestre mandou acreditar que ela está a serviço de George W. Bush, e muitos deles dizem amém, por medo de entrar em combate com um luminar da ciência munidos tão-somente de armas acessíveis ao cidadão comum. A premissa subjacente é a de que você pode ter lido muitas notícias, mas o professor deve ter lido mais, caso contrário não diria o que está dizendo. A tentação de averiguar só passa pela cabeça de dois ou três importunos que podem ser descartados a priori como fanáticos de direita ou, em último caso, como caipiras incultos que em plena moda de desconstrucionismo e relativismo ainda acreditam em verdade objetiva. Baudrillard, consciente disso, pode proclamar tranqüilamente que a Terra é cúbica, que dois mais dois são cinco ou que a mídia fala bem do presidente americano. Ninguém o contestará, exceto eu, que, como ninguém o ignora, sou neonazista e agente do Mossad, além de caipira inculto autonomeado �lósofo entre aspas. Mas essa vil exploração da covardia intelectual do público não funcionaria sem as raízes que a sustentam no sólido chão de um hábito milenar. Nosso Senhor ordenou furar o olho que nos escandaliza, e ao longo de vinte séculos os crentes se acostumaram a refugiar-se na autoridade da tradição contra o assédio de pretensos fatos que pareçam desmentir a sua fé. A partir do momento em que a classe dos “intelectuais” tomou o lugar do clero na condução moral e mental das multidões e fez do ódio revolucionário o Ersatz o�cial da caridade cristã, nada mais lógico do que ela apelar a um re�exo condicionado que a sedimentação do tempo tornou infalível, ordenando ao público que fure os olhos para não enxergar o que está em todos os noticiários de . Há uma diferença, é claro. No cristianismo, nem todos os �éis se contentam com a obediência ingênua. Alguns querem argumentos e provas, e, começando com discussões banais sobre milagres e virtudes, podem ingressar numa escalada intelectual que reforçará sua fé na medida em que aumente e consolide o seu acervo de conhecimentos. A�nal, dizia Einstein, um pouco de estudo nos afasta da religião, muito estudo nos aproxima dela. Já com o prestígio da intelectualidade ativista sucede o contrário. Se você estuda muito, acaba descobrindo o que Sokal descobriu: que os Baudrillards são apenas charlatães desprezíveis. Por isso a autoridade deles se sustenta no blefe: apostam que a maioria semiculta se absterá de conferir o que dizem — e, por um efeito estatístico bem previsível, acabam vencendo na maioria dos casos. É assim que, esvaziada de seu sentido técnico que pressupõe o controle estatal ou partidário dos meios de comunicação, a palavra “desinformação” pode ser usada para camu�ar a desinformação efetiva, atribuindo poderes desinformantes a quem não os desfruta de maneira alguma e ocultando o exercício deles por aqueles que os detêm e os usam numa alucinada “repetição em círculos” de um discurso antiamericano obsessivo e onipresente. Baudrillard é o equivalente europeu de Noam Chomsky: nada do que ele diz — seja nas suas obras acadêmicas, seja nos seus palpites jornalísticos — resiste a um exame atento. O Globo, 24 de abril de 2004 F Os críticos têm sido injustos com o nosso presidente. Com base nas suas promessas de candidato, acusam-no de omisso, sem ter em conta que essas promessas não representam todo o seu programa de governo, mas só uma parte. A outra parte está nos compromissos �rmados no Foro de São Paulo. Se ela não permanecesse ignorada do público, o critério de julgamento do desempenho presidencial seria bem outro. O programa do Foro é resgatar na América Latina o que o movimento comunista perdeu na , mas isso não signi�ca implantar o socialismo por decreto, da noite para o dia, e sim preparar o quadro estratégico, institucional e psico-social para que, no momento apropriado, a via socialista apareça como a única possível. Vistas sob esse ângulo, muitas atitudes do governo, que aferidas pelas promessas nominais de campanha parecem provas de omissão e incompetência, revelam-se, isto sim, passos muito �rmes, muito precisos, dados na direção de objetivos discretos e de longo prazo, com os quais Lula e seu partido estão a�nados mais profundamente do que com os slogans criados pelo sr. Duda Mendonça. A aparente omissão ante a criminalidade, por exemplo, é incoerente com esses slogans, mas não com a linha geral de uma estratégia esquerdista já consagrada: apadrinhar o banditismo para usá-lo como instrumento de demolição da sociedade e ao mesmo tempo lançar na conta da “barbárie capitalista” o prejuízo decorrente. Meses antes da eleição eu já anunciava, nestacoluna, que um presidente petista nada faria contra o crime organizado, por não poder tocar nele sem trazer dano às , portanto ao Foro de São Paulo. Que ninguém prestasse atenção a isso, na época, já era uma obstinação indecente, mas perdoável. A única prova em favor da minha tese eram os papéis do Foro, que a mídia não mostrava. Mas agora, diante do fato consumado, explicar o estado de coisas por omissões gratuitas e despropositadas, sem buscar para ele alguma causa mais razoável, é, francamente, levar longe demais o desejo de não entender nada. A licença para usar da violência contra invasores, informalmente concedida aos índios, também só é omissão em aparência. Trata-se de dar a esses servidores do globalismo esquerdista os meios de ação que, no mesmo instante, se sonegam aos “inimigos de classe”, os fazendeiros. Outra falsa omissão é aquela que se imputa ao presidente perante os desmandos do . Pois, a�nal, o partido governante tem ou não tem um acordo estratégico com essa entidade? E esse acordo é ou não é o mesmo que ambos juraram cumprir para a consecução das metas do Foro de São Paulo? Por que continuar �ngindo que a conivência astuta é mera abstenção preguiçosa? A resposta é simples: tanto na mídia quanto na classe política, quem não é cúmplice ativo da mentira geral está inibido pela �delidade residual às obrigações esquerdistas acumuladas durante a luta contra o regime militar. Reconhecer que há uma revolução continental em marcha, que nela se articulam numa estratégia consistente todas as aparentes irracionalidades e omissões, é algo que, nesses meios, surge com a imagem abominável de uma tentação pecaminosa. Seria — dizem — “voltar à Guerra Fria”. A recusa de fazer isso é confortável para todos. Sobre a astúcia comunista, ela estende o manto protetor da invisibilidade. Aos não-comunistas, ela fornece um pretexto edi�cante para fazer do desmantelamento revolucionário do país uma ocasião de proveito oportunista. *** Percorrendo as páginas do volume coletivo O pensamento e a obra de Pinharanda Gomes, publicado pela Fundação Lusíada de Lisboa, avalio a profundidade do abismo que se cavou entre o Brasil e os debates intelectuais do mundo civilizado, mesmo aqueles que se travam na nossa própria língua. Não sei se um dia voltaremos a ser capazes de dialogar com um intelecto portentoso como o do �lósofo e historiador português Jesué Pinharanda Gomes. Por enquanto, limitamo-nos a desconhecê-lo. Encerrados num provincianismo compressivo, o que quer que esteja acima da careca do sr. José Saramago já se tornou, para nós, inalcançável. O Globo, 1º de maio de 2004 M O Fórum da Liberdade é a única arena de debates verdadeiramente democrática que existe neste país — muito diferente dos festivais de autopropaganda esquerdista que o dinheiro público espalhou por toda parte. O décimo-sétimo, do qual participei em abril na de Porto Alegre, foi o maior e o melhor de todos, talvez por ter sido realizado em ambiente universitário, tradicional feudo esquerdista que pela primeira vez teve a oportunidade de ver liberais e conservadores em pessoa e não pelas lentes deformantes do preconceito estabelecido. Ao longo de quase trinta anos de ininterrupta “ocupação de espaços”, sem defrontar-se com a mínima resistência, a esquerda conseguiu até mesmo o prodígio de inventar uma direita para seu uso próprio, constituída de banqueiros vorazes e velhos políticos corruptos, oportunistas e sem nenhuma crença política identi�cável, mas dotados do physique de rôle apropriado para encobrir, com suas panças grotescas, o rosto da direita autêntica, hoje quase desprovida de porta- vozes políticos e constituída tão-somente de intelectuais marginalizados pelo patrulhamento gramsciano, estudantes oprimidos pela inquisição “politicamente correta” e empresários estrangulados pelo �sco. Tão grande é a força hipnótica dos estereótipos, que nem o fato mesmo de aqueles banqueiros e políticos constituírem um dos mais fortes esteios do establishment petista impede que a opinião pública, bem amestrada pelo jogo pavloviano da propaganda o�cial, continue a encará-los como a personi�cação mesma do capitalismo, assim facilmente associado ao mal. É nessa condição que eles vêm servindo de Judas em sábado de aleluia, desviando para sua própria testa as pauladas destinadas ao governo e babando-se de prazer no desempenho desse ofício abjeto. Para desmontar essa farsa, nada melhor do que a direita subir ao palco e mostrar-se ao público, desalojando os fantoches pré-fabricados que a astúcia esquerdista pôs no seu lugar para desmoralizá-la. Não há quem, ouvindo um Eduardo Gianetti da Fonseca, um Denis Rosen�eld, uma Ruth Richardson, um Daniel Piza, não perceba de imediato três realidades que vêm sendo sistematicamente ocultadas: (1) que o pensamento pró-capitalista é, do ponto de vista intelectual, esmagadoramente superior ao esquerdismo estabelecido; (2) que o liberalismo nada tem a ver com o estereótipo “neoliberal” que a esquerda inventou para encenar vitórias fáceis sobre um adversário �ctício; (3) que ser conservador é lutar pela conservação de valores morais e da liberdade, não de privilégios e mamatas — um “conservadorismo” típico, isto sim, das marionetes a serviço do governo federal. É para tornar essas realidades patentes que existe o Fórum da Liberdade. Ele cumpre esse papel com honra e brilho incomuns, e para mim tem sido uma alegria poder contribuir de algum modo para o seu sucesso. Se algo fosse possível fazer para torná-lo melhor ainda, eu sugeriria duas coisas. Primeira, o Fórum tem de ser levado para outros estados da federação. O mérito do empreendimento é gaúcho, mas seus benefícios devem estender-se a todos os brasileiros. Segunda: que o temário, ainda bastante concentrado nos tópicos econômico-administrativos, seja estendido para abranger a estratégia de dominação esquerdista nos seus aspectos político, cultural e criminal. Sei que isso é explosivo, mas a insistência nos assuntos econômico-administrativos pode legitimar uma impressão de normalidade da situação político-social, contribuindo involuntariamente para dar credibilidade à mentira esquerdista imperante. Expor e denunciar a ação revolucionária do “Foro de São Paulo”, coordenação do movimento comunista no continente, responsável por todos os descalabros que hoje atormentam este país, é obrigação de todos os que a conheçam. Ainda há tempo de fazer isso. Mas há cada vez menos tempo. Zero Hora, 2 de maio de 2004 E As discussões correntes sobre evolucionismo e criacionismo, ciência e fé, espiritualismo e materialismo, são em geral bem pobres de compreensão �losó�ca, em comparação com a riqueza de dados e argumentos que põem em jogo. Se eu metesse minha colher no assunto, seria apenas no intuito de chamar a atenção para algumas precauções básicas que têm sido aí bastante negligenciadas. É que o ser humano só tem três linguagens para dar forma ao que apreende da realidade: o mito, que expressa compactamente impressões de conjunto; a ciência experimental, que descreve e explica grupos particulares de fenômenos segundo um protocolo convencional de métodos e aferições; a �loso�a, que faz a transição entre as duas anteriores. Qualquer conhecimento satisfatório das origens escapa necessariamente às possibilidades da ciência, já que a descoberta delas seria apenas mais um capítulo do mesmo processo cósmico que se pretende explicar e não um miraculoso arrebatamento da mente cientí�ca para fora e para cima do processo. Um evolucionismo conseqüente teria de explicar-se a si mesmo como etapa da evolução, mas para isso seria forçado a abdicar da pretensão de veracidade literal e consentir em ser apenas mais um símbolo provisório depois de tantos, sujeito, como todos eles, a converter-se no seu contrário mais dia menos dia. A única verdade do evolucionismo é a de uma contrapartida dialética do criacionismo, assim como nenhum criacionismo pode existir sem deixar aberta alguma brecha evolucionista. A inteligênciahumana tende na direção de um conhecimento explicativo das origens e dos �ns e sente por ele uma atração que é elemento constitutivo e essencial da sua estrutura; mas uma tendência não é e não será jamais uma realização. O ideal da ciência como conhecimento universal apodíctico é ao mesmo tempo uma miragem inalcançável e o princípio efetivo que dá estrutura e validade ao esforço cientí�co. É algo simultaneamente real e irreal — exatamente como o signi�cado dos mitos, que brilha na distância mas se furta a uma decifração cabal. Toda ciência, nesse sentido, é ritual: contínua reencarnação cênica de um sentido inaugural (e ao mesmo tempo último) que nem pode desaparecer por completo do cenário visível nem manifestar-se por inteiro dentro dele, pela simples razão de que o abarca e transcende. “Nele vivemos, nos movemos e somos”, dizia o Apóstolo. Por isso a busca incoercível e insaciável do conhecimento apodíctico, tal como o conhecimento potencial que nela já se insinua, só é apropriadamente expressa na linguagem mitológica, e isso é tanto mais verdade quanto mais essa tendência se amplia para abarcar a “totalidade”. Toda teoria cientí�ca ou especulação �losó�ca das origens desemboca, em última instância, no mito, e acusá-la de mito não é, por isso, uma objeção séria. Tanto o evolucionismo quanto o criacionismo são mitos, isto é, narrativas analógicas, insinuações �nitas de um conteúdo in�nito, separadas do seu sentido por um hiato tão imensurável quanto esse mesmo sentido. Todos os mitos giram em torno de dois modelos básicos: o criacionismo bíblico e o casualismo epicuriano. Entre esses dois, não se trata de escolher o mais “cientí�co”, o que seria apenas uma confusão de planos, uma “metábasis eis allo guénos” (troca de gêneros), e sim de averiguar qual o mais apropriado à expressão da estrutura da realidade existencial e portanto ao adequado posicionamento do homem no processo cósmico. Como esta estrutura é observada desde dois pontos de vista — a con�ança dos crentes num Deus bondoso e o sentimento gnóstico de abandono —, sem que um possa suprimir o outro, de vez que ambos constituem elementos estruturais da mesma condição humana que se desejaria expressar, o debate deve ser transferido do terreno das pretensões cientí�cas para o da adequação existencial. É no autoconhecimento, e não em especulações cosmológicas despropositadas, que se descobre, quando se pode, a e�cácia maior e a maior legitimidade intelectual do criacionismo, o que não nos dá evidentemente os meios de “refutar” o casualismo, mas apenas o de desmascará-lo como mentira existencial. Mentira existencial porque, não podendo explicar-se a si mesmo como etapa do processo, não reconhece essa sua impotência constitutiva e em vez disso se refugia num arremedo de transcendência, a pretensão de certeza cientí�ca �nal habilitada a exorcizar para sempre todos os mitos. Jornal da Tarde, 6 de maio de 2004 S “A releitura do que se publicou na imprensa no período eleitoral deveria ser matéria obrigatória em todas as faculdades de jornalismo”, a�rma o colunista Diogo Mainardi na última revista Veja. Ele diz isso com razão, e é sem medo nem falsa modéstia que ofereço meus artigos de 2002 ao julgamento do tempo, sabendo que tudo o que anunciei ali foi con�rmado, ponto por ponto, pelo desenrolar dos acontecimentos. Mas quantos jornalistas, hoje, denunciam o presente estado de coisas sem por um só instante lembrar que eles próprios o criaram, consentindo em fazer-se de ajudantes voluntários do sr. Duda Mendonça? Com a mesma afetação de superioridade olímpica, com a mesma desenvoltura irresponsável com que então fomentaram a embriaguez de messianismo lulista, jogam pedras no presidente da República como se ele fosse um malefício vindo de fora e não a encarnação de uma vontade nacional da qual eles próprios foram os mais ruidosos e entusiásticos porta-vozes. É escandaloso e imoral em toda a linha, mas não é caso isolado. Com as raras, honrosas e inevitáveis exceções de sempre, os jornalistas brasileiros tornaram-se especialistas em errar sem nunca dar o braço a torcer. Mas isso não veio do nada. Desde a faculdade, os estudantes de jornalismo não são ensinados a observar o mundo mas a “transformá-lo” como preconizava Karl Marx. Não querem ser testemunhas da História, e sim “agentes de mudança social”. Vacinados contra a idéia de realidade objetiva por meio de teorias tão pretensiosas quanto obtusas, primam em não dizer o que vêem, mas o que querem que o povo acredite. Arrogantes, intolerantes, monstruosamente incultos, quando julgam e condenam o que está acima de sua compreensão não o fazem somente de narizinho empinado; fazem-no com a ilusão de estar combatendo o autoritarismo e a prepotência, o que já é a apoteose da cegueira vaidosa. Veja-se por exemplo o que �zeram com a correspondência, recém- divulgada, entre Lincoln Gordon e o governo de Washington. De um comunicado de 29 de março de 1964, em que o embaixador, con�rmando a iminência da queda do presidente, insistia para que seus superiores dessem algum respaldo ao movimento que se preparava, tiraram a brilhante conclusão de que aí estava — en�m! — a prova, tão antecipadamente alardeada pela esquerda nacional durante quarenta anos, de que os americanos haviam tramado o golpe ou ao menos tomado parte no seu planejamento. A minha conclusão, ao contrário, é que esses jornalistas não sabem ler ou não quiseram enxergar a data do documento. Na ocasião do comunicado, fazia mais de um ano que líderes civis e militares locais vinham tramando a derrubada de Jango. Se dois dias antes da eclosão do movimento o governo americano era convocado às pressas para fazer alguma coisa, o que isso prova é evidentemente o contrário do que a esquerda sempre alegou. Ninguém prepara um golpe com dois dias de antecedência. Os americanos acompanhavam a coisa de longe e, quarenta e oito horas antes de o general Mourão Filho colocar a tropa na rua, ainda estavam tentando decidir o que fazer. Acabaram, é claro, por não fazer nada. Veja-se também a credibilidade instantânea, a recepção calorosa que a nossa mídia dá a qualquer intriga anti-Bush, mesmo quando fundada em provas tão suspeitas quanto as fotos de “torturas” alegadamente praticadas no Iraque pelas tropas de ocupação. Vários especialistas europeus puseram em dúvida a autenticidade do material, e poucos dias atrás já se revelou que outra série de fotogra�as publicadas pela imprensa esquerdista, com soldados americanos estuprando pobres mulheres muçulmanas, era uma fraude preparada com imagens extraídas de sites pornográ�cos. Quem quer que tenha lido La Désinformation par l’Image de Vladimir Volkoff (Paris, 2001) sabe que ninguém, no mundo, é contumaz na montagem dessas patifarias como russos e chineses. Mas, se amanhã ou depois �car provada a falsidade das acusações, qual jornal ou revista, após tê-las usado para reforçar com manchetes escandalosas a onda de antiamericanismo, publicará com o mesmo destaque a advertência: “Mentimos”? O Globo, 8 de maio de 2004 D Há diferenças substantivas entre o modo americano e o iraquiano de tratar prisioneiros de guerra. Os americanos os despem, os humilham, gritam com eles e às vezes lhes dão uns sopapos. Os iraquianos os esfolam, os queimam vivos ou os degolam. Há também uma diferença nas reações que despertam entre as autoridades de seus países. Os americanos são presos e submetidos à corte marcial. Os iraquianos são aplaudidos e incentivados a caprichar um pouco mais da próxima vez, por exemplo cortando os pênis dos malditos imperialistas como sugerido por um jornal islâmico. Há por �m uma diferença no modo como essas condutas repercutem na mídia. Os feitos iraquianos são mostrados de maneira fria, discreta e sem comentários, como rotinas normais de guerra. Os americanos viram manchete, são alardeados como crimes contra a humanidade, despertam campanhas de protesto em todos os quadrantes da Terra e ameaçam dar motivo ao impeachment de um secretário da Defesa. O leitorpode averiguar por si mesmo esses três pontos. O contraste é tão óbvio, tão gritante, tão mal disfarçado e tão uniforme, que, tendo em vista as duas primeiras diferenças, explicar a terceira pela mera coincidência, ou mesmo por um acordo espontâneo de preconceitos antiamericanos, seria uma ingenuidade quase patológica. Trata-se do uso premeditado e generalizado da mídia como arma de guerra, acionada por meio da organização revolucionária em “redes”, que hoje permite espalhar de modo quase instantâneo, a todas as redações de jornais, rádios e ’s do planeta, uma palavra de ordem que será seguida ao pé da letra, com feroz entusiasmo, pelas massas de militantes e “companheiros de viagem” aí instalados como usuários monopolísticos e senhores quase absolutos dos canais de comunicação. Ao longo de quase meio século de ensaios e adaptações, os dois conceitos estratégicos fundamentais da doutrina bélica antiocidental, a “guerra assimétrica” e a “guerra informática” ou netwar, acabaram se articulando numa coerência sinfônica infernal que ecoa, sem descompassos nem desa�nos, de Pequim a Assunción, de Tashkent a San Francisco. Guerra assimétrica: inspirada na Arte da guerra de Sun-Tzu, consiste em dar a um dos lados combatentes o direito de usar de todos os meios de ação, por mais cruéis e desonestos, explorando ao mesmo tempo como arma estratégica os compromissos morais, legais e sociais que amarram as mãos do adversário. Guerra informática: uso maciço da mídia como instrumento de combate, posto a serviço das forças revolucionárias por meio da antecipada “ocupação de espaços” em todos os canais de comunicação, desalojando os inimigos potenciais e subjugando os recalcitrantes. Some as duas e terá a descrição exata do que vê na mídia todos os dias. O fenômeno já foi bastante estudado pelos estrategistas militares, e a bibliogra�a a respeito é tão vasta que não há nenhuma desculpa para quem ainda tente alegar que estou inventando coisas. Sobre a guerra assimétrica, o estudo mais atualizado é o do analista estratégico suíço Jacques Baud, La guerre asymétrique ou la défaite du vainqueur.6 Sobre a netwar, a obra-padrão é e Advent of Netwar, de John Arquilla e David F. Ronfeldt, publicado pela Rand Corporation, que pode ser descarregado pelo site http://www.rand.org/publications/MR/MR789/. A e�cácia do uso convergente das duas técnicas é variável e ambígua, mas seu efeito mercadológico é, este sim, comprovado e inequívoco, ao menos nos . Ao longo dos últimos quinze anos, a credibilidade da grande mídia norte-americana — o que é o mesmo que dizer: da grande mídia antiamericana — caiu vertiginosamente. Uma vasta pesquisa feita pelo “Project for Excellence in Journalism”, da Columbia University, mostra que a con�ança nos jornais baixou de oitenta por cento para vinte por cento. Hoje, só um entre cinco americanos acredita nas notícias que lê. A credibilidade do presidente George W. Bush, dos militares ou do clero protestante é incomparavelmente superior: o empenho jornalístico em desacreditá-los funciona às avessas. O Globo, 15 de maio de 2004 O Outro dia fui procurado por um professor de faculdade que pedia informações sobre o movimento conservador nos para uma tese de relações internacionais. Ele tinha vasculhado as principais bibliotecas universitárias do país, sem encontrar mais que cinco ou seis títulos. Isso dá a medida de quanto o Brasil, mergulhado há duas décadas num poço de ilusões solipsísticas, foi parar longe da realidade do mundo. Analisar o atual governo americano sem conhecer sua retaguarda doutrinal e ideológica é como seria, na década de 40, ponti�car sobre Stálin sem nunca ter ouvido falar de Marx ou de Lênin. Nossos comentaristas de mídia e professores universitários fazem isso com a maior sem-cerimônia, parecendo acreditar-se detentores de uma ciência infusa que prescinde de todo contato com os fatos e os textos. Anos atrás, denunciei a fraude de um Dicionário crítico do pensamento da direita, elaborado com dinheiro público por uma centena de acadêmicos. Prometendo um panorama cientí�co de uma importante corrente política mundial, a obra omitia todos os principais escritores e �lósofos conservadores e colocava em lugar deles pan�etários de quinta categoria, premeditadamente escolhidos para criar uma impressão de miséria intelectual e fanatismo selvagem. Pela amostragem numericamente signi�cativa dos signatários da empulhação, era obrigatório concluir que o establishment universitário brasileiro havia perdido os últimos escrúpulos de seriedade, consentido em tornar-se instrumento consciente da exploração da ignorância popular. Como movimento intelectual assumido, o conservadorismo anglo- saxônico começou em 1945, e a ele estão associados os nomes de alguns dos maiores pensadores do século , como Leo Strauss, Eric Voegelin, omas Molnar, Friedrich Hayek, Ludwig von Mises, James Burnham, Roger Scruton, Irving Kristol, omas Sowell. Se esses e tantos outros do mesmo nível estão excluídos das bibliotecas universitárias e das prateleiras de livrarias brasileiras, não há nisso nada de surpreendente: nenhum esforço ativo de desinformação pode prosperar sem a prévia supressão das fontes que o desmintam. É preciso tornar essas leituras inacessíveis, antes de tudo, em razão da força intelectual que delas irradia, capaz de contaminar perigosamente uma juventude que só a virgindade mental conserva presa na jaula do obscurantismo esquerdista. A riqueza e a abrangência crescentes do debate cultural e político norte-americano, especialmente na ala conservadora, já o tornaram tão inacessível à imaginação brasileira que esta prefere refugiar-se na confortadora ilusão de que ele não existe. Mas não é somente às idéias que o acesso está bloqueado. É também aos fatos. Por falta de fontes, ninguém neste país sabe nada do que os historiadores ocidentais descobriram nos Arquivos de Moscou desde 1990 sobre a história do comunismo, retaguarda indispensável à compreensão do estado atual desse movimento, que vai dominando a América Latina ante os olhos cegos de milhões de paspalhos que o imaginam morto e inexistente. Não há precedente histórico de uma privação de informações tão vasta, tão profunda, tão duradoura. Nem muito menos de um povo que, com o despreocupado conformismo dos inconseqüentes, se acomodasse tão deleitosamente à ignorância imposta. Essa indolência mental, esse desprezo pela busca do conhecimento, concomitante à orgulhosa a�rmação de certezas arbitrárias, produz fatalmente um desajuste na ordem prática, que se traduz, retoricamente, no ufanismo patético dos derrotados e dos impotentes. Não é verdade que todo povo tem o governo que merece. Mas o brasileiro, sem dúvida alguma, tem. Zero Hora, 16 de maio de 2004 A Desde a guerra da Argélia (1954–1962), a idéia de “guerra assimétrica” tornou-se o princípio orientador da estratégia antiocidental. Inspirado no “combate indireto” de Sun Tzu, cuja Arte da guerra já circulava em edições o�ciais na e nos países-satélites nos anos 50, o conceito é, em essência, o de uma luta em que um dos lados não admite freios de espécie nenhuma: pode fazer o que bem entender e ainda explorar como arma os compromissos morais, jurídicos e sociais que amarram as mãos do adversário. A guerra assimétrica é a sistematização militar da máxima enunciada em 1792 pelo deputado Collot d’Herbois, na Convenção francesa: “Tudo é permitido a quem age a favor da revolução”. Um analista estratégico canadense, o capitão de fragata Hugues Letourneau, assinala que a Frente de Libertação Nacional argelina recorria corriqueiramente a greves gerais, emboscadas, terrorismo praticado contra sua própria população e contra outras organizações argelinas de libertação, assassinatos, torturas, mutilações, subtração de grandes somas de dinheiro da população civil, sabotagem industrial e agrícola, destruição de bens públicos, intimidação e morte de presumidos colaboracionistas, campanhas de desinformação etc. Enquanto isso, qualquermínimo ato ilegal das forças de ocupação era usado pela intelectualidade ativista de Paris como instrumento de chantagem moral para manter o governo francês paralisado pelo medo do escândalo. Para surtir efeito, a assimetria deve se impregnar profundamente nos hábitos de julgamento da opinião pública, de modo que esta não perceba a imoralidade intrínseca das cobranças pretensamente morais que faz a um dos contendores enquanto concede ao outro o benefício da indiferença ou do silêncio cúmplice. Um exemplo é o desnível de tratamento dado às ocupações do Iraque e do Tibete, orientado de modo a instilar no público a impressão de que uma operação militar temporária, calculada como nenhuma outra antes para evitar danos à população civil, é um crime mais grave do que a ocupação contínua, a destruição premeditada de uma cultura milenar e o genocídio permanente que já fez um milhão de vítimas. A assimetria, aí, consagrou-se de tal modo como direito natural inerente a um dos antagonistas que a simples sugestão de comparar a atuação americana à chinesa já soa como extemporânea, de mau gosto e suspeita de cumplicidade venal com “interesses inconfessáveis a soldo de Wall Street” (este mesmo artigo, é claro, entrará nessa classi�cação). Do mesmo modo, meia dúzia de abusos sangrentos cometidos pelos soldados americanos no Iraque — inevitáveis em toda guerra, por mais que as autoridades policiem suas tropas — já aparecem na mídia como crueldades mais odiosas do que a prática habitual da tortura e dos assassinatos políticos em tempo de paz, comuns em tantos países islâmicos, sem contar as perseguições religiosas (jamais noticiadas no Brasil), que ali já mataram mais de dois milhões de cristãos nas últimas décadas. A guerra assimétrica é mais facilmente praticada por organizações revolucionárias, isentas dos compromissos que pesam sobre os Estados constituídos. Mas alguns Estados que dão respaldo discreto a esses movimentos podem também utilizar-se da mesma estratégia. Um livro recente de dois coronéis chineses, A guerra para além das regras, publicado em 1999, mostra que o governo da China está profundamente envolvido na guerra assimétrica antiamericana. E essa guerra não seria assimétrica se, tão logo o seu conceito se tornou de domínio público, a responsabilidade pelo uso maciço da técnica perversa não fosse jogada sobre as costas, justamente, da sua principal vítima. Poucos dias depois do 11 de setembro, o Le Monde Diplomatique referia-se, com notável cara-de-pau, à “estratégia o�cial americana da guerra assimétrica”. Não explicavam, evidentemente, como os poderiam fazer guerra assimétrica sendo, no mundo, o Estado mais exposto ao julgamento da opinião pública e não possuindo na mídia internacional — aliás, nem mesmo na americana — uma rede organizada de colaboradores como aquela de que dispõem os movimentos antiamericanos, hoje capacitados a impor a toda a população mundial, em poucas horas, a sua própria versão dos acontecimentos, simulando convergência espontânea. Mais e�ciente ainda é a operação quando realizada em terreno previamente preparado pela “ocupação de espaços” gramsciana, que, bloqueando e selecionando as fontes de informação, predispõe o público a aceitar como naturais e inocentes as mais arti�ciosas manipulações ideológicas do noticiário. No Brasil, por exemplo, está proibido há pelo menos três décadas o acesso à opinião dos conservadores americanos. Seus livros — milhares de títulos, muitos deles clássicos do pensamento político — nunca são traduzidos nem constam de nenhuma biblioteca universitária. Suas idéias só chegam ao conhecimento do público nacional por meio da versão comunista o�cial, monstruosamente distorcida, criada em 1971 pelo historiador soviético V. Nikitin no livro e Ultras in the e até hoje repassada servilmente de geração a geração, nas escolas e nos jornais, por uns quantos espertalhões conscientes e milhares de idiotas úteis que não têm idéia da origem remota de suas opiniões. Quem, criado nesse meio, pode suspeitar que há algo de errado no bombardeio de notícias que fazem de George W. Bush uma espécie de Stálin de direita? Furar o bloqueio é desa�o que só estudiosos aplicados podem vencer, mediante esforços de pesquisa que não estão ao alcance do cidadão médio. E a voz desses estudiosos soa ridiculamente inaudível quando tentam alertar a população para essa realidade temível: desde o advento da estratégia assimétrica, a desinformação, no sentido técnico e literal do termo, a desinformação como arma de guerra, tornou-se a ocupação mais constante e regular da grande mídia, suplantando de longe a incumbência nominal que um dia foi a do jornalismo. O perigo a que isso expõe a população é monstruoso e não diminuirá enquanto a sociedade civil não instituir a “�scalização externa” da mídia, submetendo a processo judicial por propaganda enganosa os órgãos que se recusarem a transmitir de maneira �dedigna e quantitativamente equilibrada as informações e opiniões provenientes de fontes opostas entre si. Folha de São Paulo, 20 de maio de 2004 I Ninguém ignora que o signatário desta coluna se mantém à distância de toda �liação política, que suas idéias não se alinham com as de nenhum partido, grupo organizado, lobby, sociedade secreta ou coisa do gênero. Não obstante, é ele, e não os porta-vozes dessas entidades — mesmo quando militantes de carteirinha ou notórios agentes de in�uência pro�ssionais —, quem recebe o rótulo de opinador ideologicamente comprometido, que como tal deve ser ouvido com toda a suspicácia necessária para descontar, do que ele diz, a quota presumidamente enorme de obliqüidade partidária deformante. O cineasta que faz a apologia devota de Che Guevara, o pretenso sacerdote que macaqueia o ritual da missa para igualar Lula a Jesus Cristo, o repórter que inventa crimes impossíveis para sujar a reputação das Forças Armadas, o colunista que não passa um dia sem dar sua cuspida ritual na imagem satanizada de George Bush, esses não são nunca suspeitos de viés ideológico: são as personi�cações mesmas do sadio realismo, da normalidade, do justo meio-termo. Por isso nenhum deles vem citado na mídia como “escritor de esquerda”, “artista de esquerda”, “jornalista de esquerda” ou coisa assim. Cada um é “escritor”, “pensador”, “artista” tout court, tornando claro que fala em nome de toda a sua classe e não de uma parcela atípica e extravagante. O privilégio de ter o nome da sua ocupação associado sempre a um carimbo ideológico restritivo pertence à direita: “pensador de direita”, “escritor de direita”, etc. Assim distinguem-se o todo e a parte, a norma e o desvio, o certo e o duvidoso. Assim institui-se a discriminação como prática consuetudinária que, pela sua própria constância abrangente, já nem parece discriminação. Mais disseminada ainda é a quanti�cação que realça a anormalidade do desvio: qualquer coisa que esteja à direita da fronteira tucana é “extrema” direita, é “ultradireita”. Mas estar à esquerda da mesma linha divisória não é de maneira alguma ser de “extrema esquerda” ou “ultra-esquerda”. Mesmo quem faça causa comum com as , com Fidel Castro e com Hugo Chávez não será jamais de “extrema esquerda”. Tal é o uso lingüístico consolidado, nascido em jornalecos e pan�etos de partido, mas hoje incorporado aos hábitos da grande mídia, da mídia pro�ssional. Escrever assim, hoje, é ser idôneo e suprapartidário. Recusar-se a fazê-lo é extremismo de direita. Se, observando a generalidade desse fenômeno, noto que coincide milimetricamente com a de�nição gramsciana da onipotência ideológica invisível, é, naturalmente, porque sou um extremista, e não porque essas coisas estejam realmente acontecendo. O fato de que elas possam ser comprovadas empiricamente pela estatística dos giros semânticos nada signi�ca. E, se lembro ao interlocutor que na teoria de Gramsci a referida onipotência inclui o poder de neutralizar como “aberração” a denúncia da sua própria existência, isso não é porque estudei Gramsci e sei o que ele diz:é porque eu próprio sou, no estrito sentido gramsciano, uma aberração. Não, não é a opinião pública que, levada pela lenta e sutil manipulação do vocabulário, vai cada vez mais para a esquerda imaginando continuar no centro, como o bebê que acredita ver, da janela do ônibus, o mundo correr para trás enquanto ele permanece imóvel no colo de sua mãe. Sou eu que exorbito, indo cada vez mais para a direita — para a extrema-direita — e vendo, em meus delírios, o centro ir para a esquerda. Agora mesmo, o colunista Arnaldo Bloch acaba de me rotular de proclamador de absurdos, porque eu disse que o partido governante tem uma aliança política com as e o chileno. O fato de que essa aliança tenha sido reiterada em dez anos de atas e resoluções do Foro de São Paulo, assinadas pelo seu fundador e presidente Luís Inácio Lula da Silva junto com os representantes daquelas entidades, só prova, portanto, que ela jamais aconteceu. De que valem a�nal montanhas de documentos, quando contrariam uma crença subjetiva nascida do completo vácuo de informações e alardeada em tom de certeza auto-evidente? O Globo, 22 de maio de 2004 O Entre as organizações que denunciaram o tratamento vexatório dado a alguns prisioneiros de guerra iraquianos estava a Freedom House, de Nova York. Mas ninguém, ali, teve a menor ilusão de estar lidando com fatos de gravidade equiparável aos que se passam diariamente nos países comunistas e muçulmanos. Digo isso não só porque a diferença entre humilhar prisioneiros e torturá-los �sicamente é visível com os olhos da cara — exceto se for uma cara-de-pau como a de tantos jornalistas brasileiros —, mas porque pouco antes dos acontecimentos de Abu-Ghraib aquela havia publicado seu relatório e Worst of the Worst: e World’s Most Repressive Societies [Os piores dos piores: as sociedades mais repressivas do mundo], e basta lê-lo para notar que não há comparação possível entre a conduta dos americanos e a de seus mais in�amados críticos. Prisões arbitrárias em massa, exclusão do direito de defesa, privação de comida e uma dose formidável de espancamentos, choques elétricos e mutilações são a ração usual oferecida aos prisioneiros políticos de Burma, China, Cuba, Guiné Equatorial, Eritréia, Laos, Coréia do Norte, Arábia Saudita, Somália, Sudão, Síria, Turcomenistão, Usbequistão, Vietnã, Marrocos, Rússia e Tibete. Desses dezessete recordistas da maldade o�cial, seis são socialistas, seis islâmicos, os restantes têm regimes ditatoriais estatistas. Nenhum padece os horrores do capitalismo liberal, nenhum está sob o domínio do imperialismo americano nem da conspiração sionista internacional. Que alívio, não é mesmo? Em pelo menos quatro deles — China, Sudão, Vietnã, Tibete —, quem está fora da cadeia pode ser morto a qualquer momento nas operações genocidas que de tempos em tempos, em geral para �ns de repressão religiosa, os governos respectivos empreendem contra suas próprias populações, exceto no caso do Tibete onde o serviço é feito pelas tropas chinesas de ocupação, as quais ali se encontram no exercício de um direito que o nosso presidente da República julga inquestionável. O total de vítimas, nas últimas três décadas, é calculado em pelo menos quatro milhões de pessoas — miudeza desprezível em comparação com os sessenta milhões de chineses liquidados por um regime cujos apologistas impenitentes ainda se encontram às pencas no parlamento brasileiro, onde uma vez por semana nos brindam com discursos moralizantes sobre as virtudes da democracia. Desses dezessete infernos terrestres, diariamente chegam aos jornais e ’s apelos desesperados em favor de prisioneiros submetidos a torturas corporais, os quais apelos vão diretamente para a lata de lixo para não tomar o espaço consagrado à denúncia daqueles cruéis soldados americanos que, no Iraque, �lmam prisioneiros de guerra pelados sem tocar num único �o de cabelo das suas cabeças. Pois, a�nal, tortura não é aquilo que os dicionários de�nem como tal e sim qualquer abuso menor que possa ser explorado como propaganda anti-Bush. Será que digo essas coisas por ser um fanático direitista, e não porque existe realmente aí alguma desproporção acessível à pura razão humana, ao puro sentimento instintivo de justiça? A quase totalidade dos jornalistas do eixo – lhe assegurará que sim, caro leitor. Muitos deles sabem que estão mentindo, mas, como diria Goethe, não podem abdicar do erro porque devem a ele a sua subsistência. Outros se encontram tão dani�cados intelectualmente por quatro décadas de privação de informações essenciais, que sentirão uma indignação sincera diante do que lhes parecerá uma sórdida calúnia encomendada pelo capitalismo ianque e, naturalmente, paga a peso de ouro. E tão avassalador será o impacto dessa emoção nas suas almas, que a simples hipótese de tentar conferir jornalisticamente a veracidade ou falsidade das minhas alegações lhes soará como uma tentação abominável, da qual buscarão refúgio no exercício redobrado de suas devoções costumeiras e na rea�rmação dogmática de uma honestidade pro�ssional imune a qualquer suspeita. Feito isso, dormirão em paz, sonhando com o futuro socialista no qual, prometia Antonio Gramsci, “tudo será mais belo”. O Globo, 29 de maio de 2004 G, C Deixemos John Kerry em paz. Depois que um médico militar informou ter conseguido curar com um simples band-aid os épicos ferimentos de combate que ele alardeia nos palanques, esse vigarista de subúrbio só engana a quem quer ser enganado. Há tipos mais interessantes no palco político americano. Albert Gore Jr., que acaba de acusar o presidente Bush de “genocídio” por conta de 37 prisioneiros de guerra no Iraque cuja morte não foi constatada por ninguém, é acionista majoritário da Occidental Petroleum, fundada por Armand Hammer, o qual subsidiou toda a carreira política de Gore pai e dizia tê-lo, por isso, “no bolso do colete”. Hammer granjeou fama como capitalista apolítico que, por mera coincidência, teve negócios na Rússia no tempo de Lênin e enriqueceu com eles. Documentos encontrados nos Arquivos de Moscou mostraram, porém, que ele foi membro ativo do serviço de �nanças do Comintern e que suas empresas eram uma rede de lavagem de dinheiro para o �nanciamento de movimentos revolucionários no Ocidente. Dos mesmos arquivos já tinha vindo, através do escritor Vladimir Bukovski,7 a prova de que a �nanciava maciçamente a mídia esquerdista soi disant “moderada” da Europa ocidental. A raiva que essa mídia vem fazendo desabar em cima de Bush desde que este derrotou Gore nas eleições é portanto bastante explicável: sabem lá o que é perder, por uns poucos votos, a oportunidade de colocar na presidência dos um fantoche controlado pela espionagem comunista? Oh, dor atroz! Essa história, documentada para além do que poderiam exigir os mais céticos, está em Dossier: e Secret History of Armand Hammer, de Edward Jay Epstein, publicado em Nova York pela Random House. O livro é de oito anos atrás, mas os fatos que relata permanecem fora do alcance do público brasileiro, ao qual a mídia continua vendendo uma imagem de Gore perfeitamente asséptica e lisonjeira. Mais patife que Gore, só Bill Clinton. O fracasso dos serviços de inteligência norte-americanos em prever o 11 de setembro teve uma só causa: Clinton havia centralizado na Casa Branca o controle direto de todos os órgãos de segurança e bloqueado propositadamente as comunicações entre eles. A , o e outras agências estavam então conduzindo investigações paralelas sobre as verbas ilegais de campanha dadas ao candidato Clinton pelo exército da China e os subseqüentes favores que, uma vez eleito, o gratíssimo presidente prestou aos serviços de espionagem chineses. Sem intercâmbio de informações, os investigadores não puderam, na época, juntar os �os da trama. Pior: a assessora encarregada da operação-bloqueio, Jamie Gorelick, agora faz parte da comissão parlamentar encarregada de “investigar” as falhas de segurança que possibilitaramo atentado. Pior ainda: entre os favores prestados pelo governo Clinton à China, estava a permissão dada a uma subsidiária da General Electric (da qual Gorelick tinha sido advogada) para vender ao exército chinês equipamentos que, segundo se revelou depois, serviam para a fabricação de mísseis intercontinentais direcionados ao território norte-americano. Essa história não saiu nem jamais sairá na mídia nacional fora desta coluna. Leia a coisa inteira em http://www.frontpagemag.com/Articles/ReadArticle.asp?ID=13516. Mas vá depressa, antes que o governo brasileiro imite o exemplo da sua adorada China e comece a controlar o acesso do público aos sites estrangeiros. Aproveite para tomar conhecimento de duas outras notícias que, a bem da campanha anti-Bush, seu compromisso pro�ssional máximo, os jornalistas brasileiros teimam em ocultar: já foi encontrada a prova cabal da ligação entre Saddam Hussein e Al-Qaeda8 e comprovada para além de qualquer dúvida razoável a presença de armas químicas no arsenal iraquiano.9 Zero Hora, 30 de maio de 2004 C “A opinião pública vem se �rmando como ator capaz de redirecionar o cenário político”, a�rma a escritora Rosiska Darcy de Oliveira em artigo recentemente publicado, no qual tenta induzir os brasileiros a pressionar o eleitorado americano para que vote em John Kerry, o candidato preferido da Coréia do Norte, do Vietnã, do Hamas, da Al- Qaeda e dos militares chineses. O exemplo que ela aponta aos nossos compatriotas vem da Espanha. Não da Espanha heróica e desbravadora do século . Nem mesmo da Espanha nobremente suicida da Guerra Civil. Vem daquela outra Espanha passiva, acovardada, sonsa e desprezível — súbita reencarnação da “España miserable” de Antonio Machado —, que, hipnotizada pela articulação sinistra das bombas assassinas com uma bem planejada blitzkrieg midiática, se lançou de joelhos ante a voz de comando do terrorismo internacional. “Nas eleições espanholas após o atentado terrorista de Madri, em vinte quatro horas, usando celulares e a rede da internet, os eleitores falaram entre si, desmontaram a farsa o�cial veiculada pela grande mídia e tiraram do poder o primeiro-ministro que enganara a nação”. É um dos parágrafos mais cínicos e mentirosos que tenho lido na imprensa nacional. Dona Rosiska pretende fazer-nos crer que a rede de ’s bilionárias, muitas delas comprovadamente associadas com a estratégia terrorista, que planejam e direcionam o �uxo de informações na mídia internacional, não existe, não age, não in�uencia coisa nenhuma. Em lugar dela, aparece o personagem anônimo e impessoal chamado “opinião pública” ou “os eleitores”, o qual, miraculosamente, se arregimenta, se articula, se organiza por iniciativa espontânea e, em vinte e quatro horas, está pronto para a ação unitária destinada a mudar o curso dos acontecimentos. Se essa mudança ocorre no sentido desejado e planejado pelos terroristas, se ela realiza milimetricamente o projeto exposto com meses de antecedência em comunicados internos da Al-Qaeda, isto é apenas mais uma coincidência que vem se somar à inocente conjunção de acasos. E, se essas duas linhas de força convergem por sua vez para engrossar a corrente de vociferações antiamericanas dominante na grande mídia de Madri, de Paris, de Berlim e de Nova York, isto não só acontece igualmente sem premeditação alguma, mas também não constitui objeção a que Dona Rosiska pinte o empreendimento todo como uma heróica reação de cidadãos independentes e inermes contra a onipotência do “sistema” organizado e rico. Como se o “sistema” não consistisse precisamente na parceria dos organismos internacionais com a grande mídia e a organização da militância radical na cerrada malha de ’s ativistas que cobre todo o planeta e num instante faz ecoar suas palavras-de-ordem em todas as redações, segura da uniformidade das opiniões no dia seguinte. Como se a mesma mídia que Dona Rosiska �nge denunciar não tivesse tido um papel de destaque na condução “espontânea” das massas para a genu�exa rendição à prepotência dos terroristas. Como se a existência e funcionamento das “redes” fossem totalmente desconhecidos, como se não fossem objetos de uma detalhada bibliogra�a acadêmica, como se na mesma internet não circulasse desde 1996 uma obra como e Advent of Netwar, de John Arquilla e David F. Ronfeldt.10 Como se o oceano de dinheiro público e privado que engorda essa máquina infernal de propaganda pudesse ser ocultado dos leitores e já não estivesse bem exposto aos olhos de todos em sites como http://www.activistcash.com. Como se a própria Dona Rosiska, desde os tempos em que servia ao mestre manipulador Paulo Freire até a época mais recente em que passou a brilhar nos altos círculos do beautiful people nacional e internacional, não tivesse feito toda a sua carreira dentro e sob a generosa proteção desse sistema, ignorando portanto candidamente a existência dele e não tendo, pobrezinha, outra maneira de explicar os resultados espetaculares de suas ações globais senão o apelo pueril a uma hipótese mágica. Nunca a realidade foi tão simetricamente invertida, nunca a astúcia sagaz dos manipuladores se camu�ou sob tão cândida inocência. Compreendo que Dona Rosiska faça tanto sucesso hoje em dia. Seu discurso é um resumo vivo do modelo brasileiro de honestidade intelectual. Jornal da Tarde, 3 de junho de 2004 M Há dez anos o jornalismo produzido por intelectuais de esquerda neste país tem um pauteiro secreto: eu. Basta eu dizer alguma coisa da qual desconheçam tudo, e no dia seguinte lá estão eles ponti�cando a respeito, omitindo — é claro — a citação da fonte e fazendo o diabo para dar a impressão de que são veteranos no assunto. O problema é que esse pessoal não estuda nada, só lê jornal. E lêem jornal apenas para absorver de volta suas próprias opiniões, ali reproduzidas por seus correligionários sob uma encantadora multiplicidade de formas e pretextos que lhes dá até a sensação de estar lendo coisa nova. Mas, como cãezinhos que lambem o próprio vômito, acabam aprendendo o gosto e enjoando do cardápio. Então vêm à minha coluna e, após alguns momentos de indignada perplexidade, tratam de recobrar o “aplomb” e ensaiar aquela pose de quem já sabia de tudo. Isso até que é bem fácil, dada a bicentenária tradição de macaquice que permeia a cultura nacional. A di�culdade não reside em macaquear, mas em macaquear negativamente, isto é, em dar a aparência de que a novidade indigerível lida na véspera é apenas alguma velha mentira já mil vezes impugnada. As habilidades teatrais requeridas para isso não são nada desprezíveis. Daí a compulsão irrefreável de substituir minhas a�rmações por algum chavão bem bocó que com elas se pareça desde o ponto de vista da completa ignorância e, refutando facilmente este último, dar-se os ares triunfantes de quem tivesse esmagado aquelas. O conceito de “estratégia revolucionária continental”, por exemplo, refere-se a um fenômeno bem preciso, documentado nas atas do Foro de São Paulo e nos escritos de centenas de teóricos gramscianos. Refutar a existência objetiva do fenômeno é tarefa superior à força humana. A solução, num caso desesperado como esse, é trocar o mencionado conceito pelo de “teoria da conspiração” e, partindo da certeza a priori de que todas as teorias da conspiração são pura maluquice, dar o assunto por encerrado. Outro exemplo: a existência de um governo mundial não-declarado, manifestada na imposição de legislações sociais, culturais, econômicas, militares e criminais uniformes em todo o planeta e na conseqüente abolição das soberanias nacionais, é um dado empírico incontornável — com a condição de que você tenha estudado essas legislações e suas fontes, como eu, modestamente, venho fazendo há anos. Se você não quer fazer isso, não custa nada apelar ao “Project for a New American Century” e apresentá-lo como se fosse o plano mesmo da dominação mundial e não uma tardia reação defensiva do país mais visado pelas ambições globalistas, o qual ali opõe a estasúltimas a proposta bem mais sóbria de uma simples “liderança global” que aliás já lhe pertence. Com um pouco de imaginação leviana, pode-se até equipará-lo ao Mein Kampf e instilar nos leitores mais umas gotas de paranóia antiamericana, fazendo deles instrumentos inconscientes do poder global em seu empenho de corroer o último baluarte de resistência, a soberania do país mais forte. Entre a macaquice e a parasitagem, pode-se também apelar ao expediente de diluir o sentido das palavras. “Desinformação”, por exemplo, aparece nos meus artigos em sentido técnico, tal como usada na bibliogra�a especializada. Nesse sentido, é óbvio que toda operação de desinformação subentende uma organizada rede de militantes e colaboradores espalhados na mídia, prontos a ecoar palavras-de- ordem. Só os movimentos antiamericanos possuem hoje em dia uma rede como essas, só eles têm os meios de praticar desinformação. Mas as palavras não resistem à deformação semântica. No Brasil, na Europa ou em toda a América Latina — e mesmo na grande mídia norte- americana — algo como uma “desinformação pró-Bush” é uma simples impossibilidade material, mas, desde que a massa de jornalistas ativistas aprendeu a chupar o termo nos meus artigos e regurgitá-lo com signi�cado alterado, a crença geral na existência desse fenômeno impossível tornou-se um dogma da religião política nacional. O Globo, 5 de junho de 2004 D Como já escrevi tempos atrás, o maior obstáculo à formação superior da inteligência não está em fatores de ordem econômica, social, racial ou familiar, mas de ordem moral. Está naquilo que os gregos chamavam apeirokalia: a falta de experiência das coisas mais belas. A alma que, desde tenra idade, não seja exposta à visão de exemplos concretos de beleza natural, artística, intelectual, espiritual e moral, torna-se incapaz de conceber qualquer realidade mais alta que o topo das suas percepções corriqueiras. Como o sapo do fundo do poço, se lhe perguntamos: “Que é o céu?”, responde: “É um buraquinho no teto da minha casa”. Esse é o mal crônico da cultura nacional, sempre devota do irrelevante e cheia de despeito por tudo o que esteja acima da sua precária capacidade de compreensão. Um exame dos principais romances brasileiros já revela: não há literatura, no mundo, mais rica em personagens fúteis, medíocres, desprovidos de qualquer profundidade de alma ou de espírito. É um mundo de pequenos funcionários, atormentados, na mais nobre das hipóteses, pelo orçamento exíguo, pela libido insatisfeita ou por alguma cólica intestinal. A literatura de �cção é ao mesmo tempo retrato e sintoma: se nosso cosmos �ccional é assim, não é só porque a sociedade é assim, mas porque assim também são os escritores. Sua única diferença é que têm algum dom de observação crítica para descrever a mediocridade geral, mas não para superá-la. A prova é que, quando analisam a situação, tratam logo de atribuí-la a causas econômicas, raciocinando por sua vez como pequenos funcionários e anestesiando-se para não enxergar sua própria miséria interior. Nos últimos tempos, e com estímulo o�cial, a mesquinharia nacional tornou-se ainda mais tacanha e empedernida ao adornar-se de pretextos sociais edi�cantes. A indolência mental virou sinal de amor ao povo, a incultura uma prova de altos ideais, a mediocridade pétrea uma aura de santidade em torno da cabeça oca de um candidato presidencial. A jaula de sentimentos ruins e ilusões jactanciosas em que se fechou o povo brasileiro acaba por separá-lo tão completamente do universo, que ele já não concebe o belo e o sublime senão como produtos enganosos da astúcia publicitária de algum Duda Mendonça. Daí a imagem que se pintou, na nossa mídia, do recém-falecido presidente americano Ronald Reagan. Nos , o colunista Jack Wheeler escreveu: Ronald Reagan foi o maior dos americanos — não apenas dos presidentes americanos. Mais que qualquer outro, ele personi�cou o ideal moral descrito por Aristóteles como Megalopsiquia, o Homem de Grande Alma. O Homem de Grande Alma tem um caráter de tanta integridade indissolvida e de tanta realização no mundo real, que sua alma expressava, para Aristóteles, o Kálon, a beleza moral. Essa é mais ou menos a opinião que têm de Reagan até alguns de seus mais belicosos adversários políticos. Um homem dessa envergadura pode ser amado, temido ou odiado, nunca desprezado. A afetação de desprezo olímpico com que a mídia brasileira escreveu sobre ele é apenas o disfarce convencional do mais vil dos sentimentos: a inveja rancorosa, insanável e desesperadora que as almas miúdas têm das grandes. Nunca uma camu�agem neurótica foi tão transparente, nem tão dolorida a consciência de inferioridade a�orando à casca da superioridade �ngida. Mais que amostra de uma situação cultural e política deprimente, a mídia brasileira tornou-se um sintoma psiquiátrico em sentido estrito. *** Depois de ajudar por baixo do pano uma sucessão de invasões de terras e assassinatos de fazendeiros, o governo do Zimbábue �nalmente anunciou que vai eliminar a propriedade privada no campo, estatizando todas as fazendas produtivas do país. É a vitória de�nitiva do equivalente local do , encabeçado por um sujeito chamado Hitler Zunzi. O nome é inspirador, e nem toda semelhança é mera coincidência. Zunzi diz: “Todas as revoluções exigem violência. Sou como Napoleão Bonaparte, Che Guevara e Adolf Hitler”. O governo do Zimbábue é fortemente apoiado pela China, tão querida do empresariado brasileiro. O Globo, 12 de junho de 2004 É O heróico e patriótico governo federal decidiu restabelecer o imposto sobre a importação de livros. A medida terá o efeito de um genocídio cultural, mas este nem será notado pela população, já que os leitores de livros importados são uma minoria de estudiosos especializados, e o conhecimento, na ética dominante, é um luxo burguês perfeitamente dispensável. A indústria editorial local, devotada à produção de lixo escolar e de futilidades elegantemente impressas, nada ganhará com a eliminação da concorrência estrangeira, pois os livros que vêm de fora são de tipos que não interessam a nenhum editor brasileiro. Eu, por exemplo, acabo de receber, pelo correio, History of Japanese ought, de Hajime Nakamura; Aristotle’s Modal Logic, de Richard Patterson; Gnostic Return in Modernity, de Cyril O’Regan; e Dynamics of Aristotelian Natural Philosophy from Antiquity to the Seventeenth Century, de Cees Leijenhorst. Quem, no Brasil, é louco de publicar essas coisas que não terão três leitores? Doravante, os três leitores não vão lê-las nem em português nem em língua nenhuma. Há outras obras estrangeiras, de interesse bem mais geral, que poderiam até fazer algum sucesso em tradução. Mas essas é que nenhum editor nacional jamais ousará colocar na praça, expondo-se à perda de subsídios estatais, ao boicote da mídia ou a outros danos mais substantivos. Re�ro-me aos livros — milhares deles — que atualizam o mundo civilizado quanto à história do movimento comunista e à sua estratégia atual. Divulgado esse material, ninguém mais neste país continuaria acreditando na balela de que o comunismo acabou. Pior: alertado para o fato de que o movimento comunista cresceu e está muito bem articulado com o terrorismo islâmico, com os organismos internacionais, com a grande mídia ocidental e com vários governos europeus, o público poderia juntar os pontos de uma �gura que agora lhe parece informe e caótica e tirar uma conclusão que, para o restante da espécie humana, é simplesmente óbvia: que a América Latina está hoje mais próxima do comunismo do que jamais esteve. Por enquanto, a pétrea ignorância geral garante, a quem quer que enuncie essa conclusão em voz alta, o diagnóstico infalível de mitômano paranóico. Para vocês fazerem uma idéia, porém, de como estamos atrasados nessa área, basta notar que até hoje não saiu neste país um só livro ou reportagem sobre algo que a população dos sabe desde 11 de julho de 1995. Nesse dia foram divulgadas pelo as decodi�caçõesde telegramas passados pelo serviço secreto da a seus agentes nos nos anos 40–50. Cinco décadas de negações indignadas chegaram aí ao mais patético dos desenlaces: todos os supostos inocentes que o famigerado senador Joe McCarthy acusara de espiões soviéticos, com uma única exceção, eram mesmo espiões soviéticos. McCarthy havia calculado que eram 57. Eram mais de trezentos. Os livros sobre isso são hoje abundantes, e as débeis tentativas remanescentes de negar os fatos já foram totalmente desmoralizadas. Os brasileiros, imunizados contra essas informações pelo descaso proposital da mídia e do mercado editorial, agora estão ainda mais protegidos delas pelo novo imposto. Ninguém aqui lerá, no original ou em tradução, e Venona Secrets, de Herbert Rommerstein e Eric Breindel; In Denial, de John Earl Haynes e Harvey Klehr; Treason, de Ann Coulter; Dossier: e Secret History of Armand Hammer, de Edward Jay Epstein, ou qualquer de seus inumeráveis similares. Muito menos terá acesso aos “Annals of Communism” da Universidade de Yale, que documentam, em fac-símile, oitenta anos de traições gentilmente encobertas pelo New York Times, pela , pelos Clintons, pelos Gores, pelos Kerrys, por toda a esquerda chique. Aqui, a lenda que apresenta o “macartismo” como uma longa noite de terror que se abateu sobre pobres inocentes continua e continuará um dogma inabalável “in aeternum”. Zero Hora, 13 de junho de 2004 H Desmantelado o império, as igrejas disseminadas pelo território tornaram-se os sucedâneos da esfrangalhada administração romana. Na confusão geral, enquanto as formas de uma nova época mal se deixavam vislumbrar entre as névoas do provisório, os padres tornaram-se cartorários, ouvidores e alcaides. As sementes da futura aristocracia européia germinaram no campo de batalha, na luta contra o invasor bárbaro. Em cada vila e paróquia, os líderes comunitários que se destacaram no esforço de defesa foram premiados pelo povo com terras, animais e moedas, pela Igreja com títulos de nobreza e a unção legitimadora da sua autoridade. Tornaram-se grandes fazendeiros, e condes, e duques, e príncipes, e reis. A propriedade agrária não foi nunca o fundamento nem a origem, mas o fruto do seu poder. Poder militar. Poder de uma casta feroz e altiva, enriquecida pela espada e não pelo arado, ciosa de não se misturar às outras, de não se dedicar portanto nem ao cultivo da inteligência, bom somente para padres e mulheres, nem ao da terra, incumbência de servos e arrendatários, nem ao dos negócios, ocupação de burgueses e judeus. Durante mais de um milênio governou a Europa pela força das armas, apoiada no tripé da legitimação eclesiástica e cultural, da obediência popular traduzida em trabalho e impostos, do suporte �nanceiro obtido ou extorquido aos comerciantes e banqueiros nas horas de crise e guerra. Sua ascensão culmina e seu declínio começa com a fundação das monarquias absolutistas e o advento do Estado nacional. Culmina porque essas novas formações encarnam o poder da casta guerreira em estado puro, fonte de si mesmo por delegação direta de Deus, sem a intermediação do sacerdócio, reduzido à condição subalterna de cúmplice forçado e recalcitrante. Mas já é o começo do declínio, porque o monarca absoluto, vindo da aristocracia, dela se destaca e tem de buscar contra ela — e contra a Igreja — o apoio do Terceiro Estado, o qual com isso acaba por tornar-se força política independente, capaz de intimidar juntos o rei, o clero e a nobreza. Se o sistema medieval havia durado dez séculos, o absolutismo não durou mais de três. Menos ainda durará o reinado da burguesia liberal. Um século de liberdade econômica e política é su�ciente para tornar alguns capitalistas tão formidavelmente ricos que eles já não querem submeter-se às veleidades do mercado que os enriqueceu. Querem controlá-lo, e os instrumentos para isso são três: o domínio do Estado, para a implantação das políticas estatistas necessárias à eternização do oligopólio; o estímulo aos movimentos socialistas e comunistas que invariavelmente favorecem o crescimento do poder estatal; e a arregimentação de um exército de intelectuais que preparem a opinião pública para dizer adeus às liberdades burguesas e entrar alegremente num mundo de repressão onipresente e obsediante (estendendo-se até aos últimos detalhes da vida privada e da linguagem cotidiana), apresentado como um paraíso adornado ao mesmo tempo com a abundância do capitalismo e a “justiça social” do comunismo. Nesse novo mundo, a liberdade econômica indispensável ao funcionamento do sistema é preservada na estrita medida necessária para que possa subsidiar a extinção da liberdade nos domínios político, social, moral, educacional, cultural e religioso. Com isso, os megacapitalistas mudam a base mesma do seu poder. Já não se apóiam na riqueza enquanto tal, mas no controle do processo político-social. Controle que, libertando-os da exposição aventurosa às �utuações do mercado, faz deles um poder dinástico durável, uma neo-aristocracia capaz de atravessar incólume as variações da fortuna e a sucessão das gerações, abrigada no castelo-forte do Estado e dos organismos internacionais. Já não são megacapitalistas: são metacapitalistas — a classe que transcendeu o capitalismo e o transformou no único socialismo que algum dia existiu ou existirá: o socialismo dos grão-senhores e dos engenheiros sociais a seu serviço. Essa nova aristocracia não nasce, como a anterior, do heroísmo militar premiado pelo povo e abençoado pela Igreja. Nasce da premeditação maquiavélica fundada no interesse próprio e, através de um clero postiço de intelectuais subsidiados, se abençoa a si mesma. Resta saber que tipo de sociedade essa aristocracia auto-inventada poderá criar — e quanto tempo uma estrutura tão obviamente baseada na mentira poderá durar. Jornal da Tarde, 17 de junho de 2004 O G Em 15 de dezembro de 1987, em plena Perestroika, Mikhail Gorbachov anunciou um dos pontos fundamentais do seu plano para um novo mundo de paz e liberdade: “Não pode haver trégua na luta contra a religião. Enquanto existir religião, o comunismo não prevalecerá. Devemos intensi�car a destruição de todas as religiões onde quer que elas sejam praticadas ou ensinadas”. Gorbachov era e é um marxista puro-sangue, mas, àquela altura, já não pensava em implantar em escala planetária o comunismo ortodoxo, cuja inviabilidade saltava aos olhos. O que ele tinha em mente era a “convergência” dos regimes, um socialismo meia-bomba no qual, preservada alguma liberdade econômica indispensável à sobrevivência do sistema, todas as demais liberdades fossem esmagadas sob uma portentosa engenharia de dispositivos jurídicos, sociais e culturais, já não sob a direção ostensiva do partido único, mas de um pool de organizações esquerdistas concordes no essencial. O livre mercado seria mantido, mas como instrumento para subsidiar a destruição da “democracia burguesa”. O empresariado sonso cederia de bom grado em tudo para preservar o seu querido direito de enriquecer, sem se dar conta de que na nova regra do jogo a riqueza seria cada vez menos uma fonte de poder e sim um handicap, calculado para subjugar seu detentor às exigências do Estado. Encapsulada na vitória temporária do capitalismo, a ascensão do socialismo já não se faria por meio da revolução e sim do acúmulo progressivo e indolor de controles burocráticos, exigidos por “movimentos populares” arti�cialmente criados para esse �m e subsidiados, a seu turno, por uma horda de novos e antigos ricos, movidos pela esperança insensata de aplacar com generosidades obscenas de donzela oferecida a voracidade do Estado-papão. Inspirada em Gramsci e no socialismo fabiano cujo gradualismo anestésico tinha por símbolo uma tartaruga, a estratégia permanecia �el à máxima leninista de usar o imediatismo da burguesia como instrumento para desprovê-la de seus meios de defesa. Esse sistema já está em avançado estado de implantação em todo o mundo. A administraçãonuma totalidade superior. Daí por diante, as relações entre o marxismo e as demais correntes revolucionárias foram as do patrão com seus empregados, que a seu capricho ele convoca, demite, expulsa ou chama de volta. Foi assim que ele pôde condenar como revolta pequeno-burguesa os protestos existenciais de ordem sexual ou impugnar o nacionalismo como o pior inimigo da revolução proletária, e logo em seguida convocar um e outro para que servissem sob suas �leiras. Sua capacidade de absorção e expulsão é ilimitada, já que ele não tem de dar satisfações senão à prioridade única, que é a sua própria subsistência e expansão, toda consideração de veracidade ou moralidade sendo rebaixada, pragmaticamente, à condição de ancilla revolutionis. Oportunismo levado às últimas conseqüências, seu total descompromisso com a verdade pode ser medido pela constância com que o movimento comunista anuncia sua vitória próxima contra as nações capitalistas e, ao mesmo tempo, jura que nem sequer existe materialmente, denunciando como paranóia e “teoria da conspiração” qualquer tentativa de identi�car sua rede de organizações e seus modos de ação. Aqui também a comparação com as religiões dogmáticas é inadequada. Nenhum fanatismo religioso produziu esse tipo de sociopatia em massa. A diferença fundamental entre o marxismo e as demais culturas é que para estas últimas o teste decisivo é a adaptação ao ambiente natural, a organização da economia. Qualquer cultura que fracasse neste ponto está condenada a desaparecer. O marxismo, ao contrário, cujo completo fracasso econômico em todas as nações que dominou são notórios (valendo lembrar que nenhuma organização econômica jamais conseguiu matar de fome dez milhões de pessoas de uma só vez, como o “Grande Salto para a Frente” da agricultura chinesa), parece tirar desse resultado as mais extraordinárias vantagens, crescendo em prestígio e força política quanto mais se torna frágil e dependente da ajuda dos países capitalistas. Sua incapacidade de explorar e�cazmente um território, comparada à brutal e�ciência no expandir-se dentro do território alheio, mostra que o marxismo não existe como cultura em sentido pleno, capaz de a�rmar seu valor contra a resistência do ambiente material, mas apenas como subcultura parasita incrustada numa sociedade que ele não criou e com a qual não pode competir. Subcultura parasita da cultura ocidental moderna, o marxismo não é capaz de substituí-la, mas é capaz de enfraquecê-la e levá-la à morte. O parasita, porém, não pode subsistir fora do corpo que explora, e a debilitação do organismo hospedeiro dá margem à ascensão de uma outra cultura concorrente, a islâmica — esta sim cultura em sentido pleno —, a cujo combate antiocidental o marxismo acaba servindo de força auxiliar enquanto procura utilizar-se dele para seus próprios �ns. A adesão islâmica de importantes pensadores marxistas como Roger Garaudy e a “aliança antiimperialista” de comunistas e muçulmanos são símbolos de um processo muito mais profundo de absorção do marxismo, que alguns teóricos islâmicos descrevem assim: a luta pelo socialismo é a etapa inicial e inferior de um processo revolucionário mais vasto que acrescentará à “libertação material” dos povos a sua “libertação espiritual” pela conversão mundial ao Islam. Ao mesmo tempo, os marxistas acreditam dirigir o processo e utilizar-se da rebelião islâmica como em outra época usaram de variados movimentos nacionalistas, sufocando-os em seguida. Se os marxistas são a tropa-de-choque da revolução islâmica ou os muçulmanos a ponta-de-lança do movimento comunista, eis a questão mais interessante para quem deseje saber para onde irá o mundo nas próximas décadas. Jornal da Tarde, 8 de janeiro de 2004 A O �chamento de turistas nos visa a controlar a avalanche de imigrantes ilegais e a entrada de possíveis suspeitos de terrorismo. Os dois males estão interligados, pois a imigração ilícita tem sido o meio mais fácil de contrabandear terroristas, além de ser usada, de maneira muito deliberada e consciente pelos radicais islâmicos, como instrumento de guerra cultural para desarmar psicologicamente a população contra a propaganda antiamericana interna e externa. Até que ponto ambas essas operações têm cúmplices poderosos entre os próprios americanos, elevando o risco ao nível de alerta máximo, é algo que pode ser avaliado por uma comparação bem simples. Tomem, de um lado, o fenômeno crescente da repressão anticristã que descrevi no artigo “Natal proibido”. De outro, �quem sabendo que a multibilionária Fundação Ford introduziu em seus programas educacionais a sugestão de modi�car a Constituição Americana para que proíba a “blasfêmia contra Allah”, categoria que abrange praticamente toda e qualquer manifestação verbal antiislâmica. Um país cujos universitários são induzidos a admitir tranqüilamente a possibilidade de conceder privilégios especiais a uma comunidade religiosa recém-chegada, ao mesmo tempo que as religiões locais tradicionais são cada vez mais marginalizadas e perseguidas pelo establishment, é evidentemente um país que está sendo adestrado para imolar sua cultura no altar de seus inimigos. Entre a preparação psicológica de uma geração de estudantes e a mudança constitucional visada, o caminho é longo, mas não muito. Todo o “multiculturalismo” universitário que predispôs a população americana à passividade diante da perseguição anticristã começou, quatro décadas atrás, em programas semelhantes a esse da Ford. As armas da guerra cultural são sutis, suas ações deliberadamente lentas. Mas nunca isoladas. O antiamericanismo chique da Ford converge com a intriga corrente entre políticos europeus — os bons e velhos amigos da — de que é um perigo mortal para uma democracia moderna ter um presidente cristão. Isso sugere aliás outra comparação elucidativa. O panorama da guerra cultural nos é complexo, assustador e, como não poderia deixar de ser, totalmente ignorado pelos brasileiros. Mas, mesmo sem levá-lo em conta, a ameaça física do terrorismo, os constantes anúncios de novos ataques e a articulação internacional em favor dos terroristas — da qual o Brasil não está de todo inocente — bastam para mostrar que nenhuma precaução de segurança nos aeroportos americanos, por mais constrangedora que seja, pode ser considerada excessiva, absurda ou insultuosa à dignidade humana. No Brasil, em contrapartida, não há avalanche de imigrantes ilegais, muito menos provenientes dos , nem qualquer organização terrorista em atividade, já que a única que poderia ser assim quali�cada — as — está em boas relações com o nosso governo e só joga bombas na Colômbia, limitando suas atividades no território brasileiro à circunspecta distribuição de algumas centenas de toneladas de cocaína por ano, uma bobagenzinha incapaz de perturbar o sono de nossas autoridades. Qual o motivo, então para �char os americanos que entram no Brasil? O motivo é um só: eles são americanos, e o juiz Julier Sebastião da Silva está cego de raiva contra o país de onde eles provêm. Tão cego, que perdeu totalmente o senso das proporções, chamando de nazista a �scalização nos aeroportos de lá e não vendo nazismo nem racismo nenhum na ostensiva discriminação de viajantes legais contra os quais nada se tem a alegar exceto sua nacionalidade. Mas decerto não é só o magistrado quem está cego. O alinhamento do Brasil com o antiamericanismo internacional, a aliança com Hugo Chávez e Fidel Castro, o cumprimento meticuloso, en�m, do programa do Foro de São Paulo, que ainda um ano atrás os guias iluminados da nossa opinião pública ridicularizavam como paranóias do sr. Constantine Menges, já são hoje fatos consumados — e suas conseqüências para o destino do país arriscam ser as mais devastadoras. Diante disso, que faz a mídia? Desvia as atenções do público para as semelhanças entre os governos Lula e — as quais existem, sem dúvida, mas não têm no quadro presente senão uma função puramente diversionista — e amortece o impacto de notícias quecentral do planeta, sediada em organismos internacionais como a e a União Européia, que o próprio Gorbachov quali�cou de “novo Comintern”, já não controla somente a atividade econômica e trabalhista das nações, nem somente a estratégia militar e geopolítica — fazendo da “soberania” uma curiosidade museológica —, mas cada detalhe da educação, da prática médica, da vida cultural e até das condutas pessoais, submetidas cada vez mais a regulamentações sufocantes que a sociedade civil, estupidi�cada pela tagarelice de ’s histéricas, celebra como conquistas da liberdade e dos direitos humanos. Nesse quadro, a luta contra a religião só se empreende pelo antigo método da repressão direta nas regiões mais distantes da atenção da mídia: Sudão, Vietnã, Coréia do Norte, boa parte da China. No mundo ocidental, são usadas para isso a militância “politicamente correta” e a própria mídia, que, com notável sucesso, vêm expelindo a religião da vida pública, do sistema educacional e da cultura superior, sob o pretexto risível dos “direitos das minorias”, como se, eliminada com a fé predominante a idéia mesma de religião, fosse sobrar para os cultos minoritários um espaço maior na sociedade e não um lugarzinho apertado no sepulcro geral das devoções extintas. Resistência séria ao neo-socialismo mundial só há em dois países: e Israel. Daí que uma campanha mundial de desinformação busque apresentá-los com imagem invertida, como se fossem os centros de comando e não os principais alvos do ataque global às soberanias. A quantidade de recursos mobilizada para esse �m é tão gigantesca, tão vasta e complexa a constelação de artifícios usada para ludibriar a opinião pública, que atinar com o curso efetivo dos acontecimentos está acima da capacidade do cidadão médio e mesmo do “intelectual” médio. Di�cilmente a presente geração chegará a perceber a realidade da situação histórica que viveu. O mundo de Gorbachov é o mundo da inconsciência plani�cada. O Globo, 19 de junho de 2004 I Em declaração à revista Veja, o biólogo evolucionista Richard Dawkins a�rmou que o mundo teria mais paz se todas as religiões fossem abolidas. Responsabilizando-as pela ocorrência de morticínios sem �m, ele disse que o Islam está um pouco mais violento hoje, mas que o judaísmo e o cristianismo são, em essência, igualmente destrutivos. Não sei julgar o trabalho cientí�co do sr. Dawkins, se bem que sua máxima realização nesse campo pareça ter sido inventar �guras computadorizadas e tomá-las como criaturas vivas, sob a enternecedora alegação de que são “quase biológicas” (sic). A autoridade cientí�ca que essa bobagem lhe deu pode não ser muito impressionante para os estudiosos — e Richard Milton a reduz a praticamente nada em Shattering the Myths of Darwinism (1997). Mas ela basta para que a mídia con�ra a seu autor o estatuto de guru em áreas do conhecimento nas quais ele não produziu nem mesmo alguma bobagem pitoresca. E a luta contra a religião é uma causa tão vital para o establishment politicamente bonitinho, que este não pode recusar o auxílio de nenhum prestígio acadêmico por mais postiço e deslocado que seja. Mas um darwinista clamando contra a violência das religiões é a imagem mais completa e perfeita da impostura intelectual. O evolucionismo foi o pai do comunismo e do nazismo. Todas as guerras de religião desde o começo do mundo, somadas, não mataram senão uma fração minúscula do número de vítimas que esses regimes �zeram em poucas décadas. Mesmo levando em conta a diferença populacional entre as épocas, a desproporção é assustadora. E não há entre as duas ideologias e o darwinismo apenas uma a�nidade de conteúdo, revelada ex post facto por uma leitura sutil. Há uma continuidade consciente e declarada. Karl Marx citou repetidamente Darwin como uma das suas fontes principais, e a quota de evolucionismo nas teorias nazistas de Alfred Rosenberg é bem conhecida. Com a doutrina da “seleção dos mais aptos”, o darwinismo deu aos regimes totalitários um poderoso argumento em favor da eliminação dos inconvenientes, restando apenas decidir se o critério de seleção seria racial ou econômico. Mas mesmo esta diferença nunca foi importante. Karl Marx, que costumava referir-se a seu genro Paul Lafargue como “negro pernóstico”, festejava a “liquidação de uns quantos povos inferiores” (sic) como condição essencial para o advento do socialismo, ao passo que os nazistas nunca se limitaram à propaganda racial, mas, como bons socialistas que eram, fomentavam igualmente a revolta popular contra a “exploração burguesa”. A contribuição darwinista aos genocídios do século não se deu somente no campo das teorias. Foi mais direta. A leitura de A origem das espécies despertou a vocação revolucionária de Hitler e Stálin. Ambos deixaram depoimentos comovidos sobre o impacto da teoria de Darwin nas suas almas juvenis, que ela imbuiu da missão de tornar- se instrumentos conscientes da evolução das espécies. O ideal anti-religioso do sr. Dawkins já foi aliás posto em prática tanto pelo nazismo quanto pelo comunismo, em ambos os casos superlotando as valas comuns com cadáveres de padres, rabinos, pastores e uma legião de devotos. Leiam Marx and Satan de Richard Wurmbrand e Le Siècle des Camps de Joël Kotek e Pierre Rigoulot, e verão o tipo de mundo melhor que a ideologia darwiniana nos promete. Mesmo nas democracias ela não deixou de dar sua ajudinha à marginalização dos importunos. Quando em 1925 um único professor americano foi ameaçado de perder seu emprego por ensinar o evolucionismo, o episódio despertou uma tempestade mundial de protestos que não se aplacou até hoje. Mas os cientistas e professores antievolucionistas demitidos pela inquisição darwiniana nos e na Europa nas últimas décadas já se contam aos milhares, e dizer uma só palavrinha em favor deles, como acabo de fazer, é considerado na mídia uma tremenda falta de educação. Com esse curriculum vitae, como pode o darwinismo ainda posar de defensor da moral, da liberdade, dos direitos humanos? A cara de pau desse sr. Dawkins chega a ser admirável. O Globo, 26 de junho de 2004 P Após ter fechado suas seções de Curitiba, Belo Horizonte e São Paulo, o Instituto Liberal encerra suas atividades também em Brasília — tal como nos outros casos, por falta de dinheiro. Como ele era a única entidade que, em escala nacional, se empenhava na defesa da democracia capitalista, sua liquidação é a prova mais eloqüente da rendição ideológica do empresariado, prelúdio à destruição completa do seu poder de classe. Esse poder, a rigor, já não existe. O que impede muitos empresários de enxergar — ou admitir — uma coisa tão óbvia é que por enquanto estão ganhando dinheiro e se imaginam protegidos pelo súbito “neoliberalismo” de certas políticas o�ciais. Mas medidas econômicas de apoio à livre iniciativa, se desacompanhadas de uma política liberalizante nas áreas �scal, judiciária, administrativa, educacional e cultural, já constituem um monstrengo esquisito o bastante para que nenhum observador de bom senso o confunda com capitalismo liberal genuíno. Se, mais ainda, elas vêm associadas ao estrangulamento �scal crescente, à progressiva criminalização do capitalismo na esfera judicial, à rápida fusão de Estado e Partido, à completa ocupação de espaços culturais pela intelectualidade socialista, à gradual e irreversível estatização do ensino e ao uso maciço das escolas como veículos de doutrinação revolucionária anticapitalista, então obviamente não constituem liberalismo nenhum. São a aplicação exata da estratégia de transição revolucionária descrita nas obras de Lênin, de Gramsci e dos socialistas fabianos. Esgotar os últimos recursos do capitalismo, obrigando-o a prosperar para alimentar a máquina do anticapitalismo — essa é a de�nição mesma de uma revolução comunista, conduzida segundo os cânones marxistas mais rigorosos e estritos. Se os empresários brasileiros não enxergam isso, não é só porque não leram aquelas obras (eles só lêem livros de administraçãoe auto- ajuda): é precisamente porque são uma classe em extinção. Corroído seu envoltório ideológico por três décadas de “agressão molecular” gramsciana, já se alienaram completamente dos valores morais, culturais, religiosos e políticos que davam sentido e legitimidade ao seu poder de classe. Deixaram que sua visão do capitalismo se reduzisse, de esquecimento em esquecimento, à pura mecânica do sistema, à lógica seca e dura do lucro imediatista. Como esta é desprovida de uma justi�cativa própria, não lhes resta alternativa senão assumir o cinismo do “tudo é business” ou macaquear suicidariamente o discurso socialista, �ngindo não perceber que é dirigido contra eles próprios. Assim fazendo ao longo dos últimos anos, deram ao adversário o monopólio da moralidade, do direito, da cultura e, sobretudo, da ação histórica. Deram força de realidade à profecia auto-realizável do socialismo, consentindo em encarnar ante a platéia o papel estereotípico de uma classe de sanguessugas, de delinqüentes virtuais, de hipócritas aproveitadores e desprezíveis. Tornaram-se fáceis de odiar, fáceis de inculpar, fáceis de punir, fáceis de destruir. O que quer que se diga contra eles na mídia tem hoje credibilidade imediata. O que quer que se alegue contra eles nos tribunais parece justo. São mais odiados que narcotra�cantes, assassinos e estupradores. Têm cada vez mais dinheiro e cada vez menos meios de defesa. Sua riqueza já não é uma fonte de poder: é um calcanhar-de-Aquiles. Estão marcados para morrer. Se aos olhos do leitor gaúcho o panorama aí descrito parece exagerado, é porque neste Estado as coisas ainda não chegaram a esse ponto. Aqui e só aqui restam alguns empresários conscientes do capitalismo como valor ético e cultural que não pode transigir com a mentira socialista. O futuro do Brasil depende de que a voz desses empresários seja ouvida nos outros Estados e se sobreponha à tagarelice histérica do beautiful people socialista. Zero Hora, 27 de junho de 2004 T Duas dúzias de iraquianos sem roupas, embolados no chão em pose grotesca, um deles se borrando de medo de um cão amarrado, todos por �m devolvidos às suas famílias sem um único dano corporal — eis aí cenas tão revoltantes quanto mãos e braços cortados, soldados e civis decapitados diante das câmeras, terroristas exibindo festivamente pedaços de carne de vítimas israelenses, dezenas de milhares de cadáveres de presos políticos exumados de cemitérios clandestinos, hordas de crianças emergindo, pálidas e trêmulas, das sombrias prisões de Saddam Hussein. Tal é o critério de julgamento moral que o lobby anti-Bush — o mais rico e poderoso da história humana — vem impondo à opinião pública mundial. Os vídeos recentes de Abu Ghraib são repetidos ad nauseam, sublinhados por clamores de indignação destinados a dar ares de atrocidade nazista a grosserias �sicamente inofensivas, exempli�cando à risca a de�nição de formulada por Guy Debord: “A imagem — mais o comentário que a desmente”. Se, em vez disso, você quer saber o que é tortura de verdade, tal como se praticava em massa na mesma prisão no tempo de Saddam Hussein e ainda se pratica na Coréia do Norte, tem de ciscar na internet. As imagens estão lá — e não precisam de nenhum comentário. Um iraquiano com calcinha na cabeça, obrigado a sentar-se em posição incômoda durante um interrogatório, precisa da ajuda de muitos comentaristas para �car parecendo uma vítima do dr. Mengele. Mas homens ganindo de dor, retorcendo-se em convulsões após ter dedos ou braços amputados a machadadas, não necessitam de nenhum reforço oratório. Suas imagens falam por si. Por isso mesmo a mídia as sonega ao público. Porque são de uma monstruosidade tal que, depois de vê-las, qualquer um entende que o simples uso de uma mesma palavra — “tortura” — para designar essas duas séries de fenômenos tão heterogêneos já é um crime: o crime de atenuar propositadamente diferenças imensuráveis, para dar aos terroristas o benefício da equivalência moral com as tropas americanas. Se isso não é colaborar com o terrorismo, então não há nada de pró- nazista em dizer que Churchill foi tão ruim quanto Hitler. Se não é crime, também não o é equiparar os carrascos de Auschwitz aos soldados do exército americano de libertação. Pois estes também não trataram os alemães com os primores de delicadeza que hoje seriam necessários para escapar da acusação de “tortura”. Ao contrário: gritaram com eles, jogaram-nos pelados em celas frias, aterrorizaram- nos com ameaças brutais, humilharam-nos com insultos. Só não os mandavam para câmaras de gás, não os espancavam até à morte, não os usavam como ratos de laboratório. Nem lhes amputavam dedos, mãos e braços. Nem os decapitavam, �lmando tudo para ensinar às criancinhas como se faz. Mas essas diferenças, segundo a moral dos bem-pensantes, são desprezíveis. “Tortura é tortura”, ponti�cam eles no tom de quem enuncia um princípio lógico elementar. Sim, uma vez imposto o uso do mesmo termo para designar coisas radicalmente diferentes, a identidade do nome vale como prova da identidade da coisa. Depois disso, torna-se fácil estender a acusação de tortura a virtualmente qualquer representante do governo americano, por exemplo um deputado como aqueles dois que imaginaram ingenuamente poder transitar em segurança pelo território brasileiro. Os trombadões comunistas da que ameaçaram decapitá-los não �zeram senão tirar uma conseqüência lógica daquilo que lêem nos jornais e ouvem de seus professores todos os dias: se “tortura é tortura”, nada mais razoável do que eliminar o crime hediondo suprimindo os agentes do governo que o pratica. Por isso, até os comentaristas que condenam a malta de agitadores enragés não ousam chamá-la pelo que é: comunista. Chamam- -na de fascista, porque “fascista”, na nova semântica nacional, é sinônimo de americano — e assim é possível falar contra a violência sem manchar a ideologia que a inspira, com a vantagem adicional de deixar no ar a impressão de que o único pecado dos atacantes foi o de serem quase, quase tão maus quanto suas vítimas. O Globo, 3 de julho de 2004 M Menti, sim, menti para os leitores. Escrevi que não podia julgar a obra cientí�ca do sr. Richard Dawkins, e no entanto é claro que podia. Podia e posso. Menti apenas para não estragar uma surpresa: estou reservando para esse indivíduo um capítulo inteiro do meu estudo sobre a “paralaxe cognitiva”, fenômeno que nele alcança proporções inauditas. A paralaxe, se vocês recordam,11 é o deslocamento, na obra de um pensador, entre o eixo da especulação teórica e o da experiência concreta que ele tem da realidade. É o resultado de um esforço de abstração mal dirigido, que acaba por tomar como separados efetivamente os elementos que tinham sido apenas afastados em imaginação, por facilidade de método. Nicolau Maquiavel, por exemplo, cria uma fórmula de governo sem notar que, se aplicada, ela teria como primeira conseqüência previsível o assassinato de Nicolau Maquiavel como colaborador principal do “Príncipe” e, portanto, segundo ele mesmo, virtual suspeito número um de traição. Descartes diz que vai narrar um experimento psicológico real no instante mesmo em que coloca como sujeito desse experimento um “eu” abstrato, isolado das condições de tempo e espaço que lhe dariam alguma consistência narrativa. Meu livrinho está cheio desses homens de duas cabeças, mas nenhum deles se compara ao sr. Dawkins, cuja dualidade mental chega a ser quase física. Em todos os demais casos, o hiato que aparece é entre um foco intelectual determinado e o campo mais geral da experiência humana do indivíduo pensante. No sr. Dawkins, em vez disso, o abismo abre-se entre a teoria que ele está tentando provar e a circunstância concreta, imediata, da experiência mesma concebida para prová-la. É o seguinte. Em favor da sua tese da inexistência de causas �nais na origem dos seres vivos, ele argumenta que unidades de informação randomicamente combinadas podem gerar seqüências signi�cativas (mais oumenos como os átomos de Epicuro, movendo-se a esmo no espaço, formavam uma vaca por pura sorte). Para demonstrar essa possibilidade, ele concebeu um experimento informático que não sei se é tocante na sua candura ou revoltante na dose de candura que espera do público. Ele toma uma frase de Hamlet, “Methinks it is like a weasel” (“Acho que é como uma doninha”), e, num programa de computador criado para esse �m, vai produzindo milhares de combinações de letras até que, de repente, aparece de novo na tela: “Methinks it is like a weasel”. Nesse instante o sr. Dawkins exclama algo como: “A-ha! Quod erat demonstrandum!” e se curva com exemplar modéstia ante os aplausos da platéia. Werner Gitt, diretor do Instituto Federal Alemão de Ciências da Informação, fez a respeito uma observação singela e acachapante: as letras e espaços da frase não são unidades de informação anárquicas. São, precisamente, os sinais necessários para escrever “Methinks it is like a weasel” — seqüência que não se formou por si mesma mas foi escolhida pelo sr. Dawkins. A informação, portanto, não foi “gerada” pelas transformações, mas colocada lá antecipadamente para gerá-las. Em segundo lugar, noto eu que as letras na combinação não signi�cam nada “em si mesmas”, mas só dentro do sistema, previamente dado, da língua inglesa — uma chave que também não foi gerada pelas transformações e sim admitida previamente como código da sua interpretação. Pensadores que, na hora de examinar um assunto especí�co, faziam abstração de outras coisas que sabiam de si mesmos, e que assim acabavam por chegar inadvertidamente a conclusões que desmentiam a sua própria existência, já eram tipos esquisitos o bastante para justi�car a imagem popular dos �lósofos como sujeitos que vivem no mundo da Lua. Mas um cientista que, no ato mesmo de demonstrar sua tese, inventa um experimento que a torna impossível, este é sem dúvida o Prêmio Nobel da paralaxe cognitiva, é a antiinformação encarnada, é a entropia em forma humana. Deve ser por isso que o sr. Dawkins tem tantos admiradores. Eles se multiplicam entropicamente. O Globo, 10 de julho de 2004 D Outro dia assisti a uma conversa entre o sr. Alberto Dines e um grupo de jovens jornalistas paranaenses. Como falassem da autocensura, que o diretor do “Observatório da Imprensa” dizia considerar a mais tenebrosa doença do jornalismo, notei que nem ele nem seus interlocutores mencionavam aquele que é, numa escala estritamente objetiva, o mais duradouro e mais vasto fenômeno de ocultação de informações essenciais já registrado na história da mídia ocidental. Re�ro-me, é claro, ao Foro de São Paulo. Uma entidade existente há quatorze anos, fundada por dois pop stars do esquerdismo mundial — Lula e Fidel Castro — e integrada por mais de oitenta partidos e movimentos, já é, só por essas características, a mais importante organização política do continente. Quando, porém, a leitura de suas resoluções nos revela que têm poder decisório, que coordenam numa estratégia uni�cada as ações de todas as entidades �liadas e que entre estas últimas se contam partidos legais como o ou o , quadrilhas de narcotra�cantes como as ou de seqüestradores como o chileno e até entidades juridicamente inde�níveis como o , então se torna claro que estamos diante de um poder descomunal, cuja atuação de conjunto, permanecendo totalmente desconhecida do público e de seus eventuais adversários, só pode se defrontar com resistências avulsas, esfareladas, cegas e, é claro, miseravelmente impotentes para fazer face a um desa�o dessas dimensões. O tamanho do monstro e o privilégio da invisibilidade que a mídia lhe garante fazem de toda a política continental e especialmente nacional um jogo de cartas marcadas, com resultado previsto e inescapável. Em outros países da , a informação circula e vai-se formando, aos poucos, alguma consciência da situação. No Brasil, fora desta coluna e de alguns sites da internet, só o jornalista Boris Casoy tocou no assunto, fazendo ao então candidato presidencial Luís Inácio Lula da Silva uma pergunta sobre as ligações –, a qual foi respondida com uma solicitação gentil de que calasse a boca. A mídia nacional inteira atendeu e continua atendendo. Quando até mesmo pro�ssionais soi disant preocupados com a liberdade de imprensa conservam ritualmente um silêncio obsequioso, preferindo brincar de Poliana com as virtudes róseas da democracia brasileira ou desviar as atenções dos leitores para abusos miúdos e laterais, então é que já se passou da mera “autocensura”, inibição forçada pelo medo, à cumplicidade ativa, ao colaboracionismo voluntário, à desinformação consciente. Se, entre os jornalistas, nenhum se queixa de não poder falar do Foro de São Paulo, é porque, de fato, nenhum deseja fazê-lo. A completa ocultação do estado de coisas ao conhecimento da opinião pública não é, para eles, uma situação constrangedora, mas o exercício normal do que entendem por liberdade de imprensa: a liberdade de usar a imprensa, sem obstáculos nem contestações, como instrumento de desinformação a serviço da estratégia esquerdista de dominação continental. Dominação que, é claro, sendo exercida em parceria por eles próprios, não lhes pesa em nada e não lhes parece nem um pouco antidemocrática. Ao longo de quatro décadas, foram preparados para isso, dessensibilizados moralmente, padronizados intelectualmente e adestrados na técnica do auto-engano em faculdades de jornalismo que não admitiam outra ciência senão a dos Bourdieus, dos Foucaults, dos Gramscis e da Escola de Frankfurt. Renegar o pacto de cumplicidade geral, devolver à imprensa a sua missão de informar o público, está acima de suas possibilidades. Nenhum ser humano deseja a verdade, quando ela se volta contra toda a cultura que o criou e que é, para ele, a matriz mesma da sua hominidade. O instinto de autodefesa tribal exige a abdicação completa da consciência moral pessoal, oferecendo em troca um reconfortante sentimento de “participação”. Zero Hora, 11 de julho de 2004 D, . M Quando o analista estratégico americano Constantine C. Menges, em 2002, escreveu no Weekly Standard que a eleição de Lula resultaria na criação de um eixo Brasil-Venezuela--Cuba, os jornalistas brasileiros sabiam que era verdade. Se o desmentiram da maneira mais insultuosa, foi porque temiam que a notícia causasse alarma em Washington e abortasse a realização da profecia, na qual depositavam suas mais belas esperanças. Eleger Lula abria para eles uma perspectiva tão atraente, que muitos, na ansiedade da espera, perderam a cabeça, alardeando no candidato virtudes que raiavam o sublime. Um deles chegou a escrever que Lula era o salvador da pátria anunciado na profecia de São João Bosco. Uma classe jornalística intoxicada ideologicamente pode constituir, para a difusão da verdade, um obstáculo ainda mais temível que a censura o�cial. Nada, na história universal da empulhação, se compara ao trabalho de conjunto feito pela mídia brasileira para ocultar do eleitorado as conexões que ligavam Lula não só a Hugo Chávez e a Fidel Castro, mas a todos os movimentos revolucionários do continente — incluindo organizações criminosas como as e o chileno —, obedientes às diretrizes do Foro de São Paulo, fundado e dirigido por ele. Às vésperas da eleição, o esforço geral de embelezar a imagem do messias recebeu um poderoso reforço da embaixadora Donna Hrinak, que declarou ser o candidato “a encarnação do sonho americano”. E fez isso sem que um único patriota de plantão se sentisse ferido nos seus brios por essa obscena ingerência estrangeira nas nossas eleições. Claro: algumas ingerências, como alguns bichos, são mais iguais que as outras. Estava tudo indo bem, quando Menges, o estraga-prazeres, disse a obviedade proibida. A reação dos nossos jornalistas foi instantânea. Embora jamais tivessem ouvido falar do articulista, carimbaram-no como agente golpista da , incumbido de bloquear as eleições brasileiras. Sem perceber quese desmentiam, atacaram também na direção oposta. Explorando a casualidade de que o artigo desse colaborador do New York Times, do Washington Post e de Commentary fora reproduzido também no Washington Times, aproveitaram para fabricar uma ligação entre o intelectual highbrow e os negócios mal explicados do reverendo Moon, proprietário desse jornal, insinuando que tudo não passara de uma tramóia do guru coreano para escapar do inquérito que corria contra ele no Brasil. Esquecida fazia anos numa gaveta da Polícia Federal, a denúncia voltou aos jornais, como se fosse de uma atualidade impressionante, até abafar por completo o assunto “Foro de São Paulo”. Qual a con�abilidade pro�ssional de jornalistas capazes de uma tapeação dessas proporções? Eu, da minha parte, cumpri o que seria a obrigação de todos: escrevi ao dr. Menges pedindo mais informações. Descobri que o homem sabia mil vezes mais do que havia escrito. Ele falava com base, era um estudioso sério achincalhado por uma troupe de palhaços e charlatães. Hoje, o eixo que ele anunciou e todos negaram é um fato consumado. O suado dinheiro do trabalhador brasileiro, extorquido em impostos, jorra em Havana e em Caracas para amparar uma ditadura em declínio e dar força a uma ditadura em ascensão. E até agora os eleitores não sabem que foram ludibriados precisamente para esse �m. Mas não é só por isso que é tarde para voltar atrás: é tarde, também, porque Constantine C. Menges morreu na manhã do dia 11, de câncer na bexiga. Filho de refugiados do nazismo, ele dedicou sua vida e sua formidável inteligência à defesa da liberdade, seja na luta pelos direitos civis dos negros ou contra a opressão comunista. Professor de várias universidades, escreveu livros importantes. E todo o noticiário de América Latina publicado neste país na última década não vale um único dos boletins de análises que ele distribuía mensalmente a um círculo de amigos e admiradores, entre os quais tive a honra de me incluir, embora como último da �la. Adeus, dr. Menges. E, ainda que tarde, aceite minhas desculpas pela mesquinharia de meus compatriotas. Eles não sabem o que fazem. O Globo, 17 de julho de 2004 A N Quando pessoas supostamente ofendidas pelas palavras de um articulista se reúnem para mover um processo contra ele, pode ser que tenham intenção legítima. Quando, porém, se reúnem para planejar a instauração simultânea de milhares de processos separados, então o intuito, claramente, é o de arruinar a vida do réu, paralisar pelo terror quem pense como ele e, sobretudo, pressionar a opinião pública. No caso do bombardeio de ações judiciais arquitetado pelo movimento gay contra Dom Eugênio de Araújo Sales, a Defensoria Homossexual de São Paulo não esconde seu propósito de utilizar a justiça como instrumento de coação. “Na Argentina esse procedimento funcionou muito”, a�rma um dos promotores da iniciativa: “Os grupos escolhiam cerca de cinco inimigos (julgados ‘homofóbicos’) e abriam processos dizendo-se pessoalmente ofendidos. Isso fez o Legislativo enxergar a comunidade como um grupo muito bem articulado para prejudicar a imagem dos políticos e do país”. Não se trata, pois, de uma legítima reparação de danos, e sim de um ato publicitário destinado a chantagear um terceiro. Mas isso não é tudo. O que Dom Eugênio escreve é o que está na Bíblia, é o que a Igreja vem repetindo há dois mil anos e o judaísmo há cinco mil. São idéias que educaram a espécie humana e criaram civilizações inteiras. Ele não inventou nada disso e não aderiu a isso por diversão nem cobiça. Aderiu porque acreditava que as lições da Bíblia eram para o bem da humanidade, que justi�cavam uma vida de esforços ascéticos e o supremo sacrifício do celibato. Já seus detratores falam em nome do quê? Do homossexualismo. Que é homossexualismo? É uma “opção”, como eles mesmos dizem, um modo entre outros de obter grati�cação sexual. Afeição entre indivíduos do mesmo sexo não con�gura homossexualismo. Este só entra em cena quando ao menos um dos envolvidos vê o corpo do outro como objeto de desejo e sonha em entregar-se com ele a práticas homoeróticas. Mesmo supondo-se que essas práticas sejam perfeitamente decentes, ninguém pode alegar que se dedica a elas por abnegação, por idealismo ou por qualquer outra razão meritória. Ninguém faz essas coisas para dar de comer aos pobres, amparar os a�itos, socorrer os doentes ou dar aos moribundos a esperança da ressurreição — ninguém as faz por aquelas razões que levam um ser humano a tornar-se padre, rabino, pastor. Faz porque acha gostoso, e ponto �nal. E toda escolha de gosto implica, como corolário incontornável, a liberdade de não gostar. A liberdade de achar ruim, feio e repugnante aquilo que os homossexuais acham bom e lindo e delicioso. Por de�nição, o que é objeto de desejo para um pode ser motivo de repulsa para outro. Querem ver? “Um nojo. Uma aberração. Me dá vômito. Por que não vão fazer isso em outro lugar? Não vim aqui para ver uma coisa dessas”. Se você dissesse isso de dois barbudos vistos aos beijos e afagos num shopping center, diante de velhinhas e crianças, não escaparia de ser denunciado como criminoso. No caso citado, não há perigo de que isso aconteça: colhi essas palavras num site de homossexuais, proferidas contra as travestis e transexuais que pretendiam — audácia! — ser admitidas no recinto sacrossanto das saunas gays, ofendendo a delicada sensibilidade visual dos homossexuais ortodoxos. Comentando a disputa, o sr. Luiz Mott, do Grupo Gay da Bahia, a�rma que ambos os lados são “igualmente respeitáveis”. A expressão de repulsa, como se vê, é uma atitude decente quando brota da preferência sexual. Se vem de convicções morais ou do amor a Deus, é um crime. Por absurda que seja essa situação, ela não é uma novidade na História. No tempo de Nero e Calígula, as práticas homossexuais dos imperadores estavam sob a proteção da lei, enquanto o cristianismo e o judaísmo mal eram tolerados. Esse padrão de julgamento ainda não é instituição no Brasil, mas o critério moral que o inspira já é dominante na nossa cultura. Quando uma nova moral se dissemina entre as classes letradas, tornar-se lei é apenas questão de tempo. Ainda viveremos sob a justiça de Nero. O Globo, 24 de julho de 2004 P A comissão parlamentar que investiga o 11 de setembro chegou à conclusão de que “guerra contra o terrorismo” é um conceito vago demais para poder orientar uma política exterior conseqüente. É a coisa mais óbvia do mundo: “terrorismo” não é o nome de um inimigo, mas de um instrumento. E decerto não é o único instrumento. Seus usuários lançam mão também de espionagem, in�ltração, diplomacia, guerra cultural, propaganda. Sobretudo propaganda. Nenhum ataque terrorista teria a menor e�cácia se não estivesse articulado com uma campanha midiática destinada a tirar dele um proveito político preciso. O exemplo mais �agrante é o próprio 11 de setembro: poucas semanas após os atentados, a opinião pública, refeita do choque inicial, já era induzida pela mídia a jogar a culpa na vítima, para bloquear toda reação desta última e submetê-la a organismos internacionais profundamente comprometidos, se não com o “terrorismo” enquanto tal, ao menos com a causa antiamericana e antiisraelense que ele defende. E esse esforço seria vão se não contasse com forte apoio interno nos e em Israel. A propaganda antiamericana dentro dos é tão intensa quanto no exterior, e no próprio parlamento israelense (para não falar da comunidade judaica internacional) não faltam vozes que prefeririam antes abdicar do sonho de eodor Herzl do que permitir que Israel levantasse sua cabeça acima da prepotência dos organismos internacionais. Entre as armas coadjuvantes do terrorismo, a traição é a mais e�caz. A guerra, a�nal, é contra quem? Para identi�car o inimigo, seria preciso apreender a unidade estratégica por trás de toda essa desnorteante variedade de ações e táticas. O método para isso é duplo: de um lado, seguir as pistas, já por si abstrusas e muito bemcamu�adas, que ligam às organizações terroristas os seus colaboradores diretos e indiretos na política, na mídia, na cultura, na diplomacia, nas �nanças. De outro lado, é preciso rearticular os conceitos básicos da análise estratégica, hoje demasiado presos à tradição inaugurada por Hans Morgenthau, que via nos “Estados” os agentes essenciais da política internacional. Nunca, como hoje, o mapa das forças políticas coincidiu tão pouco com as fronteiras dos Estados. Sem recorrer a conceitos totalmente alheios a essa tradição — como por exemplo os de “movimento revolucionário mundial”, “centrais globalistas”, “redes”, etc. —, será certamente impossível captar a unidade substantiva do “inimigo” que hoje busca não só a destruição dos e de Israel, mas a instauração de um novo padrão civilizatório fundado no secularismo extremado, na abolição de todos os valores da civilização ocidental, numa economia fortemente centralizada (em escala mundial) e no controle burocrático da cultura e da vida privada. Mesmo supondo-se que o governo americano tenha o conhecimento exato de toda a articulação, poderá ele dizer em público o nome do inimigo e declarar o�cialmente guerra contra ele? É claro que não. Pois o inimigo está profundamente in�ltrado nesse mesmo governo, controla a facção dominante do Partido Democrático e uma parte do Republicano, além de estar fortemente encastelado nas elites �nanceiras (v. George Soros e similares), na grande mídia e nos organismos internacionais. Como inculpar, de uma vez, toda essa gente? Como fazer guerra a um inimigo onipresente, sem rosto por trás da multidão de caras que representam, cada uma, um aspecto diverso e aparentemente inconexo do todo? Na própria comissão parlamentar, a presença da assessora de Clinton, Jamie Gorelick, suspeita como o próprio ex-presidente de ligações remotas com a espionagem chinesa e provável culpada maior do fracasso dos serviços de inteligência em prever os atentados, é indício de que talvez o inimigo já esteja tão próximo do presidente Bush que pode se dar o luxo de passar-lhe pitos, como um ladrão que ralhasse com a vítima por sua inabilidade em defender-se dele. Zero Hora, 25 de julho de 2004 N Em entrevista à IstoÉ, o delegado Mauro Marcelo de Lima e Silva, novo chefe da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), a�rma que sob o seu comando os agentes não serão jamais in�ltrados em “movimentos sociais”, mas poderão sê-lo “em empresas”. Entenderam? Uma entidade como o , mesmo envolvida em delitos notórios e ligada às através do Foro de São Paulo, estará a priori imunizada contra os arapongas o�ciais, que em vez disso voltarão seus olhares indiscretos para entidades dedicadas à atividade capitalista, esta sim verdadeiramente suspeita. Mas só um louco como eu pensaria em ver nisso alguma coisa de comunista, não é mesmo? *** Enquanto o Estado se empenha em desarmar os cidadãos honestos, um depósito inteiro de armas ilegais das é localizado no Amazonas, e o partido o�cial nem em sonhos pensa em renegar as boas relações que, no Foro de São Paulo, mantém com a narcoguerrilha colombiana. *** Como doravante só policiais, militares e demais funcionários autorizados podem portar armas, a pergunta que se segue automaticamente é: devem usá-las somente em serviço ou podem também recorrer a elas para sua defesa pessoal? Na primeira alternativa, o policial armado que seja ele próprio vítima de assalto fora do expediente está proibido de reagir: deve render-se imediatamente e entregar ao assaltante uma arma de propriedade do Estado. Na segunda, a defesa própria torna-se um privilégio de classe, ferindo o princípio da igualdade de direitos e as regras mais elementares da moralidade. Nas duas hipóteses o desarmamento civil é absurdo, insultuoso e inconstitucional. Não há terceira hipótese. Nem por isso ele deixará de ser aplicado à risca, como se fosse a coisa mais normal do mundo. *** Recebi notícia de que o sr. Frei Betto anda em busca do meu endereço residencial — não sei para quê. Mandei responder que me enviasse um e-mail e seria atendido imediatamente. Como ele não escreveu, tentei localizá-lo através da internet, mas a Assessoria Especial que ele ocupa não tem sequer um site, e no da própria Presidência da República é impossível entrar: a Microso responde que a página não tem registro de autorização. Se clicamos no Google o nome “Frei Betto”, aparecem centenas de sites, nenhum dos quais é dele, mas todos de terceiros que não sabemos se são seus representantes ou simples admiradores. Como é que vou dar meu endereço a uma criatura tão evanescente? Para cúmulo, um dos links existentes, frei-betto.vipx61.biz, vai dar numa página de... pornogra�a! É a situação mais dadaísta que já vi: um alto funcionário invisível, com seu nome impunemente usado por espertalhões para �ns imorais. É o símbolo em miniatura da anarquia imperante. *** Numa de suas apostilas, o célebre pedagogo judeu-romeno Reuven Feuerstein assinala as de�ciências básicas de inteligência humana responsáveis pelo fracasso nos estudos. Algumas delas são a falta de precisão ao captar os dados, a inabilidade de distinguir entre o essencial e o acessório, a apreensão episódica ou fortuita da realidade, a incompetência para conceber hipóteses, a incapacidade de lidar simultaneamente com várias fontes de informação, e, como resultado, os julgamentos impulsivos, deslocados da situação. Corrigindo esses defeitos, o dr. Feuerstein vem obtendo resultados formidáveis até mesmo com crianças antes consideradas de�cientes mentais incuráveis. O que ele não sabe é que, no Brasil letrado, nenhuma dessas falhas de apreensão e processamento da realidade é considerada uma de�ciência. Todas são modos normais e até obrigatórios de atividade intelectual entre as classes falantes. Pode-se observá-las diariamente em artigos de jornal, entrevistas de celebridades, discursos no parlamento, leis e decretos, sentenças judiciais e teses universitárias, sem falar de algumas cartas de leitores. Incapaz de, no breve espaço desta coluna, concorrer com o dr. Feuerstein e infundir capacidades nos meus interlocutores, colocarei no meu site, www.olavodecarvalho.org, segunda-feira que vem, algumas novas observações sobre o caso dos gays contra D. Eugênio Sales. O Globo, 31 de julho de 2004 B Numa de suas apostilas, o pedagogo judeu-romeno Reuven Feuerstein, que vem obtendo resultados formidáveis na recuperação de crianças com problemas de aprendizado, assinala as de�ciências básicas de inteligência humana responsáveis pelo fracasso nos estudos. A maioria delas — por exemplo a falta de precisão ao captar os dados, a inabilidade de distinguir entre o essencial e o acessório, a apreensão episódica ou fortuita da realidade, e, como resultado, os julgamentos impulsivos, carregados de emoções deslocadas da situação — pode ser observada correntemente, não em crianças problemáticas, mas em membros normais e ilustres das classes falantes deste país: líderes, intelectuais, jornalistas, formadores de opinião. Algumas respostas indignadas ao meu artigo “A justiça de Nero” ilustram isso de maneira alarmante, mas nenhuma como a do sr. Nelson Feitosa, publicada, por incrível que pareça, neste mesmo jornal. O assunto mesmo do meu artigo parece ter escapado ao seu crítico. Da denúncia de um procedimento judicial prepotente e fascista usado contra D. Eugênio de Araújo Sales, ele se desvia para o tema da sua preferência, isto é, as virtudes excelsas do homossexualismo e a maldade imperdoável dos que o rejeitam. A ênfase emocional que ele põe nisso é tanto mais deslocada porque a ilegitimidade da tática judicial que condenei independe por completo das motivações políticas (quanto mais das sexuais!) que levaram um grupo a adotá-la. O assédio judicial seria mais decente se empreendido por mil religiosos contra um gay? É claro que não. Incapaz de defender essa tática vil e covarde usada pelo seu grupo para destruir um adversário, ele se faz de desentendido e encena mágoascontra críticas que jamais lhe �z — a ele ou a qualquer outro homossexual. Para isso, tem de transformar em insulto a simples de�nição do homossexualismo que se encontra em todos os dicionários. Ante a minha observação de que o amor de homem a homem ou de mulher a mulher não con�gura o homossexualismo, o qual só entra em cena quando aparece o desejo sexual, ele protesta contra a “redução” e brada, encolerizado, que “o fato de amar pessoas do mesmo sexo [é que] de�ne o homossexual, e não a contingência de transar com elas”. O protesto indica apenas incapacidade de lidar com relações entre conjuntos — um caso para o dr. Feuerstein. O conjunto “amor entre pessoas do mesmo sexo” abrange uma in�nidade de ligações não- homossexuais, como por exemplo entre amigo e amigo, pai e �lho, professor e aluno. Já o conjunto “relações homossexuais” abrange tanto as ligações verdadeiramente amorosas — como espero que o sr. Feitosa desfrute com o seu namorado — quanto relações episódicas sem amor nenhum, como as bolinações a esmo numa sauna, a prostituição etc. Os dois conjuntos têm uma área de interseção mas obviamente não são idênticos. Qualquer criança de oito anos está habilitada a deduzir daí que o simples amor a pessoas do mesmo sexo não de�ne o homossexualismo. Qualquer criança, mas não adultos intoxicados de ódio militante camu�ado numa afetação de lindos sentimentos. Meu artigo assinalava, de passagem, a desproporção de valor entre o sacrifício religioso e o desejo sexual (homo ou hétero), e mencionava ainda o fato histórico inegável de que nem sempre os gays foram inocentes perseguidos como gostam de se alardear, e sim às vezes perseguidores cruéis, como o foram no tempo de Nero e Calígula e como parecem querer tornar-se novamente agora. E aludia à duplicidade da moral gay que não admite críticas à sua conduta mas acha “respeitável” (sic) discriminar travestis numa sauna. Nada disso comporta uma crítica, por mínima que seja, ao homossexualismo em si, crítica que nunca �z, quando menos porque acho indecente usar de um debate público para censurar condutas íntimas. Se algo no que eu disse ofendeu o sr. Feitosa, é simplesmente porque eram verdades óbvias, que ele nem tem inteligência para apreender nem honestidade para admitir. O Globo, 31 de julho de 2004 C O economista Armando M. Lago, presidente da Câmara Ibero-- Americana de Comércio e consultor do Stanford Research Institute, que há anos vem fazendo um recenseamento das vítimas da ditadura castrista, acaba de anunciar a conclusão de suas investigações. Os números, que abrangem o período de 1959 até hoje, serão publicados em breve sob o título “Livro Negro da Revolução Cubana”. São os seguintes: Fuzilados: 5.621. Assassinados extrajudicialmente: 1.163. Presos políticos mortos no cárcere por maus-tratos, falta de assistência médica ou causas naturais: 1.081. Guerrilheiros anticastristas mortos em combate: 1.258. Soldados cubanos mortos em missões no exterior: 14.160. Mortos ou desaparecidos em tentativas de fuga do país: 77.824. Civis mortos em ataques químicos em Mavinga, Angola: 5.000. Guerrilheiros da Unita mortos em combate contra tropas cubanas: 9.380. Total: 115.127 (não inclui mortes causadas por atividades subversivas no exterior). A ditadura militar brasileira, segundo fontes esquerdistas, matou trezentas pessoas. Fulgêncio Batista, três mil. Pinochet, três mil. Some tudo, multiplique por vinte e obterá a medida aproximada dos elevados ideais humanitários do regime cubano. À luz desses números, torna-se evidente a boa-fé, a honradez daqueles heróis da liberdade que, indignados com o golpe de 1964, foram buscar em Fidel Castro a ajuda e a inspiração para restaurar a democracia e os direitos humanos no Brasil. Nada mais justo do que alimentar essas pessoas com fartura de dinheiro público até o �m de seus dias. Digo isso principalmente porque algumas delas, pro�ssionalizadas na ocasião como o�ciais do serviço secreto militar cubano, podem ter di�culdades para receber seu soldo por via bancária sem atrair a atenção da Receita Federal. Quanto aos dados reproduzidos acima, não adianta procurá-los na mídia brasileira, que, paralisada por um excesso de escrupulosidade pro�ssional, há anos hesita entre ocultar por completo as atrocidades cubanas ou divulgar de vez em quando algumas das menores para não tocar nas maiores. Encontrei-os no site www.netforcuba.org, um dos mais ricos em informações indesejáveis sobre o regime cubano. Não sei como existe gente capaz de publicar essas indecências. Outro site, malvado o bastante para divulgar até mesmo apelos lancinantes de presos políticos cubanos torturados, como se a delicada sensibilidade do público brasileiro não fosse avessa a essas coisas, é http://notalatina.blogspot.com. Eu, da minha parte, jamais o leio. Só acredito no Michael Moore. *** Há pelo menos quinze anos venho dizendo: “Querem saber o que é entreguismo? Esperem o chegar ao poder”. Mais rápido do que eu imaginava, o governo petista já fala em entregar a Amazônia ao controle de ’s internacionais, tentáculos do imperialismo global da . Quanto tempo ainda o encéfalo pátrio levará para completar o silogismo, percebendo que o belo discurso da esquerda nacional contra o “imperialismo de George W. Bush” nunca foi senão um truque diversionista usado para encobrir a penetração de um poder imperialista mais temível que dez mil Bushs? O �lósofo Raymond Abellio, que nos conhecia bem, dizia que nesta parte do mundo a marcha da inteligência não segue o ritmo da História, mas o tempo geológico. *** Meu artigo “A justiça de Nero” denunciava a artimanha judicial prepotente e fascista usada pelo movimento gay para calar um inimigo e chantagear as autoridades mediante ameaça velada de difamações em massa. Nada podendo responder a isso, articulistas e missivistas a�nados com o movimento preferiram desviar a conversa para as belezas do amor homossexual — das quais ou contra as quais eu não havia dito nem pensado absolutamente nada — e as invectivas de praxe contra os horrores da moral judaico-cristã, nazista como ela só. Desconversar, admito, é um dos direitos humanos fundamentais. Mas �ca a pergunta: a tática do assédio jurídico coletivo mobilizada contra D. Eugênio Sales se tornaria mais digna se usada por mil religiosos contra um gay? O Globo, 7 de agosto de 2004 L P Alguns leitores pedem-me umas dicas sobre como estudar a República de Platão. Creio que a resposta pode ser útil também para todos os demais. O conselho que tenho a dar é simples e direto: não leiam esse livro como se fosse uma “utopia”, a proposta de uma sociedade ideal a ser construída num futuro próximo ou distante, determinado ou indeterminado. Ao contrário do que acontece com as utopias modernas, a “República”, de�nitivamente, não é uma proposta política nem um mito destinado a atiçar as ambições de partidos revolucionários. É uma investigação �losó�ca em sentido estrito, e uma das mais sérias que alguém já empreendeu. Para tirar proveito do seu estudo é preciso situá-la no lugar exato que ocupa no edifício da ciência platônica. Essa ciência compõe-se de uma diferenciação muito �na entre os diversos níveis, planos ou camadas da realidade. Quando você divide um quadrado na diagonal e obtém dois triângulos isósceles, este resultado não pode ser explicado pelo exame dos processos cerebrais mediante os quais você o obteve. As propriedades das �guras geométricas e a �siologia cerebral permanecem irredutivelmente independentes entre si, embora de algum modo misterioso as duas se toquem no instante em que você estuda geometria. Elas residem em “planos de realidade” distintos. No conjunto da existência, Platão discerne um certo número desses planos, e num deles ele situa o ser humano — uma realidade especí�ca que não pode ser explicada totalmente nem pela ordem geral do cosmos (a lei divina ou “Bem Supremo”), nem pelas propriedades que tem em comum com os demais habitantes do planeta Terra, animais, plantas ou minerais. Dessa situação peculiardo homem na estrutura do universo, Platão extrai uma descrição analítica da natureza humana como a de um ser intermediário, que vive da “participação” (metaxy) simultânea e instável em dois planos de realidade, sem poder absorver-se por completo em nenhum deles: mal instalado no ambiente terrestre, ao qual busca adaptar-se por meio de engenhosos artifícios, não consegue também elevar-se à contemplação da ordem suprema, da beatitude divina, senão por instantes fugazes que enfatizam ainda mais a sua dependência do meio físico imediato. Platão resume isso dizendo que o homem é um tipo intermediário entre os animais e os deuses. Uma vez delineada assim a natureza humana, Platão coloca em seguida o problema de quais seriam as condições sociais e políticas mais adequadas ao desenvolvimento do homem segundo as exigências dessa natureza. É a essa investigação que ele consagra A República. Não se trata, pois, de uma proposta política, mas da construção de um conjunto de hipóteses. Como estas hipóteses estão sujeitas à avaliação crítica segundo os princípios anteriormente colocados e segundo a experiência de cada estudante (o próprio Platão fará mais tarde uma parte desse exame crítico, no livro das Leis), está claro que se trata de uma investigação cientí�ca no sentido mais rigoroso do termo. É assim que deve ser lida a República. A beleza da �loso�a clássica de Platão e Aristóteles está na transparência com que ergue os princípios do conhecimento racional e em seguida se oferece para ser julgada por eles. Na entrada da modernidade, que paradoxalmente alardeia ter inaugurado o estudo cientí�co da sociedade humana, essa transparência se perde e é substituída por um emaranhado de premissas implícitas, inconscientes ou mal confessadas, obrigando o estudioso a uma complexa e arriscada especulação das intenções subjetivas do autor antes de ter a certeza de que compreendeu Maquiavel ou Rousseau o bastante para poder julgar se têm razão. A grande tarefa da �loso�a política hoje em dia é recuperar o ideal clássico de transparência e racionalidade, sem o qual o nome de “ciência” se torna apenas um rótulo publicitário colado em cima de uma massa obscura de preconceitos bárbaros e rancores fúteis. Zero Hora, 8 de agosto de 2004 Q Não é só o governo federal que está promovendo o estrangulamento da classe jornalística. É ela própria que, através da sua Federação Nacional, oferece o pescoço ao garrote, tão gentilmente quanto vem ocultando há anos as centenas de páginas das atas do Foro de São Paulo, a matança geral de cristãos em países islâmicos e comunistas, os apelos desesperados de presos políticos torturados em Cuba, a corrida armamentista na China e a ajuda que lhe prestou Bill Clinton, o contínuo genocídio cultural no Tibete, a repressão ao cristianismo nos e na Europa, a disputa feroz entre globalistas e nacionalistas norte-americanos, a colaboração cada vez mais intensa do terrorismo islâmico com as e Hugo Chávez12 e, en�m, tudo o que o leitor precisaria saber para se dar conta de que a realidade das coisas não corresponde exatamente aos belos discursos do Fórum Social Mundial. O recorte que sai na nossa mídia é tão �ctício que chega a induzir o público brasileiro — militar inclusive — a acreditar que o perigo para a soberania nacional na Amazônia vem dos e não da , o do antiamericanismo universal. A ditadura, com um censor em cada redação, conseguiu suprimir menos fatos essenciais do que aqueles que o �ltro mental de uma classe culturalmente pré-moldada não tenha talvez chegado nem mesmo a enxergar. Se a autocensura é pior do que a censura, pior ainda é a autocensura automatizada, integrada nas rotinas inconscientes, que o jornalista obedece com a docilidade de uma ovelha no instante mesmo em que se imagina um leão rugindo em defesa da liberdade de imprensa. Era precisamente a esse fenômeno que Gramsci se referia ao anunciar que um dia o Partido-Príncipe viria a ter sobre a sociedade pensante “a autoridade onipresente e invisível de um decreto divino”. A liberdade de opinião, a�nal, pressupõe a liberdade da mente, sem a qual não passa de um rótulo enganoso colado sobre o “centralismo democrático” leninista. As honrosas exceções de sempre — um Denis Rosen�eld, um Ali Kamel e mais meia dúzia — não modi�cam em nada o estado de coisas. Ao reclamar contra o projeto de controle o�cial, nossa mídia está apenas exigindo seu direito de calar a boca por iniciativa própria. O projeto “Adeus, Lênin”, como bem a propósito o chamou Míriam Leitão, é mesmo um luxo desnecessário. Esta semana, o ministro Amir Lando não precisou de nada disso para investir contra o jornalista e economista Ubiratan Iorio, de Polícia Federal em punho, intimando-o a “prestar declarações” sobre um artigo publicado em março no Jornal do Brasil com críticas ao aumento das contribuições previdenciárias. Terá sido com objetivo análogo que o sr. Frei Betto, consultor metafísico da presidência, andou sondando meu endereço residencial? Não sei. Mas sei que, na mesma semana, uma nota do jornalista Cláudio Humberto, com denúncias graves contra o prefeito petista do Recife, desapareceu misteriosamente da sua coluna no Jornal do Commercio, sendo publicada só em sites da internet e em alguns outros jornais. O dilema do jornalismo brasileiro é escolher entre a mordaça explícita e o silêncio obsequioso. *** Quando o governo vetou a divulgação da História oral do Exército: 1964, 31 de março, dei aqui a notícia. O que é justo é justo: liberados, os dez volumes, com depoimentos importantíssimos de testemunhas oculares, estão em circulação e podem ser adquiridos na Biblioteca do Exército (bibliex@ism.com.br). *** Andaram-me pedindo que indicasse algum livro do prof. J. Pinharanda Gomes, o notável �lósofo português a que me referi aqui meses atrás. Recomendo enfaticamente a originalíssima História da �loso�a portuguesa (Ed. Lello), organizada não pela ordem cronológica mas segundo as três correntes de pensamento que formaram a mentalidade ibérica: cristã, judaica e muçulmana. Numa época em que o diálogo ecumênico desperta possibilidades de compreensão antes di�cilmente imagináveis, essa obra torna-se leitura obrigatória para os estudiosos de religiões comparadas. O Globo, 14 de agosto de 2004 I Na galeria das doenças do espírito humano, a mais repugnante é a duplicidade de consciência, que faz um homem chafurdar na mentira ao mesmo tempo — e no mesmo ato — em que seu coração bate forte de indignação contra a perfídia do mundo. Para os que não conheceram por dentro os meios esquerdistas, a existência dessa síndrome pode parecer inverossímil e até inconcebível. Não acreditam que alguém possa ser falso ao ponto de imaginar-se sincero, bondoso e santo ao ludibriar os demais. Mas às vezes o fenômeno se torna tão patente, que mesmo a incredulidade sonsa já não consegue negá-lo. A denúncia do caso Ibsen Pinheiro é um exemplo espalhafatoso. Co- autor e testemunha da destruição jornalística de um inocente, o sr. Luís Costa Pinto calou-se durante anos, esperando para ter sua crise de consciência no momento exato em que ela favorecia os criminosos em vez de prejudicá-los. Quem será estúpido de imaginar que foi pura coincidência o timing perfeito, a denúncia do “mau jornalismo” saindo pela boca de um assessor petista em uníssono com a investida do governo contra a liberdade de imprensa? Resultado de uma trama montada entre petistas para eliminar um virtual concorrente de Lula na corrida presidencial, a calúnia contra o ex-deputado é usada agora como pretexto para fazer do partido caluniador o juiz em vez de réu do processo. A raposa exibe as galinhas destripadas como argumento para reivindicar o posto de guarda do galinheiro. Costa Pinto e seus cúmplices, a começar por Paulo Moreira Leite, acusado de autorizar a publicação da mentira consciente, estão fora de perigo. O delito prescreveu e a vítima anunciou que não quer nem indenizações. Quem vai pagar pelo crime? Nós outros, os “maus jornalistas”,condenados por um júri de Costas Pintos e Moreiras Leites. Desde o momento em que este país reconheceu no esquerdismo chique a autoridade suprema em matéria de ética, era inevitável que chegássemos a isso. Foi o que previ e anunciei, em vão, desde a ignóbil “Campanha pela Ética na Política”, calculada para prostituir a linguagem da moralidade no leito do maquiavelismo petista. Graças a essa prodigiosa conjunção de artimanhas, a total confusão nos critérios de julgamento arraigou-se fundo na alma nacional. Muitas gerações passarão antes que saia de lá, se um dia sair. Uma coisa é corromper a classe política, outra é perverter o senso de moralidade de todo um povo, instaurando a indiscernibilidade estrutural e endêmica do bem e do mal. A condição prévia para isso, na ordem intelectual, veio com o prestígio alcançado nas nossas universidades pelo pensamento desconstrucionista e “pós-moderno”, que, em nome da di�culdade de encontrar um critério universalmente racional para a arbitragem das diferenças, consagra a manipulação emocional, o engodo e a mentira como meios normais de persuasão. Duas gerações de estudantes brasileiros foram estragadas pelos porta- vozes locais de Derrida, Lyotard, Deleuze e Foucault. Nos anos 90, esses estudantes chegaram à linha de frente da mídia. Sabiam perfeitamente que o apelo à “ética”, que então lançaram à nação, era apenas um ardil para colocar a serviço da estratégia esquerdista o tradicional moralismo da classe média. Nada corrompe mais que a instrumentalização da moral. E nunca essa instrumentalização foi tão consciente, tão deliberada e tão geral como se tornou desde então. Repelida no mundo acadêmico como “antidemocrática”, a busca da verdade só poderia subsistir, na mídia, como paródia de si mesma e instrumento para a otimização da fraude. “As idéias têm conseqüências”: é a lição imortal de Richard Weaver. Toda deterioração social e política começa na esfera intelectual. Comentando a degradação do pensamento acadêmico de seu país e referindo-se de passagem à imitação dela pela universidade brasileira, o jovem �lósofo francês Jean-Yves Béziau despede-se do assunto em uma linha: “Pouparemos ao leitor o conhecimento dos resultados da macaqueação de um modelo degenerado”. Mas ele se referia ao leitor europeu. Nós, brasileiros, não somos poupados de enxergar esses resultados todos os dias. O Globo, 21 de agosto de 2004 R Longe de mim chamar de incoerentes as pessoas maravilhosas que assinaram o manifesto em favor de Hugo Chávez e, uma semana depois, aparecem posando de baluartes da liberdade de imprensa, gritando horrorizadas ante a ameaça de introdução do chavismo no Brasil. Incoerência só pode haver em homens de idéias, cuja unidade de consciência se manifesta no plano do discurso. A chave da congruência vital daquelas criaturas encontra-se mais embaixo: é a linha perfeitamente contínua de uma “carreira”, que, sob as contradições aparentes do discurso, segue incansavelmente a busca de seus objetivos pro�ssionais, sociais e �nanceiros por todos os meios disponíveis, adaptando-se às ondulações das circunstâncias sem perder o �o da meada, o equivalente dialético e brasileiro da retidão. Assinaram aquela porcaria só porque sabem que sem essas genu�exões rituais ninguém neste país pode aspirar a ser alguém nas artes, nas letras ou no jornalismo. Já era assim no tempo da ditadura. Só a fantasia de adolescentes, amputada do conhecimento do passado histórico por uma devotada geração de castradores pedagógicos, pode imaginar que naquela época a hegemonia cultural tenha cedido, ou mudado de mãos. Mesmo os generais-presidentes não se furtavam às reverências de praxe ante o esquerdismo chique. Sem isso, em vão esmolariam um olhar de afeição das grandes damas da mídia e do show business. Nada me tira da cabeça que foi o desejo secreto de ser amado por essa gente que impeliu Geisel a dar a Fidel Castro o dinheiro e a ajuda técnica para invadir Angola. De Paris, Glauber Rocha acenava para o general com a tentadora oferta de fazer dele um ídolo das esquerdas. Falhou, e o próprio Glauber terminou abandonado pela patota. Mas, nesse ínterim, quinze mil angolanos morreram vítimas de um �erte. *** Também não há incoerência no epíteto de “covardes” lançado pelo presidente da República contra os jornalistas mal ajustados ao sistema. Ele fala como se, em vez de resistir à sua política, eles estivessem ansiosos para obedecê-la, só lhes faltando para isso a ousadia de dizer adeus à última aparência de escrúpulos. Ele não se dirige a eles como a adversários, mas a empregados recalcitrantes. Quem ousará negar que, estatisticamente ao menos, ele está certo? A classe jornalística não votou maciçamente nele? Não abdicou da alma e da consciência para embelezar sua imagem eleitoral, ocultando as ligações políticas dele com as , cuja divulgação teria abortado sua candidatura? Não encobriu de silêncio a perseguição movida pelo governo do sr. Olívio Dutra contra três dezenas de jornalistas gaúchos? Não colaborou tão prestativamente, nas ’s, para dar ao partido presidencial o monopólio do acusar, do investigar e do punir, colando em todos os seus adversários o rótulo de criminosos virtuais e varrendo-os do caminho para assegurar ao queridinho das classes falantes a chegada triunfal ao objetivo sonhado? Então por que, de repente, essa hesitação, essa teimosia, essa frescura? Em vez de acusá-los de traição, palavra pesada demais, o presidente deu à conduta paradoxal de seus servidores a mais generosa das explicações. Observo, apenas, que ela não se aplica àqueles que desde o início se recusaram a fazer o servicinho sujo. Para esses, é melhor o presidente catar outro adjetivo no depósito da língua-de-pau petista. Chame-nos de aberrações, de fascistas, de lacaios do imperialismo, do que quiser. De covardes, não. Na escala da coragem, sr. presidente, o senhor não tem cacife para nos julgar. O senhor jamais correu um risco sem contar com o respaldo de um movimento de massas, de “companheiros de viagem” milionários e da mídia internacional. Nunca esteve sozinho, isolado, sem partido, sem alianças, sem dinheiro, cercado do ódio de milhares de cães hidrófobos. Os únicos perigos reais que o senhor já enfrentou sem ajuda foram um torno mecânico e uma banheira de hidromassagem aérea. Não queremos suas lições de valentia. Zero Hora, 22 de agosto de 2004 E Poucos meses depois de lançada a campanha de entrega das armas, sem que nenhum efeito objetivo tenha vindo legitimar suas pretensões de abrandar a sanha dos criminosos, o governo já se apressa não só em alardear seus bons resultados, mas em estender a área de sua aplicação, levando-a da cidade para o campo. Como até agora não se viu nenhum ladrão, narcotra�cante ou homicida notório comparecer às �las repletas de velhinhas devotas e honrados trabalhadores, o único resultado a que a autoridade pode estar-se referindo com isso é o sucesso que obteve em desarmar possíveis vítimas, não seus virtuais assaltantes, agressores e assassinos. Os prometidos efeitos apaziguantes a ser extraídos dessa vitória do governo sobre o povo são ainda demasiado imaginários para poderem justi�car, por si, a extensão da campanha à zona rural. Restaria o argumento da prioridade: quando o caso é extremo, há quem ache lícito arriscar um remédio mal testado, não testado de maneira alguma ou mesmo reprovado nos testes como o desarmamento civil já o foi em outras nações que o aplicaram. Mas, no caso, o apelo a esse argumento é ainda mais estapafúrdio. Num país onde, pelos cálculos da , morrem a tiros 40 mil pessoas por ano, a contribuição da zona rural à taxa anual de mortes cruentas não passa de umas quarenta pessoas, segundo o governo federal, ou, na matemática hiperbólica da Pastoral da Terra, 82. Em toda essa formidável extensão de terras, habitada por 30% da população brasileira, a quantidade de crimes de morte não corresponde a 30%, a 20%, a 10%, a 1% do total nacional. Corresponde — e usando na conta os númerosin�ados da Pastoral — à quadringentésima nonagésima parte desse total. Para cada homicídio na região rural, há 490 nas cidades. Em números absolutos, 83 mortes são muitas mortes, mas, na comparação com outras áreas do país mais assassino do mundo, o campo é uma zona de relativa paz e tranqüilidade. Qual a urgência, então, de experimentar nela um remédio que ainda nem passou pelo teste nas áreas mais violentas? A urgência existe, mas é bem outra. Não tem nada a ver com a taxa atual de crimes. Tem a ver com a correlação de forças num possível confronto entre os sem-terra e os fazendeiros. Como observou o sr. João Pedro Stedile, com ameaçadora exatidão, há dez mil sem-terra para cada fazendeiro. Um fazendeiro, com cinqüenta auxiliares equipados de armas automáticas, pode repelir uma invasão de mil, cinco mil ou até dez mil militantes do armados de facões, foices e uma ou outra carabina de caça. Suprimidas as armas de fogo, a vantagem se inverte: no combate com armas brancas, prevalece a quantidade de braços. Nenhuma fazenda pode sustentar o contingente apto a fazer frente, com faca, porrete ou machado, a um assalto maciço de milhares de sem-terras. Implantado o desarmamento civil no campo, a disputa estará decidida. O governo alega o intuito de “eliminar a tensão”, mas, obviamente, não se trata de acalmar ânimos: trata-se de abolir a tensão desativando um dos seus pólos: a propriedade particular da terra, no Brasil, está com os dias contados. Se os proprietários em pessoa morrerão ou não com ela, depende. Depende de tentarem um corpo-a-corpo de um contra dez mil, ou, ao contrário, correrem para buscar abrigo sob as asas do Incra, o qual não lhes garante nenhuma proteção contra invasões, mas promete a devolução das terras invadidas se e quando, após os devidos trâmites burocráticos, elas se demonstrarem produtivas. Em suma: eles só não morrerão como os do Zimbábue e da África do Sul se consentirem em ceder suas terras ao primeiro invasor que as exija e depois con�ar-se docilmente à benevolência das autoridades — aquelas mesmas autoridades que os desarmaram para obrigá-los a esse vexame. Espremidos entre uma massa de comunistas armados de facões e uma elite de comunistas armados de canetas, a opção dos ruralistas é morrer de vez nas mãos dos primeiros ou de�nhar aos poucos nas mãos dos últimos. São, com toda a evidência, uma classe em vias de extinção. O Globo, 28 de agosto de 2004 P Não há discussão possível sem o acesso dos interlocutores a um mesmo conjunto de dados. Os dados do presente artigo estão nos livros eir Blood Cries Out: e Untold Story of Persecution Against Christians in the Modern World, de Paul A. Marshall e Lela Gilbert (Word Publishing, 1997) e Persecution: How Liberals Are Waging War Against Christianity, de David Limbaugh (Regnery, 2003), e nos sites http://www.religioustolerance.org/rt_overv.htm, http://freedomhouse.org, http://www.markswatson.com/Persecution.html e http://www.persecution.org/newsite/. Dessas fontes, a primeira demonstra acima de qualquer dúvida razoável que está acontecendo em países islâmicos e comunistas um morticínio organizado de cristãos, sem outro motivo que não o de serem cristãos, alcançando já um total de mais de dois milhões de vítimas desde a última década. A segunda mostra, com idêntica riqueza de evidências, um tipo diferente de perseguição que se observa no outro lado do mundo: o genocídio cultural anticristão nos . Sob a pressão do lobby politicamente correto que domina as classes superiores e a mídia, os cristãos americanos vêm sendo expulsos, deliberada e sistematicamente, das instituições de ensino e cultura, proibidos de rezar em voz alta nas escolas, nos quartéis, nas repartições públicas e em muitas empresas privadas. Estudantes são punidos porque entraram em classe com um cruci�xo ou uma Bíblia. Associações cristãs de caridade são ostensivamente desfavorecidas na distribuição de verbas o�ciais, candidatos cristãos a cargos públicos são vetados por conta de sua religião. Enquanto um �uxo ininterrupto de propaganda anticristã inunda as livrarias, os jornais e os cinemas (O corpo e O Código da Vinci são só dois dos exemplos mais populares), alguns Estados tornaram obrigatório o ensino do islamismo e das religiões dos índios americanos nas escolas, punindo qualquer preferência cristã ostensiva com estágios obrigatórios de “reeducação da sensibilidade” que incluem horas de recitações corânicas ou prática de ritos indígenas. Desde a lei dos direitos civis, jamais alguma comunidade minoritária americana sofreu discriminação tão ampla, tão prepotente e tão mal disfarçada como aquela que hoje vem sendo imposta à maioria cristã. As demais fontes mencionadas fornecem con�rmações às duas primeiras, em dose superior ao que poderiam exigir as mentes mais lerdas e recalcitrantes. Embora se passem em hemisférios opostos, os dois fenômenos estão interligados. A indústria cultural que usa de todo o seu poder para fomentar o preconceito contra o povo cristão dentro da própria América não haveria de querer alertá-lo, ao mesmo tempo, para o perigo de morte que ronda os seus correligionários na Ásia e na África: ele poderia ver nisso uma antecipação do destino que o aguarda, já que todo genocídio vem sempre antecedido da destruição das defesas culturais da vítima. A conexão, assim, torna-se óbvia: sem a cumplicidade ativa ou passiva, barulhenta ou silenciosa do establishment anticristão do Ocidente, nunca os ditadores da China, do Sudão, do Vietnã e da Coréia do Norte poderiam continuar matando cristãos sem ser incomodados. O discurso da mídia em favor de “minorias” hoje privilegiadas, que nos nunca sofreram uma parte ín�ma do sofrimento imposto aos cristãos no mundo — discurso sempre acompanhado da inculpação ao menos implícita do cristianismo —, é ele mesmo um meio e�caz de dessensibilizar o público para a perseguição anticristã. O pesadelo de povos inteiros trucidados ante o olhar indiferente do mundo e os sorrisos sarcásticos dos bem-pensantes repete-se, igualzinho ao dos anos 30. Oito milhões de ucranianos ameaçados por Stálin poderiam ter sobrevivido se o New York Times não assegurasse que estavam em boas mãos. Seis milhões de judeus poderiam ter sido poupados, se na Inglaterra o sr. Chamberlain, nos os comunistas comprados pelo pacto Ribbentropp-Molotov e na França uma esquerda católica podre, sob a liderança do açucarado Emmanuel Mounier, não garantissem que Adolf Hitler era da paz. A credibilidade dos apaziguadores é uma arma letal a serviço dos genocidas. Mas hoje não é preciso nem mesmo desmentir o horror. Ninguém sabe que ele existe. O mundo estreitou-se às dimensões de uma telinha de , de uma manchete de jornal. O que não cabe nelas está fora do universo. A mídia elegante tornou-se o maior instrumento de controle e manipulação jamais concebido pelos supremos tiranos. Joseph Goebbels e Willi Munzenberg eram apenas amadores. Acreditavam em propaganda ostensiva, quando hoje se sabe que a simples alteração discreta do �uxo de notícias basta para gerar nas massas uma con�ança ilimitada nos manipuladores e o ódio feroz a bodes expiatórios, sem que ninguém pareça tê-las induzido a isso. O tempo das mentiras repetidas está superado. Entramos na era da inversão total. Por isso mesmo, dizê-lo é inútil. Conheço bem a classe letrada brasileira. Sei que nela, sobretudo entre os jornalistas, são muitos os que, à simples leitura deste artigo, sem a mínima tentação de consultar as fontes, negarão tudo a priori mediante um risinho de desprezo cético e o recurso infalível ao estereótipo pejorativo da “teoria da conspiração”. Serão ouvidos com aprovação como se fossem as supremas autoridades no assunto, e eu passarei por louco. Um mundo em que trejeitos afetados convencem mais que toneladas de provas está abaixo da possibilidade de ser descrito até mesmo pelos instrumentos mais contundentes da arte da sátira. George Orwell, Karl Kraus, Eugène Ionesco, Franz Kaa e até mesmo Alexandre Zinoviev, professor delógica matemática que usou os instrumentos da sua disciplina para forjar uma linguagem apta a representar literariamente a incongruência total da vida soviética, prefeririam calar-se. A sátira existe, a�nal, para retratar seres humanos. Ela paira acima da estupidez satânica, incapaz de descer o bastante para poder descrevê-la. Folha de São Paulo, 31 de agosto de 2004 D É cômico o esforço que materialistas militantes dispendem para provar, por meios matemáticos, que a vida se formou por acaso tão logo certos fatores se combinaram nas proporções adequadas para produzi-la, sem que nenhuma causa inteligente os impelisse a tanto. Quanto mais a�rmam isso, mais proclamam, sem percebê-lo ou sem admitir que o percebem, que o composto só adquiriu força geradora de vida graças, justamente, às proporções, à razão matemática entre seus elementos; e que esta proporção, se teve o dom de produzir esse efeito no instante em que esses elementos se encontraram — mesmo admitindo-se que se encontraram fortuitamente —, já o possuía desde muito antes desse instante, já o possuía desde toda a eternidade. E basta saber o que signi�ca razão ou proporção — ratio, proportio, eidos, logos — para entender que nenhuma proporção pode valer sozinha e isoladamente, fora da ordem matemática integral. Se determinada combinação de elementos materiais (cada um deles aliás dotado de sua própria forma ou proporção interna) pôde num certo instante gerar determinado efeito, é porque o sistema inteiro das relações e proporções matemáticas que moldavam e determinavam essa possibilidade preexistia eternamente a esse instante. No princípio era o Logos, e não há nada que o apelo ao acaso possa fazer contra isso. O mesmo aplica-se à origem do cosmos na sua totalidade, muito antes do surgimento da “vida”. O mais ín�mo fenômeno da ordem subatômica já aparece como realização de uma proporção matemática que o antecede na ordem do tempo e o transcende na ordem ontológica. A Bíblia expõe isso da maneira mais simples, ao dizer que o espírito de Deus pairava sobre as águas. A ordem das possibilidades de�nidas, ou forma interna da onipotência, prevalece sobre a desordem das possibilidades inde�nidas, as quais só podem se manifestar, precisamente, ao sair do inde�nido para o de�nido, ou, em linguagem bíblica, das trevas para a luz. A estrutura interna do primeiro acontecimento cósmico, qualquer que seja ele, é sempre a manifestação de uma forma ou proporção que, como tal, é supratemporal e independente de qualquer acontecimento. Se a causa e�ciente que acionou essa passagem e determinou o início do processo cósmico operou por sua vez fortuitamente ou segundo a ordem, é questão que já está respondida na sua própria formulação, de vez que a noção mesma de uma conexão de causa e efeito só pode ser concebida como forma lógica de�nida, portanto como expressão da ordem. Mesmo se quisermos imaginar essa causa como puramente fortuita, a forma interna do nexo causal in genere tem de haver-lhe preexistido desde sempre e não pode ser concebida como fortuita, já que é precisamente o contrário disso. Para alegar que não foi assim, seria preciso demonstrar que todas as formas e proporções são, em si e eternamente, caóticas e indiferentes, isto é, que a ordem lógico-matemática não existe de maneira alguma, nem no cosmos manifestado nem como mera estrutura da possibilidade em geral. Porém depois disso seria grotesco apelar a instrumentos lógico-matemáticos para provar o que quer que fosse. Para provar até mesmo o império do acaso. Tudo isso é arquievidente, e negá-lo é impugnar qualquer possibilidade de conhecimento cientí�co, mesmo puramente instrumental e convencional. Mas é inútil esperar que jumentos adestrados como o prof. Richard Dawkins e seus admiradores se elevem ao grau de abstração requerido para tomar consciência disso. Um alto grau de domínio operacional das ferramentas lógico-matemáticas — ou, mais ainda, dos métodos rotineiros da investigação cientí�ca — pode coexistir com uma visão puerilmente concretista da realidade, onde a noção de “causa” é reduzida à imagem de uma “força” ou “gatilho” operando �sicamente sobre um “objeto”, como as bolas de bilhar do célebre exemplo de Hume. Mas o supra-sumo do concretismo talvez tenha sido a metáfora renascentista do “relojoeiro” que construiu o mundo. Tudo residia em saber se depois de construir o relógio do mundo ele lhe dava corda todos os dias ou se o �zera de uma vez por todas, indo dormir e deixando a máquina por conta das leis mecânicas de Galileu e Newton. Todas as teorias cientí�cas, sem exceção, nascem de analogias e metáforas que, mesmo depois de esquecidas, balizam as possibilidades de discussão racional dessas teorias.13 Uma péssima metáfora traz um dano incalculável à inteligência teorética. O deus- relojoeiro ainda assombra a imaginação dos nossos contemporâneos, que discutem se ele montou as peças do engenho com um propósito ou às cegas. No mínimo, uma discussão assim concebida reduz a investigação das origens ao universo material existente, impedindo-a de erguer-se ao nível da ontologia geral, que é o único apropriado. Deus não se ocupa de relógios: Ele instaura o tempo e o espaço a partir da estrutura da possibilidade universal, e deixa os relógios e relojoeiros por conta do prof. Dawkins & adversários. O velho Aristóteles sorriria com benevolência paternal ante meninos que se engal�nhassem numa disputa entre as causas �nais e as causas e�cientes sem ter a mínima idéia da causa formal que as antecede e as determina implacavelmente. Os criacionistas têm ao menos a desculpa de que acreditam na Bíblia. É bem melhor, de fato, um sujeito admitir por fé uma verdade que não compreende do que meter-se a discutir o que está acima da sua capacidade. Mas, tanto quanto os evolucionistas, eles continuam hipnotizados pela metáfora do relojoeiro. Não concebem que muito antes de Deus criar “este” mundo Ele criou a luz, isto é, a ordem da inteligibilidade universal, da qual dependem todas as ciências e que não pode ser revogada por nenhuma delas. Quando aceitam discutir com o sr. Dawkins nos termos dele, querem provar a veracidade de uma religião degradada, materializada, sem espírito. O deus-relojoeiro é um falso deus, tanto quanto o deus-acaso do prof. Dawkins. Bravo, setembro de 2004 Q Desde que o sr. Frei Betto tentou obter da administração do Globo o meu endereço pessoal, um assistente meu tem recebido misteriosas ligações, com número bloqueado, de alguém que diz ter urgência de me encontrar mas, solicitado a declarar seu nome e a cidade de onde fala, desliga o telefone. Não sei se os dois fatos têm alguma ligação entre si. Mas uma coisa é certa: o consultor da presidência para assuntos celestes e infernais preferiu fazer-se de surdo ante a minha oferta de enviar-lhe pessoalmente meu endereço caso o pedisse por e-mail, e essa reação só pode ser interpretada de duas maneiras: ou ele desistiu de obter por via simples o que tentara obter por via complicada, ou prefere colher suas informações sem dar na vista. Por que um ministro de Estado agiria assim? Tudo isso é muito esquisito, sobretudo porque não só continua no ar o site pornográ�co com o nome dele, que encontrei na internet, mas ainda apareceram mais dois: www.sex-11.biz/frei-betto e www.frei- betto.lubiezaea.com. São páginas comerciais, pagas, e uma delas anuncia: “All about Frei Betto. See this now”. Que palhaçada é essa? Por que o sr. Frei Betto não manda investigar isso, em vez de �car sondando, pelas costas, a vida de quem sempre lhe disse a verdade com toda a franqueza? Que é que está acontecendo nesse governo, a�nal? Que tipo de gente é essa a quem o país se entregou com cega con�ança? Alguém sabe, ao certo, quem são esses homens? Ou, ao contrário, ninguém quer saber? Quem sabe, por exemplo, se o sr. José Dirceu se desligou da inteligência militar cubana ou continua a seu serviço na Casa Civil da Presidência? Quem sabe se o sr. Luís Inácio Lula da Silva, após ter-se sentadorevelam a aposta brasileira numa articulação mundial cujo resultado, a médio ou longo prazo, só pode ser um: a guerra. Meses atrás, um famoso jornalista brasileiro expressava seu obsceno entusiasmo diante do antiamericanismo de alguns militares brasileiros, enaltecendo-os porque achavam lindo treinar soldados para matar marines na �oresta amazônica. Ora, ninguém se alegra com preparativos militares se não pretende entrar em guerra. Mas por que logo contra os marines, se a única ameaça à nossa soberania na Amazônia vem de ’s associadas ao globalismo antiamericano da ? O erro de alvo, segundo parece, não é nada acidental. Fichando americanos nos aeroportos, subsidiando as revoluções falidas de Chávez e Fidel, acobertando as , debitando na conta dos os crimes de seus inimigos ou afagando o ego dos regimes sudanês e norte-coreano, o Brasil parece já ter incorporado perfeitamente o papel que estrategistas internacionais insanos lhe destinaram: o de peão sonso num jogo que não pode terminar bem. O Globo, 10 de janeiro de 2004 C A mídia nacional já adotou o costume de designar o governante como “direita”, para que D. Heloísa Helena e o sr. João Pedro Stedile posem como representantes da única “esquerda” autêntica. É um truque sujo e seu efeito é óbvio: a parcela do público que teme mudanças bruscas corre para dar apoio ao governo, na esperança de que contenha os “radicais”, enquanto a insatisfação do restante com os erros do governo é canalizada em favor da “esquerda da esquerda”, sem risco de que venha a ser capitalizada pela oposição liberal ou conservadora. Todo movimento revolucionário tem dentro de si uma direita e uma esquerda. Esta forceja por ampliar a área de atuação do movimento e radicalizar as transformações revolucionárias a todo preço, pouco se importando de perder o controle da situação ou, melhor ainda, imaginando que o melhor controle é a perfeita confusão. A “direita”, por seu lado, tenta consolidar as vitórias obtidas e manter um estrito controle estratégico e tático do movimento, mesmo à custa de desacelerar o processo e ter de cortar na própria carne, livrando-se da indisciplina “esquerdista” por meio de expurgos e de punições variadas. Isso foi assim em todas as revoluções comunistas. O detalhe diferencial é que na revolução brasileira está sendo tentada pela primeira vez em grande escala uma transição “indolor” baseada na estratégia de Antonio Gramsci. Isto faz com que, aos olhos dos ignorantes, a revolução não pareça uma revolução e as mudanças mais desastrosas sejam aceitas, insensivelmente, como detalhes de rotina. Não que o gramscismo seja paci�sta. Apenas, ele não admite violência antes do momento certo, isto é, quando a opinião pública estiver madura para aprovar ao menos por indiferença a eliminação cruenta dos poucos adversários restantes. O gramscismo é como a aranha, que anestesia a vítima antes de matá-la. No processo anestésico, Gramsci enfatiza o controle da mídia e, portanto, do vocabulário. É essencial que a população se acostume a usar as palavras no sentido desejado pelo Partido, para que, a cada momento, pense o que o Partido deseja que pense. Isso nada tem a ver com persuasão explícita: não visa a fazer com que o povo “concorde” com as instruções partidárias, mas busca induzi-lo a comportar-se da maneira desejada, mesmo quando imagina opor-se à autoridade estabelecida. No presente momento, quando a ascensão do Partido é ainda recente, é importante garantir que ninguém, na sociedade, possa dar um alarma geral e abortar o processo. Firmeza e discrição são essenciais. É a hora do lobo, o lusco-fusco antes da aurora, quando o predador espreita as redondezas, ainda sem saber se o que vai encontrar pela frente é a presa ou o caçador. Nesse momento, tudo na conduta do Partido é camu�agem e �ngimento. Tudo o que é deve parecer outra coisa, nada pode ser chamado pelo nome, todo raciocínio conclusivo deve ser neutralizado por uma tempestade de desconversas, todo diagnóstico real da situação deve ser contornado por meio de um intenso confusionismo verbal. A própria identidade dos personagens deve ser esfumada, para que ninguém possa distinguir o predador e a presa. Trabalhar para que a “direita” e a “esquerda” do movimento revolucionário sejam tomadas pelo público como a direita e a esquerda convencionais, de modo que esta última ocupe todo o espaço político existente e uma transição revolucionária passe como rotina normal da democracia, é o modo de fazer com que a rã, que saltaria fora da panela se jogada na água fervente, vá se adaptando à água aquecida devagar, até morrer sem perceber que foi cozida. Zero Hora, 11 de janeiro de 2004 N , : Desde sua remota origem nos clubes de debates do século , a comunidade dos revolucionários e progressistas, sempre alegando falar em nome de todos os homens e romper as barreiras que os separam, tem sido uma das mais excludentes e discriminatórias, ao ponto de professar abertamente a dupla moral: uma para “nós”, outra para “eles”. Lênin expõe o princípio, com seu cinismo costumeiro, neste parágrafo das Selected Works (vol. , pp. 486 ss.): “É errado escrever sobre companheiros de Partido numa linguagem que sistematicamente dissemine entre as massas trabalhadoras o ódio, a aversão e o desprezo àqueles que sustentam opiniões divergentes. Mas pode-se e deve-se escrever nesse tom sobre organizações dissidentes...”. Neste caso, prossegue Lênin, deve-se falar numa linguagem “calculada para despertar contra o oponente os piores pensamentos, as piores suspeitas; não para corrigir-lhe os erros, mas para destruí-lo, para varrer sua organização da face da Terra”. Ou seja: o direito a uma discussão honesta é privilégio dos �éis. Contra inimigos e in�éis, vale tudo: não somente o militante despejará em cima deles todo o arsenal de falácias erísticas que no debate interno seriam cuidadosamente evitadas, mas ainda recorrerá à calúnia, à difamação, à intimidação, ao boicote e à chantagem, com a boa consciência de quem estivesse sendo até justo e bondoso demais para com adversários que, em melhores circunstâncias, ele teria a obrigação de matar. Fora dos círculos dos eleitos, a polêmica de esquerda é nada mais que homicídio adiado ou, na hipótese mais branda, sublimado. Chega a ser fantástico que, nos meios cristãos, tanta gente nos anos 60 professasse acreditar na possibilidade de um diálogo franco com os marxistas, quando o próprio Karl Marx já havia anunciado que as “armas da crítica” se destinam apenas a aplanar o caminho para a “crítica pelas armas”. Esse “diálogo” serviu apenas para desarmar os cristãos ante os genocídios que se seguiram na China, no Camboja e na Coréia do Norte, contra os quais a hierarquia católica, por medo de ferir suscetibilidades comunistas, nada fez. O princípio leninista da dupla moral foi repetido, sob diferentes formas, por uma in�nidade de intelectuais ativistas, entre os quais me vêm agora à memória Paulo Freire (“devemos ser tolerantes, mas não com os nossos inimigos”) e Herbert Marcuse (“tolerância libertadora signi�ca: toda tolerância para com a esquerda, nenhuma para com a direita”). Esse princípio vigora ainda não só em regimes como o de Cuba ou da Coréia do Norte, mas em qualquer grupo ativista que tenha recebido a in�uência do marxismo e, de modo geral, em todo o universo da “esquerda”. Os procedimentos repressivos criados no início do século como técnicas partidárias para o domínio do Estado foram-se disseminando por esse círculo mais amplo até tornar-se hábitos culturais introjetados, que incluem a defesa automática contra o seu próprio desmascaramento. Sob a inspiração de Antonio Gramsci, sua aplicação, antes restrita ao domínio da luta política explícita, foi estendida a todos os domínios da existência, de modo a fazer da guerra cultural uma guerra total, na qual até sentimentos pessoais e trejeitos de linguagem servem para identi�car amigos e inimigos e facilitar a demarcação do território permitido a estesamigavelmente à mesa de conversações com as durante dez anos, não está aludindo veladamente a si próprio quando diz que o banditismo organizado tem altos contatos na esfera política? Quem sabe se o partido que alardeia antiimperialismo e ao mesmo tempo quer entregar partes da Amazônia a ’s internacionais não esteve nos enganando o tempo todo com um nacionalismo de fachada? Quem sabe se as relações entre os poderes globais e a esquerda nacional não são muito mais complexas do que parecem ao simplismo estereotipado dos bem-pensantes? Ninguém sabe, ninguém quer saber. É proibido perguntar. Da idolatria da “transparência” passamos ao culto de uma opacidade de chumbo, e ninguém dá ao menos um sinal de ter percebido a diferença. No tempo de Collor, a conversa vagamente suspeita entreouvida por um motorista indiscreto desencadeou a mais vasta investigação que já se fez contra um presidente. Hoje em dia, seis testemunhas mortas no caso Celso Daniel não abalam em nada a reputação de governantes ungidos pelo dom da inatacabilidade intrínseca. Na do Orçamento, em 1993, o sr. José Dirceu sabia até os números das cédulas dadas como propina por um político medíocre a um funcionário insigni�cante. Na época, escrevi: “Pelo furor investigativo com que os jornais e a abrem as latrinas, destapam os ralos, vasculham os esgotos da República, parece que o Brasil, dentre todos os países, tem a imprensa mais ousada, mais independente, mais empenhada em descobrir e revelar a verdade”. É impossível não perceber, hoje, que tudo isso foi apenas um pretexto para aplanar a estrada para o , colocá-lo no poder e nunca mais fazer perguntas, aceitando dos novos patrões, com docilidade incuriosa e muda, condutas muito mais suspeitas e extravagantes que as de todos os seus antecessores. É como se, após um número excessivo de desilusões, o país não suportasse mais uma. Anos atrás a francesa mostrou uma garota que, após ter fugido da família, caído em devassidões indescritíveis e passado por mil e uma lavagens cerebrais nas mãos de falsos gurus, voltara para casa com a personalidade alterada e um ar de passividade estúpida no rosto: “Não, eu não quero mais saber a verdade”, repetia ela ante as câmeras. Está assim a alma esgotada do povo brasileiro. Usado e abusado pela propaganda, ele já não se ofende de ser ludibriado, porque não tem mais forças para querer saber a verdade. O Globo, 4 de setembro de 2004 D Depois do artigo sobre Platão, vieram outras perguntas sobre o estudo da �loso�a, a maioria delas na linha: o que ler e como ler? A receita é: no começo, poucas leituras, muito bem selecionadas, feitas lentamente, de lápis na mão, com um dicionário de �loso�a ao lado para tirar cada dúvida, e repetidas tantas vezes quantas você precise para tornar-se capaz de expor o argumento ainda mais claramente do que o fez o autor. Busque muitos exemplos concretos para dar maior visibilidade a cada idéia. Depois, aos poucos, vá ampliando o círculo, abrangendo estudos eruditos sobre pontos determinados, até conseguir dominar a história inteira das discussões sobre cada tópico, por exemplo, o problema dos níveis de realidade em Platão, os sentidos da palavra “ser” em Aristóteles, etc. Quando tiver dominado o status quaestionis (o desenvolvimento até o estado presente) de um só dentre inumeráveis pontos de discussão, aí você perceberá quanto é miserável o debate intelectual neste país e quanto é urgente formar aqui uma geração de estudantes sérios. Mais urgente do que todos os “planos econômicos de emergência” com os quais se gastam em vão tantos neurônios. Quando digo “bem selecionadas”, re�ro-me aos clássicos imprescindíveis: Platão, Aristóteles, Santo Tomás, Leibniz, Schelling e tutti quanti. Mais tarde fornecerei uma lista. Mas não escolha as leituras por autor, e sim por temas e problemas. Compre um bom dicionário de �loso�a (o de José Ferrater Mora ainda é imbatível, e saiu uma boa edição em quatro volumes pela Martins Fontes), percorra os verbetes em busca das perguntas �losó�cas que lhe interessam (porque se não lhe interessarem você nunca haverá de compreendê-las), e, dos vários clássicos mencionados a respeito, escolha um para leitura aprofundada. Decida-se a consagrar a essa leitura alguns meses, como quem só tivesse um livro para ler até o �m da vida. Fiz isso na juventude com vários diálogos de Platão, mais os Tópicos e a Metafísica de Aristóteles, e me alimento dessas leituras essenciais até hoje, a maioria das subseqüentes servindo apenas de digestivo para a melhor assimilação delas. Se quiser usar o método de leitura de Mortimer J. Adler (Como ler um livro, editora UniverCidade), isso não lhe fará mal algum, mas saiba desde já que nenhum método serve para todos os livros: cada um exigirá uma estratégia diferente, que você mesmo irá descobrindo. Tenha sempre à mão uma ou várias obras de história da �loso�a (Frederick Copleston, em inglês, ou Guillermo de Fraile, em espanhol, dão conta do recado) e não tema interromper a leitura principal para vasculhá-las em busca de comparações, voltando àquela em seguida. A mente humana nunca avança em linha reta: precisa de interrupções e rodeios. Não force a atenção quando ela foge para outro assunto: vá atrás do assunto que ela sugere, depois volte ao ponto onde estava. E lembre sempre o conselho de Aristóteles: a inteligência deve ser exercitada com moderação. No começo, não estude mais de duas horas por dia. Quando chegar a cinco, será um grande erudito. Vá dos clássicos para os modernos e contemporâneos, e não ao contrário: é menos importante saber aquilo que Nietzsche pensou de Platão do que tentar imaginar aquilo que Platão pensaria de Nietzsche. Outra dica: desista de adquirir uma boa cultura �losó�ca lendo só em português. Mas praticamente não há livro bom de �loso�a que não tenha edições em inglês ou francês. É bom também ter um dicionário de grego clássico para apreender melhor o sentido de muitos termos que os autores modernos ainda preferem usar nessa língua. E, se encontrar o livro de A. D. Sertillanges, A vida intelectual, decore os conselhos dele e pratique-os. Você não imagina o bem que fazem. Zero Hora, 5 de setembro de 2004 P Toda a história do século — e a do começo deste — já estava contida, sinteticamente, no poema e Second Coming, publicado por William Butler Yeats em 1919. O falcão que se desgarra do falcoeiro, o eixo do mundo que oscila e não consegue conter o giro frenético dos estilhaços subitamente dotados de vida independente, a luz demoníaca do spiritus mundi que se levanta no horizonte ofuscando o olhar humano para que não atine mais com a visão de Deus e, por �m, o Anticristo que na forma de um bicho rasteja até Belém para nascer — nunca a tragédia de uma civilização inteira foi resumida de maneira tão nítida em tão poucas linhas, exatamente vinte e duas. Mas o que mais me impressiona nesse compactado de profecias são os versos: “e best lack all conviction, while the worst are full of passionate intensity”: aos melhores falta toda convicção, enquanto os piores estão cheios de intensidade apaixonada. É a psicologia completa do homem contemporâneo, in�ado de entusiasmo moralista na defesa do crime e da mentira, paralisado por doentia escrupulosidade cética ante o apelo da razão e da verdade. Durante um século inteiro, as grandes mobilizações de massas, com todo o seu cortejo de adornos literários e musicais, foram em favor do que havia de pior: comunismo, fascismo, a entrega do Vietnã e do Camboja a um esquadrão de genocidas e, agora, a campanha mundial para destruir as duas últimas democracias independentes, e Israel, e submeter a humanidade à tirania planetária dos engenheiros sociais. Tal como nos casos anteriores, as hordas de imbecis fanatizados não sabem a quem servem. Alardeiam lutar contra “o imperialismo global”, e mesmo o fato patente de que suas marchas e suas ’s sejam subsidiadas pelas grandes fortunas, gerenciadas pelos organismos de administração mundial eincitadas pela mídia chique não basta para alertá-los quanto à verdadeira natureza da causa pela qual gritam, matam e morrem. Do outro lado, os que compreendem algo do estado de coisas �cam inibidos pela complexidade do mal que os cerca e preferem calar-se, fazendo de conta que não viram nada. *** E, por falar em Yeats: quando escrevi O imbecil coletivo, julgava estar descrevendo um estado de depravação intelectual raramente igualado em qualquer outro país do Ocidente moderno. Nem em pesadelo podia imaginar que em poucos anos o Brasil iria ainda mais fundo na sua opção irreversível pela ignorância presunçosa. Mas é isso o que vem acontecendo. Um exemplo recente foi a entrevista de um ministro do a um apresentador de que tem fama de culto, durante a qual S. Excia., com a manifesta aprovação do entrevistador, proclamou que os grandes poetas são todos de esquerda, que o conservadorismo é incompatível com a arte, e apontou como exceção quase inexplicável o caso de Ezra Pound. Bons tempos, aqueles em que só o dr. Emir Sader tinha a cara-de-pau de dizer essas coisas. Agora elas estão praticamente o�cializadas. Os nomes de William Butler Yeats, T. S. Eliot, Guillaume Apollinaire, Karl Kraus, Paul Claudel, Boris Pasternak, Miguel de Unamuno, Hugo von Hoffmansthal, Stefan George, Rainer Maria Rilke, Saint-John- Perse, George Trakl, Konstantinos Kavaphis, Robert Penn Warren, Jorge Luís Borges, Giuseppe Ungaretti, Jules Supervielle, Eugenio Montale, Fernando Pessoa, Manuel Bandeira, decerto, não dizem nada ao sr. ministro. São quatro quintos da grande poesia do século . O recuo conservador dos poetas numa época de “progressismo” grosseiro é fato universalmente reconhecido pelos historiadores, mas a “cultura nacional” vive num mundo à parte. Também não perturbou a certeza do entrevistado o fato de que Pound não fosse um conservador, mas um agitador fascista, autor de discursos anticapitalistas ainda mais virulentos que os do Fórum Social Mundial. *** Nunca escrevi que o sr. Frei Betto me perseguia, mas que sondava meu endereço pelas minhas costas. Também não “insinuei”, mas a�rmei, e rea�rmo, que os sites pornográ�cos com o nome dele continuavam no ar. Na resposta que enviou a O Globo, ele resmunga, mas, é claro, não desmente nada. O Globo, 11 de setembro de 2004 A Em artigo recém-publicado no Wall Street Journal, Mary Anastasia O’Grady alerta que a China está preenchendo o vazio deixado na América Latina pela política do Departamento de Estado. Herança mórbida de Bill Clinton que George W. Bush largou inalterada para concentrar-se nos problemas do Oriente Médio, essa política consiste de: (1) apoio às intromissões do na política econômica local, as quais colocam os americanos numa posição antipática sem lhes trazer benefício nenhum; (2) “combate às drogas” por meio de uma estratégia suicida que só bene�cia as e os cocaleros; (3) ajuda maciça a ’s esquerdistas empenhadas em fazer a caveira dos militares; (4) ingênua complacência ante valentões tipo Hugo Chávez. Desde o início esse cardápio parecia mesmo planejado para favorecer a ascensão do esquerdismo e abrir as portas da às ambições chinesas. Nada mais natural, já que a esquerda aí ama Bill Clinton de paixão e o governo da China o ajudou com dinheiro em campanhas eleitorais. Mas, se a arraigada boa-fé dos eleitores americanos os impediu de atinar com a lógica perversa por trás do esquema, hoje as conseqüências da aplicação dele são tão vistosas quanto a onda continental de antiamericanismo que as manifesta e as dissimula. (Sobretudo dissimula: pois quem poderia suspeitar que a esquerda triunfante deve seus louros ao governo americano, justamente no momento em que mais esbraveja contra ele da boca para fora?). A sra. O’Grady observa que aqueles quatro pontos não correspondem em nada às convicções do atual presidente — o qual, com certeza, há de suprimi-los tão logo um segundo mandato lhe dê forças para isso. A ascensão das esquerdas na América Latina é um epifenômeno: uma aparência super�cial gerada por um fato mais discreto e mais profundo, originado nos . Suprimido o fato, a aparência se desfará por si própria, como uma bolha de sabão. E os que apostaram nela �carão, uma vez mais, com cara de tacho. Daí o sentimento de urgência apocalíptica, a agitação obscena da torcida latino-americana pró-Kerry. Agitação inútil: o candidato democrata enrola-se cada vez mais em tentativas de manchar a reputação de Bush, que retornam sobre a sua pessoa com força multiplicada. Foi ele quem, ao fazer-se de herói de guerra e depreciar o adversário como soldado relapso, chamou para fora do armário o esquadrão de esqueletos que agora, com uniformes da Marinha, vêm assombrá-lo em pesadelos. Foi ele quem, apelando ao expediente sujo das imputações criminais, se expôs ao risco de investigações que ameaçam trazer à luz a sua participação num complô de homicídio. Resultado: segundo a Gallup e a Zogby, que sabem mais do que a mídia brasileira, ele tem 42% das intenções de voto, contra os 55% de Bush. O problema da candidatura Kerry é John Kerry. É preciso alguém estar mesmo muito desesperado, para chegar a apostar tudo num clone geneticamente defeituoso de Bill Clinton. *** Com Das casernas à redação: a era de turbulências, publicado esta semana pela Editora UniverCidade, Paulo Mercadante nos dá mais uma prova de seu talento para apreender a unidade de sentido por trás de acontecimentos heterogêneos. É, antes de tudo, a história de um grande jornal — este mesmo jornal em que tenho a honra de escrever —, contada com foco nos três personagens que lhe deram vida: Irineu, Roberto e Rogério Marinho. Mas O Globo não aparece aí apenas como empresa jornalística, e sim como expressão de um movimento político decisivo, o tenentismo, desde suas origens no começo do século até seu declínio na era Geisel. Não creio que algum dia a trajetória de uma publicação brasileira tenha sido delineada sobre um fundo histórico tão vasto, nem com uma visão tão aguda das ligações entre jornalismo, política e cultura. Sempre �co sem jeito para elogiar Paulo Mercadante, porque temo que a minha admiração ilimitada pareça devoção boboca. Mas como poderia a amizade que lhe tenho amortecer minha inteligência crítica, se tudo o que leio dele revigora essa inteligência mais do que qualquer outro produto da farmacopéia cultural brasileira? O Globo, 18 de setembro de 2004 D Z No último des�le de 7 de setembro, esposas de soldados e o�ciais ostentavam um cartaz com o aviso: “Militar é patriota, não idiota”. Aludiam ao aumento ridículo dado ao soldo de seus maridos, mas as palavras que usaram têm um sentido mais geral. Podem aplicar-se literalmente a outras atitudes o�ciais que têm como único fundamento possível a presunção da idiotice congênita dos homens de farda. O chefe da Secretaria Nacional dos Direitos Humanos, Nilmário Miranda, por exemplo, espera que eles acreditem na história contada pelo ex-soldado Valdete Batista, o qual diz ter enterrado no terreno da Polícia Federal em Brasília, por ordem de seus superiores, um maço de documentos que incriminam o Exército em delitos de tortura de presos políticos. O jornal Correio Braziliense endossa a narrativa, sem querer dar-se conta de dois detalhes: Primeiro, ela corresponde a um esquema repetível, �xo, que há dez anos é reeditado ciclicamente como novidade espetacular, trocando-se apenas o ator incumbido do papel de testemunha heróica, sempre um joão-ninguém que, após brilhar nas manchetes por umas semanas, volta à obscuridade banal como se nada tivesse acontecido. Segundo: exatamente como nos casos anteriores, a historieta apresenta logo de cara tantas contradições, que mesmo um fanático empenhado em fazer a caveira dos militares por todos os meios lícitos e ilícitos tem de caprichar bastante na performance para conseguir dar a impressão de que leva a coisa a sério. Já mencionei aqui uma acusação extravagante levantada pelo repórter Caco Barcelos contra o Exército, a qual,mesmo depois de provada a falsidade documental e até a impossibilidade física das alegações, ganhou dois prêmios jornalísticos, como se a impostura do conteúdo fosse detalhe inócuo na avaliação da qualidade de uma reportagem. Mas o caso Valdete não perde na comparação. Vejam só: 1) O soldado conta que entrou no Exército em 1981 (o jornal diz 1982, sem perceber que o desmente). Poucas semanas depois já tinha carteirinha da Polícia Federal e desempenhava nos serviços de repressão uma impressionante multiplicidade de tarefas: seguir suspeitos de subversão, tirar fotogra�as, redigir relatórios, pesquisar nos arquivos, vigiar os presos, bater neles e torturá-los. Saltando direto da �la do alistamento militar para as altas responsabilidades do serviço secreto, sem nenhum intervalo para treinamento, a carreira do personagem ilustra a memorável trans�guração do Recruta Zero em Agente 86. 2) Quando da debandada geral dos torturadores, já no governo Collor, o temível araponga, fotógrafo, burocrata, carcereiro e torturador interino foi, segundo diz, encarregado de queimar cinco sacos de lixo repletos de documentos incriminadores, mas “não deu tempo”. Na urgência, não dispondo de trinta segundos para acender uma fogueira, o engenhoso recruta preferiu cavar um fosso de um metro de profundidade por meio metro de largura, coisa que um cavouqueiro treinado não faria em menos de meia hora, e enterrar lá as provas do crime. 3) Se depois de duas décadas ele decidiu botar a boca no mundo, foi por motivos elevados, mas também sumamente práticos. De um lado, teve uma onda de escrúpulos retroativos, dando-se conta de que era muito feio bater em honestos pais de família que só queriam o bem do país. De outro lado, ele explica que estava mesmo na pior, morando de favor, e resolveu contar tudo para ver se com isso obtinha — como direi? — algum. Não é uma história comovente? O dr. Nilmário, pelo menos, parece ter-se condoído ao ponto de não só acreditar nela mas esperar que os militares também acreditem. Se acreditassem, provavelmente repudiariam a instituição a que servem e passariam a colaborar com o programa da Secretaria: indenizar terroristas fracassados e demonizar as Forças Armadas que os impediram de realizar seus nobres ideais. Mas parece que essa esperança do secretário não vai se cumprir. As esposas dos militares, no des�le de 7 de setembro, já deram a ele uma resposta bem clara. Zero Hora, 19 de setembro de 2004 B, . O sr. Luís Inácio da Silva preside um país que mata três vezes mais gente por ano, em tempo de paz, do que os tiros e bombas mataram no Iraque desde o começo da guerra. Sua política econômica criou menos empregos para seus compatriotas do que o governo dos criou para os iraquianos. Seus programas sociais �zeram menos pelos brasileiros pobres do que os americanos �zeram pela melhoria das condições sociais num país inimigo. Contra o crime e a violência, suas vitórias são nulas, sobretudo se comparadas às dos americanos no Iraque. Hoje em dia é mais seguro andar pelas ruas de Bagdá do que no Rio de Janeiro, em São Paulo ou no Recife, pertinho da cidade natal do nosso presidente. Foi com essa folha de realizações que ele se sentiu investido de autoridade para ir à dar lições a George W. Bush. Não espanta que o aplauso dado à performance viesse sobretudo dos representantes daqueles países que prosperaram à custa da miséria e do terror implantados por Saddam Hussein. Essas pessoas �caram revoltadíssimas com o �m da mamata e, compreensivelmente, acusam os americanos de haver entrado no Iraque com um intuito que, na mais depreciativa das hipóteses, foi igual ao delas. Ironicamente, elas mesmas deram a esse intuito um rótulo infamante — “Trocar sangue por petróleo” —, sem perceber que carimbavam a própria testa. Quanto aos americanos, talvez também tenham trocado sangue por petróleo. Mas, mesmo omitindo que até agora nem um único dólar de petróleo iraquiano foi para o bolso deles, sendo tudo reinvestido em benefício do Iraque, ainda resta uma diferença: eles deram na troca o seu próprio sangue e o dos torcionários de Saddam. Franceses e alemães deram o de trezentos mil prisioneiros políticos iraquianos. Não derramaram uma só gota do seu próprio sangue nem investiram um único euro em programas sociais no Iraque. O presidente brasileiro foi aplaudido, sim, mas por uma assembléia de ladrões e espoliadores cínicos, tal como durante doze anos foi aplaudido, nas reuniões do Foro de São Paulo, por uma platéia de terroristas, narcotra�cantes e seqüestradores — o pessoal das , do chileno, do Movimento Revolucionário Tupac Amaru. Não direi que esse é o público que ele merece, mas, sem dúvida, é o que ele escolheu. Se perguntarem por que fez isso, direi que não teve alternativa: um pobretão do Terceiro Mundo, quando entra na política pelas mãos de patronos internacionais tão sujos quanto a Comunidade Européia, a , Fidel Castro e a Fundação Ford, tem de passar o resto da vida desempenhando o papel de palhaço para o qual o designaram. E o aspecto mais pitoresco desse papel é que, servindo de instrumento à implantação de uma tirania burocrática em escala global, o ator tem de representá-lo dando a impressão de que faz exatamente o contrário, isto é, de que luta pela soberania nacional e pela autodeterminação dos povos. Tem de proclamar aos quatro ventos, com ares de profunda e sincera emoção, aquilo que sabe ser o inverso da verdade. Isso dói, não dói? Provavelmente não é justo acusar o sr. Luís Inácio de bêbado. Mas eu, se estivesse no lugar dele, não �caria sóbrio um minuto sequer. Ninguém pode forçar tanto a consciência sem alguma anestesia. Fica pois aqui o meu conselho para o presidente: se o senhor não bebia, beba. Beba sem medo de ser feliz ao menos fora das horas de espetáculo. Não ligue para o Larry Rother. Ele não entende o seu problema. *** A universidade brasileira é inimiga inconciliável dos militares e colaboradora do establishment globalista na destruição das nossas Forças Armadas. Sua recusa de cumprir a lei que garante vaga a soldados e o�ciais transferidos é um ato de rebelião ao mesmo tempo criminoso e pueril, bem característico de uma instituição ridícula, cuja contribuição ao progresso do conhecimento é torrar dinheiro público para imbecilizar as novas gerações por meio de uma propaganda política abaixo de ginasiana. Mais uma vez me alegro de haver optado, na juventude, por levar minha vida de estudos bem longe desse templo da estupidez humana. O Globo, 25 de setembro de 2004 C Um amigo, vítima recente da bandidagem carioca, me escreve que a desordem reinante ultrapassou os limites do tolerável e que é preciso a população tomar alguma atitude, só restando saber qual. Enviei a ele a seguinte resposta: “A vida da sociedade, como a dos indivíduos, vai para onde vai o pensamento humano. ‘Tal como o pensardes, assim o será’, diz a Bíblia. Na sociedade, a função do pensamento corresponde aos intelectuais, aos formadores de opinião, à classe das pessoas que falam, escrevem, ensinam e moldam a mentalidade das gerações. No Brasil, há quarenta anos os intelectuais, in�uenciados pelo ‘marxismo cultural’, vêm inoculando nas classes dirigentes, nos legisladores, nas autoridades e na opinião pública a crença de que os bandidos são bons e a ordem legal é ruim. Eles sabem perfeitamente que não é assim, mas aprenderam que os delinqüentes são uma poderosa força corrosiva que deve ser usada para minar as instituições e abrir o caminho para o socialismo. Começaram por favorecer os bandidos na literatura e no cinema, depois nos jornais e nos noticiários de , nos debates públicos em geral, nas escolas e, por �m, nas leis. Leis que criminalizam a polícia e protegem os bandidos. Leis que desarmam os homens honestos e dão aos delinqüentes o monopólio do uso da força. É absolutamente impossível que, numa sociedade in�uenciada hegemonicamente por essas idéias, situações como a que você vivenciou não se tornem a experiência diária da populaçãoe que, nessas condições, a vida de todos não se torne um inferno. De todos, exceto os marginais e seus protetores, a classe dos intelectuais ativistas, cada vez mais poderosa, mais rodeada de prestígio, mais subsidiada pelo Estado e mais arrogante nas suas pretensões. E, justamente quando a vida se torna um inferno, esses charlatães ainda tiram novo proveito da situação, explicando tudo como produto de ‘causas sociais’ impessoais, e exigindo, na alegada intenção de corrigi-las, leis que tornem o cidadão ainda mais impotente e os bandidos ainda mais e�cientes. “A culpa única e exclusiva do presente estado de coisas cabe aos intelectuais ativistas. Quando ouvir um sociólogo, um professor, um artista, um jornalista ponti�cando sobre as causas sociais e econômicas da criminalidade, lançando as culpas sobre ‘a sociedade’, saiba que está diante do culpado em pessoa; diante de um criminoso ainda pior do que aqueles que, nas ruas, transformam em ação os pensamentos dele. Os apóstolos de ‘um mundo mais justo’, os adocicados pregadores de ‘uma sociedade mais fraterna’, são os gurus do crime. É contra eles que deve ser dirigido o esforço dos cidadãos honestos que não exigem uma sociedade paradisíaca, mas querem apenas sossego para trabalhar, liberdade para andar nas ruas, segurança para criar seus �lhos”. O que está dito aí não é novidade nenhuma. Todo mundo só hesita em admitir essas coisas porque a aposta nacional na idoneidade do beautiful people das artes e letras foi alta demais. Descobrir uma intenção perversa em tantas “pessoas maravilhosas” seria traumático. Por isso, sempre que queremos pôr ordem no galinheiro, a primeira idéia que nos ocorre é solicitar o parecer técnico da raposa. *** Mas não é só no Brasil que isso acontece. Em artigo recente, o jornalista Steven Plaut denuncia a diferença de tratamento dado pela mídia aos agitadores de direita e de esquerda israelenses. Enquanto os primeiros são mantidos sob vigilância cerrada, os segundos conservam seu status de cidadãos acima de qualquer suspeita, por mais que façam contra Israel. No último Yom Kippur, eles pintaram slogans obscenos e pró-terroristas na Grande Sinagoga de Jerusalém e divulgaram os lugares onde os virtuais assassinos políticos podem encontrar seus alvos prediletos, Sharon e Netanyahu. O episódio foi noticiado como mero “protesto” e não como crime. Se até o povo mais durão do universo fraqueja ante a chantagem moral esquerdista, por que nós, brasileiros, haveríamos de reagir melhor? Mas, lá como cá, um dia isso vai ter de acabar — ou com a demissão da raposa, ou com a morte da última galinha. O Globo, 2 de outubro de 2004 B Mais que ódio às Forças Armadas, o fuzuê criado pela associação dos reitores (Andifes) contra a garantia de vagas para os militares nas universidades denota o analfabetismo funcional de Suas Excelências. A lei que suscitou a indignação da entidade busca impedir que o militar estudante �que em desvantagem ante seus colegas civis, e que sofra essa injustiça em razão do próprio serviço que presta a um Estado investido do direito de mudá-lo constantemente de cidade. Um desequilíbrio constitutivo da condição de soldado é aí corrigido, restaurando a igualdade de oportunidades entre alunos de farda e à paisana, estes, aliás, quase sempre de classe mais rica. Interpretar isso como “privilégio” é inverter o sentido dos termos, da relação lógica entre eles e da realidade que lhes corresponde. Esse não é um ponto que dependa de opiniões, de valores, de escolha pessoal. É simples questão de compreender um texto — e isto parece estar acima da capacidade dos senhores reitores. Não o digo para atacá-los, mas para defendê-los. Excetuada a inépcia, a única hipótese restante para explicar sua atitude seria a incompreensão deliberada, maldosa, empenhada em torcer o sentido da lei para fomentar criminosamente o preconceito antimilitar e gerar uma crise institucional. Pois a Lei 9.536, de 1997, oferece a mesma garantia aos militares e aos funcionários civis, mas a Andifes protesta exclusivamente contra sua aplicação àqueles, não a estes. É confusão ou malícia? Na primeira hipótese, aquela assembléia de sábios inverte o sentido da palavra “privilégio” simplesmente porque não o compreende. Na segunda, utiliza-se maquiavelicamente de uma inversão proposital para instigar as ambições de uma classe em detrimento da outra, esfregando as mãos de contentamento por haver conseguido explorar com astúcia as contradições de interesses dentro da estrutura do Estado. Ou os senhores reitores são muito burrinhos, ou são intrigantes revolucionários. Não sendo da minha natureza atribuir más intenções a ninguém, escolho resolutamente a primeira alternativa. Resta, é claro, a possibilidade de que haja nas suas cabeças um misto de ambos os componentes, mas aí sua psicologia já se torna complexa demais para ser analisada num artigo de jornal. Qualquer que seja o caso, a incapacidade é um fator presente, e por si já é grave o bastante. A inépcia da elite universitária é a causa mais imediata e geral dos males que acometem este país, e a complacência, se não afeição masoquista da sociedade para com essa classe de mentecaptos subsidiados já ultrapassou, de há muito, o limite de segurança para além do qual uma nação arrisca perder, junto com a consciência intelectual, a capacidade de sobrevivência. Mas a arrogância da Andifes contra as Forças Armadas torna-se ainda despropositada quando se sabe pelos resultados do Provão que, das instituições superiores de ensino, praticamente só as militares honram a educação brasileira. As outras — públicas e privadas — são em geral nada mais que tubos digestivos, onde por um lado entra o dinheiro do povo em impostos ou mensalidades, pelo outro sai anualmente uma enxurrada de incapazes. Excetuadas as glórias da nossa engenharia aeronáutica, mérito de militares, a contribuição dos universitários brasileiros ao progresso do conhecimento humano é praticamente nula. Imensurável, em contrapartida, é sua contribuição ao incremento do ódio revolucionário e da crença messiânica no futuro da estupidez socialista. Os dois fatores estão interligados: a demagogia esquerdista, Ersatz consagrado dos estudos sérios, é uma via preferencial para subir na vida sem fazer força, com a ajuda do corporativismo predatório e de interesses partidários infames. “Tolerância zero” para com a impostura acadêmica é a condição prévia para qualquer esperança de um Brasil melhor. É insensato pretender que um povo possa primeiro resolver seus problemas para só depois tratar de aprender o que tem de aprender. *** .. – A liminar concedida quinta-feira pelo juiz federal Aroldo José Washington, da 4ª Vara Federal Cível de São Paulo, em favor das pretensões da Andifes, suspendeu apenas o parecer da Advocacia Geral da União que garantia as vagas para os militares, mas não a lei nº 9.536, fundamento dessa garantia, que continua em vigor. Zero Hora, 3 de outubro de 2004 F Quanto à in�uência da �loso�a universitária francesa no Brasil, pouparemos ao leitor a descrição dos efeitos da macaqueação de um modelo degenerado. — Jean-Yves Béziau A , Associação Nacional de Pós-Graduação em Filoso�a, vai realizar de 12 a 22 de outubro, em Salvador/, o seu Encontro Nacional de Filoso�a. Se eu fosse um saudosista doente, iria correndo me inscrever, para ter acesso às últimas descobertas do pensamento brasileiro... da década de 60. Lendo o programa, tenho a nítida sensação de estar de volta aos tempos da Rua Maria Antônia, quando a estrela de Sartre ainda brilhava, Deleuze e Foucault surgiam como esquisitices sedutoras e o pessimismo corrosivo da Escola de Frankfurt parecia o último recurso para salvar in extremis a reputação declinante do marxismo europeu. A releitura de Platão e dos pré-socráticos com os olhos de Nietzsche e Heidegger enobrecia com um verniz de erudição clássica a esperança de harmonizar o legado grego com um niilismo que, apolítico ou mesmo um tanto reacionário em si, era útilde algum modo ao propósito frankfurteano de demolir a civilização do Ocidente. Alguma atenção periférica sobrava para os últimos rebentos da escola analítica, incumbidos de corroer as resistências espirituais do inimigo desde dentro do seu próprio campo. E não faltavam as homenagens de praxe a Descartes e a Kant por terem criado, ainda que involuntariamente, as condições culturais para o restante da brincadeira. No conjunto, o Partido Comunista orquestrava tudo, hábil na arte gramsciana de aproveitar para �ns hegemônicos a variedade de correntes de ação e pensamento mesmo apenas vagamente compatíveis com esse �m. À margem do processo, os católicos ainda não conquistados para o teilhardismo ou para o culto dominicano de Che Guevara entoavam suas litanias habituais ao tomismo diet de Maritain, só interrompidos pelo retorno de Tarcísio Padilha que trazia da França sua tese sobre a ontologia de Louis Lavelle, uma lufada de ar logo dispersa na mesmice geral. Os esquisitões e incatalogáveis — Vilém Flusser, Renato Cirell Czerna, Romano Galeffi — prosseguiam sua batalha inglória, amontoados na trincheira do Instituto Brasileiro de Filoso�a, aberta por Miguel Reale para dar espaço a estilos de �loso�a rejeitados numa universidade que marginalizava seu próprio reitor. O grosso da corrente seguia o molde uspiano. Em 1968, morria, ignorado pela totalidade dos pigmeus, o único autêntico gigante da �loso�a brasileira, Mário Ferreira dos Santos. Desde então, nada mudou. O Partido — ou pelo menos seu nome — desapareceu, mas a orientação que imprimiu aos estudos �losó�cos neste país continua �rme e inabalável, graças à obediência passiva das gerações subseqüentes, que nem sabem quem compôs a música que tocam. Dentre os trabalhos inscritos para o evento baiano, o marxismo domina amplamente o leque de temas, com 73 apresentações. Kant e Nietzsche vêm em seguida, com 56 e 53 respectivamente, logo acompanhados pelos desconstrucionistas, com 52. No quarto lugar, Heidegger (35) empata com Platão, ou melhor, com Platão lido por Heidegger. O restante distribui-se entre Freud, os clássicos, os analíticos e outros temas usuais. Aristóteles, que amargou trinta anos de exílio e voltou após o meu Aristóteles em nova perspectiva (publicado em 1996 e jamais citado nesses ambientes castos), é objeto de 26 comunicações. Hegel merece vinte, e Merleau-Ponty, o apologista de Stálin, dez. De tudo o que aconteceu na �loso�a mundial no último meio século, minutos preciosos são esfarelados com pensadores de importância episódica, como John Rawls, Robert Brandom ou Gianni Vattimo. Os �lósofos criadores mais poderosos das últimas seis décadas, Bernard Lonergan, Xavier Zubiri, Leo Strauss, Frithjof Schuon, Seyyed Hossein Nasr, Eric Voegelin, Ken Wilber, Wolfgang Smith, continuam perfeitamente ignorados, com as possíveis e meritórias exceções de uma comunicação sobre o pensamento iraniano, onde Nasr deve aparecer ao menos como referência, de outra sobre integração da consciência que talvez mencione Wilber e de uma terceira com o título altamente signi�cativo “A novidade da �loso�a de Xavier Zubiri”. Novidade que nos anos 50 já era objeto de longos estudos de Julián Marías. É um festival retrô em toda a linha. Mas, ali dentro, ninguém sabe disso. Garantidos pela autoridade de Dona Marilena Chauí, mentora do evento, os participantes acreditam estar na vanguarda dos tempos. As rodas da história mental, no Brasil, continuam girando com uma defasagem regulamentar de cinqüenta anos em relação ao mundo civilizado, mas quem vai se dar conta disso, se a percepção média acompanha o passo da elite acadêmica? O positivismo chegou aqui quando os ossos de Augusto Comte se esfarelavam. O marxismo, quando sua credibilidade sofria violentos abalos com a revelação do genocídio soviético. O estruturalismo-desconstrucionismo continua em voga, dez anos depois de o episódio Sokal ter evidenciado a charlatanice de seus próceres e vinte depois de Malcolm Bradbury os ter exposto ao ridículo na sátira My Quest for Mensonge, biogra�a do �lósofo inexistente Henri Mensonge, que, �delíssimo ao espírito da coisa, se desconstruíra a si mesmo, desaparecendo por completo desde antes do nascimento. Mas o apego dos brasileiros às suas antigas afeições é tanto, que chega a inverter a ordem dos tempos, como nos amores espíritas de além-túmulo. De quando em quando, ainda aparece algum jovem universitário, de dedo em riste, dizendo que sou um monstro antediluviano, que só chegarei à atualidade da evolução animal quando ler Les Mots et les Choses (1966). Assim caminha a brasilidade. Mas isso não abala a consciência de ninguém. De Cruz Costa a Paulo Arantes, a ortodoxia uspiana sempre trouxe consigo a autovacina contra constatações deprimentes, explicando a própria inépcia pelo subdesenvolvimento econômico (a�nal, quem �losofa sem uma boa conta bancária?) e este último é, claro, pela “teoria da dependência”. Logo, ninguém precisa se acusar de nada. É tudo culpa do George W. Bush. Folha de São Paulo, 6 de outubro 2004 M Os jornalistas brasileiros, com raríssimas exceções, guiam-se muito pela grande mídia dos , maciçamente pró-Kerry, acreditando ou �ngindo acreditar que assim estão bem informados. O New York Times, o Washington Post, a , a servem-lhes de gabarito para medir a importância dos fatos, a credibilidade das fontes, a in�uência de uma idéia, a reputação de um escritor, o valor de uma teoria. Enganam-se a si próprios e ao público. Nenhum jornal ou canal de americano desfruta de autoridade comparável à de seus similares brasileiros. Estes são poucos e dominam facilmente a opinião pública, criando e destruindo reis com a presteza do mago Merlin. A mídia regional é dependente deles ou desaparece na comparação. Nos , os meios de in�uenciar o povo estão muito mais repartidos. Nenhuma organização tem hegemonia, e a soma das grandes se retrai no confronto com a multiplicidade das pequenas. Jornalistas individuais, distribuindo seus artigos a centenas de jornais e estações de rádio do interior, podem ter platéias maiores que a de Ted Turner. Para vocês fazerem uma idéia, o New York Times vende em média 1.600.000 exemplares no domingo, 1.100.000 em dias de semana. A , no primeiro debate eleitoral, alcançou cinco milhões de telespectadores. Mas o radialista Rush Limbaugh, republicano roxo, é ouvido diariamente por 38 milhões de americanos. E a internet bagunçou tudo, na luta pela atenção pública. Hoje, mesmo a modesta agência de jornalismo eletrônico WorldNetDaily (www.wnd.com) mete medo nos maiorais. As sucessivas denúncias de fraudes jornalísticas mudaram toda a hierarquia de credibilidade. Passou o tempo em que o New York Times podia ocultar impunemente, durante sete anos, o genocídio pela fome na Ucrânia. Foi a iniciativa espontânea de milhares de internautas que estourou a farsa montada pela contra George W. Bush. Se não fosse por essas coisas, o sucesso local do presidente americano seria inexplicável, pois toda a grande mídia, com exceção da Fox, está contra ele. E o ódio que se despeja sobre ele de todos os quadrantes explica-se em parte pelo fato de que em muitos países os canais básicos de informação sobre os são os mesmos que chegam até aqui. O resultado é um descompasso total entre o que os americanos sabem de si mesmos e o que o restante do mundo — a começar pelo Brasil — imagina que eles pensam. Ninguém põe em dúvida que o destino da humanidade se decide nos . Seria ótimo se as províncias em torno tivessem uma idéia mais real do que se passa na capital do planeta. Mas, para isso, seria preciso perder a ilusão de que o prestígio internacional de um canal de mídia faz dele uma autoridade para os americanos. Enquanto essa ilusão não passa, �ca difícil para o pessoal da província entender, por exemplo, que John Kerry não é o representante de uma política mais bondosa em oposição ao “imperialismo” de George W. Bush, e sim o agente do imperialismo mais avassalador que já existiu, o de uma burocracia internacionalque dia após dia vai se autoconstituindo em governo do mundo sem a menor consulta às preferências da espécie humana. Todos os eleitores de Bush sabem disso, mas no Brasil a coisa ainda soa inverossímil como uma “teoria da conspiração”. Também não é segredo para aqueles eleitores, mas um tabu entre nós, o fato de que estão com Kerry e não com Bush, além da mídia chique, os interesses petrolíferos que lucraram com a ditadura de Saddam Hussein, as megacorporações que subsidiam movimentos de esquerda no Terceiro Mundo, os bancos internacionais que sustentam a falsa prosperidade chinesa e as organizações narcotra�cantes ansiosas para tornar-se legalmente um comércio monopolístico global. Ainda mais impensável parece aqui a idéia de que entre esse gigantesco esquema de poder e o terrorismo islâmico possa haver alguma ligação. Por isso, quando se revela que a emprega gente do Hamas, ou que funcionários desse organismo foram presos em Israel por envolvimento direto com grupos terroristas, o brasileiro reage com a típica autodefesa caipira: faz de conta que não viu nada. O Globo, 9 de outubro de 2004 O B As pesquisas de opinião mostram que, se as eleições americanas fossem no Brasil, John Kerry obteria quase 100% dos votos, mas, se fossem no Iraque, Bush venceria sem di�culdade. A conclusão é óbvia: os pobres iraquianos estão sendo manipulados por uma sórdida campanha de publicidade. Que bom viver no Brasil, onde a mídia é honesta e equilibrada. Vejam vocês: todos os cinemas brasileiros que exibiram o �lme de Michael Moore contra George W. Bush projetaram também o documentário dos veteranos de guerra contra John Kerry. Nas livrarias, encontram-se, em número igual, reportagens investigativas, con�áveis ou não, com mirabolantes histórias secretas dos dois candidatos. Nos comentários de , cada palavra dita contra Bush é contrabalançada por uma contra Kerry. Se os brasileiros optaram por Kerry, foi portanto com plena consciência. Eles não foram privados de nenhuma informação essencial que pudesse afetar suas preferências. Ninguém neste país ignora, por exemplo, que um dos principais agentes �nanceiros da campanha de Kerry, o banqueiro iraniano Hassan Nemazee, tem altos negócios com o governo de Teerã. Nem que Kerry, portanto, tem boas razões para proclamar que o melhor a fazer com os aiatolás é abastecê-los de combustível nuclear americano, mesmo depois de o presidente do Irã anunciar que em quatro meses seu país terá uma bomba atômica. Nenhum brasileiro foi privado de acesso à con�ssão do ex- comandante do serviço secreto romeno, Ion Mihai Pacepa, de que as declarações de Kerry ante o Senado, em 12 de abril de 1971, nas quais ele acusou os soldados americanos de cortar a esmo orelhas, pernas e cabeças de civis no Vietnã, se originaram em desinformação plantada pelo próprio Pacepa entre as organizações “paci�stas” da época. Nenhum brasileiro foi impedido de ouvir a entrevista do médico militar que tratou de Kerry no Vietnã, segundo o qual as famosas feridas de guerra que deram uma condecoração ao herói foram curadas com um simples band-aid. Nenhum brasileiro foi mantido na ignorância de que Teresa Heinz Kerry subsidia 57 movimentos radicais, muitos deles ligados a organizações terroristas islâmicas. Nenhum brasileiro deixou de saber que George Soros, o mega�nanciador de Kerry, não é só um empresário subitamente interessado em política, mas um tarimbado orquestrador de golpes e revoluções. Nenhum brasileiro desconhece que a campanha mundial anti-Bush é dirigida pelos mesmos interesses petrolíferos que se alimentaram da ditadura sangrenta de Saddam Hussein. Nenhum brasileiro deixou de ser informado de que, dos virtuais eleitores de Kerry, só 40% gostam dele; o restante votaria em qualquer coisa que fosse contra Bush. Nenhum brasileiro �cou sem saber que a justiça americana descobriu uma inundação de títulos eleitorais falsos, espalhados pelo Partido Democrata. Todas essas notícias foram amplamente divulgadas e comentadas, com exemplar idoneidade, pela mídia nacional. Mas como não haveria de ser assim? Por que o nosso jornalismo seria menos isento e objetivo com as eleições americanas de 2004 do que o foi com as brasileiras de 2002? Por acaso algum brasileiro votou sem saber que participava de uma encenação destinada a reduzir o leque das opções políticas à escolha entre variados tipos de socialismo? Alguém votou sem saber das ligações políticas de pelo menos três dos partidos concorrentes com organizações de terroristas, narcotra�cantes e seqüestradores no quadro do Foro de São Paulo? É claro que não. O país, informadíssimo, votou consciente, na eleição proclamada pela mídia “a mais transparente da nossa história”. É com semelhante conhecimento de causa que ele agora, quase unanimemente, torce por John Kerry. O melhor do Brasil são mesmo os brasileiros. Principalmente os jornalistas. *** Terça-feira, dia 19, às 18h, no Teatro da Cidade (Av. Epitácio Pessoa, 1664), Paulo Mercadante fará o lançamento de seu livro Das casernas à redação. É a história deste jornal — a melhor história que já se escreveu de um jornal brasileiro. O Globo, 16 de outubro de 2004 Q Toda �loso�a nasce de um impulso originário — infantil, se quiserem — de entender a realidade da experiência. Mas, entre esse impulso e a “�loso�a” como atividade curricular acadêmica, a distância é às vezes tão grande que ele desaparece por completo. As desculpas para isso são sempre as mais respeitáveis. Antes de responder às perguntas da infância é preciso adquirir os instrumentos intelectuais do saber adulto, o que inclui o estudo das obras dos �lósofos; este estudo supõe o domínio da interpretação de textos; e a interpretação de textos pode ser tão interessante que se torna um pólo de atração independente. Eis-nos então nos píncaros do saber �losó�co acadêmico, ao menos no sentido franco-uspiano do termo, e imunizados para sempre às perguntas que nos levaram, pela primeira vez, ao estudo da �loso�a. Na dos anos 60, que não parece ter mudado muito desde então, qualquer tentativa de enfrentar essas perguntas em vez de ocupar-se da nobre tarefa da análise de textos era desprezada como amadorismo, beletrismo, ensaísmo. Quando o prof. José Arthur Gianotti, no auge da sua maturidade intelectual, de�ne a �loso�a como uma ocupação com textos, ele não faz senão expressar sua experiência de algo que, no ambiente da sua formação, recebia o nome de “�loso�a”, mas que jamais seria reconhecido como tal por Sócrates e Platão. Platão — ou Sócrates — mostrava um caminho para a �loso�a que jamais poderia ser encontrado num texto. Ele falava de uma anamnesis, de um mergulho na memória pessoal em busca do instante do nascimento da consciência �losó�ca. A consciência �losó�ca era a antevisão das formas universais eternas. Essas formas transcendiam in�nitamente a esfera da experiência corporal, portanto também da memória sensível, mas, em algum momento esquecido do tempo, haviam se entremostrado nela e despertado, na alma do indivíduo carnal, a aspiração do Bem supremo. No curso posterior da vida, a maioria dos homens se esquecia desse momento para sempre. Em outros, a ocultação era parcial. Se o objeto experienciado desaparecia da consciência, a aspiração a que ele dera nascimento permanecia viva. Viva, mas buscando satisfação a esmo em objetos impróprios, errando entre símbolos e simulacros até atinar — ou não — com o caminho de volta. O encontro do aprendiz com o �lósofo maduro era um momento decisivo dessa busca. O �lósofo atraía os discípulos porque algo, nele, evocava o Bem supremo. O �lósofo era um símbolo. O discípulo podia agarrar-se a ele como a qualquer outro símbolo, adorando-o ao ponto de desejar possuí-lo carnalmente. É o que Alcebíades, após a noitada do Banquete, confessa a Sócrates. Mas Sócrates lhe explica que ele está buscando na direção errada. O que move a alma do discípulo é o desejo de um bem espiritual esquecido, que a carne de Sócrates não pode satisfazer. O �lósofo é um símbolodo Bem e não o próprio Bem. Nesse sentido, ele não é diferente de qualquer outro símbolo. Mas ele não é apenas símbolo. Ele não se limita a representar exteriormente o Bem, como a beleza material o representa sem saber o que faz. Ele é um registro consciente daquele Bem que ele próprio simboliza. Ele é o homem que realizou a anamnesis e descobriu na própria alma a abertura para o Bem. Por isso ele pode ensinar a Alcebíades o caminho de volta, mostrar que esse caminho não se encontra no corpo de Sócrates, e sim na alma de Alcebíades. Ele convida o discípulo à metanóia, ao giro da direção da atenção desde fora para dentro, desde a atualidade dos sinais sensíveis para a escuridão da memória, em cujo fundo brilha, escondida, a recordação da abertura primordial para a experiência do Bem e das formas eternas. A análise in�ndável de textos é uma longa deleitação viciosa no corpo dos símbolos, um derivativo carnal que afasta para sempre da recordação do Bem ao mesmo tempo que crê piamente “fazer �loso�a”. Foi isso que ensinaram ao prof. Gianotti com o nome de “�loso�a”. Mas não era isso o que Sócrates e Platão ensinavam. Zero Hora, 17 de outubro de 2004 É Desta vez a farsa durou pouco. Mas terá o leitor reparado na pressa obscena com que a quase totalidade da grande mídia nacional, de posse de umas fotos bem duvidosas, saiu alardeando mais uma de suas rotineiras vitórias morais sobre uma direita militar já praticamente extinta? Terá notado que o enredo do espetáculo corresponde ponto por ponto a um script repetível, periodicamente reencenado ante todos os holofotes, para a glória dos mártires esquerdistas e a desonra dos homens de farda? Há sempre um ex-cabo, ex-soldado, ex-agente que aparece do nada, com revelações estapafúrdias e contraditórias, vendidas ao público como verdades auto-evidentes e aterradoras. Passadas umas semanas, nada se prova, é claro, mas a reputação das Forças Armadas sai um pouco mais suja. Nos dois casos imediatamente anteriores, um morto despertava para frear um carro, escapando ao constrangimento de morrer duas vezes, e um agente especial, em fuga das investigações de tortura, não dispondo de cinco minutos para obedecer à ordem de queimar documentos comprometedores, passava horas cavando um buraco para escondê-los... O grotesco da invencionice não tem limites. Mas quem ousará duvidar da autoridade moral dos campeões de tantas belas campanhas pela ética, pela paz, pelo desarmamento? Contra a inteligência do público, o jornalismo blefa — e ganha. O bom senso popular, retraído, cede lugar à credulidade servil que se rende ante a voz unânime dos bem-pensantes. Desta vez a farsa durou pouco. Mas quando serão tiradas a limpo as anteriores? Resposta: quando a verdade dos fatos se tornar mais importante que a celebração ritual da santidade esquerdista. O vexame desta semana apressará a mudança? Não creio. “Dar voz aos dois lados” é o mandamento mais banal da pro�ssão, mas ele não pode ser cumprido quando o objetivo é enaltecer um deles e humilhar o outro. Esse objetivo tornou-se cláusula pétrea do jornalismo nacional. Rompê-la é atrair o ódio de uma classe cuja solidariedade interna se identi�ca consubstancialmente à unidade histórica do ethos esquerdista. Nos combates da era militar, o placar das mortes foi bem equitativo. Os esquerdistas mataram duzentos e perderam trezentos. Se, respeitando as proporções, a memória jornalística publicasse duas fotos dos primeiros para cada três dos segundos, duas declarações dos familiares daqueles para cada três dos descendentes destes, a imagem pública dos acontecimentos seria bem diversa do que é. Mas, se os trezentos são pranteados a cada momento como heróis e mártires, os duzentos não merecem senão o silêncio cheio de desprezo que se consagra a um detalhe irrisório. É injusto, inumano e supremamente cínico. Se para cada três imagens de esquerdistas mortos saísse nos jornais ao menos uma do tenente Mendes Júnior, assassinado a coronhadas, amarrado, pelo valente Carlos Lamarca, ou de Márcio Toledo, militante “justiçado” sob acusação de deslealdade à causa, ninguém acreditaria na lenda de que a luta foi de bravos e leais idealistas contra torturadores covardes e cruéis. Pior. Se as vítimas da repressão fossem comparadas às do terrorismo, logo se tornaria visível uma diferença: as primeiras foram, todas, gente envolvida no con�ito. Entre as segundas houve um número considerável de civis inocentes, con�gurando a prática fria e persistente de um crime hediondo nem um pouco mais perdoável que o de tortura. Aí já não seria possível à nossa mídia — ou governo — continuar condenando da boca para fora os atos de terrorismo em Nova York ou Madri ao mesmo tempo que os louva quando voltados contra brasileiros. Se as ligações políticas dos terroristas fossem descritas com veracidade, todo mundo saberia que eles combatiam uma ditadura culpada de trezentas mortes, mas o faziam como cúmplices de outra ditadura, culpada de mais de cem mil. Por isso as comparações têm de ser evitadas. A função do jornalismo neste país é bem clara, e, com as honrosas exceções de sempre, ele a cumpre com notável diligência. Não se trata de retratar a realidade do mundo, mas de transformá-la. E é preciso começar pela transformação do passado. O Globo, 23 de outubro de 2004 R Um clássico é, por de�nição, um tesouro que nunca se esgota. Cada geração extrai dele o que precisa, e o que ela extrai não o diminui, mas se acrescenta a ele, aumentando ainda mais o seu valor para a geração seguinte. Não há talvez livro que tenha sido mais estudado ao longo dos tempos do que o Organon de Aristóteles. E não há outro que nas últimas décadas, 2.400 anos depois de publicado, tenha atraído tanto a atenção dos estudiosos de metodologia da ciência, principalmente nas áreas de biologia e física. Não é bem um livro, mas um conjunto de livros. Desde o século , todas as edições incluem nele os seguintes títulos: As categorias, Da interpretação, Analítica , Analítica , Tópicos e Refutações sofísticas. O conjunto não chega a quatrocentas páginas. Expliquei no meu estudo Aristóteles em nova perspectiva (Rio: Topbooks, 1998) por que acho que a Poética e a Retórica devem entrar também na lista, e logo no começo, imediatamente depois de Categorias e Da interpretação. A ordem certa da leitura �ca portanto assim: primeiro, Categorias e Da interpretação, que são investigações gerais sobre a estrutura do conhecimento e a compreensão da linguagem. Em seguida, a Poética e a Retórica, que investigam respectivamente a ação da palavra sobre a imaginação humana e sobre a ação social e política. Depois, os Tópicos e as Refutações sofísticas, que fazem o upgrade do mero pensamento imaginativo e persuasivo para a autêntica investigação da verdade. Por �m, as duas Analíticas, que expõem as condições do conhecimento cientí�co. Lido nessa ordem, o Organon é o manual prático mais e�ciente que já se escreveu para a transformação do bichinho fantasioso chamado homem numa criatura capaz de conhecer a verdade. A transição não é fácil, e o maior motivo de fracasso na tentativa é a passagem rápida demais para as formas cientí�cas e matematizáveis de pensamento, sem o exame su�cientemente demorado da linguagem imaginativa e “irracional” do poeta e do político. “Se o homem não fosse animal fantástico, não seria também animal lógico”, dizia Benedetto Croce. Aristóteles ensinava que o discurso dos poetas age não somente na alma, mas no corpo dos ouvintes, por suas propriedades musicais que acrescentam ao sentido explícito das palavras uma forte incitação emocional e onírica na qual reside, por vezes, todo o valor desse signi�cado. A poesia, neste sentido, está bem próxima da percepção sensível. Todo conhecimento, segundo Aristóteles, sobe das percepções ao pensamento abstrato, através de uma série de mediações operadas na memória e na fantasia. É, pois, uma ingenuidade supor que as idéias abstratas da ciência e da �loso�a estejam isentas dessa carga fantástica.Elas a carregam dentro de si, e só a consciência desse resíduo, continuamente aprimorada por novos exames críticos pode garantir que o �lósofo e o cientista sabem realmente do que estão falando. Uma segunda camada de transformações do material percebido ocorre no nível da vontade e das escolhas morais, que é abrangido pelo discurso retórico. Tudo o que se escreveu nos dois últimos séculos sobre o fenômeno do viés ideológico em discursos intencionadamente neutros vale menos do que uma boa releitura das páginas da Retórica sobre a psicologia dos vários tipos de públicos e a tendência de cada um a interpretar o que ouve segundo seus desejos e expectativas. Os discursos poético e retórico formam a atmosfera verbal da sociedade, onde valores, símbolos, estereótipos e crenças circulam pelas almas e se impregnam profundamente nas consciências. É em cima desse material que começa o trabalho do �lósofo. Esse trabalho assume a forma da problematização dialética. Ele classi�ca as idéias correntes, discerne os vários sentidos implícitos e transforma a confusa tagarelice da sociedade num conjunto de hipóteses explícitas que possam ser objeto de análise crítica e veri�cação. É só deste nível para cima que se pode falar de uma “verdade”. Só então é que vêm propriamente os problemas da expressão cientí�ca, objeto das duas Analíticas. O Organon de Aristóteles, que a cultura de almanaque imagina tratar apenas da lógica formal, abrange todas as formas da racionalidade humana, desde o sonho até as equações. Não conheço outro meio mais e�caz de educação da mente do que um longo mergulho nas páginas do Organon. (artigo não publicado) A Em janeiro de 1976, o jornal do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, Unidade, publicou uma edição especial com o abaixo-assinado no qual 467 membros da classe, contestando a versão o�cial da morte de Vladimir Herzog, exigiam da Justiça Militar uma nova investigação. O documento pode ser visto no site http://www.partes.com.br/memoria08.html. Meu nome não somente está na lista de signatários, mas é também o de um dos responsáveis por aquela edição, o mais ousado protesto coletivo até então realizado pelos jornalistas contra o regime imperante. Minha posição no caso foi clara e inequívoca. Nessas condições, não posso senão concordar com Milton Coelho da Graça quando diz que anistia não é esquecimento, que a verdade histórica não deve ser sufocada sob o pretexto de não reabrir feridas. Apenas observo que é indecente querer reabrir só uma parte da verdade para encobrir as restantes sob o fulgor hipnótico de revelações unilaterais. Ora, isso é precisamente o que a nossa mídia vem propondo. A rapidez com que tantos comentaristas celebraram como “prova de�nitiva” a publicação das fotos do suposto Vladimir Herzog só foi superada pela presteza com que, falhada a operação, anunciaram que a�nal não tinha a menor importância saber se as imagens eram ou não do jornalista. O importante, sim, era dobrar a espinha das Forças Armadas, e este objetivo tinha sido plenamente alcançado. Parabenizado de início como revelador da verdade, o Correio Braziliense pareceu ter ainda mais méritos como cúmplice consciente ou inconsciente de uma fraude bem-sucedida. A avaliação dos fatos é a medula do jornalismo. Se um acontecimento é da maior importância quando suja a reputação dos nossos inimigos mas se torna repentinamente irrelevante quando ameaça enlamear a nossa, o critério subentendido nesse julgamento é o do maquiavelismo político, não o da honestidade. O tal cabo Firmino, por exemplo, aparece do nada trazendo provas falsas. Revelada a treta, como continuar acreditando que ele trabalhou para os serviços de segurança? Por que não investigar se, ao contrário, ele se in�ltrou no Exército a mando de organizações de esquerda, às quais continua servindo agora em novas e evidentes funções? Mais ainda, é óbvio que a verdadeira história dos “anos de chumbo” jamais poderá ser esclarecida sem a plena elucidação das conexões internacionais do terrorismo brasileiro. O sr. José Dirceu, por exemplo, foi o�cial da inteligência militar cubana, cúmplice direto de uma ditadura genocida que não matou menos de cem mil pessoas. Acreditar que �zesse isso por amor aos direitos humanos é abusar do direito à idiotice. Mas quantos outros brasileiros exerceram funções análogas, antes e depois do fracasso das guerrilhas? Quantos prisioneiros foram torturados e mortos nos cárceres de Havana, na época, com a amável complacência daqueles apóstolos do bem, protegidos de Fidel Castro? Podemos ter a certeza de que nenhum “desaparecido” jaz num cemitério clandestino de Havana, “justiçado” por traição à causa como Márcio Toledo? Quais as articulações da guerrilha brasileira com a , Organização de Solidariedade Latino- Americana, antecessora do Foro de São Paulo, e qual a ligação dela com os governos soviético e chinês que nas décadas de 60 e 70 �zeram pelo menos quatro milhões de vítimas em várias partes do mundo? É ridículo imaginar que a opacidade dos tempos passados possa ser removida sem a exaustiva investigação desses capítulos macabros. Mesmo episódios anteriores da história da esquerda só recentemente começam a ser esclarecidos. Nos Arquivos de Moscou, William Waack descobriu que Olga Benário não tinha sido uma pobre idealista punida por delito de consciência, mas a agente de um serviço secreto militar que, na mesma ocasião, colaborava intensamente com o governo nazista. Que é que o beautiful people esquerdista fez com essa informação? Tratou de escondê-la sob o brilho de uma �cção cinematográ�ca. Como acreditar que agora ele quer a verdade, nada mais que a verdade? A mim me parece que ele quer mesmo é agitar a lama para que ninguém enxergue o fundo do poço. O Globo, 30 de outubro de 2004 C Quando membros do nosso governo federal admitem que Bush na presidência dos é melhor para o Brasil do que Kerry, por ser menos protecionista, estão admitindo implicitamente que sabem muito mais do que isso: sabem qual dos dois representa o imperialismo globalista e qual a defesa de uma soberania nacional que ele ameaça tanto quanto à nossa. Na verdade, qualquer pessoa razoavelmente informada em relações internacionais sabe que Kerry — ou, de modo geral, o Partido Democrata — é o instrumento de um esquema de poder mundial encastelado na , na Comunidade Européia e nos grandes bancos internacionais. Outro braço desse esquema é a rede de partidos latino-americanos de esquerda, fortemente incentivados pelo Departamento de Estado, desde o governo Carter (um antepassado de Kerry), a demolir as Forças Armadas de seus respectivos países para torná-los cada vez mais vulneráveis às pressões internacionais do globalismo ecológico, dos movimentos indigenistas que planejam desmembrá-los em pequenas repúblicas “independentes” (isto é, agências da ), das burocracias internacionais que ditam legislações a povos inteiros que não as elegeram para isso, etc. etc. Bush, apoiado por grupos industriais mais voltados para o mercado interno e por organizações religiosas apegadas aos valores tradicionais da república americana, personi�ca a resistência da nação mais poderosa do mundo a um neo-imperialismo que, sugando desde dentro e minando desde fora as forças da adversária, se torna dia a dia mais poderoso que ela, e cujas ambições praticamente ilimitadas incluem a transferência da soberania americana para os organismos internacionais. Os homens do nosso governo estão bem conscientes disso, mas justamente por essa razão sabem que é preciso manter a massa na ignorância dessas coisas, canalizando seu sentimento nacionalista contra os para fazer dele um instrumento inconsciente a serviço da destruição dos valores que imagina defender. É preciso reconhecer que, na consecução desse intuito, vêm obtendo um sucesso espetacular. O eleitorado brasileiro está maciçamente persuadido de que os perigos para a nossa soberania vêm dos . Defendendo-se assim de um perigo inexistente, permanece cego (só paradar um exemplo entre muitos) ante a ocupação do território amazônico por uma rede de ’s associadas à e subsidiadas pelas mesmas grandes fontes internacionais que alimentam generosamente o Fórum Social Mundial, o e, de modo geral, todos os partidos brasileiros de esquerda (se é que ainda há algum que não seja de esquerda). Mesmo quando o no poder anuncia sua intenção de entregar faixas imensas da Amazônia à administração internacional, a mentalidade popular está tão hipnotizada por estereótipos, que continua achando que os grandes inimigos da pátria brasileira são George W. Bush e a “direita conservadora”. A mídia nacional, que bebe nas mesmas fontes (intelectualmente e economicamente), fez um trabalho incansável para deixar o povo brasileiro cego e sonso, incapaz de atinar com a origem de seus males. O senso de auto-identidade nacional constitui-se hoje de um sistema de inversões psicóticas criadas por um prodigioso maquiavelismo de esquerda, capaz de usar o ufanismo verde-amarelo como instrumento da capitulação de�nitiva da nacionalidade. Quando a inconsciência de um povo chegou a esse ponto, é praticamente impossível detê-lo na sua corrida entusiástica para a derrota, o fracasso e a humilhação. Não consigo contemplar esse estado de coisas sem recordar os versos que Antonio Machado consagrou à sua Espanha ao vê-la estonteada como cabra-cega no meio das manipulações internacionais que a precipitaram no suicídio coletivo da guerra civil: ...Fue un tiempo de mentira, de infamia. A España toda, la malherida España, de carnaval vestida nos la pusieron, pobre y escuálida y beoda, para que no acertara la mano con la herida. Zero Hora, 31 de outubro de 2004 A - Segundo a quase unanimidade da opinião brasileira, as eleições de hoje nos opõem o representante do império todo-poderoso ao porta-voz das nações pobres e oprimidas, John Kerry. Que a campanha deste último tenha consumido cinco vezes mais dinheiro que a daquele; que o candidato democrata tenha o apoio da grande mídia e, portanto, da elite �nanceira americana; que essa elite esteja mais profundamente ligada ao globalismo antiamericano da do que aos interesses do seu país; e que, por �m, George W. Bush seja o candidato preferido dos iraquianos cujos direitos o antibushismo internacional alega defender — são fatos que não alteram em nada aquela opinião, não só porque não é da índole nacional dar importância a fatos, mas porque a mídia local vem tratando de ocultá- los com uma constância e uma uniformidade admiráveis. É absurdo imaginar que, com artigos de duas laudas, eu possa suprir a falta nas nossas livrarias de centenas de obras essenciais sobre o assunto, dar milhares de notícias omitidas, contrabalançar o efeito do bombardeio midiático que impôs como verdade de evangelho uma visão meticulosamente invertida da realidade mundial. Mas sei que essa visão foi calculada para voltar contra bodes expiatórios a indignação que um povo bem-informado faria despencar sobre o único imperialismo genuíno existente no mundo, o dos mega- organismos burocráticos — , Comunidade Européia, , etc. — empenhados em impor-se como governo planetário e quebrar a espinha de todas as soberanias nacionais, a começar pela dos países mais capazes de lhe oferecer resistência: e Israel. O Brasil é hoje, entre as nações, talvez a mais obediente a esse esquema. De uns anos para cá, nossas leis, nossos planos econômicos, nossos programas de educação, nosso sistema de saúde, nossas políticas de defesa, nossos padrões de julgamento moral — ou suas traduções práticas respectivas, a criminalidade incontrolável, a pobreza invencível, a incultura prodigiosa dos nossos estudantes, a falência de nossos hospitais, o desmantelamento de nossas Forças Armadas, a imoralidade transbordante —, tudo vem pronto em receitas da burocracia internacional, despejadas sobre o nosso governo como decretos divinos. Nós tudo aceitamos sem discussão, com docilidade beócia, ao mesmo tempo que voltamos nosso ódio contra os alvos apontados à nossa execração pela mesma divindade. Maldizendo americanos e israelenses, batemos no peito com arroubos de ufanismo nacionalista no instante mesmo em que rastejamos de subserviência ante os novos donos do mundo. É patético. E é quase inacreditável. Se eu não estivesse vendo o fenômeno com meus próprios olhos, custaria a crer que um povo pudesse, em tão pouco tempo, ser induzido a um estado de inconsciência tão geral e profundo. Embriagado pelas artes publicitárias de um delinqüente chinfrim, esse povo votou em massa num partido ma�oso por acreditá-lo a epítome das virtudes morais e teologais. Poucos meses depois, desiludido com os santarrões, acredita ter-se livrado deles pelo simples fato de eleger candidatos de outros partidos de esquerda, sem saber que, comprometidos por alianças no quadro do Foro de São Paulo ou no mínimo pelo parentesco ideológico, esses partidos, no poder, jamais ousarão fazer qualquer dano substantivo à máquina de dominação petista. Alienado, estonteado, feito de cabra-cega, mantido na total ignorância da situação pela tagarelice uniforme da mídia, dos intelectuais ativistas e do beautiful people teatral e cinematográ�co, não há mentira em que esse povo não creia, não há tolice desastrosa em que não aposte a bolsa, a vida, a alma e o futuro. Se pudesse, ele faria a asneira �nal: votaria em John Kerry, cantando vitória contra o imperialismo no ato mesmo de dar o pescoço à coleira global. Se algo a comparação das campanhas eleitorais nos e no Brasil ensina, é que o poder da propaganda enganosa tem limites, quando confrontado com uma autêntica variedade de fontes de informação, mas é invencível quando exercido sobre um povo inculto, deixado à mercê de uma pequena elite falante vaidosa, manipuladora e convicta de sua própria infalibilidade. Lá, a informação sobre o imperialismo global da é abundante, ao menos em livros, na imprensa nanica e em programas de rádio. Aqui, é o silêncio total, confrontado à onipresença ruidosa da propaganda antiamericana e anti-Bush. Lá, a superioridade �nanceira da campanha Kerry não produziu senão resultados medíocres. Metade do eleitorado americano sabe quem é e para quem trabalha John Kerry. A totalidade da população brasileira o ignora, e por isso torce por ele. Mas como esperar que ela veja claro o problema dos americanos, se há anos não enxerga os seus próprios? *** Informações básicas: http://www.frontpagemag.com/Articles/ReadArticle.asp?ID=15755; http://www.wnd.com/news/article.asp?ARTICLE_ID=41194; http://www.aim.org/aim_column/2071_0_3_0_C/; http://iraqthemodel.blogspot.com/; http://www.renewamerica.us/columns/voigt/041004; http://www.stolenhonor.com/. Folha de São Paulo, 2 de novembro de 2004 P O brasileiro rico é hoje um sujeito que explica a sociedade pela luta de classes, odeia os , jura que a China é o futuro da humanidade, vota nos candidatos do Foro de São Paulo, contribui para o e sonha em ser convidado para ir a Cuba numa comitiva presidencial — mas, se lhe dizemos que há em tudo isso algo de comunista, lança-nos um olhar de desprezo desde o alto da sua in�nita superioridade. Às vezes tem um arroubo de piedade e nos explica paternalmente que a Guerra Fria acabou, que um brilhante futuro capitalista resultará das invasões de terras, do controle o�cial sobre os meios de comunicação, do Fórum Social Mundial e da doutrinação anticapitalista da juventude nas escolas. Se lhe perguntamos como se operará essa mágica, responde que somos fanáticos de direita, e vai para casa com a alma tranqüila de quem sabe tudo. Tão profunda é a impregnação dos chavões comunistas na mente das nossas classes altas, que elas já não os percebem como tais e os entendem como opiniões equilibradas, até um tanto conservadoras. E não encarariam com maus olhos a idéia de proibir toda contestação. Estão longe de imaginar quanto os comunistas as desprezam por deixar-se levar assim tão docilmente para a lata de lixoda História. *** O novo livro de Paulo Mercadante terá decerto o mesmo destino do anterior. A coerência das incertezas (É Realizações, 2003) não mereceu da nossa grande mídia a atenção de uma notinha, ainda que logo depois de lançado fosse objeto de um congresso acadêmico em Portugal. Mas como esperar que alguém no nosso jornalismo cultural estivesse habilitado a entender um livro que passa do gnosticismo à física quântica, dos simbolismos templários à �loso�a de Eric Voegelin? Das casernas à redação (UniverCidade–Topbooks, 2004) não exige tanta cabeça, mas é rejeitado por outro motivo. Conta a história de gerações de brasileiros que tinham honra e coragem, duas coisas que hoje em dia ofendem a delicada sensibilidade de muitos leitores. Para estes, não há virtude maior do que a covardia ilusoriamente oportunista, a acomodação aos estados de coisas mais aviltantes na esperança louca de lucrar com a própria degradação. Chamam maturidade e realismo a essa ética de trombadinhas, sem reparar que trombadinhas, em geral, morrem antes de amadurecer. Perto disso, os personagens de Das casernas à redação tornaram-se esquisitos e impensáveis como ’s. Como entender hoje um Siqueira Campos, um Juarez Távora, um Irineu Marinho, um Juracy Magalhães, um Cordeiro de Farias? Não tinham uma ideologia, um sistema, uma fórmula. Tinham um vago ideal sem tradução política concreta. Tinham sentimentos morais, e em nome deles jogavam pela janela interesses, cargos, comodidades, a vida mesma. Esses sentimentos saíram da moda, tornaram-se objeto de chacota, se não de escândalo. O que possa restar deles, mesmo entre os homens de farda, a cultura dominante trata de eliminar o mais rápido possível. O que se espera de um militar, hoje, é que seja um pequeno burocrata cabisbaixo e intimidado, colocando as veleidades do partido governante acima do Estado, da pátria, do próprio Deus. Seu mais alto dever moral é espalhar mentiras contra as Forças Armadas em troca de quinze minutos de aplauso dos bem-pensantes. Os heróis militares dos novos tempos são Sérgio Macaco e o cabo Firmino. Paulo Mercadante interrompe sua narrativa na era Geisel, marcada pela dissolução do ideal tenentista. Faz bem. Não vale a pena contar os capítulos seguintes. Mas, se alguém quiser escrevê-los, tenho uma sugestão de epígrafe. É de Antonio Machado: Cuán di�cil es cuando todo baja, no bajar también. *** Contra George W. Bush armou-se a maior campanha mundial de difamação que já se viu. Custou oceanos de dinheiro. Só a campanha de Kerry gastou cinco vezes mais que a do adversário. E quantos brasileiros não acreditam piamente que tudo isso foi uma convergência espontânea de idealismos sublimes, uma revolta dos pobres e oprimidos contra o poder dos tubarões imperialistas? Desisto de explicar o que se passa na cabeça dessa gente. A inconsciência não pode ser expressa em palavras. O Globo, 5 de novembro de 2004 F Recebi de amigos uma coleção de matérias antiamericanas e anti-Bush saídas na mídia nacional nos últimos meses. É um massacre total, de uma virulência insana, empreendido com o espírito do mais fanático unanimismo e absoluta exclusão da possibilidade de confronto, mesmo desigual, com argumentos discordantes. Não há mais como disfarçar: o jornalismo brasileiro na sua quase totalidade tornou-se propaganda assumida, manipulação cínica, ativismo político explícito. Não tenho a mínima pretensão de, com artiguinhos semanais de duas laudas, oferecer resistência e�caz à epidemia goebbelsiana. Limito-me a anotar algum exemplo mais simples, para estimular os leitores a buscar nas fontes estrangeiras as comparações que o jornalismo local lhes nega. Aqui vai mais um. A pesquisa do epidemiologista Les Roberts, segundo a qual a mortalidade no Iraque teve um acréscimo de 98 mil pessoas desde o começo da guerra, foi celebrada nesta parte do mundo como descoberta cientí�ca idônea, tanto mais insuspeita por ter emergido da Universidade Johns Hopkins (que um dos entusiastas da pesquisa chega a alardear como “conservadora”, embora conhecendo-a tão bem que grafa “Johns” sem o “s”) e publicada na respeitável revista médica Lancet. Jornalistas, professores e até acadêmicos de fardão, que deveriam ter um pouco mais de compostura intelectual, festejaram a notícia como a prova de�nitiva da maldade de George W. Bush. Como sempre acontece nesses foguetórios instantâneos, é tudo mentira grossa. No que diz respeito à credibilidade das fontes, a pesquisa foi feita em associação com a Universidade de al- Mustansiriya, uma das mais fanáticas do mundo islâmico. Les Roberts é mais conhecido como ativista radical do que como homem de ciência. E a Lancet, cujo prestígio vem sofrendo sucessivos abalos desde que confessou ter recebido dinheiro de um grupo de advogados para alardear falsamente que vacinas causavam autismo, acabou de liquidar seu restinho de credibilidade ao admitir que publicara a pesquisa de Roberts antecipadamente, saltando as consultas de praxe ao conselho de redação, com o propósito deliberado de in�uenciar as eleições americanas. Segundo o jornalista cientí�co Michael Fumento, a revista tornou-se, com isso, a “al-Jazeera do Tâmisa”. No conteúdo, a pesquisa está cheia de artimanhas metodológicas calculadas para produzir o resultado escandaloso. Na época em que a mídia pretendia culpar as sanções econômicas internacionais pela desgraça do Iraque, a mortalidade média alegada mundialmente, com base em dados da , era de oito para cada mil iraquianos por ano. Na tabulação de Roberts, essa média foi baixada para cinco, sem explicação, produzindo arti�cialmente a impressão de aumento anormal no período seguinte. Os resultados obtidos foram, mesmo assim, decepcionantemente elásticos: dada a precariedade das informações, colhidas de entrevistas com mil cidadãos iraquianos con�ados tão-somente na sua memória pessoal dos óbitos, o cálculo �nal das mortes ocorridas desde o início da guerra dava algo entre 8 mil e 194 mil. Não poderia haver incerteza maior. Como sair dessa? Roberts e sua equipe não hesitaram: tiraram a média e publicaram. Como observou o colunista Fred Kaplan na Slate, “isso não é uma estimativa: é um jogo de dardo-ao-alvo”. Um jornalismo decente teria dado espaço ao menos a algumas das objeções feitas à pesquisa, todas de ordem cientí�co-matemática, que saíram na mídia americana. Mas hoje em dia essa sugestão está excluída a priori como inaceitável provocação direitista. Quem há de querer cumprir a velha regra de “ouvir o outro lado”, sabendo que o outro lado é o lado direito? Para poupar os jornalistas brasileiros de semelhante humilhação, que sua consciência pro�ssional jamais lhes perdoaria, o leitor pode assumir o encargo de pesquisar por si mesmo. Eis algumas fontes: http://techcentralstation.com/110104H.html; http://www.weeklystandard.com/Content/Public/Articles/000/000/00 4/858gwbza.asp; http://www.stats.org/record.jsp?type=news&ID=481; http://www.slate.com/Default.aspx?id=2108887&; http://techcentralstation.com/102904J.html. O Globo, 13 de novembro de 2004 N Durante toda a campanha eleitoral americana, os conservadores acusaram John Kerry de ter tido encontros secretos com terroristas vietcongues. Tratada como invencionice pela grande mídia, a denúncia, de fato, não tinha provas. A única prova possível era um diário de guerra que o candidato democrata se recusava a divulgar, alegando ter passado os direitos autorais do texto a seu biógrafo Douglas Brinkely. Embora Brinkely informasse que não tinha direito autoral nenhum, o episódio foi dado por encerrado. Logo após as eleições, o documento apareceu �nalmente na Newsweek, trazendo a comprovação integral da denúncia. Se a notícia saísse apenas cinco dias antes, os votos de Kerry teriam encolhido muito. Quando um culpado de crime de alta traição é poupado até mesmo de danos à sua imagem eleitoral, é porque a lei e a própria segurança nacional já não signi�cam nada para os que querem colocar o traidor na presidência do seu país. Umúltimos. Mais recentemente, a dissolução do monolitismo partidário e a adoção da organização mais �exível em “redes” permitiram que esses mecanismos se tornassem ainda mais opressivos e e�cientes, já que não são aplicados por iniciativa de uma cúpula partidária identi�cável, mas se espalham entre os ativistas pela pressão anônima e “democrática” dos seus iguais e adquirem com isso aquela invisibilidade que os imuniza a toda crítica. O efeito psicológico disso na conduta dos ativistas é assustador: eles podem se sentir, com toda a sinceridade, uma minoria perseguida, injustiçada e ameaçada justamente no momento em que dominam tudo e têm os adversários subjugados a seus pés. A dupla moral in�a- se aí em inversão psicótica da realidade, produzindo declarações como esta do ator Antonio Abujamra à revista Top Magazine: “Pre�ro antes a censura da polícia do que a censura dos intelectuais. Intelectuais de direita são péssimos”. A realidade é que no tempo da ditadura os intelectuais de direita — um Adonias Filho, um Gilberto Freyre, um Antônio Olinto, um Roberto Marinho, um Júlio de Mesquita Filho, um Sobral Pinto, um Miguel Reale e tantos outros — se arriscaram para defender a liberdade de esquerdistas ameaçados, enquanto estes, saídos do porão para a glória, não apenas se esquivam de retribuir a amabilidade mas dão livre curso à urgência compulsiva de sufocar as vozes de seus adversários. O próprio Abujamra, se usasse de seu programa na para dar a um deles a oportunidade de se explicar, sentiria talvez a dor na consciência de quem houvesse, por fraqueza humana, traído um mandamento sagrado. Ao acusar os intelectuais de direita daquilo que nunca �zeram, daquilo precisamente que os intelectuais de esquerda fazem com eles, Abujamra está não apenas ilustrando em pessoa a dupla moral, mas pondo em prática um outro e complementar preceito da retórica leninista, que resume às mil maravilhas o tratamento que o ativista de esquerda deve dar aos inimigos: “Acuse-os daquilo que você faz, xingue-os daquilo que você é”. O Globo, 17 de janeiro de 2004 A Alguns leitores — poucos, mas enfezados — acharam ruim o que escrevi outro dia sobre a necessidade de cultivar primeiro o idioma, a religião e a alta cultura para só depois esperar razoavelmente um futuro de progresso e prosperidade. Viram nisso uma prova do meu elitismo cruel e desumano, do meu aristocrático desprezo pela sorte dos pobres e desvalidos. Contra a minha doutrina, citaram uma abundância de frases sapientes, desde o escolástico “primum vivere, deinde philosophari” até o grossíssimo Bertolt Brecht: “Primeiro o meu estômago, depois a vossa moral”. Muitas coisas podem ser respondidas a essas objeções. Desde logo, se é verdade que a luta pelo sustento vem antes e a educação depois — para raciocinar como os missivistas —, será preciso que os pais, em vez de mandar suas crianças à escola para que um dia venham a receber salários melhores que os deles, lhes recusem toda educação até que elas comprovem altos ganhos mediante a exibição do correspondente contracheque. Pode-se observar também que, ao contrário da educação tecno- cientí�ca e pro�ssional, sempre onerosa, os três itens que apontei como prioritários são os de aquisição mais barata que se pode imaginar. Há um livro que resume os três de uma vez, e que foi a base da educação de muitos grandes homens: a Bíblia. Quem a leia, por exemplo, na tradução do Pe. Antonio Pereira de Figueiredo, terá, juntos, a religião, os fundamentos da cultura ocidental e o idioma português num de seus momentos de maior esplendor. O meu caro Evando dos Santos, o pedreiro-educador que após espalhar bibliotecas pelo Brasil já está enviando livros até para as crianças de Angola, aprendeu a ler na Bíblia, já homem feito, e — creiam-me — ele não teria se saído nada melhor se entregasse sua formação aos cuidados do Ministério da Educação, dispendiosíssima excrescência burocrática que deveria ser amputada sem perdão. Eu próprio, meus amigos, só aprendi alguma coisa na vida porque me ocorreu, em tempo, a feliz idéia de virar as costas ao establishment educacional brasileiro e seguir por conta própria o programa de Mortimer J. Adler (How to Read a Book, hoje circulando em tradução de Luciano Trigo pela UniverCidade Editora), a auto-educação pela leitura analítica dos clássicos, que pude perfazer à base de um livro por mês, durante sete anos, com gasto bem inferior ao que faria numa dessas usinas de jumentalização em massa que o Estado chama “escolas”. Mas, a�nal, para que argumentar, se o próprio livro que recomendei já traz a resposta cabal a todas as objeções que me chegaram? Está em João, no trecho em que Jesus visita a casa de Lázaro: Tomando Maria uma libra de bálsamo de nardo puro, de grande preço, ungiu os pés de Jesus e enxugou-os com os seus cabelos. A casa encheu-se do perfume do bálsamo. Mas Judas Iscariotes, um dos seus discípulos, aquele que o havia de trair, disse: “Por que não se vendeu este bálsamo por trezentos denários e não se deu aos pobres?” (12, 3– 5). O perfume representa os estados espirituais mais elevados, que a alma alcança por meio da prece e da meditação mística, isto é, pelo uso da língua e da alta cultura como instrumentos da religião. O simbolismo dos cabelos e dos pés é auto-evidente: no ponto mais alto da sua ascensão, a criatura toca a parte inferior do mundo divino que desce em seu socorro sob a forma da misericórdia. O ser humano existe tão somente para buscar esse encontro, a “única coisa necessária”, à qual tudo o mais se segue por acréscimo. Nenhum povo jamais foi idiota o bastante para furtar-se a essa lei, achando que se enchesse primeiro os bolsos de dinheiro o Espírito Santo lhe seria dado por acréscimo. Nenhum povo? Bem, quase nenhum. Sei de pelo menos um que acredita exatamente nisso. Não direi qual, mas chamarei a atenção dos leitores para uma lição extra contida nesses versículos: eles nos informam, para além de qualquer dúvida razoável, quem foi o legítimo inventor da teologia da libertaçãoibertação. Judas foi o primeiro a subjugar os �ns espirituais às exigências do “social”, e ele teve muitos sucessores. Um deles está agora mesmo, no Palácio do Planalto, enchendo de minhocas a cabeça presidencial. O Globo, 24 de janeiro de 2004 O Um relatório da , datado de 2000 e recém-revelado pelo jornal El Tiempo, de Bogotá, mostra que antes de lançar o Plano Colômbia o governo Clinton já estava avisado de que esse programa, de 3,2 bilhões de dólares, não reduziria em nada a entrada de cocaína colombiana nos . O Plano esperava destruir de 50 a 80% das plantações de coca das regiões de Caquetá e Putumayo. O relatório a�rma: “Ainda que esses resultados conduzam a algumas mudanças no padrão do trá�co, não alterarão o negócio de forma signi�cativa”, produzindo apenas um aumento da importação de coca dos países vizinhos. Em entrevista dada em Bogotá domingo passado, o embaixador americano na Colômbia, William Wood, admitiu ao menos implicitamente que a previsão estava certa. Isso não quer dizer, evidentemente, que o Plano tenha sido inócuo. Ele produziu, ao menos, as tais “mudanças no padrão do trá�co”. De um lado, o crescimento da importação colombiana transformou virtualmente a América Latina inteira numa espécie de Colômbia. De outro, a proibição de politizar o combate às drogas por meio de um ataque voltado seletivamente contra a guerrilha acabou transformando as (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) na herdeira principal do patrimônio e das redes de distribuição deixadas pelo caminho por alguns cartéis, menos poderosos, cujos negócios foram arruinados pela destruição das plantações locais. Isso aconteceu porque nenhum cartel tinha nem poderia ter jamais uma rede de contatos internacionais comparável à das , investidas que estão do privilégio de negociar ao mesmo tempo por baixo e por cima do pano, na sua dupla e inseparável condição de organização criminosa e de movimento político legitimado por muitosdos principais tópicos da agenda Kerry era submeter os à jurisdição do Tribunal Penal Internacional, o instrumento mais devastador que já se inventou para suprimir toda veleidade de independência das nações. Não perguntem como é possível que um vasto esquema de poder mundial, empenhado num combate de vida e morte contra a soberania de um país forte após ter suprimido as de todos os fracos, seja apresentado como um front libertário dos pobres e coitadinhos em luta contra um “império”. A explicação é a mesma do episódio acima: mentira organizada, subsidiada pela maior arregimentação �nanceira de todos os tempos, que tem a seus pés a grande mídia e a seu serviço a totalidade da esquerda internacional. As conexões internas do esquema não são visíveis ao cidadão comum, mas algumas delas acabam se tornando impossíveis de esconder. Ninguém duvida, por exemplo, de que o , Council of Foreign Relations, é um destacado think tank do imperialismo global. Pois bem, quem representa essa entidade no Brasil? É o , Centro Brasileiro de Relações Internacionais, instituição que tem como presidente o sr. Fernando Henrique Cardoso e como conselheiro o sr. Marco Aurélio Garcia, um dos mais notórios mentores petistas da revolução comunista no continente. Separadas localmente por divergências oportunas, as forças personi�cadas por essas duas criaturas trabalham em perfeita harmonia no plano da estratégia global, colaborando gentilmente na implantação do Tribunal Penal Internacional, do desarmamento civil, do abortismo generalizado, do neo- -ecumenismo anticristão e de outras delícias do admirável mundo novo — o mundo de John Kerry. *** A mídia brasileira, com intensidade crescente nas últimas semanas, transborda de autoglori�cação comunista, acompanhada da garantia enfática de que nunca existiu nem existe agora nenhum comunismo em ação. Em 1964, os comunistas não mandavam no governo, não preparavam uma rebelião nos quartéis e Luís Carlos Prestes não havia recebido nenhuma ordem de Mikhail Suslov para de�agrar uma guerra civil. Hoje, não existe o Foro de São Paulo nem qualquer articulação –-Castro–Chávez. A narcoguerrilha colombiana não vende um único grama de cocaína neste país. Não há um só terrorista na Tríplice Fronteira. A divisão do bolo eleitoral entre comunistas e socialdemocratas, que anunciei com anos de antecedência, agora fato consumado, não é em hipótese alguma uma aplicação da estratégia leninista “das tesouras”. E, quando o povo, farto de petistas, coloca em lugar deles candidatos de outros partidos membros do Foro de São Paulo, sem ter a menor idéia de que apenas substituiu o lobo pela raposa na guarda do galinheiro, isso não é de maneira nenhuma o triunfo completo da hegemonia gramsciana, fundada na aliança da onipresença com a invisibilidade. Em suma: nada é o que é. Tudo é o que a mídia quer que seja. *** Não deixem de ler o livro de Percival Puggina, Cuba: A tragédia da utopia.14 Zero Hora, 14 de novembro de 2004 Q Meu livro O jardim das a�ições, uma história da idéia de império no Ocidente, terminava com o surgimento das ambições imperiais no seio da Revolução Americana e sua evolução subseqüente na forma de um con�ito estrutural entre expansão imperial e identidade nacional. O capítulo seguinte requereria todo um volume. Ninguém compreenderá jamais os se insistir em enfocá-los pelo estereótipo consagrado — ou cacoete mental — que enxerga todo imperialismo como um nacionalismo in�ado. O nacionalismo americano, fundado no ensinamento dos Founding Fathers, em que o mais arrojado espírito modernizante e o culto da independência individual convivem numa tensão criadora com um arraigado tradicionalismo cristão, é demasiado local e peculiar para poder servir de matriz a uma ideologia imperialista. Traduziu-se, com mais freqüência, num desejo de isolamento, empenhado em manter a síntese americana a salvo do contágio das epidemias ideológicas européias. A vertente imperialista, ao contrário, surge com uma mentalidade cosmopolita, mais novaiorquina do que americana, ligada a crenças progressistas e materialistas — pragmatismo, evolucionismo, neopositivismo — profundamente hostis ao fundo cultural cristão e, de fato, a todo autêntico espírito americano. Não é de espantar que, longe de fugir das ideologias revolucionárias, essa corrente se deixasse gostosamente contaminar por elas, seja no intuito de aproveitar-se delas, seja por descobrir a a�nidade profunda que aproximava delas as ambições do capitalismo monopolista através da concepção comum da “sociedade planejada”. A cumplicidade de muitas grandes fortunas americanas — Rockefeller ou Ford, para citar só as duas mais notórias — com o fascismo, o nazismo e o comunismo explica-se pela sua projeção futurológica que antevia, para além das convulsões temporárias geradas por esses movimentos, a utopia de um mundo uni�cado sob a égide do planejamento central global, para a qual, cada um a seu modo, todos eles concorriam. No plano interno, as megafortunas sempre apoiaram as políticas intervencionistas e estatizantes como o “New Deal” de Roosevelt e a “Grande Sociedade” de Lyndon Johnson. Na política externa, favoreceram a acomodação com o comunismo, sempre alegando razões de prudência mas sabendo perfeitamente que sacri�cavam os interesses nacionais americanos a objetivos globalistas de longo prazo. Episódios como o abandono da China aos comunistas, o boicote ao general MacArthur, a recusa de ajuda à revolução húngara, que pareceram na época erros monumentais, só foram erros desde o ponto de vista nacional americano. Mas, evidentemente, o objetivo dessas políticas transcendia in�nitamente o interesse americano. Foi só mais recentemente, no entanto, que a contradição entre esse interesse e o esquema imperialista global se tornou mais visível (embora ainda haja quem não queira vê-la). A contradição formula-se assim: é impossível criar desde os uma administração planetária sem que os próprios tenham de submeter-se a essa administração. Esse foi o ponto central da disputa Bush–Kerry. 70% das contribuições ao Partido Democrata vêm de grandes fortunas, o resto vem do povão; no Republicano é o inverso. Os democratas são portanto o partido da burocracia global, o partido da , de George Soros e do Tribunal Penal Internacional. Os republicanos representam o patriotismo, a tradição americana, o apego incondicional à soberania dos . O povo expressou isso dizendo que Bush personi�cava os “valores morais”. Por baixo do con�ito moral e cultural, a briga é mais feia: tratava-se — trata-se ainda — de decidir se os querem ser apenas o país mais poderoso, um primus inter pares, ou se querem dissolver sua identidade e abjurar de sua soberania em troca de um posto na administração planetária. A mídia brasileira, é claro, viu tudo invertido, caindo no engodo do imperialismo global travestido de antiimperialismo. Mas que importa a mídia brasileira? O mundo a ignora tanto quanto ela ignora o mundo. O Globo, 20 de novembro de 2004 S O novo best-seller de Bernard Goldberg, Arrogance: Rescuing America from the Media Elite (Warner, 2004), será tão ignorado no Brasil quanto o anterior, Bias: A cbs Insider Exposes How the Media Distort the News (Regnery, 2002). Será tão ignorado quanto os cento e tantos livros que documentaram, nos últimos anos, a transformação da mídia americana numa máquina de propaganda esquerdista. Uma diferença entre os e o Brasil é que lá esse assunto pode ser discutido, aqui não. A denúncia das repetidas mentiras do New York Times, da e do beautiful people de Hollywood gerou uma poderosa reação popular sob a forma da rede de blogs e programas de rádio que desmascararam o farsante Dan Rather, furaram o balão de Michael Moore e neutralizaram o efeito Soros na eleição presidencial. No Brasil, até mesmo os sites tipo media watch, que deveriam contrabalançar o esquerdismo dos jornais e da , são organizações esquerdistas subsidiadas por organismos internacionais, ’sgovernos, entre os quais os do Brasil, hoje dominado por amigos da guerrilha colombiana. Não existe um “Foro de São Paulo” dos criminosos comuns, mas existe um da bandidagem politizada. Se alguém podia ganhar algo com o Plano Colômbia, eram as . E ganharam. A sabia disso, avisou Clinton, e Clinton nem ligou. Os leitores têm aí uma pista para descobrir por que o ex-presidente americano, hoje fortemente rejeitado em seu próprio país, recebe tantos aplausos no Fórum Econômico de Davos, assim como na mídia européia e especialmente na brasileira. William Jefferson Clinton pode ser acusado de tudo, menos de ser pró-americano. A�nal, foi o homem que, eleito com verbas de propaganda de uma estatal pequinense, lançou o manto do silêncio protetor sobre a espionagem nuclear chinesa, forneceu armas nucleares ao governo de Pequim, fez tudo para ceder aos chineses o controle do Canal do Panamá, desmantelou a e cortou severamente as verbas militares americanas, ao mesmo tempo que a China in�ava desmesuradamente as suas e colaborava abertamente com as organizações terroristas que os combatiam. No ambiente de provincianismo mental brasileiro, a hipótese de que um presidente americano possa estar a serviço da esquerda internacional contra o país que o elegeu parece rebuscada demais, porque contrasta com os estereótipos residuais das décadas de 60–80, quando os nossos compatriotas ainda acompanhavam, pela mídia, as manobras do movimento comunista mundial. Desde então o assunto desapareceu dos nossos jornais, e como para o público bocó o que não está nos jornais não está no mundo, William J. Clinton, para ser odiado ou venerado, ainda posa ante a imaginação brasileira como a encarnação viva do americanismo triunfante. Zero Hora, 25 de janeiro de 2004 D A capacidade fundamental da inteligência humana, da qual dependem todas as outras, é o dom de discernir o essencial do acidental, o importante do irrelevante, o central do periférico. Esse discernimento consiste num feliz ajuste entre o foco da atenção e a estrutura do objeto considerado, seja ele uma coisa ou ente, um problema, uma a�rmação ou um estado de coisas. O homem inteligente vai direto ao nexo central que o objeto, por si mesmo, oferece à sua visão, enquanto o sonso ou negligente �ca saltando em vão de um ângulo a outro, ou, o que é pior, se apega ferozmente a certas perspectivas costumeiras, deformando o objeto para que se amolde a seus hábitos mentais e crendo apreender uma essência quando não capta senão uma ilusão autoprojetiva. Sem o discernimento do essencial, a inteligência humana não é propriamente inteligência, é apenas um sistema de reações adquiridas e cacoetes pavlovianos, não muito diferente do de um jacaré, galinha ou peru. O mais breve exame do desempenho nacional nos debates públicos, ao longo dos últimos anos, permite a�rmar sem grande margem de erro que a inteligência, em sentido estrito, desapareceu do cenário brasileiro visível, sendo substituída por uma espécie de cambalache verbal, o comércio de tolices convencionais e frivolidades pessoais. Não que os homens inteligentes tenham todos morrido. Mas estão fora dos debates públicos, seja porque não os suportam, seja porque sua presença ali não é suportada. Por vergonha ou por medo, recolheram-se às catacumbas. Chegamos àquele ponto de embotamento senil em que os sambinhas do sr. Ministro da Cultura ou as expressões de bom-mocismo do sr. Marco Maciel são aceitos como gêneros culturais de primeira necessidade. Talvez os senhores não percebam, mas isso já é estado de calamidade. O fenômeno tem múltiplas origens, mas uma delas me parece especialmente relevante. É que um povo, como um indivíduo, pode viver da dissimulação até um certo ponto. Ultrapassado o limite de risco, ela se torna um desvio estrutural do foco de atenção, uma incapacidade adquirida de enxergar as coisas como são, um sistema de defesas automático contra a verdade em qualquer de suas formas. Não é coincidência que o pináculo da estupidez geral seja alcançado ao mesmo tempo que o cume da hipocrisia e do �ngimento. Toda a conversação política nacional tornou-se pura dissimulação. Ninguém declara o que vê, todo mundo se empenha com devoção em atenuar, aparar e remoldar a descrição na esperança de, assim, modi�car as coisas. Temem que os males, se nomeados, adquiram força, e esperam exorcizá-los à custa de eufemismos, omissões, �oreios e lisonjas. Nessa hora, a última coisa de que o cidadão precisa é inteligência. Precisa, isto sim, do talento de �ngir-se de bobo com tal verossimilhança, que acabe se tornando bobo mesmo, sem dar pela transformação, acreditando que o estado �nal a que chega no processo é não apenas o seu estado natural de sempre, mas o estado natural, eterno e imutável da espécie humana. Então o homem que persiste no exercício da inteligência começa a parecer estranho, temível, indigno de con�ança ou, na melhor das hipóteses, maluco. Há dez anos, por exemplo, vejo repetir-se ciclicamente a onda dos expurgos na classe política, sem que ela se torne nem um pouco mais honesta por isso. O ritual é �xo e repetível até à náusea: primeiro um político petista acusa alguém de alguma coisa, segue-se um bombardeio de denúncias na mídia e por �m uma investigação em que, em regra,, se não prova nada, ao menos arruína de�nitivamente a reputação do elemento, de modo que este, se quer sobreviver politicamente ao episódio, deve retirar-se para a esfera provinciana ou dar provas cabais de docilidade ao partido dominante. Foi assim que todas as lideranças capazes de oferecer risco para o foram destruídas ou reduzidas à mais abjeta submissão. Nenhuma delas jamais denunciou o processo como aquilo que ele é: uma ditadura policial informal, criada pela santa aliança de Partido, Estado e Mídia. Todas fazem questão estrita de disfarçar a gravidade da agressão que sofreram, de posar ante as câmeras com um sorriso amarelo e alardear que a democracia se aperfeiçoa, que o sr. Lula é um grande presidente e que, pensando bem, gordo ele �ca lindo. Quem, submetido a essa obsessiva dieta de dissimulações, pode conservar o senso da verdade? Jornal da Tarde, 29 de janeiro de 2004 A Karl Marx ensinava que, mesmo investida daquele poder absoluto que só a violência armada garante, a esquerda revolucionária jamais deveria se apressar em estatizar a propriedade dos meios de produção da noite para o dia, arriscando provocar a fuga de capitais e desmantelar a economia. O certo, dizia ele, era alongar o processo por uma ou duas gerações, usando de preferência o expediente anestésico da taxação progressiva. Ainda mais prudente e sorrateira ela deveria ser, é claro, na hipótese de ter vencido pela via das eleições, que só garantem um acesso limitado ao poder. Lênin acrescentava que a própria classe capitalista, atraída pela isca dos lucros imediatos oferecidos pelo Estado socialista e cega para as correntes mais profundas da transformação revolucionária, haveria de colaborar alegremente com a lenta e inexorável expropriação de seus bens. Antonio Gramsci completava o silogismo, concluindo que o Partido não deveria arriscar nenhuma mudança mais drástica na estrutura social antes de ter-se assegurado de três condições: (1) a completa hegemonia sobre a cultura, o vocabulário público e os critérios morais vigentes; (2) o estabelecimento de um unipartidarismo informal através da supressão de toda oposição ideológica, reduzidos os demais partidos, quase que voluntariamente, à tarefa subalterna de criticar detalhes da administração; (3) a fusão de Partido e Estado através da “ocupação de espaços”. Por seguir �elmente a receita desses mestres, o governante adquiriu direitos e privilégios jamais sonhados por nenhum partido comunista do mundo, como por exemplo: (1) o de jamais poder ser chamado de comunista, mesmo quando efetua à plena luz do dia a inserção do Brasil na estratégia comunista internacional; (2) o de auto�nanciar-se com dinheiro público em doses crescentese ilimitadas, através do embuste do “dízimo” que, utilizado por qualquer outro partido, provocaria uma tempestade de denúncias e processos; (3) o de agir em estreita parceria estratégica com organizações terroristas e narcotra�cantes, como o colombiano, as , o chileno e os tupamaros, sem jamais poder ser acusado de cumplicidade com o terrorismo ou o narcotrá�co; (4) o de criar desde dentro de suas próprias �leiras uma oposição histriônica, que o acusa de “direitista” sem que o público maior atine com a acepção muito especial, quase a de uma senha, que este termo tem nas discussões internas da esquerda e, assim, camu�ando ainda mais o curso real do processo político. Nunca, em cinco séculos, a mentira e a dissimulação dominaram tão completamente o panorama dos debates públicos neste país, outorgando aos condutores do processo aquela “onipotência invisível” a que se referia Gramsci e condenando todos os demais brasileiros à menoridade mental e política. Um dos instrumentos mais engenhosos utilizados para isso foi a duplicação das vias de ação partidária, uma nacional e ostensiva, denominada o�cialmente “” ou “governo”, a outra internacional e discretíssima chamada “Foro de São Paulo”, o mais importante e poderoso órgão político latino-americano, cuja mera existência a classe jornalística em peso continua ocultando criminosamente — repito: criminosamente — ao conhecimento de seus leitores. No âmbito circunspecto do Foro, o articula suas ações com as de outros movimentos de esquerda continentais. Entre eles, evidentemente, o . No plano nacional, isto é, diante dos olhos da opinião pública, e aparecem como entidades separadas e inconexas. O partido onipotente está, portanto, habilitado a promover a agitação no campo através do seu braço invisível, ao mesmo tempo que, com o visível, encena gestos de apaziguador dos ânimos e mantenedor da ordem. Dentro do há decerto muitas pessoas que têm consciência de tudo isso, e é impossível que pelo menos algumas delas não se envergonhem, em segredo, de colaborar com tanta perfídia e ignomínia. Mas quando ousarão renegar em público a macabra herança comunista que faz de seu partido um aliado e cúmplice de Hugo Chávez, de Fidel Castro e de Kim Il Jong? O Globo, 31 de janeiro de 2004 S Se algum de meus colegas de jornalismo ainda tiver a cara-de-pau de negar os fatos que mencionei no artigo anterior, não me deixará alternativa senão apelar ao tribunal dos leitores, remetendo-os ao site http://www.nodo50.org/americalibre/consejo.htm para que vejam com seus próprios olhos a obscena simbiose entre a narcoguerrilha colombiana e a farsa petista que nos governa. O endereço é de America Libre, versão jornalística do Foro de São Paulo, fundada por (adivinhem) Frei Betto e hoje dirigida por (já adivinharam) Emir Sader. A revista prega abertamente a guerra revolucionária, a implantação do comunismo em toda a América Latina. Seu mais recente editorial proclama: “O 11 de setembro dos povos será, para a confraria da América Livre, um compromisso de honra. Será um encontro com os sonhos e com o desejo”. Da primeira à última página, a coisa respinga sangue e ódio, de mistura com a velha retórica autodigni�cante que faz do genocídio comunista uma apoteose do amor à humanidade, condenando como fascista quem quer que veja nele algo de ruim. Na mesa do seu Conselho Editorial, quem se senta ao lado do líder das , comandante Manuel Marulanda Vélez, o famigerado “Tiro Fijo”? Nada menos que o chefe de gabinete do sr. Lula, Gilberto Carvalho. Está lá também o deputado Greenhalg, aquele que promete eliminar a criminalidade pelo método de desarmar as vítimas, mas que jamais propôs desarmar um só terrorista, seqüestrador ou narcotra�cante que lhe parecesse politicamente lindo. Se isso não é promiscuidade, se isso não é cumplicidade por baixo do pano entre o nosso governo e o crime organizado, se isso não é uma tramóia muito suja, digam-me então o que é, porque minha imaginação tem limites. Estão lá ainda o dr. Leonardo Boff, o compositor Chico Buarque de Hollanda, a índia guatemalteca Rigoberta Menchú (aquela que abocanhou um Prêmio Nobel por meio da mais notória fraude literária do século) e o inefável prof. Antônio Cândido, em cuja alma não se diria haver uma só gota de truculência socialista, porque a�nal ele escreve naquele estilo tão polidinho, tão engomadinho, que tantos acham o cúmulo do bom gosto mas no qual não consigo ver senão o charme e a elegância de uma lombriga de sobrecasaca. Mas essas e outras estrelas-padrão do beautiful people esquerdista são apenas o adorno, a cereja do bolo cuja massa se compõe, segundo as últimas contagens, da carne de cem milhões de seres humanos. Não servem para nada, exceto para embelezar o produto aos olhos de quem seja tolo o bastante para admirá-las. Signi�cativa, sim, é a presença do braço direito (ou esquerdo) de Lula nessa geringonça editorial. Quem pode con�ar num governo que alardeia combater o narcotrá�co só porque mantém na cadeia o sr. Fernandinho Beira-Mar e respectivo advogado, ao mesmo tempo que, por intermédio de um de seus mais altos funcionários, bem como de seu mais ilustre porta-voz na Câmara Federal, apóia campanhas jornalísticas em favor dos maiores fornecedores de cocaína ao Brasil? Menos con�ável ainda, no entanto, é a mídia quando abafa a divulgação de fatos que, conhecidos do público, teriam inviabilizado a eleição de Lula em 2001 e desmascarado, no mesmo ato, seus três concorrentes de fachada, cúmplices da mais torpe mentira eleitoral de todos os tempos. Não é à toa que o jornalismo brasileiro é hoje reconhecido internacionalmente como um dos piores do mundo. Os responsáveis por esse estado de coisas alimentam-se do dinheiro dos leitores, dos anunciantes e dos acionistas, mas seria mais justo que mensalmente enviassem a conta de seus serviços ao Foro de São Paulo, que não tem os problemas de uma empresa jornalística comum porque, em caso de aperto, pode contar com as verbas ilimitadas do narcotrá�co e dos seqüestros. O que me pergunto é se esses jornalistas já transcenderam de vez a mera ética pro�ssional, desprezando-a como superfetação burguesa e adotando em lugar dela a ética revolucionária, segundo a qual, nas palavras de Bertolt Brecht, a mentira é tão boa quanto a verdade, desde que sirva à causa do socialismo. O Globo, 7 de fevereiro de 2004 P Se você �cou espantado com aquilo que contei de Bill Clinton, é porque não imagina o que sei de John Kerry, virtual candidato democrata à presidência dos . São coisas que jamais você lerá fora desta coluna, pois a mídia brasileira beati�cou o Partido Democrático na mesma medida em que demonizou os republicanos, e ela não haverá de sacri�car a reles fatos a pureza da sua �delidade ideológica. O principal �nanciador da campanha de Kerry — e, por tabela, da próxima Convenção Nacional Democrática, marcada para julho em Boston — é nada mais nada menos que o governo comunista do Vietnã. A ajuda não veio do nada: é retribuição de gentilezas recebidas anos atrás. Quando os estavam rompidos com o Vietnã, o então senador Kerry arranjou encontros discretos entre o tenente-coronel Liu Chaoying, da inteligência vietnamita, e funcionários da Comissão de Títulos e Câmbio dos . O governo do Vietnã, mais um regime comunista falido, estava ansioso para entrar no mercado capitalista mundial, mas isso era impossível sem o reatamento das relações diplomáticas com os . O maior obstáculo eram os prisioneiros de guerra americanos que permaneciam em território vietnamita, dos quais o governo local não queria dar nenhuma informação. Kerry, que é pela paz e pelo diálogo, não podia suportar essa situação desumana. Então criou no Senado uma Comissão de Prisioneiros de Guerra, em cuja che�a colocou a srta. Francis Zwenig. A boa moça logo arranjou uma solução, sugerindo aos vietnamitas que simplesmente inventassem histórias para explicar o destino dos prisioneiros desaparecidos. Kerry foi surpreendido pelascâmeras quando assegurava a seus queridos vietnamitas que não teriam nenhum problema por isso. E ele tinha razão: o governo dos acabou engolindo as invencionices. As relações foram reatadas e os vietnamitas puderam �nalmente abrir no território americano empresas de fachada para comprar material bélico que em seguida revendem à China. Outro importante �nanciador de Kerry é Hassan Nemazee, um iraniano que, para poder fazer doações de campanha ao Partido Democrático, já falsi�cou sua identidade duas vezes, uma como venezuelano, outra como indiano. Fundador do Iranian American Political Action Committee (), Nemazee fez fortuna enriquecendo os mulás e aiatolás que governam o Irã e outros países notoriamente hospedeiros e protetores de organizações terroristas. A Associated Press con�rma que pelo menos três vezes Kerry foi pego recomendando para altos cargos em bancos federais pessoas das quais tinha acabado de receber doações. É por essas coisas que Kerry recebeu de seus inimigos o apelido de Cash-and-Kerry, que soa exatamente “cash-and-carry”, pague e leve. Mas não imaginem que Kerry só pensa em dinheiro. Ele confessou que, na guerra do Vietnã, cometeu “as mesmas atrocidades que milhares de outros cometeram”. Acrescentou ainda que “todos esses atos eram contrários à convenção de Genebra, foram cometidos por ordens escritas e os homens que os ordenaram são criminosos de guerra”. Pungente con�ssão, não é mesmo? Ela seria uma prova de honestidade, se não lhe faltasse um detalhe. Kerry, na ocasião dos combates, não era soldado raso: era o�cial superior. Ele não recebia as ordens, mas as assinava. Pela primeira vez, um país que até uma década atrás se recusava a votar em candidatos que não tivessem uma folha de serviços militares no mínimo honrosa, corre o risco de aceitar como presidente um criminoso de guerra confesso, além de picareta nato. Zero Hora, 8 de fevereiro de 2004 A “ese opposed factions might be compared to two swords, of which one had a gilded and ornamental hilt, but a blade formed of glass or other brittle substance, while the brazen handle of the other corresponded in strenght and coarseness to the steel of the weapon itself ” (Walter Scott, a propósito dos constitucionalistas e dos jacobinos na Revolução Francesa). Quem quer que, a esta altura, ainda sonhe em “vencer o ”, seja nas próximas eleições, seja ao longo das décadas vindouras, deve ser considerado in limine um bobão incurável, indigno de atenção. O , como digo há anos, não veio para alternar-se no poder com outros partidos — muito menos com os da “direita” — segundo o rodízio normal do sistema constitucional-democrático. Ele veio para destruir esse sistema, para soterrá-lo para sempre nas brumas do passado, trocando-o por algo que os próprios petistas não sabem muito bem o que há de ser, mas a respeito do qual têm uma certeza: seja o que for, será de�nitivo e irrevogável. Não haverá retorno. O Brasil em que vivemos é, já, o “novo Brasil” prometido pelo , e não tem a menor perspectiva de virar outra coisa a médio ou longo prazo, exceto se forçado a isso pela vontade divina ou por mudanças imprevisíveis do quadro internacional. A causa essencial desse fenômeno é a própria diferença de escala entre a atuação do e a de seus pretensos adversários. Estes sempre limitaram suas ações e ambições à esfera político-eleitoral explícita, enquanto o segue há décadas uma estratégia abrangente que inclui desde a completa hegemonia das modas culturais, gostos artísticos e reações psicológicas da população, até à in�ltração nas Forças Armadas e órgãos policiais, a “ocupação de espaços” em todos os escalões da administração pública e o domínio sobre a mídia. Há mais de uma década os partidos que lutam contra o petismo fazem-no dentro de um quadro social, cultural e psicológico previamente demarcado pelo , do qual não chegam sequer a ter consciência. O , ademais, nunca agiu sozinho. Ele é apenas o rótulo mais visível de um complexo muito bem articulado de entidades subservientes (em vários graus) à estratégia do Foro de São Paulo, incluindo-se nisso portanto, além do , da e dos partidos menores de esquerda, a quase totalidade das organizações autonomeadas “representantes da sociedade civil”, numa gama que vai desde uma in�nidade de ’s ecológicas, indigenistas e de “direitos humanos” até a , a , a e similares. Para completar, o esteve sempre bem articulado com a esquerda internacional, tendo contatos e apoio em toda parte — na , na , na mídia européia e americana, nas organizações internacionais de terroristas e narcotra�cantes e sobretudo em fundações como Ford e Rockefeller, etc., senhoras da cornucópia global de onde jorra dinheiro em quantidades ilimitadas para qualquer projeto cultural ou social que contenha uma dose su�ciente de esquerdismo. Perto disso, os partidos que poderiam encarnar mesmo remotamente o antipetismo são apenas organizações provincianas, isoladas do mundo, impotentes, limitadas à propaganda eleitoral corriqueira, às intrigas de gabinete e à disputa das migalhas que caem da mesa do banquete petista. E não me venham falar em . É oposição biônica, dócil e castrada. A articulação do com o é tão profunda, tão comprometedora, que líderes tucanos e petistas já discutem abertamente a fusão de seus partidos. E não convém esquecer que a mais prestimosa ajuda para eleger o atual presidente veio do homem de papelão, José Serra, o qual, sabendo das conexões políticas entre seu adversário, a narcoguerrilha colombiana e a indústria internacional de seqüestros encabeçada pelo chileno, se omitiu de denunciá-las durante a campanha eleitoral, dando a Lula a chance dourada de impingir à opinião pública uma falsa imagem de candura e honestidade. É deplorável ter de insistir numa coisa tão evidente, mas uma estratégia de escala continental, escorada numa rede global de organizações e no completo domínio da atmosfera cultural não pode ser enfrentada por meio de resistências locais, de espertezas provincianas, de críticas pontuais a erros econômico-administrativos ou da aposta louca nas brigas internas da facção dominante, que só a revigoram. A desproporção de forças, aí, é tão brutal, tão avassaladora, que não vale nem mais a pena insistir no assunto. Jornal da Tarde, 12 de fevereiro de 2004 O E O sr. Nei Sroulevich tem espalhado pela mídia uns artigos em que clama pela volta do Partido Comunista Brasileiro, o velho Partidão, e assegura que Fidel Castro não matou nem a décima parte do que se lhe atribui. O problema com o primeiro item é que os partidos comunistas só ocasionalmente se apresentaram com esse nome. O da Rússia chamava-se Partido Socialdemocrático, o de Cuba, Partido Socialista Popular, o dos e o da Coréia do Norte, ambos “Workers Party” (já ouvi esse nome em algum lugar). O Partidão não pode voltar à existência porque jamais saiu dela, apenas se camu�ou sob uma variedade de denominações provisórias que, por trás de sua inconexão aparente, continuam muito bem articuladas no quadro do Foro de São Paulo. Quanto ao segundo ponto, a di�culdade é que o número de dezessete mil vítimas não é uma conjetura estatística. De quase todas elas há listas meticulosas, com seus nomes e as datas, locais e circunstâncias de seu assassinato. Negar a existência desses cadáveres é tão inútil e imoral quanto negar o Holocausto nazista. Eu deveria talvez falar apenas das idéias do sr. Sroulevich, e não da sua pessoa. Mas nunca vi uma idéia dele que não fosse de Fidel Castro, e a única coisa interessante que sobra nele é sua identidade pessoal, justamente porque não é uma identidade e sim uma diferença. Ele assina seus artigos, de fato, com a quali�cação neutra de “jornalista e produtor cultural”. Nesta última condição ele produziu decerto uns �lmes, mas isso foi antigamente, e não posso acreditar que tenha vivido todo esse tempo das minguadas bilheterias do chatíssimo Joana, a francesa (1973) ou do amplamente ignoradoA queda (1976). Na verdade, ele fez carreira importando charutos cubanos, vendendo pacotes turístico-publicitários da estatal Cubatur, �lmando para a estatal de Cuba um roteiro pró-Fidel preparado em colaboração com o chefe do serviço secreto cubano, intermediando um projeto de Oscar Niemeyer para o governo cubano e, en�m, cuidando dos interesses cubanos de tantas e tão variadas maneiras (aqui mencionei somente as mais notórias), que acabou recebendo por isso menções elogiosas no Granma e uma condecoração de Fidel Castro. Mas a recompensa de seus esforços não foi puramente simbólica. A prosperidade de seus negócios cubanos é tal que lhe permitiu custear a estada de sua esposa em Havana por cinco anos, indo e vindo com os �lhos para visitá-la não sei quantas vezes, e, ao término desse dispêndio monstro, ainda botar a família para residir elegantemente numa mansão no Lago Norte, em Brasília. Que, depois de tudo isso, ele escreva doces palavras em louvor do comunismo cubano, é compreensível. Também é compreensível que o faça alegando apenas o estatuto de “jornalista”, pois, se declarasse abertamente sua verdadeira condição de parceiro comercial, seus argumentos perderiam, no ato, 99% de credibilidade. Mas também por isso é que o rótulo escolhido só lhe cabe como eufemismo. Jornalista, salvo engano, é o sujeito que é pago por uma empresa jornalística para escrever o que viu, o que ouviu de fontes ou o que sua própria cabeça concluiu daí. Aquele que recebe dinheiro de uma fonte para falar bem dela não é jornalista: é, na melhor das hipóteses, publicitário. Na pior, bem, digamos que eu monte uma lucrativa parceria com o governo da Zâmbia e, como quem não quer nada, passe a usar o espaço desta coluna para alardear que a Zâmbia é o Céu na Terra. Com carteirinha da Fenaj e tudo, estarei fazendo com isso algo que mereça, ainda que remotamente, o nome de “jornalismo”? Obviamente não. E de que é que vocês me chamarão? Não sei, mas se chamarem exatamente disso o sr. Sroulevich não estarão fazendo grande injustiça. Injusto, sim, seria dizer que tudo o que ele publica é em proveito exclusivo de Cuba e dele próprio. Ele também escreveu uma resenha entusiasticamente elogiosa do livro de Cláudia Furiati, Fidel Castro, uma Biogra�a Consentida, omitindo-se, com exemplar modéstia, de informar ao público que a autora da obra era esposa do resenhista. Com esse feito, ele tornou-se de�nitivamente o meu tipo inesquecível. No meu coração, ele é e será sempre o camarada Enrolevich. 12 de fevereiro de 2004 C Intelectualmente, o único sujeito respeitável no presente governo é o ministro Viegas. O fato mesmo de ele ser tradutor de Eric Voegelin — o pensador político mais importante da segunda metade do século , ainda maciçamente ignorado pelo establishment acadêmico tupiniquim — já o coloca num patamar bem superior ao da média da nossa classe falante e governante. Por isso mesmo, tinha de ser ele o primeiro a reconhecer aquilo que o universo inteiro já sabia, isto é, que as são uma organização terrorista. Espero apenas que S. Excia. não se recuse a tirar dessa obviedade as conseqüências lógicas que dela se seguem inapelavelmente: 1. Como fundador e dirigente máximo do Foro de São Paulo durante uma década inteira, o sr. Luís Inácio Lula da Silva colaborou estreitamente com essa organização colombiana na formulação de uma estratégia continental em que se articulam, numa promiscuidade indecente, partidos legais e pelo menos uma gangue de narcoterroristas e seqüestradores. 2. Se ele o fez inocentemente, nada sabendo das atividades das , do chileno, etc., então decerto ele é o mais presunçoso ignorante que já se instalou num posto de liderança continental, arrogando-se uma autoridade in�nitamente superior aos conhecimentos elementares requeridos para exercê-lo. 3. Se, ao contrário, ele sabia com quem estava lidando, então aceitou conscientemente ser cúmplice político — se não bene�ciário sob outros aspectos, como sugeriu o deputado Alberto Fraga — de uma ou mais organizações criminosas. 4. Qualquer autoridade competente que, sabendo dessas coisas, mude de assunto e escamoteie a obrigação incontornável de investigar e tirar a limpo as ligações – comete crime de prevaricação. Se todas as autoridades competentes preferirem fazer de conta que não viram nada, isto equivalerá a uma con�ssão geral de que não há neste país mais ordem jurídica nenhuma, de que é tudo uma imensa pantomima e de que o melhor para o cidadão honesto é mudar logo para a Zâmbia, para Serra Leoa, para o Paraguai ou para qualquer outro lugar onde possa esperar encontrar ao menos algum rudimento de seriedade, ordem racional e civilização. Não pensem que, ao dizer isso, eu esteja querendo pressionar o ministro ou colocá-lo em situação constrangedora. Reconheço e louvo abertamente sua coragem de admitir a verdade proibida. Apenas digo que quem reconhece que 1 + 1 = 2 está moralmente obrigado a admitir, em seguida, que 2 + 2 = 4, 3 + 3 = 6, e assim por diante, doa a quem doer. Bem sei — pois aprendi com a “Teoria do Medalhão” de Machado de Assis e com a obra inteira de Lima Barreto — que a desconversa, a dissimulação e a hipocrisia entram na composição dos nossos costumes (da nossa “cultura”, no sentido puramente antropológico do termo) em doses maiores do que as encontráveis, talvez, em qualquer outro país do mundo. Sei também que o controle formal ou informal das notícias de modo a favorecer as autoridades federais — o vício de alternar a censura com a autocensura — é quase uma cláusula pétrea da nossa organização mental, pelo menos desde os tempos do . Sei ainda que, no Brasil, ser polido, inócuo, anestésico, tranqüilizante, é a suprema virtude do cidadão, mesmo nos momentos em que o exercício dela ameace expor a nação inteira, por indolência, comodismo e medo da verdade, a perigos graves e inúteis. Mas, a�nal, senhor ministro, hábitos são apenas hábitos, não deveres. V. Excia. mostrou que não é indiferente ao dever e que tem energia bastante para romper com o hábito. No seu lugar, eu não temeria fazer o resto do serviço. A�nal, o único risco que V. Excia. correrá com isso será o de sair do ministério para entrar na História. Duvido muito que, para um homem da sua estatura, seja uma perda substantiva. O Globo, 14 de fevereiro de 2004 A Como é possível que um partido repleto de ex-terroristas, associado no Foro de São Paulo aos narcotra�cantes das e aos seqüestradores do chileno, acusado de superfaturamento em obras e na coleta de lixo em várias das capitais que governa, suspeito de cumplicidade no assassinato de um prefeito, alimentado pelos dízimos obrigatórios dos cargos públicos que ele mesmo distribui e, last not least, inventor de uma “campanha contra a fome” que já tem 45% de licitações irregulares, consiga fazer com que a denúncia de uma negociata com bicheiros apareça como uma mancha esporádica na sua reputação ilibada, como um ato isolado de “traição” a seus “altos padrões éticos”, e não como a continuação normal e previsível de uma longa carreira de delitos e mentiras? “Hegemonia” é isso: acuada pela exibição de provas contundentes, a facção dominante ainda tem força para transmutar a perda política em vitória ideológica, fazendo com que a crença geral na bondade intrínseca da esquerda saia imune e engrandecida da revelação de qualquer sujeira. Em matéria de gerenciamento de danos, é um prodígio. É que os dois fenômenos — o envolvimento em crimes de magnitude incomum e o controle sobre os critérios morais da opinião pública — estão profundamente interligados. É impossível elucidar o caso Waldomiro sem colocar em exame a estrutura interna do , que herdou das organizações revolucionárias que a originaram a técnica de articular legalidade e clandestinidade, miolo e fachada, realidade e aparência. O partido que mama o leite dos bicheiros é, a�nal, o mesmo que, com os bons préstimos de uma rede de informantes espalhados em todos os escalões da