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Teoria da Empresa e Regulação Empresarial

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2 – Atividade empresarial
2.1 – Da teoria dos atos do comércio à teoria da empresa
A melhor compreensão da atividade empresarial e sua regulação ficam mais bem ilustradas através de uma apreciação da linha do tempo que revela, de algum modo, os motivos que justificam a criação da chamada Teoria da Empresa e sua posterior adoção pelo legislador nacional.
Sem ser preciosista em relação a datas, é possível utilizar como um referencial inicial o momento posterior à queda do Império Romano (séc. V d.C) com a formação, durante a idade média, dos chamados estados nacionais, além da implementação lenta e gradual das concentrações urbanas.
Nesse sentido, até por uma questão de autoproteção - e esse é um elemento importante, porque a reunião de pessoas com os mesmos interesses dá maior condição de o grupo se proteger -, criaram-se o que nós conhecemos como corporações de ofício (a partir do século XII).
Essas entidades tinham como uma de suas características a proteção daqueles que exerciam um determinado ofício. Tinham também a idéia de regulação, e essa regulação alcançava o plano material, a partir do reconhecimento das reais práticas costumeiras - quem tinha razão deixava de ter razão para certas coisas - e do plano processual, com um método de solução de controvérsias próprio, ou seja, era uma jurisdição própria, o que de algum modo se perpetuou com os chamados Tribunais do Comércio, inclusive no Brasil com as atuais Juntas Comerciais, que posteriormente tiveram a sua jurisdição transferida para a Justiça Comum. 
O problema das corporações de ofício é que elas estabeleciam uma limitação de que somente aqueles que estivessem vinculados à corporação, como artesões, aprendizes, poderiam, no futuro ou enquanto presente, desenvolver a atividade. Ou seja, se uma pessoa, não-artesão na área de ferro ou na área de alfaiataria, quisesse exercer essa atividade, salvo se fosse recebido pela corporação, não teria condições. Com isso, ocorria uma certa marginalização, vez que muitos que gostariam de desenvolver uma determinada atividade ficavam à margem do processo.
Esse subjetivismo perdurou na regulação da atividade econômica até o surgimento em 15 de setembro de 1807, na França, do Código Comercial, adotando a chamada “Teoria dos Atos do Comércio”. O Código Comercial especificava de uma forma objetiva os atos qualificados como comerciais e uma vez praticados, por qualquer pessoas, seriam tutelados pelos sistema, independentemente de qualquer aquiescência de natureza subjetiva de qualquer corporação, fato que politicamente representou a possibilidade de inserção de uma vasta camada da população que estava à margem do processo produtivo. 
Qual a influência desses fatos sobre o Brasil? A Lei n°556 de 25 de junho de 1850 promulgou o Código Comercial brasileiro, devidamente detalhado pelo Regulamento n°737, adotou a Teoria dos Atos do Comércio, com a descrição exata dos atos dessa natureza, que tinham seu regime jurídico próprio.
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O que significaria ter o seu regime jurídico próprio? Significaria ter a tutela do Estado para os atos praticados na conformidade desse regulamento, significaria poder gozar dos benefícios que o regime jurídico próprio disponibiliza, como por exemplo a Concordata (no passado) ou o procedimento de Recuperação Judicial da Empresa (no presente)
Só que esse regime descritivo de atos, com o tempo, passou a representar, de um certo modo, uma camisa-de-força no sistema. Por quê? Porque passou a exigir que qualquer modificação ou qualquer inclusão necessitasse da modificação do Código Comercial, e é sabido que isso não ocorre tão facilmente. 
Exemplo disso é a agricultura. A agricultura vem-se desenvolvendo a passos largos para se tornar uma atividade extremamente profissionalizada, fato facilmente constatável no Brasil da atualidade, Há companhias agrícolas brasileiras com suas ações listadas em Bolsa de Valores no Brasil e no Exterior. Essa circunstância, considerando que pela teoria dos “Atos do Comércio”, a atividade agropecuária não era qualificada como atividade comercial, não seria possível, pois a utilização de determinados elementos ou institutos inerentes à atividade comercial (ex.: Bolsa de Valores) não seria factível, pois como pensar na hipótese de uma sociedade agrícola captar recursos pela emissão de ações se nem mesmo esse tipo societária poderia ser adotado por ela.
A edição do Código Civil italiano em 1942 modificou a forma de se enxergar a atividade negocial, não mais pensando na dicotomia civil e comercial, deixando de analisar não o que é feito e passando a considerar o modo como é feito, em outras palavras, toda vez que ocorrer o exercício profissional de determinada atividade econômica, regra geral estar-se-á praticando a empresa, pouco importando se compra e venda ou prestação de serviço, se atividade agrícola, comercial ou industrial, o que representou a adoção da chamada “Teoria da Empresa”.
Então, da mesma forma que alguns praticam a natação, que é um movimento sincronizado de braços e pernas para ir adiante na superfície da água, da mesma forma que alguns praticam a ginástica, que é um movimento de esforço físico também sincronizado para se alcançar uma determinada finalidade em termos de saúde, é possível dizer que a prática da empresa significa um movimento, mais especificamente o exercício profissional de atividade econômica organizada.
Para ilustrar ainda melhor o seu real significado se pode construir o seguinte raciocínio: há duas áreas de terra absolutamente iguais uma ao lado da outra, cada uma com 15 hectares. Numa delas, o cidadão vive na terra, planta cada centímetro quadrado, tem galinha, tem leite, e toda semana vai à feira e vende esses produtos. Na outra, a pessoa só vai aos finais de semana, planta, colhe alguma coisa, as vezes vende o que colheu para os conhecidos, as vezes dá para os seus amigos de trabalho, enfim, tem o sítio como uma atividade de lazer. Ambos agricultores, o primeiro podendo ser qualificado como empresário, pelo exercício profissional de atividade econômica organizada, o segundo, não. Um regulado pelo Direito Empresarial, o outro, não.
Separação semelhante à prestação de serviço, que pode ser regulada tanto pelo Código Civil quanto pela Consolidação das Leis do Trabalho. Para tanto, basta verificar a seguinte situação: Primeiro, de uma pessoa que trabalha o dia inteiro consertando encanamento, recebe o seu salário no final do mês, tem a noção de não-eventualidade, hierarquia. Que tipo de relação é essa? Uma relação de trabalho. Qual o conjunto de regras que alcança essa relação de emprego? CLT.. O segundo, também conserta encanamento, só que é profissional autônomo, tendo uma atividade pontual e eventual nas relações contratuais em que atua.
É possível pegar ainda um último exemplo: o contrato de contrato de compra-e-venda. Se o sujeito vender seu veículo para alguém, qual será a regulação da relação? Código Civil, contrato de compra-e-venda clássico. Se o negócio se realizar entre um lojista de veículos e um cliente se estará diante de uma relação alcançada pelo Código de Defesa do Consumidor.
 			Diante desses exemplos resta claro que o subjetivismo que se tornou a introduzir na regulação da atividade econômica está relacionado à natureza da atividade e não a eventual possibilidade de se identificar e coibir a prática de qualquer tipo de iniciativa negocial.
2.2 – A adoção da teoria da empresa no direito brasileiro
		Essa racionalidade influenciou as modificações que foram se apresentando no sistema brasileiro e que culminou com a adoção da chamada “Teoria da Empresa” quando da edição do Código Civil de 2002 e com a revogação da primeira parte do Código Comercial de 1850.
 			A chamada unificação do direito das obrigações - civis e comerciais – ou da regulação de compra e venda e prestação de serviço nasce no Brasil já no final dos anos 50 e início dos anos 60, com os projetos de modificação do Código Civil que tanto tardaram no Congresso Nacional até ser aprovada a redação final.
		De qualquermodo, a Lei nº 5.474/68, Lei das Duplicatas, faz referência de que as duplicatas podem ser emitidas em duas situações: primeira, na compra-e-venda; segunda, pela prestação de serviço. Esses são os dois motivos para se emitir uma duplicata. É um único conjunto de regras a alcançar o que antigamente era separado num Código Comercial e num Código Civil. Então, em 1968, já se tinha o prenúncio da adoção da teoria da empresa no Brasil, porque já não se diferenciava a atividade civil da atividade comercial, ambas relacionadas em um regime jurídico único.
		Da mesma forma que a Lei nº 8.078/90, o Código de Defesa do Consumidor. O CDC fala em fornecedor de quê? De produto ou serviço. Um único conjunto de regras para alcançar o que antigamente se tinha de modo separado - atividade civil (serviço) e atividade comercial (produto).
		Assim, aos poucos ocorreu a migração do Brasil rumo à adoção da Teoria da Empresa, o que expressamente ocorreu com a edição do Código Civil de 2002, que efetivamente identifica a adoção da teoria da empresa no Direito brasileiro em dois momentos. Um primeiro momento quando no Livro II, pouco antes do art. 966, coloca no título: “Do Direito de Empresa”. Ali expressamente diz que está adotando a teoria da empresa. E, depois, para complementar, por não ter mais lógica manter a dicotomia das obrigações civis e comerciais, estabeleceu no art. 2.045 que: “Revogam-se a Lei n° 3.071, de 1º de janeiro de 1916 - Código Civil e a Parte Primeira do Código Comercial, Lei nº 556, de 25 de junho de 1850”.
	Então, quando revogou a primeira parte do antigo Código Comercial, o que fez? Simplesmente acabou com os numerus clausus de quem se considerava comerciante e de quem não podia ser qualificado, por exclusão, como comerciante. Portanto, aquele conjunto de regras que se chamava Código Comercial, pois eixo central do sistema que regulava a atividade comercial, não existe mais. O que não foi revogado e lá permaneceu é simplesmente uma lei especial que trata do direito marítimo.
Considerando essa breve linha histórica, é possível chegar aqui a algumas conclusões. A primeira delas é que a Teoria da Empresa conviveu e posteriormente sucedeu, no que diz respeito ao regime jurídico de regulação da atividade econômica, a Teoria dos Atos do Comércio.
A segunda é que, como já se viu, essa adoção se deu tanto por disposição expressa do Código Civil, quanto de forma indireta, pela revogação da parte da Lei que tratava da teoria dos atos do comércio no sistema brasileiro.
2.2.1 – A noção de empresário
Mas, mais precisamente, como é que se dá essa noção de empresário no Código de 2002? Como já mencionado anteriormente, o art.966 do Código Civil fornece expressamente o conceito de empresário como sendo aquele que pratica a empresa nos seguintes termos: “Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços”.
Importante aqui é entender alguns elementos desse conceito. Quando se fala em exercício profissional, está se fazendo algumas referências importantes que merecem ser ressaltadas. A primeira delas é que o exercício é profissional quando envolve uma técnica, um conhecimento; o segundo elemento que nos revela essa questão do exercício profissional é a idéia de continuidade, a idéia de não-eventualidade; e uma terceira referência importante é que a atividade empresarial não é uma atividade benemerente, então há necessidade de resultado, de lucro. Para as atividades benemerentes, nós temos a pessoa jurídica da associação ou mesmo das igrejas, enfim, que estão lá no art. 44 do CC: “São pessoas jurídicas de direito privado: I - as associações; II - as sociedades; III- as fundações; IV - as organizações religiosas; V - os partidos políticos”. 
Quando se fala de atividade econômica organizada, enquanto atividade, é ação; enquanto ação, é ato; e se alcançado pelo sistema, é ato jurídico. Nesse sentido, qualificar a atividade empresarial como ato jurídico, como atividade, alcança Teoria Geral dos Atos Jurídicos e os planos de sua abordagem, envolvendo a exigência de manifestação da vontade, de agente capaz, de objeto lícito e possível, da forma prescrita e não-defesa em lei.
O significa qualificar a atividade como econômica? Porque resulta da administração de recursos escassos frente a necessidades ilimitadas. E a idéia de organização significa organizar o quê? Organizar os fatores de produção, como já foi no plano inicial da matéria. 
Quanto a idéia de produção ou circulação, resta demonstrado que não se trata de consumo que tem seu regime jurídico próprio. Não que o empresário não possa ser consumidor, mas a sua atividade enquanto tal está relacionada tão somente à produção ou a circulação.
 Por último, “de bens ou serviços” representa a própria racionalidade da atividade empresarial, ou seja, o abandono da dicotomia entre a atividade civil e a comercial para se enxergar a atividade como um ato qualificado pelos elementos anteriormente citados.
2.2.2 – A atividade não empresária
		Com esses elementos se poderia chegar à conclusão que o advogado individualmente ou uma sociedade de advogados ou aquela grande clínica médica, uma sociedade de médicos que presta serviços de determinada especialidade, pratica(m) atividade empresarial. Essa não é uma conclusão verdadeira., pois o legislador avançou de um lado, abandonando a dicotomia civil e comercial, e resolveu estabelecer outra forma de criar uma nova dicotomia, entre o empresário e o não-empresário, o que se conclui pela redação do parágrafo único do art.966 do CC, ao estabelecer que a atividade intelectual de natureza científica, artística ou literária não é considerada atividade empresarial. 
A explicação para tal diferenciação, que implica na diferenciação de regime jurídico para uma e outra atividade, decorre de que as atividades, as obrigações de natureza intelectual, de cunho científico, artístico ou literário são personalíssimas, sendo esse o elemento preponderante para desqualificar a atividade como empresarial e enquadrar em outro regime jurídico. Essa foi a opção do legislador. 
Porém, para tentar evitar, eventualmente, alguma distorção, o legislador, na parte final do parágrafo único, disse que se a atividade intelectual de natureza científica constituir elemento da empresa, isso não desqualificará a atividade como tal, vez que a atividade empresarial será preponderante sobre a atividade intelectual, que será mero elemento.
Exemplo dessa situação é a farmácia. É elemento do negócio-farmácia a atividade intelectual do farmacêutico bioquímico de formação? Sim, toda farmácia precisa ter um farmacêutico responsável. Mas a atividade preponderante é a venda de remédio, não a manipulação. Mesma coisa em relação à construção civil. É atividade da empresa incorporadora e construtora de unidades habitacionais ou comerciais para a venda a figura do engenheiro ou do arquiteto? Sim. Então, com essa idéia da parte final do parágrafo único do art.966 CC, que diz salvo se constituir elemento de empresa, vai se verificar que o elemento preponderante na construção e venda de unidades habitacionais ou comerciais, na compra-e-venda de remédios, é a compra-e-venda de remédios, é a compra-e-venda das unidades habitacionais ou comerciais.
		Um último exemplo em relação a essa figura do não-empresário vem da notícia de um jornal sobre a possibilidade, no futuro, das sociedades de advogados transacionarem ações em Bolsas de Valores. Nessa matéria jornalística fica muito claro a existência dessa separação entre atividade empresarial e atividade não-empresarial. Por quê? Para que uma sociedade de advogados pudesse hipoteticamente negociar ações na Bolsa de Valores, teria que se modificar completamente a legislação, porque a sociedade anônima só está relacionada à prática da atividade empresarial. E, para ter transação com ações tem que ser uma sociedade anônima. Se a atividade intelectual de natureza científica das sociedades de advogados é considerada uma sociedadenão-empresária, não há como hoje uma sociedade de advogados pensar em ter ações transacionadas em Bolsas de Valores.
2.2.3 – A proteção à atividade rural e à pequena empresa
		Um último elemento na identificação da atividade empresarial está relacionada a questão da proteção à atividade rural e à pequena empresa. Quando do estudo do art. 170 da Constituição, houve a referência expressa (inciso IX) à proteção e ao incentivo ao pequeno empresário. A concretização no plano infraconstitucional em relação a isso está estabelecida no art. 970 CC: “A lei assegurará tratamento favorecido, diferenciado e simplificado ao empresário rural e ao pequeno empresário, quanto à inscrição e aos efeitos daí decorrentes” e também pela edição de outras normas como a Lei Complementar n.º 123, de 15 de dezembro de 2006, também chamado de “Supersimples”, que foi editada com o objetivo de, num só diploma legal, concentrar os mais diversos assuntos pertinentes à micro e à pequena empresa, no sentido de lhes facilitar a operacionalidade.
		Por que esse tratamento simplificado? Além de facilitar, sob ponto de vista econômico, o funcionamento dessa atividade de pequeno porte, também reflete, sob a perspectiva jurídica, a retirada da informalidade de uma determinada parcela de empreendedores? De um modo bastante elementar é possível verificar que a lógica do sistema é a seguinte: se estabelece um conjunto de regras para regular a atividade empresarial; quem cumprir essas regras - esse é o ônus - poderá gozar do bônus, qual seja, poderá obter financiamentos públicos, participar de concorrência pública, pedir o benefício da recuperação judicial, e a regularidade empresarial é elemento fundamental. 
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Professor: Fernando Smith

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