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Em busca da Idade Média Jacques Le Goff com a colaboração de Jean-Maurice de Montre Autor: Le Goff, Jacques TEF Titulo: Em busca da idade média. 33977158 81810 BRASILEIRAIdade das Trevas ou Idade dos Trovadores? Para Jacques Le Goff - ur mais importantes historiadores figura central da corrente conhecida por "Nova História" Idade dos Homens, base para uma antropologia histórica do mundo e uma civilização muito longín e, ao mesmo tempo, muito somos medievais quando nos vanglori de sermos modernos. E uma época fascinante, extremamente rica de con sociológicos, filosóficos, religiosos e psicológicos, ponto de partida da bus desse erudito, irremediável e incurave curioso pela emoção e poesia por trás todo um milênio. Em busca da Idade Média nasceu de incansável procura por um momento entre a Antigüidade e o Presente. uma série de conversas entre Le Goff Maurice de Montremy, de fevereiro a de 2002. Um trabalho apaixonado, de projetar uma imagem completa e articulada das diversas facetas do Idade Média. Cada um dos seis capit apresenta um retrato do cotidiano m e seus principais personagens: mong guerreiros, cavaleiros, camponeses, mercadores. É uma história que valorizar os pormenores, fragmentan disciplina em múltiplas esferas: a hist dos costumes, os intelectuais, a litera idéia de paraíso, inferno e feudos, os manuais de O de uma civilização que modelou cultura ocidental. Ao permitir uma síntese de sua seu pensamento, este trabalho é quJacques Le Goff com a colaboração de Jean-Maurice de Montremy Em busca da Idade Média TRADUÇÃO Marcos de Castro R UNEB CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA Rio de Janeiro 2005COPYRIGHT Editions Louis Audibert, 2003 TÍTULO ORIGINAL A la recherche du Moyen Age CAPA Evelyn Grumach PROJETO GRÁFICO Evelyn Grumach e João de Souza Leite CIP-BRASIL. SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, R] Le Goff, Jacques, 1924- L528e Em busca da Idade Média / Jacques Le Goff; com a colaboração de Jean-Maurice de Montremy; tradução de Marcos de Castro - Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. Tradução de: A la recherche du Moyen Age Inclui bibliografia ISBN 85-200-0676-0 1. Le Goff, Jacques, - Entrevistas. 2. Idade Média - História. 3. Historiadores - França - Entrevistas. I. Montremy, Jean-Maurice de. II. Título. 05-2431 CDD - 909.7 CDU - Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, armazenamento ou transmissão de partes deste livro, através de quaisquer meios, sem prévia autorização por escrito. Direitos desta tradução adquiridos pela EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA um selo da DISTRIBUIDORA RECORD DE SERVIÇOS DE IMPRENSA S.A. Rua Argentina, 171 - 20921-380 - Rio de Janeiro, RJ - Tel.: (21) 2585-2000 PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL Caixa Postal 23.052 - Rio de Janeiro, RJ - 20922-970 Impresso no Brasil 2005À memória de meus pais Para Hanka Para Barbara e ThomasEsta obra tem sua origem numa série de conversas entre Jacques Le Goff e Jean-Maurice de Montremy. o texto foi inteiramente revisto por Jacques Le Goff.Sumário PRÓLOGO 11 1. Tornar-se medievalista 15 IDADE MÉDIA SOMBRIA, IDADE MÉDIA CLARA: LUGARES-COMUNS 22 UMA REVOLUÇÃO: o LIVRO. UM PROBLEMA: AS FONTES 34 2. Uma longa Idade Média 51 A NOÇÃO DE "RENASCIMENTO" 57 UM MILÊNIO E SEUS PERÍODOS 63 1215: LATRÃO IV, o CONCÍLIO CAPITAL 73 3. Mercadores, banqueiros e intelectuais 87 A INVENÇÃO DA ECONOMIA 96 UM OUTRO ESPAÇO: o PENSAMENTO 104 FRANCISCO DE ASSIS. MENDICANTES NA CIDADE 110 4. Uma civilização toma corpo 121 o CÉU DESCE SOBRE A TERRA 125 INFERNO, PURGATÓRIO, PARAÍSO 139 EUROPA OU OCIDENTE? 147 A FEUDALIDADE 156 PRESTÍGIO DO DIREITO 161 9SUMÁRIO 5. Na terra como no céu 169 o HUMANISMO MEDIEVAL 176 HEREGES, JUDEUS, EXCLUÍDOS 186 os ANJOS E os DEMÔNIOS 193 QUANDO MARIA PROTEGE. A "BOA MORTE" 202 EPÍLOGO 211 BIBLIOGRAFIA 219 10EM BUSCA DA IDADE MÉDIA Ligado aos mosteiros e às catedrais, o ensino - até sé- culo XII - baseia-se no comentário e na exegese das Escritu- ras. De modo que o ensino, ainda que leigo, vai buscar seus métodos na pregação, enquanto os pregadores difundem pelo grande público das cidades um trabalho originalmente dedi- cado aos estudantes. Antes mesmo de constituídas as Universidades - e isso desde os scriptoria de Carlos Magno, o saber se enraíza numa prática original da exegese. Enquanto que, entre os muçul- manos, os comentários do Alcorão são rapidamente domi- nados por um tradicionalismo rigoroso, a exegese européia desenvolveu métodos críticos nos quais já reconhecemos prin- cípios científicos. Na raiz da nova vida intelectual estão o raciocínio e a discussão. o método escolástico se faz pela discussão de uma quaestio entre mestre e estudante. Essa "disputa", disputatio, desemboca na conclusão, na decisão do mestre: a determi- natio.* Um curso universitário se estende do bacharelado à licença (licencia docendi, autorização para ensinar). o dou- torado coroa tudo. Não mudamos muito desde essa época... Dos scriptoria da primeira Idade Média às Universidades dos séculos XII e XIII há um "salto". Quando redige suas Sentenças, o teólogo Pierre Lombard (c. de 1100-1160), que ensina na escola catedral parisiense de Notre Dame, propõe um manual estruturado com extratos e condensações da blia. Não se limita a compilar e repetir os comentários ante- riores. Interessa-se pela lógica interna dos textos, por seu conteúdo. Suas Sentenças, ensinamento de base da universi- *0 Autor se estende sobre assunto em sua obra citada, Os Intelectuais na Idade Média. (N. do T.) 108MERCADORES, BANQUEIROS E INTELECTUAIS dade, serão, desse modo, matéria obrigatória de todo ensi- namento teológico até o século XV. Há nelas um método - aquele mesmo método que encontramos na base das Sumas do século XIII, da qual a mais famosa é a do italiano Tomás de Aquino, professor na Universidade de Paris. A diferença se prende ao objeto estudado. Pierre Lombard vai se dedicar às Escrituras. Transforma as Escrituras num sistema organizado de citações exprimindo as verdades. Indo mais além, os grandes escolásticos do século XIII articulam o conjunto do saber (cristão não existe outro, ainda que esse saber cristão se integre ao saber "pagão" antigo, judeu, árabe) em um corpo completo racionalmente construído, como a teologia. É uma suma termo que mostra bem a ambição de caráter enciclopédico (o século XIII é também um século de enciclopédias). Tomás de Aquino, no terceiro quartel do século XIII, cons- truiu portanto a mais notável dessas sumas. Na sua Suma ele integra, cristianizando-a, a mais racional filosofia da Antigüi- dade, a de Aristóteles, durante muito tempo um autor suspei- to nas Também flerta com as teorias de um comentarista árabe, o andaluz Averroés (1126-1198), teórico da "dupla verdade" segundo a qual os mesmos fenômenos revestem-se simultaneamente de uma verdade terrestre hu- mana e de uma verdade divina, que não são da mesma or- dem, mas são ambas legítimas. Tomás de Aquino não chega a ir tão longe. Rejeita Averroés. Todavia cita, leva-o em con- sideração. A própria palavra "escolástica" - retomando o latim scola, a escola - significa um saber que se ensina. Impõe todavia a idéia mais ampla de um método pedagógico "universal", pró- prio dessa nova instituição a que damos o nome de "universi- 109EM BUSCA DA IDADE MÉDIA um "corpo" de mestres, uma corporação, uma "tota- lidade" dedicada ao saber. o padre Marie-Dominique Chenu resumiu essa mudança em duas obras publicadas em 1957. A primeira apresentava A teologia no século XII; a segunda prosseguia: A teologia como ciência no século "Como ciência": tudo está nisso. De resto, a palavra "teologia" é uma invenção do século XII, a obra de Abelardo, grande mestre pré-universitário. Só a cida- de - e uma ordem mendicante que fica fixa nas cidades, a Ordem dos Pregadores (dominicanos), fundada em 1215 podia marcar essa nova etapa, pois a ela o quadro mais antigo dos conventos e das escolas episcopais não se adapta. FRANCISCO DE ASSIS. MENDICANTES NA CIDADE Deve-se, então, falar de uma revolução do século XIII? Não. Em primeiro lugar - já disse isso - porque a no- ção de revolução permanece absolutamente estranha ao espí- rito medieval, que prefere os renascimentos. E principalmente porque as origens desse renascimento são antigas: o século XIII não rompe com seus predecessores. Já dei o exemplo de Pierre Lombard. Mas também poderia mencionar o admirá- vel Pierre le Chantre (morto em 1197), outro que ensinou por longo tempo em Notre-Dame de Paris. John Baldwin dis- se, com propriedade, que Pierre le Chantre reuniu em volta regularmente com padre Chenu a partir de 1957, época em que ele era objeto da desconfiança vaticana, e não saberia como dizer tudo que devo a esse intelectual cristão extraordinário como teólogo e como ho- mem e que me honrou com a sua amizade. 110MERCADORES, BANQUEIROS E INTELECTUAIS de si um "círculo", próximo de nossos atuais círculos de inte- lectuais - não uma corte, nem um salão, mas um pólo infor- mal de estudos e debates. E antes dele um outro parisiense, Pierre le Mangeur (o comedor, o devorador de livros) escre- veu uma História escolástica na qual faz da Bíblia um livro de história para os estudantes. Pierre le Chantre dizia que, estudando as Escrituras e en- sinando, observava essacidade dinâmica na qual vivia e para a qual pregava. Nada escapava. Interessava-se particular- mente pelos ofícios e profissões: os homens das leis, os ho- mens de guerra, os mercadores e até os jograis. Aborda todos os problemas práticos, quer se trate da guerra, dos impostos, do comércio ou dos preços. Sua influência é especialmente clara na redação dos primeiros manuais de confessores. se bem, através dele, como se cria uma rede que vai dos estu- dantes até o povo em geral, passando por todas as categorias. Com dois grandes instrumentos: o sermão e o livro. Entre as funções do intelectual está também, para nós, a função crítica. Parece difícil ser crítico no século XIII. Quando me decidi por empregar a palavra intelectual, em 1957, não pensava apenas na intelligentsia dos países do Leste no século XIX mas também nos trabalhos realizados nos anos 1930 por Antonio Gramsci, que era um marxista inteligente. Gramsci distinguia duas espécies de intelectuais: os intelectuais críticos e os intelectuais orgânicos. Os intelec- tuais orgânicos são os que servem os poderes estabelecidos. Excetuando-se alguns criadores de heresias, poucos e obri- gatoriamente marginais, os intelectuais da Idade Média são por natureza orgânicos: trabalham integrados a um conjun- 1 1 1EM BUSCA DA IDADE MÉDIA to, movidos por uma preocupação de utilidade. Estão reuni- dos aqui esses doisvalores - trabalho e utilidade que legi- timam os mercadores e os intelectuais. A crítica tem, contudo, seu lugar. E esse lugar é reconhecido. o que, naquele tempo, constitui uma novidade. Desde o século XII, Abelardo tinha dito que os novos teólogos (sem ele criou a palavra) deviam utilizar o método da dúvida, de Aristóteles. Isso, cinco séculos antes de Descartes. Tomás de Aquino, para ficarmos num único exem- plo, por mais prestigioso que seja, deixa muita gente confusa. A ordem dos Pregadores, à qual ele pertence, contesta fre- suas teses. o triste e vaidoso Etienne Tempier, bispo de Paris, critica-o em vida (1270) e o condena franca- mente três anos depois de sua morte (1277). Claro, a evidente fidelidade de Tomás à Igreja e a chama mística de seus últimos anos impedem quecaia sobre ele a acusação de heresia, que é a arma mais terrível da Idade Média - ainda que raramente empregada, ao contrário do que tantas vezes se acredita. Na impossibilidade de criticar diretamente sua teologia, seus adversários atacam seu sistema de pensamento, seu mé- todo. Prova, se houvesse necessidade disso, de que o inte- lectual medieval não é uma simples peça a serviço de uma máquina. Esse intelectual vive tensões, suscita tensões, mas quer ser um membro do corpo que é, para ele, a sociedade com a qual a Igreja se confunde. Com os mercadores e intelectuais, a cidade se torna então cadinho de uma civilização. A prova vem de uma personagem imensa: Francisco de Assis, Francesco di Bernardone (1181 ou 82-1226), filho de 112BANQUEIROS E INTELECTUAIS um mercador de tecidos, nasce no momento em que as cida- des se tornam pólos de poder. Um conflito recorrente marca sua juventude: a luta de Assis, sua cidade natal, contra a cida- de de Perúsia. Em 1198, ele participa como cavaleiro na guerra em que se lançam as duas comunas. É feito prisioneiro. Em 1205, quer combater outra vez, contra os partidários do Im- pério. Cai doente. Depois disso é que rompe espetacularmente com seu pai e seu meio. Em 1209, com alguns companheiros, funda uma ordem mendicante, portanto móvel, radicalmente diferente dos mon- ges, que são por definição sedentários. Francisco reagiu, des- sa maneira, à aparição daqueles "novos pobres" que são os miseráveis das cidades. E levanta, desse modo, muito logi- camente, a questão central do universo mercador de que saiu: a do dinheiro. "Vai-se mais rapidamente ao céu de uma caba- na do que de um palácio", dizia ele, instalando-se numa pe- quena fatia de terra ao lado da humilde capela da Porciúncula. Francisco prefere as ruas, as praças, as pequenas habitações. Quando redigiu, depois das difíceis relações com a Cúria pontifícia, sua Regra de 1221, que a Cúria mandou que ele refizesse, Francisco anunciou sua vontade de viver como ir- mão "menor" - quer dizer: humilde, pequenino. Abre o Evangelho a "todas as crianças e criancinhas, pobres e ricos, reis e principes, trabalhadores e agricultores, servos e senhores; a todas as virgens, às castas e às casadas, aos leigos, homens e mulheres, a todas as criancinhas, adolescentes, jovens e ve- lhos, sadios e doentes, a todos os humildes e grandes, e a todos os povos, famílias, tribos e línguas, a todas as nações e a to- dos os homens, por toda a terra". Inventa também, com aquilo que virá a ser a "Ordem Terceira", uma forma inédita, adaptá- vel e nova, de vida religiosa no século, na cidade. A Ordem 1 1 3EM BUSCA DA IDADE MÉDIA Terceira (haverá a mesma coisa entre os dominicanos e os outros mendicantes) acolhe, de fato, pessoas desejosas de se- guir a espiritualidade franciscana sem para isso viver em comu- nidade, sem romper com sua vida de família ou profissional. Francisco populariza uma vida religiosa não clerical, leiga. Sem dúvida, Francisco não tem doutrina econômica. Tem, contudo, uma consciência da economia. Rompendo com sua família e os mercadores de tecidos, considera estar aplicando ao pé da letra capítulo 10 do Evangelho segundo Mateus: "O que recebestes de dai de graça. Não carregueis nem ouro, nem prata em vosso cinto, nem saco de viagem, nem duas túnicas, nem sandálias, nem cajado [...] Em qualquer cidade ou aldeia em que entrardes, informai-vos sobre quem é digno de vos receber e permanecei com ele até vossa partida. Entrando nessa casa, vossa saudação dizendo: 'Paz para esta Francisco se insurge contra aquilo que recentemente al- guns chamaram de "horror econômico". Faz isso com um rigor e uma inteligência dos quais não encontramos equiva- lente entre os atuais adversários da mundialização. Porque não se limita a rejeitar. Ele se interroga. Escolheu a pobreza, mas não em causa a sinceridade, a fé muito real dos mer- cadores. Conserva, diante do dinheiro, o princípio que man- terá em todos os domínios: não impõe sua regra a não ser a si próprio e a seus irmãos. Não a estende a todo o corpo social. Vai até as últimas em sua vocação. Permite aos outros que o ouçam e daí tirem suas Assim se explica prestígio dos frades menores, e sua popularidade entre as ordens mendicantes. Esses irmãos o rico e o pobre, o poderoso e fraco, mas estão no mundo sem pertencer ao mundo, esperando que a mu-MERCADORES, BANQUEIROS E INTELECTUAIS dança a conversão se faça de dentro, entre aqueles que os ouvem. A Francisco repugna o exercício do poder, a um ponto tal que ele hesitou muito para fundar sua ordem. Não propõe outro programa além da bem-aventurança da pobreza, o lou- vor e a admiração diante da Criação. Nenhuma utopia em Francisco, nenhuma espera milenarista de uma grande noite ou de uma sociedade perfeita. Os franciscanos, segundo Fran- cisco, não têm vocação para governar. São um fermento na ascensão para bem-estar, testemunho constante de uma inquietude que deve lembraraos ricos e aos sábios o seu dever. Dois religiosos ilustram a fecundidade dessas instituições. o primeiro é um franciscano convicto: Pierre de Jean Olivi* (c. de 1248-1296). Se bem que tenha sido venerado depois de sua morte, algumas de suas teses foram condena- das, em 1326. Teórico da pobreza absoluta, Pierre Olivi cla- mava contra a corrupção da Igreja. Interrogava-se sobre a riqueza, perguntando-se como poderiam os ricos chegar à salvação. Abriu, com isso, um caminho seguido por numero- SOS mendicantes. Dante, sem dúvida, seguiu seu ensinamento em Florença. A segunda personagem, essencial, situa-se em parte na posteridade de Olivi. Trata-se de Santo Antonino, arcebispo e padroeiro de Florença (1389-1459), um dominicano. Ob- serve-se que aqui reencontramos a grande cidade econômica, a grande cidade artística: Florença. Antonino, aliás, está mui- to próximo do gênio político e financeiro que era Cosme de Médicis. Nada o preocupa tanto quanto a caridade, a oração, a miséria e a penitência. Reforma com zelo a Igreja florentina. *Também chamado Pierre Olieu. (N. do T.) 115EM BUSCA DA IDADE MÉDIA Esforça-se, por isso mesmo - a fim de compreender melhor seus interlocutores -, para analisar a economia como tal. Antonino propõe uma definição da noção de valor. Nesse sentido, trabalhei numa análise jamais terminada para um volume de homenagem a Pierre Vilar, grande historiador marxista, que fez o estudo da escolástica tardia, tal como era praticada em Salamanca no século XVI. Digamos, simplificando, que se chegou a uma idéia muito importante para o futuro do Ocidente: o homem de dinheiro sabe que figura na primeira fila entre os futuros danados; entretanto, um arrependimento permanente e a prática das obras de misericórdia autorizam a esperança de um perdão. o rico investe assim através da inquietude e da caridade - seu capital póstumo no Purgatório, essa grande invenção medieval, esse lugar onde as almas pecadoras purgam dolo- rosamente à espera do Paraíso, evitando assim o Inferno. Es- tabelece-se dessa maneira a idéia de uma riqueza tolerável. Um certo código do "justo se afirma, assim como ou- tros refletem na época sobre a definição de uma "justa guer- ra", no espírito de Santo Agostinho. Pode-se, como senhor sugeriu, falar de uma ciência da economia desde os séculos XIII e XIV, e com mais forte razão no século XV? Os grandes escolásticos dos séculos XIII-XV só percebem a economia engastada na religião, para retomar uma expres- são de Karl Polanyi. É preciso esperar pelos de Sala- manca do fim do século XVI para encontrarmos verdadeiros economistas. Os que ensinavam na Universidade de Salamanca, o principal dos quais foi Francisco Suárez (1548- 116MERCADORES BANQUEIROS E INTELECTUAIS 1617), introduziram na tradição escolástica de Tomás de Aquino conceitos e raciocínios propriamente econômicos. Os metais preciosos da América e ouso que deles fazia a Casa de Contratación de Sevilha modernizaram uma ciência econô- mica que já não era medieval. o domínio específico da eco- nomia, entretanto, só aparecerá no século XVIII, com os fisiocratas* e a noção de mercado. Tratando-se da Idade Média, deixemos de lado a econo- mia rural. Certamente, ela domina a sociedade. Mas se, em toda a Europa, desenvolve-se uma "técnica" agrícola, um sen- tido ampliado pelo bom rendimento, são entretanto todas as cidades que dão o tom desde 0 século X, mesmo que sua importância só seja verdadeiramente notada pelos medievais no século XI. As cidades criam o que pode existir como "mer- cado", se bem que o conceito, no sentido moderno da pala- vra mercado, ainda não esteja definido. A novidade da Idade Média seria antes o comércio, para o qual o mar tinha grande importância, no Sul (Itália) como no Norte (Alemanha e Báltico). Esses contatos com o exterior levam a um remodelamento poderoso da rede interior. Fun- damentam-se esses contatos em incessantes invenções tecno- lógicas. Quando os portugueses, depois os espanhóis, dão condições à caravela, consuma-se o salto. Na origem, trata- va-se de um barco de pesca, dotado de uma grande qualida- de: movimentava-se bem em águas rasas; podia, assim, aventurar-se por praias mal conhecidas. A partir desse mode- lo, os engenheiros desenvolveram embarcações cada vez mais *Segundo os fisiocratas (Quesnay e seus seguidores no século XVIII), a terra e a agricultura são a base de toda riqueza. (N. do T.) 117EM BUSCA DA IDADE MÉDIA importantes, porém fiéis a sua origem: as caravelas eram ba- ratas e dificilmente encalhavam. Foi com essas caravelas, não sem sacrifício, que Cristóvão Colombo acabou por alcançar as costas de Cuba e da Jamaica... Eis um paradoxo. Olivi e Antonino pertencem ambos a uma ordem mendicante. São grandes leitores, versados em ma- téria de saber. Ora, o "poverello" - o senhor dá especial impor- tância a isso em seu São Francisco de Assis (1999) recusava não apenas o mas também a ciência. É preciso compreender bem a desconfiança de Francisco em relação aos doutores eruditos. o que ele vê na ciência é uma forma de propriedade porque os livros custam caro. Tornar-se um erudito é assumir risco de possuir, de chegar ao poder, ou de participar do exercício do poder. Francisco nunca teve boas relações com os príncipes da Igreja e com os mestres da Universidade - os prelados. Dito isso, voltemos agora a sua atitude diante do di- nheiro. Para lutar contra o espírito do luxo, Francisco con- sidera que saber pode ajudar. Autoriza então seu discípulo Antônio de Pádua a seguir estudos universitários. E logo encontraremos franciscanos entre os mestres mais erudi- tos e mais audaciosos. E eis uma das muitas ironias do des- tino de São Francisco: construir-se-á em seu nome, depois da grande basílica de Assis, uma suntuosa basílica sobre a pobre que lhe servia de cabana, perto de As- sis, e os mendicantes estarão instalados, tornar-se-ão po- derosos... 118MERCADORES, BANQUEIROS E INTELECTUAIS renascimento dos séculos XII e XIII parece, aos seus olhos, caracterizar-se por um cristianismo que se aproxima de nós. Esquematizemos. Até o século XII, Deus permanece em primeiro lugar como o Pai. Depois disso, a figura do Filho o supera: o Céu se encarna, desce sobre a Terra. Os valores tornam-se carne. Através dos mercadores-banqueiros e dos intelectuais, creio ter situado quadro essencial de minha reflexão sobre a Idade Média. o aparecimento dessas duas novas categorias sociais "marca" a civilização medieval. Sua herança permanece produtora: estruturas econômicas, institucionais, mentais e religiosas. A Idade Média chega então ao equilíbrio entre a razão e a fé, entre as formas de razão e as formas de fé. Assim se con- cretiza o que podemos chamar o Ocidente. Esse equilíbrio permanece, hoje, a verdadeira conquista, mesmo para um agnóstico, como é o meu caso. Os grandes espíritos da Idade Média dominam nosso pensamento, ainda que as ciências modernas tenham suscitado uma verdadeira revolução. Sin- to-me nascido em algum lugar entre Bolonha e Paris, Santia- go de Compostela e Roma entre 1150 e 1250. 1194. Uma civilização toma corpoUMA CIVILIZAÇÃO TOMA CORPO letra. Claro, sem nenhuma concessão a seu sistema, podemos compreender-lhe a lógica, que repousa na idéia de que a Bí- blia é um livro de história e o Gênesis uma cosmologia. Desse ponto de vista, os criacionistas refletem uma con- cepção dos textos sagrados muito próxima daquela partilha- da pelos grandes espíritos durante séculos. Os exegetas medievais buscam sem dúvida o sentido segundo textos, suas interpretações alegóricas e espirituais. Consideram, entretanto, o sentido primeiro, literal, como um documento informativo. Para a Idade Média, e mesmo mais remotamente, a narrativa da Criação não trazia problemas como narrativa. Simples- mente continha pontos obscuros, elipses e contradições pre- tensamente aparentes e havia um esforço no sentido de delas fazer um levantamento. A essa abordagem não faltava audácia. Tentar "fazer his- tória" assim, com a Bíblia, antecipa alguns de nossos méto- dos modernos - ainda que as premissas sejam, como o são, equivocadas. o grande salto só se dá no fim do século XIX quando outros livros - mais antigos do que a Bíblia - são descobertos e quando os eruditos deixam de ver nas Escritu- ras uma base de dados. Antes que fossem conhecidos os pri- meiros avanços da egiptologia, persistia um acordo geral: a Bíblia é o livro mais velho do mundo, portanto o mais vene- rável e mais verdadeiro, uma vez que o antigo por definição parece ser mais confiável do que o presente. É preciso então distinguir com clareza de que maneira se via a Criação, e a crença em um Deus criador. Porque afinal essa crença é que é central. A noção de criação se liga a uma concepção de Deus, da natureza e do homem. A coerência nesse caso é mantida, pen- sada, ordenada, reordenada, por um organismo coerente ele próprio: a Igreja. A isso corresponde uma sociedade hierár- 127EM BUSCA DA IDADE MÉDIA quica, centrada em torno do dominium: a dominação da se- nhoria. o dominium insere - encarna - a função divina na sociedade humana. uma visão hierárquica. Hierarquia que não deve ser compreendida como uma relação de forças unívoca: o rei no alto, súdito embaixo. movimento é recíproco. Deus se encarna, o homem se diviniza. Vemos aqui a descida do Céu sobre a Terra a que já nos referimos. Céu vem viver entre nós. Isso reforça, claro, nossa deferência diante da Majestade. Mas se o Céu se no nível da Terra, isso também significa que há uma transfi- guração da Terra, que nos vemos num movimento ascenden- te. Para os homens e as mulheres da Idade Média, a hierarquia não tem a rigidez que terá no absolutismo e no Antigo Regi- me. Não esqueçamos, na verdade, que o "horror feudal" tão abominado pelos revolucionários o Antigo Regime não passa de um sistema de governo remodelado a partir dos anos 1600. o Estado e hierarquizado que precede, na França, o Antigo Regime não tem as mesmas características. Se o rei medieval estáno alto, debruça-se sobre os súditos e os súditos podem subir até ele. o mais humilde habitante da aldeia está convencido de que pode falar com o rei, que o rei é acessível, como um bom pai, ou antes como Deus na terra. E os próprios reis se vêem como pais de seus povos ou antes como intermediários entre Deuse esses povos. Mais tarde tentei com- preender, através de São Luís, o ordenamento de um corpo medieval que os escolásticos consideram me- lhor entre os corpos políticos possíveis, no sentido aristotélico. A Encarnação a existência de uma His- tória. Há uma História antes de Jesus e outra depois de Jesus. o tempo do Antigo Testamento se orienta no sentido da vin- da do Cristo. Com a ascensão aos céus, o Cristo inaugura um novo tempo, também este com uma orientação: é o tempo 128UMA CIVILIZAÇÃO TOMA CORPO que leva ao fim do Tempo. Esse tempo que virá não supõe realmente um progresso, no sentido em que o entendemos, uma vez que a sociedade medieval já o vimos pratica- mente não aprecia a novidade, mas fixa uma direção. A hu- manidade, depois da queda, recebeu a promessa de uma salvação. A salvação nos foi dada, num momento preciso, por alguém muito preciso: Deus feito homem. E tudo se diri- ge, desde então, no sentido do momento de sua volta. Está nisso o fim do tempo cíclico caro à ainda que esse tempo cíclico subsista absorvido pelo calendário litúrgico. cristianismo medieval não subverte somente a relação com o tempo, os ciclos e a duração. Esforça-se por encarnar a encarnação, se assim posso dizer, graças à eucaristia: cada missa, cada dia, em todo lugar, Deus entre os homens hic et nunc, aqui e agora. Receber a hóstia é se tornar membro do corpo de Cristo, participar do grande corpo místico for- mado pela totalidade dos homens, os vivos e os mortos. Tudo isso nada tem de uma longínqua teoria. A Igreja me- dieval a sociedade medieval em seu conjunto esforça-se para viver a prática, vivê-la concretamente. Chega a isso graças a um constante trabalho sobre a liturgia e os sacramentos. A própria eucaristia, a comunhão, só acha sua expressão "defini- tiva" no século XIII, com a instauração do dia de Corpus Christi. Desde as origens do cristianismo, a eucaristia é o modelo de tudo que existe, de tudo que tem valor. Ela é o corpo de Cristo. Ela une o corpo de cada fiel a um corpo superior, Melhor: a eucaristia antecipa a ressurreição. Presen- ça do Cristo ressuscitado, ela introduz o crente na ressurrei- ção, que ele só virá a conhecer plenamente depois da morte, quando será transfigurado em corpo glorioso, se preparou sua salvação através de um encontro de seu esforço pessoal com a graça de Deus. Sem dúvida, nunca houve idade tão carnal 129EM BUSCA DA IDADE MÉDIA como essa idade espiritual. A crença na ressurreição da car- ne, que é o contrário da reencarnação, estrutura essa socieda- de de maneira totalmente inédita se comparada com outras religiões e outras sociedades do mesmo período. Por que o senhor faz menção especial da festa de Corpus Christi? Corpus Christi - que a Igreja continua a celebrar hoje sob o nome de festa do Santíssimo Sacramento - tem lugar, em princípio, na quinta-feira que se segue ao domingo da Trindade (8° domingo depois da Páscoa). Sua primeira cele- bração data de 1264, em Liège. o papa Urbano IV, nesse ano de 1264, estende a toda a Igreja essa festa do corpo de Cristo, marcada por uma procissão solene que cada cidade organiza, ou cada aldeia. o Santíssimo Sacramento nessa festa, uma "entrada" verdadeiramente real, seguido pela comuni- dade urbana que se dá em espetáculo a si mesma em torno do Corpo de Deus. Porque uma procissão medieval em cena toda a hierarquia: cada um com seu lugar, suas cores, suas insígnias, etc; dos mais importantes aos mais humildes. o poderoso dispositivo das festas e do calendário consti- tui o quadro temporal fundamental de toda a En- tre esses momentos excepcionais que são os dias feriados (do latim cristão feriatus, dia de festa), Corpus Christi coroa um longo esforço da Igreja. Urbano IV o instaura para marcar com clareza a importância da eucaristia, num tempo em que os fiéis só comungavam raramente. Antes do Corpus Christi, só os que comungavam viam o corpo de Cris- to. Agora esse corpo passa a ser mostrado a todos de maneira suntuosa e gloriosa. É uma das do famoso con- cílio de Latrão IV: generalização da confissão, importância destacada da comunhão. 1 3 0UMA CIVILIZAÇÃO TOMA CORPO Corpus Christi confirma assim de maneira forte a escolha feita pelo cristianismo ocidental. Como qualquer religião, o catolicismo dispunha de dois métodos contrários para garantir o culto e organizar a liturgia. Seja a ostensão, a "monstran- ce", como se dizia no francês antigo. Seja a ausência, o segredo. o Ocidente escolheu o primeiro caminho. Bizâncio e o cristianismo oriental preferem uma certa forma de retração, sob influência da pressão anicônica* que o judaísmo e depois o islam não cessavam de exercer. Na tradição ortodoxa, tudo repousa sobre a revelação do que está oculto: dentro da igreja mesmo, o santuário não está imediatamente acessível nem visível. Está no coração da iconostase, pequena divisão fechada por três portas e decorada por Há certamente uma gradação compa- rável nas igrejas ocidentais. fiel não tem acesso diretamente ao coro, e a hóstia consagrada fica depositada no interior do tabernáculo - mas no Ocidente tudo é imediatamente visível, mesmo do fundo da nave. Não há a sensação do mistério es- condido e depois desvelado que caracteriza a liturgia ortodoxa. Os ocidentais nem hesitam em ajustar o Santíssimo Sacramento a um ostensório e depois sair com ele da igreja em procissão. No Oriente, as procissões são feitas em torno dos ícones. Da mesma forma o rei medieval mergulha simbolicamente no coração de seu povo, enquanto que o absolutismo do Antigo Regime in- verte a tradição medieval. Nenhum rei da Idade Média seria "isolado" como XIV foi em Versalhes. Para Corpus Christi, instala-se ostensório debaixo do objeto mais sacralizado - e mais sacralizante - da Idade Média ocidental: o pálio. Percorrer a cidade sob um pálio, eis o ato real por excelência. Compreendamo-nos bem. Não se *Pressão, como se viu anteriormente, contra a representação do sagrado por imagens (ícones). (N. do T.) 1 3EM BUSCA DA IDADE MÉDIA adapta ao Corpo de Deus um rito real: é o rito real que se ins- pira no Corpus Christi, não o inverso. rei, corpo físico e corpo místico, está presente sob um pálio porque o Santíssimo Sacramento esteve antes dele. A primazia é da Encarnação. Ocidente guardava uma memória, mais ou menos exata, dos ritos imperiais. E por muito tempo houve hesitação entre os que rodeavam os reis: rei devia permanecer inacessível, à moda oriental, ou devia, ao contrário, mostrar-se? A festa de Corpus Christi determinou para que lado a balança se inclinaria: o rei se mostra. Até o fim da Idade Média política, prefere-se que ele permaneça em sua cidade, no meio de seu povo. Quan- do viaja, o rei de França "entra" em cada uma de suas cidades de maneira solene - "entradas" dignas de Corpus Christi - para deixar bem claro que está na cidade. Quando o povo de Paris vai procurar em Versalhes "o Padeiro, a Padeira e o Padei- rinho", estamos diante de um velhíssimo sentimento: é preci- SO que o rei volte a viver na cidade, no meio dos seus. Não há nenhum acaso no fato de os parisienses terem escolhido a metá- fora do pão de um modo para além do medo con- creto das fomes: o pão verdadeiro é a hóstia, na qual está a presença real. Não digo, evidentemente, que os revolucionários tenham tido um programa teológico. Seu simbolismo, entretan- to, mergulhava profundamente nas raízes. E se sabe, graças a Mona Ozouf, a que ponto a festa revolucionária tenta reinven- tar, com finalidades republicanas, os velhos hábitos litúrgicos. *Embora as coisas de certo modo estejam claras na não custa lem- brar: quando povo faminto foi procurar rei em Versalhes, a 5 de outubro de 1789, o refrão pedia "o Padeiro, a Padeira e o Padeirinho" ("le Boulanger, la Boulangère et le petit Mitron"), referência ao rei XVI, à rainha Maria Antonieta e ao delfim. Atente-se para o fato de que Versalhes não pertence a Paris, é uma outra cidade, a 14 quilômetros da capital francesa, a sudoeste, no departamento de Yvelines. Mas os parisienses é que iam em multidão a Versalhes. (N. do T.) 132UMA CIVILIZAÇÃO TOMA CORPO A derrota do utópico e poético calendário revolucionário é assim a contrario* a demonstração do brilhante sucesso do calendário ocidental cristão. Para "descristianizar" a França, julgaram os revolucionários que seria preciso desmantelar o instrumento que tinha sido adotado pela Igreja Igreja que tinha feito do tempo simultaneamente um quadro e um ensinamento. A Idade Média, até o concílio de Trento e o calendário gregoriano no século XVI, não pára de trabalhar sobre o ca- lendário, sob a conduta da Igreja. Resulta disso uma remode- lação completa da maneira de organizar e de viver tempo. o tempo cristão medieval baseia-se nos dois mais impor- tantes calendários anteriores, os mais significativos na zona geográfica em que o cristianismo se instalou. Para a vida pro- fana e cotidiana, adota-se o quadro do calendário pagão anti- go instituído por Júlio César, o calendário juliano, com seus doze meses. Mas o calendário juliano sofre transformações profundas a partir do calendário judeu: a centralidade da data de Páscoa e a noção de semana, basicamente. o calendário cristão é decididamente solar, mas os especialistas cristãos do calendário, os computistas, não chegaram a dar uma data fixa para a Páscoa. Restou assim essa instabilidade do calendário que mostrou, no período contemporâneo, seus inconvenien- tes, especialmente em matéria de calendário escolar. A França, por exemplo, só recentemente desligou as da- tas das férias ditas de Páscoa do dia da festa de Con- sidero a adoção da semana uma das grandes revoluções do calendário. o ritmo dos sete dias e a sacralização do domin- go (sobre modelo da criação), até hoje objeto de lutas sindi- *Locução latina, às vezes também citada de modo completo (a contrario sensu), que significa "pela razão contrária". (N. do T.) 133EM BUSCA DA IDADE MÉDIA cais, deu uma atenção particular ao trabalho e ao descanso (o respeito ao repouso dominical foi objeto de uma rigorosa re- gulamentação na época carolíngia). Essa divisão determina um ritmo de atividade econômica que, penso, foi muito favo- rável à boa produtividade do Ocidente medieval. Um problema era a determinação da data da criação, data do início da história e do calendário. A Igreja medieval adotou cálculos de um monge grego do século VI, Dionísio, o Pequeno, que se baseou sobre as raras observa- ções nesse sentido do Novo Testamento. Fixa o nascimento de Jesus, a Encarnação, no ano 754 do calendário romano (que tomava como base a data suposta da fundação de Roma). É o ano I. A partir daí o calendário se divide em antes e de- pois de Jesus Cristo, não existindo ano 0, o que complica ainda hoje o cálculo dos séculos (divisão surgida no fim do século XVI) e dos milênios.* *Neste caso, parece que nosso excelente Autor se equivocou. Ao inverso, um ano é que viria a complicar as coisas. Nenhuma contagem começa de zero. Uma estrada, por exemplo, pode ter o marco quilométrico 0, mas nunca uma extensão de mil metros poderia ser chamada de KM 0: a partir do momento em que você se afasta um milímetro do marco zero já está percorrendo, evi- dentemente, KM 1. Um segundo depois que uma pessoa nasce já está viven- do seu ano 1, pois seria impossível viver qualquer de tempo anterior ao ano primeiro, uma vez que primeiro é o primeiro e antes do primeiro não pode haver nada, ou primeiro deixaria de ser primeiro. Assim como uma criança não pode ter zero ano (a não ser numa nomenclatura descabida do Ministério da Saúde, no Brasil), pois desde 0 momento do parto já vive uma fração de seu ano 1, coisa bem diferente de zero, menos ainda um calen- dário pode ter ano zero, pois é nada, o zero é inexistência, o zero é a ausência de qualquer valor e 0 tempo não pode ter ausência, evidente- mente, mas apenas existência. Em matéria de calendário, o monge Dionísio, o Pequeno, embora também tenha cometido enganos (quanto a cálculos arit- méticos, vai-se ver adiante, mas não quanto a essa fixação conceitual, ou matemática, do início de uma era, de um tempo novo a partir do ano 1), era competente. (N. do T.) 134UMA CIVILIZAÇÃO TOMA CORPO Mas Dionísio se enganou. Pensa-se hoje que o nascimen- to de Jesus na realidade teve lugar por volta do ano 4 a.C. De qualquer maneira, esse calendário só muito lentamente se estabeleceu na Cristandade. Só no século X sua difusão atin- ge a todas as elites. A lentidão dessa difusão foi uma das ra- zões para que não se desse crédito aos pretensos "medos do ano Mil", inventados pelo romantismo: só um pequeno nú- mero de clérigos sabia que se vivia o ano 1000! A tardia e a Alta Idade Média também intro- duziram outras inovações importantes no domínio da medi- da do tempo e do tempo vivido. Nessa época em que o modelo monástico exercia influência forte, os monges adotaram uma divisão do tempo cotidiano em horas canônicas, desde o des- pertar matinal muito precoce (matinas) até momento de se deitar. Além disso, para enquadrar a atividade da sociedade ru- ral que os rodeava, inventaram no século VII um calendário sonoro, os sinos, o que levou à construção de numerosos cam- panários integrados ou não (avulsos) às igrejas. o ângelus da manhã e o ângelus do fim da tarde enquadraram a partir daí a vida cotidiana dos homens e das mulheres da Idade Média. Com esse tempo da Igreja entra em conflito a partir do século XIII um tempo leigo, tempo das cidades (toque de alarme, chamado toque a rebate), a que chamei tempo dos comerciantes, porque esse toque destinava-se so- bretudo a marcar o tempo do trabalho. Finalmente, aparece no fim desse mesmo século XIII o relógio mecânico, marcando, apesar de um funcionamento muitas vezes defeituoso, a repartição do tempo em horas iguais. o relógio individual, coisa rara até o século XIX (o tempo individual não é um fenômeno medieval), só foi cria- 135EM BUSCA DA IDADE MÉDIA do no fim do século XV, em Milão. No século XV é que nas- ce, paralelamente com emprego monástico do tempo, a partir daí tornado arcaico, um emprego do tempo leigo, o do mercador. Dois calendários paralelos funcionaram, distinguindo-se pela data do início do ano. Um era empregado nas chancela- rias eclesiásticas e leigas, para datação dos documentos e dos atos oficiais. Testemunha da fragmentação institucional no interior da sociedade medieval, essa data foi variável, defi- nindo o que chamamos de estilos, o que torna difícil para os medievalistas o estabelecimento de uma cronologia medieval autorizada. A maioria desses "estilos" fixos situava-se nas pro- ximidades da Páscoa. De modo que o ano civil medieval co- meçava com mais em março. o ano litúrgico, segundo a Igreja, resume e concretiza para cada um de nós a história da Salvação. Começa, a partir do século X, no primeiro domingo de dezembro. É o Advento, período em que se espera a vinda - adventus do dia de Natal, dia da Natividade, quer dizer, da Encarnação de Jesus, fixado em 25 de dezembro desde o ano 354. ano litúrgico culmina na Páscoa, dia da Ressurreição de Jesus, depois se estende por Pentecostes, quando os discípulos recebem o Es- pírito de Jesus que sobe aos céus. Esse calendário litúrgico insere tempo cíclico no tempo linear do calendário civil. Outra grande inovação, depois da comemoração da vida de Jesus, é a introdução dos santos no calendário, o que con- firma seu caráter de comemoração. A Igreja não pára de fazer novos santos, instituindo, para celebrar a todos, a festa de Todos os Santos, que se torna muito popular no século IX. Como bem observou Peter Brown, os santos eram mortos privilegiados. No século XI, sancionando novas relações dos 136UMA CIVILIZAÇÃO TOMA CORPO vivos com os mortos, os mosteiros passam a ter livros de memórias, obituários (registros de datas reservadas para a celebração de uma missa em favor de tal ou qual falecido). Instituem-se linhagens dos ancestrais. Sob o impulso da or- dem monástica de Cluny, a Igreja dobrou no século XI a festa de Todos os Santos com uma comemoração dos mortos a 2 de novembro - "Dia dos Mortos", hoje amplamente respei- tado. Assim nasce na Idade Média uma Europa da memória e das comemorações - memória que se exacerba em nossa época, depois dos horrores memoráveis do século a partir do cristianismo, cujo fundador, Jesus, tinha dito aos apóstolos instituindo a eucaristia na noite da Ceia: "Vocês farão isto em memória de mim." Desse modo foi cristianizado e reduzido a uma devoção o culto pagão dos mortos que, nos campos, sobrevivera de maneira teimosa. Desde os festejos de Halloween,* longínqua adaptação muito comercial da festa celta dos defuntos, via ame- ricanização dos costumes, compreende-se melhor a energia e a tenacidade da Igreja medieval: calendário já é um catecismo. Articula o tempo e a história sobre esses dois sustentáculos que são a Criação e a Encarnação (Encarnação que, de resto, é uma re-Criação). Une os vivos e os mortos no nível da família e dos diferentes corpos sociais, até a própria humanidade. Tratando-se da comemoração dos mortos, parece-me que, laicizada, a festa de 2 de novembro mantém um conteúdo de *É o Dia das Bruxas, festa de origem anglo-saxônica, hoje sobrevivente quase que com exclusividade nos Estados Unidos, celebrada na véspera de Todos os Santos (portanto no último dia de outubro). Nesse dia, as crianças dos Estados Unidos, entre outras brincadeiras, se disfarçam de fantasmas e de feiti- ceiro(a)s. Etimologicamente, Halloween significa exatamente "à espera do dia santo". (N. do T.) 137EM BUSCA DA IDADE MÉDIA sensibilidade e de memória completamente estranho a todas as criaturas do Halloween. Seria interessante, na perspectiva de história comparada que, parece-me, deve ser uma das preo- cupações maiores do historiador, buscar uma compararação desses comportamentos com osdos mexicanos, entre os quais as evocações festivas dos mortos têm uma importância tão grande. Suponho que aí vinga osincretismo, a partir do sécu- lo XVI, misturando os costumes dos índios pré-colombianos tradicionais e a contribuição de um cristianismo importado da Europa sob formas medievais. Mas é possível que os mexi- canos se voltem mais para a morte do que para os mortos. o século XIII completou a construção do calendário. Foi em primeiro lugar a introdução da festa de Corpus Christi, de que já falei, o elemento essencial do sistema de calendário medieval. Em seguida, foi a instituição do jubileu sobre o modelo do jubileu judeu do Antigo Testamento, festa da solidarieda- de e do perdão das dívidas a cada anos. o papa Bonifácio VIII foi o principal incentivador da criação do jubi- leu, em 1300. E o jubileu se tornou um grande sucesso que levou a Roma multidões de peregrinos, testemunha de uma volta às fontes e ao mesmo tempo afirmação de unidade de um cristianismo cada vez mais dividido, além de programa de paz para futuro. Esta perspectiva não foi um grande su- cesso mas, com a vontade de afirmar a autoridade suprema do papado, a Igreja manifestava que o calendário é um ele- mento de ligação, um instrumentos de solidariedade. Por fim, com progresso da leitura individual, século XIII conheceu a difusão dos Livros de Horas. Trata-se de ma- nuais em que a devoção é repartida segundo as horas de cada dia. Exclusivos, claro, dos que sabem ler, destinam-se portan- 38UMA CIVILIZAÇÃO TOMA CORPO to a leigos poderosos e principalmente a suas mulheres. Tes- temunham também um certo crescimento na importância dos leigos e das mulheres na sociedade cristã, crescimento enqua- drado pelo calendário. Sabe-se, de resto, que esses Livros de Horas, muitas vezes ricamente ilustrados, forneceram algu- mas das mais belas obras-primas das miniaturas da Idade Média. INFERNO, PURGATÓRIO, PARAÍSO Ainda que a idéia moderna do Progresso, a Ida- de Média pensa, porém, que a História tem um sentido? Poder-se-ia dizer que a Idade Média era pré-marxista, na medida em que o marxismo, como descendente do socialis- mo utópico, era um milenarismo ateu. Não se veja nessa afirmação uma simples frase de efeito. Como mostramos com clareza, existe, ao longo de todo o período medieval, uma tradição milenarista. Essa palavra não designa a espera de um fim do mundo para o ano Mil, mas a idéia de que a humanidade deve atravessar um certo número de períodos - "enumerados" pelo Apocalipse - ao fim dos quais o sopro do Espírito Santo invadirá a Terra. Será a parusia, volta gloriosa do Cristo. Começaria então, sempre segundo o Apocalipse, um reinado de mil anos, antes da chegada do Juízo Final. Claro, cada milenarista nos "sinais dos tempos" um ape- lo à ação imediata: a humanidade acaba de entrar, ou logo entrará, no último período... Já combatido por Santo Agosti- nho, constantemente condenado pela Igreja, o milenarismo 139EM BUSCA DA IDADE MÉDIA assim mesmo "volta" numerosas vezes, sob formas simples, rapidamente eliminadas (movimentos populares, em geral), mas também sob formas elaboradas, que seduzirão os po- derosos, o mais alto clero e alguns papas. Porque a tentação milenarista casa muitas vezes com a necessidade de reforma: os sinais dostempos anunciam que, para a cristandade, apro- xima-se a hora de corrigir seus vícios e de se preparar para os últimos dias ousaria dizer: para a Grande Noite. o monge calabrês Gioacchino da Fiore (c. de 1132-1202) propôs a teologia mais ambiciosa, e a mais complexa desse milenarismo intelectual e místico. Sua obra ora é rejeitada ora é aceita, aqui é exaltada, ali é condenada (depois de sua morte), e afinal parcialmente reabilitada, se bem que em vida ele tenha sido constantemente submetido à obediência, na Igreja, chegando a redigir em 1200 um testamento reafirman- do sua submissão e sua fidelidade. Gioacchino da Fiore tinha uma visão "histórica" da hu- manidade. Fiel à estrutura trinitária, descrevia a história do mundo como a sucessão de três Idades. A Idade do Pai ia da Criação até nascimento de Jesus. A Idade do Filho começa- va, claro, com a Encarnação, julgando-se que duraria ainda, que essa Idade era o tempo presente. A essa Idade do Filho sucederia, em pouco tempo, uma Idade do Espírito, que seria uma Idade do desabrochar espiritual e da iluminação, conse- cutiva a umaprofunda reforma na qual a humanidade "refor- mada" seria governada pelos santos. Essa Idade prepararia, assim, dignamente, a volta do Cristo, Juízo Final, a ressur- reição geral e o fim do Tempo. Henri de Lubac mostrou que se tratava de uma visão oti- mista da História. Visão que deixou traços duráveis, espe- cialmente na filosofia romântica, em particular em Hegel e 140UMA CIVILIZAÇÃO TOMA CORPO conseqüentemente em Marx. "fim da História" postulado pelo primeiro e a "luta final" esperada pelos marxistas pro- vavelmente não espantariam os homens da Idade Média. Se a Igreja não admite a teoria das Idades, como define o sentido que, contudo, encontra na História? Será a Providência. Tomás de Aquino, severíssimo com Gioacchino da Fiore, define a Providência como "o plano segundo o qual as coisas foram ordenadas para seu Por sua Providência, Deus vela para que a História se desenvolva no bom sentido. Evidentemente, essa tese se choca com uma dificuldade da qual Tomás de Aquino e todos os teólogos estão conscien- tes. Se Deus deixa a humanidade livre, se não há nem desti- no, nem fatalidade, Deus não pode manipular a humanidade, ainda que seja para conduzi-la à salvação. Por um outro lado, não podemos fazer de Deus - desse Deus que se encarna um ser longínquo, que se contentaria em regular uma máquina e observá-la, impotente, em seu bom ou mau funcionamento. É o problema da predestinação, que já tinha atormentado Santo Agostinho e que voltará de forma violenta com Lutero e a Reforma. Tomás de Aquino supera a objeção de um modo hábil, porém um pouco sutil demais. Na verdade, acrescenta que "a providência impõe a necessidade de certas coisas, mas não de todas". Não se pode, portanto, imputar à Providência fatos menores, acidentes secundários. A idéia seria mais no sentido de que há, segundo Tomás, um projeto de Deus, intrinseca- mente bom: a Criação. homem, a quem Deus deu o livre- arbítrio, está livre para manchar essa bondade, reduzi-la, 141EM BUSCA DA IDADE MÉDIA obscurecê-la mas só resta ao homem emendar-se, livre- mente, para mais se aproximar do soberano Bem. Isso, toda- via, só se cumprirá na eternidade - não no tempo. É então que reencontraremos plena e inteira a Bondade de que somos feitos. Reconhece-se neste ponto uma das pro- fundas de Tomás, segundo a qual - para retomar uma fórmula de Jacques Maritain:* "tudo aquilo que é, é bom na própria medida em que é: o ser e o bem são termos convertíveis". Inútil dizer que a visão de Tomás, em muitos pontos, não é acessível a todos. Seu pensamento não foi recebido com grande abertura, mesmo depois que a canonização (1323) o consagrou, nem depois de sua elevação ao grau excepcional de "doutor da Igreja" (1567). Constata-se, ao invés, vivo sucesso, em todos os meios, de um tema bem pouco cristão: o da Fortuna. Artes, literatura, discurso. Por toda parte está essa ima- gem da Fortuna fazendo a grande Roda girar. Assim a roda da vida alimenta a criança de peito, lá embaixo, depois leva a criança à idade adulta, depois consagra o homem maduro, antes de rejeitar o velho de novo lá embaixo, quando a vida acaba. Assim, numa visão do poder: Fortuna leva a poderio e *Filósofo católico entre os maiores do século XX, Jacques Maritain (1882-1973), habitualmente classificado como neotomista, teve grande in- fluência sobre a geração que dominou pensamento católico brasileiro do meado para fim do século passado, Alceu Amoroso Lima à frente. Alceu o recebeu no Rio, em visita que o filósofo fez ao Brasil, em 1936, e traduziu várias de suas obras. Mas seu livro considerado básico, Humanismo integral (São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1942), foi traduzido por Afrânio Coutinho. Em entrevista que ficou famosa dada a Antônio Carlos Vilaça para o Jornal do Brasil, no fim de 1972, poucos meses antes de morrer, já então como de De Foucault num convento de Toulouse (para qual se retirou depois de enviuvar), Maritain, aos 90 anos, referiu-se a Alceu como "meu querido Amoroso Lima". (N. do T.) 142UMA TOMA CORPO riqueza, depois - a roda gira chega a hora da queda. Que a Fortuna seja às vezes representada sob a forma de Anjo, e que se tente aqui e ali substituí-la por Deus, nada consegue impedir que a Roda da Fortuna contradiga a idéia da Provi- dência. Essa contradição jamais poderia ser, na Idade Média, ob- jeto de um debate de fundo. Devia ser uma coisa tão forte que, parece, buscou-se evitá-la porque há falhas e fugas nessa civilização tão controlada e voltada para a coerência. Aproveito para evocar aqui uma convicção que sustenta minha visão da história sem que eu queira falar de filosofia da história, tentação de que me defendo. Constato - é uma evidência que em todas as épocas as sociedades não escapam disso que tentamos definir como incoerências. Essas con- tradições internas se devem em particular ao amálgama im- perfeito dos estratos históricos que cada época herda e das diferenças de caminhada dos diversos elementos constituin- tes da civilização. Uma sociedade não caminha em tudo com o mesmo passo. tempo concreto da história é heteróclito. E, mais que de contradições, as sociedades históricas pare- cem-me atravessadas por tensões cujos conflitos afinal cons- tituem a dinâmica da sociedade. A Idade Média me parece tanto mais dinâmica quanto mais abriga numerosas e pode- rosas tensões. O tempo não existe sem espaço. Talvez a Roda represen- tasse melhor o tempo? Seria preciso, para isso, que a Idade Média tivesse uma concepção cíclica do tempo, e não é o caso, apesar da Roda da Fortuna. ano litúrgico se bem que fechando-se sobre 143EM BUSCA DA IDADE MÉDIA si mesmo - é paradoxalmente um instrumento para impor a idéia de um tempo linear. A Igreja se serve da volta cíclica das estações e das festas para repetir, a cada novo período, que a humanidade vai de um início a um fim, e que o fim não é um reinício mas um renascimento em um outro mundo, que será um mundo definitivo, sem tempo. Claro que para os homens e as mulheres da Idade Média era difícil imaginar esse além que - não pertencendo mais ao tempo - não transcorria num espaço visível. Donde o extraordinário trabalho para se representar os "lugares" do além: o paraíso, o inferno, depois - trabalho ainda mais su- til - essa invenção do purgatório, à qual consagrei um livro em 1981. purgatório é, se assim se pode dizer, uma sala de espera destinada aos pecadores médios e ordinários (mediocres, em latim), que não podem ir diretamente para o paraíso, mas que também não merecem o inferno. Quase todo cristão po- dia então pensar que passaria por esse purgatório para lim- par-se de suas faltas. Era reconfortante. Todos supunham que poderiam escapar do inferno. Mas representava-se muito mal esse lugar vago e cinzento onde a alma suspirava por estar tão próxima de Deus, sem entretanto chegar até Ele. A visão que se construiu dele é a de um inferno menos porém de qualquer modo temporário. Vê-se a inferno é monstruosamente ter- restre, tão terrestre que é subterrâneo. Isso não surpreende. Os malvados estão lá, punidos de acordo com o que peca- ram. Estão condenados ao prolongamento perpétuo daquilo que há de pior no espaço-tempo, tornado mais pesado em de seus atos. Ao invés, há um esforço para re- presentar o paraíso de maneira sempre mais aérea, celeste, 144UMA CIVILIZAÇÃO TOMA CORPO inefável: sugere-se desse modo um espaço e um tempo tão desligados de si mesmos que só é possível dar-lhes expressão através de imagens. Se também se pensa que existe, depois da morte, uma re- cuperação possível, isso cria uma contradição. A idéia de pur- gatório obriga a definir uma certa forma de espaço e uma certa formade tempo lá onde a Igreja ensina, por outro lado, que não há mais espaço nem tempo. É preciso elaborar um espaço intermediário entre o mundo e o além, entre a morte individual ea Ressurreição coletiva. Quandose reza pelas almas do purgatório, quando se man- da dizer missa pelos mortos, quando se faz um esforço para obter indulgências, tudo isso a Igreja conta para os fiéis sob a forma de dias. Os cristãos obtêm assim, enquanto estão vi- vos, para si mesmo ou para os outros, uma redução em seu tempo de espera. Segundo as orações, as penitências ou as somas depositadas, pode-se diminuir essa purgação em deze- nas, até em centenas de dias, longos como sejam esses dias no além. Há tarifações precisas, das quais zombarão os protes- tantes. Que são dias em um tempo no qual, segundo profes- samos, não há mais dias, afinal? "Mil dias são a teus olhos, diz o Salmo 90, como dia de ontem que passa, como uma vigília na noite."... Essa espacialização do purgatório tinha essenciais. Fazia crescer o poder da Igreja, cuja ajuda era ne- cessária para diminuir a duração das temporadas num lugar, o purgatório, tão penoso quanto o inferno - com essa dife- rença de nãoser eterno, mas de duração variável. Com a cons- trução do purgatório, historicamente, o homem vivente dependia na terra do direito de jurisdição da Igreja, foro eclesiástico. homem morto, por sua vez, estava na depen- 145EM BUSCA DA IDADE MÉDIA dência única do foro divino. Mas, com o purgatório, as almas (humanas, dotadas de uma espécie de corpo) dependem daí em diante do foro conjunto de Deus e da Igreja. A Igreja faz transbordar seu poder, seu dominium, para além da morte. Meu estudo sobre o purgatório me fez compreender que uma civilização se definia essencialmente por seu domínio do espaço e do tempo. A civilização medieval só podia se tornar poderosa estendendo até o além o domínio do espaço e do tempo sobre a terra, cá embaixo. A civilização medieval re- pousava sobre a ausência de fronteira impermeável entre o natural e o sobrenatural. A eternidade que aboliria o espaço e o tempo era verdadeiramente jogada para fora da história. Sob outro ponto de vista, o purgatório modificava pro- fundamente as relações entre os vivos e os mortos. Os mor- tos no purgatório não dispunham mais de nenhum poder sobre seu destino, sobre sua salvação, ainda que sua ida para esse lugar deixasse entrever uma acolhida final no paraíso. A du- ração dessa temporada - e dos tormentos que lá sofreriam dependia dos vivos, de seus sufrágios. Antes do fim do século XII, os vivos rezavam, faziam doações à Igreja "pro anima", pela alma pelas almas que lhes eram queridas, mas o mecanismo e a eficácia dessas devoções permaneciam vagos, misteriosos. purgatório foi a explicação. Selou defi- nitivamente a solidariedade da humanidade, unindo-a no es- paço e no tempo. Descobre-se nesse episódio outra das falhas internas da Idade Média. Essa civilização ainda nesse caso evita o con- fronto. Fortemente utilizado pela Igreja, fortemente implan- tado nos espíritos, o purgatório mais traz problemas do que os resolve. É aliás essa fragilidade que Lutero utiliza ao se levantar em 1517 contra a venda das indulgências da qual a 146UMA CIVILIZAÇÃO TOMA CORPO Igreja, especialmente a Sé romana, tirava fundos considerá- veis. Masum fato é inegável. Até surgir o purgatório, a vida e a morte separavam o foro eclesiástico e o foro divino, o po- der de jurisdição da Igreja e o de Deus. Os vivos respondiam ao tribunal da Igreja, os mortos, ao de Deus. Com o purgató- rio, a jurisdição tornou-se mista. A Igreja ultrapassava as fron- teiras da morte. EUROPA OU OCIDENTE? A civilização medieval levou longe seus esforços para re- presentar o invisível. E onde ficava o mundo visível? mundo visível repartia-se entre isso a que chamarei mi- croespaço, acessível à experiência comum, e um macroespaço, menos facilmente perceptível e mensurável. Porque ainda se dispõe de poucos instrumentos para representar mundo real. Tratando-se do macroespaço, é impressionante constatar como circulam os homens da Idade Média. Desde a época de Carlos Magno, quando os contatos com o Oriente são redu- zidos e o comércio ainda não tomara a importância que viria a tomar, as novidades já caminhavam rapidamente. As terras longínquas são vistas como realidades intrigantes. Os eruditos delas não têm mais do que uma concepção vaga e temente fabulosa. Os mapas são fantasiosos. Para demarcar a Europa central, a Polônia, a Ucrânia, alguns geógrafos con- tentam-se em anotar: Ibi sunt leones, "aqui estão os Mas, ainda assim, desde muito cedo, fazem-se explorações. Michel Mollat pôde consagrar um belo livro aos "explorado- res" da Idade Média. 147EM BUSCA DA IDADE MÉDIA Correndo o risco de surpreender, devo dizer e repetir que a Idade Média é, em primeiro lugar, uma época rica de circu- lação marítima e fluvial. Não há bons meios de transporte terrestres. Oriente é que se utiliza das estradas e das caravanas. o Ocidente muito cedo - esco- lheu o mar. Na verdade, não havia escolha. A situação geo- gráfica impunha isso, apesar de uma desconfiança atávica. mar é traiçoeiro, o mar dá medo. Tempestades, naufrágios, monstros que as profundezas vomitam, a baleia de Jonas e outros seria uma longa lista que a iconografia nos propõe. Apesar disso, o pragmatismo se impõe. o Ocidente me- dieval tem necessidade do mar. Figura do caos, não-lugar, apesar disso o mar não pode deixar de ser dominado. Os avan- técnicos em matéria de navegação são consideráveis. Será preciso relembrar a importância precoce das grandes cidades marítimas italianas ou de alguma das duzentas cidades con- troladas pela Hansa,* que se estendem desde os Países Baixos até as costas da Finlândia? Esse domínio concreto contrasta com aperfeiçoamentos mais tardios em matéria de cartografia. Os mapas continen- tais, descrevendo o interior das terras, permanecem muito *Associação de mercadores da Idade Média, constituída inicialmente (Hansa teutônica, ou Hansa por mercadores alemães de Lübeck, Hamburgo e Colônia, atingiu seu ponto máximo no século XIV, quando só núcleo mais ativo dessa espécie de cooperativa era formado por 70, talvez 80 cidades. Tinha, além das três sedes citadas, agências importantes em Novgorod (Rússia), Bergen (Noruega), Londres e Bruges (Bélgica). Começou a declinar depois do fim da Idade Média, no século XV, e de modo acelerado no século XVI, a partir da derrota infligida em Lübeck pela Dinamarca (1534-1535). Mas re- sistiu até o século XVII, representada, então, só pelas cidades de Ham- burgo, Bremen e Lübeck. (N. do T.) 148UMA CIVILIZAÇÃO TOMA CORPO vagos, já o vimos. Em compensação, progresso dos mapas marinhos é, dentro de toda lógica, mais sensível, tanto que, no fim do século XIII, os catalães atingem um ponto avança- do em matéria de mapas costeiros os portulanos -, cuja exatidão é crescente. E ver-se-á, com Cristóvão Colombo, que Ocidente acaba por dominar o alto-mar. Ocidente medieval tinha o sentimento de suas frontei- ras? Tinha consciência de representar uma entidade? Essa civilização pretende-se uma cristandade, até, mais fre- qüentemente, "a" Cristandade - esquecendo, como sempre, da Igreja do Oriente. Pelo Oeste limita-se com um oceano, onde, portanto, termina. No sentido do Leste e do Sul en- contram-se religiões diferentes, hostis e, no fundo, pagãs. o Ocidente medieval também não tem nenhum projeto de con- quista, ao contrário do mundo Como o nome indica, a Reconquista espanhola é uma re- conquista real, uma re-apropriação. Dá-se o mesmo quanto às Cruzadas. Os Ocidentais - que os bizantinos chamam de francos e os de rumis (romanos) - não preten- dem conquistar novos domínios. Acreditam reinstalar-se na terra das origens: a Palestina lhes parece tão naturalmente cristã quanto Roma. Se Bizâncio parece a muitos uma cidade estrangeira, o mesmo não acontece com Jerusalém, onde morreu e ressuscitou o Cristo. E Jerusalém, os mapas errô- neos mostram isso da melhor maneira possível, é o centro do Existe portanto, com toda a clareza, uma Europa eviden- temente tendo o sentimento de valores e de interesses comuns. Nascida do Império Romano do Ocidente, ela se 149EM BUSCA DA IDADE MÉDIA caracteriza por uma oscilação. Chamar de "mare nostrum" o Mediterrâneo não tem nenhum sentido. o Mediterrâneo fun- ciona como uma fronteira, enquanto que a civilização se es- palha durante alguns séculos no sentido do Norte, muito além dos limites romanos. Em relação ao Leste, o Ocidente continua indeciso. Os eruditos medievais, retomando a tradição grega, fixam o li- mite da Europa no rio Tanaís, que é o nome antigo do Don. Não se trata, para retomar a fórmula do general De Gaulle, de uma Europa "do Atlântico aos Urais". A Rússia era dupla- mente excluída: tinha sido cristianizada por Bizâncio e sofria invasões tátaras.* Do ponto de vista geopolítico, a herança medieval per- manece, como se vê, muito imprecisa. Essa imprecisão abre campo a conflitos e a noções de herança muito flutuantes. As futuras dificuldades da Europa central e da Europa oriental potencialmente já existem. E a Europa permanece implícita, em gestação, não consciente. Esse é meu principal tema de reflexão, hoje, quando uma Europa unida parece trilhar o caminho certo. No interior desse macroespaço, quando aatenção se volta para a própria Cristandade, a escala se altera. senhor fala então de um microespaço. Se você se no interior da Cristandade, as coisas mu- dam, realmente. Seus microespaços (estados, cidades, princi- *0 mesmo que Os russos chamavam às hordas de origem turca ou mongólica que invadiram o país a partir do século XII. E, mais genericamente, a todos os grupos dessas origens e de religião que tiveram de combater até os séculos XV e XVI. (N. do T.) 150UMA CIVILIZAÇÃO TOMA CORPO pados, senhorias, bispados, etc) constituem um legado durá- vel. São um dos fundamentos dessa coerência própria da civi- lização medieval. A nossa civilização lhe deve muito. Ao longo de toda a Idade Média, a Cristandade é a um tempo una e diversa, una e fragmentada. Essa é a Europa que a Idade Média nos legou. Opor a Europa unida e as nações é hoje um con- tra-senso histórico. Em primeiro lugar, é preciso estabelecer a relação mantida, na Cristandade, entre centro e periferia. A maior parte dos historiadores - sensíveis ao ideal hierárquico da Idade Mé- dia vê a Europa se construir por um movimento de expan- são do periferias: medieval para centro para as o ocidente nasceria entre a e a Alemanha renana se difundir no sentido do Norte e do Leste, tudo isso se combinando com os restos da Antigüidade, presentes nas regiões do Sul. De minha parte, fico mais atento à importância dessas periferias. Em primeiro lugar porque Roma, ascendência no- bre do cristianismo ocidental, a partir desse momento inicial, deixa de ser o coração do passando a consti- tuir a fronteira que separa o Oriente do Ocidente. Geografi- camente periférica, Roma está, entretanto, ideologicamente no coração dessa civilização. o cristianismo medieval não esqueceu a parábola da ove- lha perdida: o bom pastor deixa seu rebanho para partir em busca da ovelha extraviada, porque não deseja ver nenhuma perdida. A Igreja medieval tem, assim, preocupação com a periferia, e é na periferia que estão os pasto- res do rebanho. A Irlanda, cujo cristianismo latino tinha sido preservado das grandes invasões, torna-se, no século VII, o núcleo da nova evangelização do continente. São Columbano (c. de 540-615), para ficarmos num exemplo único, prega a 151EM BUSCA DA IDADE MÉDIA reforma na Gália, funda numerosos mosteiros das regiões renanas até os Apeninos, onde morre, em Bobbio, no ano de 615. Em seguida, os escandinavos, os eslavos ocidentais, os germânicos, os húngaros exercem uma forte atração sobre a cristandade, com incontáveis consequências como reflexo. E que dizer da influência constante dos espaços mediterrâneos onde os cristãos estavam em confronto com o islam: a Itália, a Sicília, Espanha, Portugal?* Não se pode ver, porém, em termos idênticos, essa coe- rência de atitude em toda a Cristandade, como se se desen- volvessem "sentimentos nacionais". Os cortes e recortes da França durante a Guerra dos Cem Anos, ardentemente ideo- logizados no século XIX, não devem nos impressionar muito. Essaluta opõe duas monarquias. Muitos príncipes poderosos, como o duque de Borgonha, fazem da guerra o seu próprio jogo. Trata-se de uma grande disputa de herança, com todos os problemas de sucessão, de patrimônio, de divisão, de tro- ca, de reagrupamento de terras que se entrelaçam. As redes de propriedade territorial ou de fidelidade pessoal se fazem e se desfazem até encontrar um ponto de equilíbrio, com a expulsão dos ingleses do jogo. A última fase dos conflitos dinásticos e entre príncipes, aberta com o tratado de Troyes (1420), depois a sagração de Carlos VII (1429), caracteriza- se na França por um profundo ódio contra os ingleses. Ódio que é apenas a outra face do amor à França. Combate-se pelo rei de uma pátria, não de uma nação. É universo de Joana d'Arc. *Portugal é todo banhado pelo como se sabe, mas será legítimo considerar que seu litoral sul é como que um prolongamento do litoral medi- terrâneo da Espanha. (N. do T.) 152UMA CIVILIZAÇÃO TOMA CORPO No plural, a palavra "nações" designa as populações pa- ou atéias, por oposição ao povo de Deus. No singular, uma "nação" representa um certo número de pessoas - es- tudantes, artesãos, mercadores - com origens e interesses comuns. Esses grupos são definidos de maneira às vezes sur- preendente para quem conhece a história posterior do conti- nente. Assim, a Universidade de Paris, em 1470, inclui os alemães na nação inglesa. Distingue, também, os picardos e os normandos dos franceses; franceses que englobam os es- e os italianos...* Estamos, entretanto, na posteridade imediata da Guerra dos Cem Anos. As nações são, na verda- de, uma realidade e um problema dos séculos XVIII e XIX. Em compensação, espaços geopolíticos se organizam nas terras do Ocidente. Espaços que só progressiva e desigual- mente se tornam Estados. Assim se dá com as três grandes monarquias: França, Inglaterra e Espanha. Esta, afinal, uni- ficada só no século XV, quando Castela e Aragão vão juntar- se, assim como Leão e Navarra, já absorvidos ou marginais. Essas monarquias formam pólos dentro das redes que se vão constituindo, feitas de cidades mais ou menos poderosas e de senhorias. Desse ponto de vista, é preciso partir dos séculos IV e V. Porque tudo começa nessa época, quando se desenvolve a veneração das relíquias - relíquias que se tornam ponto nu- clear de um mundo que se procura a si próprio. o culto das relíquias suscita o primeiro balizamento daquilo que virá a ser a Europa. *Lembremos que a Universidade de Paris (Sorbonne), em seus primórdios, era dividida por "nações", reunindo os estudantes em grupos a partir de suas origens "nacionais". (N. do T.) 5 3EM BUSCA DA IDADE MÉDIA As relíquias são restos físicos corporais dos homens ou mulheres reconhecidos como santos ou santas. Por exten- são, um objeto que teve contato com o corpo do santo (ou santa) também constitui uma relíquia. A Antigüidade greco- romana dava valor apenas aos objetos que lembravam os he- róis ou os grandes homens. Como o judaísmo, também a cultura helênica considerava o contato com um cadáver como uma grave mancha. Com os cristãos, tudo se inverte. o santo ressuscitará. Figurará entre os eleitos na hora do Juízo Final. E poderá intervir em favor dos seus. É preciso então que per- maneça encarnado na comunidade. Visita-se seu túmulo como se visita um padroeiro (do latim patronus, o protetor, o de- fensor). Deseja-se ser enterrado perto desse túmulo. o corpo do santo, os objetos ligados a seu corpo na verdade, o próprio santo - intercessor junto de Deus, suscetível de ob- ter de Deus, para os fiéis, um milagre nesta vida, indulgências no além. Em torno das relíquias erguem-se igrejas, muitas constru- ções, mesmo. Os fiéis viajam até lá em peregrinação. Isso cria, em uma região, e no continente todo, cami- nhos, estradas, itinerários. o balizamento muito nítido des- ses pontos está fora dos caminhos romanos, e só em parte constitui uma ramificação deles. Até o século XI a Europa é antes de mais nada uma rede de santuários. desenvolvimento das trocas comerciais se dá, às vezes, através dessa rede. Mas o comércio, com o pas- sar dos anos, cria outros pontos nos quais se ancora, em volta de feiras e de portos - onde igualmente se desenvolvem as praças bancárias. A rede comercial desejará, claro, conquis- tar sua legitimidade, criando, ela também, relíquias. Que, nesse caso, permanecem, porém, como coisas secundárias. Não 154UMA CIVILIZAÇÃO TOMA CORPO criam lugar, há essa diferença, mas o consagram. Aquisição, trasladação, roubo ou falsificação das relíquias não poucas vezes excitam os ao longo de toda a Idade Média. A emergência das três grandes monarquias, dos poderes urbanos e das senhorias só se faz sentir verdadeiramente em função dessa dupla rede - das relíquias e do comércio. Esse reforço caminha junto com a derrota político-espacial da noção de Império, e isso apesar do prestígio de Carlos Mag- no, que nesse sentido tentou criar uma forma nova. Houve, é verdade, de 936 a 1002, o sonho dos três Otos que quase se realizou. Oto III colocou seu antigo preceptor Gerbert d'Aurillac (papa Silvestre II)* no trono de São Pedro (999). Fez de Roma a sua capital. Com apoio do papa, pa- recia reconstituir o império cristão. Sua morte prematura, aos 21 anos, fez abortar essa rápida experiência. Em 1075, o papa Gregório VII, o homem da reforma gregoriana, excomungou o imperador Henrique IV, constrangendo-o a tomar o cami- nho de Canossa para um humilhante pedido de perdão.** o Império,*** sem que se tivesse consciência disso, viveu, como *Gerbert d'Aurillac (Auvergne, 938-Roma, 1003) foi célebre por sua erudi- ção, especialmente em que ensinou em Reims, onde teve por aluno o futuro imperador Oto III. Desempenhou papel importante na desig- nação de Hugo Capeto como rei de França. Arcebispo de Reims em 991, depois de Ravena, em 998. Papa de 999 a 1003, foi, como se vê, papa do tão aguardado - e temido - ano 1000. (N. do T.) **Henrique IV, imperador germânico (1084-1105 ou 1106), teve de fazer confissão pública de culpa, na cidade de Canossa (Emília Romana), diante do papa Gregório VII, durante a assim chamada querela das Investiduras. Henrique declarara a destituição do papa Gregório VII, que levou a ser excomungado. Teve, então, de encontrar o papa na cidade de Canossa, para obter dele a absolvição. Daí nasceu a expressão "ir a Canossa", cujo sentido é de humilhar-se diante do adversário. (N. do T.) Império, em sentido absoluto, com maiúscula, é sempre Sacro-Impé- rio (N. do T.) 155