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CADERNOS ESPINOSANOS Estudos sobre o século XVII XV São Paulo – 2006 ISSN 1413-6651 cadernos_15_ok.pmd 5/10/2007, 11:391 Cadernos Espinosanos / Estudos sobre o século XVII São Paulo: Departamento de Filosofia da FFLCH-USP, 1996 - 2006. Periodicidade semestral. ISSN: 1413-6651. Ficha Catalográfica cadernos_15_ok.pmd 5/10/2007, 11:392 Editora Responsável Institucional Marilena de Souza Chaui Editora Responsável Tessa Moura Lacerda Comissão Editorial Eduardo Baioni, Henrique Xavier, Luís César Oliva. Conselho Editorial Atilano Domínguez (Univ. de Castilla-La Mancha), Bento Prado Júnior (UFSCar/ USP), Diego Tatián (Univ. de Córdoba), Diogo PiresAurélio (Univ. Nova de Lisboa), Franklin Leopoldo e Silva (USP), Jacqueline Lagrée (Univ. de Rennes), Maria das Graças de Souza (USP), Olgária Chain Féres Matos (USP), Paolo Cristofolini (Scuola Normale Superiore de Pisa) e Pierre-François Moreau (École Normale Supérieure de Lyon). Publicação do Grupo de Estudos Espinosanos e de Estudos sobre o Século XVII CADERNOS ESPINOSANOS ESTUDOS SOBRE O SÉCULO XVII N. XV, JUL-DEZ DE 2006 – ISSN 1413-6651 Endereço para correspondência: Profa. Marilena de Souza Chaui A/C Grupo de Estudos Espinosanos Departamento de Filosofia – USP Av. Prof. Luciano Gualberto, 315 05508-900 – São Paulo-SP – Brasil Telefone: 0 xx 11 3091-3761 – Fax: 0 xx 11 3031-2431 e-mail: gtanpofsecxvii@usp.br Universidade de São Paulo Reitora: Suely Vilela Vice-Reitor: Franco Maria Lajolo FFLCH - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Diretor: Gabriel Cohn Vice-Diretora: Sandra Margarida Nitrini Departamento de Filosofia Chefe: Moacyr Novaes Vice-Chefe: Caetano Ernesto Plastino Coordenador do Programa de Pós-Graduação: Marco Antônio de Ávila Zingano Capa: Camila Mesquita Editoração eletrônica: Pablo Enrique Abraham Zunino Tiragem: 1000 exemplares AComissão Editorial reserva-se o direito de aceitar, recusar ou reapresentar o original ao autor com sugestões de mudanças. cadernos_15_ok.pmd 5/10/2007, 11:393 cadernos_15_ok.pmd 5/10/2007, 11:394 O Grupo de Estudos Espinosanos do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo, em 2004, completou 10 anos. Ao longo deste período, diversas atividades foram desenvolvidas e procurou-se fazer o registro delas para, como diz Espinosa, tentar contornar as forças do “tempo voraz que tudo abole da memória dos homens”. Os Cadernos Espinosanos se inspiram nesse propósito. Desde o número X, dedicado ao Professor Lívio Teixeira, os Cadernos estão dedicados também a Estudos sobre o século XVII, seu subtítulo. O que, na verdade, expressa algo que já acontecia na prática, pois textos acerca de vários outros filósofos do período sempre estiveram presentes a cada edição. O objetivo destes Cadernos continua sendo publicar semestralmente trabalhos sobre filósofos seiscentistas, constituindo um canal de expressão dos estudantes e pesquisadores deste e de outros departamentos de Filosofia do país. Porque destinados a auxiliar bibliograficamente aos que estudam o Seiscentos, tanto para os trabalhos de aproveitamento de cursos, quanto para a elaboração de outros projetos de pesquisa, estes Cadernos também publicarão, regularmente, ensaios de autores brasileiros e traduções de textos estrangeiros, contribuindo com o acervo sobre o assunto. Esperamos que esta iniciativa estimule os estudos sobre os filósofos daquele período a que esta publicação é inteiramente dedicada e permita criar ou ampliar a comunicação entre os que estão envolvidos com a pesquisa desses temas, incentivando, inclusive, outros departamentos de Filosofia a colaborar conosco no desenvolvimento deste trabalho. Franklin Leopoldo e Silva AAAAAPRESENTPRESENTPRESENTPRESENTPRESENTAÇÃOAÇÃOAÇÃOAÇÃOAÇÃOAAAAAPRESENTPRESENTPRESENTPRESENTPRESENTAÇÃOAÇÃOAÇÃOAÇÃOAÇÃO cadernos_15_ok.pmd 5/10/2007, 11:395 cadernos_15_ok.pmd 5/10/2007, 11:396 SSSSSUMÁRIOUMÁRIOUMÁRIOUMÁRIOUMÁRIOSSSSSUMÁRIOUMÁRIOUMÁRIOUMÁRIOUMÁRIO 1. A ÚLTIMA METAFÍSICA DE LEIBNIZ E A QUESTÃO DO IDEALISMO Michel Fichant 09 2. UNIVERSALIDADE E SIMBOLIZAÇÃO EM LEIBNIZ Franklin Leopoldo e Silva 41 3. BONDADE DIVINA E CONTINGÊNCIA EM LEIBNIZ Luís César Oliva 59 4. LEIBNIZ: EXPRESSÃO E CARACTERÍSTICA UNIVERSAL Tessa Moura Lacerda 87 5. A FILOSOFIA ESPINOSANA PARA ALÉM DO CORPO-MÁQUINA: O PARALELISMO EM QUESTÃO Ericka Marie Itokazu 111 6. DESCARTES E A “REFLEXÃO ESPESSA”: UMA LEITURA MERLEAU-PONTIANA DO DUALISMO CARTESIANO Silvana de Souza Ramos 139 7. NOTÍCIAS 153 8. CONTENTS 157 cadernos_15_ok.pmd 5/10/2007, 11:397 cadernos_15_ok.pmd 5/10/2007, 11:398 9 MICHEL FICHANT A última metafísica de Leibniz e a questão do idealismo* MICHEL FICHANT** Résumé: La question de la nature et du sens d’un “idéalisme leibnizien” se trouve, depuis plus d’une vingtaine d’années, au centre d’un grand débat dans les études leibniziennes, principalement anglo-saxonnes. La conception la plus conséquente et la plus radicale d’un tel idéalisme a été exposée par Robert Merrihew Adams (Leibniz, Determinist, Theist, Idealist, 1994): “Le principe le plus fondamental de la métaphysique de Leibniz est que ‘il n’y a rien d’autre dans les choses que les substances simples et, en elles, les perceptions et les appétitions’. Cela signifie que les corps, qui ne sont pas des substances simples, peuvent seulement être construits à partir des substances simples et de leurs propriétés de perception et d’appétition” (p. 217). Ce débat en rencontre un autre, qui porte sur la reconnaissance de périodes dans la formation de la métaphysique leibnizienne et sur le point de vue qui permet d’en rendre compte de la façon la plus adéquate: expression constante d’un « Système de Leibniz » invariant dans ses thèses et sa structure, ou plutôt recherche ouverte où l’invention conceptuelle ne se referme jamais sur une formule systématique unique? En effet, ceux-là même qui ont voulu reconnaître une période des “années moyennes” (Daniel Garber), où Leibniz n’aurait pas adhéré à l’idéalisme, ont généralement concédé que la dernière métaphysique, celle qui se déploie proprement selon la thèse monadologique, est bien caractérisée finalement par cette adhésion. * Versão de uma conferência proferida na Universidade de São Paulo, em 16 de outubro de 2006. Agradeço imensamente Tessa Lacerda por sua tradução para o português. ** Professor da Sorbonne (Paris 4). 1_Fichant_9_40.PMD 5/10/2007, 11:399 10 CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006 Je me propose de développer les arguments suivants : 1. Du point de vue génétique, la thèse monadologique répond bien originellement à la requête d’un fondement de la réalité des corps. 2. Les développements de la métaphysique leibnizienne de la dernière période (après 1700) ne donnent pas congé à la recherche de caractérisation d’une vraie “substance corporelle”. 3. C’est la spécificité de ce qu’il appelle l’ “Organisme” qui retient Leibniz de laisser le dernier mot à un idéalisme tel que celui qui lui est attribué. Si idéalisme il y a, il faut l’entendre en un autre sens. Resumo: A questão da natureza e do sentido de um “idealismo leibniziano” encontra-se, já há vinte anos, no centro de um grande debate nos estudos leibnizianos, principalmente anglo-saxões. A concepção mais conseqüente e mais radical desse idealismo foi exposta por Robert Merrihew Adams (Leibniz, Determinist, Theist, Idealist, 1994): “o princípio mais fundamental da metafísica de Leibniz é que não há nada mais nas coisas que substâncias simples e, nelas, as percepções e as apetições” (p. 217). Esse debate encontra um outro sobre o reconhecimento de períodos na formação da metafísica leibniziana e sobre o ponto de vista que permite dar conta desses períodos da maneira mais adequada: expressão constante de um “Sistema de Leibniz” invariável em suas teses e sua estrutura,ou, antes, pesquisa aberta na qual a invenção conceitual não se fecha nunca em uma fórmula sistemática única? Com efeito, mesmo aqueles que quiseram reconhecer um período de “anos intermediários” (Daniel Garber), durante o qual Leibniz não teria aderido ao idealismo, geralmente concederam que a última metafísica, aquela que se desenvolve propriamente segundo a tese monadológica, está, finalmente, bem caracterizada por essa adesão. Proponho-me desenvolver os seguintes argumentos: 1. Do ponto de vista genético, a tese monadológica responde originariamente à exigência de um fundamento da realidade dos corpos. 2. Os desenvolvimentos da metafísica leibniziana do último período (depois de 1700) não dispensam a caracterização de uma verdadeira “substância corporal”. 1_Fichant_9_40.PMD 5/10/2007, 11:3910 11 MICHEL FICHANT 3. É a especificidade do que chama de “Organismo” que impede Leibniz de deixar a última palavra a um idealismo tal como o que se atribui a ele. Se há idealismo, é preciso entendê-lo em outro sentido. * * * Uma experiência ora bastante longa convenceu-me da estreita complementaridade que associa as maiores apostas interpretativas, feitas pelos grandes pensadores da história da filosofia, ao tratamento técnico o mais rigoroso dos problemas postos pela constituição dos textos, sua recepção, sua edição. Os estudos leibnizianos oferecem, hoje ainda, um caso exemplar dessa complementaridade. Estes são caracterizados pelo fato maior de que não existe ainda uma edição das “Obras completas de Leibniz”. O corpus dos escritos de Leibniz está imerso em uma massa de mais de dois metros cúbicos de papéis, conservados, a maior parte, na Biblioteca regional de Hannover, sob a forma de minutas de cartas, notas de leitura, esboços mais ou menos elaborados, que vão desde uma folha de papel de alguns centímetros recoberta por uma reflexão prematura até conjuntos acabados, várias vezes recopiados, relidos e rearranjados, prontos para uma publicação que, o mais freqüentemente, não aconteceu. Sabe-se que, de seu incessante trabalho de escrita, Leibniz só tornou acessível em vida por suas publicações pouquíssimos vestígios, na maior parte das vezes sob a forma de artigos nos jornais científicos. Daí sua advertência: “Quem só me conhece pelo que publiquei, não me conhece” 1 . Mas Leibniz providenciou para que pudesse ser um dia mais bem conhecido que pelos seus contemporâneos, já que quis também conservar toda essa quantidade 1_Fichant_9_40.PMD 5/10/2007, 11:3911 12 CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006 de papéis. Desde a sua morte, em 14 de novembro de 1716, a história de Leibniz — a história de seu pensamento em todos os domínios com os quais se ocupou e, logo, também de sua concentração em metafísica —, é a história de todas as explorações e escavações feitas nesse legado, do qual os arqueólogos apresentaram edições diversas, de extensão, ambição e rigor variáveis, que constituem a base acessível dos escritos de Leibniz em nossas bibliotecas. Essa base, da qual naturalmente emergem as contribuições maiores das grandes coleções reunidas por Foucher de Careil, Gerhardt, Couturat, Grua, mas também outras contribuições que se limitaram a exumar materiais textuais mais restritos, é por natureza divergente, uma vez que as intenções, os critérios de escolha e os preceitos de estabelecimento dos textos estão eles mesmos sujeitos a todo tipo de variação. Não há, portanto, para Leibniz nada de equivalente ao que nos oferecem Adam et Tannery para Descartes, Gebhardt para Espinosa, a Akademie Ausgabe para Kant, Colli-Montinari para Nietzsche, Robinet para Malebranche. Mas a essa variedade da qualidade editorial se acrescenta o fato quantitativo de que ainda hoje a integralidade do corpus ainda não foi completada pela reunião dessas múltiplas publicações. Como se sabe, há mais de um século, por ocasião do Congresso Internacional de Filosofia que aconteceu em Paris em 1900, foi tomada a decisão, pelos mais eminentes historiadores alemães e franceses da época, de trabalhar numa edição verdadeiramente e definitivamente integral de todas as cartas e escritos de Leibniz, sob a dupla patronagem do Instituto de França e da Academia de Berlim. Depois que a guerra de 1914 rompeu a cooperação para fazer dessa edição uma tarefa exclusivamente alemã, ela prosseguiu em meio às dificuldades geradas pelos sobressaltos e tragédias da história da Alemanha, até a queda do 1_Fichant_9_40.PMD 5/10/2007, 11:3912 13 MICHEL FICHANT muro de Berlim. Desde esse último acontecimento, a reunificação do país permitiu o estabelecimento de uma prática racional e coordenada para o prosseguimento do trabalho. A história da edição, por suas vagas sucessivas de amplitude desigual, teve um efeito determinante na percepção que cada época pôde ter da filosofia de Leibniz (mas também de sua matemática ou de sua dinâmica ou de suas idéias religiosas), e, portanto, nas interpretações que eram concebíveis em função do que poderia ser chamado a abertura e a profundidade do campo de visão assim definido, sobre um plano de fundo ainda virtual. Os exemplos são numerosos. Citar-se-á o da publicação do segundo volume dos Philosophische Schriften de Gerhardt, que contém a correspondência com De Volder, na qual a definição da substância pela lei de uma série teve um efeito determinante sobre a interpretação neo-kantiana de Natorp e de Cassirer 2 . Há também exemplos inversos, quando uma hipótese de interpretação orientou a seleção de textos até então inéditos: é porque Couturat tinha uma idéia precisa do que era chamado em seu tempo de álgebra da lógica, depois logística, que pôde encontrar interesse e sentido em manuscritos que outros tinham percorrido sem nada compreender3 . Poder-se-ia pensar que o efeito de uma publicação integral seria o de colocar um fim nos deslocamentos históricos desse tipo de circularidade que une estado da edição e interpretação. Esse será talvez o caso quando a edição estiver acabada, mas na medida em que ela é ainda uma obra em curso, o trabalho de edição produz também, à sua maneira, efeitos sobre o sentido, pelo próprio fato de suas escolhas metodológicas. Estas foram principalmente duas: 1/ um princípio de divisão em séries disjuntivas, que era uma condição para poder avançar no estabelecimento dos textos e de sua publicação. Correspondências 1_Fichant_9_40.PMD 5/10/2007, 11:3913 14 CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006 e outros escritos de natureza diferente foram separados; para cada grupo, uma divisão temática foi adotada, de maneira que temos séries distintas de volumes que reúnem: I. ACorrespondência geral, política e pessoal, II. A Correspondência filosófica, III. A Correspondência matemática e científica, IV. Os Escritos políticos, VI. Os Escritos filosóficos, VII. Os Escritos matemáticos, VIII. Obras científicas4 . 2/ A escolha metodológica mais importante foi a de publicar todas as peças de cada Série segundo a ordem cronológica de redação melhor determinada ou mais provável e justificada pelas mais seguras razões de datação. Essa escolha procedia de uma suposição da qual a inteira força só pôde ser constatada pelos efeitos, quando a edição já estava bastante avançada, notadamente na série dos Escritos filosóficos: é que a prática de escritura incoativa e fragmentária de Leibniz implica que os textos adquiram seu sentido uns em relação aos outros em sua sucessão diacrônica, mais que em uma copresença idealmente sincrônica. Eles são menos os elementos coordenados de um sistema que os momentos de uma experiência de escritura pensante sempre recomeçada (que poderia ser comparada talvez com o que revelam as notas e os manuscritos de Husserl). Essa segunda escolha foi reforçada e radicalizada pela decisão, tomada quando do reinício do trabalho editorial depois da segunda guerra mundial, de apresentar, a partir de então, sistematicamente todos os textos,quaisquer que fossem a amplitude, a forma e o tema, reproduzindo o conjunto das variantes genéticas do ou dos manuscritos de um mesmo opus: palavras ou passagens rasuradas, substituições, acréscimos, são postos sob os olhos do leitor e lhe fornecem, em princípio, a possibilidade de reconstituir os estados da escritura desde o primeiro esboço até o estado no qual Leibniz considerou seu texto como acabado, a menos que ele tenha abandonado o prosseguimento do texto. Assim, foi generalizada a 1_Fichant_9_40.PMD 5/10/2007, 11:3914 15 MICHEL FICHANT intenção cuja fecundidade tinha sido provada, em se tratando de textos essenciais, pela admirável edição de Lestienne do Discurso de metafísica (1907), depois pelas edições de Clara Strack (1917) e em seguida de André Robinet (1954) da Monadologia e dos Princípios da Natureza e da Graça. Eis, aqui, pois, onde estamos hoje: a Série II, Correspondência filosófica, comporta apenas um volume editado, que foi um dos primeiros a ser publicado (1926); ele acabou de ser inteiramente refeito para se adequar às normas da edição atual. Ele compreende as cartas que se distribuem de 1663 a 16855 . A Série VI, Escritos filosóficos, colocando à parte o sexto volume, centrado nos Novos ensaios sobre o entendimento humano, publicado antecipadamente (1962), consta de quatro volumes publicados. O último publicado (1999) reúne, em um conjunto impressionante de 3000 páginas de textos e 500 páginas de índices e tabelas diversas, todos os textos da primeira maturidade de Leibniz, a que se ordena filosoficamente em torno do Discurso de metafísica, de 1677 a junho de 1690 (retorno a Hannover depois da viagem à Itália) 6 . * * * Essa referência ao estado da edição permite precisar a dificuldade que comporta a referência a uma “última metafísica” de Leibniz. Com efeito, nota-se que essa “última metafísica” tem seu começo para além do que avançou a edição integral dos Escritos filosóficos até seu estado atual. Enquanto conhece-se hoje tão bem quanto é possível, através de um denso conjunto de textos, a gênese das concepções que tomam corpo anteriormente e logo depois do 1_Fichant_9_40.PMD 5/10/2007, 11:3915 16 CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006 ponto de equilíbrio do Discurso de metafísica, o período posterior a 1690 só nos é acessível através das edições existentes, as quais nos apresentam uma restituição forçadamente fragmentária, descontínua, que não permite, portanto, um controle precisamente ponderado das proposições interpretativas. E é esse justamente o caso da proposição a respeito do idealismo atribuído a essa última metafísica. Conhece-se há muito tempo uma “primeira filosofia de Leibniz”, estudada na admirável tese latina de Arthur Hannequin (1895)7 , que cobre o período que se completa no momento da chegada de Leibniz a Paris em 1672, logo depois da publicação das duas Theoriae motus de 1671. A filosofia do chamado “jovem Leibniz” pôde ser estudada recentemente em numerosas publicações e colóquios, com uma grande precisão, tornada agora possível com o avanço da edição integral. Como conseqüência, estendeu-se esse período de juventude até o fim dos anos parisienses, em 1676, quando Leibniz tinha trinta anos.Algumas vezes, incluiu-se mesmo o primeiro tempo de instalação em Hannover nesse período. Como quer que seja, reconhece-se em vista de declarações autobiográficas concordantes de Leibniz que a maturidade de seu pensamento, satisfeito a respeito de questões fundamentais, estabelece-se definitivamente no curso dos primeiros anos da década de 80. O Discurso de metafísica é a primeira síntese dessa maturidade, na ordem de questões metafísico-teológicas que é a sua, aí juntando-se, na vertente da lógica, o grande estudo inacabado das Generales Inquisitiones de Analysi notionum et veritatum 8 . Por muito tempo agiu-se como se, a partir daí, tudo estivesse posto, e como se estivesse constituído de uma vez por todas, sob a forma de um invariável “Sistema”, um conjunto de conceitos fundamentais, de teses principiais e de argumentos, o qual, em seguida, 1_Fichant_9_40.PMD 5/10/2007, 11:3916 17 MICHEL FICHANT bastaria que Leibniz haurisse segundo os pontos de vista preparados por intenções particulares ou circunstâncias exteriores, fazendo somente com que se variasse a expressão, como espectadores girando em torno da mesma cidade da qual têm perspectivas de visão variadas que se reúnem na unidade de seu geometral. Com efeito, a preocupação constante de coerência ao dar inteligibilidade a um universo ordenado, que de fato sempre foi a preocupação de Leibniz, poderia, até certo ponto, legitimar essa representação. Entretanto, por todo tipo de razões, algumas das quais, ligadas ao trabalho editorial, já foram evocadas, e que em geral dizem respeito à mudança das práticas do ofício de historiador da filosofia, que dão agora um lugar maior à materialidade do fato textual, esse modo de ver, que poderia ser qualificado de idealista à sua maneira, foi, senão abandonado, em todo caso fortemente ameaçado por uma atenção maior dedicada às transformações múltiplas que o pensamento de Leibniz não deixa de fabricar em seu período de maturidade. Atransformação maior, que permite estabelecer nesse período uma divisão identificável, é aquela que encontra sua completude na coordenação de todos os componentes do que chamo a tese monadológica. A tese monadológica propriamente dita, ausente do Discurso de metafísica e da primeira fase da Correspondência com Arnauld, começa a despontar nas discussões da segunda fase que dizem respeito ao sentido das formas substanciais e, portanto, ao estatuto de substancialidade dos corpos9 . Presente sob uma forma ainda pouco nítida na primeira parte do Sistema novo da natureza e da comunicação das substâncias, publicado em 1695 (no qual os leitores contemporâneos não a viram, para se concentrar na discussão da correspondência entre a alma e o corpo apresentada na segunda parte do artigo), ela é afirmada a partir do momento em que o recurso à 1_Fichant_9_40.PMD 5/10/2007, 11:3917 18 CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006 própria palavra mônada, em 1696, condensa todo um trabalho de análise e de elaboração conceitual anterior. Reduzida à sua formulação elementar, a tese monadológica consiste na afirmação de que existem substâncias simples, chamadas unidades verdadeiras, ou mônadas, uma vez que existem “coisas” compostas, pois “sem o simples, não haveria compostos” ou, ainda, porque “as multiplicidades supõem as unidades”10 . A partir daí, toda a complexidade associada à tese, e da qual seu enunciado simplificado não dá conta, está ligada à ordenação das soluções que serão dadas às questões da natureza dessas substâncias simples, da natureza das coisas compostas, da relação entre essas duas ordens, na medida em que essas questões envolvem, para Leibniz, o conjunto da metafísica tal como ele a entende. * * * É desse ponto de vista que a questão do sentido e da natureza de um idealismo leibniziano está, há mais de vinte anos agora, no centro de um grande debate nos estudos leibnizianos, principalmente de língua inglesa. Uma certa indeterminação de vocabulário faz com que esse idealismo seja chamado às vezes também “fenomenalismo” (dir-se-ia antes em francês “phénoménisme” [“fenomenismo”]). Esse debate é característico da orientação tomada doravante pela maior parte dos trabalhos, numerosos e, em geral, de excelente qualidade, consagrados à filosofia de Leibniz na área anglo-saxã. A ênfase colocada prioritariamente durante muito tempo nas interpretações que privilegiavam a lógica e a filosofia da linguagem foi suplantada por um interesse, antes de tudo, pela metafísica enquanto tal. Os argumentos lógicos e o tratamento analítico de problemas não 1_Fichant_9_40.PMD 5/10/2007, 11:3918 19 MICHEL FICHANT desapareceram, mas aparecem apenas como meios de elucidação e de justificaçãoentre outros, e não são mais considerados como inteiramente determinantes do sentido da metafísica de Leibniz, como era o caso enquanto dominava o modelo de abordagem que se apoiava nos grandes precedentes de Bertrand Russell e de Louis Couturat. Em sua abertura, o debate em torno do fenomenismo e do idealismo atribuídos a Leibniz levou a maior parte dos participantes, mas não todos, a admitir um recorte segundo o qual, durante um período chamado de “anos intermediários”, que abrangeria as duas décadas de 1680 e 1690, Leibniz teria defendido uma concepção aristotélica da substância corporal, como composta de matéria e forma, ele teria sido inclinado a isso pela preocupação prioritária de dar à física fundamentos conceituais sólidos11 . Pôde-se conceder ou contestar a validade da interpretação assim proposta dos anos intermediários, mesmo admitindo, em todo caso, que a esses anos seguia-se um último período, o de uma última metafísica que abandonaria as escolhas realistas precedentemente justificadas pela prioridade atribuída à questão dos fundamentos da física. Seja como conseqüência do Sistema Novo (1695) e da introdução consecutiva da palavra “mônada” como designação da substância em sentido primeiro, seja a partir dos primeiros anos 1700, com a formulação definitivamente completa da tese monadológica (a transição tendo sido operada na correspondência com De Volder), Leibniz teria abandonado essa concepção em proveito da restrição da noção de substância às mônadas, concebidas como almas ou sujeitos análogos às almas, recusando qualquer realidade substancial aos corpos, remetidos ao plano de fenômenos. A expressão mais conseqüente e mais acabada de um idealismo leibniziano desse tipo foi exposta por Robert Merrihew Adams, 1_Fichant_9_40.PMD 5/10/2007, 11:3919 20 CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006 principalmente na terceira parte de sua grande obra Leibniz. Determinist, Theist, Idealist, Oxford University Press, 199412 . R. M. Adams cita uma passagem bem conhecida da carta de 30 de junho de 1704 a De Volder, da qual dou aqui a restituição completa: E inclusive, para considerar a questão com atenção, é preciso dizer que não há nada nas coisas além das substâncias simples e, nelas, a percepção e a apetição; a matéria e o movimento, porém, não são substâncias ou coisas, mas fenômenos dos que percebem e sua realidade reside na harmonia dos que percebem consigo mesmos (em tempos diferentes) e com os outros que percebem. 13 R. M. Adams explora esse texto em termos que são, a meu ver, hiperbólicos: “O princípio mais fundamental da metafísica de Leibniz é que ‘não há nada nas coisas além de substâncias simples e, nelas, as percepções e as apetições’ (GP II, 270). Isso implica que os corpos, que não são substâncias simples, só podem ser construídos a partir de substâncias simples e de suas propriedades de percepção e apetição” (op. cit., p. 217). É sempre arriscado isolar de seu contexto um enunciado leibniziano para reconhecer nele um princípio, e mais ainda um princípio declarado mais fundamental que os outros. Quando formula essa proposição, Leibniz evitou atribuir a ela uma tal caracterização. Esse seria antes para ele o lugar que o princípio de razão ocupa – mas deixemos isso de lado. Eu observaria, antes de voltar a isso, quanto à estrutura e ao léxico do argumento apresentado aqui: 1/ que Leibniz fala, para aí reconhecer os “fenômenos dos que percebem”, da matéria e do movimento, mas não, como lhe atribui a 1_Fichant_9_40.PMD 5/10/2007, 11:3920 21 MICHEL FICHANT paráfrase de Adams, de corpos. Para que essa paráfrase fosse uma tradução conceitual correta, seria preciso que Leibniz considerasse que matéria e movimento são os constituintes suficientes da natureza do corpo, o que não é o caso. 2/ que Leibniz não apresenta a redução fenomênica da matéria e do movimento (e não dos corpos enquanto tais) como uma conseqüência extraída do princípio de que as únicas substâncias são as substâncias simples, mas antes como uma proposição que é complementar a esse princípio e independente dele, e que deve, portanto, ter recebido alhures sua justificação. As posições tomadas e presentes no debate partem, em geral, da dificuldade que haveria em conciliar duas teses de Leibniz: essa mencionada agora, segundo a qual os corpos seriam apenas fenômenos das mônadas, estes compreendidos como o que aparece às mônadas como a sujeitos que percebem, e aquela segundo a qual os corpos são “agregados de mônadas” ou, como Leibniz sublinha ser preferível dizer, “resultantes das mônadas”. A versão mais radical da primeira tese consiste em reduzir toda a realidade do fenômeno apenas à realidade objetiva, no sentido escolástico-cartesiano, isto é, em um outro vocabulário, ao que seria identificado como conteúdo representacional da percepção de uma mônada qualquer. Atribui-se a Leibniz, assim, uma forma de idealismo próxima à de Berkeley. A questão é evidentemente, então, construir uma interpretação coerente dos textos, de resto mais numerosos, que fazem dos corpos agregados (resultantes) de mônadas. Se se parte antes dessa segunda tese, tratar-se-á então de compreender como um agregado de mônadas de algum modo se fenomenaliza: concebe-se nesse caso que haja nos corpos uma realidade outra que a da mônada que percebe, a saber, a realidade de uma 1_Fichant_9_40.PMD 5/10/2007, 11:3921 22 CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006 infinidade de outras mônadas que são os ingredientes ou os requisitos desse corpo14 . Qualquer precaução que se tome, não se pode fazer outra coisa que propor variantes da teoria da deformação perceptiva, segundo a qual a apreensão de multiplicidades por um espírito finito embaralha a distinção de seus elementos na representação confusa de um corpo contínuo e de suas propriedades sensíveis (missperception thesis)15 . * * * Há, entretanto, boas razões para pensar que a última metafísica de Leibniz não se reduz a essa caracterização unilateral de um idealismo que negaria qualquer possibilidade de legitimar, no contexto da tese monadológica, um conceito de substância corporal propriamente dita. Consideraremos aqui as três seguintes razões: 1/ Do ponto de vista genético, a tese monadológica provém originariamente da busca de um fundamento para a realidade dos corpos. Um ponto foi suficientemente estabelecido em 1986 porAndré Robinet16 : quando o conceito de mônada encontra definitivamente sua denominação em 1696, é para assumir o posto da operação já tentada na época anterior através da reabilitação das formas substanciais. O Discurso de metafísica apresentava uma dupla concepção da substância: de um lado a substância individual definida por sua noção completa (segundo o que deu lugar à chamada teoria lógica da substância), exemplificada principalmente pelos sujeitos de ação ou “personagens” da história do mundo (Alexandre, César, Pedro, 1_Fichant_9_40.PMD 5/10/2007, 11:3922 23 MICHEL FICHANT Judas, etc.); de outro, a forma substancial, exigida para se conceber em que os corpos podem comportar uma realidade além da simplesmente fenomênica. Tratando-se dessa segunda versão, André Robinet também estabeleceu de forma indiscutível que, lido através de todos os estratos de escritura de seus estados genéticos, o texto do Discurso de metafísica é atravessado por uma tensão (uma “disjunção”) entre duas interpretações: de um lado, se os corpos são substâncias, e uma vez que a extensão, contrariamente ao que sustenta Descartes, não basta para constituir uma substância, então é preciso recorrer às formas substanciais reabilitadas pela noção de força para dar conta da identidade persistente da realidade corporal; mas, de um outro lado, a fórmula permanece condicional e pode dar-se que os corpos não sejam substâncias, mas somente fenômenos verdadeiros como o arco-íris. Que seja dito entre parênteses, essa tensão ou disjunção deveria sersuficiente para estabelecer que a possibilidade do idealismo já estava inscrita no princípio mesmo dos anos ditos médios e para, assim, colocar em dúvida a univocidade da adesão de Leibniz durante esse período a um realismo aristotélico da substância composta de matéria e forma. Tentei, de minha parte, mostrar que é a discussão comArnauld que levou Leibniz pouco a pouco às fórmulas que balizam o campo da tese monadológica, totalmente ausente do Discurso de metafísica17 . Pois, contrariamente ao que uma longa tradição de aproximações conceituais permitiu sustentar, a substância individual do Discurso não é a mônada. Nem do lado da substância individual, nem do lado da forma substancial intervém o argumento que coloca em jogo as multiplicidades e as unidades, os compostos e os simples. 1_Fichant_9_40.PMD 5/10/2007, 11:3923 24 CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006 Uma primeira fase da correspondência com Arnauld apóia-se exclusivamente na doutrina da noção completa de substância individual. É somente uma vez que esse debate se encerra que se abre uma nova discussão, apoiada simultaneamente na solução proposta ao problema da união da alma e do corpo, que ainda não é chamada de harmonia preestabelecida, e na questão da substancialidade dos corpos. O desenvolvimento das respostas suscitadas pelas interrogações de Arnauld sobre o sentido da reabilitação das formas substanciais, nesse segundo período da correspondência, permitiu produzir pouco a pouco as condições da formulação da tese monadológica. A carta de 30 de abril de 1687 marca, desse ponto de vista, o momento decisivo no qual Leibniz termina por reconhecer como sua a caracterização da substância que Arnauld tinha desvelado nos textos em que ela era tacitamente assumida, sem ser ainda expressamente formulada: “A substância exige uma verdadeira unidade” (GP II, 96), ou ainda, “ … não concebo nenhuma realidade sem uma verdadeira unidade” (97). Uma vez que a completude da noção cede o passo à unidade do ser, a tese monadológica pode ser enunciada pela primeira vez, muito antes do recurso à denominação mesma de “mônada”. Deixando de lado as definições escolásticas, é preciso agora “considerar as coisas de bem mais alto”, no nível da relação entre o uno e o múltiplo, que uma série de formulações vai munir de suas variações: Todo ser por agregação supõe seres dotados de uma verdadeira unidade, porque só tem realidade a partir da realidade dos seres de que é composto […] Se há agregados de substâncias, é preciso também que haja verdadeiras substâncias de que os agregados são feitos 1_Fichant_9_40.PMD 5/10/2007, 11:3924 25 MICHEL FICHANT […] Não há multiplicidade sem verdadeiras unidades […] O plural supõe o singular (GP II, 96-97). Faltam ainda, evidentemente, etapas a cumprir, mas as condições conceituais que exigem, por assim dizer, por si mesmas o recurso à velha palavra grega que quer dizer unidade já estão reunidas. Se, então, a tese monadológica e, com ela, a constituição definitiva do próprio conceito de mônada intervêm diretamente na continuidade da discussão sobre as formas substanciais, é exatamente porque ela deve responder à mesma questão: a de saber em que consiste a substancialidade dos corpos, se eles são substâncias ou, pelo menos, se comportam em si alguma coisa de substancial. É preciso acrescentar, enfim, que, no momento em que a análise dá essa volta, ela assume uma interpretação que se aproxima mais do sentido da versão idealista. Pois, se é preciso reconhecer unicamente por substâncias os “Seres completos, dotados de uma verdadeira unidade [...], todo o resto sendo apenas fenômenos, abstrações ou relações!”, segue que os compostos, possuindo uma unidade apenas acidental, não são propriamente substâncias. Sem dúvida conceder-se-á que há graus de unidade acidental, que uma sociedade regrada tem mais unidade que uma turba confusa, e que um corpo organizado ou uma máquina tem mais unidade que uma sociedade, isto é, é mais adequado concebê-los como uma única coisa, porque há mais relações entre os ingredientes; mas, enfim, todas essas unidades recebem seu acabamento dos pensamentos e aparências, como as cores e outros fenômenos, que não deixam de ser chamados de reais. […] pode-se, portanto, 1_Fichant_9_40.PMD 5/10/2007, 11:3925 26 CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006 dizer desses compostos e coisas semelhantes o que Demócrito falava tão acertadamente deles, a saber, esse opinione, lege, nómôi. E Platão tem a mesma opinião a respeito de tudo o que é puramente material (GP II, 101). Notemos que aqui o corpo organizado, colocado no mesmo plano que a máquina, não se diferencia senão por um grau das outras formas de multiplicidade. Veremos na seqüência a importância desse ponto. 2/ O desenvolvimento da metafísica leibniziana do último período, mesmo situando seu início depois de 1700, não dispensa a exigência de uma caracterização de uma verdadeira “substância corporal”. Coloquemo-nos agora bem perto do fim, no momento em que Leibniz chega à expressão final de sua última metafísica. As primeiras linhas do texto sem título, ao qual seu tradutor alemão deu um em 1720, o universalmente conhecido Monadologia, e as dos Princípios da Natureza e da Graça restituem o conteúdo essencial dessa metafísica sob a forma mais lapidar: a mônada é uma substância simples que entra nos compostos, e é preciso que haja mônadas, uma vez que há compostos e que as multiplicidades supõem sempre as unidades de que são feitas ou das quais tiram sua realidade derivada. Assim formulada, a tese pode sem dúvida sustentar uma interpretação idealista e fenomenista. De um lado haveria as mônadas, substâncias simples, sem partes, cuja natureza é perceber e passar de uma percepção a outra e a percepção é inexplicável por razões mecânicas. De outro lado, haveria apenas agregados, que não possuem nunca unidade intrínseca, e cuja unidade nominal é sempre relativa à percepção, isto é, ao mesmo tempo à seqüência coerente de percepções 1_Fichant_9_40.PMD 5/10/2007, 11:3926 27 MICHEL FICHANT de uma mônada e ao acordo das percepções das mônadas entre si. O texto da Monadologia, lido estritamente, pode encorajar essa maneira de ver: a substância figura nele apenas como substância “simples”, portanto como mônada, e jamais como “substância composta”; o termo “composto(s)” é empregado sempre como um neutro, para designar alguma coisa que, precisamente, não chega ao nível ontológico da substância. É verdade que Wolff, sobre o qual se afirma, como conseqüência de um trabalho de A. Lamarra, ser o autor da tradução latina da Monadologia publicada em 172118 , não se incomodou por forçar o texto para o sentido de sua própria interpretação da física do simples e do composto, traduzindo “les composés” [“os compostos”] por “substantiae compositae”, ao passo que ele devia se contentar em designar sem adição como os “composita”. Mas isso talvez se dê porque ele tinha também sob os olhos uma cópia do texto contemporâneo àquele, os Princípios da Natureza e da Graça, que sugeria essa infidelidade literal, uma vez que dessa vez encontramos as expressões “substância composta”, e mesmo “substância viva”, assim introduzidas: 1. A substância é […] simples ou composta. A substância simples é aquela que não possui partes. A composta é a reunião de substâncias simples ou mônadas […] 3. […] cada substância simples ou Mônada distinta, que constitui o centro de uma substância composta (como, por exemplo, um animal) e o princípio de sua Unicidade, está rodeada por uma Massa composta de uma infinidade de outras Mônadas, que constituem o corpo próprio desta Mônada central, a qual representa, segundo as afecções 1_Fichant_9_40.PMD 5/10/2007, 11:3927 28 CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006 desse corpo, como em uma espécie de centro, as coisas que estão fora dela. […] 4. Cada Mônada, com seu corpo particular, constituiuma substância viva. Em que sentido a massa que rodeia a “mônada distinta” pode ser dita “composta de uma infinidade de outras Mônadas”, uma vez que se admita o uso do conceito de “substância composta”? No curso dos anos precedentes, e ao longo de todo o período que se diz ser dominado pela tese idealista, em que se nega aos corpos a realidade substancial, há, todavia, numerosas provas da busca constantemente empreendida de uma caracterização, no quadro monadológico, de uma verdadeira “substância corporal” ou “substância composta”. Deixo de lado aqui o emprego central de “substância composta” na correspondência com Des Bosses, que está associada à elaboração particular do Vinculum substantiale. Mas a noção de substância composta permanece, entretanto, independente dessa doutrina, e em textos como o dos Princípios da Natureza e da Graça pode ser considerada como o equivalente da doutrina da substância corporal. Sem entrar no detalhe das provas textuais, lembrarei, entre outras menções possíveis, um fragmento muito interessante, recentemente publicado, para o qual proporei de bom grado a data de 1709: “A substância composta é a Mônada considerada com seu corpo orgânico, como um homem, um carneiro”. Ou ainda uma carta de 1711, na qual Leibniz define a substância corporal como a que “consiste em uma substância simples ou mônada (isto é, uma alma ou alguma coisa análoga à alma) e no corpo orgânico que está unido a ela”19 . Donde resulta que uma cláusula inteiramente especial é requerida para que haja propriamente substância corporal: para isso, é preciso que, do lado do que constitui o componente físico dessa 1_Fichant_9_40.PMD 5/10/2007, 11:3928 29 MICHEL FICHANT substância, seja preenchida uma condição especial, é preciso que se trate de um corpo orgânico. O que é, então, para Leibniz, um corpo que corresponde a essa característica? 3/ O Organismo é aquilo cuja consideração impede Leibniz de deixar a última palavra a um idealismo tal como o que lhe atribuem as variantes da interpretação anglo-saxã. Tentei em um artigo recente20 circunscrever o momento decisivo no qual Leibniz apodera-se da caracterização do corpo orgânico que lhe é própria: ela se enuncia no conceito e na denominação de “maquina da natureza”, e é precisamente em 1695, no Sistema novo, que Leibniz elabora pela primeira vez esse conceito. Imediatamente, ele introduz uma diferença que desta vez não é mais gradual, mas essencial, entre as máquinas da natureza e as outras máquinas como em geral e a fortiori todas as outras formas de multiplicidade material; em um texto escrito em 1702, ele associa diretamente o conceito de “máquina da natureza” à publicação do Sistema novo, evocando “a grande diferença […] que há entre as máquinas da natureza e a arte, explicada quando foi publicado o sistema novo no Journal des savants”21 . A grande diferença é que as máquinas artificiais originadas de nossa engenhosidade comportam apenas um número finito de órgãos, que, separados, não são eles mesmos máquinas, enquanto “uma máquina natural permanece máquina ainda nas suas menores partes, e mais ainda, ela permanece sempre essa mesma máquina que ela foi, transformando-se apenas pelas diferentes dobras que recebe, e tanto extensa como condensada, quando se crê que ela se perdeu”22 . No § 64 da Monadologia, isso dará: […] uma Máquina, construída segundo a arte humana, não é Máquina em cada uma de suas partes. Por exemplo, o dente de uma roda de latão tem partes ou 1_Fichant_9_40.PMD 5/10/2007, 11:3929 30 CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006 fragmentos que não são mais para nós algo artificial e não têm mais nada que identifique a Máquina para o uso da qual está destinada a roda. Mas as Máquinas da Natureza, isto é, os corpos vivos, são Máquinas inclusive em suas menores partes até o infinito. A partir de 1704, Leibniz usará o termo de sua invenção, “Organismo”, para significar não, como em nosso uso corrente, tal ser determinado, que designamos como um organismo, e que nos permite falar no plural em organismos vivos, mas o modo de ser, sempre no singular, segundo o qual o corpo orgânico é constituído pelo envolvimento infinito de órgãos, no qual os elementos da máquina são sempre também máquinas, isto é, composições funcionais de instrumentos ordenados a um fim. É precisamente esse modo de ser que permite a um corpo determinado adquirir um regime de substancialidade, constituindo o que Leibniz chama também de um “animal”; só correspondem a substâncias corporais os animais cujo corpo orgânico – máquina da natureza – é atualizado ou realizado por uma alma ou, melhor, pela enteléquia primitiva da substância simples que é sua mônada dominante ou principal. Só conto como substâncias corporais as máquinas da natureza que possuem almas ou algo de análogo; de outra maneira não haverá verdadeira unidade (A Jaquelot, 22 de março de 1703, GP III, 457). Na declaração citada, na qual Robert Adams vê a fórmula do que será “o princípio mais fundamental de (sua) metafísica”, Leibniz, como já observei, atribui apenas à matéria e ao movimento não serem substâncias ou coisas, mas fenômenos da percepção. Não são, pois, 1_Fichant_9_40.PMD 5/10/2007, 11:3930 31 MICHEL FICHANT os corpos que são ditos assim, uma vez que Leibniz, precisamente, jamais reduziu a realidade dos corpos ao movimento e à matéria. Em uma carta de 1699 a Thomas Burnett, na qual é exposta uma aproximação muito precisa da realidade da substância corporal segundo sua fundação monadológica, Leibniz opera rigorosamente a distinção, nos corpos, “entre a substância corporal e a matéria”, e “distingue a matéria primeira da segunda”. Com essa distinção é introduzida uma noção tradicional cuja significação dada por Leibniz precisa ser analisada: o que é a “matéria segunda”? A matéria segunda é um agregado ou composto de várias substâncias corporais, como um rebanho é composto de vários animais. Mas cada animal e cada planta também é uma substância corporal, tendo em si o princípio de unidade, que faz com que seja uma verdadeira substância e não um agregado. E esse princípio de unidade é o que se chama Alma ou então alguma coisa que tem analogia com a alma. Mas além do princípio de unidade, a substância corporal tem sua massa ou matéria segunda, que é ainda um agregado de outras substâncias corporais menores, e isso vai ao infinito (GP III, 260). Trata-se exatamente, portanto, de estabelecer ao mesmo tempo a realidade de uma verdadeira “substância corporal” e, por outro lado, sua irredutibilidade à matéria (e a fortiori, à extensão à qual Descartes identificava erroneamente a matéria). O conceito essencial que intervém aqui é o de matéria segunda: é por ela que o corpo se apresenta, por um dos aspectos de sua constituição, como um agregado, do qual a composição numérica do rebanho (de ovelhas) fornece um modelo intuitivo. Mas o próprio animal (a ovelha), que é um componente do 1_Fichant_9_40.PMD 5/10/2007, 11:3931 32 CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006 agregado do rebanho, é outra coisa diferente do simples agregado do rebanho, precisamente porque ele tem uma verdadeira unidade de composição. Leibniz diz isso pelo menos uma vez de maneira perfeitamente explícita: “Há, com efeito, uma grande diferença entre um animal e um rebanho”23 . Segundo um modelo cuja proveniência aristotélica é patente, Leibniz constitui o animal de uma Enteléquia, que “é ou alma ou alguma coisa análoga à alma, e sempre realiza naturalmente o corpo orgânico”, e desse próprio corpo, que, “considerado separadamente, isto é, pondo- se à parte ou retirada a alma, não é uma substância única, mas um agregado de várias, designando uma máquina da natureza”24 . Pode-se, pois, distinguir-se agregado de agregado: um amontoado de pedras ou um rebanho, por exemplo, não constituem propriamente uma matéria segunda, uma vez que não são enformados por uma enteléquiaou por alguma coisa análoga a uma alma. Dizer um rebanho enuncia apenas uma unidade nominal e mental, inteiramente relacionada à unicidade do nome que exprime a reunião de vários elementos distintos sob uma só concepção ou percepção. Tais agregados não são evidentemente substâncias corporais, e não se concebe que eles possam ser. E o mesmo vale para as pedras que compõem o amontoado, que tampouco são substâncias corporais. Mas em relação à ovelha do rebanho, a análise toma um outro caminho: o corpo dos animais constitui uma matéria segunda enformada pela alma do animal25 . Ora, a matéria segunda que entra em uma substância corporal se caracteriza como um agregado cujos componentes são também substâncias corporais. Dito de outra maneira, a matéria segunda não é diretamente um agregado de substâncias ou de mônadas, mas um agregado composto de outras substâncias corporais cuja implicação ao infinito funda a composição do corpo orgânico enquanto 1_Fichant_9_40.PMD 5/10/2007, 11:3932 33 MICHEL FICHANT máquina da natureza. Temos aí uma definição da substância corporal que poderia ser dita, segundo nosso vocabulário atual, recursiva, repousando, via sua matéria segunda, sobre uma infinidade de substâncias corporais que, por sua vez, por sua própria matéria segunda, supõem uma outra infinidade de substâncias corporais, e assim por diante. Pode-se compreender, então, como as mônadas “concorrem” para a máquina orgânica. E, respondendo a essa questão, responde-se também em que sentido os corpos, como agregados, “resultam” das mônadas, de maneira diferente de uma reunião de partes em um todo26 : o concurso das mônadas para a constituição da matéria segunda não é direto, pois cair-se-ia nas aporias clássicas da composição de uma extensão a partir de elementos inextensos. Esse concurso, pelo qual as substâncias simples sustentam o que há de definitivamente real nos agregados, é mediado pela articulação ao infinito das substâncias corporais umas nas outras: ora, é precisamente isso que faz dessa matéria segunda uma “máquina da natureza” naquilo que a distingue de uma reunião qualquer em que nenhuma vida pode se atualizar, uma vez que a vida consiste, segundo Leibniz, em percepção e apetite27 . Em toda parte em que há corpos orgânicos, cuja unidade não é de simples justaposição, mas resulta de um envolvimento ao infinito de órgãos, a função de unicidade da enteléquia é efetivamente realizada na formação de uma substância corporal. O mesmo corpo pode comportar simultaneamente duas referências distintas à esfera monádica: enquanto multiplicidade remete às unidades plurais que ela requer; enquanto substancial e, portanto, comportando uma unidade, relaciona-se à mônada única que constitui a enteléquia primitiva de sua matéria segunda, que é a de um corpo orgânico, cujos componentes são também outras substâncias corporais. 1_Fichant_9_40.PMD 5/10/2007, 11:3933 34 CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006 É por isso que haverá também, inversamente, corpos orgânicos em toda parte, mesmo onde permanecem imperceptíveis a nossos sentidos. Há como que uma lei de reciprocidade que exige a correlação constantemente e universalmente mantida entre cada mônada e o corpo, do qual Leibniz diz de maneira feliz, antecipando um uso futuro, que o corpo é “próprio” a ela, e sem o qual, se ela fosse separada, ela seria “um desertor da ordem universal”28 . A cada mônada seu corpo próprio significa, então, tantas substâncias simples, quantas substâncias corporais. Este é, no fim das contas, o princípio de adesão de Leibniz a uma visão pan-animalculista da natureza “por onde se vê que há um Mundo de criaturas, de viventes, deAnimais, de Enteléquias, deAlmas na menor parte da matéria” e onde “cada porção da matéria pode ser concebida como um jardim cheio de plantas e como um Lago cheio de peixes. Mas cada ramo da planta, cada membro do animal, cada gota de seus humores é também um jardim ou um lago” (Monadologia, §§ 66 e 67). Essa visão, que Leibniz sustentava muito seriamente e que era confirmada pelas pesquisas empíricas de seu tempo, não é compatível com a redução idealista. * * * Há, entretanto, uma outra maneira de ser idealista diferente da de Berkeley, a quem Leibniz tomava, alhures, por “ser desse gênero de homens que querem se dar a conhecer por seus paradoxos”29 . Em uma Anotação célebre da Ciência da Lógica, Hegel define assim o idealismo: “A proposição que o finito é ideal constitui o Idealismo. O Idealismo, segundo a filosofia, não consiste em nada mais que não 1_Fichant_9_40.PMD 5/10/2007, 11:3934 35 MICHEL FICHANT reconhecer o finito como um verdadeiro Ente. Toda filosofia é essencialmente Idealismo ou, pelo menos, o Idealismo em seu princípio, e a questão é, então, somente, até que ponto esse princípio é efetivamente acabado”. Algumas páginas adiante, em uma outra Observação, ele nota ainda: “O ser representante de Leibniz, a Mônada, é uma coisa essencialmente ideal”30 . Em linguagem leibniziana, isso seria: o que o pensamento põe como elementos últimos da realidade, as mônadas, são efetivamente elementos inteligíveis. É de fato um idealismo, se se entende ainda, à maneira platônica, uma ontologia segundo a qual os constituintes últimos do ser são elementos ideais. Mas Leibniz quis também mostrar como esses elementos reúnem-se em um Ente verdadeiro, desde que compõem-se como a mediação infinita da qual a estrutura recursiva das máquinas da natureza expõe a figura sensível. Isso certamente não é um idealismo que reduziria indiferentemente a realidade dos corpos unicamente ao conteúdo objetivo das representações sensíveis. O que havia em Leibniz de fidelidade constante ao aristotelismo o dissuadiu de dar a última palavra a um idealismo filosófico que não teria sabido dar conta, com e na realidade orgânica, da concretude sensível do inteligível. É assim que sua filosofia cumpre, efetivamente, o princípio do Idealismo, a ponto de Hegel poder dizer ainda que ela “é a contradição completamente desenvolvida”31 . 1_Fichant_9_40.PMD 5/10/2007, 11:3935 36 CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006 Notas 1 “Qui me non nisi editis novit, non novit”, carta a Placcius, 1696, in Leibnitii Opera omnia, ed. Dutens (1769), VI, 1, p. 65. E também: “Scripsi innumera et de innumeris ; sed edidi pauca et de paucis”, carta a Jacob Bernoullli, 1695, in Mathematische Schriften, ed. Gerhardt, III, p. 61. 2 Cf. a “Probevorlesung” (1881) de Paul Natorp, “Leibniz und der Materialismus”, publicado por H. Holzhey, Studia Leibnitiana, XVII (1985). 3 Opuscules et fragments inédits de Leibniz, Extraits des manuscrits de la Bibliothèque royale de Hanovre, publicado por Louis Couturat, Paris, 1903. 4 Uma Série V está prevista para reunir as obras históricas de Leibniz, mas ela ainda não é objeto de nenhum trabalho preparatório. 5 Esse volume é de livre acesso em: http://www.uni-muenster.de/ Leibniz/downloadbereich.html. As informações completas sobre o estado da edição em seu conjunto se encontram no site http:// www.leibniz-edition.de. 6 Leibniz, Sämtliche Schriften und Briefe - VI. Reihe Herausgegeben von der Berlin-BrandenburgischenAkademie der Wissenschaften und der Akademie der Wissenschaften in Göttingen - Philosophische Schriften - Band 4: 1677–Juni 1690. Bearbeitet von Heinrich Schepers, Martin Schneider, Gerhard Biller, Ursula Franke und Herma Kliege- Biller, Akademie Verlag, Berlin, 1999. O conteúdo integral está acessível na internet no mesmo endereço. 7 A versão francesa foi publicada na obra póstuma Etudes d’Histoire des sciences et d’Histoire de la philosophie, vol. 2, Paris, 1908. 1_Fichant_9_40.PMD 5/10/2007, 11:3936 37 MICHEL FICHANT 8 Originalmente publicados por Couturat, Opuscules et fragments inédits, op. cit., p. 356-399. Excelente edição com tradução alemã e comentários por Franz Schupp, Allgemeine Untersuchungen über die Analyse der Begriffe und Wahrheiten,Felix Meiner Verlag, Hamburg, 1982. 9 Para mais detalhes, cf. meu ensaio “L’invention métaphysique”, in Introduction à Leibniz. Discours de métaphysique suivi de Monadologie, et autres textes. Edição estabelecida, apresentada e anotada por Michel Fichant, Gallimard, Paris, 2004. 10 Cf. respectivamente, Princípios da natureza e da graça, art. 1, “É preciso que em toda parte haja substâncias simples porque sem as simples não haveria compostos”, e “não há multiplicidades sem verdadeiras Unidades”, carta à Princesa Sophie, 31 de octobre de 1705, in Die philosophischen Schriften, ed. Gerhardt (citado doravante GP), VII, p. 558, fórmula já literalmente presente na carta a Arnauld de 30 de abril de 1687, GP, II, p. 97. 11 O artigo de referência aqui é o de Daniel Garber : “Leibniz and the Foundations of Physics : The Middle Years”, em The Natural Philosophy of Leibniz, ed. by K. Okruhlik and J.R. Brown, Reidel, Dordrecht, 1985. 12 Esse capítulo retoma e estende consideravelmente o artigo mais antigo do mesmo autor “Phenomenalism and Corporeal Substance in Leibniz”, Midwest Studies in Philosophy, 8 (1983), 13 GP, II, p. 270. 14 Essa interpretação foi exposta por Donald Rutherford em uma série de artigos: “Phenomenalism and the Reality of Body in Leibniz’s Later Philosophy”, Studia Leibnitiana, 22 (1990); “Leibniz Analysis of 1_Fichant_9_40.PMD 5/10/2007, 11:3937 38 CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006 Multitude and Phenomena into Unities and Reality”, Journal of the History of Philosophy, 28 (1990); “Leibniz and the Problem of Monadic Aggregation”, Archiv für Geschichte der Philosophie, 76 (1994). 15 Sustentada, por exemplo, por Nicholas Jolley, “Leibniz and Phenomenalism”, Studia Leibnitiana, 18 (1986). 16 Architectonique disjonctive, automates systémiques et idéalité transcendantale selon G. W. Leibniz, Paris, Vrin, 1986. 17 “L’invention métaphysique”, op. cit., p. 81-95. 18 Cf. Antonio Lamarra, Roberto Palaia, Pietro Pimpinella. Le prime traduzioni della “ Monadologie” di Leibniz (1720-1721). Introduzione storico-critica, sinossi di testi, concordanze contrastive, Firenze, Olschki, 2001. 19 Respectivamente: “Substantia composita est Monas sumta cum suo corpore organico, ut homo, ovis” (Texto inédito publicado por Enrico Passini em sua obra Corpo et funzione cognitivi in Leibniz, Franco Angeli, Milano, 1996, p. 208); “Substantiam corpoream voco, quae in substantia simplice seu monade (id est anima vel Animae analogo) et unito ei corpore organico consistit”, a Bierling, 12 de agosto de 1711 (GP VII, p. 501). 20 “Leibniz et les machines de la nature”», Studia Leibnitiana, 35/1 (2003) [publicado em 2005]. Uma versão preliminar desse artigo foi publicada em português: “Leibniz e as máquinas da natureza”, Dois Pontos, Revista dos Departamentos de Filosofia da Universidade Federal do Paraná e da Universidade Federal de São Carlos, vol. 2, num. 1, 2005. 21 Adição à Explicação do Sistema novo …, GP IV, p. 575. 1_Fichant_9_40.PMD 5/10/2007, 11:3938 39 MICHEL FICHANT 22 Sistema novo da natureza e da comunicação das substâncias, GP IV, p. 482. 23 “Multum enim interest inter animal et gregem”, em um opúsculo de 1702, GP IV, p. 395. 24 Ibid., p. 395-396. 25 “Assim, não digo na verdade que um pedaço de pedra seja em si mesmo uma substância corporal animada ou dotada de um princípio de unidade e de vida; mas antes que há em toda parte tais substâncias e que não há nenhum pedaço da matéria no qual não haja ou animal ou planta, ou qualquer outro corpo orgânico vivo, embora só conheçamos plantas e animais. De sorte que uma massa de matéria não é propriamente o que chamo de uma substância corporal, mas um amontoado ou um resultado (aggregatum) de uma infinidade dessas substâncias, como um rebanho de carneiros ou um monte de larvas”, Eclaircissement sur les Natures Plastiques et les Principes de Vie et de Mouvement (GP VI, 550). 26 “Accurate autem loquendo materia non componitur ex unitatibus constitutivis, sed ex iis resultat”, carta a De Volder de 30 de junho de 1704 (GP II, p. 268). 27 A vida consiste para Leibniz em “percepção e apetite”, Animadversiones circa assertiones aliquas Theoriae medicae verae Clar. Stahlii, § VIII (Dutens II-2, p. 137). 28 “Os corpos orgânicos não estão nunca sem almas, e […] as almas não estão nunca separadas de qualquer corpo orgânico […] Não admito, portanto, que haja almas inteiramente separadas, nem que haja Espíritos criados inteiramente destacados de algum corpo […] as criaturas que ultrapassassem ou estivessem livres da matéria estariam 1_Fichant_9_40.PMD 5/10/2007, 11:3939 40 CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006 destacadas, ao mesmo tempo, da ligação universal, e seriam como desertores da ordem geral”, Considérations sur les Principes de Vie et sur les Natures plastiques, 1705 (GP VI, p. 545-546). 29 “Qui in Hybernia corporum realitatem impugnat, videtur nec rationes afferre idoneas, nec mentem suam satis explicare. Suspicor esse ex eo hominum genere, qui per Paradoxa cognosci volunt”, carta a Des Bosses de 15 de março de 1715 (GP II, p. 492). Tradução francesa de Christiane Frémont em L’être et la relation. Lettres de Leibniz à Des Bosses, Paris, Vrin, 1981, p. 237. 30 A Ciência da Lógica, Doutrina do Ser, Primeira seção, respectivamente do cap. 2, c, Anotação 2, depois do cap. 3 A, b, Anotação. 31 Encyclopédie des sciences philosophiques, I La Science de la Logique, § 194. Trad. Bernard Bourgeois, Paris, Vrin, 1979, p. 435. 1_Fichant_9_40.PMD 5/10/2007, 11:3940 41 FRANKLIN LEOPOLDO E SILVA Universalidade e Simbolização em Leibniz FRANKLIN LEOPOLDO E SILVA* * Professor titular do Departamento de Filosofia da FFLCH-USP. Resumo: A partir da concepção de um racionalismo integral, em que vigora o ideal da plena demonstrabilidade segundo o paradigma identitário da verdade, configura-se em Leibniz a questão da universalidade, que seria enunciada com mais pertinência como a do determinismo universal. São dois aspectos de uma mesma questão: em primeiro lugar, a universalidade no sentido arquitetônico, correspondente à totalidade; em segundo lugar, a determinação absoluta do indivíduo singular. Tanto num caso quanto no outro, a plena determinação é inalcançável para a mente humana. Mas as operações simbólicas de determinação permitem, de alguma maneira, contornar a impossibilidade de uma visão simultânea e articulada de todos os elementos de um composto e, assim, nos encaminham na direção de uma universalidade determinante. Os fundamentos, os procedimentos e os riscos aí envolvidos constituem o tema desse texto. Abstract: Based on the conception of an integral rationalism, in which the ideal of a full demonstrability takes place according to the identitary paradigm of the truth, the question of universality is configured in Leibniz, which would then be more pertinently enunciated as the sub- ject of universal determinism. The following are two aspects of a single question: in the first place, universality in its architectural sense, cor- responding to the totality; in the second place, the absolute determi- nation of the singular individual. In one case as well as the other, complete determination cannot be reached by the human mind. But symbolic determination operations allow, somehow, for the avoidance 2_Franklin_41_58.PMD 5/10/2007, 11:3941 42 CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006 of the impossibility of a simultaneous and articulate vision of all of the elements of a compound and, thus, we are lead in the direction of a determinable universality. The fundaments, procedures and risks in- volved therein constitute the subject of this text. * * * “A mathesis universalis é a ciência da quantidade em geral, ou da razão que calcula (de ratione aestimandi) que assinala os limites dentro dos quais algo possa ocorrer. E porque toda criatura tem limites, então pode-se dizer que, talcomo a metafísica é a ciência geral das coisas (scientia rerum generalis), assim a mathesis universalis é a ciência geral das criaturas (scientiam creaturarum generalem).”1 A diferença que se pode estabelecer entre Leibniz e Descartes a partir de um texto como este serve para nos introduzir na compreensão da concepção leibniziana de universalidade. Para Descartes, a Mathesis Universalis, ao revelar os fundamentos metódicos da Matemática, desvenda os arcanos da razão. O teor de racionalidade que se pode esperar de qualquer conhecimento possível está de antemão ilustrado na evidência matemática, que deve a partir daí ser entendida como modelo universal. Descartes distingue claramente a Matemática da Mathesis Universalis: tal distinção, entretanto, não deixa de carregar uma ambigüidade, posto que esta instância mais profunda da matemática nos permitirá atingir, ao fim e ao cabo, o caráter matematizante de todo conhecimento. Poderíamos dizer, portanto, que, embora Descartes ambicione chegar a um nível de evidência metódica mais profundo e mais abrangente do que a aritmética e a geometria, esta camada fundamental estaria ainda no domínio de uma 2_Franklin_41_58.PMD 5/10/2007, 11:3942 43 FRANKLIN LEOPOLDO E SILVA Matemática, desde que a consideremos nas suas possibilidades mais fundamentais de racionalidade. Afinal a ciência geral da Ordem e da Medida não se constitui como um gênero diferente da Matemática, vista na sua maior generalidade possível. Assim, o caráter demonstrativo do conhecimento estará definitivamente comprometido com um modelo de evidência que, estabelecido a partir de uma ciência determinada, assegura, sem superar a configuração desta ciência, a universalidade da certeza. Leibniz julga poder apontar as limitações nesta visão cartesiana dos fundamentos e do alcance da evidência, e isto a partir de uma identificação da definição de Mathesis como ciência da Ordem e da Medida à ciência da quantidade. Essa identificação entre o sentido geral da Matemática e a quantidade atua como um operador crítico frente ao processo cartesiano de constituição dos fundamentos da evidência, indicando a restrição do modelo. Desta forma fica questionada a legitimidade da passagem da evidência matemática à universalidade da evidência. O que a crítica de Leibniz atinge, na verdade, é a afirmação, implícita na concepção cartesiana, da identificação entre evidência e evidência matemática. Embora Descartes nunca tenha dito que a noção de Mathesis Universalis implicava uma simples extensão da evidência matemática para o domínio de todo o conhecimento, a universalidade da Ordem e da Medida como critérios fundamentais de inteligibilidade aparece, para Leibniz, como a sobreposição, indevida, da Matemática ao conhecimento racional. A Mathesis Universalis, como ciência da quantidade, não tem o alcance geral que Descartes reivindicara. Ela não pode ser considerada verdadeiramente como uma ciência geral, mas sim como “ciência da quantidade em geral”. Ora, poderíamos dizer que o geometrismo 2_Franklin_41_58.PMD 5/10/2007, 11:3943 44 CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006 cartesiano não precisaria operar uma diferença entre ciência geral e ciência da quantidade em geral uma vez que, para Descartes, é pela Ordem e Medida (isto é, pela quantidade) que se conhecem todas as coisas. Basta lembrar os dois extremos do conhecimento: Deus pode ser demonstrado, como indica a Quinta Meditação, de forma tão clara quanto um teorema; e o mundo material somente pode ser conhecido através de propriedades suscetíveis de serem representadas geometricamente, como mostra a Sexta Meditação. Ocorre que Leibniz colocará em questão precisamente esta extensão do modelo matemático. É este o significado da identificação, feita no texto que citamos, entre “ciência da quantidade em geral” e “ciência geral das criaturas”. Com isto Leibniz não põe em dúvida que a Ordem e a Medida são critérios de conhecimento “físico” em sentido largo; mas não aceita que tal conhecimento se estenda além deste domínio. É neste sentido que a metafísica aparece como mais abrangente: não apenas ciência creaturarum generalis, mas ciência rerum generalis. Fica impugnada, desta maneira, a Mathesis Universalis como fundamento da Metafísica. Pelo contrário, esta, sim, seria a verdadeira ciência geral, conhecimento de todas as coisas e não somente daquelas que podem ser representadas a partir do critério da quantidade. Portanto, nos dois exemplos que mencionamos acima, Leibniz aceitaria que a Matemática é a um tempo mediação e fundação do conhecimento da natureza, mas não aceitaria a identificação entre demonstração matemática e demonstração metafísica. Com isto fica prejudicada a concepção matematizante da universalidade do conhecimento. O que a evidência possui de universal não deve ser concebido a partir da matemática, nem mesmo a partir da Mathesis, posto que há uma ciência mais universal do que a própria Mathesis. 2_Franklin_41_58.PMD 5/10/2007, 11:3944 45 FRANKLIN LEOPOLDO E SILVA A menção que Leibniz faz da Metafísica como ciência geral deve nos levar então a identificá-la como esta ciência mais universal do que a Mathesis? Isto constitui um problema porque podemos entender a pergunta de duas maneiras. Se a generalidade e a universalidade neste caso forem entendidas como abrangência, então certamente a Metafísica é mais geral do que a Mathesis, já que, na definição de Leibniz, esta é a ciência das criaturas e a metafísica é a ciência das coisas, sem a restrição da criaturalidade, se entendermos aí a palavra “coisas” como sinônimo de “objetos”. Mas se em vez da abrangência, entendida como o leque de objetos, entendermos a universalidade e a generalidade no nível dos fundamentos e dos requisitos de certeza, então será legítimo indagar acerca da instância fundamentadora da própria certeza da Metafísica. Para Descartes, como se sabe, a Mathesis fundamenta o conhecimento metafísico porque, em que pese a diferença entre Matemática e Metafísica, a índole matematizante do conhecimento justifica a universalidade da Mathesis. Aquilo que fundamenta a certeza da Matemática é também aquilo que fundamenta a certeza da Metafísica. Ora, como já vimos, este fundamento não é entendido por Descartes como exterior ao universo da Matemática. Trata-se da ambigüidade a que já nos referimos: a Mathesis não se confunde com a Matemática, mas também não pode ser colocada num outro gênero cognitivo. A solução cartesiana não pode ser aceita por Leibniz, tendo em vista a consideração da diferença de gênero que ele parece apontar entre a ciência da quantidade, geral no seu gênero, e a Metafísica, que seria o conhecimento efetivamente universal. Por outro lado, o problema de Leibniz reencontra de certa maneira o de Descartes quando assumimos que a generalidade da metafísica não nos isenta da tarefa de pensar as condições de sua evidência. 2_Franklin_41_58.PMD 5/10/2007, 11:3945 46 CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006 Pode-se dizer também que a leitura da comparação feita por Leibniz entre a Mathesis Universalis e a Metafísica sugere três níveis ou escalas de generalidade ou universalidade, até porque o filósofo não deixa de empregar o termo “geral” nas duas definições: scientiam creaturarum generalis e scientia rerum generalis. A interpretação de que para Leibniz haveria mais do que uma ciência geral a nosso ver não se sustenta, pois não há razões que levem a ver em Leibniz o abandono do pressuposto cartesiano da unidade da razão, que é em última instância também o da unidade do conhecimento. Seria preciso, portanto, compatibilizar uma visão unitária de universalidade do saber com o que chamamos há pouco de níveis ou escalas de generalidade. Num texto de 16862 , Leibniz formula a seguinte classificação das verdades: verdades contingentes relativas a indivíduos singulares; verdades contingentes a que se chega por indução, observando o queocorre ordinariamente; verdades universais subalternas, que concernem à regularidade dos fenômenos da natureza (leis científicas); verdades universalíssimas, cuja validade é incondicionada. Em todos esses tipos de verdade, a universalidade está de alguma maneira presente. Naquelas relativas à singularidade, embora não possamos atingir inteiramente a necessidade de que se revestem, existe uma ligação entre o indivíduo e o universo no qual está inserido, de modo que o inteiro cálculo de todas as relações, o que na prática é impossível para o intelecto humano, revelaria as conexões entre o indivíduo e a totalidade, de modo a compatibilizar o conhecimento individual com as determinações necessárias e universais da totalidade. As proposições representativas da generalidade indutiva revelam aquilo que ordinariamente ocorre no universo, isto é, a ordem se torna visível pela observação continuada. Teríamos aqui algo como uma universalidade relativa às instâncias de 2_Franklin_41_58.PMD 5/10/2007, 11:3946 47 FRANKLIN LEOPOLDO E SILVA observação efetiva.A regularidade inerente às leis científicas, que não depende do número de casos observados, nos fornece a universalidade própria da ciência dos fenômenos, o domínio das leis científicas, que Leibniz denomina de subalternas porque subordinadas a princípios racionais mais elevados, como o princípio de contradição e o de razão suficiente. O caráter subalterno destas verdades deve-se a que, embora de validade universal no domínio do mundo criado, estão afetadas por uma certa contingência e relatividade decorrentes da opção divina por uma certa organização cósmica, de tal modo que não seria contraditório conceber outras verdades (outras leis) ou mesmo a suspensão das leis vigentes a critério dos desígnios divinos (milagre). Finalmente, existem “certas proposições universalissimamente verdadeiras, que jamais podem ser infringidas, nem mesmo por milagre, não porque Deus não tenha o poder de infringi-las, mas porque Ele mesmo, quando elegeu esta série de coisas decretou observá-las (como propriedades específicas desta determinada série de coisas).”3 É possível verificar, nesta tipologia de verdades, a diferença, mencionada por Leibniz no primeiro texto que citamos, entre a universalidade do mundo das criaturas e a universalidade absoluta, já que podemos atribuir às leis subalternas o qualificativo de universais, embora outras leis permaneçam de direito possíveis, como também a exceção à regra, ainda que fruto do milagre. Pelo contrário, a verdade denominada “universalíssima” corresponde a uma lei que não pode ser infringida nem mesmo por Deus. Aeste tipo de verdade se vinculam as razões de ser do próprio mundo das criaturas, numa ordem metafísica do pensamento, pois “com estas proposições, uma vez estabelecidas, pode- se dar razão de outras proposições contingentes, sejam universais, sejam válidas ordinariamente, que se podem constatar neste universo.”4 2_Franklin_41_58.PMD 5/10/2007, 11:3947 48 CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006 A “razão” de outras proposições contingentes encontra-se na compreensão metafísica da estrutura do universo.Através destas razões todas as verdades, mesmo as contingentes, são remetidas à necessidade e à universalidade. Esta última observação nos remete à questão da vigência, em Leibniz, do pressuposto cartesiano da unidade da razão. Não só este pressuposto é conservado, como também se pode dizer que a teoria leibniziana da verdade o leva até as últimas conseqüências. “Verdadeira é uma afirmação cujo predicado está incluído no sujeito, e assim, em toda proposição afirmativa, necessária ou contingente, universal ou singular, a noção do predicado de algum modo está contida na noção do sujeito; de maneira que quem compreendesse perfeitamente ambas as noções do modo como Deus as compreende veria assim claramente que o predicado está incluído no sujeito.”5 O caráter analítico da verdade implica a absoluta necessidade regendo qualquer relação entre sujeito e predicado, de tal forma que a verdade da proposição repousa em última análise na identidade fundamental entre os dois termos. Como isso se aplica a toda proposição, “necessária ou contingente, universal ou singular”, o conhecimento repousa num fundamento universal que garante a relação analítica dos termos da proposição. Existe, portanto uma instância de inteligibilidade fundamental que justifica o projeto de racionalismo integral como característica do pensamento de Leibniz: tal instância deve ser concebida como anterior a todo e qualquer conteúdo proposicional, seja ele de caráter físico ou metafísico. Só pode, neste sentido, ser uma instância formal, aquém mesmo da distinção da evidência matemática, caso exemplar de demonstrabilidade e de ligação analítica. Esta instância, para Leibniz, é a Lógica. 2_Franklin_41_58.PMD 5/10/2007, 11:3948 49 FRANKLIN LEOPOLDO E SILVA Leibniz entende que esta concepção representa um avanço em relação a Descartes porque com ela atingimos o nível formal da possibilidade de evidência, superando assim as limitações de uma teoria da verdade sujeita ao âmbito de uma ciência da quantidade. A verdade está primeiramente na forma identitária da proposição; a partir desta exigência temos de descobrir, por via de análise demonstrativa, a ligação analítica, que existe em toda proposição, entre sujeito e predicado. Aidentidade é a forma universal da proposição verdadeira. Esta descoberta, entretanto, vem junto com uma incômoda ressalva: “Porém nunca se pode chegar, por qualquer análise, às leis universalíssimas nem às razões perfeitas das coisas singulares, pois este conhecimento, necessariamente, é próprio somente de Deus.”6 Os dois extremos da tipologia das verdades são inacessíveis ao intelecto humano: no caso do indivíduo singular, a sua determinação necessária e a sua inserção na totalidade dependeriam da visão analítica de todos os elementos e conexões existentes na realidade total; no caso das leis universalíssimas, o completo conhecimento delas equivaleria à visão da estrutura analítica da realidade, um tipo de conhecimento dotado de um tal teor de racionalidade que lógica e ontologia se identificariam perfeitamente. Naturalmente isto só pode constituir um ideal para o conhecimento humano. É interessante refletir acerca destes dois horizontes no sentido de compreender a relação profunda que existe entre o universal e o particular. A impossibilidade de conhecer perfeitamente o indivíduo deriva da impossibilidade de o intelecto humano determiná-lo inteiramente na sua singularidade. A compreensão da singularidade consiste na visão de todas as razões das contingências que constituem a particularidade. Ora, a compreensão de todas as razões suficientes que determinam o particular 2_Franklin_41_58.PMD 5/10/2007, 11:3949 50 CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006 deve, no limite, vinculá-lo, por mediação de várias regras e leis subalternas, às leis universalíssimas que em última instância explicam o lugar de cada indivíduo na totalidade, e nos fariam ver também que ele a expressa necessariamente. A plena racionalidade levaria a compreender a individualidade, na sua singularidade própria, como expressão sempre adequada do universal. Por isto podemos dizer que o motivo pelo qual não podemos conhecer nem o indivíduo nem o universal pleno é, no limite, o mesmo. As relações estabelecidas entre contingência e necessidade no §13 do Discurso de Metafísica não deixam dúvida quanto à possibilidade, existente de direito, ao menos, de compreender o contingente como necessário ex hypothesi como um grau menor de necessidade se comparado à necessidade absoluta, aquela que deriva diretamente do princípio de contradição. Embora a primeira dependa de uma escolha de Deus, existencialmente explicitada por meio de um decreto, o que permite que pensemos escolhas diversas como possíveis e não contraditórias com as efetivamente decretadas,
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