O Relatório Flexner: Para o Bem e Para o Mal The Flexner Report: for Good and for Bad Fernando Luiz PagliosaI Marco Aurélio Da RosII PALAVRAS-CHAVE: – Educação médica; – Currículo; – Educação de graduação em medicina. RESUMO Às vésperas de completar cem anos de publicação, o Relatório Flexner e a figura de seu autor são, até hoje, foco de debates e polêmica. Neste artigo, discutem-se os aportes de Abraham Flexner para a edu- cação médica a partir da publicação de seu relatório, em 1910. Apresenta-se uma breve biografia de Flexner. Os autores analisam a importância e as principais críticas e limitações do modelo flexneriano de educação médica. Partem de uma contextualização do estado da arte da educação médica à época da publicação do relatório, chegando aos tempos atuais. Discutem a construção de um modelo contemporâ- neo de educação médica, considerando as críticas históricas ao modelo de formação de médicos, as atuais necessidades sociais de saúde, os novos conhecimentos sobre como aprendemos e suas repercussões para o processo de ensino-aprendizagem e as diretrizes nacionais para a graduação em Medicina. KEY WORDS: – Education, medical; – Curriculum; – Education, medical, undergraduate. ABSTRACT The Flexner Report, which is close to its 100 anniversary, and its author have been the center of debate and controversy until our days. This article presents a brief biography of Abraham Flexner and dis- cusses the importance of his report for medical education. The authors analyze the relevance, the main criticisms and the limitations of his model for medical education. They start the analysis contextuali- zing the state of the art of the medical education at the time when the report was published and finish it, examining this kind of education in the present days. The authors also discuss the construction of a contemporaneous model taking into consideration the historical criticism of the model in which the phy- sicians have been prepared, the present social needs of health, the new knowledge about the way we learn and its repercussions for the teaching-learning process as well as the national policy for undergraduate medical education. Recebido em: 13/09/2007 Reencaminhado em: 11/02/2008 Aprovado em: 13/02/2008 REVISTA BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO MÉDICA 32 (4) : 492–499; 2008492 I Universidade do Planalto Catarinense, Santa Catarina, Brasil. II Universidade Federal de Santa Catarina, Santa Catarina, Brasil. REVISTA BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO MÉDICA 32 (4) : 492 – 499 ; 2008493 Fernando Luiz Pagliosa & Marco Aurélio Da Ros O Relatório Flexner: para o Bem e para o Mal INTRODUÇÃO Em 1910, foi publicado o estudo Medical Education in the United States and Canada – A Report to the Carnegie Foundation for the Advancement of Teaching1, que ficou conhecido como o Relatório Flexner (Flexner Report) e é considerado o grande responsável pela mais importante reforma das escolas mé- dicas de todos os tempos nos Estados Unidos da América (EUA), com profundas implicações para a formação médica e a medicina mundial. Às vésperas de completar cem anos, o relatório continua a gerar debates e polêmicas. Indubitavelmente, a figura e os aportes de Abraham Flexner são, até hoje, foco de debates apaixonados entre defensores e detratores de suas propostas – uns aclamam seu criador como o grande reformista e trans- formador da educação médica em todos os tempos, e outros o consideram o principal responsável pela consolidação de um modelo de formação de médicos que nunca conseguiu atender às necessidades de saúde das sociedades onde foi implantado, isto é, em praticamente todo o mundo2-5. O adjetivo “flexneria- no” é aplicado, geralmente com caráter pejorativo, aos currí- culos que apresentam uma divisão clara entre um período ou ciclo inicial de disciplinas básicas, seguido de outro dedica- do aos estudos clínicos. Esta foi a sua proposta que se tornou mais conhecida, embora não a única. De fato, seu modelo de educação médica resistiu quase cem anos e ainda se encontra em vigência na maior parte das escolas médicas do mundo. Seu informe constitui, seguramente, a publicação sobre educa- ção médica mais citada na literatura especializada2,3. A verdade é que, para o bem e para o mal, é impossível discutir a educação médica, em qualquer parte do planeta, sem referir Flexner e seu relatório. Isto se deve, em grande parte, à grande capacidade de Flexner como administrador e à sua habilidade em manipular as estruturas de poder, além de saber utilizar a autopromoção de forma muito eficaz. Na verdade, Flexner não teve idéias originais sobre o ensino mé- dico. Quando fez sua investigação e elaborou seu relatório, as modificações na educação médica nos EUA já estavam em cur- so. Ele a fez avançar, por certo. O mesmo acontecia em outras partes do mundo, inclusive no Brasil. As forças e idéias sobre a educação médica existentes naquele momento histórico nos EUA e na Alemanha foram habilmente utilizadas por Flexner, levando-o a se tornar “o líder autoproclamado de um movi- mento de reforma do ensino médico que mais tarde o tornaria publicamente reconhecido”6. A força de seu relatório deve-se à natureza abrangente, em termos numéricos, da sua avaliação, à ênfase sobre as bases científicas e, em grande parte, ao fato de ter sido dirigido primariamente ao grande público7. Conhecer como foi construída a trajetória de vida deste personagem talvez ajude a entender melhor o desenvolvimen- to e os desdobramentos de suas contribuições, para o bem e para o mal, à educação médica. BREVE BIOGRAFIA DE FLEXNER Os dados biográficos a seguir foram tomados principal- mente de Patiño2 e Tomey3. Abraham Flexner nasceu em Lousville, Kentucky, em 13 de novembro de 1866. Era o sexto de nove filhos de Moritz Flexner e de Esther Abraham. Seus pais, judeus alemães, imi- graram para os EUA em 1853. O irmão mais velho de Abraham, Simon Flexner, foi um eminente patologista da Universidade Johns Hopkins e da Universidade da Pensilvânia. Foi um dos fundadores da Fun- dação Rockfeller e diretor do Rockfeller Institute for Medical Research. Descobriu o bacilo de Flexner, causador da disente- ria e desenvolveu um soro para o tratamento da meningite. Em 1884, aos 17 anos, Abraham ingressou na Universida- de Johns Hopkins, onde, em junho de 1886, obteve o grau em Artes e Humanidades. Após a graduação, iniciou a carreira de educador como professor da Lousville Boy’s High School. Em 1890, fundou seu próprio colégio, Mr. Flexner’s School. Em 1898, Flexner casou-se com Anne Crowford, uma ex- aluna, de abastada família da Geórgia, que havia sido atriz na Broadway. Teve duas filhas, sendo que uma delas, Eleanor, foi ativista social e ingressou no Partido Comunista em 1936. O casamento abriu horizontes mais amplos para Flexner, que, em 1905, fecha as portas de seu colégio com o objetivo de mu- dar-se para a Europa. Antes, matriculou-se na Escola de Gra- duados de Harvard, concluindo seus estudos de pós-gradu- ação em 1906. Neste mesmo ano, transferiu-se com a família para a Europa, estabelecendo-se em Berlim. Em Heidelberg, no verão de 1907, escreveu seu primeiro livro, The American college: a criticism, no qual critica o siste- ma educativo norte-americano. O livro foi publicado em 1908, quando de sua volta aos EUA, e resultou em um convite do presidente da Carnegie Foundation, Henry S. Pritchet, para realizar um estudo sobre a educação médica nos Estados Uni- dos e no Canadá. Flexner visitou as 155 escolas de Medicina dos EUA e Canadá durante seis meses. Com base nas avalia- ções que fez, publicou seu famoso relatório. Em 1910, após a publicação de seu relatório, Flexner volta à Europa com a finalidade específica de estudar a educação médica. Estudou, em particular, a educação médica