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Dialética para principiantes - LENIO STRECK

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Dialética para Principiantes 
 
 
 
Carlos Cirne-Lima 
 
 
Editora Unisinos 
Coleção Idéias 5 
 
 
 
 
 
 
Sumário 
Prefácio 
 
Parte I – Nós e os Gregos 
1. O Pátio de Heráclito 
2. O Jogo dos Opostos 
3. O Mito da Caverna 
4. A Análise do Mundo 
5. A Explicação do Mundo 
 
Parte II – O que é Dialética? 
1. O Quadrado Lógico 
2. A Síntese dos Opostos 
3. Os Três Princípios 
4. Ser, Nada, Devir 
5. Dialética e Antinomias 
 
Parte III – Um Projeto de Sistema 
1. Dialética e Natureza 
2. Ética 
3. Justiça e Estado 
4. O Sentido da História 
5. O Absoluto 
 
 
 
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Para Maria 
e para meus alunos 
 
 
PREFÁCIO 
Escrevi esta Dialética para principiantes pensando em meus alunos. Escrevi 
para eles. Fiz um texto voltado para principiantes, Dialectica Ingredientibus, 
como diria Abelardo. Para aqueles jovens de cara limpa e olhos brilhantes, 
atentos, lúcidos, sequiosos de aprender, que sabem muito bem que não sabem 
nada. E que por isso querem aprender. Para eles escrevi este livro, a eles o 
dedico. Muito justo, aliás. Pois foi com eles, com as perguntas, as discussões e 
debates com eles que esta Dialética nasceu, cresceu e se consolidou. Não que 
eu seja autodidata, ou que faça desfeita a meus mestres. Nada disso, tenho na 
mais alta conta aqueles que foram meus professores. Devo muitíssimo a eles. 
Mas foi com meus alunos que, neste passar dos anos, aprendi o que agora, com 
este livro, lhes devolvo. 
Principiante é aquele que não sabe nada, ou quase nada. Principiante é quem 
se dá conta de que não sabe nada. E por isso quer aprender, quer entender as 
palavras, quer captar o sentido das frases, quer acompanhar a montagem da 
argumentação. Para eles escrevi. Escrevi em estilo simples e direto, escrevi 
uma Filosofia singela, sem frescura, sem enfeites, sem ranço acadêmico e sem 
demonstrações aeróbicas de erudição. As idéias aqui expostas são muito 
antigas. Há novidades, sim, pois quem faz Filosofia e entra em contenda com as 
idéias, com as idéias mesmas, sempre descobre alguma novidade. Quando 
pegamos e levamos adiante a riqueza que herdamos da tradição, esta se 
revitaliza e cresce. Este trabalho nasceu da grande tradição filosófica. Que ele 
conduza os leitores de volta aos mestres-pensadores da tradição são os meus 
votos. 
 
 
1 O PÁTIO DE HERÁCLITO 
 
1.1 Perguntas iniciais 
De onde viemos? Para onde vamos? Qual o sentido do mundo e de nossa vida? 
O universo teve um começo? Terá um fim? Há leis que regem o curso do 
universo? Estas leis valem também para nós? Podemos desobedecer a estas 
leis? O que acontece quando desobedecemos a elas? Há recompensa e 
castigo? Há mesmo ou deve haver? Isso ocorre já durante esta vida ou numa 
existência após a morte? Pode-se pensar, sem contradição, uma vida eterna, 
uma existência após a morte? Pode haver um tempo depois que todo tempo 
acaba? Pode haver um depois após o último e definitivo depois? Afinal, o que 
somos? 
Estas são as perguntas que, desde a Antigüidade, toda pessoa que fica adulta 
sempre se coloca. Estas são as perguntas que, desde os pré-socráticos, 
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ocupam os filósofos. Filosofia é a tentativa, sempre frustada e sempre de novo 
retomada, de dar uma resposta racional a essas questões. É isso que agora 
passamos, neste texto, a desenvolver de forma interativa. Resposta final e 
definitiva, que responda completamente a todas essas perguntas, não existe. 
Mais, uma tal resposta completa e acabada em Filosofia é, como veremos, 
impossível. Mas, assim como muitas perguntas podem ser feitas, muitas 
respostas podem e devem ser dadas. 
 
1.2 Filosofia é um grande quebra-cabeça 
Filosofia é a ciência dos primeiros princípios, dos princípios que são 
universalmente válidos e que regem tanto o ser como o pensar. Hoje a Filosofia 
é muitas vezes pensada como a ciência das justificações racionais últimas, isto 
é, como fundamento racional de todas as outras ciências. O grande tema da 
Filosofia é, assim, usando metáfora tirada da Arquitetura, a questão de 
fundamentação última. É neste sentido que já na Antigüidade Aristóteles fala de 
Filosofia Primeira. A Filosofia Primeira trata dos primeiros princípios do universo 
– do ser e do pensar –, princípios estes que são o fundamento racional de todas 
as demais ciências, como Lógica, Física, Astronomia, Biologia, Ética, Política, 
Estética etc., que antigamente faziam parte daquela grande e abrangente 
ciência que então se chamava de Filosofia. 
Nada tenho a opor contra a concepção de Filosofia como ciência da 
fundamentação última. Ela é isso, também. Mas essa metáfora aponta só para 
um dos núcleos duros daquele todo maior que realmente é a Filosofia. É como 
se se apontasse aí para um osso nu, descarnado. A imagem do fundamento é 
meio pobre. Eu pessoalmente prefiro, para caracterizar o que seja Filosofia, 
outra metáfora, a de um quebra-cabeça. Filosofia é um grande jogo de quebra-
cabeça. 
No jogo de quebra-cabeça temos que encaixar cada peça com as peças 
vizinhas, de modo que os contornos de cada uma coincidam com os contornos 
das peças vizinhas, formando um todo coerente, sem buracos e sem rupturas, e 
que no final mostra uma imagem. O jogo de quebra-cabeça consiste em inserir 
peça por peça, uma na outra, com ajuste perfeito de contornos, até que todas as 
peças estejam corretamente colocadas e a imagem final, coerente e com 
sentido, fique visível. Se sobrarem peças, o jogo não foi jogado até o fim. Se 
faltarem peças, o jogo está desfalcado e a imagem final ficará incompleta. Em 
jogos grandes pode perfeitamente acontecer que consigamos montar pedaços 
da grande imagem final, cada pedaço com figuras próprias, mas sem a 
composição final. Se jogarmos até o fim, e se o jogo não estiver desfalcado de 
peças, todas as peças estarão, então, devidamente encaixadas, não faltarão 
peças, não sobrarão peças, e a imagem global estará clara e visível. 
Fazer Filosofia hoje é como montar um grande quebra-cabeça. As ciências, 
como a Física, a Química, a Astronomia, a Biologia, a Arqueologia, a História, a 
Psicologia, a Sociologia, etc., são recortes parciais do grande quebra-cabeça 
que é a Filosofia, a Ciência Universalíssima. Cada uma das ciências particulares 
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monta o seu pedaço particular, ou seja, cada uma delas trata de algumas 
figuras. Nenhuma delas se preocupa e se encarrega da composição total do 
grande mosaico, que é a Filosofia, a razão, o sentido do universo. As ciências 
particulares trabalham, sim, na montagem do grande jogo de quebra-cabeça, 
mas cada uma delas se limita a um pequeno pedaço. Fazer Filosofia significa 
jogar o jogo até o fim, isto é, montar todas as peças, de sorte que se possa ver a 
imagem global. 
E aqui aparece a primeira diferença entre o brinquedo mencionado e a Filosofia. 
Na Filosofia não temos todas as peças. O universo ainda está em curso, a 
História não terminou. Muitas coisas, que nem sabemos quais são, estão por vir. 
O Filósofo não dispõe de todas as peças – o futuro ainda não chegou –, e, 
assim, o mosaico final sempre estará incompleto. Isso não obstante, é preciso 
montar o jogo com todas as peças existentes, inclusive o próprio jogador. Cada 
um de nós, que somos os jogadores concretos, temos que pular para dentro do 
mosaico final da Filosofia, que é o sentido universal do universo em que 
vivemos, o sentido último de nossa vida; aí a Filosofia fica existencial. Mas, 
como a História e a Evolução não terminaram, a imagem que aparece no 
mosaico, embora global, sempre conterá grandes lacunas. Isso significa que a 
Filosofia como sistema global do conhecimento é e sempre ficará, enquanto 
correr o tempo da História, um projeto inconcluso.A Grande Ciência nunca 
estará completa e acabada, a Filosofia sempre é e continuará sendo apenas 
Amor à Sabedoria. 
Não se pode fazer de conta que as ciências particulares não existam. Não se 
pode fazer de conta, como alguns Filósofos hoje fazem, que Filosofia seja 
apenas Filosofia da Linguagem ou Teoria do Conhecimento. Isso também é 
importante, isso também é parte da Filosofia. Mas Filosofia é mais do que 
apenas uma Teoria sobre Metalinguagens; Filosofia é a Grande Ciência, que 
contém dentro de si todas, repito, todas as ciências particulares com suas 
teorias e suas questões ainda em aberto. Aí surge a pergunta: isso ainda é 
possível? Hoje, em nosso século, com o incrível e inédito desenvolvimento das 
ciências particulares, ainda é possível fazer uma Grande Síntese? Claro que é 
necessário e que é possível. Pois assim como se desenvolveram as ciências 
particulares, cresceram também os recursos à disposição do Filósofo para, 
sempre de novo, tentar construir o travejamento básico da Grande Teoria 
Unificada. É meio vergonhoso, mas devemos admitir que muitos filósofos hoje 
abandonaram a idéia da Grande Síntese e se contentam com subsistemas 
parciais; isso significa, porém, que deixaram de fazer verdadeira Filosofia. Com 
alegria, entretanto, se vê que os Físicos continuam procurando a Grande Teoria 
Sintética, na qual os subsistemas atualmente trabalhados possam ser 
integrados. Só que a Grande Síntese é mais do que apenas a conciliação da 
teoria geral da relatividade com a mecânica quântica. A tarefa programática da 
Filosofia é ainda mais ampla que a da Física do início do século XXI. A Biologia, 
a Psicologia, a Sociologia, a História, etc., também têm que entrar nessa teoria 
sintética que é a Filosofia, pois queremos descobrir quais as leis que são válidas 
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para tudo, para todas as coisas. Essa grande tarefa era chamada antigamente 
de explicatio mundi. Fazer Filosofia sempre foi e continua sendo fazer a 
explicação do mundo. Voltaremos ainda muitas vezes a esta palavra, pois com 
ela se diz realmente tudo o que a Filosofia pode e deve pretender. 
 
1.3 Crítica da razão pós-moderna 
Após o colapso intelectual do sistema de Hegel, na segunda metade do século 
passado, e após o colapso político do marxismo, que é um tipo de hegelianismo 
de esquerda, em 1989, com a queda do Muro de Berlim e, logo depois, com o 
esfarelamento da União Soviética, a Filosofia parece ter chegado a um beco sem 
saída. Ao invés da Grande Síntese temos apenas um grande impasse. A razão, 
que era ambiciosa e andava sempre à procura da Grande Síntese, a razão una, 
única e universalíssima, é destruída a golpes de marreta. A Razão, una, única e 
com letra maiúscula, é declarada morta. A Razão morreu, vivam as múltiplas 
pequenas razões, as razões das muitas perspectivas diferentes, como diz 
Nietzsche, as razões dos múltiplos horizontes, como quer Heidegger, as razões 
dos múltiplos jogos de linguagem, como afirma Wittgenstein. A Razão, una e 
única, morreu, vivam as múltiplas razões com seus relativismos. Esta a tese do 
pensamento pós-moderno. 
O lado positivo dessa dissolução da razão que era defendida pelo Iluminismo é 
que ficamos em nosso século mais modestos, mais compreensivos, mais 
abertos para com as outras culturas, mais tolerantes para com o estrangeiro, 
mais atentos à alteridade. O particular, inclusive as ciências particulares, 
progridem imensamente. Até a Lógica, que era antes una, única, no singular e 
com letra maiúscula, ou seja, a Lógica de Aristóteles e dos mestres pensadores 
da Idade Média, transforma-se. Hoje temos, ao lado da lógica aristotélica, escrita 
em letra minúscula, muitas outras lógicas. Hoje falamos de lógicas no plural e 
com letra minúscula. Isso que ocorreu com a Lógica aconteceu também com a 
Razão como um todo. Ao invés da Razão, temos hoje as múltiplas razões, no 
plural e com letra minúscula. 
A razão pós-moderna põe um subsistema ao lado de outro subsistema, e mais 
outro, e ainda mais outro, sempre um ao lado do outro, sem uma unidade mais 
alta e mais ampla, que os abranja; os interstícios entre os vários subsistemas 
ficam vazios. A razão pós-moderna nega a existência de princípios ou leis que 
sejam universalíssimos, que interliguem os diversos subsistemas, ou seja, que 
sejam válidos sempre, em todos os âmbitos, em todos os interstícios e para 
todas as coisas. Mais, ela diz que – a rigor – não há proposição que seja 
universalmente válida. 
Ora, quem faz tal afirmação, ao dizer, se desdiz. Tal afirmação é uma 
contradição em si mesma, ela detona uma implosão lógica. – Vejamos o que 
ocorre em outro exemplo, mais simples. Tomemos a proposição Não existe 
nenhuma proposição verdadeira. Quem afirma uma tal coisa está implicitamente 
dizendo Não existe nenhuma proposição que seja verdadeira, exceto esta 
mesma que agora estou dizendo. Assim, a exceção implicitamente feita 
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desmente a universalidade daquilo que foi afirmado: não é verdade que todas as 
proposições sejam falsas, eis que pelo menos esta, que está sendo afirmada, 
está sendo afirmada como sendo verdadeira. Assim também ocorre com a 
proposição pós-moderna Não há nenhuma proposição que perpasse todos os 
subsistemas; ao dizer e afirmar isso, estamos dizendo que ao menos essa 
proposição é válida para todos os subsistemas. É o mesmo que ocorre em sala 
de aula, quando o professor reclama das conversas e Joãozinho diz: Professor, 
não tem ninguém falando. Ao falar e dizer isto, Joãozinho desmente exatamente 
o que está dizendo. É por isso que a razão pós-moderna é boa, sim, enquanto 
respeito para com a alteridade e apreço pela diversidade, é péssima, entretanto, 
como substituto da razão universalmente válida. Ela não pode ser 
universalizada; se o fazemos, ela se detona. Este é o motivo por que uma 
Filosofia pós-moderna, neste sentido, não existe e nunca existirá. Quem quiser 
fazer Filosofia à maneira da razão pós-moderna, justapondo subsistemas, sem 
jamais fazer uma teoria, por mínima que seja, abrangente, está fadado ao 
insucesso da autocontradição. Meu amigo Habermas me perdoe, mas não dá: 
implode. Fica com isso demonstrado que se pode voltar a uma razão una, única 
e universalíssima. Ela pode consistir de poucas regras e princípios; talvez ela 
consista de um único princípio, mas que uma tal razão existe, existe. Quem o 
negar se detona e entra em autocontradição. A explicação do mundo pode ser, 
talvez, minimalista. Mas que ela é possível, é. 
O lado mais negativo da razão pós-moderna é o lixo que se acumula nos 
interstícios entre os diversos subsistemas. É para aí, para esses interstícios 
vazios, que varremos as contradições e os problemas mal resolvidos. Entre um 
subsistema e outro fica o lixo da razão. As teorias particulares, articuladas 
somente como subsistemas, permitem que entre um subsistema e outro brotem 
e vicejem os maiores absurdos. As contradições não foram resolvidas, foram 
apenas varridas. E isto não basta. É preciso pensar tanto a multiplicidade como 
também a unidade. Sem unidade a multiplicidade entra, como vimos, em 
contradição. Multiplicidade na Unidade, Unidade na Multiplicidade – é preciso 
conciliar ambos os pólos igualmente legítimos e necessários. É preciso repensar 
tanto Parmênides como também Heráclito. 
 
1.4 A esfera de Parmênides 
Parmênides, um dos grandes pensadores da Filosofia pré-socrática, foi de certo 
modo o precursor da razão pós-moderna. Ele contrapõe, um ao outro, dois 
grandes subsistemas: o ser realmente real e a doxa, a mera aparência. 
Parmênides diz que a realidade realmente real é apenas o ser imóvel, o que é 
puro repouso, sem nenhum movimento. Este ser imóvel e imutável é simbolizado 
pela esfera que não tem limites, onde o dedo corre sem nunca chegar a um 
começo ou a um fim. E ascoisas deste mundo, que estão em movimento, que se 
movem, que nascem e morrem, bem, estas coisas, declara Parmênides, não são 
uma realidade realmente real, elas são uma doxa, uma mera aparência, sob a 
qual não há um ser realmente real. As aparências enganam. De um lado, o 
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subsistema do ser realmente real; de outro lado, o subsistema das aparências. 
Mas Parmênides não é um pós-moderno. Ele foi mais radical, sacrificou todas 
as aparências, as múltiplas coisas deste mundo em que vivemos, no altar de 
uma racionalidade exacerbada, de um Logos uno, único, imóvel, imutável, 
infinito. O que é, diz Parmênides, é. O que não é não é. E o que não é não é 
nada, não significa nada e não faz nada. O não-ser não existe, ele não pode 
nem mesmo ser pensado. 
Movimento é sempre a passagem do ser para o não-ser, ou seja, o perecer. Ou 
então, a passagem do não-ser para o ser, isto é, o nascer. Ora, como o não-ser 
não existe, como ele não é nada, não há passagem para o não-ser. Não há, por 
igual, passagem a partir do não-ser; do não-ser não pode sair nada. Isso 
significa que não há perecimento nem nascimento. Perecer e nascer são 
ilusões, são meras aparências. Pois, pela lógica, o não-ser não é nada. E tudo 
aquilo que o não-ser determina está sendo determinado como sendo nada, isto 
é, não é nada, é pura ilusão. Logo, argumenta Parmênides, não existe 
movimento. E, se pensamos que algo está em movimento, trata-se de uma 
ilusão. 
Zenão de Eléia, discípulo de Parmênides, para demonstrar o que ele pensava 
ser a impossibilidade lógica do movimento, traz o exemplo da corrida entre 
Aquiles e a tartaruga e o exemplo da flecha parada. Aquiles aposta uma corrida 
com uma tartaruga. Como Aquiles é um grande herói e exímio corredor, a 
tartaruga pede dez metros de vantagem. Aquiles concorda, e a corrida começa. 
Reparem, afirma Zenão, como o movimento é algo contraditório, reparem que 
Aquiles não vai conseguir ganhar. Basta pensar. Pois antes de percorrer a 
distância que o separa da tartaruga, Aquiles deve percorrer a metade dessa 
distância. E antes de percorrer essa metade, ele tem que percorrer a metade 
dessa metade. E antes de cruzar a metade dessa metade, ele tem que percorrer 
a metade dessa metade. E assim por diante. Como a quantidade é infinitamente 
divisível e sempre há uma nova metade da metade, conclui-se que Aquiles não 
avança um passo, não consegue reconquistar a vantagem e, assim, perde a 
corrida para a tartaruga. Por quê? Porque o movimento, diz Zenão, é 
contraditório, ele não pode ser pensado até o fim sem que surja uma 
contradição insolúvel. – O mesmo raciocínio é aplicado à flecha disparada pelo 
arqueiro contra um alvo qualquer. A flecha, tendo que percorrer as infinitas 
metades da metade, fica parada. A flecha parada e a corrida de Aquiles com a 
tartaruga demonstram, pensa Zenão, a tese de Parmênides de que o movimento 
é impossível e que, por isso, temos que nos ater somente ao ser uno, único, 
infinito e sem movimento que é o ser que realmente é. Eis a esfera de 
Parmênides. 
Parmênides, o grande pensador do ser uno, único e imutável, é, apesar desse 
grande erro, o pai intelectual de toda a verdadeira Filosofia, pois foi ele que 
primeiro pensou tão a sério a unidade da razão e do ser. Tudo é o Uno. O Todo 
e o Uno, Hen kai Pan, são o começo e o fim de toda a Filosofia, de toda a 
ciência que se queira e entenda como a Grande Síntese. O erro que cometeu, 
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visível para todos, é não ter levado igualmente a sério o momento da 
diversidade e do movimento. Ele não conseguiu pensar o não-ser como algo 
que de certo modo é. Parmênides tem o Todo e o Uno, falta-lhe o movimento 
que em tudo flui. Falta Heráclito. 
 
1.5 O pátio de Heráclito 
Segundo Heráclito, tudo flui, Panta Rei, tudo está em constante fluir, tudo é 
movimento. A realidade realmente real não é a esfera imóvel e imutável, sem 
limites, dos Eleatas, mas sim o movimento que, sem jamais cessar, sempre de 
novo começa. Não há começo e não há fim, nisso Heráclito concorda com 
Parmênides, mas não porque não exista movimento, e sim porque tudo está 
sempre em constante transformação. O que para os Eleatas era doxa, mera 
aparência e ilusão, agora é a própria realidade realmente real. 
A realidade não é apenas Ser, ela não é, por igual, apenas Não-Ser. A realidade 
realmente real é uma tensão que liga e concilia Ser e Não-Ser. Aparece aqui, 
pela primeira vez na História da Filosofia, a Dialética. Ser e Não-Ser, tese e 
antítese, são conciliados, num plano mais alto, através de uma síntese. Ser e 
Não-Ser, que à primeira vista se opõem e se excluem, na realidade realmente 
real constituem uma unidade sintética, que é o Ser em Movimento, o Devir. No 
Devir existe um elemento que é o Ser, mas existe por igual um outro elemento 
igualmente essencial que é o Não-Ser. Ser e Não-Ser, bem misturados, não 
mais se repelem e se excluem, mas entram em amálgama e se fundem para 
constituir uma nova realidade. 
Temos aí, já em Heráclito, os traços fundamentais da Dialética. Numa primeira 
etapa temos dois pólos contrários que se excluem mutuamente. Tese e antítese 
se contrapõem, uma contra a outra, uma excluindo a outra. Nesta primeira etapa 
um pólo anula e liquida o outro, eles são excludentes. Só que a coisa não pára 
aí. Há um movimento, há um desenvolvimento, há um progresso. E então, 
nessa segunda etapa, os pólos se conciliam e se unificam, constituindo, num 
patamar mais alto, uma nova unidade. 
A lira, o instrumento musical dos antigos gregos, serve de exemplo a Heráclito. 
A lira se compõe de um arco e das cordas. Quem quer construir uma lira pega 
uma peça de madeira apropriada e a verga, formando um arco. Só que o arco, 
deixado solto, volta à sua forma retilínea. Para manter o arco vergado, é preciso 
amarrá-lo com uma corda, ou com várias cordas. O arco e a corda, nessa 
primeira etapa, estão em tensão, um contra o outro. O arco quer rebentar a 
corda, a corda quer vergar o arco. Essa oposição, que existe nessa primeira 
etapa da Dialética, se e quando devidamente dosada, faz surgir algo 
completamente novo, algo maravilhoso: a música. A tensão existente na 
primeira etapa, o arco contra a corda, a corda contra o arco, cede o lugar à 
síntese que é a música, ou antes, com letra maiúscula, a Música, que é uma das 
nove Deusas que regem e inspiram as Artes. Na primeira etapa há oposição 
excludente e conflito; na segunda etapa, conciliação sintetizante que faz surgir 
algo de novo, mais alto, mais complexo, mais nobre. 
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Um dos mais belos exemplos de Dialética, muito conhecido na Antigüidade, mas 
raramente mencionado hoje em dia, é o movimento de fílesis, antifílesis e filía, 
ou seja, o movimento dialético que leva de um amor inicial, que propõe e 
pergunta, passando pelo amor que, perguntado, responde afirmativamente, para 
chegar ao amor que, amando, se sabe correspondido, amor este que, sendo 
sintético, não é mais exclusividade de um ou de outro dos amantes, e sim 
unidade de ambos. Os gregos chamavam isso de filía, amizade. 
O amor tem começo. Alguém tem que começar. O começo é um ato 
estritamente unilateral e sempre arriscado. Não se sabe, de antemão, como o 
outro, ou a outra, vai reagir e o que vai responder. Este ato unilateral e arriscado 
é chamado em grego de fílesis. Páris ama Helena. Páris ama e sabe que ama; 
Helena percebe o convite feito, mas ainda não se decide. – O outro, ou a outra, 
pode responder que sim, como pode também responder que não. Isso de início 
está em aberto e é contingente. Se o outro, a outra, porém, responder que sim, 
então temos uma antifílesis, que também é um ato unilateral, mas não é mais 
um ato arriscado, pois não é mais só uma pergunta e só um convite, e sim uma 
respostae a aceitação de um convite já feito. Helena decide-se a aceitar o amor 
de Páris e o ama de volta. Este amor de volta é a antifílesis. Fílesis e antifílesis 
são, ambos, atos unilaterais; fílesis contém risco, e antifílesis não. Trata-se de 
dois atos independentes, completos e acabados, um diferente do outro, um em 
oposição relativa ao outro; um é tese, o outro é antítese. Mas quando ambos se 
cruzam e, num plano mais alto, se fundem numa única realidade mais 
complexa, mais alta e mais nobre, então temos filía. Na filía, os dois pólos 
inicialmente diferentes e opostos, um que pergunta e outro que responde, se 
fundem, formando um amálgama, algo de novo. Na filía, ambos os amores 
individuais deixam de ser atos unilaterais e transformam-se num único ato, que 
é bilateral, no qual não importa mais quem pergunta e quem responde, pois 
ambos os amores iniciais perderam seu caráter individual, o Eu e o Tu, para se 
unificar como algo de novo, o Nós. Páris e Helena, ao se amarem, primeiro se 
perdem. Pois o sentido de toda a existência passa a residir no outro. É o outro 
que realiza o sentido da vida, é o outro, a pessoa amada, que é o centro do 
universo. Páris ama perdidamente Helena. Páris primeiro se perde: quem ama 
vive se perdendo. Mas, como Helena ama Páris de volta, o sentido do universo 
perfaz um círculo completo e retorna a Páris, que, agora profundamente 
enriquecido, se sabe novamente cheio de sentido e de vida. Só que esta nova 
vida e este novo sentido do universo não são um ato unilateral só dele, e sim um 
ato conjunto, um ato bilateral, um ato em que o Eu foi mediado através do Tu 
para constituir um Nós. É por isso que o amor de amizade, filía, é tão forte e tão 
precioso. É por isso que gregos e troianos lutaram por tantos anos. É por isso, 
somente por amor de amizade, que Aquiles, Ulisses e Agamemnon, os pastores 
de povos, conduzem os gregos com suas naves curvas para a interminável 
guerra. É só por isso que os troianos, chefiados por Heitor, lutam até morrer. 
Tudo só por causa de uma mulher, diz Homero na Ilíada. Tudo só por causa da 
filía, que transcende os indivíduos e se constitui em síntese mais alta e mais 
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forte. Amor aí vira História. A História de gregos e troianos, a Ilíada e a Odisséia, 
os começos de nossa civilização. 
Tese e antítese são, na primeira etapa, pólos opostos que se repelem e se 
excluem. Numa segunda etapa, ambos se unificam numa síntese que é algo 
mais alto e mais nobre. Na síntese, dirá Hegel muito mais tarde, os pólos iniciais 
estão superados e guardados (Aufheben). Por um lado, eles estão superados, 
pois perderam algumas de suas características. No exemplo do amor de 
amizade, o caráter de unilateralidade e o de risco são superados e, assim, 
desaparecem. Mas, pelo outro lado, os pólos estão guardados na síntese, pois o 
cerne positivo, que já estava neles, continua sendo conservado. O amor, ao 
deixar de ser ato unilateral, fica mais amor ainda, fica um amor mais alto e mais 
nobre. Tese, antítese e síntese constituem aquilo que os filósofos gregos 
chamam de jogo dos opostos. Eis o começo e a raiz da Dialética. 
Heráclito, o pai da Dialética, diz que não podemos entrar duas vezes no mesmo 
rio. O rio não é o mesmo, nós não somos os mesmos. Tudo está em movimento, 
é o movimento que é a realidade realmente real. A realidade, ensina, constitui-se 
dialeticamente através do jogo dos opostos. No começo, tudo é luta e guerra, 
pois os opostos se opõem e se excluem: Pólemos patér pánton, A luta é o 
começo de tudo. Mas depois há, muitas vezes, uma síntese conciliadora que faz 
nascer algo de novo, mais complexo, mais alto, mais nobre. 
No jogo de opostos, nem sempre surge um resultado positivo. Muitas vezes, o 
que ocorre é só morte e destruição. Os pólos opostos nesse caso atuam só 
como agentes destrutivos. O primeiro anula o segundo, ou vice-versa, ou ambos 
se anulam mutuamente. Aí não surge síntese, aí não se faz Dialética. 
Percebe-se, de imediato, que a grande questão, para que se possa compreender 
o universo, passa a ser a Síntese. Quando e por que há síntese? Que existam 
sínteses no universo é claro. Vê-se, basta olhar o cosmos. Mas a pergunta é: por 
que às vezes há síntese, às vezes não? Quem descobrir isso descobrirá a 
resposta à pergunta sobre a harmonia no universo, que é um cosmos ordenado. 
A pergunta central de toda a Filosofia, Ciência da Grande Síntese, é: por que os 
opostos às vezes se excluem, às vezes se conciliam? 
É entre Parmênides e Heráclito que se abre o espaço em que, desde então, se 
faz Filosofia. Parmênides, dizendo que Tudo é o Uno, fornece o elemento do 
Logos universal que abrange tudo; Heráclito, dizendo que Tudo flui, que tudo é 
movimento de pólos opostos, fornece o elemento da Dialética. Hen kai Pan e 
Panta Rei, O Todo e o Uno e Tudo flui são, desde então, lemas de toda e 
qualquer Filosofia. É por isso que num pátio que se queira simbólico de nossa 
Filosofia ocidental tem que haver, em seu ponto central, uma esfera de pedra, 
uma esfera que remeta ao Ser-Uno de Parmênides. Mas, como a filosofia de 
Parmênides tem que ser balizada e corrigida pela de Heráclito, é preciso que 
esta esfera esteja em perpétuo movimento de fluir. Água tem que brotar dela, 
como de uma fonte, para que a esfera, envolta pelo fluir da água, seja o símbolo 
da Grande Síntese entre Repouso e Movimento, entre Totalidade e Dialética. 
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2 O JOGO DOS OPOSTOS 
 
2.1 A Filosofia da Natureza dos Pré-Socráticos 
Os filósofos pré-socráticos foram os primeiros, em nossa cultura, a esboçar uma 
visão racional do mundo, dizendo como a Natureza se origina, como e de que 
ela se compõe, qual o lugar do homem nela. Antes desses primeiros 
construtores da racionalidade, havia apenas o Mito. O Mito é uma primeira 
forma, ainda não crítica, de filosofar, isto é, de pensar o mundo como um todo, 
de pensar o universo em sua totalidade. O Mito, entre os gregos, assume a 
figuração da genealogia. No começo, bem no começo, contam os antigos 
gregos, há apenas caos. Caos é o começo de tudo e o primeiro dos deuses, pai 
e origem de todas as coisas. Do deus Caos surgem, então, outros deuses numa 
seqüência genealógica em que um deus sucede a outro por filiação, até 
chegarmos aos deuses atuais, aos atuais habitantes do Olimpo, um grupo de 
deuses que é comandado por Zeus. 
Também na tradição judaico-cristã o Mito assume a forma básica de genealogia. 
No começo, diz a Bíblia dos judeus e dos cristãos, havia somente Deus. Deus, 
antes de criar as coisas, era só ele mesmo, estava sozinho. Então, no primeiro 
dia, Deus, o Pai de todas as coisas, cria a luz, chamando a luz de dia e as 
trevas de noite. No segundo dia, Deus faz o firmamento e separa as águas, 
havendo então águas abaixo do firmamento, os mares e os rios, e águas acima 
do firmamento, que depois caem como chuva. No terceiro dia, Deus separa a 
terra e o mar, fazendo assim aparecer o solo, a terra verde, as plantas e as 
árvores frutíferas. No quarto dia, Deus, o Pai, cria as luzes no firmamento do 
céu, uma maior, o sol, e outra menor, a lua, dividindo assim o dia da noite. Ele 
cria também as pequenas luzes do firmamento, que são as estrelas. No quinto 
dia, Deus, o Criador, engendra os animais que vivem nas águas, os peixes, bem 
como os que vivem em terra, as bestas, e também os que voam, as aves, cada 
qual segundo sua espécie. Deus então os abençoa e manda que se 
multipliquem. No sexto dia, Deus faz o homem à sua imagem e semelhança, 
para que ele presida os peixes do mar, as aves do céu, as bestas e todos os 
répteis, e domine assim sobre a terra. Deus, então, pára, olha para as coisas 
que criou e vê que todas elas são boas. E no sétimo dia, diz o mito bíblico, Deus 
descansou. A partir deste primeiro começo, toda a Bíblia é umahistória 
genealógica, é uma história dos patriarcas e de seus povos, com ênfase 
específica no povo dos judeus. 
Tanto o mito dos gregos como o mito dos judeus e cristãos contam a história da 
origem do universo desde seu começo até a seqüência histórica dos tempos. O 
tempo passado é sintetizado como uma história que tem começo e que conduz 
até o tempo presente, dando sentido às coisas e, assim, às nossas vidas. Esse 
apanhado histórico do tempo passado, que sempre contém juízos de valor – o 
Bem e o Belo –, constitui o pano de fundo em que se insere o tempo presente. 
Feito assim o travejamento entre passado e presente, também o cotidiano se 
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entranha de valores éticos e estéticos, permitindo que se projete o tempo futuro. 
Heródoto, de um lado, e o Gênese judaico-cristão, do outro, são uma história do 
primeiro começo do mundo e da seqüência histórica das gerações. Ambos os 
mitos têm grande valor poético e funcionam como arquétipos estruturadores de 
uma determinada visão do mundo. No mito judaico-cristão há uma estrutura que 
contrapõe, de um lado, uma primeira causa, Deus, que engendra tudo, e, de 
outro lado, as coisas criadas, as criaturas que, depois, entram em seqüência 
genealógica. Deus, causa primeira de tudo, é pensado aí também de forma 
genealógica como o Criador e o Pai de todas as coisas. Por isso Ele é, em 
última instância, responsável por tudo e escreve direito até por linhas tortas. No 
mito grego há um deslocamento. A causa, no pensamento grego, não é 
pensada como uma causa eficiente externa ao processo do universo, mas como 
uma causa interna, um princípio interno de autodeterminação que molda o 
universo de dentro para fora. O deus inicial é o caos. O deus Caos, como o 
nome diz, é totalmente indeterminado; não há nele coisas ou seres com limites e 
contornos. Mas é de dentro desse caos, é de dentro desse deus Caos que o 
universo bem ordenado vai surgindo. O caos se organiza, se amolda e, a partir 
de si mesmo, engendra suas determinações. O caos, ao determinar-se a si 
mesmo, se dá forma e figura. Surgem aí os outros deuses e, na seqüência 
destes, também os homens. 
Os filósofos pré-socráticos conhecem o Mito e apreciam sua beleza selvagem e 
sua relevância pedagógica. Mas há que se pensar e argumentar racionalmente. 
Isso é Filosofia, e é por isso e para isso que existem filósofos. Isso significa que 
o processo de gênese do universo deve ser analisado e descrito com a exatidão 
e a frieza objetiva que caracterizam a ciência. É na geometria que os primeiros 
pensadores se inspiram em seu ânimo de objetividade científica. A Filosofia da 
Natureza deveria ser tão exata, tão objetiva e tão convincente quanto a 
geometria. Os pré-socráticos bem que tentaram, mas não chegaram até lá. 
Tales de Mileto pensava que a origem e o princípio – a arkhé – de todas as 
coisas é a água. As coisas se constituem e diferem umas das outras pelo grau 
de umidade. O deus Oceano é, assim, o Pai de todas as coisas. Anaximandro, 
também de Mileto, provavelmente discípulo de Tales, diz que o primeiro 
princípio é um ser totalmente indeterminado, sem limites e sem determinações, 
o ápeiron, ser este que vai sendo então ulteriormente caracterizado por 
determinações que o limitam mais e mais, até formar as coisas determinadas 
que vemos no mundo sensível. Este ser indeterminado inicial, o ápeiron, abarca 
e circunscreve todas as coisas, ele rege e governa tudo. Anaxímenes de Mileto, 
discípulo de Anaximandro, aceita a doutrina de seu mestre sobre o ser infinito, 
que constitui o começo de todas as coisas, mas não o toma de forma tão 
abstrata, definindo-o como o ar: o ar, segundo ele, é o princípio de todas as 
coisas. – Observamos aqui, na Filosofia da Natureza dos filósofos jônicos, uma 
primeira e primitiva forma do jogo dos opostos. O primeiro princípio é 
contraposto às coisas diferenciadas, que dele se originam e através dele se 
explicam. Filosofia aqui já é uma explicatio mundi, uma explicação do mundo; o 
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mundo é concebido como um processo que se origina a partir de um só princípio 
e se desenvolve de acordo com determinadas regras. Não se trata ainda da 
doutrina da Física contemporânea sobre o Big Bang, mas é o primeiro começo 
dela. 
Pitágoras e os pitagóricos dão um passo adiante e descobrem o número como 
princípio de todas as coisas. Começa aí, para nunca mais terminar, a 
matematização do mundo. As relações que os números estabelecem entre si 
constituem as regras que determinam o processo de explicação do mundo. O 
universo se desenvolve a partir de um primeiro princípio, segundo regras e 
proporções numéricas, que determinam o processo e dão forma às coisas. Cada 
número possui aí um sentido próprio e dá às coisas uma forma determinada. O 
número 10 é considerado o número perfeito e é visualizado como um triângulo 
equilátero, no qual cada lado se forma por quatro números; no centro do 
triângulo assim delineado, há um único ponto, o ponto central, totalizando o 
número 10. A assim chamada mística dos números dos filósofos pitagóricos, 
que vai influenciar depois Platão e toda a escola neoplatônica, é o berço de 
onde vêm as equações da Física contemporânea. 
Em paralelo com a doutrina sobre os números, os filósofos pitagóricos 
desenvolvem ulteriormente o jogo dos opostos. Já os números têm entre si a 
relação de contrários. O Um se opõe ao Outro, que então é chamado de Dois. 
Dessa primeira oposição saem os números 1 e 2. Mas é preciso haver síntese, 
é preciso pensar tanto o 1 como o 2 como um novo conjunto, e aí surge o 3. 
Tese é o 1, antítese é o 2, a síntese é o 3. É por isso que, segundo os 
pitagóricos, os números ímpares são mais perfeitos: neles se pensa, além da 
oposição dos dois pólos contrários, também sua síntese. O triângulo formado de 
dez pontos, ou o 10 em forma de triângulo, é a própria perfeição. Depois de 
atingirmos o 10, tudo é apenas uma repetição. Surge assim, para não sair mais 
de nossa civilização, o sistema decimal de contagem e de cálculo. 
A essa mística dos números soma-se, então, a lista dos dez pares de contrários 
– as substâncias elementares –, que, conforme combinados entre si, dão forma 
a todas as coisas: 
 
 
O jogo dos contrários aqui se apresenta como uma tabela básica dos contrários. 
Segundo os filósofos pitagóricos, quem aprende a jogar com esses dez pares de 
1. Limitado Ilimitado
2. Ímpar Par
3. Uno Múltiplo
4. Direita Sinistra
5. Macho Fêmea
6. Quieto Móvel
7. Reto Curvo
8. Luz Trevas
9. Bem Mal
10. Quadrado Retângulo
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contrários, que são como que os elementos constitutivos dos seres existentes, 
pode compor a constituição interna de cada coisa. Eis aqui a primeira forma, 
ainda muito tosca e primitiva, daquilo que hoje chamamos na Química de Tabela 
dos Elementos. Os átomos, na Química de hoje, são pensados conforme o 
modelo atômico de Niels e Rutherford. Um elétron gira em torno de um núcleo 
atômico, a eletricidade positiva e a negativa entram em equilíbrio e assim temos 
uma molécula estável, aí temos o hidrogênio. Se, em vez de um elétron, houver 
dois a girar em órbita, então já se trata do segundo elemento da Tabela dos 
Elementos, e assim por diante até chegarmos ao elemento 112, que só surge 
em laboratório. Os químicos hoje usualmente não se dão conta, mas eles são 
descendentes diretos dos filósofos pitagóricos. 
Na mesma linha de seus antecessores, sempre fazendo o jogo dos opostos, 
Empédocles é o primeiro que expressamente tenta resolver o problema 
colocado por Parmênides e Zenão de Eléia. Ele se dá conta de que o Não-Ser 
não existe e não pode nem mesmo ser pensado. Aceita essa premissa inicial do 
argumento dos Eleatas, mas não aceita a conclusão. Não se pode concluir, 
afirma ele, queo movimento seja impensável, seja contraditório e, por isso 
mesmo, seja impossível e, assim, seja inexistente. Pelo contrário, o movimento 
existe, só que não é a passagem do Ser para o Não-Ser, ou vice-versa, e sim 
misturas e dissoluções de quatro substâncias fundamentais, que permanecem 
eternas e indestrutíveis: a água, a terra, o ar e o fogo. Os elementos básicos 
não são dez pares de opostos e sim dois. As determinações das coisas variam 
conforme a composição nelas desses quatro elementos. A dosagem de líquido e 
de sólido, de fogo e de ar, a proporção em que esses elementos se misturam é 
o que dá forma e figura às coisas. 
Anaxágoras de Clazomene também aceita a premissa de que o Não-Ser não 
pode existir e continua pensando o mundo como um processo de composição e 
de dissolução de elementos básicos. Em oposição a Empédocles, julga 
Anaxágoras que só dos quatro elementos não é possível construir a diversidade 
real das coisas. Postula, para isso, a existência de spermata, de espermas. A 
própria palavra, que já em grego significa o espermatozóide masculino, mostra a 
tendência biológica dessa Filosofia. Os espermas seriam numericamente 
infinitos, de infinita variedade, cada um divisível em si mesmo, sem com isso 
perder sua força germinadora e determinante. Essa massa inicial de esperma é 
a matéria-prima do mundo. As determinações das coisas são então produzidas 
por uma Inteligência Ordenadora, o nous, que mistura os espermas de forma 
ordenada. A figura do Deus criador aparece aqui, não como uma causa externa, 
mas como uma causa interna, que, a partir de dentro do caos, faz com que este 
se organize. 
Depois dos espermas de Anaxágoras temos, então, os átomos de Leucipo e de 
Demócrito, os primeiros atomistas. Segundo eles, que também aceitam o 
princípio de que o Não-Ser não pode existir, esses primeiros princípios de todas 
as coisas, todos eles qualitativamente iguais, são “a-tomos”, isto é, são 
indivisíveis. Tomein significa cortar, átomo é aquilo que não é mais divisível, o 
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que não pode ser cortado por ser um elemento primeiro. Os átomos, 
indiferenciados uns dos outros, constituem inicialmente uma massa informe. 
Estes átomos, incontáveis, se encontram inicialmente em queda livre. O acaso – 
eis aqui, de novo, o deus Caos – faz que haja, nessas linhas verticais de queda 
livre, pequenos desvios para um lado e para outro. Esses pequenos desvios 
tornam a concentração de átomos mais ou menos densa. Essas variações de 
densidade constituem o núcleo da explicação do mundo. Cada coisa é o que é 
devido à mudança da concentração de átomos. Os átomos e o acaso 
constituem os dois elementos que explicam a natureza das coisas. Os átomos, 
vamos reencontrá-los no modelo atômico da Física moderna. Só que eles não 
estão em queda livre e, sim, em movimentos circulares. Os elétrons giram em 
órbita em torno de um núcleo. Aumentando o número de elétrons em órbita, 
aumenta o peso específico dos elementos, do hidrogênio, elemento nº 1, até o 
elemento nº 112. O acaso, vamos reencontrá-lo na relação de indeterminidade 
de Heisenberg, na Física, e, principalmente, na mutação pelo acaso da moderna 
Biologia. 
 
2.2 Os Sofistas 
“Sofista” é um termo que significa inicialmente o sábio, sofía significa sabedoria; 
daí Filosofia significar etimologicamente amor à sabedoria. O termo “sofista” 
bem como a palavra “sofisma” só mais tarde, depois da polêmica com Platão e 
Aristóteles, vão adquirir sentido pejorativo. São os sofistas que primeiro 
transplantam o jogo dos opostos de Heráclito do plano da Filosofia da Natureza 
para o plano das relações sociais. Os sofistas se ocupam, não tanto da 
Natureza, e sim da vida do povo nas cidades; eles se interessam pelo demos, o 
povo, e pela polis. É a época em que, na Grécia, a velha aristocracia entra em 
lenta, mas inexorável decadência e em que surge, cada vez mais forte, o poder 
do povo. É o povo que faz comércio, que vai de uma cidade para outra, que 
rompe com os estreitos limites do mundo antigo e, por intermédio das viagens e 
dos viajantes, abre novos horizontes e inaugura novos valores e novas virtudes. 
A polis não é mais a cidade isolada, com sua constituição própria e suas 
virtudes tradicionais, ela se descobre como uma cidade entre muitas outras. 
Surge aí uma novidade, surge aí a necessidade intelectual e política de 
rediscutir e de redefinir o que é a virtude, o que é o Bem, o que é o Mal. Não é 
mais líquido e certo que uma determinada maneira de agir seja virtuosa apenas 
por ser oriunda da tradição. A força da inércia, que a tradição possui, não serve 
mais como fonte única de legitimação das virtudes. Ao surgirem novos 
horizontes, surgem novas questões sobre o que é Bem e o que é Mal. A virtude 
tem que ser rediscutida e redefinida. Afinal, o que é virtude? O que é o certo? O 
que está moralmente errado? Eis as perguntas que os novos tempos 
colocavam, eis as questões que se impunham. As primeiras respostas foram 
dadas pelos sofistas. Os sofistas foram, em sua época, importantíssimos 
pensadores. Protágoras, Górgias e Pródico foram homens de seu tempo que 
procuraram pensar criticamente os problemas de seu tempo. 
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A grande característica – positiva – dos sofistas foi a elaboração ulterior do jogo 
dos opostos como uma maneira metódica de pensar e de agir; surge aí, mais e 
mais nítida, a Dialética. O jogo dos opostos, transportado para a trama das 
relações sociais, significa que cada homem é apenas um pólo da oposição. Para 
entender um pólo, para saber o que um pólo em realidade é e o que ele significa, 
é preciso sempre pensar esse primeiro pólo em sua relação de oposição ao 
segundo pólo. Pois, em se tratando do jogo de opostos, cada pólo só pode ser 
entendido, em si, se e enquanto for pensado em relação a seu pólo oposto. 
Cada homem, em suas relações sociais, é apenas um pólo, uma parte. Para 
entender esse primeiro homem, é preciso vê-lo em sua relação de oposição para 
com o outro homem, que é o seu contrário. A fílesis só se entende bem se a 
pensamos em relação à antifílesis; mais ainda, ambos os pólos contrários só 
podem ser entendidos correta e plenamente quando conciliados na unidade 
maior e mais alta, na filía, na qual ambos estão superados e guardados. As 
relações humanas são, assim, analisadas à luz do jogo dos opostos. 
Isso é válido especialmente em dois campos das relações humanas: no Direito e 
na Política. No Direito, o jogo dos opostos se encarna como uma das mais 
antigas e mais importantes regras de toda e qualquer justiça: Seja ouvida 
sempre também a outra parte, Audiatur et altera pars. O homem que procura 
justiça diante de um tribunal é sempre uma parte. Ele é apenas uma única parte 
de um todo maior. É preciso sempre, para que possa ser feita justiça, ouvir a 
outra parte. Esta outra parte, o outro pólo no jogo dos opostos, nem sempre 
precisa ter razão. Pode ser que só a primeira parte tenha razão, pode ser que só 
a outra parte tenha razão, pode ser que ambas as partes tenham alguma razão, 
ou seja, que ambas estejam parcialmente certas e parcialmente erradas. Em 
todo caso, sempre, para que haja justiça, é preciso ouvir também a outra parte. 
A primeira parte, o primeiro pólo da oposição, é sempre apenas “parte” no 
sentido literal, um pedaço de um todo maior. A justiça exige que a razão de cada 
parte seja medida e avaliada no contexto maior da posição sintética, isto é, 
daquele todo maior e mais nobre dentro do qual cada parte é apenas um 
pedaço, um elemento constitutivo de uma unidade maior. Exatamente isso e 
somente isso é justiça. Justiça, pois, o que chamamos de Direito, é o exercício 
constante e sistemático do jogo dos opostos. Também o Direito Penal é; neste 
uma das partes é sempre o povo. Até hoje os processos penais nos países de 
tradiçãoanglo-saxã contêm a menção do “povo versus A. Smith” (“the people 
against A. Smith”). É por isso que até hoje os juristas falam da necessidade do 
“contraditório”. O termo “contraditório” significa aqui o contexto dialético que nos 
vem desde a Antigüidade, o preceito de ouvir a outra parte, pois justiça é sempre 
o processo de formação da síntese, jamais a tese ou a antítese isoladas, uma 
sem a outra. A parte, no sistema de Direito, é sempre parte, um pedaço que 
exige a sua contraparte, o seu oposto, para que se estabeleça justiça. Até hoje. 
Os juristas hoje muitas vezes não se dão conta disso: eles são dialéticos, todos 
nós somos dialéticos. 
Tão importante quanto no Direito é a função do jogo dos opostos na Política, 
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especialmente nas assembléias de cidadãos, que se constituem em 
democracia. Antes que surja a decisão por consenso político, há discussão e 
debate. Nestes costuma haver uma polarização, às vezes uma ruptura. A 
opinião e a vontade de um grupo de cidadãos divergem da opinião e da vontade 
de outro grupo de cidadãos. Formam-se, assim, dois grupos com opiniões e 
vontades diversas. A unidade se quebra em duas partes, e surgem aí os 
partidos políticos. O partido político só se entende e só se justifica se e 
enquanto contraposto a seu partido oposto. Ambos os grupos precisam debater 
e dialogar, pois a identidade de cada um deles é determinada pela identidade do 
outro. Assim se faz Política. Pode ser que um grupo tenha cem por cento de 
razão e consiga convencer o outro grupo disso; pode também ser que cada 
grupo tenha razão apenas parcialmente e que, havendo concessões de parte a 
parte, se forme a vontade geral. A vontade geral é aí aquela unidade mais alta e 
mais nobre, a posição sintética, na qual e somente na qual os partidos, que são 
apenas pedaços, adquirem sentido e têm justificação. Por outro lado, vê-se, de 
imediato, que Política só existe quando há dois partidos. Em Política, partido 
único é um mostrengo; isso vale tanto para os regimes despóticos dos antigos 
gregos como para os totalitarismos do século XX. Mais uma vez temos aqui o 
velho jogo dos opostos. Os sofistas não foram os inventores do Direito e da 
Política, por certo, mas foram os primeiros filósofos, em nossa cultura, que 
pensaram teoricamente o jogo dos opostos como elemento constitutivo e 
essencial das relações sociais. Esse mérito tem que lhes ser dado. Nisso eles 
acertaram. 
Fora disso, cometeram alguns erros graves e fizeram bobagens que a História 
até hoje não lhes perdoa. Até hoje os sofistas têm má fama, e a palavra 
“sofisma” tem conotação altamente negativa. Isso porque cometeram um grande 
erro teórico, que hoje podemos tematizar com precisão: em vez de dizer que 
tanto a tese como a antítese são falsas e que a síntese e só a síntese é a 
verdade inteira, os sofistas algumas vezes inverteram os sinais e disseram que 
tanto tese como antítese são, por igual, verdadeiras. 
Esquematizemos. A dialética verdadeira e correta afirma que cada parte é 
apenas parte, ou seja, que tanto tese como antítese são falsas porque parciais. 
Os sofistas às vezes dizem: tanto tese quanto antítese são, por igual, 
verdadeiras. As conseqüências desse erro lógico são incríveis e politicamente 
pesadíssimas. Pois, se tanto tese como antítese são verdadeiras, pode-se 
defender tanto uma como outra. Os sofistas, agora no mau sentido da palavra, 
passaram então a defender tanto uma parte como outra, como se ambas 
tivessem razão. Justiça então deixa de existir. O senso do direito e do correto 
vai para o ar, e instala-se a mentalidade sofística de que qualquer posição é 
boa, desde que se possua desenvoltura verbal para argumentar. Os sofistas, no 
mau sentido, defendem qualquer pessoa, qualquer parte, qualquer partido como 
se fosse, ele sozinho, a verdade total. E agora ainda pior: os sofistas o fazem 
porque são pagos para isso, porque exigem e recebem pagamento. O 
pagamento em dinheiro, exigido e aceito para que um partido, uma parte, seja 
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apresentado como se fosse o todo, eis o grande erro e a grande culpa dos 
sofistas. Sócrates, Platão, Aristóteles, ninguém jamais os perdoou. Com razão. 
Depois de resgatar e reinventar a dialética, dela se afastam. Esqueceram que 
parte é sempre e somente parte, parte essa que só com a contraparte 
correspondente forma um todo maior. O jogo dos opostos, quando desvirtuado e 
invertido, de ótimo que era transforma-se em péssimo. 
 
2.3 Sócrates, o último dos sofistas 
Sócrates é, muitas vezes, chamado de último dos sofistas. Está certo, se 
entendemos o termo “sofista” em sua conotação positiva. Sócrates foi o grande 
pensador da Dialética, o grande defensor, nos assuntos morais e políticos, do 
jogo de opostos que se completam e se unem para constituir um todo maior. 
Sócrates é a grande voz que, em Atenas, se levanta para criticar o 
desvirtuamento que os sofistas fizeram com a Dialética. Não é possível defender 
tanto a tese como também a antítese, como se ambas fossem verdadeiras. Não 
é isso, é exatamente o contrário. Ambas as posições são falsas. Verdadeira é 
apenas a síntese que de ambas se engendra. A virtude, pois, não consiste em 
defender uma tese – ou uma antítese –, como se esta fosse a verdade toda 
inteira, e sim, pelo contrário, em desmascarar tanto tese como antítese como 
sendo erradas, isto é – o que é o mesmo –, como sendo apenas elementos 
parciais de um todo maior. Só o todo maior, só a síntese é que é verdadeira. Os 
sofistas argumentavam, às vezes, a favor da tese; às vezes, a favor da antítese. 
Em muitos casos concretos, na vida política, o mesmo sofista, pago por um 
grupo, argumentava primeiro a favor da verdade da tese, e depois, pago pelo 
outro grupo, a favor da verdade da antítese. E, em seguida, com o dinheiro 
embolsado, ia embora, deixando os cidadãos entregues à perplexidade e à 
contradição. 
É contra isso que se levanta a voz de Sócrates. O jogo dos opostos tem que ser 
realizado corretamente. A parte é somente parte, ela não é o todo. Ou seja, é 
preciso argumentar primeiro mostrando a falsidade, isto é, a parcialidade da 
tese, depois mostrando a falsidade da antítese, que também é parcial, para que 
então possa surgir, na conciliação de ambas, a verdade do todo maior e mais 
alto. 
Sócrates é um pensador da Moral e da Política. Como os sofistas, ele se ocupa 
do jogo dos opostos nas relações sociais, mas, em oposição aos sofistas, ele 
restabelece a forma e a estrutura correta do jogo de opostos. Não é verdade 
que tanto tese como antítese sejam verdadeiras; o certo é que geralmente 
ambas são parciais e por isso falsas. É por isso que se deve sempre ouvir 
também a outra parte. Só assim se descobre e se engendra a verdade. Saber 
ouvir a outra parte significa, na vida prática, estabelecer um diálogo, diálogo de 
pessoa com pessoa. Isso, diz Sócrates, é fazer Política numa cidade de 
cidadãos racionais e livres. Mais ainda, só assim se adquire conhecimento 
verdadeiro e se descobre qual das antigas virtudes não é apenas tradição boba 
e sim atitude moralmente correta, ou seja, virtude moral. Filosofar para Sócrates 
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é saber entabular diálogos. 
Para Sócrates, a virtude, sempre fruto do jogo entre tese e antítese, se encontra 
apenas através do diálogo real que se faz nas esquinas e na praça pública. 
Sócrates ouve, Sócrates pergunta, Sócrates responde. Sócrates perscruta a voz 
interior da consciência, que ele, personificando-a, chama de daimon, o bom 
demônio, o bom espírito. Sócrates não escreve. Não temos dele nem um único 
escrito. Pois, se o importante é dialogar concretamente, diálogo de pessoa com 
pessoa, para que escrever? Quando Platão, discípulo e seguidor de Sócrates, 
ensina e escreve na Academia, continuavalendo a regra de que a forma literária 
de tratar de assuntos filosóficos, mesmo quando se escreve, é sempre o 
diálogo. Daí os Diálogos de Platão. 
Sócrates, o homem do diálogo ético e político, foi, como sabemos, condenado à 
morte por seus concidadãos. Ele teria, com seus diálogos, cometido grave crime 
contra os deuses da cidade de Atenas e atentado contra os bons costumes, 
pervertendo a juventude. O grande pensador do “Sei que não sei nada”, o 
grande mestre do diálogo na Ética e na Política, morre dialogando. O diálogo “A 
Apologia de Sócrates”, em que Platão relata os acontecimentos e as idéias que 
cercam a condenação e a morte de Sócrates, constitui-se numa das obras-
primas de nossa civilização. 
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3 O MITO DA CAVERNA 
 
3.1 Platão e o jogo dos opostos 
No jogo dos opostos, mesmo quando o esquema lógico é transposto para o 
plano das relações sociais, podem acontecer três coisas. Primeiro, pode ser que 
o primeiro pólo seja verdadeiro; aí o segundo pólo é falso e tem que ser 
abandonado. Segundo, pode ser que o segundo pólo seja o verdadeiro, e aí é o 
primeiro que tem que ser abandonado. Mas pode ser também que ambos os 
pólos sejam falsos, e aí há que se descobrir, de parte a parte, as verdades 
apenas parciais contidas nos pólos opostos, para, unindo-as e conciliando-as, 
engendrar a unidade verdadeira de uma síntese mais alta. – Não ocorre nunca, 
pois é logicamente impossível que ambos os pólos sejam verdadeiros, que tanto 
a tese como a antítese sejam verdadeiras. Este é o erro lógico em que os 
sofistas incorreram, este o fundamento lógico-sistemático dos erros morais e 
políticos que cometeram. 
O jogo dos opostos em Platão é levado à perfeição. Perfeito é aquilo que é feito 
até o fim, aquilo que fica completo e acabado, em que nada falta e nada está 
sobrando. Perfeição é aquilo para o que Platão nos aponta, quando faz 
Filosofia. Nunca antes dele, nunca depois, o homem apontou para tão alto. – 
Como assim? Não é exatamente o contrário? Pois todo o mundo sabe que 
Platão é um filósofo de aporías, isto é, de becos sem saída. Platão, em seus 
diálogos, esboça a tese, traceja a antítese, mas síntese que seja boa ele quase 
nunca elabora. Como então chamar Platão de pensador sintético, que leva o 
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jogo dos opostos à perfeição, se ele nunca, ou quase nunca, aponta para a 
síntese? Sem síntese a Dialética se desarticula, e tese e antítese ficam uma 
contra a outra, ambas negativas e cientes de sua falsidade, sem que jamais se 
chegue a uma conclusão. Isso já sabemos e já vimos através do erro cometido 
pelos sofistas. E não é verdade que os diálogos de Platão são quase sempre 
aporéticos, sem síntese final? É pura verdade. 
Há em Platão duas doutrinas que se complementam e se completam. A doutrina 
exotérica e a doutrina esotérica. A doutrina exotérica – o prefixo “ex” está a 
indicar – destina-se ao uso das pessoas de fora, ela é feita e explicada para os 
principiantes e para os que, vindos de fora, sem os pressupostos necessários, 
ainda não estão em condições de entender o núcleo duro da doutrina. A 
doutrina exotérica é mais fácil, é mais didática, é mais introdutória. Nela o jogo 
dos opostos realmente fica quase sempre em aberto, sem uma síntese final. 
Platão aí levanta uma tese; ele a discute, debate, examina por vários lados e, 
finalmente, a refuta. A tese é sempre demonstrada como falsa. Então é 
levantada a antítese, que também é examinada e debatida, sendo, no fim, 
invariavelmente refutada. Ficamos, então, com uma tese falsa e uma antítese 
igualmente falsa, ambas imprestáveis, nas mãos. Isso é a aporía, isso é o beco 
sem saída. 
Os diálogos de Platão, quase todos – excetuam-se alguns diálogos da velhice – 
são aporéticos, isto é, desembocam num beco sem saída. A Dialética, o jogo 
dos opostos, aí não é levada a termo. Falta sempre a síntese, como, aliás, entre 
os contemporâneos da Escola de Frankfurt: a Dialética aí é uma dialética 
negativa, uma dialética sem síntese. Mas isso, diremos, não é boa dialética. 
Certo. E Platão, discípulo do filósofo heraclitiano Crátilo, bem como de Sócrates, 
sabia muito bem disso. Como sabia também que a Dialética não se faz por um 
passe de mágica, num instante, com um piscar de olhos, e sim num longo, sério, 
trabalhoso, muitas vezes doloroso processo de superação das contradições 
existentes entre tese e antítese. Dialética é educação e, como esta, se realiza 
num processo lento de aprendizado e de maturação. A criança não se faz 
homem num dia, a árvore não cresce numa semana, assim também a Dialética 
requer tempo, esforço e trabalho. Os opostos têm que ser trabalhados 
seriamente; se não o forem, a síntese será chocha e vazia. É por isso que, para 
os principiantes e para os de fora, a Dialética não é exposta e explicada de 
imediato em sua completude, ela aparece sob a forma de doutrina exotérica. Na 
doutrina exotérica, os contrários são levantados, em toda a sua seriedade, um 
refutando o seu oposto, mas, no final, Platão deixa seus ouvintes e seus leitores 
em suspenso. Realmente não há aí síntese expressamente formulada, dita ou 
escrita, é preciso que o próprio leitor, sozinho, procure acertar as peças do 
quebra-cabeça, é preciso que ele mesmo tente e experimente juntar as peças, 
assumindo o risco intelectual da tarefa. É preciso que essa massa meio informe 
de oposições contrárias sem síntese, de opostos sem conciliação, fique um bom 
tempo fermentando para que, então, daí surjam as grandes idéias sintéticas. 
Essas grandes sínteses, quando brotam e emergem, constituem então a 
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doutrina esotérica, a doutrina que os iniciados discutem entre eles, a doutrina 
que os principiantes não conseguem captar nem entender. Pois as sínteses 
finais são tão simples e tão luminosas, que quem as busca diretamente, sem 
antes passar pelo longo processo de maturação dos pólos opostos, fica 
ofuscado e não enxerga mais nada. É como o olho a olhar diretamente para o 
sol. O iniciante, se olhar direto para as grandes sínteses da doutrina esotérica, 
fica tão ofuscado, que pensa não estar vendo absolutamente nada. Por isso é 
que o trabalho penoso de jogar com os contrários tem que ser realizado 
previamente. 
É por isso que a doutrina de Platão, para o iniciante, parece ser um sistema de 
Filosofia dualista, um jogo de opostos em que os opostos nunca se unificam. 
Quem só ouve e só estuda a doutrina exotérica, sem jamais chegar à síntese 
final da doutrina esotérica, fica pensando que Platão considera o mundo das 
idéias e o mundo das coisas como duas esferas de ser existentes uma ao lado 
da outra, uma fora da outra, uma em oposição à outra. O mundo das coisas e o 
mundo das idéias são, aí, dois pólos opostos, um contra o outro, sem que entre 
ambos haja – à primeira vista – verdadeira conciliação. Há em Platão perfeita 
conciliação, só que ela só vai aparecer, com clareza e plenitude, na doutrina 
esotérica, na assim chamada Doutrina Não-Escrita. A doutrina exotérica é, 
assim, uma Filosofia estritamente dualista, em que os pólos opostos nunca se 
conciliam plenamente. Mundo material, por um lado, e mundo espiritual das 
idéias, por outro, se opõem como pólos contrários e excludentes. Matéria e 
espírito aí jamais se unificam na devida harmonia. O espírito se opõe à matéria, 
as idéias se opõem às coisas. O dualismo duro, os opostos sem conciliação 
sintética, a Dialética sem síntese, eis o eixo intelectual da doutrina exotérica. 
Muitos autores, quando falam de Platão, só estudam e só mencionam essa 
doutrina exotérica. Esta é apenas uma primeira aproximação na escalada que 
leva ao saber filosófico, mas muitas vezes é tomada – erroneamente – como 
sendo a Filosofia de Platão. Platão é violentamente desvirtuado. Ao invés de ser 
compreendido como o pensador da Grande Síntese,ele é pensado como um 
novo sofista que pega os pólos opostos sem os unificar e sem os conciliar, 
deixando-os como dois princípios opostos, conflitantes, irredutíveis. Isso desde 
a Antigüidade se chama trabalhar por dicotomias. Cortar em dois, construir os 
pólos opostos, atiçar um contra o outro, deixar um destruir o outro, ou melhor, 
deixar que ambos os pólos girem um em torno do outro, como dois guerreiros 
em luta mortal, eis a Dialética sem síntese. O Platão de verdade é um pensador 
da Grande Síntese, da Dialética em seu sentido pleno de unificação e de 
conciliação dos opostos. Mas o Platão que geralmente se estuda nos livros e – 
muito grave isso – o Platão de parte grande da tradição acadêmica é apenas o 
Platão da doutrina exotérica, o Platão dos opostos sem síntese, o Platão 
dualista. E isso é, então, um desastre intelectual, pois vai gerar dicotomias em 
que os pólos opostos jamais são reunificados. Pólos opostos, numa Dialética 
plena e levada à sua devida síntese, são ótimos, pois são momentos que 
apontam e conduzem para mais adiante. Numa Dialética negativa, sem síntese, 
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os pólos dicotômicos tornam-se problemas sem solução. 
Lamentavelmente, em nossa tradição filosófica, isso ocorreu muitas vezes. O 
mundo das coisas e o mundo das idéias, matéria e espírito, a grande oposição 
de dois pólos que deveriam ser unificados e conciliados, transformam-se num 
problema dicotômico sem solução, que passam pelos filósofos posteriores e 
entram em nossa cultura e em nossa educação, deixando um rastro de erros 
teóricos e de graves deformações éticas. Pensemos na idéia errada – atribuída 
a Platão – que entrou em nossa tradição cristã de que o espírito é bom, a carne, 
porém, e principalmente o sexo, um mal moral. A doutrina agostiniana, que 
depois é assimilada pela esmagadora maioria dos pensadores cristãos e que 
vem até nosso século, diz que a concupiscência, o desejo sexual, o que hoje 
chamaríamos de tesão, é um mal em si, que nisso consiste o próprio pecado 
original. E, sendo pecado, é sempre algo moralmente negativo, algo que é uma 
culpa, algo de que devemos nos envergonhar. Eis aqui, num exemplo bem 
concreto, como um mal-entendido aparentemente pequeno no começo leva a 
erros de grande gravidade no fim. Quando a Doutrina Exotérica é tomada como 
se fosse a Doutrina Esotérica, quando a Dialética negativa é tomada como se 
fosse a legítima Dialética, a Dialética da Grande Síntese, aí ocorrem desastres 
intelectuais e culturais de grandes dimensões. O desejo sexual, então, vira 
pecado, o corpo é rebaixado, o homem perde a unidade sintética, que é de 
corpo e alma, para transformar-se num ser completamente ridículo. O homem 
nessa dialética sem síntese vira uma caricatura, vira um anjo a cavalgar um 
porco. É nisso que dá quando não se faz a síntese devida. 
É por isso que devemos estudar com atenção esse primeiro binômio da filosofia 
platônica, o mundo das idéias e o mundo das coisas, examinando-o 
cuidadosamente pelos dois lados. Primeiro como dois pólos opostos que 
aparentemente se excluem, depois como dois elementos que se unificam, se 
fundem e assim se transformam numa unidade mais nobre e mais alta. Nós 
homens não somos anjos montados em porcos nem centauros, e sim homens, 
uma unidade sintética, dentro da qual os pólos primeiramente opostos, corpo e 
alma, desaparecem enquanto opostos e se transformam em uma nova, perfeita 
e acabada realidade. 
 
3.2 O mundo das idéias e o mundo das coisas 
Os sofistas argumentavam a favor dos dois pólos, defendendo indistintamente 
tanto um como o outro, muitas vezes argumentando a favor dos dois: 
argumentari in utramque partem. Sócrates, o último dos sofistas, nos ensina que 
assim não dá: dois pólos contrários não podem ser simultaneamente 
verdadeiros. Sócrates nos ensina a perguntar e a encontrar as respostas, a 
descobrir a síntese entre tese e antítese. Essa síntese não consiste na força do 
mais forte, como dizia o sofista Górgias, e sim na virtude. O que é virtude? 
Sócrates dizia que não sabia e mandava dialogar. 
Este ainda é o tema central e o grande problema de Platão. Afinal, o que é 
virtude? Se não é a força bruta do pólo mais forte que decide tudo, então em 
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que consiste a virtude? A resposta a esta questão é o começo de toda a filosofia 
de Platão: virtude é aquilo que deve ser. O mundo que de fato existe, como ele 
está aí frente a nossos olhos, nem sempre coincide com aquilo que deve ser. O 
Dever-Ser é o ideal a ser atingido, o Dever-Ser é a idéia. Nasce assim a idéia 
platônica. A condenação – injusta – e a morte de Sócrates mostraram com 
clareza a Platão que o Mundo-Que-De-Fato-É nem sempre coincide com o 
Mundo-Ideal-Que-Deve-Ser. 
Os sofistas pensavam que a virtude, o Dever-Ser, era algo flutuante, algo 
relativo, algo que variava de situação para situação, e que não havia princípios 
válidos para todos os casos. Platão não aceita um tal relativismo. Há princípios 
éticos que valem sempre e para todos, e estes princípios são universalmente 
válidos porque eles, antes mesmo de serem adotados pelos homens em suas 
comunidades políticas, são princípios gerais da ordem do mundo. O universo é 
um cosmos; kósmos significa aquilo que é ordenado. Platão elabora uma 
filosofia prática, a Ética e a Política, baseando-se em princípios que o homem 
tem que adotar porque são princípios de ordem de todo o universo cósmico. A 
Ética de Platão se baseia numa Ontologia, numa doutrina sobre o ser em geral, 
numa doutrina sobre a ordem do Universo. 
Como podemos saber que uma determinada regra não é apenas uma invenção 
de algum governante tirânico ou, não tão mau assim, uma mera convenção 
construída pelos homens? Convenções, mesmo quando boas e úteis, são 
contingentes, isto é, podem ser assim, mas podem ser diferentes. Como saber 
que uma determinada regra ou determinado princípio é, mais do que uma mera 
convenção, uma regra inquestionável, uma regra que não pode ser negada, que 
não pode ser mudada ou transformada, que é assim e tem que ser assim, agora 
e para todo o sempre, em todos os lugares do mundo? 
É possível encontrar e trazer à luz tais princípios fundamentais da ordem do 
Universo? Platão sorri e mostra que sim. No Diálogo Menon, um escravo 
analfabeto é trazido à presença de Sócrates, que discutia com amigos sobre a 
existência ou não-existência de princípios gerais do ser do Universo e de todo 
conhecer. Alguns duvidavam de que se pudesse descobrir e elaborar tais 
princípios. Afinal, onde estariam inscritos tais princípios? Onde, em que livro, em 
que monumento estariam eles escritos? Sócrates, sempre o personagem central 
de Platão, responde: Os primeiros princípios estão inscritos no âmago do ser e 
por isso também no âmago de nossa alma. Querem ver? Esse escravo nunca 
estudou nada, não sabe ler, não sabe escrever e nunca estudou Geometria. Se 
ele nunca estudou Geometria, não conhece o teorema de Pitágoras. Pois bem, 
vou dialogar com ele, vou fazer perguntas – só perguntas – e deixar que 
responda. E Sócrates começa, então, a perguntar, docemente, desenhando na 
areia do chão e formando as figuras. “E se traço esta linha aqui, o que ocorre? E 
se ali traço mais esta outra?” E assim, passo a passo, Sócrates sempre só 
perguntando, o escravo vai avançando, vai descobrindo os nexos e consegue 
formular o grande teorema da Geometria. Como é que o escravo conseguiu? 
Como é que ele sabe? Platão responde: Ele já sabia, desde sempre ele já sabia, 
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ele precisava somente recordar o que já sabia e tinha apenas esquecido. Esse 
conhecimento estava inato, estava dentro da alma do escravo. E estava lá 
dentro porque é um princípio que está dentro de cada ser, de cada coisa, 
porque é um princípio da própriaordem do Universo. Esses princípios de ordem 
do Universo, ínsitos em cada coisa, são universalmente válidos e estão sempre 
presentes. Eles organizam o Universo de dentro para fora, são eles que fazem 
com que as coisas do mundo não sejam uma massa desordenada e caótica de 
eventos, e sim um Universo cósmico, ou seja, bem ordenado. 
A Idéia, diz Platão, que pela ontologia da participação existe no âmago de cada 
coisa, é o princípio de ordem que a determina e que comanda seu 
desenvolvimento. No ovo de um pato há um tal princípio de ordem, que faz com 
que daquele ovo se desenvolvam sempre patos. Do ovo de galinha sai sempre 
galinha. E assim com todas as coisas. Esse princípio formador de cada coisa 
Platão chama de “forma”. A Forma determina o que a coisa é e como ela vai 
desenvolver-se. 
Os muitos patos que existem têm, todos eles, a mesma forma de ser pato. As 
muitas galinhas possuem todas a forma galinácea. Uma única forma, um único 
desenho básico que é realizado em diversos indivíduos. A Forma é como que o 
desenho feito pelo projetista; uma coisa é o projeto de um motor, o desenho 
básico, outra coisa são os milhares de motores individuais que são feitos de 
acordo com o projeto. Temos aí, de um lado, a pluralidade dos indivíduos que 
existem no mundo das coisas e, de outro lado, a unidade da Forma. 
Cada coisa tem sua forma determinada e específica. Pato é pato, galinha é 
galinha e homem é homem. Surge então a pergunta: onde estão as Formas? 
Onde existem as Formas? Onde podemos vê-las? Se as Formas são tão 
importantes, se elas são as forças formadoras do mundo, onde encontrá-las? 
Como conhecê-las? Como saber que o que estou conhecendo é uma verdadeira 
Forma e não uma ilusão? Platão responde aqui, na doutrina exotérica para 
principiantes, com um Mito. 
 
3.3 O Mito da Estrela 
As Formas existem desde sempre, pois são elas as forças ordenadoras da 
ordem do cosmos. Antes do cosmos existir, portanto, elas já existem e valem. É 
por isso também que possuem validez universal. As coisas ordenadas do 
universo cósmico vêm depois. Primeiro, antes de existirem as coisas, antes que 
as coisas de nosso mundo tenham começado a existir, já existiam as Formas. 
Este nosso cosmos não é regido e determinado por elas? Logo, elas existem já 
antes. Elas formam um mundo inteiro que consiste só de formas. Este mundo 
Platão chama de Mundo das Idéias e o localiza numa estrela fictícia. Nesse 
Mundo das Idéias, que existe desde sempre na Estrela, separado do Mundo das 
Coisas, existem também as almas individuais de todos os homens que vão 
nascer. As almas vêem as Idéias face a face e sabem, portanto, as 
determinações específicas de cada coisa, elas sabem tudo de tudo. Quando 
aqui no Mundo das Coisas nasce o homem, a alma dele, que já existia desde 
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sempre na Estrela, no Mundo das Idéias, é jogada no cárcere do corpo. Esse 
violento deslocamento faz que a alma se esqueça de tudo ou de quase tudo que 
ela havia visto na Estrela. Mas quando o homem se desenvolve e cresce, ao 
encontrar-se com as coisas do mundo, ao esbarrar nelas, ele se lembra da Idéia 
que viu na Estrela durante a preexistência de sua alma e, relembrando, 
conhece. Conhecer é sempre uma relembrança, uma anámnesis, conhecer é 
lembrar-se da Idéia Universal de uma coisa e aí, diante da coisa individual, 
dizer: Aha, isto é um homem, isto está realizando a forma de homem, aquilo é 
um pato, naquilo está se concretizando a forma do pato. Isso explica por que as 
idéias são sempre universais, embora as coisas sejam sempre individuais. As 
idéias são de outro mundo. E nossa linguagem, coisa estranhíssima, diz o 
individual sempre de maneira universal. Porque os nomes, na linguagem, 
representam formas e as formas são sempre universais. Embora estejamos 
vivendo neste mundo de coisas individuais, nossa linguagem, o logos, possui 
caráter de idéia universal. 
Temos aí uma belíssima explicação do mundo. As coisas do mundo são aquilo 
que são, são determinadas assim e não de outra maneira, porque elas 
participam da Forma original que existe na Estrela, no Mundo das Idéias. Esta é 
a Ontologia de Participação. Como o motor individual participa do projeto 
desenhado de motor ideal, assim as coisas participam de uma determinada 
idéia e por isso são assim como são. Em cima dessa Ontologia, isto é, dessa 
Doutrina do Ser, Platão fundamenta, então, sua Teoria do Conhecimento. 
Conhecer é o ato pelo qual a alma agora relembra aquilo que já tinha visto 
antes, durante a preexistência na Estrela, no Mundo das Idéias. O conhecimento 
é correto, e a ciência é universalmente válida, diz Platão, porque se apóia em 
Idéias que são as Formas do Universo. 
Mas como é que eu sei, quando esbarro numa coisa, que estou de fato 
relembrando a Forma dela? Não existem erros? Ilusões? É claro que existem. É 
por isso que o filósofo tem que dialogar, discutir, questionar e examinar cada 
questão, para ter certeza de que encontrou exatamente a Idéia da coisa. Não 
menos e também não mais. E Platão aí, sempre no Mito para Principiantes, em 
sua Doutrina Exotérica, pergunta: Existe uma Idéia para cada coisa? É certo que 
exista a Idéia de Homem, diz ele no Diálogo O Sofista, e também a Idéia do 
Bem, da Justiça. Mas será que precisa haver uma Idéia do Lodo? Lodo, uma 
coisa tão simples e tão baixa, precisa ter uma idéia que lhe seja própria? Platão 
deixa a pergunta no ar. Afinal, tais perguntas não podem ser respondidas no 
âmbito do Mito da Estrela. Tais questões só podem ser trabalhadas 
satisfatoriamente na Doutrina Esotérica com aqueles que já sabem mais do que 
apenas os primeiros princípios. 
 
3.4 O Mito da Caverna 
Encontramos no sétimo Livro da República o mais importante e o mais 
conhecido Mito de Platão: o Mito da Caverna. Em nenhuma outra imagem a 
doutrina de Platão é tão bem representada. 
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Imaginemos homens que moram em uma caverna. Desde o nascimento eles 
estão presos lá dentro, acorrentados pelos pés e pelo pescoço, de maneira que 
os olhos estão sempre voltados para o fundo da caverna. Eles só conseguem 
enxergar essa parede no fundo. Atrás dos prisioneiros amarrados, às costas 
deles, na entrada da caverna, há um muro da altura aproximada de um homem. 
Atrás desse muro andam homens, para lá e para cá, carregando sobre os 
ombros figuras que se erguem acima do muro. Mais atrás ainda, bem na 
entrada da caverna, há uma grande fogueira. A fogueira dá luz, a luz ilumina a 
cena e projeta as sombras das figuras por sobre o muro até a parede no fim da 
caverna. Os prisioneiros vêem apenas as sombras projetadas pelas figuras. 
Ouvem também ecos de vozes – dos homens que carregam as figuras atrás do 
muro – e pensam que esses ecos são as vozes das próprias figuras. O que os 
prisioneiros vêem é apenas esse jogo de sombras e de ecos. Eles estão 
acorrentados ali desde a nascença e pensam que o mundo é isso e tão-somente 
isso. O mundo é isso mesmo, dizem, e apenas isso. 
Imaginemos agora que um dos prisioneiros consiga libertar-se de suas amarras. 
Voltando-se para a entrada, ele de imediato vê o muro e percebe que as 
sombras projetadas no fundo da caverna são apenas isso, a saber, sombras. 
Percebe também que as figuras são apenas figuras. Ele pula o muro e sai; aí vê 
os homens que carregam as figuras, ouve suas vozes, vê a fogueira, vê a 
entrada da caverna e, lá fora, vê a luz. Quando sai da caverna e tenta olhar para 
o sol, fica ofuscado. Ele desce o olhar, baixa a cabeça, recompõe-se. Quando 
esse homem volta à caverna, para libertar seus companheiros, ele sabe. Sabe 
que as sombras são apenas sombras. Ele sabe que são, não apenas sombras, 
mas sombras de meros simulacros. A realidade realmente real é a realidade da 
luz e do sol, a realidade das coisas mesmas à luz do sol. Todo o resto são

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