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Marcus Vinícius Furtado Coelho ABUSO DE PODER Instrumentos Processuais Eleitorais EDITORA Eleições Abuso de poder Roberto Antonio Busato Presidente da OAB e Presidente H onorário da O AB EDITORA Sergio Ferraz Presidente Executivo da O A B EDITORA Francisco José Pereira E dito r Paulo iVIoura/IrmâodeCriaçâo Capa e Pro je to G ráfico Marta Rocha Revisão Aline Machado Costa Timm Secrefána Executiva Conselho Editoria l Sérgio Ferraz (P residente) Jefferson Luis Kravchychyn Alberto de Paula Machado Ana Maria Morais Cesar Luiz Pasold Hermann Assis Baeta Oscar Otávio Coimbra Argoilo Paulo Bonavides Rubens Approbato Machado C672e Coêlho, Marcus Vinícius Furtado Eleições - Abuso de poder - Instrumentos processuais e eleitorais / Marcus Vinícius Furtado Coêlho. Brasília : OAB Editora. 2006 232p. ISBN - 85-87260-83-9 1. Eleições Brasil I. Título EDITORA SAS Quadra 05 • Lote 01 - Bloco M Edifido Sede do Conselho Federal da OAB Brasília, DF-CEP 70070-050 Tel. (61) 3316-9600 www.oab.org.br e-mail: oabeditora@oab.org.br M a r c u s V in íc iu s F u r t a d o C o ê l h o Advogado; m em bro e fe tivo da CELP do C onse lho Federal da OAB; C onse lhe iro Federal da OAB; Ex-Procurador-Geral de Estado; P ro fessor da ESMEPI, ESAPi, UNESC e Escola N acional da A dvocacia - ENA Eleições Abuso de poder Instrumentos Processuais Eleitorais Inclui a Mini-Reforma Eleitoral de 2006 B rasília -D F , agosto de 2006 L iv r o s d o a u t o r 1. M a n u a l d e D ir e it o E l e it o r a l ; 2 . A g e n t e s P ú b l ic o s : a c o n d u t a n o p e r ío d o e l e it o r a l ; 3 . A N ova R e f o r m a d o P r o c e s s o C ivil; 4 . S o c ie d a d e E J u s t iç a . Agradeço aos meus irmãos Sérgio H enrique Furtado Coêlho, promotor de justiça; Márcia B eatriz Furtado Coelho, bacharel em Direito; em especial, D iana Furtado CoelPio, também graduada em Direito, que participou ati vamente da organização dos textos desta obra. Dedico este trabalho ao meu pai, Sérgio Coelho N eto de Souza ( in memorian), primeiro escrivão eleitoral que Deus me apresentou, e à minha mãe, M aria Doracy Furtado Coelho, tabeliã e professora, razão de existência e fu n d a mento de vida, sem a qual nada seria possível. "Pode um povo suportar muito tempo as afrontas que lhe façam, o que não signifua que permaneça indefinidamente imobilizado, podendo, em um dado momento, irromper a consciêruia que tem o seu papel, a convicção no primado de sua liberdade, a sua fibra no campo de luta cívica, pondo em debandada seus petulantes usurpadores, após mostrar- lhes que a força deles é nenhuma diante de sua fervorosa união pela causa comum." Fávila Ribeiro Sumário Prefácio, 15 Apresentação, 19 I. Considerações iniciais, 23 ii. Conceito e evolução da democracia e o abuso de poder, 25 II. 1 História e presupostos da democracia............................................... 31 II. 2 O sujeito histórico da democracia........................................................35 11.3 A Cidadania, a democracia e o abuso de p ode r.................................36 ili. O estado democrático de direito e o abuso de poder, 41 IV. O Direito Eleitoral como regulação do método democrático de legitimação do poder, 45 V. O abuso de poder em suas diversas vertentes, 47 VI. O abuso de poder no direito eleitoral, 55 VII. O exercício da cidadania na contenção do abuso de poder, 59 Vili. O voto cidadão, o abuso de poder e a corrupção administrativa, 63 IX. O cidadão frente ao abuso de poder, 67 X. 0 abuso de poder no Ordenamento Jurídico Brasileiro, 69 X. 1 A Constituição Federal......................................................................... 69 X. 2 A Lei Complementar n®. 64/90 Lei das Inelegibilidades.....................74 X. 3 Lei n® 4.737/65 - Código Eleitoral........................................................76 X. 4 Lei ns 9. 504/97 - Lei Geral das E leições.......................................... 80 Xi. O abuso de poder na jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral, 83 XI. 1 A potencialidade como pressuposto ao reconhecimento de abuso de poder........................................................................................ 84 XI. 2 A captação ilícita de sufrágio e o abuso de poder: configuração e distinção dos tip o s .......................................................86 XI. 3 Posse do segundo colocado e nulidade dos votos no abuso de poder e na captação ilícita de su frág io ...........................91 XI. 4 A inconstitucíonalidade de Lei Ordinária que faz previsão de cassação de mandato (arts. 41 *a e 73 da lei 9.504/97)................ 94 XII. Instrumentos processuais de combate ao abuso de poder, 97 XII. 1 (Ação de) Impugnação de pedido de registro de candidatura.......................................................................................97 XII. 2 (Ação de) Investigação judicial e le itora l..........................................102 XII. 3 (Ação de) Recurso contra a expedição de diplom a.......................105 XII. 4 (Ação de) Reclamação por descumprimento da Lei 9. 504/97.................................................................................... 110 XII. 5 (Ação de) impugnação de Mandato E le tivo ................................... 124 XII. 6 A Escolha do instrumento processual adequado.......................... 128 XII. 7 Os efeitos da decisão em cada demanda. O cumprimento imediato. O efeito suspensivo ao recurso. Novas eleições. Posse do segundo colocado.............................................................................................. 132 XII. 8 Não cabimento da AIME para litigar sobre descumprimento do Art. 41-A da Lei 9.504/97........................................................................... 137 XII. 9 Legitimidade do partido político e da coligação............................ 140 XII. 10 Medida Cautelar em matéria e le itora l........................................... 141 XII. 11 Efeito suspensivo dos recursos.....................................................143 XII. 12 Impossibilidade de desistência de ações e recursos eleitorais.............................................................................143 XII. 13 0 valor da prova testemunhai em tema de cassação de mandato popular........................................................... 144 XII. 14 0 princípio majoritário é essencial à democracia. A generalização de cassação de mandato pode consagrar a autocracia.........................................................................146 XIII. O advogado é indispensável na contenção do abuso de poder, 149 XIV. Reflexos penais do abuso de poder, 155 XV. Propaganda eleitoral a candidato de partido diverso e o abuso de poder, 159 XVI. A convenção partidária e o abuso de poder, 167 XVI. 1 A anulação de convenção somente é permitida quando contrariada diretriz estabelecida pela convenção nacional............................................................................................... 168 XVI. 2 Análise de caso específico: alegitimidade para convocar conven ção no estatuto do PMDB.................................................................... 169 XVI. 3 Convenção pode delegar à executiva poderes para indicar candidatos.................................................................... 171 XVI. 4 Decisão de convenção partidária que possui reflexos.................... eleitorais poderá ser questionada na ju s tiça ................................... 171 XV II. O lim ite da p ro pa ga nd a e le ito ra l e o a b u so de p ode r, 173 X V III. R e fo rm a p o lític a e o abuso de p o d e r, 177 XVIII.1. Listas preordenadas.......................................................................177XVIII.2 Financiamento público de cam panhas........................................ 178 XVIII.3 Cláusula de barreira........................................................................179 XVIII.4 Federação partidária e fim das coligações proporcionais..................................................................................... 180 XVIII.5 Prazos de filiação partidária mais elásticos.................................181 XVIII.6 Medidas que contém as mudanças de partido político 182 XVIII.7 Fidelidade partidária........................................................................183 XVIII.8 Voto distrital puro ou m isto ............................................................ 184 XV1II.9 Suplente de senador.......................................................................187 XVIIt.10 Voto facultativo.............................................................................. 188 XVIII.11 Proporcionalidade da representação dos Estados n a .................. Câmara dos Deputados.....................................................................188 XIX. A s m e d id a s de co n te nçã o de g a s to s e le ito ra is ................... 191 XIX. 1 As mudanças na propaganda ele itoral............................................191 XIX.2 As mudanças no financiamento de campanha..............................193 XX. A m in i-re fo rm a e le ito ra l: A le i n^ 11.300, de 10 de m a io de 2 0 0 6 ,1 9 5 XX. 1 Responsabilidade do administradorfinanceiro da campanha................................................................................................196 XX. 2 A obrigatória rejeição da prestação de contas e a remessa ao ministério p úb lico ............................................................ 196 XX. 3 Doação exclusiva para a conta bancária ....................................... 198 XX. 4 Vedação de ajuda por candidato..................................................... 199 XX. 5 Ampliação do rol de pessoas vedadas a doar recursos eleitorais................................................................................ 199 XX. 6 Alteração na disciplina dos gastos ele itorais.................................200 XX. 7 A prestação de contas de doações pela in terne t......................... 201 XX. 8 Prazo para o julgamento da prestação de contas dos e le itos ....................................................................................................202 XX 9 A nova ação de investigação judicial eleitoral para captação e gastos de campanha...............................................202 XX. 10 Vedação de propaganda eleitoral em postes e o u tros ................... equipamentos urbanos........................................................................203 XX. 11 Ampliação do horário de uso de aparelhagem de sonorização f ix a ................................................................................... 204 XX. 12 Novos tipos penais no dia da e le ição .......................................... 204 XX. 13 Vedação de propaganda por meio de camisetas e pequenos brindes............................................................................205 XX. 14 A proibição de show m ício.............................................................205 XX. 15 A proibição de ou tdoors............................................................... 206 XX. 16 Limitação temporal da propaganda na imprensa....................... 207 XX. 17 Tratamento isonômico para candidatos apresentadores..........208 XX.18 Colaboração dos órgãos da administração..................................209 XX. 19 Vedação de novos programas sociais em ano eleitoral...........209 XXI. Conclusão................................... 213 Glossário.............................................................................................. 215 Bibliografia.......................................................................................... 225 Prefácio Abuso de poder, associado a eleições, tema central deste livro, sintetiza a história política do Brasil. Que é essa histó ria senão uma sucessão de episódios abusivos, que se trans põem da monarquia à república e chegam aos dias de hoje sem grandes mudanças em sua essência? Os sucessivos re vezes da democracia, em nossa história republicana, não al teraram substantivamente a lógica do abuso. Ela se sustenta no fenômeno da expressiva exclusão so cial brasileira, subproduto da escravidão, que estabelece um fosso entre o país oficial e o país real. Sem participação efeti va da população - que requer politização, que resulta de um padrão educacional ainda distante de nossas massas a de mocracia representativa torna-se um jogo das elites. N em é democracia, nem é representativa. E o resultado é o abuso de poder. Em 1870, ao iniciar uma reunião ministerial, Dom Pedro II, conforme Humberto de Campos, em seu livro “Brasil Anedótico”, constatava: “As eleições, como se fazem no Bra sil, são a origem de todos os nossos males políticos”. Cento e trinta e seis anos depois, quem pode contraditá- lo? Se o modo como se fazem as eleições no Brasil de hoje não são a origem de todos, são pelo menos a origem de subs tancial parte de nossos males políticos. Da maior parte deles. Basta ver a crise política que permeou os anos de 2005 e 2006, decorrente do impacto causado por denúncias de mal versação de dinheiro público - abuso de poder em sua ex pressão mais visceral com o objetivo de garantir o contro le do processo político-eleitoral. Os detalhes hediondos des filaram durante meses em três CPIs no Congresso Nacio nal: a dos Correios, a do Mensalão e a dos Bingos. Oposição e situação acusaram-se de suas respectivas ban cadas - e lamentavelmente, ambas estavam certas em gran de parte do que diziam uma da outra. Ambas, em graus vari ados, incidiam - e reincidiam - no impune delito de abuso de poder. As eleições, do m odo com o são feitas no Brasil, privatizam o Estado, tornando-o, em vez de bem comum, propriedade dos que financiam os eleitos. E isso, repito, vem de longe. Já no início do século 20, três décadas depois do co mentário de Dom Pedro II, o escritor e republicano Euclides da Cunha dava-lhe inteira razão, definindo nosso processo eleitoral, em tom de absoluto desencanto, como “mazorcas periódicas que a lei marca, denominando-as ‘eleições’, eufe mismo que é entre nós o mais vivo traço das ousadias da linguagem”. Dois momentos da história brasileira, em dois regimes distintos - o monárquico e o republicano -, e conceitos con vergentes a respeito de algo vital à saúde moral e institucio nal de qualquer nação e de qualquer regime fundado na li berdade: as eleições. Nossa primeira revolução republicana, em 1930, teve entre seus principais pressupostos, a moralização eleitoral, com a adoção do voto secreto e do voto feminino. Os de mais movimentos políticos que se lhe seguiram menciona ram sempre a problemática eleitoral. Rui Barbosa sustentava que “o voto é a primeira arma do cidadão”. Uma arma contra a tirania, em defesa de sua dignidade c direitos. Qualquer gesto, pois, que viole ou atente contra a integridade do voto, fere a ética, fere a liberdade, fere a democracia. A saída, portanto, não é suprimir as eleições, como o fizeram os movimentos golpistas de nossa história, de triste memória, e que se estabeleceram mediante discurso mora lista. O que se impõe, muito ao contrário, é o fortalecimen to do instituto do voto, pelo aprimoramento das leis, pela sempre adiada reforma política, pelo aperfeiçoamento dos mecanismos de fiscalização à disposição da Justiça Eleitoral - e, sobretudo, pela ampliação de nossa taxa de cidadania. É o cidadão o melhor defensor de seus direitos. Por isso, a Ordem dos Advogados do Brasil, em 2004 - um ano antes da crise do Mensalão, que expôs o profundodesgaste moral do Estado brasileiro -, lançou campanha em defesa da Re pública e de suas instituições, sustentando a necessidade de aplicação dos mecanismos da democracia direta, previstos no artigo 14 da Constituição Federal de 1988: plebiscito, re ferendo e iniciativa popular. Toda tutela sobre a cidadania, por mais bem intenciona da, é precária e invasiva. República é o regime da cidadania. É a cidadania no Poder - e nada, nem ninguém pode substi tuir o livre arbítrio, a soberania do cidadão, que se exerce em sua plenitude no recinto inviolável da urna eleitoral. Nossa república, porém, padece de um paradoxo de origem: nas ceu positivista - e o Positivismo postula um modelo de soci edade tutelada por sua elite. Daí porque sustentamos que é preciso reproclamar nossa república, torná-la - perdoem a licença literária - verdadei ramente republicana, de todos, e não apenas de alguns. Este livro, fruto de estudo criterioso do advogado Marcus Vinícius Furtado Coelho, é extremamente esclarecedor nesse sentido. Traça amplo painel histórico a respeito do abuso de poder nas eleições e faz minuciosa análise a respeito da le gislação específica, chegando à mini-reforma eleitoral de maio de 2006, esforço de última hora para minim izar distorções e conter abusos na campanha que se avizinhava. Trata-se de contribuição preciosa ao processo de rege neração das instituições republicanas brasileiras e, desde já, é leitura obrigatória para estudiosos, legisladores e gover nantes. E uma louvável contribuição erudita a uma causa essencialmente popular. ROBERTO BUSATO Presidente do Conselho Federal da OAB Apresentação o processo eleitoral no Brasil está m arcado por um paradoxo: de u m lado, as incorporações científicas e tecnológicas na gestão m oderna da inform ação eleito ral, fazendo-nos orgulhar de nossa capacidade técnica e louvar o trabalho da Justiça Eleitoral; de outro, o deficit ético que m atiza a difusão de idéias, a cooptação de sim patizantes políticos, a aglutinação de partidários, cau- sando-nos, por vezes, perplexidades quanto à legitim i dade do processo político de realização da dim ensão re presentativa de nossa democracia. D esde o início da informatização do processo elei toral, p rim eiro com a totalização eletrônica nas eleições presidenciais de 1989, depois com a eliminação das cé dulas, urnas e mapas de urna, não há argum ento rele vante que m acule a credibilidade dos sistemas eletrôni cos de eleições. N e n h u m a suspeita de fraude n o p ro cessam ento das informações eleitorais, nen h um anún cio de ataque de hackers aos arquivos, não se apontam sabotagens ou vazam entos nos procedim entos de capta ção, transmissão e totalização dos votos. Se no cam po da gestão interna dos dados eleitorais tem os motivos para confiar na eficiência e segurança do processam ento informacional, para reconhecer a fideli dade entre os dados oferecidos e os resultados com pu tados e analisados apenas do ponto de vista quantitativo, de outra banda, quando divisamos o processo político com o u m todo em nosso País, refletindo quanto à qua lidade e m érito dos resultados, som os tom ados por d ú vidas em relação a sua legitimidade e quanto à fidelida de entre os resultados eleitorais com putados e as au tên ticas aspirações comunitárias, de algum a m aneira crista lizadas no processo histórico. D en tro da esfera burocrática adm inistrativo-judici- al, tem os o tratam ento técnico dos dados, operados pela lógica científica, acorrendo-nos u m sentim ento de cer teza do controle do fluxo e de acerto dos resultados, ainda que estimados apenas pelo aspecto quantitativo. D o lado de fora da atuação burocrática, na arena propriam ente política, no cam po da experiência hum ana, no espaço de liberdade dos atores políticos, som os assaltados pela dúvida quanto à eficácia dos marcos regulatórios e pela suspeita de insuficiência da retórica dos profissionais do D ireito. N o campo burocrático, o fecham ento sistêmico e o controle fiel dos processos, o sentim ento de certeza e segurança; no espaço político, a inerente abertura, di an te da e levada co m plex id ad e e c o n tin g ên c ia q ue perm eiam as relações hum anas e sociais, produzindo um sentimento de incerteza e insegurança, e um a grave des confiança em relação à qualidade dos resultados. O tem a proposto no livro, em síntese, desperta para a necessidade de ver-se retom ado o discurso ético na arena política, m ediado por um a gramática dem arcado- ra das condições estruturais e procedim entais dem ocrá ticas de formação de governos. O esforço do reconheci do Professor e renom ado Advogado traduz a sua per m anente vigilância em defesa do Estado D em ocrático de Direito, vivenciada, desde cedo, ainda nos bancos aca dêmicos, engajado que fora nos m ovim entos e repre sentações estudantis. C onteúdo e estrutura da obra re velam, além da m aturidade intelectual e literária, pelo refino e clareza do estilo, o perfil de quem se preocupa com os problem as de sua polis e efetivam ente deles se ocupam, evidenciando que só no âm bito político e pela via política se estabelece a condição hum ana. Por isso, o livro, adornado pelo ineditism o próprio de quem não está restrito aos centros hegem ônicos de produção científica, e então livre para o instigar e o pen sar, representa um escudo a esses heróis que lu tam em favor da liberdade de participação política, porque per cebem que não só a liberdade do espaço privado, mas, sobretudo, o exercício da liberdade no espaço político realiza o ser-do-hom em . D entro dessa retórica republicana, o au tor realça a paridade de condições e armas com o im prescindível aos desenhos eleitorais representativos, especialm ente em dem ocracia de larga escala, onde os m andatos políticos, com o defendia Bobbio, pelo aum ento da complexidade social, to rnam -se inevitáveis. C oncentra-se, então, o autor, referenciado em grandes nom es da ciência políti ca e do direito eleitoral, na proteção de um a democracia substancial, em discurso contra as práticas abusivas de po der no processo de seleção das representações políticas. Ao invés de reter-se em conceitos e definições con vencionais, em apologias estéreis da com petição e com petitividade do sistema político, o texto constitui u m instigante diálogo com a experiência legislativa e ju d ic i ária eleitoral em relação ao tem a do abuso do poder, exer citando e tecendo, em m odos abertos e plurais, um a vi gorosa defesa da m ensagem política com o a legítima ra zão de influência de voto dos eleitores. Pela dim ensão simbólica e pragmática, constitui um a m adura reflexão sobre procedim entos de superação do sobredito para doxo que ainda encerra o processo político no Brasil. Carlos A ugusto Pires Brandão* * M estre em Direito, professor da U FPI, Ju iz Federal titular da 5° Vara da Secçâo Judiciária do Piauí, em exercício no T R F da 1® Região, ex-juiz do TRE/PI. I. Considerações iniciais O abuso de poder impede a expressão livre mas politi camente responsável, da vontade autêntica do povo, no pro cesso eleitoral. A República Federativa do Brasil constitui-se em Esta do de Direito qualificado como democrático, no qual o po der emana do povo e em seu nome será exercido, através, primordialmente, de representantes eleitos. A escolha de forma livre desses membros é imprescindível à construção de uma democracia legítima que somente será possível com a contenção do abuso de poder no processo eleitoral. A liberdade do voto é uma oportunidade de se fazer ci dadão na medida em que a opção de nosso representante é resultante de observações de seu comportamento político- social, de exame de suas característicase da sua história na relação com a realidade em que vive. A escolha de uma pes soa para atuar como representante exige que sua bandeira de luta corresponda às expectativas e reais interesses de sua comunidade. O direito eleitoral, como ramo do direito público desti nado a regulamentar, organizar e resolver os litígios decor rentes de eleições está, direta e intimamente, envolvido nes sa tarefa de construção democrática e, por que não dizer, libertária. Quais os meios utilizados para coibir o exercício demo crático do voto livre e politicamente responsável do povo? E l e i ç õ e s - A b u s o d e P o d e r Q ue caracteriza o abuso de poder no processo eleitoral? Como a matéria se encontra disciplinada no ordenamento jurídico pátrio? Quais os instrumentos jurídicos responsá veis por garantir o direito de voto do cidadão, evitar ou coi bir o abuso de poder no processo eleitoral? Eis os questiona mentos aos quais esses apontamentos pretendem respon der. O esclarecimento ou o discernimento de tais questões certamente irá contribuir para o progresso e para a melhoria da qualidade democrática do processo eleitoral, porque co labora para a contenção do abuso de poder que usurpa o direito de voto livre e politicamente responsável do cidadão. Trata-se, conseqüentemente, de um estudo que possui relevância e atualidade. A um, porque cuida de tema caro à democracia, regime de governo que melhor assegura a li berdade, com responsabilidade política do cidadão. A dois, porque no presente momento a sociedade brasileira, e a Jus tiça em particular, priorizam o combate ao abuso de poder como foco central para a solidificação da democracia no país. O conhecimento dos meios aptos a conter o abuso de poder em campanhas eleitorais, a possibilitar o seu adequa do enfrentamento, é fundamental ao exercício da cidadania, ao trabalho do profissional especializado e à edificação do Estado Democrático de Direito digno desse batismo. II. Conceito e evolução da democracia e o abuso de poder A análise sobre o abuso de poder imprescinde de estudo do conceito e evolução histórica da democracia. Isso porque a contenção do abuso possui sua mais forte justificativa na necessidade de construir um regime democrático autêntico, no qual a escolha dos representantes do povo seja efetuada de forma livre e legítima. A democracia, como diversos outros conceitos políti cos, possui o traço comum de não possuir conceito não con testável. De todo modo, é possível aduzir que se trata, a de mocracia, do regime político que se caracteriza pela titulari dade do poder político atribuída ao povo, que delega seu exercício a representantes eleitos livremente em eleições periódicas. Assim, a maioria possui o poder decisório atra vés dos escolhidos para representá-la. O exercício deste po der também pode ser feito, no Brasil, diretamente pelo povo, por intermédio de plebiscito, referendo ou iniciativa popu lar de leis, conforme disposto na Constituição Federal, em seu art. 14, incisos I, II e III. Ressalte-se, no entanto, que quanto mais a instituição democracia é tida como o melhor dos regimes para os po vos, maior é a polêmica sobre a sua adequada definição, bem como a captação de seus pressupostos fundamentais. A his tória já adjetivou o conceito, falando-se em democracia li beral, própria do capitalismo, e democracia popular, relacio nada ao sistema econômico socialista. Juridicamente, no pri meiro se destaca a garantia dos direitos fundamentais do E l e i ç õ e s - A b u s o d e P o d e r homem e do cidadão e no outro a soberania da vontade po pular como dogma absoluto, inclusive podendo suplantar as garantias fundamentais.Com o fim dos regimes comunistas do leste europeu, tal dicotomia em muito diminuiu. Surgi ram mais recentemente os “pós - modernos”, defendendo a superação dos dois modelos de democracia, pregando o necessário respeito às diferenças, ao dissensso, ao plura lismo e às minorias. Polêmicas à parte, é possível comentar que a origem etimológica de democracia está em demos, que corresponde a povo, e kratos, poder. Giovani Sartori, com propriedade literária, bem esclarece que: (...) Dem os, no século V aC, significava a com unidade ateniense reunida em eklesia. Contudo, mesmo assim defi nida, demos pode ser reduzida a plethos, isto é, o plenum , o corpo inteiro; ou a pollói, o grande núm ero; ou a pléiones, a maioria; ou a óchlos, a massa ( sendo este significado dege nerado). E, no instante em que demos é traduzido para uma língua moderna, as ambigüidades aumentam. O term o itali ano popolo,tão bem como seus equivalentes em francês e alemão ( peuple, volk), transmite a noção de entidade singu lar, enquanto que a palavra inglesa people indica pluralidade. N o primeiro caso, somos facilmente levados a pensar que popolo denota um todo orgânico que pode ser expresso por um a vontade geral indivisível, enquanto que, no últim o exemplo dizer a palavra “democracia” é como pronunciar policracia, uma multiplicidade separável constituída de cada uma das pessoas. (Assim, não é por mera coincidência que as interpretações puristas do conceito tenham provindo de es tudiosos que raciocinaram em seus próprios idiomas, ale mão, francês ou italiano). Conclui-se daí que o nosso con ceito de “o povo” tem de ser reduzido, pelo menos, a cinco interpretações: 1- povo significando uma pluralidade aproximada, exatamen te como um grande número; M a r c u s V i n í c i u s F u r t a d o C o ê l h o 2- povo significando um a pluralidade integral, todas as pes soas; 3- povo como entidade, ou como um todo orgânico; 4- povo como um a pluralidade expressa por um principio de maioria absoluta e; 5- povo como uma pluralidade expressa pelo principio de uma maioria limitada.’ É de Abraham Lincoln a conhecida afirmação que con figura a democracia como o “governo do povo, pelo povo, para o povo” .^ Expressão que, a par de suas diversas signifi cações, é tida como símbolo da concepção do regime. Rui Barbosa, entre nós, foi feliz ao defender que sistema representativo quer dizer representação do povo pelo povo. Se não é o povo quem governa a si mesmo, então, legalmente, não há governo, e não é governo o que há. (...) A moeda falsa tem pena a cadeia. Os falsos governos, pena de 27 queda. Queda pela reprovação pública. Queda pelos sufrági os populares. Queda pelo escrutínio eleitoral. ^ A teoria democrática convive com três tradições histó ricas do pensamento político. A teoria clássica, de Aristóte les, que distingue a democracia, que é o governo de todos os que gozam de cidadania, da monarquia, governo de um só, e aristocracia, governo de poucos. A teoria medieval, com raízes romanas, que se apóia na soberania popular, sendo descendente se o poder derivar de monarca e se transmitir por delegação do superior ao inferior. A teoria moderna, surgida em Maquiavel, que qualifica a concepção antiga de ' SARTORI, Giovanni. Teoria Democrática. 1*. Edição. Editora: Fundo da Cultura, Portugal, 1962. p. 32-33. ^SARTORI, Giovanni. O b. Cit. Pág. 42 BARBOSA, Rui. Escritos e D iscursos Seletos. 1*. Edição. Editora: José Aguilar Ltda, 1960.p. 1.022. E l e i ç õ e s - A b u s o d e P o d e r democracia como República. Para Noberto Bobbio, “um exame do debate contemporâneo em torno do conceito e do valor da Democracia não pode prescindir de uma referên cia, ainda que rápida, à tradição”'^ . A transposição da democracia da teoria para a prática é uma conquista da idade moderna, quando vence o obscu rantismo da idade média. Assim, a Revolução Inglesa de 1689, que edificou o Bill ofRigths; a Revolução Americana de 1776, que formulou a Declaração de Independência das treze co lônias; e a Revolução Francesa de 1789, com o lema “igualdade, liberdade e fraternidade”, que cunhou a Declaração dos Direitos do Hom em e do Cidadão são marcos significa tivos desta conquista. Para Dallari é através destes “ três gran des movimentos político-sociais que se transpõem do plano teórico para o prático os princípios que iriam conduzir ao estado Democrático” .^ Noberto Bobbio, com precisão, elenca os pressupostos para a configuração da democracia: 1) o órg^o político máximo, a quem é assinalada a função legis lativa, deve ser composto de membros direta ou indiretamente eleitos pelo povo, em eleições de primeiro e segundo grau; 2) jun to do supremo órgão legislativo deverá haver outras instituições, como dirigentes eleitos, como os órgãos da ad ministração local ou Chefe de Estado( tal como acontece nas repúblicas); 3) todos os cidadãos que tenham atingido a maioridade, sem distinção de raça, de religião, de censo e, possivelmente de sexo, devem ser eleitores; ^BO BBIO , N oberto e outros. Dicionário de C iência Política,. 5* edição. V ol.l. Edi tora Universidade de Brasília, p. 320. ^DALLARI, Daim o de Abreu. O b. Cit. p .l29 M a r c u s V i n í c i u s F u r t a d o C o e l h o 4) todos os eleitores devem ter votos iguais; 5)todos os eleitores devem ser livres em votar segundo a própria opinião, formada o mais livremente possível, isto é, num a disputa livre de partidos políticos que lutam pela for mação de uma representação nacional; 6) devem ser livres também no sentido em que devem ser postos em condição de ter reais alternativas (o que exclui como democrática qualquer eleição de lista única ou bloquea da); 7) tanto para as eleições de representantes como para as de cisões do órgão político supremo vale o principio da maioria numérica, se bem que podem ser estabelecidas várias for mas de maioria,segundo critérios de oportunidade não defi nidos de uma vez para sempre; 8) nenhum a decisão tomada por maioria deve limitar os di reitos da minoria, de um m odo especial o direito de tomar- se maioria, em paridade de condições; 9) o ó r^ o do Governo deve gpzar de confiança do Parlamento ou do Chefe do Poder Executivo, por sua vez eleito pelo povo^. A democracia pressupõe, de igual modo, o respeito aos direitos e garantias fundamentais, em relação aos quais a maioria não poderá dispor ou impedir sua vigência. Assim, a dignidade da pessoa humana, a promoção do bem de to dos, a proibição de preconceitos de origem, raça, sexo, cor e idade ou quaisquer outras formas de discriminação, inscri tos na Constituição federal como princípios fundamentais, são postulados inerentes a vida democrática, inalteráveis ainda que pela vontade da maioria social. Trata-se de um círculo de proteção ‘as minorias. É que democracia pressupõe o res peito às diversa minorias, sejam políticas, sociais ou cultu rais. A pluralidade é intrínseca à democracia, significando que a maioria não pode oprimir o direito de existência e ma- ^BOBBIO, N oberto. O b. Cii. Pág. 327 E l e i ç õ e s - A b u s o d e P o d e r nifestação da minoria. Deste embate, outrossim, surge a convivência democrática, necessária à dialetização das idéias sociais e construção das melhores soluções. Fávila Ribeiro, citando Otfried HofFe, ressalta que “os princípios de justiça têm, na democracia, a função de prote ção das minorias e garantem direitos iguais daqueles que não são das mesmas convicções econômicas, sociais, políticas e religiosas ou lingüístico-culturais da respectiva maioria; eles formam um corretivo crítico contra os excessos da sobera nia, mesmo de um soberano democrático” .^ A Democracia possui uma característica que lhe é ine rente, qual seja a desconfiança institucionalizada. Exatamente por isto são realizadas eleições periódicas, porque o sistema desconfia que os eleitos poderão não implementar as pro postas e os projetos prometidos durante a campanha eleito ral ou a implementação de tais idéias podem não alcançar o resultado esperado pelo corpo social. Assim, no pleito elei toral seguinte são avaliados os eleitos e seus partidários, sen do seus mandatos renovados ou eleitos seus seguidores ou, ainda, eleitos os opositores com novas idéias ou novos pro jetos. Esta é a denominada alternância no poder, próprio da democracia. Entretanto, apresenta-se uma reflexão crítica sobre o atu al momento da democracia, a partir das palavras de Marcos Ramayana, que enuncia: “A prática do fisiologismo, das van tagens pessoais em detrimento da ideologia do interesse pú blico, representa um potencial perigo e, quiçá, uma ‘sabota gem institucionalizada’ aos tons da virtude da democracia, ^ H O F F E , OfFried. Justiça Política - Fundamentação de um a filosofia Crítica do D ireito e do estado, trad, de E m ildo Stein, Petrópolis: Vozes, 1991. apud RIBEIRO, Fávila. Abuso de Poder no Direito Eleitoral. Editora: Forense, 1998.p. 03 M a r c u s V i n í c i u s F u r t a d o C o é l h o onde o pomo da discórdia radia-se intensamente sobre as bases e raízes da estrutura originária democrática, onde se faz da política a arte do possível, amesquinhando-se os su blimes anseios da verdadeira cidadania”^ II. 1 História e presupostos da democracia A democracia não possui uma história de evolução per manente, desde o início de sua experimentação na socieda de humana, marcada por avanços e retrocessos. N a Grécia antiga, cerca de 500 a.C, as cidades-estado, notadamente Atenas, introduziram sistema democrático de governo. Do Grego advêm os termos demokratia: demos, o povo, e kratos, governar. Tal regime vigorou até 321 a.C, quando Atenas foi dominada pelo império macedônico e, depois, por Roma. A democracia, de modelo direto, funcionava através de assembléias, com a possibilidade de participação de todos os cidadãos. A escolha dos funcionários essenciais era feita por elei ção e para as demais funções existia uma espécie de sorteio. Em período coincidente, na cidade de Roma foi desen volvido regime de roupagem democrático denominado re pública, originado dos termos latinos res, negócios ou coisa e publicus, pública ou do povo. As assembléias podiam partici par, inicialmente, apenas os patrícios, sendo estendida após aos plebeus. Deu-se o enfraquecimento da democracia com os males que costumam lhe perseguir, a corrupção, a inquietude civil, diminuição do espírito cívico dos cidadãos a militarização e a guerra. Isto por volta de 130 a.C. Com o assassinato de Júlio César, em 44 a.C transformou Roma em Império. ® RAMAYANA, Marcos. D ireito Eleitoral, la. Edição. Ed. Im petus. Rio de Janeiro, 2004. p. 39. E l e i ç õ e s - A b u s o d e P o d e r A democracia somente surge novamente cerca de mil anos após, em cidades da Itália do norte, como Florença e Veneza, com o movimento renascentista. Sucumbiu diante dos citados inimigos da democracia, acrescido da prevalên cia dos estados nacionais. A democracia como concebida atualmente pressupõe um parlamento nacional, constituído por representantes, somen te surgiu na Inglaterra, na Escandinávia, nos Paises Baixos e na Suíça, durante o Século XVIII, com a criação das assem bléias locais, instituindo a ideologia do consenso dos gover nados para a instituição de impostos e, posteriormente, para a edição das demais regras de conduta. Os representantes eram eleitos, não existindo sorteios ou seleções por acaso como era usual em Atenas. Passa a vigorar o sistema constitucional no qual o Rei e o Parlamento possuíam seus poderes reciprocamente limi tados. Esgotava-se o modelo vigorante na Idade Média, do absolutismo monárquico, baseado na aliança com os senho res feudais e com a Igreja, para surgir o modelo do governo das leis ou dos parlamentos, com as monarquias constituci onais, reclamada pela nova classe em ascensão, a burguesia que, detendopoder econômico a partir das grandes navega ções, também desejavam alcança o poder político. É momento inspirador de transformações, quando do iluminismo e renascentismo, da revolução francesa, da in dependência das treze colônias inglesas da América do Nor te, do surgimento de Cartas Constitucionais que limitam o poder, distribuindo competências, estabelecendo modos para alcançá-lo e declarando os direitos individuais. Com o sur gimento destes movimentos, o parlamento deixa de ser bastiões de privilégios, como câmaras reservadas para a aris M a r c u s V i n í c i u s F u r t a d o C o ê l h o tocracia e o alto clero, para ser composto por representantes realmente eleitos pelo povo. Registre-se, por interessante, que Robert A. Dahl, pro fessor da Universidade Americana de Yale, autor de Sobre a Democracia enumera cinco critérios para a identificação de um sistema democrático: participação efetiva de todos os membros da sociedade política, igualdade de voto, entendi mento esclarecido, controle do programa de planejamento e inclusão dos adultos^ com o pleno direito de cidadãos implí citos no primeiro dos critérios. Deste mesmo autor, são apresentadas vantagens que tor nam a democracia mais desejável que qualquer outra alter nativa, a saber: a democracia ajuda a impedir o governo de autocratas cruéis e perversos, garante aos cidadãos uma série de direitos fundamentais, inclusive liberdade individual mais ampla, proteção dos interesses fundamentais das pessoas e exercício da liberdade de autodeterminação; somente um governo democrático pode proporcionar uma oportunidade máxima do exercício da responsabilidade moral, a promo ção do desenvolvimento humano, um grau relativamente alto de igualdade política; e, na ótica global, a relação pacífi ca entre as modernas democracias representativas, aliada a uma maior prosperidade^^ A pedra angular da democracia é a igualdade. Assim, a Declaração da Independência dos Estados Unidos, em 1776, que teve em Thomas Jefferson seu principal autor, funda menta-se na assertiva seguinte: ® DAHL, Robert A. Sobre a Democracia: tradução de Beatriz Sidou. Brasília; Editora Universidade de Brasília, 2001. p.49 m e in .p . 73 E l e i ç õ e s - A b u s o d e P o d e r Consideramos evidentes as verdades de que todos os ho mens foram criados iguais e que todos são dotados pelo Cri ador com certos direitos inalienáveis, entre os quais a vida, a liberdade e a busca pela felicidade. O autor francês Aléxis de Tbcqueville destaca que a igual dade de condições na América era cada vez maior em rela ção à Europa, ao nível de tê-la como um fato providencial, dotado de todas as características de um decreto divino: é universal, é permanente, escapa sem pre a qualquer interferência humana; todos os acontecimen tos e todos os homens contribuem para seu progresso^’. Apresentados os contornos da origem e dos pressupostos da democracia, passa-se ao importante tema sobre quais insti tuições políticas são necessárias a uma democracia em grande escala. Para Robert A. Dahl, na mencionada obra, instituições M são práticas reiteradas de um determinado sistema político. As práticas são arraryos políticos reiteradamente exercitados. As sim, um governo democrático carece das seguintes instituições políticas: funcionários eleitos, eleições livres, justas e freqüen tes, liberdade de expressão, fontes de informação diversificada, autonomia para as associações e cidadania inclusiva.’^ Como se vê, as eleições livres, justas e freqüentes são indispensáveis à democracia, isto para implementar a igual dade política ou assegurar a todos os cidadãos “oportunida de igual e efetiva de votar e todos os votos devem ser conta dos como iguais”*^ , conforme salienta Robert A. DahI. Para o autor americano “livres quer dizer que os cidadãos podem ” T O C Q U E V ILL E , Aléxis. Democracy in America, v. 1. N ova York: Schocken Books, 1961. p. 71. DAHL, Robert A. O b. Cit.p. 98-100. Idem.p 109. M a r c u s V i n í c i u s F u r t a d o C o e l h o ir às umas sem medo de repressão; para serem justas, todos os votos devem ser contados igualmente...se os cidadãos qui serem manter o controle final sobre o planejamento, as elei ções também devem ser freqüentes”’'^ . II. 2 0 sujeito histórico da democracia A democracia possui como sujeito histórico, o povo. Sem a legítima participação popular não há regime que se diga democrático. Como bem descreve Angela Vivanco Para la teoria democrática, el pueblo - como conjunto de cidadanos - ejerce Ia soberania que reside em la nación toda, y desde este punto de vista, es em sus dacisiones em Ias que se encuentra el origem de toda autoridad. Em otras palavras, la capacidad de m ando dei gobernante y su titularidad, emanan precisamente de que es el pueblo el que há determi nado que él se encuentre allí.’® Povo pode significar 1. conjunto de indivíduos que falam (em regra) a mesma língua, tem costumes e hábitos idênticos, uma história e tra dições comuns. 2. Os habitantes dum a localidade ou região; povoação.'^ Juridicamente, povo há de ser entendido como todos aqueles submetidos, em um determinado território, à mes ma ordem jurídica estatal e ao mesmo poder político, com faculdade de participar da vida nacional, integrando o corpo que decide os destinos da nação. O povo brasileiro são todos aqueles que vivem disciplinados pela Constituição e leis de nosso país, em território brasileiro, e que possuem a possi bilidade de participar da definição dos destinos nacionais. '■* Idem , ibidem. " VIVANCO. Ángela M . O h. Cit. p.307, FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. M ini Aurélio. Século XXI. 4a. edição. Ed. N ova fronteira. Rio d e Janeiro. 2001. pág. 549, E l e i ç õ e s - A b u s o d e P o d e r A democracia será tão mais legítima quanto maior e mais qualitativa for a participação do povo. A ampliação do contin gente de eleitores é medida que amplia a democracia. Hoje, no Brasil, o direito ao voto dos maiores de 16 anos e dos anal fabetos integra este esforço de consolidação do nosso país como uma das maiores democracias de massa do mundo. Tal participação, entretanto, deve vir acompanhada do item qualidade, que pressupõe a consciente e livre definição da vontade política e do desejo de voto. Não é suficiente assegurar o direito ao voto direto e secreto. Faz-se necessá rio impedir o abuso de poder que impede ou dificulta a livre formação de opinião, desvirtuando a vontade popular e en fraquecendo a democracia. A diminuição do número de analfabetos e a prolifera ção do hábito de leitura, acompanhado da ampla liberdade de expressão e informação, com os meios de comunicação não comprometidos com facções políticas, mas apenas com a divulgação dos fatos verídicos, são fatores fundamentais para a consolidação de uma democracia exercida com quali dade e consciência. O povo, como sujeito histórico da democracia, possui a enorme responsabilidade de não permitir que seu voto seja ven dido como mercadoria ou que as eleições sejam tratadas como momento de obtenção de favores e benefício. Deve exercer o direito de escolher os seus representantes com convicção de que os eleitos melhor irão dirigir os negócios públicos, coman dar a máquina pública e definir os rumos nacionais, firmando o Brasil como potência respeitada no cenário internacional. 11.3 A Cidadania, a democracia e o abuso de poder A cidadania constitui em um dos fundamentos da Re pública brasileira, consoante art. 1°, inciso II, da Carta Mag M a r c u s V i n í c i u s F u r t a d o C o ê l h o na Federal. Pode significar “condição de cidadão” ou seja “indivíduo no gozo dos direitos civis e políticos de um Esta do”’^ . Destaca-se do conceito de cidadania a qualificação dosparticipantes da vida do Estado, sendo um atributo das pes soas integradas na sociedade estatal, atributo político decor rente do direito de participar no governo e direito de ser ouvido pela representação. Da cidadania derivam direitos, como o de votar e ser votado ou deveres, como os de observância das leis do Esta do e fidelidade à Pátria. A cidadania possui limites estipula dos pelo ordenamento jurídico, que determina seu conteúdo e seus pressupostos que deverão ser observados e seguidos pelos indivíduos que participam da sociedade. Fácil depreender que a participação dos cidadãos na vida pública é imprescindível e inerente à democracia. As insti tuições democráticas são tão mais oxigenadas quanto maior a atuação da cidadania, evitando a burocratização do poder e o seu direcionamento a atendimentos de privilégios de pou cos em detrimento do interesse público. Neste sentido, a cidadania também possui importante papel no combate ao abuso de poder no processo eleitoral, contribuindo para a consolidação de uma autêntica democracia. Assim é que desde a primeira Constituição do Brasil, outorgada por Dom Pedro I, em 25 de março de 1824, já estava disposto, no art. 179, XXX, que todo cidadão poderá apresentar por escrito ao Poder Legislativo e ao executivo reclamações, queixas ou petições, e até expor qual quer infração da Constituição, requerendo perante a compe tente autoridade a efetiva responsabilidade dos infratores. ” FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. O b. C it. Pág. 153. E l e i ç õ e s - A b u s o d e P o d e r Tal assertiva geral consta também na Constituição re publicana de 1891, que reconhece a quem quer que seja representar contra abuso de poder e promover a responsabi lidade de que o tivesse cometido, como disposto no art. 72, §9o. Este enunciado é repetido nas Constituições de 1934 e 1946, sendo que esta última acrescenta a necessidade de for mular tal representação através de petição. A partir da Constituição de 1967, seguida pelas Constitui ções de 1969 e 1988, os direitos de petição e representação são tratados como autônomos e desvinculados um do outro. Em matéria de abuso de poder no processo eleitoral, como se verá, a Lei Complementar n° 64, de 18 de maio de 1990, exclui o cidadão da legitimidade ativa para tal processo, reduzindo-a ao Ministério Público e aos candidatos, partidos e coligações. Fávila Ribeiro defende a relevância da cidadania partici par ativamente da proteção dos pleitos eleitorais de práticas abusivas de poder. Para este notável jurista, a Constituição que ampliou os instrumentos de combate ao abuso de poder e reabriu oportunidade para questionamen to do resultado eleitoral, depois do próprio diploma expedi do, por seu espírito estaria a convocar a qualquer cidadão a participar da peleja cívica contra o abuso de poder'®. Para o professor de Governo e Estudos Internacionais na Universidade de Nortre Dame, Indiana, EUA, Fred Dallmayr, a democracia não é apenas um a opção de regime dentre ou tras igualmente disponíveis em todos os momentos e luga res, mas mais propriamente constitui uma resposta a desafi os e a aspirações históricos.'^ '® RIBEIRO, Fávila. Abuso de Poder no D ireito Eleitoral. Editora: Forense, 1998.p. 101 . DALLMAYR, Fred, et ai. Democracia hojeinovos desafios para a teoria dem ocráti ca contemprânea/Jessé Souza (organizador). Brasília:Universidade de Brasília, 2001 M a r c u s V i n í c i u s F u r t a d o C o ê l h o Esta realização contínua da democracia é que lhe dá su porte e existência. Tal somente é possível com a ativa partici pação da cidadania, inclusive no combate do abuso de poder nas eleições, fator impeditivo do avanço democrático. Refletindo sobre democracia e seu inegável vínculo his tórico, principalmente no início de sua trajetória, com o li beralismo, este notável mestre ressalta as lúcidas considerações de Benjamin Constant (Da liberdade dos antigos comparada à dos modernos) e Isaiah Berlin (Dois conceitos de liberdade) acerca da especificidade irredutível da idéia de liberdade ju n to aos modernos. (...) o amor des medido dos modernos, um am or ausente jun to aos antigos, à independência pessoal ante a coletividade, a privacidade de uma vida em larga medida alheia daquilo que se passa em âmbito dessa coletividade^. Ressalta o mencionado professor, porém, que concor- dar com tal assertiva não significa “compartilhar com ele a mesma atitude moral de uma benévola aprovação ante aqui lo que está sendo empiricamente constatado”. E, mais, “o amor à liberdade pode, naturalmente, vir acompanhado do amor a igualdade - Tocqueville dizia que nas sociedades de mocráticas ambos podiam estar presentes”. Assim, existe “um reforço mútuo entre democracia e liberdade”.^ ’ A intervenção do Estado no combate ao abuso de poder se legitima no propósito de se obter a liberdade plena do direito de escolha dos cidadãos nas eleições. Aplica-se ensinamento pró prio do liberalismo político, que toma legítima a intervenção do poder público, no sentido de restringir ou limitar as liberda- DALLMAYR, Fred, et al. Democracia Hoje. Novos desafios para a trajetória de mocrática contem prânea.Jessé Sousa (organizador). Brasília.:. Editora Universidade de Brasília, 2001, págs. 41 e 56. Idem. E l e i ç õ e s - A b u s o d e P o d e r des individuais, quando tal for necessário para assegurar a pró pria liberdade de todos os indivíduos. É o que se busca com a defesa de eleições livres, isentas de práticas viciadas e abusivas, visando o cenário ideal de cada cidadão votar com o exclusivo compromisso com a sua própria consciência. A soma destas liberdades e deste votar consciente irá gerar a perfeita democracia sempre buscada. A democracia digna desse batismo e fiel ao sempre con tínuo processo de aperfeiçoamento e evolução, exige seja posto fim ao abuso de poder como moeda de alcance da re presentação popular. Tratar o temacom especial atenção é função de toda a sociedade, em especial de sua parte organi zada. É chegada a hora da construção da grande aliança por eleições livres e legítimas. III. 0 estado democrático de direito e 0 abuso de poder O Estado brasileiro, por sua ordem constitucional, op tou pela democracia como regime político. Tal é fruto de uma ampla mobilização de atores sociais que, legitimados na aspiração da maioria, rejeitaram os regimes de força, como a ditadura militar. Assim, a resistência ao golpe de março de 64, a organização estudantil, a campanha pela anistia dos pre sos e exilados políticos, o movimento sindicalista do ABC paulista, a atuação relevante de diversas entidades da socie dade civil, como a Ordem dos Advogados do Brasil e a As sociação Brasileira de Imprensa, a campanha das “Diretas Já”, a eleição de Tancredo Neves no colégio eleitoral e, destacadamente, a expressão engajada de diversos intelectu ais e artistas do país, em várias áreas do conhecimento, cons truíram um cenário propício à redemocratização. A Constituição Federal de 1988, fruto desta movimen tação histórico-social, dispõe, já em seu art. 1°, que a Repú blica Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrá tico de Direito. De forma explicativa, o parágrafo único des se dispositivo assevera que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou direta mente, nos termos desta Constituição”. Coerente com tais postulados, a Carta Magna, no capí tulo dos direitos políticos, aduz que “a soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e se creto, com valor igual para todos”. (C.F. art. 14, caput). O § 9° desse artigo apresenta a necessidade do ordenamento pro- E l e i ç õ e s - A b u s o d e P o d e r teger a normalidade e legitimidade das eleições contra a in fluênciado poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração pública. Seu §11 possibilita a impugnação do mandato obtido através de inaceitáveis práticas de abuso de poder, corrupção e fraude. Todo esse arcabouçojurídico apresenta as bases fundamen tais para a construção de uma democracia na qual os ocupantes do poder político sejam legítimos representantes das aspirações populares. Tal somente será alcançado com a instituição de elei ções livres, sem desvios ou abusos, quando o exercício do direi to de voto é efetuado sem coerção direta ou indireta. Assim, o povo deve escolher seus representantes no par lamento e no Executivo, tendo em vista critérios, como as propostas e projetos apresentados em campanha eleitoral, a folha de serviços prestados à comunidade, o preparo para o exercício do mandato, as posições políticas assumidas e, tam bém, o partido e coligação ao qual pertençam. Desse modo, os eleitos representarão legitimamente as aspirações da soci edade que representam. As eleições fundadas em abuso de poder e uso da má quina administrativa são viciadas e deturpam a vontade po pular, gerando mandatários descomprometidos com os des tinos da sociedade, servidores de interesses inconfessáveis de grandes corporações econômicas e engajados na perpetu ação no poder de castas oligárquicas. O exercício do poder pelos dirigentes somente é possí vel com o consentimento, expresso ou tácito, dos dirigidos. Assim expressa Alaôr Caffé Alves: A dominação, para se apresentar como legítima, precisa apa recer como um serviço necessariamente pelos dominadores aos dominados, devendo estes envolver aqueles, de igual for M a r c u s V i n í c i u s F u r t a d o C o ê l h o ma e de modo espontâneo, esforço equivalente. N o processo do exercício do poder consentido, este se manifesta como uma constelação de interesses sociais reciprocamente pactuados^. O exercício do poder nâo há de ser consentido por in termédio do abuso. A legitimação há de surgir da espontâ nea vontade da maioria social, respeitando as garantias das minorias. Inadmissível em pleno terceiro milênio a persis tência do poder como instrumento de opressão e privilégi os, quando a sua existência apenas se justifica enquanto afir mação da liberdade, dos direitos e da pacificação social. Para Fábio Konder Comparato, os mecanismos da democracia representativa são inaptos, por si sós, a desmontar o sistema institucionalizado de abuso e desvio de poder. Cometeríamos um erro funesto, se nos li mitássemos a concentrar nossos esforços de reforma política em alterações pontuais do sistema eleitoral ou partidário, ou na adoção de outra forma de governo. A oligarquia brasilei ra, retemperada por vários séculos de dominação absoluta, adapta-se sem maiores dificuldades a qualquer sistema elei toral, a qualquer forma de governo” (Discurso por ocasião do recebimento da Medalha Rui Barbosa, ocorrida na aber tura da XDC Conferência Nacional dos Advogados, Floria nópolis, SC, pág. 11). A democracia pressupõe legitimidade no exercício do poder. O espaço democrático será consolidado e ampliado, em quantidade e qualidade, com um processo eleitoral que permita a livre escolha dos representantes, legitimando os dirigentes dos poderes do Estado, com a criação de meca nismos que inibam ao máximo possível a adaptação dos que se perpetuam no poder com práticas lesivas e abusivas con tra a consciência popular. ^ ALVES, Alaôr Caffé. Estado e ideologia: aparência e realidade. São Paulo: Brasiliense. 1987, p. 195-196. IV. 0 Direito Eleitoral como regulação do método democrático de legitimação do poder Max Weber^ fala da existência de “três tipos de domi nação, de acordo com a sua legitimação, ou seja, para cada espécie corresponde uma série de postulados que dão ensejo à permanência e a conservação do poder. Assim, tem-se, a dominação de tipo tradicional, a carismática e a racional- legal.” Evidente que há uma interdependência dessas espé cies que ora são distinguidas com efeito didático. Não exis te, pois, um sistema puro. A dominação tradicional é aquela baseada nos princípi os herdados dos antepassados, cuja continuidade seria sinal de justiça; como ocorre na relação entre súditos e reis. A dominação carismática é a que se fundamenta nos atri butos pessoais de um herói, profeta ou demagogo, para con duzir os destinos da sociedade. Já a dominação racional-legai possui a legitimidade centrada na lei impessoal, formalizada segundo procedimen tos previamente estipulados e obedecendo aos valores da so ciedade. Assim, a lei somente é legítima quando o povo se reconhece como seu autor ou seu sujeito, não apenas seu objeto. O voto livre é a condição e a ponte necessária para a sociedade se sentir autora dos atos do poder público, inclu sive e principalmente das leis que regem o conjunto social. WEBER, Max. Economia e sociedade. México: TL, 1969. E l e i ç õ e s - A b u s o d e P o d e r A lei, fruto da deliberação de representantes eleitos li vremente é legítima, pois o povo é seu sujeito e, desse modo, pronto estará para ser seu objeto, ou seja, cidadão apto a re conhecer e cumprir o comando expressado pela norma. Nesse ponto, bem faz reflexão Clémerson Cleve ao as severar que somente a lei distanciada das vontades pessoais do arbítrio pode-se chamar de lei. Esta é a manifestação de um poder político conformado às limitações impostas pela vontade po pular. A legitimidade legalizada e a lei legitimada; eis os fun damentos do Estado Democrático de Direito. Imprescindível se toma o método democrático como pro cesso de legitimação da legalidade e, portanto, dos atos do poder. Antigamente, o poder era garantido, a ordem mantida e a dominação consentida através dos mitos, de deuses e pro fetas. N o mundo atual, os mitos são povo, representação e maioria. Nesta tríade está a garantia da ordem estabelecida. O Direito Eleitoral, que é relativamente recente, em se con siderando a história da humanidade, possui a função de re gulamentar o método ou o procedimento democrático de legitimação do poder político. Falhando o direito eleitoral, falha o procedimento legitimador, esmorecem os canais de comunicação entre a ação do Estado e a vontade popular, aparecem as ‘crises políticas’. Bem elaborado o direito eleitoral e suas instituições, serão mais estreitas as dis tâncias que separam o poder da massa dos cidadãos.^^ O voto livre, cidadão e consciente, possibilitado pelo método democrático, é conditio sine qua non para a legitima ção do exercício do poder, transformando o povo em sujeito de sua própria história. CLEVE, C lém erson M erlin. Temas de direito constitucional e de tcoria do direito. São Paulo: Acadêmica, 1993, p. 87. V. 0 abuso de poder em suas diversas vertentes O poder possui as vertentes cultural, social, econômica e política. Todas podem interferir indevidamente no pro cesso eleitoral, desfigurando a democracia. Essa classifica ção é apresentada com precisão por Fávila Ribeiro, na obra Abuso de Poder no Direito Eleitoral. Na vertente cultural, destaca-se o poder dos grupos so ciais que possuem a função de disseminar o saber, de inter pretar o mundo e as idéias, de apresentar os valores sociais. Essa intelligentsia pode trazer consigo favorecimento ou dis criminação. Esse tipo de poder age de forma sutil e discreta, sem merecer a devida apreensão de sua importância vital. A visão que surge desses grupos formadores de opinião pode rá vir a ser tida como a única verdade possível para a maioria do povo, gerando a denominada ideologia dominante. As sim, no Brasil, é verdade tida e havida que a propriedade privada é intocável, porque essa é a visão dominante, difun dida pelos mencionados grupos. Michel Foucault,a propósito, bem diz que a verdade é deste m undo; ela é produzida nele graças a m úl tiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados pelo poder. Cada sociedade tem o seu regime de verdade, sua po lítica geral de verdade; isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que perm item distinguir uns dos outros; as téc nicas e os procedimentos que são valorizados para a obten ção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeira.^^ ^ FOUCAULT, Michel. Microfisica do poder. 9 ed., Rio de Janeiro: Graal, 1990, p. 12. E l e i ç õ e s - A b u s o d e P o d e r Com absoluta compreensão da realidade, acrescenta Michel Foucault: “A verdade está circularmente ligada a sis temas de poder, que a produzem e a apoiam, e a efeitos de poder que ela induz e que a reproduzem. A verdade proposta pelos cen tros in telectuais é acobertada pelo mito da neutralidade política, baseando-se em razões técnicas ou científicas. Com essa autoridade, ani quila quem ousa discordar das proposições tidas como ab solutas. A educação elitista e o monopólio do saber e do co nhecimento integram os elementos desse tipo de poder que pode desvirtuar a real vontade eleitoral de um povo. N a vertente social, ressalta-se o relevante poder da co municação de massa, lidando com a opinião publica que, por mais das vezes, nada mais é do que a opinião publicada. Os instrumentos de comunicação social, destacadamente rá dio, televisão e jornais, são propriedades de determinados gru pos ou setores, possuidores de interesses próprios que certa mente irão influenciar o conteúdo de sua programação. Possu em inegável contribuição para a divulgação de informações, mas tem em si uma grande capacidade de desvirtuar o processo elei toral. Com efeito, conforme ensina Fávila Ribeiro^: não há poder, como tal, que possa prescindir de controle, deixando ao vácuo o sistema de defesa dos interesses coleti vos, pois é próprio de sua natureza expandir-se o quanto seja tolerado. As vertentes econômica e política, entretanto, é que têm suscitado no ordenamento jurídico nacional a sistemática de controle de abusos de natureza eleitoral. As normas eleito rais destacam essas duas modalidades abusivas. Para o mes- FO U C A U LT, op.cit., p. 14, C f RIBEIRO, 1993. p. 48. M a r c u s V i n í c i u s F u r t a d o C o é l h o tre de sempre Fávila Ribeiro, o adequado seria a previsão normativa de combate a toda c qualquer forma de abuso de poder, o que, a rigor, deve ocorrer, efetuando-se uma inter pretação sistemática. Diz o doutrinador que “o sentido lite ral das normas não é capaz de inibir o sentido amplo da ilicitude eleitoral, sendo aplicáveis as sanções previstas para abusos de todo e qualquer tipo de poder. Na vertente econômica, o abuso de poder se caracteriza com a interferência direta desse tipo de vantagem direcionada a influir no resultado das eleições. Veda-se a utilização da riqueza como requisito para a obtenção de vitória eleitoral. O mandato deve ser disputado com a verificação de critérios como a lista de serviços prestados, obras realizadas em favor da comunidade, autenticidade da liderança política, persua são no plano das idéias, projetos defendidos, convicções apre sentadas, companhias políticas, jamais por critério econômico. A influência do poder do dinheiro afasta da vida pública diversas lideranças autênticas e, os que permanecem, com bas tante freqüência, sem generalizações impróprias, costumam ceder aqui ou acolá a algum tipo de desvio no uso do poder econômico, até para garantir sua sobrevivência política. É dizer, está cada vez mais difícil a vitória eleitoral baseada em idéias e convicções, pautada na força da palavra e do argumento, A própria propaganda eleitoral, em rádio e televisão, atra vés de outdoors, cartazes e camisas, com brindes permitidos em lei, como chaveiros e bonés (elementos que encarecem a campanha), permitiam uma diferenciação em favor do po derio econômico. A mini-reforma eleitoral, aprovada em 2006, diminuiu tal impacto, consoante comentário no capí tulo XVIII dessa obra. RIBEIRO, op. cit., p. 57. E l e i ç õ e s - A b u s o d e P o d e r Além disso, mais grasso e vergonhoso é a utilização do dinheiro para a compra direta da vontade popular, aplican do-se o V dando que se recebe". A compra do voto, com a dis tribuição de dinheiro ou a entrega ou promessa de entrega de bens ou vantagens pessoais, transforma o voto, que é di- reito-dever do cidadão, em mercadoria. O abuso do poder econômico funciona, às vezes, no pró prio processo de escolha partidária dos candidatos. As con venções partidárias podem sofrer a nefasta influência dessa prática abusiva. O partido político, por outro lado, poderá se aproveitar de sua aproximação com grandes grupos econô micos para obter maior capitalização, no sentido econômico do termo, utilizando-se dessa vantagem comparativa para aplicar o dinheiro a mais, que possui na campanha, tanto para atividades excessivas de propaganda quanto para a com pra direta do voto. Tal prática indevida pode, também, ser exercida pelo próprio candidato ou seus seguidores, às vezes com desconhecimento oficial da máquina partidária. O poder econômico possui elementos de influência, in clusive, sobre o poder político, social e cultural. Daí seu efeito devastador, cerceando a liberdade do voto, sendo essa m o dalidade de abuso, de dano inestimável à democracia e ao próprio Estado de Direito. Tal prejuízo faz-se no presente, mas traz conseqüências negativas para a futura história do país, não somente no pla no político como nos aspectos sociais, econômicos e cultu rais. U m político eleito com base no poder econômico não se sente obrigado a prestar contas de suas ações, no exercício do mandato, aos eleitores, devendo obediência apenas aos inconfessáveis interesses dos grupos que o financiaram. A educação e a saúde para o povo, por exemplo, deixam de ser M a r c u s V i n í c i u s F u r t a d o C o é l h o prioridade, transformando-se em meras promessas não cum pridas de campanha. Debilitado por ausência de condições mínimas de sub sistência, com a fome e o desemprego, pela estagnação eco nômica gerada também pela falta de compromisso dos man datários com a sociedade que o elegeu, o povo permanece sendo alvo fácil para o alcance do poder econômico nas elei ções. Esse é o círculo vicioso da corrupção eleitoral. Triste a história de um país no qual seu povo ainda não conquistou a independência de votar livremente, exercendo com altivez a soberania popular. Na vertente política, o poder poderá ser utilizado na cam panha eleitoral tanto na forma institucional quanto de for ma socialmente difusa. Institucionalmente, o poder se faz tendo o Estado como elemento central da prática ilícita, uti lizando-se do monopólio da coação, da edição de normas e prestação de diversos serviços essenciais à população. Por ação ou omissão, o Estado poderá, de forma indevida, ser utilizado para favorecer candidaturas ou para permitir con dutas indevidas de conquista do voto. Os serviços por ele prestados e as obras realizadas são vinculados a determina dos candidatos, que constituem as opções eleitorais do po der político dominante. Tal prática desnivela as diversas can didaturas, sendo conduta vedada. A influência política indevida pode advir, também, do próprio processo interno nos partidos políticos de escolha das candidaturas. A ausência de processos democráticos in ternos para tal seleção costuma trazer como conseqüência o lançamento de candidaturas mais próximas do círculo de poder, ao invés de pessoas que possuam liderança real e par ticipação efetiva na vida partidária. E l e i ç õ e s- A b u s o d e P o d e r Essa é uma forma de abuso de poder político socialmente difuso, que também ocorre pela influência indevida de or ganizações sociais que recebem favores do poder público ou contribuições obrigatórias, ou, ainda, são financiadas por entidades internacionais. Conseqüência do abuso de poder político é o predomínio de oligarquias, com a permanência do mesmo grupo político no poder. Seu antídoto é a alternância no poder, própria da de mocracia, que traz consigo a oxigenação da máquina pública e maior dínamização na condução dos negócios do Estado. A descentralização administrativa e a democratização interna dos partidos são imprescindíveis na contenção do abuso de poder político. Com mais agentes participando das deliberações governamentais e partidárias, menor a concen tração de poder e menos possível se torna seu uso indevido em campanhas eleitorais. O controle do uso dos meios de comunicação, com re gras claras de condutas vedadas, assegurando um tratamen to isonômico entre as candidaturas, também constitui fator fundamental para a construção de eleições livres. Evidente que os poderes econômicos e político cami nham juntos e, não raramente, os abusos desses dois tipos de poder ocorrem em concomitância. Explica o autor fran cês Jean Lhomme que a capacidade de exercer o poder econômico depende freqüen temente da aquisição prévia do poder político, porque este último permite a seu detentor efetivar as mudanças da or dem jurídica que conduzirão à aquisição do poder econômi- L H O M M E , Jean. Pouvoir e t societé econom ique. Paris: Editions Cujas, 1966, p. M a r c u s V i n í c i u s F u r t a d o C o ê l h o O abuso de poder na campanha eleitoral se constitui, certamente, na semente que faz nascer a corrupção na ad ministração pública, aliás provocada por tal corrupção. Pode- se dizer, pois, que o primeiro é causa e efeito da segunda. Q uem investe de forma abusiva em uma campanha tentará obter as devidas compensações durante o exercício do man dato. Surgem os favores e os privilégios; os negócios espúri os; as licitações fraudulentas; as compras direcionadas; as obras fantasmas; tudo para justificar os desvios de recursos com a finalidade de beneficiar o grupo que foi o investidor da candidatura. Por outro lado, tal prática delituosa com a administração é feita pensando na próxima campanha elei toral, formando-se a famosa ‘caixinha’ de campanha por in termédio da corrupção administrativa. Forma-se assim um círculo vicioso de condutas indevidas, ilegais e criminosas. Com efeito, o interesse de grandes corporações nas po- ^ líticas públicas aumenta quanto maior for a intervenção do Estado na economia. Para Ralph Miliband, Sempre que o Estado intervém, verificar-se-á que os homens de negócio, em uma posição excepcionalmente forte se com parada com outros grupos econômicos, influenciam e até mesmo determinam a natureza daquela intervenção.^ O Estado, por seu turno, não pode parar de interferir na economia, no sentido de regulá-la, para evitar a formação de cartéis e outras práticas monopolistas que inviabilizam as leis de mercado, afastando a concorrência e prejudicando a eco nomia popular. Também não pode o Estado parar de realizar as obras e prestar os serviços necessários à melhoria da quali dade de vida do povo e a consecução de infra-estrutura mínima para o desenvolvimento econômico e progresso social. M ILIBA ND , Ralph. O Estado na sociedade capitalista. Rio de Janeiro: Zahar, 1972, p. 78. E l e i ç õ e s - A b u s o d e P o d e r Assim, a saída para o fim de abusos não está no fim do Estado, por absurdo, mas na construção de um arcabouço legislativo capaz de regulamentar a atuação do Poder Públi co e a atuação do Judiciário e demais operadores do Direito na contenção e punição de tais práticas. O abuso de poder somente será combatido com a firme e decidida participação engajada da cidadania, diretamente ou através de organizações civis, como associações, para fis calizar e denunciar a ocorrência de abusos, comunicando- os aos órgãos competentes, quais sejam, o Ministério Públi co Eleitoral e a Justiça Eleitoral. Nesse sentido, os partidos políticos e coligações, além dos próprios candidatos, tam bém possuem importante papel fiscalizador, podendo eles próprios, diretamente, iniciar o processo judicial visando à proibição de práticas abusivas ou a punição de candidatos que efetuarem tais práticas ou delas foram beneficiados. Percebe-se que a comunidade reage cada vez mais para não ser tida e utilizada como massa de manobra ou como m era leg itim adora do acesso ao poder de políticos inescrupulosos. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil e o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil realizam, para cada eleição, convênios no sentido de partici par ativamente desse processo de fiscalização e contenção do abuso de poder. A cidadania é, pois, o remédio eficiente para a construção de uma democracia real, com eleições li vres, isentas de condutas abusivas que desvirtuam a forma ção da vontade do povo no momento do voto. VI. 0 abuso de poder no direito eleitoral É possível conceber o poder como a faculdade de impor sua vontade a outrem. É um fenômeno da vida de relação entre os homens. Como ensina Fábio Konder Comparato, poder “é um fenômeno da vida de relações hierárquicas”.^ ^ Desse modo, em sociedade de plena igualdade em todos os setores, não seria próprio falar em poder. Diz mais o mestre, após dissertar sobre a força como uma conotação quase in dispensável do poder, que “todos reconhecem que o exercí cio de uma imposição se presta ao abuso”.^ ^ Para a força existe um outro componente do poder: a autoridade, ou seja “a influência determinante sobre o comportamento de ou trem, em razão do prestígio, do conhecimento técnico ou científico, da habilidade ou experiência, do carisma”.^ ^ O direito impõe-se pelo poder, no entanto entre as suas missões basilares está a contenção ou regulação do uso do po der, que apenas é lícito quando destinado a cumprir os fins do Estado, a obtenção de harmonia social e o bem de todos. No clássico Espírito das Leis, Montesquieu já advertia que “temos, porém , a experiência eterna de que todo hom em que tem em mãos o poder é sempre levado a abusar do mes mo; e assim irá seguindo, até que encontre algum limite. E quem o diria, até a própria virtude precisa de limites. COM PA RATO, Fábio Konder. Educação, Estado e poder. São Paulo: Brasiliensc, 1987, p. 13. COM PA RATO, opxit-, p. 16. " COM PA RATO, idem, p. 17. M O N T E S Q U IE U , Charles de Secondat. D o espírito das leis. São Paulo: M artim Cloret. Brasil, 1960, p. 42 E l e i ç õ e s - A b u s o d e P o d e r Apenas com as limitações do exercício do poder é que se contêm as práticas abusivas, fazendo subsistir a liberdade e a ordem democrática. Na visão do direito privado, abuso é o uso ilícito de po deres ou faculdades; é possível se fazer tudo o que a lei não proíbe. N o direito público, ao contrário, somente é possível realizar o que a lei permite e o extrapolar dessa autorização legal significa abusar do poder. E celebre a observação da Caio Tácito, segundo a qual “não é competente quem quer, mas quem pode, segundo a norma de direito. A competência é, sempre, um elemento vinculado, objetivamente fixado pelo legislador.^^ O abuso de poder extrapola a competência do agente. N o direito eleitoral, consoante leciona Fávila Ribeiro, a problem ática do abuso de poder não pode ficar nos confinamentos públicos ou privados, tendo que transpor es sas linhas em busca de apoios mais abrangentes que pene trem a fundo nas circunstâncias concretas da realidade con temporânea, para que o regime democrático representativo tenha uma escorreita
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