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A CANÇÃO DE ROLANDO 
 
 
 
 
A CANÇÃO DE GESTA E O ÉPICO MEDIEVAL1 
 
O ÉPICO 
 
 Costuma-se encarar o épico como a narrativa de proezas gloriosas, praticadas por um 
herói, num tempo remoto. Todos estes pontos podem ser debatidos. A narrativa, em prosa ou 
em verso (e neste caso corresponde a momentos inaugurais, mais primitivos, de uma 
sociedade/literatura), mescla-se de descrições – de objetos, cenas, ambientes, personagens, 
encontrando-se ambas indissoluvelmente ligadas. O texto pode se difundir através da 
transmissão oral ou escrita, respectivamente pelas vias popular e erudita. No primeiro caso, 
vem muitas vezes acoplado ao canto, com melodia e instrumentos específicos. Os grandes 
feitos não são necessariamente heróicos. Eles se prendem àqueles que os praticam dentro de 
um contexto histórico-social específico. Com o passar do tempo, o contingente é eliminado e 
tais feitos – sempre associados a contendas, disputas, batalhas e guerras – são esvaziados de 
seu ambiente real, simplificados e purificados, tornando-se assim exemplares, típicos, lineares, 
idealizados. Com esta desrealização os personagens travestem-se em gloriosos heróis de ações 
superlativadas, a serviço de uma causa – naturalmente justa – um chefe, uma raça, um sistema 
de valores, no embate maniqueísta entre o Bem e o Mal. 
 Assim, numa primeira fase percebe-se o ser humano em sua individualidade – 
características pessoais, família, geografia definida, eventos reais reconhecíveis e verificáveis 
com respeito ao referente da sociedade. É o caso do Cantar de Mio Cid, com menos de um 
século de distância entre o fato real e a transcrição literária. No caso da Canção de Rolando, 
onde quatro séculos medeiam entre o evento real e o mais antigo manuscrito conhecido, o da 
biblioteca inglesa de Oxford, os personagens se investem de características ideais, perdem o 
quotidiano, para se tornarem quase que meras abstrações. E se a distância for maior ainda, 
transformam-se nos deuses e semi deuses dos poemas homéricos.2 
 O maior ou menor intervalo entre o fato histórico e a transcrição literária permite constatar 
algumas diferenças flagrantes, embora relativas, se for feita a comparação entre o Poema do 
Cid e a Canção de Rolando:3 
 
Poema do Cid 
Canção de Rolando 
* mundo comentado 
* mundo dado 
* realismo 
* não realismo 
* envolvimento, certa empatia do narrador 
* distanciamento do narrador 
* contemporaneidade (40 anos entre o sucedido e o texto) 
* afastamento (evento do séc. VIII, texto do séc. XII) 
* mais histórico 
* mais lendário 
* variedade de epítetos conforme a situação 
* um só epíteto sempre 
* tempo psicológico 
* imobilidade temporal e social 
* herói humano 
* herói sobre-humano 
* mobilidade e evolução dos personagens 
* personagens monolíticos 
* o herói se enfileira para ganhar a vida 
* o herói não se enfileira para ganhar a vida 
* tematiza sobre a luta de classes e a situação econômica 
* tematiza motivos transcendentais 
* interesse muito grande pelo fator econômico 
* ausência de interesses materiais 
* cosmos com todas as classes sociais 
* cosmos apenas aristocrático 
* autodeterminação 
* fatalismo 
* não é trágico: o Cid morre na cama 
* herói épico provoca admiração semelhante à do poema trágico 
* desmitificação: as 2 espadas do Cid, Colada e Tizona, são conquistadas por ele e valem 
materialmente 
* mitificação: Durindana, a espada de Rolando, é dada por Deus 
* Mito a partir das excelências humanas 
* mito a partir do sagrado 
* economia do fantástico, certo naturalismo 
* fantasia sobrenatural 
 
 Quer isto dizer que a sociedade que constrói o texto redige-o de modo a que a ação do 
protagonista que se alçou acima de seus companheiros sirva de exemplo e modelo. Mas isto 
não implica que o épico se refira a um passado remoto. Em nossos dias, apenas mudou de 
fachada. Identificam-se características semelhantes nas epopéias antigas, nas canções de 
gesta, nos filmes de faroeste, na luta entre bandido e mocinho ou americano e comunista do 
cinema ou das histórias em quadrinhos, no cordel sobre as astúcias de Lampião contra um 
sistema social espúrio. Ainda no herói contemporâneo encontram-se graus de afastamento do 
presente identificáveis pelos cinéfilos: de 007 nosso coetâneo, passando pelos caubóis do 
velho oeste americano, aos guerreiros intergalácticos, distantes no espaço porque também no 
tempo.4 
 O relato das façanhas sobre-humanas e lendárias de alguém dotado de uma qualidade ou 
defeito exacerbado e único, inserido num campo semântico coerente porém restrito, 
identificado como paladino de uma verdade ou sistema de valores monolítico e aceito sem 
discussão, levando esta aceitação às últimas conseqüências – eis aí a essência do épico, quer 
se localize no presente próximo ou no passado remoto. Cada época atualiza o épico conforme 
seus padrões e critérios. E na Idade Média o épico por excelência repousa na canção de gesta. 
 
 
 
 
A CANÇÃO DE GESTA 
 
 Entende-se por canção de gesta um longo poema épico, em versos de oito, 10 ou 12 
sílabas, reunidos em estrofes ou laisses de extensão desigual, cada uma delas terminando por 
assonância numa vogal, em vez de rima. Destinava-se a ser cantada diante de um auditório, 
segundo melodia simples acompanhada de um instrumento de cordas, semelhante à viola ou 
ao realejo5 (no que se assemelha à literatura de cordel). Tais traços marcam-lhe a oralidade, 
que se traduz pelas intromissões do executante-escriba no texto que está a apresentar, nos 
artifícios de declamação e nas fórmulas prontas para se dirigir ao público, nas repetições e 
refrãos. As canções de gesta são difundidas por artistas nômades, os jograis, nas 
peregrinações, aldeias, feiras, castelos ou quaisquer lugares onde haja aglomerações. 
 O termo gesta é um neutro plural latino significando “coisas feitas”, mas passou logo a ser 
percebido como um feminino singular com o sentido de “história”. Trata-se portanto de um 
poema ou conjunto de poemas cujos temas se referem a um mesmo grupo de eventos 
lendários, ou de protagonistas, daí serem concebidos dentro de ciclos. Eles partem de um 
personagem ou acontecimento real, adulterado pela lenda e pela transmissão oral, o que se 
atesta pelas inúmeras versões de cada história. Seu núcleo reside em efemérides belicosas 
ocorridas na Alta Idade Média, período de grandes invasões e de lutas pela conquista do 
território, mas a maioria dos manuscritos data da Plena Idade Média, séculos XII e XIII, 
períodos de intensa revivificação cultural na Europa e, com isso, de retomada da escrita – 
donde a floração literária confirmada. 
 Seu primeiro momento é oral, passando depois à escrita, ainda em versos, prosificados 
séculos mais tarde, o que possibilita as traduções que vão aumentar sua difusão. Não se deve 
contudo pensar a literatura medieval dentro da atual oposição verso/prosa, inexistente 
naquele momento, quando toda a literatura, narrativa ou não, era feita em versos. 
 Estes poemas são a primeira manifestação literária desligada da liturgia6, da qual herdam o 
canto, mas substituindo a vida dos santos (um de seus possíveis pontos de partida) pela de um 
herói nacional e o ascetismo pelo combate a serviço de Deus. Tais poemas épicos exaltam as 
proezas de um herói, num período em que os estados nacionais ainda estão em formação. 
Retratam um mundo masculino – o das batalhas e lutas pelo poder. Na medida em que se 
colocam conforme a ótica dos valores da classe dominante, podem ser considerados como 
literatura aristocrática, não importando quem tenham sido seusautores, aliás desconhecidos. 
Seu discurso é, portanto, oficial, temeroso e distante da carnavalização representada pela 
sátira das “canções maldosas”. 
 O interesse da escola romântica pela Idade Média trouxe à tona tais manuscritos e a 
discussão sobre suas origens:7 1) A teoria das cantilenas supõe a existência primitiva de 
poemas líricos, rapsódias de velhas canções populares, compostas ao longo de gerações, 
transportando-se depois para o narrativo e finalmente para o épico. 2) A teoria das epopéias 
primitivas pressupõe que desde o seu início a canção de gesta adota a forma épica, sendo o 
produto espontâneo da alma popular, cada poema remontando a lendas de tempos obscuros. 
3) A hipótese de Joseph Bédier associa os santuários nas rotas de peregrinação a Santiago de 
Compostela à eclosão de relatos maravilhosos, confirmados pelas relíquias e monumentos 
ligados aos heróis ao longo do percurso. De todo modo, considerando-se a estreita relação 
entre os jograis e o clero, grupo dominante política e culturalmente, não é de se estranhar esta 
interferência. 4) Modernamente, devido à unidade formal e temática bem como ao conteúdo 
literário encontrados nestes poemas, admite-se que foram criados por um poeta individual, 
baseado na tradição oral vinculada a heróis e grandes acontecimentos históricos. Este poeta 
teria transformado a lenda em epopéia, segundo a ótica de seu tempo. Neste sentido, epopéia 
e canção de gesta são sinônimos, reservando-se o último termo à manifestação medieval. 
 Desta época existem três grandes poemas épicos nacionais, sempre referentes às etnias 
germânicas: a Canção de Rolando dos francos, o Cantar de Mio Cid dos visigodos, a Canção dos 
Nibelungos, dos borgúndios. Eles terminam a pré-história pagã dos povos europeus e iniciam a 
formação das nações cristianizadas. São as primeiras obras em língua vulgar – romance – e não 
mais em latim. Todas as três são anônimas. 
 A epopéia e a canção de gesta possuem vários traços em comum: ambas constituem textos 
fundadores, pertencentes às épocas iniciais da literatura, redigidos em versos e dentro dos 
moldes do gênero épico. No entanto divergem na visão de mundo e na estrutura, visto que tais 
criações decorrem de diferentes etapas da sociedade: a Antigüidade e o Renascimento, para a 
epopéia, e a Idade Média para a canção de gesta. 
 A visão de mundo da epopéia, produto de uma sociedade pagã ou marcada por seus 
cânones, mostra um homem livre, sem nenhuma preocupação escatológica, que sofre os 
influxos do fatum e cujo destino depende da intervenção dos deuses criados à sua imagem. Em 
contrapartida o herói da gesta, nascido sob a égide do mundo cristão, é concebido à imagem 
de Deus e está sempre a serviço de uma causa a que se devotar – Deus, o rei –, ansioso por 
cumprir o seu dever. Daí sua inegável vocação escatológica, associada ao maniqueísmo e à 
expressão de um ponto de vista oficial. 
 Quanto à estrutura, a epopéia é bastante longa, o que permite digressões e uma 
multiplicidade de episódios, dentre os quais ressaltam o amoroso e a descida aos infernos. Já a 
canção de gesta revela-se comparativamente mais curta devido ao menor número de versos. 
Portanto não traz tantas digressões e concentra-se num único episódio, eliminando assim de 
saída o capítulo amoroso. Dada a verticalização ascendente da Idade Média e o empenho em 
salvar-se elevando a alma ao céu, esta será a preocupação do herói de gesta, para o que conta 
com o auxílio de anjos e santos. A gesta se aproxima da realidade histórica que lhe serve como 
ponto de partida, ao passo que a epopéia dela se afasta. Ambos os textos recorrem ao 
maravilhoso, pagão na epopéia, cristão na gesta. 
 
 
 
 
A CANÇÃO DE ROLANDO E SUA LEITURA HISTÓRICO-SOCIAL 
 
 Embora existam muitos textos medievais sobre a história de Rolando, o manuscrito mais 
antigo e o mais artisticamente literário é o que foi descoberto na biblioteca de Oxford, 
redigido em dialeto anglo-normando e pertencendo ao ciclo do Rei ou ciclo de Carlos Magno, 
um dos mais prolíficos. Contém 4.002 versos decassílabos assonânticos, distribuídos em 291 
estrofes de extensão desigual – as laisses – e dividido em quatro partes: “A Traição” (versos 1 a 
1016), “A Batalha” (versos 1017 a 2396), “O Castigo dos Pagãos” (versos 2397 a 3674), “O 
Castigo de Ganelão” (versos 3675 a 4002). 
 Pela ideologia do texto e pelo estado da língua, acredita-se que tenha sido escrito entre o 
final do século XI e meados do século XII, depois que a idéia de cruzada contra os pagãos já 
vicejava na Europa cristã. Admite-se no entanto que o manuscrito de Rolando seja o 
remanejamento de versões anteriores. Ignora-se a autoria do texto apesar da menção a 
Turoldus no último verso (“Ci falt la geste que Turoldus declinet”), porque o sentido de 
declinet permanece obscuro, podendo ser compor, transcrever, recitar ou copiar. 
 O enredo da canção repousa sobre um fato real ocorrido no reinado de Carlos Magno (768-
814), a batalha de Roncesvales (15/8/778), quando o rei (742-814), que só se tornará 
imperador em 800, tinha apenas 36 anos. O exército franco havia ido a Saragoça por 
solicitação do governador de Barcelona, Sulayman Ben Al Arab, revoltado contra o emir de 
Córdoba, seu superior. O desentendimento entre os chefes árabes e uma revolta de saxões ao 
norte levaram Carlos a retornar em poucas semanas e não após os sete anos do poema: é 
quando bascos cristãos dizimam sua retaguarda, perecendo no combate sobrinhos do rei, 
como Rolando, e o bispo Turpino entre outros. 
 Por causa do hierarquizado sistema de alianças então vigente, a guerra torna-se um 
assunto de família. A retirada e o massacre são episódios de monta, que levam o rei a desistir 
de aventuras na Espanha e a fortificar suas fronteiras na Aquitânia. Por prudência e 
diplomacia, os cronistas da época atestam o fato minimizando-o. Enquanto isso, no Oriente, 
Carlos Magno aliava-se ao califa de Bagdá, o célebre Harum Al-Rachid. Portanto, embora 
defensor da cristandade, Carlos Magno não era inimigo dos árabes e a idéia de cruzada não é 
do seu tempo. Mas ela pertence à época do manuscrito e identifica-se com a Reconquista 
espanhola. 
 No entanto, os inúmeros anacronismos do texto levam a uma transfiguração da história: 
um episódio local serve de pretexto à exaltação da mística feudal e da monarquia, o serviço 
das armas abre as portas da eternidade e assim por diante; Carlos Magno já é o imperador da 
anacrônica barba florida, com mais de 200 anos, as armas e a forma de lutar não 
correspondem ao século VIII. Em compensação, o manuscrito reflete problemas políticos e 
jurídicos próprios da época de sua composição, como a independência dos senhores feudais, o 
papel social e político da linhagem, os deveres morais e feudais do rei, o lugar da realeza no 
sistema vassálico. Esta literatura, surgida do esfacelamento feudal e herdeira do mito imperial 
carolíngio, chega à maturidade num momento em que as estruturas do poder estão em plena 
mutação. Conclusão: não se trata de um texto histórico, mas de uma reelaboração dos dados 
reais do século VIII a partir da ideologia e da vivência dos séculos XI e XII. Excetuando-se alguns 
nomes próprios e de lugares e o malogro da expedição, tudo o mais é fictício. 
 Alguns personagens têm existência histórica atestada (Carlos Magno), embora nem sempre 
seu papel real equivalha à importância que lhes atribui o poema (Rolando). Outros podem ser 
identificados com pessoas vivas ou um amálgama de várias (Naimes, Ogier, Turpino, Gerier, 
Gaifet, Torleu ou Traulos – chefe de uma seita religiosa). Outros ainda são pura ficção: Olivier – 
que representa o companheirode guerra; Turpino ou o monge-soldado das Cruzadas; Ganelão 
o traidor, personagem tradicional de poema épico.8 
 Os doze pares de Rolando são: Olivier, Turpino, Gerino, Gerier, Oton, Berenger, Ivon, Ivório, 
Engelier, Samson, Anseís, Gerard de Roussillon. Esta lista varia segundo a gesta. Pares aqui 
significam os que estão em pé de igualdade em relação a Rolando. Primitivamente recebiam 
esta denominação os vassalos de um mesmo suserano. Posteriormente estendeu-se dos 
vassalos mais poderosos, palatinos (isto é, do palácio, da corte) e que deviam ao chefe 
conselho e auxilio (militar e pecuniário). São portanto os defensores, donde a derivação para 
paladinos. Neste sentido o poema revela conceitos da feudalidade e da monarquia. 
 Todos os personagens pertencem à nobreza em sua mais alta estirpe, dispondo pois de 
função militar na sociedade medieval, onde constituem o grupo dominante junto com o clero. 
Por isso não há personagens do povo nem plebeus. Freqüentemente há vários parentes na 
mesma equipe. Dentre eles sairão os reféns, que garantem a palavra empenhada por um dos 
membros de seu clã. Assim, a guerra e o serviço militar são casos de família. A partir do texto, 
este fenômeno ocorre com os cristãos e com os pagãos. Um personagem pode ser 
denominado por vários títulos, além do de barão. Assim, Carlos Magno é rei, imperador; 
Rolando é conde, marquês da marca ou marquesado (território de fronteira) da Bretanha. 
 Armas, lanças e espadas constituem os instrumentos de ação do guerreiro, daí receberem 
nomes próprios. Atesta-se a importância dos cavalos – companheiros de trabalho – nesta 
sociedade através da descrição dos animais, seu comportamento, sua especialização, 
conforme a tarefa a ser realizada – o que não deixa de revelar uma noção de hierarquia. 
 Apesar de não ser uma obra histórica, o texto permeia vários traços da sociedade que o 
escreveu, alguns deles anacrônicos quanto à época dos eventos da Canção. 
 a) A questão política do comportamento de Ganelão: vingança pessoal (já anunciada desde 
o princípio) ou traição ao chefe supremo? Esta dúvida transparece no julgamento do cunhado 
de Carlos Magno, quando se propõe perdoá-lo por esta vez. Porém, numa sociedade que 
repousa sobre a fidelidade aos acordos feitos, a atitude pessoal não pode ultrapassar os limites 
da segurança do chefe supremo, daí sua condenação. 
 b) O julgamento de Deus materializado pelo duelo judiciário, que traz ganho da causa em 
litígio ao vencedor da luta corporal. 
 c) A prisão e tortura do réu (Ganelão), bem como sua humilhação (é guardado por gente 
inferior à sua casta). 
 d) A dicotomia Céu-lnferno, já que o conceito de Purgatório só se concretizará ao longo do 
século XIII. O Paraíso é um campo de flores, para onde vai diretamente a alma dos justos ou 
mártires, cabendo o Inferno aos pagãos, danados ou pecadores. 
 e) A guerra de religião não existia ao tempo de Carlos Magno, mas decorre do espírito das 
cruzadas. Assim, são mártires os que morrem em defesa de sua fé. Por isso, a penitência 
imposta pelo arcebispo aos soldados é lutar bem. Por outro lado, o guerreiro é consciente do 
devotamento que deve demonstrar na defesa dos valores pelos quais luta e que lhe trarão 
fama. Prova disto é o temor às canções maldosas (satíricas) que poderão ser feitas a respeito 
dele se sua atitude não se identificar com o padrão almejado. 
 f) A conquista da Inglaterra, obra de Guilherme o Normando em 1066, não fez parte da 
política de Carlos Magno, mas sua menção no texto permite de certo modo datá-lo como 
posterior a este evento. 
 g) Os limites da Francia no século X: Saint-Michel du Péril ou São Miguel do Perigo 
(Bretanha-Normandia), Saints (Colônia ou Xanten, no rio Reno), Wissant (porto do canal da 
Mancha, ao norte de Boulogne), Besançon (junto às montanhas do Jura) – atestados na 
tempestade pela morte de Rolando – não correspondem às fronteiras do vasto império 
carolíngio. Conforme a passagem do texto, o termo França corresponde a um ou a outro 
destes dois conceitos territoriais. 
 h) Durante cerca de um mês por ano cada nobre prestava seu serviço militar ao suserano, 
geralmente na primavera-verão, quando se realizavam as campanhas. No texto é maio. O rei 
ou imperador percorria seus domínios para utilizar tais serviços na própria região em que se 
encontrava, bem como para consumir os impostos que lhe eram debitados sob a forma de 
víveres. 
 Além da importância ideológica da religião, percebe-se no texto, no âmbito cultural em 
sentido estrito, o impacto da formação de base clerical, através da influência da Bíblia sobre o 
escriba, atestada em inúmeras passagens, como a dos sonhos premonitórios do imperador, a 
dos signos precursores do fim do mundo (tempestade pela morte de Rolando), a parada do sol 
para que o combate se prolongue, a referência à terra de Datan e Abiron, a oração de Carlos 
Magno antes da batalha final. Por outro lado, é ainda por via desta mesma formação de base 
clerical que devem ter chegado ao poeta referências a Virgílio e Homero, simples menções não 
exploradas na Canção de Rolando. 
 Pode-se ainda assinalar nesta canção de gesta o padrão de beleza medieval, representado 
não só pela atlética aparência física dos guerreiros como também pelos olhos. A excelência 
recai sobre os de cor cambiante, como os de Ganelão. O termo original, vair, confunde-se por 
homofonia com vert, verde, cor identificada com a dos olhos traidores, o que reforça este 
traço do personagem. 
 
 
 
ESTRUTURAÇÃO DO TEXTO 
 
 A apresentação épica opera em terceira pessoa, através de um narrador que apresenta os 
personagens mediante estrutura dialogada.9 Aquele não se anula por trás da narrativa. Talvez 
como marca da oralidade, ele interrompe seu relato para se dirigir ao auditório, comentando 
os fatos e externando suas opiniões, favoráveis aos valores vigentes. Por isso, lamenta a sorte 
dos partidários de Rolando. Por outro lado, desde o início ele já anuncia o que vai ocorrer: a 
traição de Ganelão. Deste modo, retira-se a tensão. Resta apenas o prazer de narrar, cheio de 
digressões, próprias do estilo épico. Aliás, uma das convenções épicas repousa sobre o fato de 
que todos sabem o que vai ocorrer (narrador e fruidor da obra), exceto os personagens. 
Outros lugares-comuns característicos do épico são os sonhos, os avisos premonitórios e maus 
presságios, as cenas de batalha e de descrição da dor, o adeus fúnebre e a genealogia dos 
personagens, os epítetos, as repetições (de situações, gestos, estrofes, versos). E como 
intercalam-se o presente da narrativa com o relato do passado, o período também alterna 
pretérito e presente. 
 Os personagens são estereotipados e sem densidade psicológica, falam pouco e se 
exprimem por gestos. Isto se verifica a partir do epíteto, reduzindo os actantes a um único 
traço, marcado por oposição ou por complementaridade Assim, o traidor Ganelão (félon, 
injúria máxima) se opõe a Rolando (o preux – valor supremo), corajoso e valoroso paladino dos 
valores estatuídos; o bravo se completa com a presença do prudente e sensato Olivier, o sábio 
(sage). Os traços antitéticos naturalmente colaboram para representar uma visão de mundo 
maniqueísta. Logo, os personagens atuam aos pares: Rolando e Olivier, Ganelão e Pinabel, 
Ganelão x Rolando, Pinabel x Thierry, sendo o companheirismo muito exaltado nos poemas 
épicos. Algumas vezes esta noção transparece através da semelhança de nomes: Gerino, 
Gerier; Ivon, Ivório; Basan, Basilio; Clarien, Clarifan. 
 Os diálogos dos personagens, que na mesma fala alternam tu e vós como formas de 
tratamento, restringem-se a ordensde comando, apelo às armas, elaboração de estratégias de 
luta, comentários sobre a batalha campal, invectivas verbais para incitar o corpo-a-corpo, 
muito bem simbolizadas pelos brados de guerra. Excetua-se a discussão entre os paladinos a 
respeito do toque do olifante, um pouco mais elaborada devido à argumentação apresentada. 
No entanto é curioso constatar que, num embate onde tudo opõe os dois grupos de 
participantes, nenhum tem dificuldade em compreender a língua do outro. 
 A linguagem gestual dos personagens atesta sua parca elaboração interior e a importância 
da sociedade oral no texto, motivo pelo qual tudo deve-se transformar em ação. Assim, a luva 
caindo da mão de Ganelão torna-se um mau presságio; os sonhos do imperador se 
concretizam em visões; um acordo é selado com beijos, presentes e juras; o anjo fala; a barba 
exposta sobre o peito indica desafio; o bastão e a luva representam o embaixador; o emir bate 
com a luva no joelho como garantia do que diz; o mártir Rolando prepara o cenário de sua 
morte e volta a luva para Deus, em sinal de submissão; as ações são reiteradas: um dá, o outro 
recebe. 
 A simplificação do personagem confere com a simplificação do enredo, resumido nas 
peripécias da batalha. Este campo semântico permite justificar os episódios de luta corporal 
retratados com sangrento realismo, as batalhas colossais e o agigantamento das situações. 
Neste sentido, no primeiro embate há 20 mil francos contra 400 mil infiéis, depois reduzidos a 
60 combatentes contra 100 mil. Há 15 mortos árabes para cada cristão abatido. Em torno de 
Turpino jazem 400 cadáveres. Os três últimos sobreviventes agonizantes, Rolando, Gautier e 
Turpino, eliminaram respectivamente 22, 6 e 5 vítimas, sendo que os três se defrontam com 
mil homens a pé e 40 mil montados. Diante do corpo de Rolando, cem mil franceses 
desmaiam. 
 Neste mundo, onde predominam os valores e atividades masculinos, a fidelidade à palavra 
empenhada supera qualquer outro preceito. Por isto, Ganelão não pode trair o suserano por 
uma questão de vingança pessoal contra Rolando; Alda falece ao saber da morte do noivo, 
pela quebra do pacto e não por amor, sentimento desconhecido à época das canções de gesta. 
 Mas nesta guerra, a religião serve apenas de ponto de partida. Pagãos e cristãos lutam por 
prestígio, poder, terras, riquezas, bens materiais, saques, acobertados ideologicamente sob a 
antinomia Bem/Mal. Seus valores são os mesmos, porém invertidos. Por isso, os francos são 
fiéis, valentes, seguidores da lei de Cristo, belos, bons e detêm a certeza de suas posições, ao 
passo que os árabes são infiéis, covardes, heréticos, feios, maus e detentores do erro. Tudo se 
opõe, no entanto há homologias entre os dois campos contendores. Em ambos os exércitos há 
um chefe supremo, de barba branca como flor, escoltado por um sobrinho e inúmeros 
familiares; cada um dispõe de doze pares e de um grito de guerra, uma religião defendida com 
a luta. Como o escriba ignora o contexto árabe, fato confirmado pela falta de menção 
verossímil ao território ocupado bem como à sua geografia e pelos nomes vagos ou 
inventados, atribuiu-lhe a mesma estrutura sócio-política dos francos e concede-lhe uma 
estranha santíssima trindade, composta por Maomé (profeta do Islã), Tervagante (divindade 
fictícia) e Apolo (adaptação do paganismo grego, ao qual também se junta Júpiter). 
 E por conta destas transposições e associações do mundo cristão europeu, onde clero e 
nobreza compõem a classe dominante, o poder e o sagrado vêm juntos também no poema. 
Deste modo, as intervenções do maravilhoso cristão (pranto da natureza pela morte do herói, 
prolongamento do dia para vingar a morte dos pares de França, a corte celestial levando a 
alma de Rolando para o Paraíso, a intimidade entre o anjo Gabriel e Carlos Magno) só incidem 
sobre quem detém o poder – o imperador – ou seu representante – o sobrinho. No conjunto 
das identificações, o imperador corresponde ao cavaleiro de Cristo, Rolando ao apóstolo fiel, 
Ganelão a Judas, os doze pares aos apóstolos. 
 Finalmente cumpre mencionar a parataxe épica. Na Canção de Rolando os versos são 
longos, comportando uma oração predominantemente coordenada. Pode-se supor que a 
conjunção destruiria a harmonia do verso ou que o estado da língua não a aceita. Na verdade a 
coordenação épica corresponde a uma estrutura e um estado de espírito, em homologia com a 
sociedade feudal cerrada e hierarquizada, em consonância com o estilo românico rural na 
medida em que não há governo central e que não há mobilidade social.10 
 Em suma, o caráter épico da Canção de Rolando enfatiza um único ponto de vista, não 
deixando margem a ambigüidades. Daí seu caráter exemplar, que permite extrapolar seus 
conceitos para outras sociedades igualmente maniqueístas. Desse modo se explica, em nossos 
dias, sua intensa sobrevivência na literatura de cordel brasileira, com todas as adaptações que 
o fenômeno comporta, porquanto o sertanejo profundamente religioso peleja em busca de 
justiça num mundo de antagonismo entre ele e o poderoso dono da terra, seu arquiinimigo e 
representante do Mal. O mito carolíngio, embelezado pela lenda, espalhou-se através do 
mundo ocidental, o que se atesta pelas inúmeras estátuas, vitrais e iluminuras em toda a 
Europa, bem como por sua presença, retomada não só através de textos de várias épocas, mas 
também pelos enredos das marionetes sicilianas. 
 
 
 
 A PRESENÇA DE ROLANDO NO BRASIL 
 
 A gesta carolíngia constitui um tema de alta freqüência na literatura oral nordestina, 
presente na cantoria e no desafio poético, remetendo sempre a uma noção de destemor e 
valentia. Sua popularidade é uma constante entre a população pobre e média de Portugal e do 
Brasil, mas desapareceu na Espanha e na França atuais. 
 Entre os sertanejos é muito vasta a menção aos heróis de Roncesvales, como referência 
cultural direta ou indireta, à guisa de modelo de bravura e coragem. Assim é que, por exemplo, 
há um distrito denominado Roldão, no município de Morada Nova, Ceará; os soldados da 
escolta pessoal do falso monge José Maria, da guerra do Contestado (1912-1914), eram “Os 
doze pares de França”, embora fossem 24 pessoas, chamando-se Roldão o subchefe do 
monge;11 na Cavalhada, o Partido do Encarnado é chefiado por Roldão, o Partido Azul por 
Oliveiros (Maceió, 1952); gêmeos são batizados como Roldão e Oliveiros.12 
 Há, pois, toda a sorte de contaminação e extrapolação do tema, que não nos vem, no 
entanto, da Canção de Rolando, mas da obra em prosa História do Imperador Carlos Magno e 
dos Doze Pares de França. Este livro, para Câmara Cascudo, “foi, até poucos anos, o livro mais 
conhecido pelo povo brasileiro do interior. De escassa popularidade nos grandes centros 
urbanos, mantinha seu domínio nas fazendas de gado, engenhos de açúcar, residências de 
praia, sendo, às vezes, o único exemplar impresso existente em casa. Raríssima no sertão seria 
a casa sem a História de Carlos Magno, nas velhas edições portuguesas. Nenhum sertanejo 
ignorava as façanhas dos Pares ou a importância do Imperador de Barba Florida”13 
 Os personagens da gesta francesa se adaptaram tão bem no Brasil que seus nomes 
adquiriram significados paradigmáticos: Roldão é o valente Ferrabrás o brigão, Valdevinos 
(Balduino) o vagabundo sem eira nem beira, Galalão ou Galalau denota alguém 
desmesuradamente alto, magro e desajeitado; o duque Naimes tornou-se Nemé e Baligante o 
almirante Balão; o apelativo do cavalo de Roldão, Famanaz, atesta as qualidades deste 
companheiro de trabalho; as espadas e outras armas guardam sua tradicional importância e 
freqüentemente as primeirastambém recebem nomes próprios. Isto aparece transfigurado 
nos folhetos de cordel, onde se fazem adaptações à realidade local, como os trajes de couro, o 
poder do fazendeiro, a ideologia local, imbuída de maniqueísmo e de messianismo, e a visão 
ingênua do mundo. 
 A fama ilustre desta matéria de França se integra às múltiplas tradições culturais européias 
introduzidas no Nordeste desde o início da colonização e difundidas oralmente. No entanto, a 
História do Imperador Carlos Magno e dos Doze Pares de França nos chegou pela via escrita, 
graças a edições de Lisboa feitas no século XVIII, traduzidas por Jerônimo Moreira de Carvalho, 
físico-mor do Algarve, com recapitulações e edições de vários livros sucessivos, incluindo 
ampliação de trechos de Boiardo (Orlando enamorado, 1495) e Ariosto (Orlando furioso, 
1532). Sua forma definitiva foi alcançada no século XIX. Este texto é a fonte principal das 
cantorias nordestinas. Divide-se em 2 partes e 9 livros, com acréscimo da História de Bernardo 
del Carpio que venceu em batalha aos Doze Pares de França. O ponto de partida para Portugal 
e Espanha, porém, prende-se à obra História del Emperador Carlomagno y de los Doce Pares 
de Francia e de la cruda batalla que hubo Oliverios con Fierabras, Rey de Alexandria, hijo del 
Almirante Balan, edição do alemão Jacob Cromberger, Sevilha, 1525, traduzida do francês por 
Nicolas de Piemonte.14 
 A vitalidade do tema se reflete não só nas inúmeras versões surgidas na Europa desde a 
canção de gesta francesa do século XII, mas sobretudo em folhetos de cordel, como, entre 
outros, A batalha de Oliveiros com Ferrabraz e A prisão de Oliveiros, de Leandro Gomes de 
Matos; O cavaleiro Roldão, de Antônio Eugênio da Silva; As traições de Galalão e a morte dos 
Doze Pares de França, de Marcos Sampaio. 
 O sentimento de valor e honra, conforme a representação popular do cangaceiro, se 
associa à figura de Carlos Magno e seus Doze Pares de França, referência clássica para o 
cantador que celebra no bandido o paladino do povo.15 A relação estreita entre os antigos 
heróis da canção de gesta tradicional e os novos paladinos do sertão, os cangaceiros, se devem 
ao fato de que as leis de honra e a valentia na batalha permitem a passagem da gesta para a 
lenda. Misturando história e crônica, os cantadores se preocupam em salvar a imagem do 
bandido e os valores que ele representa para a comunidade. 
 A permanência do tema se justifica porque “a matéria que se conta é uma persistência 
adequada proveniente de atuante historicidade fundamentada na arraigada tradição cultural e 
não em modismo recente ou em artificiosidade literária”.16 A historicidade e o caráter de 
coletividade explicam o alcance do épico carolíngio. A fidelidade à antiga gesta se mantém 
devido à coincidência de mundos, o medieval e o atual nordestino.17 Uma aproximação social 
irrecusável entre a Idade Média e a realidade nordestina leva a tais persistências neste 
universo aparentemente tão distante. Daí as marcas arcaizantes, por causa das condições de 
reclusão e isolamento da região onde se pratica esta literatura. 
 Ligia Vassallo 
 
 
 
A CANÇÃO DE ROLANDO 
 
I – A TRAIÇÃO DE GANELÃO (versos 1 a 1016) 
 
A – A assembléia dos Sarracenos 
 
1 (versos 1 a 9) 
 O rei Carlos, nosso grande imperador, sete anos completos permaneceu na Espanha:? 
conquistou a terra altiva até o mar. Nenhum castelo resiste diante dele; não lhe resta abater 
nenhum muro, nenhuma cidade, exceto Saragoça, que fica numa montanha. Domina-a o rei 
Marsilio, que não ama Deus. Ele serve a Maomé e invoca Apolo:? Não pode se proteger, nem 
impedir a desgraça de o atingir. 
 
2 (versos 10 a 23) 
 O rei Marsilio estava em Saragoça. Foi para a sombra de um vergel. Repousa em um pórtico 
de mármore azul. Em torno dele estão mais de vinte mil homens. Ele convoca seus condes e 
duques. “Escutai, senhores, a calamidade que nos assola. O imperador Carlos da Doce França 
veio a este país para nos confundir. Não tenho exército para combatê-lo. Não tenho homens 
capazes de desbaratar o exercito dele. Aconselhai-me como sábios e salvai-me da morte e da 
vergonha!” Nenhum pagão responde uma só palavra, exceto Blancandrino, do castelo de Val 
Fonde.? 
 
3 (versos 24 a 46) 
 Blancandrino era um dos mais sábios entre os pagãos: digno cavalheiro de valor para 
assistir seu senhor. Então ele disse ao rei: “Não vos inquieteis! A Carlos, o orgulhoso e 
pretensioso, enviai palavras de fiel serviço e grande amizade. Vós lhes dareis ursos e leões e 
cães, setecentos camelos e mil açores já com as penas mudadas, quatrocentos mulos 
carregados de ouro e prata, cinqüenta carros com que formará um comboio: ele poderá pagar 
fartamente a seus soldados. Dizei que ele já guerreou muito tempo nesta terra; que a Aix, em 
França, ele deveria retornar; que vós o encontrareis lá na festa de São Miguel e recebereis a lei 
dos cristãos e vos tornareis seu vassalo com toda a honra e todo o bem Se ele quiser reféns, 
então enviai-lhe uns dez ou vinte, para dar-lhe confiança. Enviai-lhe os filhos de nossas 
mulheres4: eu enviarei o meu, ainda que ele possa perecer. Mais vale eles perderem as 
cabeças do que nós perdermos nossos títulos e propriedades e sermos reduzidos a 
mendigos!”5 
 
4 (versos 47 a 61) 
 Blancandrino disse: “Por esta minha mão direita e pela barba6 que cai em meu peito, logo 
vereis desfeito o exército dos Franceses. Os Francos voltarão para sua terra, a França. Quando 
cada um tiver retornado a suas propriedades, quando Carlos estiver em Aix, em sua capela, ele 
convocará uma alta Corte na festa de São Miguel. O dia virá e o prazo passará sem que ele de 
nós ouça palavras ou notícias.7 O rei é orgulhoso e seu coração é cruel. Ele mandará cortar a 
cabeça dos reféns. Mais vale eles perderem as cabeças do que nós perdermos a Espanha clara 
e bela e suportarmos males e sofrimentos!” Os pagãos dizem: “Talvez ele diga a verdade!” 
 
5 (versos 62 a 77) 
 O rei Marsilio suspendeu a assembléia da Corte.8 Então chamou Clarino de Balaguer9, 
Estamarino e Eudropino, seu par, e Priamon, e Guarlan o Barbudo, e Machiner e seu tio 
Maheu, e Jouner e Malbiano de Ultramar, e Blancandrino, para expor sua missão. Dentre os 
mais infiéis, colocou dez à parte: “Senhores barões, ireis a Carlos Magno. Ele sitia a cidade de 
Cordres.10 Em vossas mãos levareis ramos de oliveira, o que significa paz e humildade. Se por 
vossa perspicácia puderdes estabelecer um acordo, eu vos darei uma quantidade de ouro e 
prata, tantas terras e feudos quanto quiserdes.” Os pagãos dizem: “Estamos satisfeitos!” 
 
6 (versos 78 a 88) 
 O rei Marsilio suspendeu a assembléia da Corte.11 Ele disse a seus homens: “Senhores, vós 
ireis. Em vossas mãos levareis ramos de oliveira e direis ao rei Carlos Magno que por seu Deus 
tenha misericórdia de mim. Ele não verá passar este primeiro mês sem que eu me junte a ele 
com mil dos meus fiéis, e receberei a lei cristã e serei seu vassalo com todo o amor e toda a fé. 
Se quiser reféns, ele os terá de fato.” Blancandrino disse: “Obtereis assim um excelente 
acordo.” 
 
7 (versos 89 a 95) 
 Marsilio mandou trazer dez mulas brancas que o rei de Suatilia12 lhe tinha enviado. Os 
freios são de ouro, as selas ornadas de prata. Os portadores da mensagem estão montados; 
nas mãos levam ramos de oliveira. Eles chegaram a Carlos que domina a França. Ele não pode 
se defender: eles o enganarão. 
 
B – A assembléia dos Franceses 
 
8 (versos 96 a 121) 
 O imperador está alegre e satisfeito: ele tomou Cordres. Desuniu as cinco muralhas.Com 
suas máquinas, abateu as torres. Um imenso saque está nas mãos de seus cavaleiros: ouro, 
prata, preciosas armaduras. Na cidade não restou nenhum pagão que não tivesse sido morto 
ou feito cristão. O imperador está num grande vergel; perto dele, Rolando e Olivier13, o duque 
Samson e Anseís, o orgulhoso, Geoffroy de Anjou, porta-estandarte do rei, e lá também 
estavam Gerino e Gerier14, e no mesmo lugar havia também muitos outros. De Doce França, 
são quinze milhares. Em brancos tapetes estão sentados estes cavaleiros. Para se divertir, 
jogam dados e os mais espertos e os mais sábios jogam xadrez e os jovens fidalgos ágeis 
esgrimam. Debaixo de um pinheiro, perto de uma roseira silvestre, instalaram um trono todo 
feito de ouro puro. Lá está sentado o rei que domina a Doce França. Ele tem a barba branca e a 
cabeça florida, o corpo belo, o porte altivo. Se o procuram, não é preciso designá-lo. E os 
mensageiros apearam e o saudaram com todo o amor e todo o bem. 
 
9 (versos 122 a 138) 
 Blancandrino falou em primeiro lugar. Ele disse ao rei: “Salve em nome de Deus Glorioso, 
que nós todos devemos adorar! Eis o que vos envia o rei Marsilio, o bravo. Ele meditou muito 
sobre a lei que salva. Ele quer vos dar muitos de seus bens, ursos e leões, cães de caça presos à 
coleira, setecentos camelos e mil açores já com as penas mudadas, quatrocentos mulos 
carregados de ouro e prata, cinqüenta carros que mandareis carregar. Haverá tantas moedas 
de ouro fino que podereis pagar fartamente a vossos soldados. Vós permanecestes bastante 
tempo neste país. Convém retornar a Aix, na França. Meu senhor afirma que vos encontrará 
lá.” 0 imperador estende as mãos para Deus, abaixa a cabeça e põe-se a pensar. 
 
10 (versos 139 a 156) 
 O imperador mantém a cabeça abaixada. Jamais sua palavra foi apressada: tal é seu 
costume, ele fala com calma. Quando se ergueu, seu rosto exprimia uma imensa altivez. Ele 
disse aos mensageiros: “Falastes bem. O rei Marsilio é meu grande inimigo: em que medida 
poderei estar seguro das palavras que acabastes de pronunciar?” – “Pelos dez, quinze ou vinte 
reféns que tereis”, disse o Sarraceno. “Eu enviarei um filho meu ainda que ele possa perecer, 
e, creio, recebereis outros ainda mais nobres. Quando estiverdes em vosso palácio senhoria!, 
na grande festa de São Miguel do Perigo, meu senhor afirma que vos encontrará lá. É nas 
águas termais que Deus fez para vós15, que ele quer tornar-se cristão.” Carlos responde: “Ele 
ainda pode ser salvo.” 
 
11 (versos 157 a 167) 
 A tarde estava bela e o sol claro. Carlos manda colocar os dez mulos no estábulo. No 
grande vergel o rei manda armar uma tenda para abrigar os dez mensageiros; doze servidores 
se encarregaram de cuidar bem deles. Eles permanecem toda a noite até o amanhecer do dia 
claro. De madrugada o imperador se levantou, assistiu à missa e às matinas. Foi para debaixo 
de um pinheiro; convoca seus barões para uma assembléia: pelos de França quer ser guiado 
em todas as coisas. 
 
12 (versos 168 a 179) 
 O imperador foi para debaixo de um pinheiro; ele convoca seus barões para uma 
assembléia da Corte, o duque Ogier e o arcebispo Turpino16, Ricardo o Velho e seu sobrinho 
Henrique, e o bravo Acelino, conde de Gasconha, Thibaud de Reims e Milon, seu primo. 
Vieram também Gerier e Gerino; e com eles o conde Rolando e Olivier, o bravo e o nobre; são 
mais de um milhar de Francos de França; veio Ganelão, que fez a traição. Então começa a 
assembléia a que devia se seguir uma grande desgraça. 
 
13 (versos 180 a 192) 
 “Senhores barões”, diz o imperador Carlos, “o rei Marsilio me enviou seus mensageiros. Ele 
quer me dar uma boa parte de seus bens, ursos e leões e cães de caça presos à coleira, 
setecentos camelos e mil açores já com as penas mudadas, quatrocentos mulos carregados de 
ouro da Arábia, e além disso mais de cinqüenta carros. Mas ele pede que eu vá para a França: 
ele me encontrará em Aix, em minha residência, e receberá a nossa lei, a mais redentora; ele 
será cristão e de mim terá seus marquesados: mas não sei qual é a sua verdadeira idéia a este 
respeito.” Os Franceses dizem: “Convém desconfiarmos!”17 
 
14 (versos 193 a 213) 
 O imperador desenvolveu seu ponto de vista. O conde Rolando, que não concorda, põe-se 
de pé e apresenta sua contestação. Ele diz ao rei: “É para vossa desgraça que acreditareis em 
Marsilio! Há sete anos completos nós chegamos à Espanha. Conquistei para vós Noples e 
Comibles; tomei Valterne e a terra de Pina, e Balaguer e Tudela e Sezinha18: o rei Marsilio 
então agiu inteiramente como um traidor. Enviou quinze dos seus pagãos e cada um levava um 
ramo de oliveira; eles pronunciaram as mesmas palavras que agora. A esse respeito vós 
pedistes o conselho dos Franceses; e eles vos aconselharam com alguma leviandade. Vós 
enviastes dois de vossos condes aos pagãos, um era Basan, o outro Basilio. Na montanha, em 
Haltilia, ele lhes cortou a cabeça. Fazei a guerra como começastes. Levai a Saragoça vosso 
exército reunido por uma convocação, sitiai-a, ainda que seja para durar toda a vossa vida, e 
vingai aqueles que o infiel fez perecer.” 
 
15 (versos 214 a 229) 
 Imediatamente o imperador abaixou a cabeça. Ele acaricia a barba, torce o bigode, não 
responde sim nem não ao sobrinho. Os Franceses se calam, exceto Ganelão. Ele se põe de pé e 
vem diante de Carlos; muito altivo, desenvolve seu pensamento e diz ao rei: “É para vossa 
desgraça que acreditareis num louco, eu ou qualquer outro, se ele não falar movido por vosso 
interesse. Quando o rei Marsilio voz diz com as mãos juntas que se tornará vosso vassalo e 
guardará toda a Espanha como um dom de vossa parte e então receberá a lei que observamos, 
aquele que vos aconselha rejeitarmos este acordo, senhor, importa-se pouco de que morte 
nós morreremos. Não é justo que prevaleça um conselho ditado pelo orgulho; deixemos os 
loucos e atenhamo-nos aos sábios!” 
 
16 (versos 230 a 243) 
 Depois deles, adiantou-se Naimes19 : não havia na Corte melhor vassalo, e ele disse ao rei: 
“Vós ouvistes bem a resposta que vos deu o conde Ganelão: ela é sensata; basta acatá-la. O rei 
Marsilio está vencido nesta guerra: vós lhe tomastes todos os castelos; com vossas catapultas, 
quebrastes suas muralhas, queimastes suas cidades e vencestes seus homens. Hoje, que ele 
vos pede misericórdia, fazer pior seria um pecado. Já que ele vos quer dar reféns como 
garantia, esta guerra não deve se prolongar.” Os Franceses dizem: “O duque falou bem!” 
 
17 (versos 244 a 251) 
 “Senhores barões, que enviaremos a Saragoça, ao rei Marsilio?” O duque Naimes responde: 
“Eu irei, com vosso consentimento! Dai-me logo a luva e o bastão.” O rei disse: “Sois um 
homem de grande sabedoria: por minha barba e meu bigode, não ireis tão longe de mim este 
ano. Sentai-vos, pois ninguém vos solicita!” 
 
18(versos252a263) 
 “Senhores barões, quem poderemos enviar a Sarraceno que domina Saragoça?” Rolando 
responde: “Posso muito bem ir!” – “Certo que não”, contesta o conde Olivier. “Vosso coração 
é terrível e orgulhoso: eu próprio temeria que brigásseis. Se o rei quiser, eu posso ir.” O rei 
responde: “Calai ambos sobre este assunto! Nem vós nem ele poreis lá os pés. Por esta barba 
que vedes branca, desgraça para quem achar que um dos pares deve ir!” Os Franceses se 
calam. Ei-los desconcertados. 
 
19 (versos 264 a 273) 
 Turpino de Reims se levanta de sua fileira e diz ao rei: “Deixai vossos Francos em repouso; 
vós permanecestes sete anos neste país. Senhor, dai-me o bastão e a luva; irei eu ao Sarraceno 
de Espanha; irei ver um poucocomo ele é feito.” Mas o imperador responde encolerizado: 
“Sentai-vos neste tapete branco e não faleis mais, a menos que eu ordene.” 
 
20 (versos 274 a 295) 
 “Cavaleiros Francos”, disse o imperador Carlos, “escolhei um barão de meu marquesado 
para levar ao rei Marsílio minha mensagem.” Rolando diz: “Será Ganelão, meu padrasto.”20 Os 
Franceses dizem: “Perfeitamente, ele pode muito bem fazer isso. Se não o aceitardes, não 
enviareis outro mais sábio.” O conde Ganelão ficou tomado de angústia; sacode dos ombros as 
grandes peles de marta e fica com a túnica de seda. Ele tem os olhos cambiantes21 e o rosto 
altivo; tem o corpo bem feito e o peito largo. É tão belo que todos os seus pares o admiram. 
Diz a Rolando: “Louco, que fúria te toma? Sabe-se muito bem que sou teu padrasto e me 
designas para ir a Marsílio! Se Deus me permitir voltar, eu te causarei um mal tão grande que 
durará toda a tua vida.” Rolando responde: “As palavras que ouço são pretensiosas e loucas. 
Sabe-se muito bem que não tenho medo de ameaças. Mas para esta embaixada é preciso um 
homem sábio. Se o rei consentir, estou pronto a ir em vosso lugar.” 
 
21 (versos 296 a 302) 
 Ganelão responde: “Tu não irás por mim. Não és meu vassalo e eu não seu teu senhor. 
Carlos me ordena que faça seu serviço: eu irei a Marsílio em Saragoça; mas farei alguma 
loucura antes de acalmar minha grande cólera.”22 Quando Rolando ouve, começa a rir. 
 
22 (versos 303 a 309) 
 Quando Ganelão vê que Rolando ri dele, sente uma dor tão grande que pensa estourar de 
raiva; falta pouco para perder a cabeça. Ele diz ao conde: “Eu não vos amo; fizestes recair 
sobre mim esta escolha pérfida. Justo imperador, eis-me aqui presente; quero cumprir vossa 
ordem.” 
 
23 (versos 310 a 318) 
 “Sei que devo ir a Saragoça. Quem vai lá pode não voltar. Senhor, lembrai que minha 
mulher é vossa irmã e que dela eu tenho um filho: não se pode encontrar alguém mais belo. É 
Balduino, que será um bravo. A ele deixo minhas propriedade e meus feudos. Cuidai dele, pois 
os meus olhos não o verão mais.”23 Carlos responde: “Tendes o coração fraco. Deveis ir, pois 
eu ordeno.” 
 
24 (versos 319 a 330) 
 O rei diz: “Ganelão, avançai e recebei o bastão e a luva.24 Vós ouvistes, os Franceses vos 
designam.” – “Senhor, diz Ganelão, foi Rolando quem fez tudo; jamais o amarei em toda minha 
vida, nem Olivier, porque é seu companheiro, nem os doze pares, porque o amam tanto. Eu os 
desafio, diante de vossos olhos.” O rei lhe diz: “Tendes cólera demais, vós ireis com certeza, 
pois eu ordeno.” ? “Eu posso ir, mas não terei nenhuma proteção, tanto quanto não tiveram 
Basilio e seu irmão Basan.” 
 
25 (versos 331 a 336) 
 O imperador estende a Ganelão a luva com sua mão direita, mas o conde bem que gostaria 
de não estar lá; no momento em que devia segurá-la, a luva cai no chão25 e os Franceses 
dizem: “Deus, que presságio é este? Esta mensagem resultará em grande desgraça para nós.” 
– “Senhores, diz Ganelão, vós terei notícias.” 
 
26 (versos 337 a 341) 
 “Senhor, diz Ganelão, daí-me a permissão de partir; já que tenho que ir, não adianta 
demorar.” O rei diz: “Ide, com a permissão de Jesus e a minha!” Com a mão direita, absolve-o 
e faz o sinal-da-cruz. Depois, dá-lhe o bastão e o breve. 
 
27 (versos 342 a 365) 
 O conde Ganelão vai para o seu acampamento: trata de se enfeitar com os melhores 
adornos que pode encontrar. Nos pés colocou esporas de ouro: na cintura cingiu a espada 
Murgleis. Montou em seu corcel Tachebrun. Seu tio Guinemer lhe segurou o estribo. Ali veríeis 
chorar tantos cavaleiros que lhe diziam: “Que desgraça para vós, o valente! Na Corte do rei 
permanecestes longo tempo. Sois considerado como um nobre vassalo. Carlos Magno não 
poderá proteger nem salvar aquele que julgou que vos caberia ir. O conde Rolando não 
deveria ter tido esta idéia, pois descendeis de uma linhagem muito alta.” Em seguida dizem: 
“Senhor, levai-nos.” Ganelão responde: “Não agrada ao Senhor Deus! É melhor que eu morra 
só do que seguido por tantos bons cavaleiros. Senhores, vós ireis para a Doce França: saudai 
por mim minha mulher e Pinabel, meu amigo e meu par, e Balduino, meu filho, que vós 
conheceis; dai-lhe vossa ajuda e tomai-o por vosso senhor.” Ele se põe a caminho e partiu. 
 
C – A embaixada de Ganelão 
 
28 (versos 366 a 376) 
 Ganelão cavalgava entre altas oliveiras; ele se juntou aos mensageiros sarracenos e a 
Blancandrino, que diminui a marcha; ambos trocam palavras cheias de malícia: “Carlos é um 
homem maravilhoso,” diz Blancandrino: “ele conquistou a Apúlia e a Calábria26, atravessou o 
mar salgado e ganhou para São Pedro o tributo da Inglaterra. Mas o que vem buscar em nosso 
marquesado?” – “É a vontade dele”, diz Ganelão; “jamais haverá um homem de molde a se 
medir com ele.” 
 
29 (versos 377 a 391) 
 Blancandrino diz: “Os franceses são muito nobres! Mas estes duques e condes fazem 
grande mal ao seu senhor dando-lhe tais conselhos. Eles o esgotam e levam à perda dele e de 
outros com ele.” Ganelão responde: “Que eu saiba, isto não é verdade para ninguém, a não ser 
para Rolando, que um dia se arrependerá! No outro dia, o imperador estava sentado à 
sombra; viu o sobrinho vestido com a cota de malhas; ele tinha feito um saque perto de 
Carcassonne. Na mão segurava uma maçã vermelha: ‘Pegai, caro senhor, eu vos ofereço a 
coroa de todos os reis.’ Seu orgulho deveria levá-lo à perda, pois cada dia ele se expõe à 
morte. Se viesse alguém que o matasse, teríamos paz completa.” 
 
30 (versos 392 a 401) 
 Blancandrino diz: “Rolando é tão terrível que quer reduzir à sua mercê todas as nações e 
reivindicar todas as terras. Com quem conta ele para querer fazer tanto?” Ganelão responde: 
“Com os Franceses! Eles o amam tanto que jamais lhe faltarão. Ele lhes dá tanto ouro e prata, 
tantos mulos, corcéis, tecidos de seda e armaduras! O próprio imperador tem tudo o que quer. 
Ele conquistará a terra daqui até o Oriente.” 
 
31 (versos 402 a 413) 
 Tanto cavalgaram Ganelão e Blancandrino que acabaram por unir suas idéias e prometer 
que procurariam fazer Rolando morrer. Tanto cavalgaram por vias e caminhos que, chegados a 
Saragoça, apearam junto a uma árvore. À sombra de um pinheiro se encontra um trono 
recoberto de seda de Alexandria; lá está o rei que domina toda a Espanha; em volta dele, vinte 
mil Sarracenos, mas ninguém diz nem sussurra nenhuma palavra, de tal modo têm pressa de 
ouvir as notícias. Enfim, eis Ganelão e Blancandrino. 
 
32 (versos 414 a 424) 
 Blancandrino avança diante de Marsílio, segura o conde Ganelão pelo pulso e diz ao rei: 
“Salve, em nome de Maomé e de Apolo, de quem seguimos as santas leis! Levamos vossa 
mensagem a Carlos; ele levantou as duas mãos para o céu, louvou seu Deus, sem dar nenhuma 
resposta. Ele vos envia um de seus nobres barões, homem de França e muito poderoso. 
Através dele sabereis se tereis a paz ou não.” “Que ele fale, diz Marsilio, e nós o ouviremos.” 
 
33 (versos 425 a 440) 
 Mas o conde Ganelão havia pensado longamente: começa a falar com muita arte, como um 
homem hábil em fazer isso. Diz ao rei: “Salve em nome de Deus, do Glorioso a quem devemos 
adorar! Eis o que vos manda dizer Carlos Magno, o bravo: vós recebereis o santo batismo, ele 
vos dará como feudo a metade da Espanha. Se não consentirdes neste acordo, sereis preso e 
amarrado à força, levado até Aix, a capital, e lá um julgamento porá fim à vossa vida; vós 
morrereis de morte vergonhosa e vil.” O rei Marsilio ficou horrorizado; pegou uma flecha 
emplumadacom ouro; quer ferir Ganelão, mas os seus o seguram. 
 
34 (versos 441 a 450) 
 O rei Marsilio mudou de cor, brandiu sua flecha; Ganelão vê isso, leva a mão à espada e 
tira-a da bainha cerca de dois dedos. Depois diz: “Minha espada, sois bela e clara; enquanto eu 
vos tiver, na Corte deste rei, o imperador da França não poderá dizer que morri sozinho em 
terra estrangeira, pois antes de morrer os melhores de vós pagarão com a vida.” Os pagãos 
dizem: “Impeçamos a batalha.” 
 
35 (versos 451 a 467) 
 Os melhores Sarracenos pediram tanto a Marsilio que ele voltou a sentar-se no trono. O 
califa disse: “Vós vos colocais em má situação ao querer atacar o Francês: devíeis ouvi-lo.” – 
“Senhor, diz Ganelão, consinto em suportar esta afronta; mas por todo o ouro que Deuz fez e 
por todos os tesouros deste país, se me derem a oportunidade, não deixarei de dizer a 
mensagem que Carlos, o rei todo-poderoso, envia por mim a seu mortal inimigo.” Ganelão 
estava vestido com um manto de zibelina, forrado de seda de Alexandria. Joga-o por terra e 
Blancandrino o recebe; mas evita soltar a espada e a segura na mão direita pelo punho 
dourado. Os pagãos dizem: “Eis um nobre barão.” 
 
36 (versos 468 a 484) 
 Ganelão se aproxima do rei e lhe diz: “Vós vos irritais à toa; pois eis o que vos manda dizer 
Carlos, que domina a França: recebei a fé cristã, ele vos dará como feudo a metade da Espanha 
e seu sobrinho Rolando terá a outra metade: tereis aí um vizinho orgulhoso. Se não 
consentirdes neste acordo, Carlos vai sitiar Saragoça: sereis preso e amarrado à força e levado 
diretamente a Aix, a capital. Não tereis nem palafrém nem corcel nem mulo nem mula para 
cavalgar. Sereis colocado numa pobre besta de carga; um julgamento vos condenará a ter a 
cabeça cortada. Nosso imperador vos envia este breve.” E ele o estende ao pagão, com a mão 
direita. 
 
37 (versos 485 a 500) 
 Marsilio empalideceu de raiva: rompe o sinete, tira a cera, olha o breve e vê seu conteúdo: 
“Carlos, que domina a França, manda-me lembrar de sua dor e sua cólera: trata-se de Basan e 
seu irmão Basilio, cujas cabeças mandei cortar nas montanhas de Haltilia. Se eu quiser salvar a 
vida de meu corpo, preciso enviar-lhe o califa meu tio, pois de outro modo ele não me amará 
mais.” Então o filho do rei Marsilio toma a palavra e diz ao rei: “Ganelão falou como um louco. 
Ele agiu tão mal que não tem o direito de viver. Entregai-o a mim e eu farei justiça.” Quando 
Ganelão ouve isso, brande a espada e vai se apoiar no tronco do pinheiro. 
 
38 (versos 501 a 511) 
 O rei Marsilio vai para seu vergel; leva consigo os melhores vassalos e Blancandrino de 
cabelos brancos e Jurfaret, seu filho e herdeiro, e o califa, seu tio e fiel. Blancandrino diz: 
“Chamai o Francês, ele me deu a palavra que serviria a nossa causa.” O rei responde: “Ide 
procurá-lo.” Blancandrino segura Ganelão pelos dedos da mão direita, e leva-o ao vergel, até o 
rei. Ali, eles discutem a infame traição. 
 
39 (versos 512 a 519) 
 “Caro senhor Ganelão”, diz o rei Marsilio, “agi convosco meio tolamente quando em meu 
arrebatamento quis atacar-vos. Vou-me redimir, oferecendo-vos estas peles de zibelina; seu 
ouro vale mais de quinhentas libras. Antes de amanhã à tarde pagar-vos-ei uma bela 
compensação.” – “Não recuso, diz Ganelão; que Deus vos recompense, se for sua vontade.” 
 
40 (versos 520 a 536) 
 Marsilio diz: “sabeis, Ganelão, que em verdade estou propenso a vos amar muito; quero 
vos ouvir falar de Carlos Magno; ele tem mais de duzentos anos! Ele levou seu corpo através 
de tantas terras! Recebeu tantos golpes no escudo! Reduziu tantos reis à mendicância! 
Quando renunciará à guerra?” Ganelão diz: “Carlos não é assim; quem o vê e sabe conhecê-lo 
só pode dizer: o imperador é um bravo. Eu não saberia elogiá-lo e louvá-lo o bastante diante 
de vós, pois em lugar algum existe maior honra nem maior bondade. Quem poderia descrever 
seu grande valor? Deus o distingue com tal virtude que ele preferiria morrer a faltar a seus 
barões.” 
 
41 (versos 537 a 549) 
 O pagão diz: “Carlos Magno é para mim causa de grande encantamento; ele está velho e 
encanecido, que eu saiba ele tem duzentos e tantos anos! Ele atormentou seu corpo por 
tantas terras! Recebeu tantos golpes de lança e de maça! Reduziu tantos reis à mendicância! 
Quando renunciará à guerra?” – “Certamente não enquanto viver seu sobrinho,” diz Ganelão. 
“Debaixo do céu, ninguém é tão bravo; é um verdadeiro bravo, tanto quanto Olivier, seu 
companheiro; os doze pares27, que Carlos tanto ama, formam a vanguarda com vinte mil 
cavaleiros. Carlos está tranqüilo, não teme homem algum.” 
 
42 (versos 550 a 562) 
 O Sarraceno diz: “Carlos Magno é para mim causa de grande encantamento; ele está 
encanecido e branco; que eu saiba, ele tem mais de duzentos anos. Ele passou por tantas 
terras conquistando-as! Recebeu tantos golpes de boas lanças cortantes! Matou e venceu no 
campo de batalha tantos reis poderosos! Quando renunciará à guerra?” – “Certamente não 
enquanto viver Rolando, diz Ganelão; daqui até o Oriente, não há bravo igual a ele; é um 
verdadeiro bravo tanto quanto Olivier, seu companheiro! Os doze pares, que Carlos Magno 
tanto ama, formam a vanguarda com vinte mil Franceses. Carlos está tranqüilo e não teme 
nenhum homem vivo.” 
 
43 (versos 563 a 579) 
 “Caro senhor Ganelão,” diz o rei Marsilio, “tenho um belo exército: não podereis ver mais 
belo que este; posso ter quatrocentos mil cavaleiros; posso assim combater Carlos e os 
Franceses?” Ganelão responde: “Não desta vez. Vós perderíeis os vossos melhores pagãos. 
Deixai a loucura de lado, atei-vos à sabedoria. Dai tantas riquezas ao imperador que todos os 
Franceses fiquem maravilhados; com vinte reféns que enviardes o rei voltará para a Doce 
França. Deixará atrás de si a retaguarda. O conde Rolando, seu sobrinho, lá estará, creio, e com 
ele Olivier, o bravo e o cortês. Se acreditardes em mim os dois condes estarão mortos. Carlos 
verá cair seu grande orgulho e nunca mais desejará vos combater.” 
 
44 (versos 580 a 595) 
 “Caro senhor Ganelão, diz o rei Marsilio, como fazer para matar Rolando?” Ganelão 
responde: “Sei dizer-vos; o rei estará nos melhores desfiladeiros de Ciza28, atrás de si, deixará 
a retaguarda. Seu sobrinho, o poderoso conde Rolando, lá estará, e Olivier, em quem ele tanto 
confia; terão consigo vinte mil Franceses. Enviai contra eles cem mil de vossos pagãos; que 
travem uma primeira batalha. A gente de França ficará ferida e morta. Não digo que não 
haverá também um grande massacre dos vossos. Depois, igualmente, travai uma segunda 
batalha; de uma ou de outra Rolando não escapará; realizareis uma bela proeza e não tereis 
mais guerra em toda a vossa vida.” 
 
45 (versos 596 a 602) 
 “Quem fizer Rolando perecer tirará a Carlos o braço direito do corpo. Adeus exércitos 
maravilhosos! Carlos não mais reunirá tantas forças e a Grande Terra29 ficará tranqüila.” 
Quando Marsilio ouve Ganelão, abaixa o pescoço; depois, começa a mostrar seus tesouros. 
 
46 (versos 603 a 608) 
 Marsilio diz [...]:30 “Um acordo só é bom se for garantido. Jurai-me trair Rolando, se ele 
vier cá.” Ganelão responde: “Que seja como quiserdes!” Sobre as relíquias de sua espada 
Murgleis31, ele jura a traição: o delito está realizado. 
 
47 (versos 609 a 616) 
 Havia um trono todo de marfim. Marsilio mandou solenemente trazer um livro: ele contém 
a lei de Maomé e de Tervagante. O Sarraceno de Espanha jurou que se encontrar Rolando na 
retaguarda combaterá a ele e a todos osseus homens e, se puder, matá-lo-á de verdade. 
Ganelão responde: “Que vosso desejo se cumpra.” 
 
48 (versos 617 a 626) 
 Eis que chega um pagão, Valdabron. Ele se aproxima do rei Marsilio. Com seu riso claro diz 
a Ganelão: “Tomai minha espada; ninguém tem outra melhor: só a sua guarda vale mais de mil 
moedas. Por amizade, caro senhor, dou-a a vós, para que nos ajudeis a propósito de Rolando, 
o bravo, para que possamos encontrá-lo na retaguarda.” – “Assim será feito”, responde o 
conde Ganelão. Depois eles se beijam no rosto e no queixo. 
 
49 (versos 627 a 633) 
 Em seguida veio um pagão, Climborino; rindo muito ele diz a Gamelão: “Tomai meu elmo, 
jamais vi melhor do que este, e ajudai-nos a propósito de Rolando, o marquês32, de modo que 
possamos desonrá-lo.” – “Assim será feito”, responde o conde Ganelão. Depois eles se 
beijaram na boca e no rosto. 
 
50 (versos 634 a 641) 
 Então veio a rainha Bramimonda: “Eu vos amo muito, senhor”, disse ela ao conde, “porque 
meu senhor e todos os seus homens vos apreciam muito. A vossa esposa enviarei dois colares; 
são de ouro puro, ametistas, jacintos; valem mais que todo o ouro de Roma; vosso imperador 
jamais teve tão belos assim.” Ele os pegou e guardou na polaina. 
 
51 (versos 642 a 646) 
 O rei chama Mauduit, seu tesoureiro: “Os tesouros de Carlos estão preparados?” E ele 
responde: “Sim, senhor, do melhor possível: setecentos camelos carregados de ouro e prata, e 
vinte reféns, dos mais nobres que há debaixo do céu.” 
 
52 (versos 647 a 660) 
 Marsilio segurou Ganelão pelo ombro e lhe disse: “És bravo e sábio. Por esta lei que tomais 
pela mais segura, evitai afastar de nós vosso coração! Quero vos dar grandes quantidades dos 
meus bens, dez mulos carregados do mais fino ouro da Arábia; não se passará um ano sem que 
eu vos dê outro presente semelhante. Eis as chaves desta grande cidade: apresentai todas as 
suas riquezas ao rei Carlos, em seguida garanti-me a retaguarda para Rolando. Se eu puder 
encontrá-lo em algum desfiladeiro ou passagem, lutarei com ele até a morte.” Ganelão 
responde: “Minha opinião é que me atraso!” Depois montou a cavalo e foi-se a caminho. 
 
D – A designação de Rolando para a retaguarda 
 
53 (versos 661 a 668) 
 O imperador se aproxima de seu país. Ele veio da cidade de Galne.33 O conde Rolando a 
tomou e destruiu. Deste dia em diante ela ficou deserta por cem anos. O rei espera notícias de 
Ganelão e o tributo de Espanha, a Grande Terra. Numa manhã, à alvorada, quando o dia 
clareava, o conde Ganelão chegou ao acampamento. 
 
54 (versos 669 a 702) 
 O imperador se levantou de madrugada. O rei assistiu à missa e às matinas. Estava de pé na 
relva verde diante de sua tenda. Rolando ali estava e Olivier, o bravo, Naimes, o duque, e 
muitos outros. Ganelão chega, o infiel, o traidor. Com grande astúcia começa a falar. Diz ao rei: 
“Salve da parte de Deus! Trago-vos as chaves de Saragoça; guardai-as bem! E vinte reféns: 
mandai guardá-los bem! E o rei Marsilio, o valente, vos pede que não o censureis quanto ao 
Califa, pois com meus próprios olhos vi quatrocentos mil homens armados, vestidos com a 
cota de malhas, alguns com o elmo preso, cingidos de espadas com punhos de ouro 
esmaltado, que o levaram até o mar. Eles se afastaram de Marsilio por causa da fé cristã, que 
não queriam ter nem observar. Antes de navegarem quatro léguas, houve ventania, 
tempestade e borrasca: assim se afogaram. Jamais vereis um só deles! Se o Califa estivesse 
vivo, eu o teria trazido. Quanto ao rei pagão, senhor, acreditai de fato que não vereis passar 
este primeiro mês sem que ele vos siga ao reino de França e lá receberá a lei que observais, 
com as mãos juntas seguirá vossas ordens. É de vós que ele receberá todo o reino de 
Espanha.” O rei diz: “Que Deus vos agradeça! Agistes bem! Tereis grande recompensa!” No 
meio do exército, soaram mil clarins. Os Francos levantam o acampamento. Carregam as 
bestas de carga. Todos se encaminham para a Doce França. 
 
55 (versos 703 a 716) 
 Carlos Magno devastou a Espanha, tomou os castelos, penetrou nas cidades. O rei declarou 
que sua guerra estava terminada. O imperador cavalga para a Doce França. O conde Rolando 
fixou as insígnias. Do alto de um outeiro elevou-as ao céu. Os Francos se instalam por toda a 
região. Vestiram as cotas de malha e as couraças, prenderam os elmos e cingiram as espadas, 
os escudos pendem ao pescoço, as lanças estão empunhadas. Deus! Que pena que os Francos 
não saibam!34 
 
56 (versos 717 a 724) 
 O dia acaba e a noite escurece; Carlos, o poderoso imperador35, adormece. Sonha que está 
nos largos desfiladeiros de Ciza e que segura nas mãos a lança de freixo; e então o conde 
Ganelão a arranca, sacode-a e empunha-a, com tal furor que as centelhas voam para o céu. 
Carlos dorme: ele não acorda.36 
 
57 (versos 725 a 736) 
 Depois desta visão teve uma outra: está na França, em Aix, em sua capela; um urso cruel 
morde seu braço direito, e do lado das Ardenas ele vê um leopardo que ousadamente ataca 
seu próprio corpo. Mas da sala corre um galgo, que chega até Carlos a galope e aos pulos, 
corta a orelha direita do urso e, cheio de cólera, agarra o leopardo. “Grande batalha!” dizem 
os Franceses, mas não sabem quem alcançará a vitória. Carlos dorme, ele não acorda. 
 
58 (versos 737 a 750) 
 A noite passa e a clara alba aparece; o imperador cavalga orgulhosamente no meio do seu 
exército. “Senhores barões”, diz o imperador Carlos, “vede os desfiladeiros e as estreitas 
passagens, escolhei quem ficará na retaguarda!” Ganelão responde: “Rolando, meu enteado. 
Não tendes barão de maior bravura.” O rei ouve e olha duramente para ele: “Vós sois o 
próprio demônio”, diz ele, “uma ira mortal entrou em vosso corpo; e quem estará diante de 
mim, na vanguarda?” – “Ogier da Dinamarca”, responde Ganelão, “não tendes barão que o 
faça melhor do que ele.”37 
 
59 (versos 751 a 760) 
 O conde Rolando, quando se ouve designar, fala como um perfeito cavaleiro: “Senhor 
padrasto, devo agradecer-vos muito38; vós me designastes para a retaguarda. Carlos, o rei que 
domina a Doce França, não perderá, que eu saiba, nem palafrém39 nem corcel, nem mulo nem 
mula que deva cavalgar, nem rocim nem besta de carga sem que as espadas lutem por eles.” 
Ganelão responde: “Dizeis a verdade, sei muito bem.” 
 
60 (versos 761 a 765) 
 Quando Rolando ouve que estará na retaguarda, fala irado ao padrasto: “Ah! Patife, 
homem ruim de raça vil! Pensavas que eu ia deixar cair a luva, como tu deixaste o bastão 
diante de Carlos?”40 
 
61 (versos 766 a 773) 
 “Justo imperador”, diz Rolando, o barão, “dai-me o arco que empunhais. Tenho certeza que 
não me censurarão por deixá-lo cair, como fez Ganelão com o bastão quando o recebeu na 
mão direita.” O imperador tem a cabeça abaixada; puxa a barba, torce o bigode: não pode se 
impedir de chorar. 
 
62 (versos 774 a 782) 
 Em seguida veio Naimes; não há na Corte melhor vassalo. Ele diz ao rei: “Vós ouvistes. O 
conde Rolando está muito irado; a retaguarda lhe foi designada e não tendes barão que possa 
substituí-lo. Dai-lhe o arco que tendes e encontrai quem muito o ajude.” O rei dá o arco e 
Rolando o recebe. 
 
63 (versos 783 a 791 
 O imperador se dirige ao sobrinho Rolando: “Caro senhor sobrinho, sabeis de fato que vos 
quero dar a metade de meu exército; guardai-a convosco, ela garantirá vossa salvação.” – 
“Nada farei”, diz o conde. “Deus me castigue se eu trair minha raça! Ficarei com vinte mil 
Franceses muitobravos. Passai os desfiladeiros em segurança; não deveis temer ninguém 
enquanto eu viver!”41 
 
64 (versos 792 a 803) 
 O conde Rolando monta em seu corcel; perto dele vem o companheiro Olivier, depois 
Gerino e o bravo conde Gerier, e depois Oton e Berenger, e Astor e Anseís o velho, o orgulhoso 
Gerard de Roussillon e Gaifier o poderoso duque. “Por minha consciência eu irei, diz o 
arcebispo.” – “E eu irei convosco”, diz o conde Gautier. “Sou vassalo de Rolando e não devo 
lhe faltar.” Entre eles, escolhem vinte mil cavaleiros. 
 
65 (versos 804 a 814) 
 O conde Rolando chama Gautier de Hum42: “Tomai mil Franceses de França, nossa terra, e 
ocupai os desfiladeiros e as alturas para que o imperador não perca nem um só de seus 
homens.” Gautier responde: “Devo fazer isto por vós.” Com mil Franceses de França, sua terra, 
Gautier sai das fileiras e vai pelos desfiladeiros e pelas alturas. Por piores que sejam as 
notícias, ele não descerá antes que inúmeras espadas estejam desembainhadas. Nesse dia o 
rei Almaria do reino de Belferne43 travará com eles uma rude batalha. 
 
66 (versos 815 a 824) 
 Altos são os montes e tenebrosos os vales, as rochas sombrias e os desfiladeiros 
terrificantes. Nesse mesmo dia os Franceses os atravessaram com grande dificuldade. A quinze 
léguas dali ouvia-se o clangor de sua marcha. E quando chegaram à Grande Terra viram a 
Gasconha, terra de seu senhor. Então se lembraram dos feudos e propriedades, das filhas e 
das nobres mulheres: não houve quem não chorasse de ternura. Mais do que todos os outros, 
Carlos está cheio de angústia: nos desfiladeiros de Espanha deixou o sobrinho; cheio de dor, 
não pode se impedir de chorar. 
 
67 (versos 825 a 840) 
 Os doze pares ficaram na Espanha: vinte mil Franceses lhes fazem companhia: não têm 
medo nem temor da morte. O imperador volta para a França; esconde a angústia debaixo do 
manto. Junto dele cavalga o duque Naimes; ele diz ao rei: “Que angústia vos atormenta?” 
“Esta pergunta é ultrajante”, responde Carlos, “minha dor é tão grande que preciso chorar. 
Ganelão vai arruinar a França! Esta noite eu tive uma visão que um anjo enviou. Vi Ganelão 
que me quebrava a lança entre as mãos, Ganelão que designou meu sobrinho para a 
retaguarda. E eu deixei Rolando num marquesado estrangeiro! Deus! Se o perder, não 
encontrarei ninguém semelhante a ele!” 
 
68 (versos 841 a 860) 
 Carlos Magno não pode se impedir de chorar. Cem mil44 Franceses tomam-se de ternura 
por ele e de um estranho temor por Rolando. Ganelão o infiel o traiu; do rei pagão recebeu 
grandes presentes, ouro e prata, tecidos e roupas de seda, cavalos, camelos e leões. Marsílio 
convocou por toda a Espanha barões, condes, viscondes, duques e dignitários, os emires e os 
filhos dos nobres. Reuniu quatrocentos mil em três dias. Em Sagaroça soam os tambores e 
sobre a mais alta torre expõe-se a imagem de Maomé45 cada pagão reza a ele e o adora. 
Depois, todos cavalgam em marcha forçada, através da Terra Certa46, pelos vales, pelos 
montes: enfim avistam os estandartes da França. A retaguarda dos doze companheiros não 
deixará de travar batalha. 
 
E – Preparativos dos Sarracenos 
 
69 (versos 861 a 873) 
 O sobrinho de Marsilio avançou para um mulo e o tocou com o bastão. Disse ao tio rindo 
muito: “Caro senhor rei, servi-vos tanto tempo e só obtive sofrimentos e tormentos. Travei 
batalhas e ganhei-as! Como feudo concedei-me abater Rolando! Eu o matarei com minha lança 
cortante. Se Maomé me der seu apoio, libertarei toda a terra de Espanha, desde os 
desfiladeiros até Durestante.47 Carlos se cansará, os Franceses se renderão. Nunca mais tereis 
guerra em toda vossa vida.” O duque Marsilio lhe dá a luva. 
 
70 (versos 874 a 884) 
 O sobrinho de Marsilio segura a luva na mão, dirige-se ao tio em termos altivos: “Caro 
senhor meu rei, vós me destes um grande presente. Escolhei doze de vossos barões48; e assim 
eu combaterei os doze pares.” A isto responde em primeiro lugar Falseron, irmão49 do rei 
Marsilio: “Caro senhor meu sobrinho, iremos vós e eu. É certo que travaremos esta batalha. 
Diz-se que dizimaremos a retaguarda do grande exército de Carlos.” 
 
71 (versos 885 a 893) 
 Do outro lado vem o rei Corsalis: é rei da Barbárie e muito entendido em artes maléficas. 
Falou à maneira de um bom vassalo: por todo o ouro de Deus, não queria se comportar como 
um covarde. Mas eis Malprimis de Brigante esporeando a montaria: a pé ele é mais rápido que 
um cavalo. Diante de Marsilio ele grita bem alto: “A Roncesvales me dirijo; se encontrar 
Rolando não o largarei sem abatê-lo.” 
 
72 (versos 894 a 908) 
 Lá está o emir de Balaguer. Tem o porte nobre, o rosto altivo e claro. Quando está a cavalo, 
tem aparência altiva com suas armas. Sua coragem é altamente renomada. Se fosse cristão, 
seria um famoso barão! Diante de Marsilio ele gritou: “A Roncesvales vou expor minha vida! Se 
encontrar Rolando, ele morrerá e Olivier e todos os doze pares. Os Franceses morrerão com 
grande pesar e grande vergonha. Carlos Magno está velho e caduco; ele se cansará de fazer 
sua guerra. Assim, a Espanha tranqüila ficará para nós.” O rei Marsilio lhe agradeceu muito. 
 
73 (versos 909 a 915) 
 Chega o Emir de Moriane50: não existe maior infiel na terra de Espanha. Ele se pavoneou 
diante de Marsilio: “A Roncesvales levarei os meus, vinte mil homens usando escudos e lanças. 
Se encontrar Rolando, garanto sua morte. Não se passará um dia sem que Carlos Magno chore 
por ele.” 
 
74 (versos 916 a 930) 
 De outro lado vem Turgis de Tortelosa51: ele é conde e esta cidade é dele. Quer maltratar 
os cristãos. Assim, diante de Marsilio, concordou com os outros e disse ao rei: “Não deveis 
absolutamente vos emocionar! Maomé vale mais do que São Pedro de Roma: se servis a ele, a 
honra da batalha será nossa. A Roncesvales irei encontrar Rolando. Contra a morte não há 
nenhuma proteção. Vede minha espada que é boa e longa: vou experimentá-la contra 
Durindana52, sabereis bem quem ganhará. Os Franceses morrerão se se aventurarem contra 
nós; Carlos o Velho terá pesar e vergonha. Nunca mais usará a coroa neste mundo!” 
 
75 (versos 931 a 939) 
 De outro lado eis Escremiz de Valterne: ele é Sarraceno e Valterne sua terra. Diante de 
Marsilio ele grita a fortes brados: “A Roncesvales irei abater o orgulho. Se encontrar Rolando, 
lá ele deixará a cabeça, e também Olivier, que comanda os outros. Os doze pares estão todos 
marcados para a morte. Os Franceses morrerão: a França ficará desprovida deles. Carlos terá 
falta de bons vassalos.” 
 
76 (versos 940 a 954) 
 De outro lado eis um pagão, Esturgante: está acompanhado de Estramariz, seu 
companheiro. Todos os dois são infiéis, traidores danados. Marsilio diz: “Aproximai-vos, 
senhores! A Roncesvales ireis, à passagem dos desfiladeiros, e ajudareis a comandar os meus!” 
Eles respondem: “Às vossas ordens! Vamos tomar de assalto Olivier e Rolando; ninguém 
protegerá os doze pares da morte. Nossas espadas são boas e cortantes; nós as tornaremos 
vermelhas de sangue quente. Os Franceses morrerão e Carlos sofrerá. Nós vos oferecemos a 
Grande Terra de presente. Vinde, rei, vós vereis de fato! Nós vos daremos o imperador de 
presente!” 
 
77 (versos 955 a 974) 
 Chega correndo Margariz de Sevilha. Ele domina a terra até Cazmarina.53 Sua beleza lhe 
vale o favor das damas. Todas desabrocham diante dele! Vendo-o, nenhuma pode deixar de 
sorrir! Nenhum pagão é tão bom cavaleiro; na multidão ele grita mais forte que os outros: 
“Não vos perturbeis! A Roncesvales

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