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1 FACULDADE QUALITTAS NATÁLIA MARÓSTICA REVISÃO SISTEMÁTICA DAS ATUALIZAÇÕES DAS TÉCNICAS ANESTÉSICAS VETERINÁRIAS CAMPO GRANDE, 2025. 2 FACULDADE QUALITTAS NATÁLIA MARÓSTICA REVISÃO SISTEMÁTICA DAS ATUALIZAÇÕES DAS TÉCNICAS ANESTÉSICAS VETERINÁRIAS Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao curso de Pós graduação em ANESTESIOLOGIA VETERINÁRIA da Faculdade QUALITTAS como requisito à obtenção de título em nível de especialização em ANESTESIOLOGIA. Orientadora: PROFª. DRA. CLAUCIA APª HONORATO DA SILVA CAMPO GRANDE, 01 DE FEVEREIRO DE 2025. 3 NATÁLIA MARÓSTICA REVISÃO SISTEMÁTICA DAS ATUALIZAÇÕES DAS TÉCNICAS ANESTÉSICAS VETERINÁRIAS Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao curso de Pós graduação em ANESTESIOLOGIA VETERINÁRIA da Faculdade QUALITTAS como requisito à obtenção de título em nível de especialização em ANESTESIOLOGIA. Orientadora: PROFª. DRA. CLAUCIA APª HONORATO DA SILVA CAMPO GRANDE, 01 DE FEVEREIRO DE 2025. ________________________________________ VETERINÁRIA ______________________________________ Examinador / Instituição / Titulação 4 Dedico este trabalho primeiramente ao grande professor Ricardo Vilani que, mesmo sem saber provocou em mim, através de seu conhecimento, almejar minha melhor versão na área da anestesia veterinária para exercê-la com maestria. Em segundo, dedico a quem me fez escolher essa especialidade, o pai da anestesia veterinária, do qual, embora infelizmente não pude ter conhecido pessoalmente, me motivou a entender a dor e a vida e trata-la com a devida relevância: Mestre Flávio Massone. Dedico também a meus pais, que me fizeram ser o ser humano que eu sou e moldaram minha ética e moral para que eu pudesse exercer a profissão com amor, carinho e cuidado, de forma sensata e dedicada, me apoiando e admirando a cada passo dado. Por último, dedico à querida Prof.ª. Dra. Claucia Honorato, que desde minha formação, tem sido um alicerce para seguir estudando e aprimorando minhas habilidades médicas, realizou desdobres inimagináveis para que esse trabalho pudesse ser realizado, e que muitas vezes acreditou em mim, mais do que eu mesma. Por tudo isso, sou grata. Vos dedico. 5 LISTA DE SIGLAS WLM - Wood Library-Museum of Anesthesiology TIVA – Total Intravenous Anesthesia 6 SUMÁRIO RESUMO ________________________________________________________ 07 ABSTRACT ______________________________________________________ 08 1. INTRODUÇÃO ______________________________________________ 09 2. REVISÃO DE LITERATURA __________________________________ 11 2.1 A HISTÓRIA DA ANESTESIA _____________________________ 11 3. DISCUSSÃO ________________________________________________ 15 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS ____________________________________ 19 5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS _____________________________ 20 7 RESUMO A anestesia em cães e gatos vem sendo estudada e aprimorada desde a primeira experiência registrada em 1847. Desde então, década após década, pesquisadores têm testado novas teorias e feito descobertas importantes sobre diversas drogas anestésicas, com o objetivo de aumentar a segurança, a eficácia e o sucesso de procedimentos cirúrgicos, tratamentos paliativos e no controle da dor. Atualmente, novas abordagens anestésicas vêm sendo adotadas, com protocolos cada vez mais individualizados e personalizados. Esses protocolos levam em consideração uma série de fatores que influenciam diretamente a escolha da técnica anestésica, priorizando o bem-estar do paciente e garantindo maior segurança, eficácia e alcance dos objetivos clínicos. Ao longo dessa trajetória de descobertas, surgiram drogas com efeito dissociativo, amplamente utilizadas em procedimentos rápidos. No entanto, essas substâncias, apesar de eficazes em determinadas situações, não proporcionam analgesia ou hipnose adequadas, podendo submeter o animal a procedimentos dolorosos sem que ele consiga demonstrar desconforto ou resistência. Também foram desenvolvidas drogas de uso inalatório, que induzem hipnose, mas não necessariamente a perda completa da consciência, sendo, por isso, uma alternativa potencialmente melhor, porém ainda com limitações. Por fim, as drogas de administração totalmente intravenosa passaram a ser mais amplamente compreendidas apenas em um momento posterior, sendo atualmente consideradas uma das principais técnicas anestésicas para uma ampla gama de procedimentos. Este trabalho tem como objetivo reunir informações técnicas sobre anestesia e destacar a importância de ponderar diversos fatores relevantes na escolha da conduta anestésica, sempre priorizando o bem-estar animal como princípio fundamental. PALAVRAS CHAVE: anestesia dissociativa, TIVA, analgesia. 8 ABSTRACT Anesthesia in dogs and cats has been studied and improved since the first experiment was reported in 1847. Since then, decade after decade, researchers have tested new theories and discovered new discoveries about various anesthetic drugs, aiming at the safety, efficacy and success of surgical procedures, palliative treatments and results in pain control. Today, new ways of anesthetizing are being developed, individualizing protocols and taking into account a series of factors that influence the choice of anesthetic, such as favoring the patient by offering greater safety, efficacy and satisfaction of the established objective. During the course of discoveries of anesthetic drugs, some drugs with a dissociative effect were synthesized, widely used for quick procedures, not providing adequate analgesia or hypnosis, thus hastily subjecting the animal to painful procedures, without the animal being able to show discomfort or resist. There are also those for inhalation use, which generate hypnosis, but not loss of consciousness, perhaps being a better choice, but still not the ideal one. And those for totally intravenous use, whose knowledge came to light later, are today considered one of the anesthetic techniques of choice for various types of procedures. This work aimed to gather technical anesthetic information and highlight the importance of considering considerable factors when choosing the conduct to be used, taking into account the main factor, animal welfare. KEYWORDS: dissociative anesthesia, TIVA, analgesia. 9 1. INTRODUÇÃO A anestesia como se conhece hoje vem fruto de muitos estudos e adaptações realizadas ao longo de séculos. Desde antes da era de Cristo, até os dias atuais, a evolução da anestesia é um marco histórico para a medicina. Mas antes de discorrer sobre as mudanças e aprimoramentos que ocorrem desde os primórdios, faz-se necessário entender o que é a anestesia. Segundo o pai da anestesia no Brasil, Flávio Massone (1988), anestesia é um termo genérico, pois toda droga capaz de suprimir temporariamente a dor, quer para fins exploratórios ou cirúrgicos, com ou sem narcose, enquadra-se em sua definição. Por isso, abordou em seu livro definições mais detalhadas em tipos de anestesia, que estabelece narcose como a perda da consciência ou sono artificial, a analgesia como supressão temporária da percepção dolorosa, bloqueio reversível dos impulsos nervosos aferentes como anestesia local, analgesia como insensibilidade à dor, sem perda, porém, da consciência, neuroleptoanalgesia é todo ato anestésico capaz de causar sonolência, sem perda da consciência, desligamento psicológico do ambiente que cerca o indivíduo, supressão da dor (analgesia intensa) e amnésia. E por fim anestesia cirúrgica como relaxamento muscular ligado à ausência de reação de defesa contra uma agressão, somadas a proteção neurovegetativa,temos a anestesia geral. O mais importante em entender as diferentes técnicas anestésicas é saber definir baseado no objetivo, qual a melhor opção para cada tipo de paciente e cada tipo de procedimento pretendido já que a anestesia tem por objetivo geral induzir a inconsciência e a amnésia, prevenir a percepção da dor, garantir a contenção e a imobilização do animal, além de promover o relaxamento muscular (LUMB & JONES, 2007), e esses objetivos devem ser atendidos sem comprometer a vida e a segurança do animal antes, durante e após anestesia. Portanto, o conhecimento da farmacodinâmica e a farmacocinética dos fármacos, anatomia e fisiologia do animal e também de suas características é imprescindível para se efetuem anestesias seguras e eficientes, sem risco para o paciente tal qual a utilização de aparelhos anestésicos, desde os mais tecnológicos, aos mais simples para uso cotidiano. Assim como conhecer o histórico do animal, examinar o paciente como um indivíduo único e particular, levando em consideração raça, sexo, particularidades, doenças pré-existentes, comorbidades para que sejam levados em contas fatores de risco associados à interação, medicamento-paciente, por exemplo, cardiopatas e o uso de fenotiazínicos, que causam vasodilatação e podem levar o animal a uma hipotensão irreversível (FANTONI; CORTOPASSI, 2010). 10 Além desses fatores, condições como faixa etária do animal também influenciam na escolha da técnica e dos fármacos utilizados, além claro, do tipo de procedimento. Por exemplo, pacientes pediátricos, em casos de submissão à um procedimento cirúrgico-anestésico, é preciso considerar o fato de que desenvolvimento e a maturação de órgãos não atuam com o mesmo padrão que ocorre em animais adultos (MORAES, 2023). Nestes pacientes, a metabolização farmacológica é diminuída dado à maior proporção de água corporal e menor concentração das proteínas, fazendo com que a eliminação destes fármacos ocorra de forma ineficaz, permitindo que os anestésicos sigam concentrados no plasma, o que pode acarretar intoxicação (Cortopassi & Carvalho, 2010). Desse forma, o que tem sido descoberto, abordado e relatado na ciência veterinária atualmente, deve ser levado em consideração, como a criação da anestesia multimodal, utilizando suas menores doses associadas à outros medicamentos, dado ao sinergismo e potencialização das drogas, ou como a utilização da TIVA, mantendo o máximo de homeostase e o mínimo de alterações deletérias ao longo do processo transoperatório, visto que pode-se usufruir dessas informações para avançar cada vez mais buscando segurança, eficácia no que diz respeito à anestesia em cães e gatos. Neste sentido, é relevante que se sejam repensadas as condutas anestésicas, tal qual o profissional habilitado para a escolha e realização destas, objetivando primordialmente o melhor para o paciente, como deve ser. 11 2. REVISÃO DE LITERATURA 2.1 A HISTÓRIA DA ANESTESIA Apesar de parecer possuir uma trajetória breve, a anestesia conta com narrativas que datam desde 4.000 anos a.C., com relatos históricos de artefatos sumérios de Papoula de ópio. Desde então, a cronologia da anestesia foi ocorrendo de forma dispersa uma da outra (geograficamente), com acontecimentos que, embora datados, não firmaram um evento canônico para a anestesia. Segundo a história, a anestesia deu-se início por Heródoto (c. 484-425 a.C.) que se referiu à inalação de cânhamo (Cannabis sativa), haxixe ou maconha para produzir “intoxicação” (JONES, 2023). Em sequência Plínio (24-79 d.C.) descreve sobre o resultado da extração de “certas folhagens” utilizadas no auxílio do sono ou redução da dor, e Dioscórides (40-90 d.C.) descreveu a papoula do ópio (Papaver somniferum) – a fonte de morfina, codeína e heroína, das quais utiliza-se até hoje – como um analgésico e causador de sono. A soma disso, Dioscórides também citou sobre sua descoberta resultante da fervura da raiz da planta mandrágora (Mandragora spp.) no vinho, causando inconsciência e narcose, também contribuindo no sono e “abolição” da dor. Há relatos escassos sobre o uso dessas descobertas na realização de cirurgias, com poucos detalhes fornecidos. Antagônico aos efeitos benéficos das drogas, outros meios de controle da dor foram testados, como compressão de nervos e vasos sanguíneos próximos ao local da cirurgia ou compressão no pescoço para induzir inconsciência e até mesmo o uso de álcool para incitar a embriaguez e golpes fortes contra à cabeça para a perca de consciência. (CISA, 2014). Esses métodos foram considerados perigosos e incontroláveis e abandonados após sua ineficácia. Mesmo não havendo progresso significativo na anestesia, houveram mudanças em sua definição, que foi reformulada em 1751 para “um defeito de sensação como em pessoas paralíticas ou destruídas”, abrindo caminhos para logo em seguida, em 1754 Joseph Black descobrir o gás dióxido de carbono, a que se referia como “ar fixo”, seguido pela descoberta de oxigênio (1771) e óxido nitroso (1772) por Joseph Priestley. Mais tarde em 1799, Humphry Davy, químico, descobriu os efeitos do óxido nitroso, notando ocasionar uma espécie de euforia hilariante, escrevendo sobre sua possibilidade no uso como anestésico. Isso foi proposto ao notarem que quedas e ferimentos ocasionados após o uso do gás, fazia com que as dores do trauma não fossem sentidas. Mas por má demonstração em 1844, o mesmo só começou a ser utilizado na odontologia, mais tarde em 1864 (WEST, 2014). 12 No início do século XIX, em 1824, o jovem cirurgião inglês Henry Hill Hickman, antes do seu êxito ao descobrir a anestesia inalatória, investigou o uso de dióxido de carbono em filhotes e um cão adulto. Mas após envolve-los em uma atmosfera com o gás, notou que ao dormirem lentamente, os animais vinham a óbito, concluindo que os mesmos foram asfixiados e não submetidos à anestesia inalatória (JONES, 2023). Em 1831, o clorofórmio foi descoberto simultaneamente por trabalhadores na França, Alemanha e EUA, mas não foi usado como anestésico até 1847, Hobday considerava o clorofórmio o melhor anestésico geral para cavalos e cães, devido ao seu baixo custo, segurança e utilidade (WLM, 2020). Embora os anestésicos inalatórios proporcionassem a perda de consciência, não tinham controle sobre a analgesia e as complicações anestésicas eram comuns. Apesar do que muitos acreditam, o uso da anestesia, ainda que explorada em busca da realização de procedimentos indolores e cirúrgicos em humanos, quase sempre tinha seu início por meio de testes realizados em cães, gatos e equinos, como por exemplo, William TG Morton, um dentista e médico americano que fez experimentos com éter em cães antes de usá-lo em sua clínica odontológica. Ele fez uma demonstração pública bem-sucedida em outubro de 1846 e, duas semanas depois, administrou-o para o Dr. John Collins Warren remover sem dor um tumor do pescoço de um paciente (JONES, 2023). Logo após, em 19 de dezembro de 1846, o dentista londrino James Robinson usou éter para uma extração dentária sem dor. Ele foi observado por cirurgiões de Londres que imediatamente adotaram o procedimento (FITZHARRIS, 2017). Ainda assim a cirurgia em animais era rara e associada a alta mortalidade devido à dor e ao choque, e complicações como dor intensa e infecções não tratadas eram corriqueiras. Conseguinte, em 29 de janeiro de 1847, o primeiro uso de anestesia veterinária bem sucedida foi relatado no The Times de Londres: um cavalo foi anestesiado com sucesso com éter no Royal Veterinary College (RVC), pelo então diretor, William Sewell, que também teve contribuição anos antes, na descoberta e uso do Curare, em 1838, quando utilizou de forma injetável em dois cavalos com tétano, argumentando que seu uso poderia contribuir no controle de espasmos musculares assim como em casos de raiva. Os animaissobreviveram após o uso com controle de ventilação artificial intratraqueal, mas morreram mais tarde em decorrência das doenças. Também no ano de 1847, Edward Mayhew publicou dois artigos no The Veterinarian, (“Inhalation of ether fumes” e “The vapour of ether”) após testar o anestésico em si mesmo e depois em cães. Neste mesmo ano, James Simpson, a contribuir com o uso e experiências da 13 anestesia, após sua tentativa de uso do Éter em 1840 em suas práticas obstétricas, e reprova-lo por conta de sua inflamabilidade, recebeu uma amostra de clorofórmio. Testou em si mesmo, obtendo êxito, e em outros animais, dos quais vieram à óbito horas após, o que não foi empecilho para continuidade do uso, já que Simspon foi a primeira pessoa a usar clorofórmio em humanos, ainda que não percebesse seu risco e perigo potenciais, notando que apesar de ser eficaz, ele também apresentava riscos como depressão respiratória excessiva. Houve grande progresso, principalmente na Inglaterra e Estados Unidos, a partir de 1950, com a introdução de novos fármacos como tranquilizantes, opioides e anestésicos dissociativos (AGUIAR, 2002). Ao longo dos anos, e com o aprimoramento da anestesia, novas drogas foram sintetizadas e em 1850 já haviam disponíveis anestésicos em forma injetável e inalatório e novos protocolos foram sendo estabelecidos. Mais de um século depois, nos anos de 1970, graças a Iain Glen e ICI Pharmaceuticals (MAGELLA, 1990), em Mackesfield, Inglaterra, o propofol tornou-se um dos anestésicos intravenosos mais usados devido à sua ação rápida e reversível, além de ter menos efeitos colaterais que os anestésicos anteriores, como o tiopental (LASKER FOUNDATION, 2018). E já no presente século, a área anestésica foi presenteada com o desenvolvimento de novos agentes anestésicos mais seguros e com menos efeitos colaterais, como a alfaxalona (MUIR et al., 2008) e o dexmedetomidina, os quais tem permitido um melhor controle da anestesia e menor risco para os pacientes (VILLELA, 2003), elaboradas hoje, não só por pesquisadores, como por indústrias farmacêuticas, auxiliando a agilidade do progresso e fidelidade nos resultados da criação destas drogas. Toda esta evolução, quando somados à prática de combinar anestésicos intravenosos com agentes inalatórios, como o isoflurano e o sevoflurano, permite-se um controle melhor da anestesia e reduzindo a dose necessária de cada substância. Assim como os benefícios da anestesia denominada multimodal, cujo uso de múltiplos agentes analgésicos (opioides, AINEs, anestésicos locais) se tornou comum, resultando em uma abordagem mais eficaz e segura para o controle da dor (JIN E CHUNG 2001), e também reduzindo a necessidade da sedação total. (FAUST et al. 2016). Se existe algo que o estudo da anestesia veterinária pode demonstrar ano a ano, século a século, teste a teste, foi a melhoria e evolução evidentes no quesito segurança, eficácia e principalmente analgesia dos pacientes submetidos a cirurgias sejam elas quais forem. O desenvolvimento de protocolos de anestesia baseados em evidências, levando em consideração 14 o tipo de procedimento, a condição clínica do animal e os fatores de risco, melhorou significativamente a segurança. Neste contexto, a questão levantada em meio a diversidade de protocolos, é estabelecer qual protocolo seria, ou poderia ser considerado o “padrão ouro” para cada paciente de forma individualizada, e não só mais “receita de bolo” que foram e ainda são, realidade em alguns ensinos de graduação médico-veterinária. 15 3. DISCUSSÃO Dos anos primitivos até a atualidade, foram descobertas variadas formas de anestesiar um paciente, e hoje, após diversas explorações sobre dor, faz-se a escolha anestésica visando sempre optar pela melhor em cada caso, no que diz respeito à analgesia, segurança e eficácia. O manejo adequado e a escolha da técnica anestésica permitem melhor visualização do processo como um todo e dá maior segurança ao paciente. Para que sejam escolhidas de forma adequada, faz-se necessário que sejam realizados, além dos já citados exame físico e considerações de cada particularidade animal, uma bateria de exames pré-operatórios, visando principalmente evidenciar o que, até então, pode estar ‘assintomático’ no paciente. Exames de sangue e de imagem se fazem primordiais para que a escolha da técnica seja cabível ao quadro do paciente, evitando que o mesmo descompense, demonstre efeitos colaterais ou até mesmo cause o óbito do animal. As técnicas anestésicas também são definidas com base nos agentes anestésicos encontrados na medicina, tais como: anestésicos inalatórios (isoflurano, sevoflurano, halotano) anestésicos intravenosos (propofol, tiopental, alfaxalona, etomidato), analgesia multimodal (geralmente utilizando opioides: fentanil, morfina), AINEs, lidocaína, etc. e por fim, os anestésicos locais, geralmente utilizados em bloqueios regionais, uso de lidocaína, bupivacaína, etc., levando sempre em consideração o efeito de cada um e suas contraindicações. Pacientes jovens também possuem pouco tecido adiposo, o qual desempenha um papel fundamental no controle da temperatura corporal. Dessa forma, a hipotermia pode representar um fator de risco significativo, ameaçando a vida desses animais (Scarparo et al., 2020). O sistema cardiovascular apresenta uma baixa capacidade de contratilidade e complacência ventricular (Chaves, 2011), vale ressaltar que pacientes jovens necessitam de um suprimento de oxigênio mais elevado, além de terem pequenas reservas hepáticas de glicogênio, tornando- os suscetíveis à hipoglicemia (Domeneghetti et al., 2015; Laredo, 2009). A anestesia em pacientes pediátricos exige uma abordagem cuidadosa e a consideração minuciosa das doses de fármacos. Segundo Baetge & Matthews (2012) aproximados 58% da população geriátrica canina com mais de 9 anos de idade podem ter algum tipo de cardiopatia crônica, como doença valvar, diversos tipos de arritmias cardíacas e diminuição do débito cardíaco, tal qual outras comorbidades e idiossincrasias que os tornam completamente individuais, o que influencia 16 diretamente na escolha anestésica, mais uma vez demonstrando que protocolos “padrões” não podem ser estabelecidos, e que cada paciente deve possuir particularmente uma escolha adequada para o manejo anestésico. Uma das mais utilizadas e disseminadas modalidades da anestesia, talvez por sua aplicabilidade, é a anestesia dissociativa. O termo ‘anestesia dissociativa’ ou ‘cataléptica’, segundo Hall & Clarke (1983), indica um estado de analgesia e anestesia sem perda da consciência, com manutenção de reflexos protetores como o laríngeo e o faríngeo. Corroborando, Massone (1988) define anestesia dissociativa como todo ato anestésico capaz, de maneira seletiva, de dissociar o córtex cerebral, causando analgesia e "desligamento" do paciente, sem perda dos reflexos protetores. Somados ao fato de que a anestesia dissociativa pode causar hipertonia, alucinação, ativação do sistema límbico (MASSONE, 2003). Porém, anos de estudo e aprimoramento evidenciaram que a anestesia dissociativa é incapaz de fornecer analgesia adequada para os pacientes cirúrgicos. Sabe-se que a anestesia dissociativa, isoladamente, não configura anestesia cirúrgica completa. Embora, em doses elevadas, possa promover imobilidade e ausência de resposta motora a estímulos nociceptivos, sua eficácia é limitada em procedimentos que envolvam estruturas viscerais ou torácicas (Nascimento, 2019). Um exemplo clássico é a orquiectomia realizada com a associação de cetamina e xilazina, na qual, apesar da aparente ausência de movimento durante o ato cirúrgico, há indução de dor aguda significativa, com potencial para evolução à dor crônica (Gehrcke et al., 2017). Os principais agentes dissociativos empregados na clínica de pequenos animais sãoa cetamina e a tiletamina. Quando associados a agonistas adrenérgicos alfa-2, como a xilazina, são capazes de induzir anestesia geral em muitos casos. No entanto, a analgesia promovida por essa combinação é considerada insuficiente para intervenções cirúrgicas mais invasivas. De acordo com Flecknell (2009), a xilazina apresenta efeito analgésico visceral discreto, enquanto a cetamina contribui com analgesia somática; ainda assim, a eficácia analgésica da associação permanece limitada, uma vez que ambos os fármacos são classificados como analgésicos de baixa potência. As indicações para utilização de anestesia dissociativa são intervenções rápidas como extração de pinos intramedulares, pequenas suturas, retirada de dedos supranumerários, e exéreses tumorais, punções diagnosticas e amputações de membros (MASSONE, 1988). Em alguns procedimentos cirúrgicos como nas intervenções intra-abdominais e intratorácicas, a técnica anestésica utilizando somente agentes dissociativos não produz analgesia suficiente. 17 (THURMON et al, 1972, THURMON et al, 1973). Sabe-se que o uso de anestésicos dissociativos, isoladamente, não promove analgesia eficaz (HALL & CLARKE, 1983; BOOTH, 1983). Assim, nestes casos há necessidade de associação com fármacos analgésicos. É fundamental destacar que a aplicação de protocolos anestésicos inadequados ou ineficientes representa uma violação direta de uma das Cinco Liberdades do bem-estar animal, especificamente o princípio que estabelece que os animais devem estar “livres de dor e desconforto”. Um exemplo claro dessa infração é o emprego de anestesia dissociativa em cães e gatos submetidos a procedimentos eletivos que, embora rotineiros, são intrinsecamente dolorosos — como a ovariossalpingo-histerectomia (castração de fêmeas). Esse procedimento envolve manipulação e incisão de estruturas abdominais, gerando dor significativa desde o início da cirurgia até, pelo menos, quatro horas após o término do procedimento. Nascimento (2019), em estudo com quatro fêmeas felinas submetidas à histerectomia eletiva, demonstrou que o uso isolado de anestesia dissociativa, mesmo associado à administração intraperitoneal de bupivacaína como bloqueio anestésico local, não foi suficiente para garantir analgesia adequada durante o trans e o pós-operatório. A avaliação foi realizada por meio da Escala Multidimensional da Unesp-Botucatu para Avaliação da Dor Aguda Pós-Operatória em Gatos, a qual evidenciou a presença de dor em todos os animais avaliados. Apesar de estar bem estabelecido que a anestesia dissociativa deve ser reservada a procedimentos breves e com baixo potencial nociceptivo, sua utilização como protocolo anestésico "padrão" ainda é recorrente em cirurgias eletivas, especialmente em programas de castração em massa e mutirões. Tal prática se sustenta, em parte, pela carência de informação técnica acessível aos tutores e pela busca por serviços de baixo custo. No entanto, essa conduta contraria as diretrizes do Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV) e fere os princípios das boas práticas em bem-estar animal, que desde 1979 estabelece, entre as Cinco Liberdades, o direito de estar “livre de dor e desconforto” como uma prioridade ética e técnica na medicina veterinária contemporânea. Para a CEUA do Instituto de Ciências Biomédicas da USP (2020): “A anestesia dissociativa por associação apenas de cetamina e xilazina não pode ser considerada uma anestesia cirúrgica. Com doses elevadas, é possível alcançar a imobilidade do animal a ausência de resposta ao estímulo cirúrgico, mas nesse caso não ocorre a analgesia necessária para garantir o bem-estar animal, o que se agrava nos casos de cirurgias envolvendo abertura de cavidades.” 18 Ferir tais práticas é também um descumprimento do juramento solene do médico veterinário, regulamentado pela Resolução nº 1138, de 16 de dezembro de 2016, do CFMV, que cita “proteger a saúde e o bem-estar dos animais” e “prevenir e aliviar o sofrimento animal” como duas das obrigações éticas médico-veterinárias. Portanto, a escolha do regime analgésico depende não apenas da espécie de animal envolvida e da natureza, duração e intensidade da dor que poderia ser sentida, mas também da natureza do procedimento de pesquisa específico. Os cuidados pós-operatórios devem ser considerados uma extensão natural e essencial da boa prática anestésica. E técnicas retrógradas comprovadamente ineficientes para certos tipos de procedimento devem se tornar obsoletas. 19 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS A evolução da anestesiologia em cães e gatos tem sido marcada por um constante aprimoramento das técnicas e dos fármacos empregados, com ênfase crescente em segurança, eficácia e individualização dos protocolos. Desde os métodos rudimentares utilizados nas primeiras intervenções até as inovações contemporâneas impulsionadas pelo avanço científico e tecnológico, a anestesia veterinária reflete o progresso do conhecimento médico e biológico. A contínua pesquisa e o desenvolvimento de novos agentes anestésicos e estratégias de manejo promovem a expectativa de que a prática anestésica em pequenos animais se torne cada vez mais segura, eficaz e personalizada, contribuindo significativamente para a melhoria da qualidade de vida dos pacientes. Diante do atual cenário científico, no qual estudos sobre variações genéticas em cães e gatos têm possibilitado uma compreensão mais aprofundada das respostas individuais aos agentes anestésicos, torna-se inaceitável a persistência de más práticas anestésicas fundamentadas na desinformação ou na negligência. Tais condutas resultam em dor e desconforto para os pacientes e caracterizam-se como negligência, imprudência e imperícia — aspectos que devem ser tratados com rigor pelos conselhos profissionais e órgãos de fiscalização, uma vez que comprometem diretamente o bem-estar animal. Para que se alcance um padrão de excelência na anestesia veterinária, é imperativo que técnicas obsoletas sejam gradualmente substituídas por abordagens modernas e baseadas em evidências. A disseminação e a padronização dessas práticas atualizadas em escala global são fundamentais para garantir que o principal objetivo da anestesia — a promoção do bem-estar animal — seja efetivamente alcançado em todos os contextos clínicos e cirúrgicos. 20 5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALBINO. L, V. A A história de Sir Humphry Davy, o Químico Romântico. 2015. Acesso em 14 de fevereiro de 2025. BAETGE, C. L., & Matthews, N. S. (2012). Anesthesia and analgesia for geriatric veterinary patients. Veterinary Clinics: Small Animal Practice, 42(4), 643–653. https://doi.org/10.1016/j.cvsm.2012.05.001. BEDNARSKI R. M., Chapter 16 - Anesthetic Equipment, Editor(s): William W. Muir, John A.E. Hubbell, Equine Anesthesia (Second Edition), W.B. Saunders, 2009, Pages 315-331, ISBN 9781416023265, https://doi.org/10.1016/B978-1-4160-2326-5.00016-X. Acesso em 11 de fevereiro de 2025. BELTRAN, M. H. R.; Humphry Davy e as Cores dos Antigos. Química Nova. Vol. 31, No. 1, 181-186, 2008; CISA, 2017. 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