Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
ESTADO CONSTITUCIONAL1 Gustavo Zagrebelsky O léxico político de Aristóteles sempre trouxe dificuldades aos tradutores. As realidades históricas são tão mutáveis que a mesma palavra, transposta de um contexto histórico a outro, induz frequentemente a equívocos e determina interpretações incorretas ou ênfases arbitrárias. No capítulo A constituição por excelência do volume de título A filosofia política de Aristóteles2, Günther Bien recorda o quanto discutível e debatida é a tradução nas nossas línguas dos termos aristotélicos que têm na polis a raiz comum e refere a interessante notícia de que a palavra politeia é traduzida como “Estado constitucional” (Verfassungsstaat) em uma tradução alemã (Stahr) de 1839 da Politica. Pode ser que esse seja o uso mais recorrente de uma expressão que hoje já tomou lugar nos nossos estudos em um sentido que quer ser específico e quer assumir o caráter de um paradigma. Como o século XIX liberal falava de “monarquia constitucional”, não simplesmente para indicar uma constituição que acompanhava a monarquia, do mesmo modo nós hoje falamos de “estado constitucional” para exprimir algo muito mais profundo que não simplesmente o fato extrínseco de um Estado acompanhado por uma Constituição. Portanto, o uso atual da expressão é carregado de significados intencionais que aquele precedente distante, em razão do embaraço na tradução de um termo difícil, não possuía. A doutrina da constituição como ciência da cultura A idéia de “estado constitucional” como entidade com suas próprias características, distinto do “Estado de direito”, é produto de uma elaboração que devemos, sobretudo, a Peter Häberle e é um conceito que ele ajudou a construir como critério da sua doutrina da constituição como ciência cultural3. O “estado constitucional” seria, se não um modelo definido em todos os seus aspectos, ao menos um sinal preciso de orientação, germinado do vasto mundo das concepções do ser humano e da sociedade humana, dos valores, das aspirações, da sensibilidade coletiva formada e difundida por meio de experiências e comportamentos, grandes conquistas e grandes tragédias, até se impor na cultura da nossa época e do nosso mundo. Essa visão visa a uma inteligência não apenas racional, mas também emocional do nosso viver em comum: poder-se-ia dizer uma inteligência elaborada nas tensões 1 Tradução de Carlos Bastide Horbach e José Levi Mello do Amaral Júnior. Revisão de Ada Pellegrini Grinover. Colaboração de José Jesus Cazetta Junior. 2 G. Bien, Grundlegung der politischen Philosophie bei Aristoteles, Karl Alber, Freiburg-München 1973 [trad. it. La filosofia politica di Aristotele, il Mulino, Bologna 1985, p. 304, nota 4]. 3 Cfr. P. Häberle, Verfassungslehre als Kulturwissenschaft, Duncker & Humblot, Berlin 1998, poderosa coleção de reflexões e materiais dedicados à ilustração desta visão metodológica geral. entre elementos tradicionais e tendências inovadoras, imersas na cultura pluralista4 em que hoje estamos “constitucionalmente” imersos. Tal inteligência vale-se livremente, sem preconceitos teóricos e preocupações de “pureza” metodológica, de todos os dados capazes de exprimir fatores constitucional-culturais: textos das constituições, jurisprudências, doutrinas econômicas e sociais, clássicos da literatura jurídica, politológica, filosófica e utópica, obras-primas da poesia e da narrativa, da música, das artes figurativas, atos, eventos e datas históricas (exemplar o annus mirabilis 1989), etc.: tudo é potencialmente relevante, nada pode ser excluído a priori. A seleção depende não da natureza, mas da densidade de significado constitucional do ato ou do fato. O que conta é, precisamente, o resultado, o ponto de chegada e, a este propósito, nada pode ser descartado a priori. O ponto de chegada poderia ser expresso com a sequência das seguintes palavras: compreender a complexidade e iluminar os significados histórico-espirituais e histórico-políticos das formas de vida constitucional; tomar consciência das ciladas das suas implicações, ou seja, dos seus pressupostos e das suas consequências necessárias; discernir quanto é essencialmente constitucional do que é inconstitucional. Os critérios fundamentais destas operações são declaradamente buscados nos pressupostos do direito positivo. Poderia encontrar aplicação, ainda uma vez, a máxima – perdoem esta autocitação – posta ao início do meu Diritto mite: “O que é sem dúvida fundamental, por isso mesmo não pode nunca ser posto, mas deve ser sempre pressuposto”, expressão diversa para exprimir o conceito que Joseph de Maistre contrapunha ao “poder constituinte” dos revolucionários do fim do Século XVIII na França: “a razão e a experiência [...] convergem para a convicção de que tudo o que há de mais fundamental e de mais essencialmente constitucional nas leis de uma nação não poderia ser escrito”5. Os legisladores, inclusive os constitucionais (esses, aliás, mais que todos) que acreditam ser “fundadores”, ignoram que “fundam” apenas se, por sua vez, “fundam-se” sobre algo que preexiste à sua obra. Os grandes problemas do direito nunca estão nas constituições, nos códigos, nas leis, nas decisões dos juízes ou em outras expressões similares de “direito positivo” com as quais os juristas lidam, nem nunca acharam ali as suas soluções. Na determinação e, portanto, na seleção dos fundamentos culturais consiste a função de discernimento. Tarefa dos juristas é, todavia, a de ser “aequum ab iniquo separantes”, “licitum ab illicito discernentes”, segundo a celebérrima definição de Ulpiano que abre os Digesta justinianeu (D. I.I pr 1) e aqui está a função normativa da ciência do direito, função irrenunciável enquanto ela pretenda manter o seu caráter específico entre as ciências sociais. Poder-se-á alargar o olhar e afastá-lo da contemplação exclusiva do que denominamos “normas” e poder-se-á seguir a aspiração de dar conta do “ser da norma” e da sua colocação entre as estruturas espirituais e factuais que regem a sociedade. Mas este alargamento não deve acontecer em 4 Ibid., p. 5. 5 J. de Maistre, Considérations sur la France, in Id., Considérations sur la France, suivi de l’Essai sur Le principe générateur des constitutions politiques et des lettres à un gentilhomme russe sur l’Inquisition espagnole [La société nazionale, Bruxelles 1838, p. 100 ss.]. detrimento da função normativa da ciência jurídica, que não se pode reduzir a uma mera prestação de contas descritiva que renuncia a “tomar posição”. Águas incertas A doutrina da constituição como ciência da cultura leva-nos a territórios muito distantes daqueles em que tradicionalmente se movem os juristas. Em primeiro lugar, foi lançado às costas o positivismo jurídico aplicado à constituição, ou seja, o ponto de vista limitado aos atos jurídicos produtores de direito constitucional em sentido estrito e formal, selecionados com o mesmo critério das normas “sobre produção” do direito, e submetidas à interpretação segundo os métodos da tradição civilista que observam a gramática, a sintaxe, a lógica, o sistema e, às vezes, a história jurídica. A “cultura” torna-se um, talvez até mesmo, o método determinante e que “abre” o modo de entender a constituição, enquanto a doutrina clássica da interpretação pretende “fechá-lo”, delimitá-lo, para dele poder controlar os resultados, reservando-lhe as operações conceituais dos juristas. A cultura como – perdoe-se o jogo de palavras – constituição (ou fatorconstitutivo) da constituição acompanha-se assim necessariamente de uma das idéias mais criadoras e inovadoras da doutrina de Peter Häberle, a da “comunidade aberta dos intérpretes constitucionais”, onde os “intérpretes” não são apenas aqueles debruçados sobre livros de direito constitucional, mas todos aqueles que operam na dimensão da cultura e produzem resultados constitucionalmente relevantes. Esta comunidade, além do mais, é “aberta” não apenas com relação ao círculo fechado dos juristas, mas também com relação aos limites dos Estados a que pertencem: limites políticos que delimitam as esferas das respectivas ciências constitucionais, até quando se considerava a constituição o ato de força com o qual um Estado ou um povo exprimia ao máximo grau a própria identidade política, ou seja, a própria soberania. As ciências jurídicas nacionais e a sua relativa separação eram a consequência destas premissas. A comparação constitucional contribuiu para corroer progressivamente estas barreiras, mas, na sua primeira fase, as tomava como determinantes. Dada esta vocação antiestatalista e antinacionalista da doutrina da constituição como ciência da cultura, compreende-se facilmente porque o próprio Peter Häberle colecionou um número indefinível de becas doutorais honoris causa em toda parte do mundo. Mas, com o positivismo jurídico da constituição, também são ultrapassadas as teorias descritivas e os tratamentos filosóficos da constituição: teorias e tratamentos que têm os seus arquétipos, respectivamente, em Aristóteles e Platão. As teorias descritivas procedem da observação das experiências constitucionais históricas concretas, classificam-nas na medida dos seus princípios geradores e, eventualmente, formulam juízos de valor “internos”, como os de congruência, eficácia, pertinência e coerência com relação a tais princípios. As doutrinas filosóficas, ao contrário, estão em busca da “justa constituição”, fundada sobre considerações de valor “externas”, independentes da experiência concreta e deduzidas da natureza dos seres humanos e da sua sociedade, do sentido da história e de outras coisas do gênero. A constituição como produto da cultura não é direito positivo, no sentido do positivismo jurídico; não é uma teoria (apenas) descritiva e não é nem mesmo uma filosofia constitucional. Ao mesmo tempo, porém, parece ser algo das três. Não ignora, de fato, os textos jurídicos formais, pelo contrário, atribui a eles um grande significado (até mesmo aos seus enunciados, inclusive aqueles simbólicos: penso, por exemplo, o Hino à Alegria de Schiller-Beethoven do art. I-8 do projeto de Tratado constitucional europeu), não, porém, como “fontes” no sentido do positivismo jurídico, mas antes como documentos oficiais do caminho do espírito humano. Assume os seus conteúdos não de uma filosofia da justiça ou da verdade ou do social, mas de uma recapitulação dos grandes eventos histórico-espirituais que fizeram a história da humanidade. Ao mesmo tempo, porém, não é uma mera catalogação, mas, antes, uma seleção segundo critérios “constitucionais” de valor. O resultado não é uma definição, mas a enunciação acerca do que parece bom e belo, entre as experiências da humanidade, em termos de convivência entre indivíduos e povos, e é por isso merecedor de ser valorizado como elemento positivo da cultura da constituição. Considere-se esta sequência, apenas indicativa: dignidade do ser humano como premissa, tornada concreta na cultura de um povo (e, em seguida, de toda a humanidade) por meio dos direitos fundamentais; consciência da longa história da qual proviemos e esperança e vontade de criação de um futuro no sinal da continuidade, portanto uma aposta sobre o futuro da humanidade; em particular, a seguir, constituição como contrato entre os vivos e as gerações; divisão dos poderes; princípios do estado de direito e do estado social; independência da jurisdição e garantia dos direitos fundamentais; natural abertura à dimensão constitucional mundial da convivência. Falta algo? Há algo de belo e de bom que tenhamos esquecido e que deveria constar dessa linha de pensamento? Muitos entre nós, e eu entre eles, acolheram com um autêntico sentido de libertação a idéia da fundação cultural da ciência da constituição e a consequente reconsideração das características da nossa comum profissão e das tarefas que nos competem. Talvez, porém, alguns entre nós, e talvez também eu, nutramos não sem fundamento o temor de uma dilatação incondicionada dos limites da nossa reflexão. O estado constitucional, considerado à luz da ciência da constituição como ciência da cultura, não acaba por ser uma idéia indefinida e indefinível, de conteúdos e métodos potencialmente onicompreensivos, que se presta a ser incrementada com sempre novos materiais, uma idéia aparentemente ligada à história, mas, na realidade, a-histórica? Uma idéia, sobre cuja indeterminação o próprio Häberle, na introdução ao seu volume acima citado6, põe interrogações, às quais, porém, considera que não deva ser dada uma resposta a priori. Eventuais limitações postas à reflexão constitucional à luz da cultura significariam uma perda em termos de “consciência problemática”, de “possibilidade de ir à procura” e de “chances de conhecimento”, todas coisas que, vice-versa, devem ser verificadas em concreto, sem restrições no plano abstrato. Cada potencial fator constitucional-cultural deve ser submetido à prova “sachbereichsspezifisch”, ou seja, com referência específica ao singular campo de pesquisa, e apenas depois se poderá dele deduzir um juízo de relevância. 6 P. Häberle, Verfassungslehre als Kulturwissenschaft cit., p. 2-6. Dadas essas aberturas, compreende-se que não é risco apenas hipotético o que o próprio Häberle aponta – reputando-o real, porém, “apenas à primeira vista” – quando diz que um conceito amplo de “cultura” poderia degenerar em conceito cômodo ou “em branco”, capaz de explicar tudo e nada (“Gefahr, daβ ‘Kultur’ zum Alles und Nichts erklärenden Allerwelts- oder Blankettbegriff degeneriert”). Próprio à determinação dos conteúdos do “estado constitucional”, esse perigo é iminente, se é verdade que a “cultura” pode tornar a estrada aplainada para calcular entre todos eles os desenvolvimentos históricos que parecem conformes ao caminho virtuoso das formas de convivência humana. Aproximamo-nos, assim, de uma idéia otimista de “progresso constitucional”? Se sim, a teutônica “Kultur” não se transformaria implicitamente na francófona “Zivilisation” constitucional? E, se porventura, os desenvolvimentos constitucionais histórico-concretos se afastassem do “reto caminho”, como deveríamos considerá-los? Uma “incultura” a ignorar ou combater como “inconstitucional” ou como elementos de uma diversa, conquanto perversa, noção de cultura em que integrá-los? No fundo, ao “cultural” se pode facilmente aplicar a ironia de Karl Marx a propósito do “positivo” da Escola histórica do direito: “O Alemão que educa a filha como a jóia da família não é mais positivo que o Rajaputro, que a mata para se poupar do incômodo do seu sustento. Em uma palavra: a brotoeja é tão positiva quanto a pele”7. Inclusões e exclusões na doutrina da constituição Um problema para toda doutrina da constituição não curvada sobre materiais apenas formais, como são as normas escritas nos textos das constituições, é, portanto, o da escolha entre inclusões e exclusões. Por exemplo, com referência ao nosso tema, estaríamos dispostos a incluir no “estado constitucional”, segundo cultura, o imperialismo da democracia; a teorização da guerra como instrumento ordinário das relações entre os povos; a absolutização do mercado privado de regras e, portanto, dominado pela forçadesenfreada do dinheiro multiplicada pela tecnologia em que se apóia; a finalização da política e da própria cultura às puras e simples exigências do desenvolvimento econômico; o apelo direto do líder ao povo, fora das instituições da democracia liberal; a demonização dos adversários políticos como instrumento lícito nas relações entre adversários políticos; o maquiavelismo dos fins que justificam os meios, até a mentira, a fraude, a violência e a tortura; a teoria de fundo racista da superioridade de uma civilização sobre outras, com as consequências que dela se fazem derivar nas relações sociais e políticas, e outras coisas deste gênero que encontram todas facilmente, muito facilmente, quem lhes dê uma base “cultural”? Se não estivermos dispostos a incluir tudo isso na “cultura” e, portanto, no estado constitucional do ponto de vista de uma doutrina constitucional, é porque não nos furtamos às escolhas fundamentais de valor e desejamos defender uma certa idéia, uma certa cultura da constituição, de outras certas idéias e culturas. 7 K. Marx, Il manifesto filosofico della scuola storica del diritto, in Id., Scritti politici giovanili, a cura di L. Firpo, Einaudi, Torino, 1950, p. 60 (para a citação completa da passagem, cf. Zagrebelsky, Gustavo. Intorno alla legge, Turim: Einaudi, 2009, p. 211, nota 60). Nota do tradutor: Marx refere-se a um velho costume dos rajaputros, membros de casta nobre de guerreiros da Índia. A escolha entre inclusões e exclusões é por isso inevitável. A constituição pode desdobrar a sua função “constitutiva” apenas em condição de diferenciar e, portanto, de operar opções. Aqui poderão estar concepções da constituição mais ou menos abertas, mas a inclusão indiferenciada de qualquer matéria a tornaria irreconhecível. Reduzir-se- ia a uma descrição privada de vigor, inútil com relação à sua função ordenadora. Também a doutrina da constituição segundo a cultura se manifesta assim, em primeiro lugar, como um ideal – ou, para quem dele não comunga – como uma ideologia constitucional. Um elemento axiológico, ou seja, prescritivo, em cada teoria da constituição é, portanto, necessário. Consideremos os nossos clássicos. Não há um único, creio – nem mesmo aquele que mais teorizou a neutralidade axiológica da ciência jurídica – do qual não se possa dizer que a sua teoria constitucional não fosse militante. Todavia, existe, ainda assim, uma diferença entre uma teoria e uma filosofia ou doutrina política da constituição. A primeira aceita na base dados constitucionais histórico-concretos. A sua tarefa é relativa a eles: compreendê-los, colocá-los em ordem; indicar as condições e as consequências de tal ordem, ou seja, precisamente, “teorizá-los”, bem como nisso apontar aporias e dificuldades e, eventualmente, indicar as soluções para evitar ou sair das contradições que podem determinar a crise e o desmoronamento. As filosofias e as doutrinas da constituição prescindem de tudo isso porque a tarefa delas é indicar ideais constitucionais e, eventualmente, as vias para realizá-los. É necessário, porém, abster-se de traçar limites práticos muito claros. Teoria e doutrina podem se encontrar e, com efeito, frequentemente se encontram. A teoria se faz doutrina quanto mais assume a constituição que existe como constituição que deve existir, ou seja, quando tende a se tornar apologia da constituição; ou, ao contrário, a doutrina se faz teoria quando, abandonando as praias serenas, mas estéreis, da utopia, torna-se critério de ação histórica concreta. Quanto mais o critério é realista, ou seja, quanto mais as suas proposições se aproximam à definição de algo que já se está realizando, correspondendo aos modos distintivos da realidade que se vai fazendo, menos fácil é distinguir teoria da doutrina constitucional. Porém, conquanto os lados possam se aproximar, a diferença essencial permanece. Ora, porém, a dúvida é que a só referência à “cultura” seja insuficiente para delimitar e defender um discurso sobre a constituição como teoria da constituição. Uma vez que, aqui, podemos encontrar de tudo – nenhuma época histórica conhece uma cultura constitucional monolítica, já que essa é por definição o objeto de disputa pela hegemonia entre forças desmedidas, que se valem de instrumentos de influência de todo tipo, aberta e dissimulada, interessada e desinteressada – a ciência “cultural” da constituição corre o risco de se tornar simples cobertura do status quo e dos poderes que o determinam, ou propaganda de parte e, assim, desintegrar-se e de perder a capacidade de formular discursos dotados de significado geral e, portanto, propriamente constitucionais. Um esclarecimento acerca do uso da “cultura” nos discursos sobre a constituição é, portanto, necessário. Tese: a fundação nas características do momento histórico constitucional Na medida em que a teoria da constituição deve permanecer ancorada ao seu objeto, um objeto do mundo das concretas experiências da vida social, o apelo à cultura como seu fundamento deve, portanto, especificar-se. Certamente, também, a cultura, em todos os seus conteúdos, é um conjunto de experiências concretas. Mas nós, como juristas e constitucionalistas (e não, por exemplo, como poetas ou filósofos), não lidamos com a cultura entendida como “experiência humana”, experiência múltipla das muitas possibilidades que cada um pode buscar frutificar por si mesmo, mas com a dura realidade das experiências coletivas, determinadas historicamente. Por isso, a consideração da ciência constitucional do ponto de vista da cultura deve focalizar-se sobre características essenciais da situação constitucional, de que nós, como indivíduos, mas sendo atores dela, somos transcendentes e condicionados. Nessa tensão em concreto, a referência à cultura encontra a sua limitação, mas também o seu valor constitucional. Qualquer teoria da constituição pressupõe que se tome consciência das características da realidade constitucional a que se refere. Isso implica que os elementos materiais particulares sejam organizados em um conceito e este conceito servirá como um focus que indica o elemento essencial, que vale para compreender todos os outros e para dar a eles um sentido com relação ao conjunto, um sentido que de outra forma não teria. Se o focus é inadequado ou desfocado, com relação à realidade, não se poderá construir nenhuma teoria constitucional. Em particular, com atenção à doutrina da constituição como ciência da cultura, não se terão à disposição critérios objetivos para aquela obra de discernimento, sem a qual cada um faria aquilo que bem lhe aprouvesse, com pouca ou nenhuma utilidade; sem a qual a cultura da constituição seria destinada a se perder na mistificação, no engano, na evasão utópica e na alienação aos problemas reais. Cultura constitucional e consciência do momento constitucional histórico concreto, portanto, para responder à pergunta, óbvia e não iludível: cultura do quê? Da constituição. Mas de qual constituição? A constituição do pluralismo O ponto de contato mais fecundo da teoria do estado constitucional, a sua condição histórico-material fundamental, é, hoje, a democracia pluralista. A existência de uma constituição, como conjunto de princípios que se diferenciam sob diversos aspectos das normas ordinárias – a constituição que chamamos “rígida” – não é uma invenção de juristas preocupados em completar o edifício do estado de direito legislativo com um ulterior nível de legalidade, a legalidade constitucional, capaz de se impor também ao legislador. Ela é simplesmente uma conceituação teórica (como veremos, incompleta e, por isso, enganosa). A constituição rígida é o resultado de forças múltiplas pertencentes àstrês dimensões da vida social: política, econômica e cultural, as quais, por ausência de uma dominante, são obrigadas a buscar um equilíbrio entre si, por meio de compromissos. O estado constitucional encontra a sua força na fraqueza relativa dos sujeitos constitucionais que o sustentam. Podemos definir o pluralismo como a condição em que se desenvolvem as sociedades compostas, onde, porém, as divisões entre as partes não alcançam um grau de tensões tal a tornar impossível o compromisso. Esta definição é muito rica de conteúdo. a) Em primeiro lugar, ela nos remete à exigência de um “espaço constitucional” definido, em que operam instituições dotadas de jurisdição de amplitude correspondente. As tensões são constitutivas do estado constitucional, mas ele não pode ganhar corpo se não possuir um ambiente comum em que se conectar e entrelaçar. A ausência de limites institucionalizados torna realmente inimaginável a dimensão constitucional, como ocorre na situação atual de evasão de poderes econômicos, políticos e culturais das dimensões determinadas pelas instituições, nacionais ou supranacionais, que determinam um espaço comum: situação que se denomina “globalização” ou “mundialização”, dois termos que significam, por ora, o contrário de constituição. b) Em segundo lugar, é necessário que os conflitos não alcancem o ponto de ruptura insanável, além do qual há a discórdia ou, para usar um termo da Grécia clássica, a stasis8. Concretamente, a condição para que os contrastes não degenerem em conflitos é a articulação dos poderes sociais e aqui se manifesta a relação imprescindível entre estado constitucional e pluralismo. c) A contenção das tensões está ligada ao número três (ao menos três), o número santo do direito constitucional. O pluralismo não é dualismo. O número dois é um número subversivo e opressivo: ele contém a oscilação entre o embate para o aniquilamento da outra parte (como foi à época das “monarquias constitucionais” do século XIX ou à época do conflito de classe na segunda parte do século XIX e no seguinte) e a associação unitária (frente a perigos externos, como o perigo proletário para a monarquia e a burguesia do século XIX). Não é possível aqui uma reflexão sobre números no direito constitucional: aqui basta observar que o número um é aquele do poder monolítico, que é constituição de si mesmo e não tem necessidade de uma constituição externa; o número dois, ou se reduz a um ou leva ao embate destrutivo, enquanto o três é o número da coexistência dinâmica entre as partes: coexistência, porque cada uma delas tem interesse na existência das outras duas (daí não estar envolvida, em suma, em um embate dual de êxito incerto); dinâmica, porque o três consente competições e alianças variáveis entre as partes. O pluralismo não é, todavia, apenas um dado de grande parte das nossas sociedades. É também um dado interno a cada um de nós. O ser humano das sociedades desenvolvidas do século XXI tornou-se complicado. Desejamos tantas coisas e, frequentemente, coisas que, tomadas de modo absoluto, seriam incompatíveis umas com as outras. Também a nossa psique deve ser constitucionalizada entre as diversas tendências que a submetem a tensões: desejamos liberdade e igualdade; segurança e garantias; amor e justiça; rigor e piedade; sociabilidade e solidão; etc. Deve-se encontrar em si um equilíbrio que não sacrifique nada de essencial para si. O pluralismo 8 Nota do tradutor: a polis pressupõe o entendimento em ambiente de paz; a stasis, em apertada síntese, é a situação oposta, de negação daquele pressuposto. constitucional reflete-se, assim, no pluralismo da consciência individual, que se predispõe à coexistência e ao compromisso. Pluralismo e constituição Pluralismo e constituição implicam-se entre si. O dualismo monárquico-burguês produziu as efêmeras constituições do constitucionalismo liberal do século XIX. O pluralismo do século XX produziu as constituições democráticas contemporâneas. Somente essas últimas, contudo, são constituições vitais no sentido pleno da palavra. As primeiras, embora consistindo em documentos formalmente diferenciados e, às vezes, dotados de “cláusulas de eternidade”, revelaram-se, como não poderia deixar de ser, estruturalmente inidôneas a valer como constituições: o seu equilíbrio não podia ser mantido e, de fato, ou foram atropeladas pelas restaurações monárquicas ou se simplificaram a favor do predomínio burguês. Elas traziam dentro de si o germe que as tornaria irreconhecíveis, ainda que, aliás, principalmente, quando mantidas há muito tempo formalmente em vigor. Sobretudo, faltava-lhes o pressuposto para que pudessem ser submetidas a uma garantia colocada fora das relações de força entre as duas partes. Uma constituição sem uma base pluralista que permita a produção de forças homeostáticas de equilíbrio (a autêntica garantia constitucional material) e, depois, como é da natureza da coisa, favoreça o surgimento de formas de garantia junto a órgãos de justiça constitucional (a garantia constitucional formal), é apenas uma tentativa, é um (novo) início de uma controvérsia constitucional com relação à qual ela se limita a aferir as forças em campo. A natureza da constituição como compromisso A constituição do pluralismo é essencialmente um compromisso garantido pela sua rigidez. Como se exprime tal compromisso? Por meio de normas de princípio que correspondem aos valores de cada uma das partes da sociedade que tomam parte no compromisso. Junto às regras que disciplinam analiticamente as relações entre os órgãos do Estado (corpo eleitoral, parlamentos, governos, chefes de Estado, magistraturas, etc.), onde o compromisso se realiza, sobretudo, por meio de sempre novas instâncias de garantia contra a onipotência das maiorias, multiplicam-se as normas que contêm princípios de orientação, que deverão ser depois especificados nos diversos âmbitos da vida social regulados pelo direito (dignidade humana, democracia, vida, liberdade, segurança, paz, justiça social, igualdade, solidariedade, bem comum, pluralismo, legalidade e proporcionalidade- razoabilidade-racionalidade do direito, uso não abusivo do direito, etc.), princípios que às vezes expressam exigências contrastantes (a liberdade de imprensa, mas a integridade do ambiente; o mercado, mas os direitos coletivos dos trabalhadores; o direito de propriedade, mas a função social da mesma propriedade; os direitos orgânicos, mas os direitos individuais, por exemplo, na família). Os próprios direitos fundamentais são, no mais das vezes, enunciados por meio de normas de princípio ou, ao menos, são interpretados como se fossem normas de princípio. Daí se pode dizer que a parte organizativa e procedimental da constituição contém principalmente regras (ainda que não exclusivamente: lembre-se dos “princípios” do estado de direito, da separação dos poderes, da subsidiariedade, da cooperação leal, etc.); a parte material, em que convergem as aspirações constitucionais das forças em campo, é, ao invés, composta essencialmente de princípios. Essa dimensão de princípio da constituição é frequentemente objeto de críticas por parte de quem dela lamenta o defeito de normatividade no sentido do positivismo jurídico. Os princípios são normas em um sentido particular e, de fato, nos últimos tempos, sob o plano da concepção do direito, se contrapôs ao “normativismo” o “principialismo”. Os princípios não se prestam, de fato, às rotineiras operações de interpretação e aplicação, ou seja, à subsunção e ao raciocínio silogístico, pela simples razão de que eles são normas sem fattispecie. Mas os lamentos são estéreis porque eles são o instrumento necessário do compromisso constitucional.Entre partes que se movem de posições diversas, o consenso pode ser obtido elevando-se o grau de abstração das proposições sobre as quais se acordar. Além disso, os princípios – embora não sendo de todo aquelas inúteis dilações léxicas dos problemas, segundo a incompreensão que foi de Carl Schmitt – remetem a um momento sucessivo a sua determinação concreta: dois aspectos dos princípios, tudo menos irrelevantes, em vista do compromisso que a situação constitucional pluralista requer. Pluralismo e principialismo são os dois lados (o social e o jurídico) da mesma moeda. Tudo isso é denso de significados, além da constituição, para a concepção do direito em geral. A re-moralização do direito Uma vez que os princípios constitucionais são fórmulas sintéticas que remetem a valores que normalmente o direito não define, mas assume da esfera da moral, a constituição introduz no ordenamento jurídico elementos que o positivismo jurídico das regras não apenas não compreendia, mas combatia como invasões de campo. Com referência aos princípios constitucionais, falou-se de re- moralização do direito: “re” ou nova moralização, com relação aos tempos do direito natural. O caso contemporâneo não é, porém, definível pura e simplesmente como um enésimo renascimento do direito natural. Não se trata de conceber uma esfera do direito vigente pré-positivo (aquele que dele seja a origem: a ordem divina impressa nas coisas, a “natureza das coisas”, a razão, a revelação de Deus, etc.); o direito é, ainda assim, direito positivo: o que as gerações dos seres humanos desejam e decidem que seja. Mas uma coisa é a estatuição direta, outra é a indireta, que opera reenvios a algo que está fora da sua determinação específica positiva, em uma esfera que lida com a filosofia moral e com a filosofia política. Examinemos as argumentações dos nossos Tribunais constitucionais: quando eles tratam grandes questões (por exemplo, aquelas relativas aos status das pessoas, aos problemas do nascimento, da vida e da morte), elas se assemelham mais a dissertações de justiça material que a demonstrações de direito positivo. A invocação de um princípio escrito na constituição é frequentemente apenas o modo para abrir uma discussão que se coloca em outro lugar. Nos autos dos juízes constitucionais encontram lugar não apenas as opiniões dos juristas, mas também as discussões entre filósofos morais. Se a natureza real dos problemas nem sempre emerge com clareza, é apenas porque fica ocultada – poder-se-ia dizer: por pudor positivista – atrás de argumentos jurídicos “técnicos”, de fachada. Essa conotação do direito pode agradar aos que refutam a positivista separação rigorosa do direito de toda instância moral ou justiça substancial; e pode não agradar a quantos temem, não injustificadamente, que em tal modo, ao invés de enquadrar e, portanto, delimitar a argumentação jurídica, acaba-se por abrir as portas a um embate ilimitado entre concepções de mundo. Com efeito, em si mesma, a invocação aos grandes princípios introduz na discussão jurídica as suas diversas concepções. Lembre- se da dignidade humana. Um tomista dela terá uma idéia, um iluminista, outra; um organicista, uma; um individualista, outra. Ou, lembre-se das questões que concernem à vida: quem pensa que seja um dom de Deus, que dela é o dono, combaterá ferozmente quem pensa, ao invés, que seja propriedade do ser humano, que não deve responder a outro que não a si próprio; quem pensa que seja um bem social combaterá quem julga, ao invés, que seja um dado pertencente à esfera privada individual. As consequências sobre assuntos como o aborto, a eutanásia, a experimentação científica, a manipulação e as intervenções sobre o genoma humano, etc., são claras a todos. Por outro lado, na medida em que se tenha consciência das dificuldades, essas não poderiam constituir a razão para recusar a influência que os princípios constitucionais exercem sobre o ordenamento jurídico inteiro. Isso poderia acontecer apenas procurando privar os princípios constitucionais de caráter jurídico, para relegá- los – como se fossem simples preâmbulos de boas intenções – ao campo das aspirações devotadas que cada um de nós pode nutrir segundo os próprios sonhos e desejos. Isso aconteceu nos primeiros anos de vigência da Constituição atual9, quando a jurisprudência havia “rebaixado” as normas de princípios a simples programas endereçados ao legislador, se e quando esse entendesse de atuá-los, e uma tendência similar emerge hoje, para contestar decisões judiciárias que não agradam, que dos princípios extraem, diretamente, regras em setores sobre os quais a sensibilidade moral é muito elevada (por exemplo, em tema de bioética). Todavia, uma vez que a inscrição dos princípios nas Cartas constitucionais é direta consequência do caráter pluralista do estado constitucional, a nulificação dos princípios equivaleria nada menos que à contradição da sua promessa, para instaurar um poder ordenador de uma só dimensão. Daí, a conclusão que o “direito pelos princípios” e as dificuldades que dele derivam não são, hoje, uma escolha nossa, mas uma necessidade com a qual devemos conviver, buscando a melhor convivência. Constituição que vem de baixo Mortificou-se o significado da constituição rígida quando dele se absorveu o significado na concepção gradualista do ordenamento jurídico, ou seja, quando se acrescentou um degrau a mais, o mais alto, ao edifício jurídico que o princípio da legalidade do século liberal nos legou e sobre este degrau hiper-legal se colocou a constituição. Que a constituição organiza os procedimentos 9 Nota do tradutor: Constituição italiana de 27 de dezembro de 1947. normativos é um dado de fato. Mas que os princípios constitucionais exprimem o conteúdo de uma vontade normativa preexistente e pressuposta à legislação, uma vontade que, como o raio na mão do Júpiter tonante, cala e se impõe de cima para baixo, parece ser o resíduo de uma concepção monárquica da ordem constitucional: uma concepção que se poderia dizer adequada para descrever a realidade apenas à impossível condição de que o estado constitucional conheça uma autoridade capaz de desejar e dispor antes e independentemente da constituição, uma autoridade capaz, precisamente, de impor a constituição como norma mais alta no vértice do ordenamento que ela institui. Mas o pluralismo constitucional é exatamente o oposto dessa autoridade monárquica. Ele é radicalmente inconciliável com a idéia de um poder supremo, preexistente à constituição, esteja ele nas mãos de um monarca autocrático que concede a constituição (como no século XIX) ou nas mãos de um povo que decide unitária e soberanamente sobre si próprio (segundo a concepção “decisionista” da verfassungsgebende Gewalt des Volkes). Esta concepção de cima para baixo da dinâmica constitucional desconhece e obscurece a circunstância essencial que a constituição rígida, a respeito da função do pluralismo, é expressão de um movimento contrário: não de cima para baixo, garantido por uma força soberana que impõe a sua ordem constitucional, mas de baixo para cima, promovido pela convergência de forças radicadas na sociedade, nenhuma das quais por si só decisiva, as quais se reconhecem mutuamente o direito de participar da obra constitucional. A constituição nasce deste reconhecimento recíproco que cria a base consensual da constituição e é o oposto de um ato de império soberano. Daí, como não existe uma autoridade política que impõe unitariamente do alto a sua vontade, assim também da constituição deve dizer-se que ela não está absolutamente no vértice do ordenamento jurídico, como norma suprema que reflete a unidade pressuposta de um poder soberano, mas estáà base, como tecido de princípios por meio dos quais a pluralidade de sujeitos constituintes exprime as condições da convivência. Dizer da constituição norma soberana, significa dizer constituição monárquica; ao estado constitucional do pluralismo antes convém a constituição como norma fundamental: a primeira é colocada no vértice e pressupõe a unidade como dado, a segunda é colocada na base e aponta a unidade como uma tarefa, melhor: como a tarefa a cumprir. Enquanto a constituição como norma soberana pode reger-se sob a força ordenadora do sujeito soberano que a exprime, assim não é para a constituição como norma fundamental colocada à base. Ela pode reger-se apenas pelo consenso das partes: o consenso sobre o conjunto que deriva da aceitação dos princípios sustentados pelas outras partes, como condição para a afirmação (também) dos próprios. Eis porque a constituição do estado constitucional pluralista é uma intersecção sempre problemática de lealdades recíprocas que deve ser alimentada constantemente por atitudes de disponibilidade com relação às razões alheias. A animação dos casos O positivismo jurídico legalista, em todas as suas formas, baseia-se sobre a mais nítida separação entre direito e fato, entre fattispecie normativa e fattispecie concreta. É uma aplicação da grande dicotomia que divide o reino do dever ser do reino do ser. Os fatos que caem sob o juízo das normas devem ser concebidos como material inerte: precisamente “meros fatos”. Essa rígida separação age como fundo à teoria da aplicação do direito como “subsunção” ou como “silogismo prático” e, no mesmo sentido, poder-se-ia recordar imagens menos técnicas, porém mais sugestivas, como aquela do direito como teia de aranha que captura quem nela cai (Diogene Laerzio), ou aquela do poderoso “polvo jurídico” (Rudolf Jhering), ou como as concepções matemáticas do direito10. Essas concepções da “vida do direito” pressupõem que as normas jurídicas sejam “regras”, adaptáveis ao esquema kelseniano: se é a, deve ser b. Quando o direito é, ao invés, “princípio”, tudo muda. Também a este propósito – a diferença entre regra e princípio – é impossível que se exponha como seria oportuno11. É suficiente observar que os princípios, sendo normas sem menção a específicos fatos da vida (fattispecie), indicam essencialmente perspectivas de sentido e de valor e, enfim, requerem não obediência passiva, mas adesão. Quem adere a um princípio se dispõe a considerar os fatos da vida da perspectiva que o princípio indica. O princípio indica uma inclinação espiritual dirigida à compreensão do sentido e do valor dos fatos sociais e disso deriva uma inclinação à ação. Portanto, em um “direito por princípios” os fatos são iluminados e animados, tornam-se “casos problemáticos” que levantam perguntas, enquanto em um “direito por regras” se pode raciocinar como se eles fossem meros acontecimentos. Poderíamos dar muitos exemplos de como os princípios operam, em primeiro lugar, ao iluminar de sentido e de valor os fatos. Os mais esclarecedores consideram os “casos novos”, como aqueles que nascem da aplicação da tecnologia biomédica aos eventos do nascimento, da vida e da morte. Também aqui, porém, é necessário nos conter, bastando observar que, deste modo, arrombam-se as premissas do positivismo jurídico legalista, seja também não por uma razão teorética que contradiga a lei da impossibilidade de inferir normas de fatos (os fatos continuam a ser fatos e as normas, normas), mas por uma razão que considera a natureza do material normativo (princípios ao invés de regras) com que se constrói, dos seus fundamentos, o ordenamento jurídico: os fatos, enquanto sejam considerados à luz de princípios, tornam-se “casos problemáticos” que exprimem sentido e valor e exigem ser regulados de modo conforme. Esse é o terreno mais favorável para que a hermenêutica jurídica possa se desenvolver e destituir as concepções tradicionais da interpretação jurídica, unilateral e “de cima para baixo”, da norma ao fato. A valorização do caso e a sua animação colocam inevitavelmente em movimento o “círculo hermenêutico”, ou seja, a interrogação do ordenamento jurídico a partir do caso a decidir e das suas exigências normativas, determinadas na medida dos princípios envolvidos: uma atividade de interrogação na qual todos os instrumentos da interpretação jurídica são chamados a 10 Leibniz, principalmente: Zagrebelsky, Intorno alla legge...,p. 13. 11 Cf., todavia, Zagrebelsky, Intorno alla legge..., p. 92 e ss. operar, em uma perspectiva completamente diversa da tradicional. Não se trata, de fato, de determinar a exata interpretação, na medida do ordenamento, considerado como conjunto de normas autossuficientes; trata-se, ao invés, de individualizar a norma mais adequada para resolver o caso, sem forçar as suas características de sentido e de valor. Quando o círculo hermenêutico não se fecha e a hermenêutica do ordenamento falha em seu propósito, o estado constitucional fornece o instrumento para sair do impasse: a anulação ou a declaração de nulidade da norma legislativa inadequada, nas formas previstas pelos diversos sistemas de justiça constitucional. Não nos deixemos confundir pela aparente complicação e consideremos o relevo que sempre, quando se lida com os princípios, assumem os casos na avaliação da legitimidade da regra: a relação não é a dois: princípio-regra, mas a três: princípio-caso- regra. De resto, o simples confronto entre um princípio e uma regra não poderia conduzir, por si só, a nenhum juízo conclusivo de compatibilidade ou incompatibilidade entre eles, pela evidente heterogeneidade dos termos colocados em confronto. Disso, não nos damos conta, normalmente. Tende-se a ocultar a influência do caso nas escolhas interpretativas, por um tipo de pudor metodológico que é um legado do positivismo legislativo, frequentemente ativo no inconsciente dos juristas. Porém, refletindo bem, perceberemos que em todas as “questões de princípio” tanto quanto ou mais importante que a consideração do princípio em si é a apreciação do caso concreto: é nesta avaliação que mais frequentemente as opiniões se dividem, ao procurar depois a regra que faz o caso do “caso”. Uma certa conotação casuística introduz-se na vida do direito e esse é um dado que pode não agradar, pelas consequências que dele podem derivar, quanto à certeza e previsibilidade das operações de aplicação do direito. Porém, não é fechando os olhos frente à realidade que se pode pensar em exorcizar os aspectos menos satisfatórios. O equilíbrio dos princípios Em todo contexto constitucional pluralista, os princípios constitucionais são numerosos e, por isso, devem ser combinados entre si, quando – como frequentemente acontece – a absolutização de um implicaria a nulificação de todos os outros. Ademais, deve-se considerar que normalmente as constituições não determinam hierarquia entre os princípios. Compreende-se que alguns deles tenham valor constitutivo do próprio complexo social e, portanto, tenham valor absoluto, considerando todos do mesmo modo (a dignidade humana, a democracia, etc.), enquanto outros correspondem a ideais políticos relativos. Estes últimos não são, em regra, colocados em uma escala de valor, uma vez que isso implicaria juízos de preferência que corresponderiam, além das normas constitucionais, a uma hierarquia política e social incompatível com o pluralismo. O pluralismo dos princípios e a ausência de hierarquia têm consequências importantes sobre a estrutura das operações de natureza jurídico-constitucional. Em todas as questões de direito, em que está envolvido mais de um princípio, a tradicional lógica jurídica linear e vertical (ex principiis derivationes)é substituída por uma arte compositiva horizontal. Trata-se de determinar, em primeiro lugar, quais são os princípios envolvidos em um caso controverso; sobre a base deste reconhecimento, podem ser determinadas as soluções, sendo claro que nenhum dos princípios poderá encontrar aplicação integral, uma vez que é preciso que seja deixado espaço aos outros. Com efeito, como foi bem mostrado por Ronald Dworkin12, o que chamamos princípio distingue-se do que chamamos regra precisamente no seguinte: as regras exigem uma aplicação integral, os princípios, ao invés, podem ser relativizados nos confrontos de uns com os outros, por meio da “ponderação”, do “balanceamento”. Essas operações dificilmente são concebíveis como expressão de uma lógica formal, segundo uma ciência fundada sobre o princípio de não-contradição. A scientia iuris, conquanto relativa à constituição, deve, assim, muito frequentemente, deixar o passo à iuris prudentia, uma atividade de que é, talvez, impossível preestabelecer as regras. Este ponto poderia ser aprofundado mais do que se pode fazer nesta oportunidade. Pode-se apenas dizer que, no direito do estado constitucional, a pluralidade dos princípios não pode ser concebida como um conjunto de contradições a serem eliminadas com decisões seletivas e simplificadoras. As contradições são a alma do estado constitucional e as tensões que delas derivam devem ser atenuadas por meio de complexos, difíceis e sempre revisáveis “compromissos práticos”. Resta, todavia, uma diferença entre a decisão confiada ao legislador e a que toca aos Tribunais constitucionais, o primeiro no desenvolvimento da constituição, os segundos na sua aplicação às controvérsias constitucionais. A relação entre os princípios constitucionais, na ausência de hierarquia e de qualquer outro critério de ordem entre eles, não é predeterminado de modo tal que a lei possa conceber-se como simples execução da constituição. A liberdade da política colidiria com uma visão tão rígida e limitadora da legislação. Ao contrário, a constituição pluralista, não prefigurando uma ordem determinada, oferece ao legislador possibilidades sempre abertas de intervenção, para deslocar os acentos e os pesos, entre os princípios que estão em jogo. Esse é, precisamente, o campo reservado à política e à competição entre as forças que se enfrentam pelo governo da sociedade e isso constitui uma explicação para a instabilidade das leis nos sistemas constitucionais onde não domina um só princípio, mas muitos princípios estão em relação entre si e nenhum pode se impor definitivamente sobre os outros. Os Tribunais constitucionais que controlam a legislação têm uma outra tarefa: verificar a plausibilidade dos equilíbrios sancionados pelas leis, destruí-los, eventualmente, mas sem se substituir ao legislador. Na doutrina e na jurisprudência constitucionais discute-se a razoabilidade, racionalidade, proporcionalidade, maximização dos benefícios, minimização dos custos, etc., e foram construídos vários test lógicos para verificação de tal plausibilidade, por meio de etapas progressivas de penetração do controle (na Alemanha federal, no Canadá e em Israel, por exemplo: se o interesse perseguido pelo legislador tem dignidade constitucional; se a limitação de um princípio pode ser defendida com base em um outro princípio constitucional; se o sacrifício imposto a um princípio é estritamente necessário para dar 12 Zagrebelsky, Intorno alla legge..., p. 102 e ss. espaço a um outro; se não existem outros modos de alcançar o fim desejado pelo legislador, com menor prejuízo dos princípios constitucionais, etc.). Em todo caso, não compete a eles substituir com novos compromissos aqueles previstos pelo legislador. A pluralidade dos princípios constitucionais, contra o que parece, deve representar para os juízes constitucionais um entrave ao seu intervencionismo. Compete-lhes, em linha de máxima, destruir, não reconstruir, sendo a reconstrução a tarefa que deve ser deixada ao trabalho do legislador13. Cada solução dos casos constitucionais multifacetados, ou seja, que implicam vários princípios constitucionais, não poderá deixar de frustrar quem se inspira em uma lógica simples e linear. Em primeiro lugar, quem busca uma prova, achará apenas argumentos discutíveis. Em segundo lugar, poderá ter a impressão de que a argumentação constitucional seja um perigoso desvencilhar-se entre obstáculos que devem ser evitados, antes que um seguro ancoradouro para argumentos que não admitem dúvidas. Enfim, sentirá, às vezes, a tortuosidade da argumentação que poderá parecer (e às vezes também será efetivamente) um modo de fisgar a simpatia ou a credulidade do público, de que se busca o favor. Os juízes que lidam com princípios múltiplos, para quem crê que é necessário inspirar-se em princípios simples, parecerão perigosos equilibristas que, ao invés de defender a objetividade do direito a que estão sujeitos, buscam apenas chegar ao término da caminhada sem quebrar o pescoço, desvencilhando-se entre as dificuldades. Constituição e cultura constitucional Começamos pela doutrina da constituição como ciência da cultura de Peter Häberle. Retornamos ao ponto de partida, colocando a pergunta: sobre o que se fundam as constituições do estado constitucional pluralista? No curso dessa exposição, apresentou-se a distinção entre constituições monárquicas e constituições pluralistas, uma distinção que, no momento atual, é muito mais útil que muitas outras correntes entre os constitucionalistas. As constituições monárquicas fundam-se sobre o poder, ou melhor: sobre um poder que exercita constrições não contestáveis. No celebérrimo discurso que Ivan Karamazov coloca na boca do Grande Inquisidor, Fëdor Dostoevskij inspira-se nas três tentações de Cristo no deserto (Mt 4, 1-11; Lc 4, 1-13) para esclarecer a tríplice natureza do poder constritivo, força, pão, milagre: “...em três palavras, em apenas três frases humanas, toda a história futura do mundo e da humanidade: o que pensas Tu, que toda a sabedoria da terra, reunida em conjunto, conseguiria excogitar algo comparável, em força e profundidade, àquelas três perguntas que realmente foram propostas a Ti, naquele dia, pelo poderoso espírito do deserto? ... Nessas três perguntas, está como que resumida em bloco e predita toda a futura história humana, e são reveladas as três formas típicas que estão no âmago de todas as irredutíveis contradições históricas da natureza humana em toda a terra” (Os irmãos Karamazov, parte II, cap. V). O poder de que se fala nesta passagem é 13 Nota do tradutor: no Direito italiano, as decisões da Corte Constitucional não esgotam todos os juízos constitucionais possíveis sobre a matéria julgada. aquele que se manifesta por meio de constrição, constrição derivada da violência física, da necessidade material, do controle ideológico das consciências ou das três coisas em conjunto. Tudo isso é monárquico. As constituições monárquicas fundam-se sobre uma força soberana. A Grundnorm da nossa ciência da constituição – o ordenamento legítimo é aquele efetivo – é simples ornamentação do direito do mais forte. Hans Kelsen14 disse, a propósito da “eterna questão” do que está por detrás do direito positivo: “Quem busca a resposta – temo – não encontrará nem a absoluta verdade de uma metafísica nem a absoluta justiça de um direito natural. Quem levanta o véu e não fecha os olhos, depara-se com a cabeça da Górgona da força.” Porém, nassituações pluralistas, muito há de mudar na consideração das coisas. O pluralismo constitucional não é simplesmente uma variante entre tantas do poder soberano. É uma modificação de paradigma que coloca em discussão as certezas adquiridas. Por definição, a sua Grundnorm não pode contemplar um poder soberano como dado a priori: o ordenamento legítimo é ainda o efetivo, mas o princípio material em que a efetividade encontra a sua substância e do qual ela extrai a sua legitimidade, não é o poder, mas a coexistência. Este princípio, no que concerne ao ordenamento jurídico, pode exprimir-se assim: legítimo é o ordenamento que efetivamente garante o pluralismo dos princípios (com exceção daqueles radicalmente não integráveis com os outros); no que concerne à organização política, aquele mesmo princípio pode, ao invés, exprimir-se assim: legítimo é o ordenamento que efetivamente garante um leal e sempre aberto confronto entre todas as posições (com exceção das posições daqueles que se propõem subjugar os outros). Ora, sobre o que pode fundar-se a garantia efetiva do pluralismo? Qual é a força sobre a qual pode reger-se semelhante constituição do pluralismo? Certamente, não sobre uma força, no mesmo sentido das constituições monárquicas. Aqui vem a resposta eticamente exigente, incompatível com a aquiescência generalizada ao poder que é a aspiração principal de toda constituição monárquica: esta força não pode ser outra senão aquela que vem da adesão ativa e generalizada a um tipo de convivência em que haja lugar para todos, baseada no reconhecimento recíproco dos direitos de todos. Uma cultura, portanto, adequada ao convivium. A doutrina da constituição como ciência da cultura é, em breve, a resposta teórica às exigências do pluralismo, organizado no “estado constitucional”. Também poderíamos nos perguntar do que se alimenta essa cultura, induzindo- nos, assim, a descer ainda mais a fundo, em dimensões éticas, históricas, artísticas, educativas, etc., da vida coletiva, as quais, por sua vez, remetem a ulteriores aprofundamentos. Tudo isso abre naturalmente o horizonte e demonstra quão estreita seja a perspectiva do positivismo da constituição, uma vez que ela seja colocada em face das necessidades explicativas e fundamentadoras da constituição pluralista. 14 H. Kelsen, in “Veröffentlichungen der Vereinigung der deutschen Staatsrechtslehrer”, Heft. 3 (1927), p. 53. Demonstra-se, finalmente, o que agora surge de modo incontroverso: o positivismo aplicado à constituição é uma ideologia funcional a todo tipo de constituição monárquica e não uma fria e neutra necessidade do direito constitucional, tomado em consideração de um ponto de vista científico. A cultura constitucional e a sua difusividade As constituições monárquicas podem permitir-se o luxo de concentrar in apicibus o problema da legitimidade, ou seja, de circunscrevê-lo à legitimidade do poder primeiro, do qual todas as consequências fluem, encontrando nele a asseguração da sua efetividade e legitimidade. Não é assim para a constituição pluralista. O seu princípio vivificante, o seu ressort (para usar a célebre expressão de Montesquieu) encontra-se difuso, diluído em todos os atos e em todos os momentos da vida do ordenamento, dos mais solenes e simbólicos aos mais insignificantes e quotidianos, nos quais se possa ler a abertura à convivência pluralista (ou, ao contrário, encontra-se contradito em todos os atos que exprimem atitudes de encastelamento15 agressivo em defesa de posições unilaterais). Em certa medida, todas as relações jurídicas e sociais contêm um valor (ou um desvalor) constitucional. Uma lei, uma interpretação, o ato de fundação de um partido e a predisposição do seu programa, uma campanha eleitoral e o resultado de uma eleição parlamentar: tudo entra em relação com o fundamento de legitimidade da constituição. E tudo se complica porque se exigem atitudes recíprocas entre as forças em campo, nas quais o valor da coexistência seja prioritário sobre o da autoafirmação. À sua falta, o risco da constituição pluralista é o da insignificância: a pluralidade dos princípios a que cada força pode facilmente recorrer reduziria a constituição a um repertório de argumentos para gastar politicamente, a uma retórica do (da luta pelo) poder. A mais perfeita e a mais frágil das constituições Até aqui, os argumentos tratados são todos internos ao que denominamos constituição do “estado constitucional”. A questão era: dado o seu princípio gerador – o pluralismo – o que dele deve vir para que esta forma de regime político viva e o que efetivamente vem, seja de positivo, mas também de negativo, do seu funcionamento. Raciocinou-se como se tratássemos de uma teoria, não de uma doutrina. De fato, até agora, ainda não se colocou, “do ponto de vista externo”, a pergunta: esta constituição é boa e atraente ou má e repulsiva? Tratando de constituições é difícil não fazer classificações e, portanto, não acabar por fazer apologia de uma delas em detrimento das outras. Até mesmo Aristóteles, o príncipe dos classificadores que inspirou essas considerações, falando da politéia diz que a sua “realidade é elusiva” (Politica IV, 7, 1293a), como a de todas as coisas nobres e preciosas, enquanto muito mais concreta é a realidade das outras seis formas de governo, que pouco ou muito se distanciam daquela que, evidentemente, é o 15 Nota do tradutor: o autor emprega a palavra italiana “arroccamento” que se refere ao movimento combinado e defensivo do rei e da torre no jogo de xadrez (“fazer roque”). modelo positivo (a “politéia – aventura-se a dizer na Etica Eudemia [1241 b 31] – é a relação entre irmãos”). Bem sabemos que as nossas constituições são determinadas por concretíssimos fatores históricos, com relação aos quais os nossos projetos e desejos desenvolvem uma parte limitada. Por isso, não vamos dizer que o estado constitucional, com tudo isso de bom e belo que traz consigo, representa o fim da história das constituições, porque não sabemos imaginar nada melhor para o futuro, mas, quando muito, só aperfeiçoamentos. Todavia, entre os fatores históricos das constituições estão também as nossas ações e, portanto, não é privada de sentido a interrogação acerca da postura a assumir frente a uma determinada constituição. E aqui se colocam as nossas escolhas de valor em que entram os mais diversos elementos e fatores de compreensão. Ora, abstraído todo o resto (concepções das relações entre os seres humanos, democracia e relativo relativismo, direitos humanos e tolerância, etc.), parece-me que o estado constitucional seja a forma de convivência entre os indivíduos e os povos que pode, se não eliminar, ao menos afastar, dia após dia, resultados trágicos de cada tentação simplificadora da vida social e política. Por isso, o estado constitucional merece a nossa apologia. Todavia, é necessário realisticamente considerar que as tentações simplificadoras se afirmam no espírito coletivo (na forma de ideologias totalitárias ou de governos demagógicos e plebiscitários, aparentemente des-ideologizados) nos momentos de cansaço e desilusão e frente a dificuldades excepcionais que parecem requerer medidas enérgicas e recusa de compromissos. O estado constitucional é, de fato, fortemente exposto ao risco de corromper-se em meras práticas compromissórias e de perder de vista o valor para o qual existe: um valor que é muito forte do ponto de vista da utilidade geral, mas, infelizmente, émuito frágil do ponto de vista dos interesses particulares, aos quais “constitucionalmente” requer sacrifícios. A mais perfeita das constituições é também a mais frágil. Não pode, assim, apoiar-se sobre nada, fora e antes de si. Eis que se afirma, pela última vez, a cultura constitucional como a única força capaz de elevar cada um de nós das considerações do seu pequeno mundo à contemplação do mundo de todos, para pensar e agir de modo consequente.
Compartilhar