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FMU - O_Homem_do_Pelourinho_-_Franco_Basaglia[1]

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1 
PSICOLOGIA SOCIAL 
 
 
Franco Basaglia e a desinstitucionalização 
 
Franco Basaglia foi psiquiatra e deputado do Parlamento Italiano criador da Lei 180, aprovada no 
parlamento em 1978. A Lei 180 preconiza a extinção progressiva dos hospitais psiquiátricos com a 
criação de serviços alternativos como centros de saúde, enfermarias psiquiátricas em hospitais 
gerais e cooperativas de trabalho. Além disso, contempla a existência de projetos de moradia e um 
trabalho de conscientização da comunidade no sentido de receber e reaprender a conviver com os 
egressos dos hospitais psiquiátricos. O trabalho de Franco Basaglia constitui essencialmente na luta 
pela cidadania e tratamento de pessoas com transtornos mentais e, também, na constituição de uma 
nova concepção social em torno da questão da loucura. 
A experiência da desinstitucionalização do hospital psiquiátrico em Trieste na Itália foi realizada 
por Basaglia. No Brasil tivemos a experiência em Santos, na Casa de Saúde Anchieta, cujo processo 
de desintitucionalização teve seu início em 1989 se efetivando em 1992 com a construção de NAPS 
(núcleo de atenção psicossocial), leitos psiquiátricos em hospital geral, cooperativas de trabalho, 
uma rádio local e projetos de moradia. 
Em termos de Lei, temos, em tramitação no Congresso Nacional, o Projeto Paulo Delgado que é 
similar à Lei 180, porém com modificações. 
A influência do pensamento basagliano também se faz observar nos serviços públicos e alguns 
particulares com a criação de CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), hospitais dia, enfermarias 
psiquiátricas em hospital geral e centros de convivência. Hoje temos vários Estados brasileiros com 
essas alternativas de serviços em saúde mental. 
Tanto na Itália quanto no Brasil houve retrocessos em relação a essa nova forma de assistência, 
porém alguns serviços se mantêm. 
Entre as obras escritas por Basaglia destaca-se “A instituição Negada” de importante relevância. 
A seguir, temos um texto do autor onde estão veiculadas suas principais idéias. 
 
 
 
 
 
2 
“O HOMEM DO PELOURINHO” 
 Franco Basaglia 
 
A primeira vez que entrei numa prisão, eu era estudante de medicina e entrei como preso 
político. Era à hora em que esvaziavam os pinicos das celas e minha primeira impressão foi a de 
entrar numa enorme sala de anatomia onde a vida tinha o aspecto e o odor da morte. A prisão me 
parecia uma estrumeira impregnada de um fedor infernal onde alguns homens com latas sobre os 
ombros desfilavam em direção aos cagotes, para verter seu conteúdo. O pessoal que cumpria a 
tarefa compunha-se de detentos privilegiados que podia sair das celas, o que punha em evidência 
como nas prisões existia uma estratificação social sobre a qual se fundamentava um tipo de vida 
completamente autônoma: a vida da segregação. 
1
O homem e a prisão eram, em realidade, o 
encarcereiro e o encarcerado, o um e o outro haviam perdido toda a qualidade humana, 
adquirindo a marca da instituição. 
 
Depois de alguns anos entrei em outra instituição fechada: o manicômio. Esta vez não como 
internado e sim como diretor. Estava no grupo dos carcereiros, porém a realidade que vi não era 
diferente: também aqui o homem havia perdido toda a sua dignidade humana, também o 
manicômio era uma enorme estrumeira: aquele que ocupava o lugar de doente e de internado 
deve expiar uma culpa da qual não conhece as características nem a sentença, nem a duração de 
sua expiação. Há médicos, aventais brancos, enfermeiros e enfermeiras, como se tratasse de um 
hospital, mas na realidade, se trata somente de um lugar de custódia, onde a ideologia médica é 
um álibi para a legalização de uma violência, que nenhuma organização está destinada a 
controlar, já que a delegação feita ao psiquiatra é total no sentido de que a técnica encarna 
concretamente a ciência, a moral e os valores do grupo social do qual ele é, na instituição o 
delegado representante. Porém, se se afirma, que no último século, se tem dado passos 
gigantescos para a conquista, por parte do homem, da própria liberdade e do próprio destino. Em 
cada uma de suas áreas, a ciência declara estar buscando instrumentos constantemente novos 
para a libertação do homem de suas próprias contradições e das da natureza. Mas ao se analisar, 
e, sobretudo, ao se atuar no interior de uma das instituições criadas por nossa “ciência” e por 
nossa “civilização” percebemos quão pouco se tem feito e como cada instrumento tecnicamente 
inovador tem servido na realidade só para dar um novo aspecto formal, uma “fachada”, a 
condições que continuam as mesmas no que se refere à sua natureza e significado. 
 
No aspecto específico da reclusão, e neste termo podemos incluir tanto a manicomial como a 
carcerária, desde o tempo da barca dos loucos (que navegava a deriva pelos mares com sua carga 
monstruosa e indesejável) a ciência e a civilização não parecem que tenham conseguido outra 
coisa além de uma ancoragem mais potente para esta ilha de exclusão e de reclusão, na qual a 
inadaptação doente e inadaptação sadia (“culpável e responsável” ou seja “delinqüência”) 
encontram seu lugar. Para o homem moralmente desviado: a prisão; para o homem doente 
do espírito: o manicômio. 
 
Esta é a grande conquista da ciência. 
 
1
 As palavras e trechos do texto escritos em negrito não se apresentavam assim no texto original, 
foram grifados em particular nessa reprodução com fins didáticos. 
 
 
3 
 
Durante séculos, loucos, delinqüentes, prostitutas, alcoólatras, ladrões e extravagantes 
compartiram o mesmo lugar, um lugar no qual a diversidade da natureza de sua 
“monstruosidade” era ocultada e nivelada por um elemento comum a todos: o desvio da norma e 
de suas regras, junto com a necessidade de isolar o anormal do comércio social. Os muros da 
prisão circunscreviam, continham e ocultavam o endemoniado, o louco, como expressão do mal 
involuntário e irresponsável, junto ao delinqüente, expressão do mal intencional, voluntário. 
Alienação e delinqüência representavam, assim, conjuntamente, a parte do homem que devia ser 
eliminada, circunscrita e ocultada até que a ciência não decretasse a clara separação entre ambas, 
através da individualização de suas características específicas. 
 
Segundo o racionalismo iluminista, a prisão deveria ser a instituição punitiva para os que 
transgridem a norma encarnada na lei (a lei que tutela a propriedade, que define os 
comportamentos públicos corretos, as hierarquias da autoridade, a estratificação do poder, a 
amplitude e a profundidade da exploração). Os alienados, os doentes do espírito, aqueles que se 
apropriavam de um bem comumente atribuído à razão dominante (o extravagante que vivia 
segundo normas criadas por sua razão ou por sua loucura), começaram a ser classificados como 
doentes para os quais seria conveniente uma instituição que definisse claramente os limites entre 
razão e loucura e na qual poderia aprisionar sob uma nova etiqueta, servindo-se do critério de 
“doença perigosa” ou “escândalo público”, aqueles que transgrediam a ordem pública. 
 
Prisão e manicômio, uma vez separados, continuaram conservando idêntica função de tutela e 
defesa da “norma”, ali onde o anormal (enfermidade ou delinqüência) se convertia em norma ao 
ser circunscrito e definido pelos muros que estabeleciam sua diferença e sua distância. A ciência 
tem separado, então, a delinqüência da loucura, reconhecendo, por um lado, na loucura, uma 
nova dignidade: a de ser uma abstração, ou seja, a de sua definição em termos de enfermidade, 
por outro lado, reconhecendo na delinqüência um momento humano ao convertê-la em objeto de 
investigação de criminologistase cientistas que chegam a individualizar fatores genéricos 
biológicos como originários do comportamento anormal, até a descoberta do cromossoma Y. 
Mas, apesar da separação ideológica das duas identidades abstratas (delinqüência e 
enfermidade),cada uma com sua própria instituição específica, praticamente permanece 
inalterada a estreita relação entre ambas com a ordem publica, ambas instituições mantém 
inalterada sua função de tutela e defesa desta ordem. Por outro lado, apesar do abstrato 
reconhecimento desta nova dignidade, nem o delinqüente - que deve expiar a ofensa que fez à 
sociedade-, nem o louco - que deve pagar por seu comportamento incorreto e inadequado-, têm a 
dignidade de homens, e as instituições para eles criadas (para sua reeducação e redenção, por um 
lado, para seu tratamento e reabilitação, por outro) não têm modificado em nada sua função e 
natureza, continuando em sua evolução separada, uma via paralela. 
Reformadores do código, por um lado, frenólogos e especialistas, por outro, tem estabelecido 
uma ou outra vez novos regulamentos, classificações, teorias, subdivisões que, porém, nada 
mudaram da relação entre sociedade “civil” e os elementos que dela foram excluídos. Mas, além 
disso, nada tem mudado na natureza da exclusão fundamentada na violação, na mortificação, na 
total destruição do homem institucionalizado, demonstrando assim, que a finalidade implícita 
dos estabelecimentos de reeducação e de tratamento é a supressão dos que deveriam ser 
reeducados e curados. 
 
 
 
4 
A análise da diferente situação institucional da inadaptação em relação aos diversos graus de 
desenvolvimento tecnológico pode nos aclarar a imutabilidade da função implícita desta 
organização: o controle e a eliminação, mediante instrumentos mais ou menos grosseiros, mais 
ou menos sutis, do objeto nela contido. 
 
Nos países onde a situação sócio-econômica, dado seu grau de desenvolvimento, não exige uma 
eficiente organização por não ser necessária, a delinqüência e a loucura ocupam ainda o mesmo 
espaço: prisões onde não existe separação das duas diferentes entidades. Isto é, que um contexto 
no qual os limites da norma não estão bem definidos, o conjunto dos diversos indivíduos que 
estão fora da norma se organiza espontaneamente em grupos separados que se formam para 
defesa desta, para sua própria sobrevivência. A ciência não tem sido chamada para dar 
justificações teóricas de uma discriminação que ainda não se faz necessárias. 
 
A ciência, então, não tem sido chamada, ainda, a levar sua obra colonizadora para a separação do 
anormal, não se conhece ainda a utilização desta divisão, que servirá para um estado superior de 
desenvolvimento. A violência ou ameaça de violência é um instrumento ainda suficiente para 
garantir a ordem pública. No caso de existir, essa divisão, fundamentada pelo princípio 
científico, produz um tipo de organização institucional, uma superestrutura de importação, 
implícita na lógica imperialista, que não responde minimamente à realidade local. 
 
É deste ponto de vista que o horror da tortura nos países sul-americanos, por exemplo, adquire 
uma forma organizada, convertendo-se em uma instituição. Representa, assim, a superestrutura, 
a organização institucional correspondente ao nível estrutural desses países. A tortura como 
instituição é o único instrumento que seus políticos, ou seja, os militares sabem usar para o 
controle de situações que não podem ser controladas, a não ser através de um contínuo estado de 
ameaça de violência. Para um povo que não tem esperança de mudar sua condição de vida, ou 
que não traduz em uma luta concreta de esperança, a ameaça de detenção na prisão ou no 
manicômio, como sanção aos comportamentos desviados, é inefectiva, pois para quem não come 
ou não tem uma casa para dormir, a internação pode ser também uma solução para a própria 
sobrevivência. A tortura é então o único meio de eliminação, a única ameaça de real destruição e, 
portanto, é o verdadeiro controle social correspondente a um nível de desenvolvimento ainda 
arcaico. Estrutura econômica e organização social coincidem sempre, e não é casual que os 
manicômios se tenham estruturado no sentido técnico-institucional com o começo da 
revolução industrial. Assim, em semelhança com as demais formas de assistência pública, os 
manicômios mostram sua mais ampla configuração institucionalizada no momento em que se faz 
necessário separar o produtivo do improdutivo. Com o nascimento da era industrial a relação já 
não se estabelece entre o homem e a sociedade humana e sim entre o homem e a produção, o que 
cria um novo uso discriminante de cada elemento (anormalidade, enfermidade, inadaptação, etc), 
em relação a sua possibilidade de obstacularizar o ritmo produtivo. 
Em nosso nível de desenvolvimento tecnológico, esta função de organização institucional já não 
é explícita: está mascarada e ao mesmo tempo legitimada pelas diversas ideologias científicas. 
No caso do manicômio, mediante a ideologia médica que encontra na definição da 
irrecuperabilidade da enfermidade a justificação da natureza violenta e segregante da instituição, 
no caso da prisão, mediante a ideologia do castigo. 
 
O prisioneiro paga por uma falta cometida em detrimento da sociedade, o enfermo paga por uma 
falta não cometida e o preço é tão desproporcional à “falta” que chega a fazê-lo viver uma dupla 
 
 
5 
forma de alienação derivada de tal incompreensão e incompreensibilidade da situação que se vê 
obrigado a viver. A ideologia do castigo sobre a qual se fundamenta a prisão e a ideologia 
médica, ou melhor, dito, a ideologia da irrecuperabilidade da enfermidade sobre a qual se 
fundamenta um manicômio é de fato totalmente estranha ao problema da delinqüência e da 
enfermidade. Sua função é ser uma simples contenção dos desvios e, portanto, um controle dos 
mesmos. 
 
A ideologia cobre a repressão simplesmente justificando-a e legitimando-a, mas a violência 
legitimada continua sendo violência. 
 
Se a finalidade reabilitadora de ambas as instituições fosse real, haveria detentos e internados 
reabilitados e felizmente reincorporados ao contexto social. Isto ocorre muito raramente, dado 
que o ingresso em uma ou outra destas instituições marca, em geral, o começo de uma carreira 
cuja evolução e conseqüências bem conhecemos. A afinidade formal entre estas duas instituições 
parece, então, realizar-se somente no plano negativo. Mesmo que as novas interpretações tendam 
a justificar ou explicar em termos de dinâmica psicossocial tanto a falta como a enfermidade, a 
realidade das instituições nas quais ambas são relegadas continua baseando-se no conceito de 
culpa a expiar, a pagar por meio do castigo, inclusive no caso da enfermidade. 
 
Os loucos que Pinel havia separado dos delinqüentes acorrentados, continuam ainda 
acorrentados real ou simbolicamente, uns e outros, em instituições separadas, mas baseados nos 
mesmos princípios destrutivos, princípios que são, por sua vez, definidos e encerrados nos 
mesmos juízos de valor que , no entanto, estabeleceram sua clara natureza. Os loucos obtiveram 
do racionalismo iluminista a dignidade de enfermos e os delinqüentes passaram do âmbito da 
culpa moral a uma abstrata justificação endógena. Ambos acorrentados, mas recuperados no 
campo da investigação positivista. Ou seja, que para ambos, a realidade e a violência são as 
mesmas. O fato de que se use ou se organize de modo sofisticado a tortura, o fato de que as 
correntes sejam reais como em nossas instituições, ou simbólicas como nas instituições de países 
mais desenvolvidos, não traz nenhuma diferença real porque a finalidade continua sendo a 
proteção e o cuidado do grupo dominante, mediante a descrição dos elementos que impedem a 
ordem social. A lógica da subordinação e da repressão deve, portanto, criar pessoas total e 
acriticamente submetidas e identificadas ao mesmo tempo, às leisque violaram ou que podem 
violar. 
 
Mas a clara separação e o isolamento em lugares de segregação das contradições humanas, tais 
como a doença e a delinqüência, implica ao mesmo tempo a focalização destes fenômenos. O 
efeito paradoxal destes “estigmas” é que se exige uma vida exemplar perfeita precisamente 
daquelas que já demonstraram a tendência a um comportamento anormal, e isto porque, quem 
está estigmatizado é reconhecível, diferente, é localizado de imediato, habitualmente é mais 
fraco, está mais exposto, sua situação é precária, não tem força social e econômica para se opor à 
cruel campanha que exige exclusivamente dele a perfeição da conduta e comportamento. A 
contradição que encarnam o recluso e o doente mental é uma contradição que não pode 
manter-se aberta porque a doença e o crime (delito) são “desculpas” perfeitas para 
eliminar a todos aqueles elementos que impedem o normal funcionamento e 
desenvolvimento de nossa sociedade, baseada na produção capitalista e cuja única lei deve 
ser respeitada. 
 
 
 
6 
A doença ou a delinqüência é uma contradição do homem, mas é também um produto histórico 
social e, apesar disso, continua fazendo sofrer as conseqüências, sob acobertamentos científicos 
variados, àqueles que são inocentes, como se tratasse sempre de uma culpa individual, ao mesmo 
tempo que se utilizam para relegar e destruir aqueles que, de um modo ou de outro, estão 
excluídos ou impedem o processo produtivo. Como é evidente são sempre os marginais os que 
não têm poder econômico para se opor, os que não tem um espaço privado onde viver sua 
inadaptação, são eles que caem sob as sanções mais rigorosas. O grupo dominante preserva a 
ordem pública, o ritmo produtivo, a eficiência de sua organização, o funcionamento da vida 
antinatural que produz ou impõe, protegendo a quem trabalha da ameaça potencial representada 
pelos marginalizados (os que não produzem, os que voluntariamente se excluem ou 
involuntariamente são excluídos do intercâmbio social) jogando, ao mesmo tempo, com a 
ameaça de uma possível marginalização. Paradoxalmente, volta-se a propor, em nome da 
exploração e da eficiência, a dialética servo-senhor, na qual o senhor cuida do servo da ameaça 
representada por quem pode perturbar a ordem de seu trabalho, criando as instituições onde se 
possam isolar e neutralizar esta ameaça. Porém a existência destas instituições atua, ao mesmo 
tempo, como ameaça para o servo que pode cair nas suas malhas. 
 
Estas organizações, chamadas reabilitadoras, têm, portanto, uma dupla função: a violência como 
sistema concreto de eliminação e destruição e a violência como ameaça simbólica desta 
destruição e eliminação. 
 
Nesta perspectiva no nosso nível de desenvolvimento, cada contradição deve ser isolada e deve 
achar-se o espaço separado onde o sujeito pague por si mesmo a contradição que representa. O 
que importa é descobrir rapidamente o diferente e isolá-lo para confirmar que não somos 
nós (os sadios, os normais, os bons cidadãos), isto é, a estrutura de nossa organização social 
que produz contradições, é sempre o outro, o estrangeiro, o corruptor, “as más 
companhias” os que produzem o contágio, que deve ser prevenido e neutralizado para 
proteger a coerência da norma, ou seja, os parâmetros que definem a ordem moral e 
pública. Nesta tentativa de descobrir precocemente a “diferença” se baseia o caráter preventivo 
das ideologias, assim como na confirmação desta diferença se baseia o caráter violento das 
instituições. 
 
Aqui entra em jogo a interdisciplinariedade, a cumplicidade do psiquiatra com a lei, pela qual se 
pode, segundo os casos, definir como psicopata, débil ou louco moral o delinqüente que não 
deve ser definitivamente estigmatizado como tal (nos casos em que o estigma da doença é menos 
prejudicial que o da delinqüência). As peritagens psiquiátricas não são mais do que um 
instrumento que permite a passagem de um ao outro âmbito mediante uma avaliação quantitativa 
(cujo caráter subjetivo não vale a pena se deter) dos aspectos anormais presentes no sujeito 
examinado. 
 
Mas quem atravessa a porta da prisão ou do manicômio entra em um mundo onde atua 
praticamente para o destruir, ainda que se tenha projetado ideologicamente para o salvar. 
De fato, os criminologistas reconhecem a realidade carcerária como a expressão mais direta e 
evidente da delinqüência natural do detento e os psiquiatras a realidade manicomial como a 
deterioração psíquica e moral produzida pela doença. 
 
 
 
7 
Sobre esta lógica destrutiva se mantém a eficiência da organização institucional, porque é a 
instituição como organização a que não pode correr riscos. Mas os riscos que não corre a 
instituição se traduzem em realidades práticas negativas para os homens que ela contém, para os 
quais não existem necessidades, exigências, carências as quais se devem responder, dado que o 
fato de ser definido como enfermo mental ou como delinqüente priva dos mais elementares 
direitos, mesmo em instituições que continuem definindo-se ideologicamente como 
reabilitadoras ou terapêuticas. Mas isto não pode deixar de significar também que as chamadas 
instituições reabilitadoras têm na realidade, uma função bem explícita: procurar um “ponto” 
institucional controlando a quem não é controlável através de sua participação no processo 
produtivo ( e aqui se inclui, sem dúvida, todas as instituições consideradas positivas: escola, 
família, fábrica, universidade, lugar de trabalho). Aquele que por qualquer razão, está fora deste 
círculo deve encontrar um lugar onde assumir uma função específica sobre a qual a instituição 
correspondente exercerá o gradual processo destrutivo que lhe é próprio. 
 
A possibilidade de intercâmbio das instituições das prerrogativas e características daqueles que 
elas contêm é uma clara demonstração do que dissemos. 
 
Trata-se de vasos comunicantes cuja “comunicação” se faz possível com uma mera troca de 
definições ou de etiquetas relativas a seu conteúdo. Assim, por exemplo, um jovem internado em 
um reformatório passará à prisão ou manicômio segundo que assento seja posto sobre sua 
inadaptação, sadia ou enferma. Será mais difícil para ele evitar um ou outro, já que foi marcado 
por sua permanência no reformatório. 
 
Este é tipo de organização institucional correspondente ao nível de desenvolvimento mais ou 
menos generalizado nos países europeus. 
 
Em um nível tecnológico-industrial mais avançado, como os EUA, o controle clássico da 
inadaptação através das instituições de segregação já não é suficiente. O sistema capitalista, além 
de produzir um aumento dos bens de consumo, bens que são propostos como sinais dos graus de 
bem estar social atingido pela população, produz também um aumento de contradições e com 
elas um aumento das inadaptações à norma. Seu controle já não se efetua unicamente através das 
instituições segregativas ou violentas (que ainda existem). Pode-se inclusive projetar a 
reestruturação formal destas instituições, mais modernas, menos explicitamente repressivas, mais 
tolerantes já que o controle se realiza essencialmente de uma forma ou de outra: mediante a 
extensão do conceito de inadaptação e de um novo tipo de diagnóstico de diferente, mais sutil e 
capilar (o diagnóstico precoce, a prevenção, os serviços assistenciais, a psicologização de 
conflitos que nada tem a ver com a Psicologia...). 
 
Este novo tipo de controle da inadaptação que recupera a maior parte dos conflitos sociais no 
lugar da Psicologia, da Medicina e da Assistência Social, sem ter necessidade de recorrer à 
internação, a não ser em casos extremos, é um novo modelo pronto para a exportação, que de 
fato já tem começado para os países desenvolvidos. Sua aplicação prática em regiões onde este 
tipo de controle ainda não é necessário para tutelar a ordem pública e o desenvolvimento 
industrial, leva à criação de problemas e necessidades artificiais paraos quais o novo sistema 
tem uma resposta pronta. Mas esta resposta se dá na medida em que são problemas e 
necessidades artificiais, produzidas por ele mesmo que, justamente por serem estranhos à 
realidade concreta onde começaram a se manifestar, servem para desviar a atenção dos 
 
 
8 
problemas e necessidades reais. À distância entre necessidade real e necessidade artificial é a 
que serve como instrumento de dominação, já que a imposição de dominação e colonização, tal 
como demonstraram os missionários que levavam a fé e seus valores morais a terras novas e cuja 
ação não era senão a preparação do terreno para a chegada do exército conquistador. 
 
A exportação de ideologias e de organizações de controle como a Comunidade terapêutica ou os 
centros comunitários de saúde mental, a países subdesenvolvidos, como por exemplo, os países 
sul-americanos têm somente um significado: é o alibi para a perpetuação da violência que 
continua produzindo-se como resposta concreta. Ali onde existe uma tomada de consciência, por 
parte do povo, da necessidade de encontrar respostas diretas às suas necessidades, a estratégia 
imperialista se revela como é: volta-se à violência explícita, ao assassinato e ao massacre como 
sistema arcaico de colonização. A destruição do movimento da Unidade Popular do Chile é um 
claro exemplo. Se o povo intenciona apropriar-se de suas necessidades e dos instrumentos para 
responder às mesmas, o imperialismo pula e obviamente não está disposto a correr estes riscos. 
Neste caso a violência legalizada representada pelas instituições já não serve: volta-se à violência 
como instituição, sem necessidade de acobertamentos ou mistificações científicas ou de qualquer 
outro tipo: mata-se, tortura-se e elimina-se a quem descobre o jogo e procura instrumentos 
apropriados para sair dele. Estes diversos tipos de violência (explícita, legitimada pelas 
ideologias científicas diluídas e disfarçada sob a cobertura da organização assistencial) são as 
diferentes modalidades de controle em relação aos diferentes graus de desenvolvimento de um 
país. Mas são ao mesmo tempo, contemporâneas no sentido de que, nos momentos de crise, se 
elegem a modalidade de intervenção e repressão mais adequada para garantir o controle, e já não 
importa se passa explicitamente de um controle fundamentado sobre análise psicológica dos 
conflitos às matanças maciças. Quem tem o poder sempre encontra a maneira de legitimar a 
violência, simplesmente a impondo ou, quem sabe, juntando os diversos elementos de que dispõe 
até chegar a humanizar a tortura, garantindo ao torturado a assistência de um psicólogo ou de 
uma assistente social. 
 
O nível sócio-econômico dos países europeus está ainda ligado, em diversos graus, ao controle 
institucional como forma de repressão. 
 
Ultimamente estão sendo projetadas reformas que em alguns países já estão funcionando para 
novas instituições tolerantes, onde a doença, a inadaptação e a delinqüência possam ser 
controladas sem haver necessidade de se recorrer a uma violência demasiado explícita. Mas na 
lógica do capital, construir novas prisões significa somente construir novos aprisionados, 
assim como construir novos hospitais significa fabricar novos doentes, já que a finalidade 
fica na organização das necessidades e não na resposta direta às mesmas. A organização das 
necessidades implica na criação de novas organizações que se inserem automaticamente no 
processo produtivo, oferecendo novas funções, novos lugares de trabalho, novos serviços, que 
põem em funcionamento o mesmo circuito produtivo típico de qualquer outra organização cuja 
única participação é a de sua própria sobrevivência, assim como a de manter ou aumentar os 
objetos que contém. Entre nós ninguém ousa sustentar, em palavras, que as instituições fechadas 
e violentas não sejam indignas de um país “civilizado” (ninguém ignora as condições inumanas 
em que vivem os internados). Mas as reformas das instituições levam somente a uma mudança 
formal que (ainda que não se possa negar que trará benefícios parciais necessários e positivos no 
referente à vida cotidiana dos internados) se limitará a ser uma nova racionalização técnico-
organizativa, usada como novo sistema de controle dos mesmos objetos. Dentro da mesma 
 
 
9 
lógica, transformação, racionalização e controle são as três etapas de um processo que se 
perpetua através da contínua transformação formal das coisas, sem que seja jamais tocada a 
estrutura. Porque a mudança sobrevem sempre como resposta técnica a uma demanda 
econômica (em cada nível de desenvolvimento se necessita uma forma de controle diferente) e é, 
portanto, uma vez mais, a lei econômica a que reclama a nova racionalização técnica que 
proporcione o controle da situação transformada. 
 
A indignação emotiva contra a violência de nossas instituições repressivas deveria levar à 
exigência de uma transformação que resultasse adequada às necessidades que a enfermidade e a 
inadaptação expressam, mas até que nosso sistema econômico não encontre, frente ao seu 
progressivo desenvolvimento, um tipo de controle institucional diferente do violento e 
segregativo atual, as prisões, os manicômios e as torturas permanecerão intactas. O amigo 
Stanley Cohen sustenta, justamente, que desde que existem as prisões se fala de reforma 
carcerária. Prisão, manicômio e tortura somente poderão mudar se forem modificadas as 
estruturas de base, das quais estas instituições são os pilares. Isto se confirma pelo fato de que, a 
nível teórico, se fala sempre da necessidade de sua transformação, ao passo que, no plano 
prático, cada proposta é obstacularizada e reprimida violentamente. A resposta repressiva a cada 
proposta de transformação prática garante a manutenção do “status quo”, ao tempo que, esta 
resposta qualifica a própria transformação, o que continua demonstrando como esta não se limita 
a uma simples resposta técnica a um problema especializado. 
 
Atuar nas “instituições de violência”, repelindo a delegação de ser um simples controle de ordem 
pública (delegação implícita na nossa função de técnicos), significa descobrir praticamente a 
verdadeira lógica, dando a quem vive no seu interior, a possibilidade de uma tomada de 
consciência prática dos mecanismos nos quais estas instituições se fundamentam. É nesse sentido 
que o trabalho técnico nestas instituições de violência se revela e atualiza como trabalho 
explicitamente político, unindo a especificidade particular de sua ação à estrutura social da qual a 
instituição faz parte, descobrindo praticamente suas conexões e implicações. 
 
Isto significa que a ação nestas instituições e a análise da violência das mesmas não se limitam à 
desmistificação das contradições entre custódia e tratamento, entre custódia e reabilitação 
(contradições sobre as quais se fundamentam os manicômios e as prisões), mas também que 
tendem, sobretudo a esclarecer praticamente a finalidade perseguida e as modalidades eleitas por 
esta violência em relação à estrutura social, libertando-nos, assim do isolamento “especialístico” 
no qual cada constituição e cada técnico está prisioneiro, conservando a visão e o terreno 
específico desta luta. 
 
Nosso sistema social se baseia em uma divisão artificial (isto é, historicamente produzida e 
determinada) que é imposta e assumida como divisão natural: a divisão em classes. A aceitação 
desta divisão como fenômeno natural (a existência do rico e do pobre como dado natural e 
irredutível) comporta uma série de regras e de instituições que com a aparente finalidade de 
resolver as contradições naturais, serve de fato para manter a originária divisão sobre a qual se 
ergue a estrutura econômica – social. Quanto mais antinatural é a regulamentação (e a 
estrutura da qual é garantia) tanto mais violenta e repressiva porque não responde às 
necessidades ( ou seja, à contradição natural) para as quais é, aparentemente, instituídae 
sim à manutenção do aparato que o regulamento tende a encobrir. 
 
 
 
10 
O processo, porém, não é tão simples nem tão explícito, mas tendo presente o massacre e a 
tortura como extremos deste processo nos será fácil seguir sua direção e desenvolvimento. 
 
As articulações, através das quais nosso sistema social, em termos de desenvolvimento médio 
dos países europeus, consegue manter a divisão em classes necessária para a sua sobrevivência, 
são variadas ainda que se apresentem com um denominador comum: a tendência a isolar os 
fenômenos (como se não nascessem e não se apresentassem em uma rede de relações recíprocas) 
para estudá-los divididos, separados do tecido do qual são um dos elementos e poder, assim, 
fazê-los assumir um caráter absoluto, natural. Teorias científicas e instituições parecem ter 
explicitamente a finalidade de descobrir e isolar estes fenômenos sob a mistificação da resposta 
especializada; às instituições, confirmar, através de uma prática destrutiva, o caráter definitivo e 
irredutível. De fato, ambas tem a finalidade de descobrir e confirmar a diversidade natural dos 
fenômenos, através do mesmo processo proposto, a priori pela divisão em classes, matriz de 
toda nova divisão posterior. 
 
Limitando a análise somente ao âmbito das ideologias e das instituições destinadas o controle da 
inadaptação, cárceres e manicômios (obviamente o processo é análogo para qualquer outra 
instituição de nossa sociedade), o fenômeno negativo, ou seja, o comportamento anômalo no 
sentido antisocial responsável ou doente, é isolado de maneira que o indivíduo que o expressa 
seja somente este fenômeno, como se não tratasse de um momento, de um processo onde se 
implica o ambiente, a história, os valores, as relações e os processos sociais nos quais cada vida 
individual sempre se insere. O fenômeno negativo é, certamente, o momento relativo a um 
complexo de fatores biológicos e sociais, mas é, porém, isolado e proposto como absoluto e 
natural para justificar seu caráter imutável. O delinqüente é somente e irredutivelmente 
delinqüente, a prisão é o lugar que serve para a contenção da delinqüência. O louco é somente e 
irredutivelmente louco, o manicômio é o lugar que serve para a contenção da loucura. Mas a 
delinqüência e loucura são acontecimentos que formam parte da vida do homem, no sentido que 
são a expressão de que o homem é ou pode ser e ao mesmo tempo de que pode chegar a ser a 
través de seu mundo de relações. O delinqüente e o louco (e aqui não vamos discutir os 
parâmetros nos quais são definidos, o que implicaria outro artigo), conservam também na 
delinqüência e na loucura as outras faces de seu ser humano: sofrimento, impotência, 
opressão, vitalidade, necessidade de uma existência que não seja nem enferma nem 
delinqüente. 
 
Porém, o delinqüente se converte automaticamente em objeto de criminologia, ciência que 
estuda a criminalidade, e não o homem em sua totalidade; assim, o louco se converte 
automaticamente em objeto da psiquiatria, ciência que estuda os desvios psíquicos e não o 
homem em sua totalidade. As ideologias científicas servem, portanto, para fixar em termos 
absolutos esses elementos de sua competência, transformando-os em acidentes naturais 
contra os quais o homem pode tão pouco como a ciência. Se a doença e a delinqüência são 
somente fenômenos naturais, e não também produtos históricos sociais, a contenção, a internação 
são as únicas respostas possíveis e a instituição repressiva, a segregação, as únicas alternativas, 
frente a um fenômeno à respeito do qual a sociedade deve exclusivamente garantir-se e proteger-
se . Ocorre o mesmo que frente à violência de certos fenômenos naturais: ninguém é responsável, 
ninguém está implicado. O indivíduo é considerado todo doente ou todo delinqüente e se ao 
mesmo tempo esta totalidade negativa é construída artificialmente pela absolutização de um ou 
 
 
11 
outro dos elementos em que o homem foi artificialmente dividido, será sobre esta totalidade 
negativa que se proporá e confirmará a exclusão social. 
 
Encontramos-nos frente a uma parcialização do homem na qual se isolam as diversidades, se 
expressam e se confirmam as diferenças. Mas em nome do que? Pelos resultados não se pode, 
certamente, afirmar que este processo sirva para a reabilitação, para a recuperação do inadaptado 
e para o restabelecimento da saúde do doente. Se assim fosse, a maioria dos internados, sejam de 
nossas prisões, sejam de nossos manicômios, deveriam ser reabilitados e curados, e não é 
suficiente reconhecer ou admitir os limites da ciência nestes setores para explicar o fracasso 
geral das instituições destinadas à reabilitação e ao tratamento. 
 
O que é determinado neste processo é um elemento, para nós ou algum de nós demasiado óbvio, 
do qual os cientistas da psiquiatria e da criminologia não parece haver tomado nota. Trata-se da 
classe a que pertencem os “clientes” destas instituições, e não pode ser casualidade que em sua 
quase totalidade sejam proletários ou subproletários, assim como tão pouco pode ser casual que 
pertençam à mesma classe social todos os usuários de outras instituições de reabilitação 
assistenciais tais como os internatos, os orfanatos, os reformatórios, etc., ou os assistidos pelo 
“Bem Estar” nos países de maior desenvolvimento industrial. Com raras exceções de casos de 
burgueses endinheirados delinqüentes que por outro lado sempre encontram um modo ou os 
instrumentos para evitar ou reduzir as penas imputadas. Pareceria que as formas de delinqüência 
e de loucura irrecuperáveis fossem atributo de uma só classe. 
 
E, porém, ainda assim novas teorias tendem a dar interpretações de tipos sociológicos a estes 
fenômenos, a ciência continua afirmando na prática que loucura e delinqüência são acidentes 
naturais. Mas estes acidentes formam parte da natureza do proletário e do subproletário? Ou 
quem sabe é somente a loucura e a delinqüência dos pertencentes à esta classe que é considerada 
natural e irredutível através do processo de absolutização da diferença? 
 
Se a doença e a delinqüência são acontecimentos ou contradições naturais, a quase total ausência 
nas instituições da doença e da delinqüência dos que pertencem à classe dominante, testemunha 
que em outra parte, fora das instituições existe um conceito de recuperabilidade diferente e, 
obviamente, um diferente conceito de irrecuperabilidade, segundo o qual, doença e delinqüência 
perdem o caráter natural e irreversível que apresentam nas prisões e manicômios. A 
recuperabilidade está subordinada aos instrumentos de que dispomos e a vontade de recuperação. 
A burguesia dispõe para si destes instrumentos e desta vontade. 
 
Pelo que se refere à doença, psicoterapia e psicanálise são os ramos da ciência que se põe à 
disposição do enfermo rico para a busca das motivações inconscientes de seu comportamento 
anormal. Tal comportamento não se aceita simplesmente como natural e irreversível. Em alguns 
casos pode também se revelar como tal; mas se aprofunda sua história, sua evolução, se 
aprofundam os momentos do processo, se propõe todo o possível. Mas a análise do inconsciente 
e as elaborações que se obtém sobre os seus complexos e seus conflitos, movem-se dentro de 
uma cultura e de um conjunto de valores dos quais o proletário e o subproletário não tem ao 
menos familiaridade. Ademais, é necessário possuir uma linguagem cifrada para eles 
desconhecida. Entre nós, a pequena burguesia e o proletário pequeno-burguês, que tendem aos 
valores da burguesia, começam agora a fazer-se possuidores desta cultura, mas a mesma 
imposição ou incorporação, estranha as suas necessidades, não podem mais que operar como um 
 
 
12 
ulterior elemento de dominação e não como um instrumento de libertação. O fato de que um 
subproletário internado em um manicômio possa ou não apresentar um Complexo de Édipo não 
resolvido lhe parece ridículo, inclusiveprofano. 
 
Mas que outras investigações sobre as motivações do comportamento anormal se realizam com 
os enfermos que povoam nossos manicômios? Por que os sintomas dos burgueses devem ter 
justificações e explicações? Por que se investigam e se esclarecem ao paciente as motivações 
inconscientes, enquanto que para os internados nos manicômios, proletários e 
subproletários, a enfermidade continua sendo um fenômeno natural e irredutível e o 
enfermo é automaticamente identificado com os seus sintomas? Como podemos conhecer as 
motivações profundas, se toda a psiquiatria manicomial se fundamenta na des-historização 
do indivíduo? 
 
No que se refere à delinqüência é válido o mesmo discurso. Um delinqüente burguês abastado 
não tem problemas de reinserção e recuperação. O delito é aceito como um produto histórico 
social e não como um dado natural. Há uma justificação à sua situação delituosa. Trata-se de um 
acontecimento que não é suficiente para determinar a evolução da história futura do delinqüente, 
tão pouco a história precedente é lida toda à luz do delito que, em determinado momento, ele 
cometeu. Na vida, no ambiente destas pessoas, há um espaço para a recuperação, e é o espaço 
que sua própria classe lhes reconhece e reserva. O problema da recuperação não existe porque, 
neste caso, o delinqüente tem uma história que esclarece, ante os olhos de seus iguais, o delito, e 
dispõe de instrumentos econômicos e culturais para não ter a necessidade de repetir o ato 
delituoso. E isto por não falar dos delitos de grande magnitude, das corrupções cometidas pelas 
classes políticas no poder para os quais existem sentenças, anistias, imunidades que deixam 
intacta a honorabilidade dos autores. Neste caso ressurge o conceito da naturalidade da 
corrupção, mas se trata de uma naturalidade implícita no jogo político (a política é sempre algo 
“sujo” e é difícil ficar com as mãos limpas quando se está no jogo) que serve para deixar imunes 
àqueles que cometem o delito e obtém benefícios com o mesmo. A corrupção e o delito 
individual se propõe nestes casos como fatos históricos sociais justificados pelo grande número 
de contingências sociais que condicionam o indivíduo e às quais não podem subtrair-se. Se dá , 
assim, exatamente aquilo que não sucede para a classe reprimida que atua delituosamente. O 
delinqüente que pertence à esta classe não tem história, ou melhor, sua história é somente a 
história de seus delitos: os antecedentes penais. É delinqüente por natureza assim como o 
desocupado é vagabundo e ocioso por natureza. Não há causas: motivações psicológicas, sociais, 
econômicas que justifiquem seus atos e sim a própria delinqüência que se converte, assim, em 
delinqüência biológica, intrínseca, de estirpe. 
 
Cada tentativa de historiar o delinqüente proletário ou subproletário fracassa porque a sua seria 
uma história de violência, de privações e de abusos das quais não deve ficar rastros. O mesmo 
Lombroso, ao qual ainda se outorga o mérito de historiar o delinqüente reconhecendo as 
implicações sociais de seu comportamento anômalo extrai conclusões práticas à total des-
historização desde o momento em que sanciona de um novo modo a diferença originária natural 
e, portanto, a conseqüente necessidade de marginalizar. 
 
Quem pergunta sobre o porquê da delinqüência? A viúva de um trabalhador assassinado pela 
polícia há 20 anos, durante a ocupação de um latifúndio sem cultivo em Paglia fez em uma 
recente transmissão televisiva italiana estas declarações: “se a gente tivesse trabalho não teria 
 
 
13 
necessidade de ocupar as terras para viver”. É elementar. E, todavia, se castiga e se assassina a 
quem ocupa terra que ninguém cultiva, sem considerar que não é produto de um capricho ou da 
delinqüência inata o fato de que obreiros sem trabalho decidam ocupar terras sem cultivar. Para 
estes delinqüentes e para estes loucos nosso sistema social não pode organizar a recuperação: 
quando se projetam transformações e reformas dentro da mesma lógica o resultado é idêntico. 
Fala-se do nascimento de uma nova delinqüência da qual não se indagam as causas e 
implicações sociais a respeito da queda de valores, das esperanças sempre frustradas, das 
promessas jamais mantidas do descontentamento por uma vida que se faz cada vez mais 
crítica e impossível, cada vez mais difícil. Se não se leva em conta esta premissa fundamental, 
nos limitamos uma vez mais a formular novos catálogos, novas divisões, entre delitos mais ou 
menos graves, chegando a criar novas instituições e novos regulamentos idênticos aos anteriores. 
Do mesmo modo, frente ao surgimento de novas formas de inadaptação e comportamentos 
anormais que podem ser sintomas de recusa à uma vida inviável, encontram-se novas 
codificações, novos termos técnicos com os quais catalogar, atualizados, talvez, por alguma vaga 
referência a um hipotético “elemento social” que garantisse enfrentar as problemáticas em 
termos modernos atuais. Entretanto, cárceres e manicômios continuam conservando sua natureza 
marginalizante de classe. 
 
Neste contexto social o problema da delinqüência ou da enfermidade não pode ser nem sequer 
tocado. Não se sabe o que é, ou melhor, sabe-se que é a priori e se aplica a definição mais 
conveniente para pedir a intervenção repressiva frente a fenômenos dos quais se observa e 
enfoca somente um aspecto: aquele que representa uma alteração social. 
 
Mas enfermidade e inadaptação existem não só para a sociedade que se defende delas, senão 
também para os sujeitos que as vivem e querem defender-se. Que coisas sabemos de seus 
sofrimentos se os parâmetros dos conhecimentos, tratamento e reabilitação são os que temos 
inventado, nós técnicos burgueses, em resposta às nossas necessidades e para cuidar de nossa 
sobrevivência? Nossas respostas técnicas são sempre respostas das necessidades de nossa classe 
e, portanto, se traduzem em marginalização da outra classe. As “instituições de violência” não 
são mais que uma de nossas respostas, nascidas exclusivamente em função de nossa 
proteção. Doença e inadaptação não são senão ocasiões para por em prática a marginalização, 
segundo o molde da ciência que as converte em “fenômenos naturais” e oferece, assim, 
justificação técnica a um ato de destruição social. 
 
Se deseja encarar de verdade o problema da marginalização e da inadaptação, deve-se estudá-las 
em relação à estrutura social, à divisão antinatural sobre o qual tal estrutura se apoia e não como 
fenômenos isolados, simples anomalias individuais das quais certa porcentagem da população 
tem a desgraça de ser sujeito. 
 
Voltemos à análise das instituições que, em princípio, deveriam responder a estes problemas. 
Trata-se de instituições que partem de um pressuposto formal expressamente programado: o 
tratamento, a reeducação e a reabilitação tendo em vista a recuperação do internado. Se a 
finalidade destas instituições não fosse somente formal, senão praticamente realizada, estaria já 
resolvido o problema. Mas uma coisa é a função formal e outra, a prática real. E a verdade está 
na prática que nos demonstra como os internados de nossos manicômios e de nossos cárceres 
saem poucas vezes reabilitados: a finalidade efetiva destas instituições continua sendo a 
destruição dos que contém. 
 
 
14 
 
Países com uma enorme porcentagem de desocupados e semi-desocupados, que interesse pode 
ter em recuperar e reabilitar este lixo humano? Nesta perspectiva, a intervenção do técnico pode 
ser determinante ao esclarecer a contradição entre prática e ideologia, assim como, a finalidade 
neste contexto social, desta prática ideológica. 
 
Neste sentido, e para certos técnicos do tratamento e reabilitação, trabalhar nestas instituições 
significa tornar explícita a função discriminante de classe, isto é, repelir a delegação implícita em 
nossa técnica demonstrando qual é a real utilização prática de nossa intervenção especializada:quais são seus limites e qual a natureza dos mesmos, quais são os mecanismos, sempre novos, 
diferentes e ao mesmo tempo idênticos, que servem para esta utilização. Ao se falar de 
reabilitação e de recuperação, a proposição não pode ser nem técnica nem organizativa: é sempre 
uma proposição política que se relaciona com a premissa referente à primeira divisão 
antinatural sobre a qual se fundamenta nosso sistema social. 
 
Que se pretende fazer dos homens, e não nos esqueçamos que se trata sempre de 
proletários e subproletários, reabilitados? Há lugar para eles em nossa sociedade? Isto é, 
uma vez reabilitados, encontram um trabalho com o qual satisfaz suas necessidades e de 
sua família? Por acaso não é certo que os regulamentos sobre os quais se organizam as 
instituições de marginalização estão estruturados de modo que a reabilitação não seja possível já 
que, em definitivo estes indivíduos, uma vez reabilitados, ficariam à margem, expostos 
continuamente ao perigo de cair novamente em novas infrações de uma norma que para eles 
nunca teve função protetora, e sim repressiva? Sua possibilidade de reabilitação é diretamente 
proporcional à disponibilidade, ou não, de mão-de-obra, ao trabalho que encontram fora, na 
comunidade chamada livre, disponibilidade que segue as fases de restrição ou de expansão 
econômica. As oscilações do número de internados e de “altas” em nossos manicômios está 
diretamente ligada às fases do desenvolvimento econômico geral, no sentido que segundo os 
diversos momentos de desenvolvimento ou recessão e crise, se assiste a uma paralela 
extensão ou restrição dos limites da norma e, em conseqüência, a um aumento ou 
diminuição da tolerância relativa aos comportamentos anormais (fenômeno que, 
presumivelmente, é igual no que se refere ao funcionamento dos aprisionamentos). 
 
Mais além deste fato determinante, o estreitamento ligado a ele, existe outro fenômeno que 
nunca se leva em conta: trata-se do sentido de pertencer à sociedade, totalmente ausente tanto 
nos internados de manicômios como nos de cárceres. E é óbvio. Se manicômios e prisões são 
organizações instituídas para responder às necessidades da sociedade “livre”, os internados não 
podem se reconhecer nesta sociedade que os castiga, segrega, destrói sem lhes oferecer uma 
alternativa possível. Não podem aceitar a identificação com regras que jamais respondem as suas 
necessidades. Não podem viver a internação como experiência que lhes ajude em seu processo 
de reabilitação: o tratamento é eficaz se o doente acredita nele, assim como a sentença somente 
tem sentido se aquele que cometeu o ato delituoso reconhecer haver se equivocado dentro de 
uma sociedade na qual tem confiança, porque se sente membro participante e porque acredita nas 
leis a cujo estabelecimento contribui. Mas estes homens, que tem às costas a história de uma 
marginalização que se perpetua em cada momento como marginalização de classe, não podem se 
sentir membros participantes desta sociedade, nem das leis e normas que ela estabelece porque 
nenhum deles contribui para criá-las e porque nenhuma lei de nosso sistema social, que não 
obstante se declara igual para todos, responde na prática às suas necessidades e a seus direitos. E 
 
 
15 
somente através da luta, esta classe chega a impor à classe dominante, as próprias necessidades e 
os próprios direitos: mas nem todos chegam a encaminhar a luta em sentido positivo, 
organizado, pois em ocasiões se reage com atos esporádicos, isolados, delinqüentes ou com 
comportamentos anormais que são automaticamente castigados. 
 
Isto não significa que não exista o problema da doença mental e da delinqüência, ou seja, que 
não exista o diferente como fenômeno humano e que a transformação de base social seja 
suficiente para suprimi-lo. O problema está justamente na incorporação deste conceito, isto é, na 
necessidade de fazer desaparecer o diferente como se a vida não o contivesse, ou eliminar, 
assim, tudo aquilo que possa pôr em dúvida a falsa coerência desta face lisa e polida, na qual 
tudo andaria bem se não fossem as “ovelhas negras”. 
 
 A realidade é que, enquanto o diferente da classe dominante é aceito e vivido como tal, ou seja, 
como um fenômeno humano que tem necessidade de respostas particulares (“diferentes”), o 
diferente da classe oprimida não é nunca aceito como tal e as respostas que lhe são dadas servem 
somente para eliminá-lo. Em uma sociedade dividida em classes, a doença e a delinqüência da 
classe dependente (aqueles que encontramos e conhecemos nas “instituições de violência”) se 
convertem em outra coisa diferente do que são e a única resposta, não pode ser, senão a 
repressão, sob mistificações mais ou menos claras, já que o que determina a natureza da resposta 
não é a natureza da necessidade e sim a que pertence quem a expressa. Se um sistema social está 
fundamentado sobre a manutenção de uma lógica econômica que não satisfaz às necessidades de 
todos, se o homem abstrato, em nome do qual invoca e se reclama as transformações e as 
reformas, não corresponde a todos os homens, então o ineficaz, o diminuído e débil, que é 
também o débil moral, ou seja, “o diferente” (é inútil que se trata sempre do “diferente” da classe 
dependente), será eliminado, destruído, portanto para ele a recuperação e reabilitação é 
impossível. 
 
Delimitou-se somente o processo através do qual se propõe cientificamente a “criminalidade” da 
doença e da inadaptação e aqueles outros através dos quais a necessidade por elas expressada se 
traduz em “crime” a castigar, para assim justificar a “criminalidade” da punição. A expressão 
própria do desacordo político parece destinada, em todas as partes, a sofrer este processo de 
“criminalização” e neste caso o jogo é, comparativamente, ainda mais explícito porque a ciência 
não tem encontrado, ainda, uma patologia suficientemente elaborada e confiável com a qual 
codificar estes comportamentos ( a resposta, neste caso, é mais direta e não tem necessidade de 
medicações: pode ser o assassinato ou a tortura). 
 
 Esta análise nos permite compreender como todas as instituições do nosso sistema social têm a 
função de responder às necessidades das pessoas uma vez que tenham sido “criminalizadas”, 
reduzidas ao que não são ou aquilo do que é expressão ou sintoma. A “criminalização” da 
necessidade é, na realidade, uma construção artificial: enfrenta-se duas formas de violência e de 
criminalidade, uma em resposta à outra, sem que se saiba qual é a necessidade real. A 
inadaptação e o comportamento anormal são “crimes” porque poderiam ser perigosos: a 
instituição destinada ao tratamento e à reabilitação da inadaptação e do comportamento anormal 
é “crime” em nome da prevenção deste perigo. Não existem necessidades e nem respostas às 
necessidades. 
Nesta situação é difícil, e até impossível, reconhecer o que são fenômenos tais como inadaptação 
e doença. É também difícil chegar a dar uma interpretação real dos fenômenos sociais. Na Itália, 
 
 
16 
por exemplo, se vive há anos em um clima de ameaça de violência. No momento que escreve 
(Março, 1974), a ameaça de uma virada é sentida como real e a violência explícita como 
iminente, mas não se sabe ainda se o clima paranóide em que vivemos é real ou criado 
artificialmente como novo sistema de controle no qual cada cidadão desconfia do outro, e 
consequentemente, é sujeito e objeto de um controle que as instituições, violentas, já não 
conseguem garantir. 
 
Os desequilíbrios e as contradições sociais são, na Itália, mais fortes que em outros países 
europeus regidos por democracias burguesas (excluídos, obviamente, os países declaradamente 
fascistas), assim como é forte a oposição. Na Itália, por causa da profundidade dos 
desequilíbrios, e ao mesmo tempo a consciência destes desequilíbrios, a tendência à constituição 
de uma classe média única identificada com os valores propostos por um centro reduzidíssimode 
poder que a controla, acha dificuldade e resistência, ainda que certamente, a extensão da área dos 
estratos médios sobre os quais se tem amplo jogo este processo de identificação com valores 
dominantes significa um prenúncio. Existe uma classe operária ainda numericamente forte para 
garantir o controle de manobras de tipo golpista. Mas a atmosfera paranóide (real ou 
artificialmente criada) tende, não obstante, a debilitar as formas de oposição que vive em um 
estado contínuo de ameaça de violência. Os processos mediante os quais se produz esta 
debilitação passam também através das articulações que foram examinadas aqui, ou seja: as 
instituições e ideologias sobre cujas funções e significados não há uma clara tomada de 
consciência. 
 
A incorporação das ideologias e dos valores que nosso sistema social continua criando como 
falsas respostas às necessidades, não é sempre reconhecido como elemento de identificação com 
o agressor e, portanto, como aceitação passiva de dominação. Se a classe oprimida não toma 
consciência de todos os processos através dos quais atua a dominação (dominação que vai mais 
além da exploração, da nocividade do local de trabalho e de todos os temas reivindicativos de 
tipo salarial) poderia se encontrar facilmente em um manicômio universal no qual nós estaremos 
identificados como sintoma que nos definiu e que reconheceremos como real. Trata-se, 
obviamente, de um discurso simbólico em que adesão ao sintoma é correspondente à adesão aos 
valores que não próprios, e que apesar deles, se assume como respostas às próprias necessidades. 
 
Estamos numa encruzilhada muito perigosa. A ameaça de violência como forma de controle, 
pode ser traduzida facilmente, também na Itália, em uma violência explícita, se a classe 
dirigente, e as potências que estão às suas costas, se derem conta que as instituições tradicionais 
não bastam mais e que as novas ideologias de controle, que começam a ser importantes em 
países em desenvolvimento industrial mais avançado, requerem tempo para serem aplicadas, 
para se arraigarem e para adquirirem o crédito científico necessário como reforço da dominação. 
É neste momento que a vigilância e a força da classe que se opõe a este jogo podem ser 
determinantes no que se refere a preveni-lo a desmascará-lo, porque a alternativa entre a ameaça 
de violência em que se vive e a violência sem máscaras é o massacre, a tortura, na qual as 
ideologias podem servir, somente para garantir a assistência ao torturado. 
 
Já está bastante extenso o sentimento do nascimento desta nova utilização da ciência e da 
técnica. 
O general Massu em seu livro “La Vraie battaille D Alger” faz saber que, se as circunstâncias o 
exigem, pode se exercitar uma tortura sã, confiando este dever à pessoal qualificado e 
 
 
17 
especialmente preparado na técnica necessária para o bom resultado dos interrogatórios. Entre 
nós, médicos “experimentalistas” introduzem um cateter na uretra ou anus (coisa que não tem 
nenhum significado terapêutico ou diagnóstico) de crianças que sofrem de enurese noturna, com 
a única justificativa de que as crianças são assistidas por psicólogos que as preparam para 
suportar o experimento inútil. Em um diário brasileiro clandestino, comunica-se que um 
psicanalista, na espera de ser reconhecido como membro da sociedade de psicanálise, está 
designado à assistência psicológica ao torturador. No Uruguai aos terapeutas que são suspeitos, é 
privado o segredo profissional, que sob ameaça de tortura são obrigados a dizer o que sabem do 
paciente. 
 
Só a ciência e suas instruções não bastam para responder ou controlar as necessidades, é a tortura 
a que se propõe, então, explicitamente como uma instituição, com seus técnicos, seus 
profissionais, suas regras “humanas”, seu código e sua moral, abrindo novos campos de 
aceitação para os técnicos das ciências humanas. 
 
 Frente a esta realidade, qual é a tarefa do psiquiatra, do psicólogo, do criminólogo que atuam no 
âmbito institucional? Criar uma alternativa para a intervenção técnica deveria significar chegar a 
traduzir nossa ação na prestação de um serviço que sirva, justamente enquanto tal, ao assistido e 
ao mesmo tempo a sua tomada de consciência da utilização, contra ele mesmo, que geralmente 
se dá a este serviço. Significa, portanto, tomar consciência de que cada intervenção técnica tem 
em si mesma uma efetiva finalidade política: a de ser um dos instrumentos dos quais se serve a 
classe dominante para perpetuar sua dominação. 
 
Mas além dos privilégios que gozamos enquanto técnicos burgueses sujeitos da dominação 
implícita em nosso “rol” de poder, podemos ainda tentar ser agentes de transformação 
mediante a localização das necessidades, na prática real, e o desmascaramento dos processos que 
convertem as ditas necessidades (também nos olhos de quem as expressa) em algo distinto 
daquilo que são. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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