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epistemologia e modernidade AUTOR: JOSÉ RICARDO CUNHA ROTEIRO DE CURSO 2010.1 1ª eDIçãO Sumário Epistemologia e modernidade I. APRESENTAÇÃO DO CURSO.......................................................................................................................................................... 03 II. PROGRAMA DO CURSO .............................................................................................................................................................. 05 III. BIBLIOGRAFIA SUGERIDA ......................................................................................................................................................... 07 IV. PLANO DAS AULAS ................................................................................................................................................................... 10 AULA 1. INTRODUÇÃO AO CURSO E SEUS OBJETIVOS. PENSAMENTO E VERDADE ................................................................................. 10 AULA 2. NOSSA IDÉIA DE VERDADE: ALETHEIA, VERITAS, EMUNAH ................................................................................................... 14 AULA 3. REALIDADE E VERDADE: HERÁCLITO E PARMÊNIDES ............................................................................................................ 17 AULA 4. LINGUAGEM E VERDADE: OS SOFISTAS ................................................................................................................................ 26 AULA 5. CONCEITO E VERDADE: SÓCRATES ....................................................................................................................................... 29 AULA 6. INATISMO: DESCARTES ...................................................................................................................................................... 31 AULA 7. EMPIRISMO: HUME E LOCKE .............................................................................................................................................. 35 AULA 8. FORMALISMO JURÍDICO E REALISMO JURÍDICO ................................................................................................................... 39 AULA 9. CRITICISMO: KANT ............................................................................................................................................................ 42 AULA 10. O POSITIVISMO: COMTE ................................................................................................................................................... 48 AULA 11. MODERNIDADE E IDEOLOGIA CIENTIFICISTA ..................................................................................................................... 53 AULAS 12 E 13. OS POSITIVISMOS JURÍDICOS E A CIÊNCIA DO DIREITO .............................................................................................. 57 3FGV DIREITO EpIsTEmOlOGIa E mODERnIDaDE i. apresentaÇÃo do CUrso Saudações acadêmicas! Este é o Curso de Ciência e Modernidade – uma introdu- ção ao problema da verdade. Trata-se de um curso de filosofia que caminha entre a filosofia geral e a filosofia do direito e sua missão é problematizar o tema da verda- de. Dessa forma, serve como pressuposto lógico e didático para o curso de filosofia do semestre seguinte, que irá problematizar o tema da justiça. Assim, o aluno será inserido nos dois pilares filosóficos – verdade e justiça – especialmente escolhidos e pensados para a grade curricular da Escola de Direito do Rio de Janeiro da Funda- ção Getulio Vargas. Toda a tradição jurídica foi forjada tendo como pressuposto conceitual, de forma mais ou menos clara, a idéia de verdade: verdade dos fatos, verdade das leis, verdade da constituição, verdade do processo, verdade do discurso, verdade do intérprete, etc. Ainda que o conceito em si de verdade nunca tenha sido te- matizado de forma absoluta ou mesmo encontrado um consenso entre filósofos ou juristas, a idéia da verdade sempre esteve – e ainda está – amparando e legiti- mando o direito e as decisões jurídicas. Seja pela recorrência aos fatos, às normas ou à argumentação, a comunidade jurídica busca um amparo de veracidade que responda aos anseios da consciência epistemológica de toda a sociedade. Isso deve deixar claro que o problema da verdade não é específico do direito, nem mesmo da filosofia, mas, antes, trata-se de um problema humano e, por isso mesmo, social. Essa imbricação entre sociedade e verdade nunca foi tão profunda e tão explí- cita como na modernidade. O laicismo moderno foi convertido em cientificismo moderno e a ciência, tendo na técnica o seu braço operacional, passou a ocupar o centro do pensamento social e o lugar privilegiado da verdade. Todas as formas de conhecimento e instituições modernas foram, então, visceralmente marcadas por essa “ideologia cientificista”. Foi assim com a economia, a política, a medicina e, dentre outras, o direito que, rapidamente, converteu-se em ciência do direito. Como se não bastasse, os próprios ramos do direito iniciaram uma corrida alucina- da pelo seu próprio estatuto de cientificidade e, por isso, lemos e ouvimos falar em coisas como “ciência do direito processual”, “ciência do direito penal” ou “direito civil como ciência própria dentro do direito”. Todas essas reflexões terão lugar neste curso de Ciência e Modernidade. Não se pode imaginar, hoje, a figura de um profissional crítico e hábil do direito, que seja capaz de pensar por problemas e raciocinar dialeticamente, sem que esteja inserido nesse debate filosófico e preparado para a problematização da verdade. Portanto, o presente curso não tem caráter secundário ou diletante. Embora esteja cercado pelos prazeres da filosofia, sua tarefa é árdua e exige concentração e aprofundamento. Tra- ta-se de uma oportunidade ímpar de experiência do pensamento para a qual estão todos desde já convidados. 4FGV DIREITO EpIsTEmOlOGIa E mODERnIDaDE 1. ObjetivO Geral da disciplina Introduzir noções essenciais para a problematização do conceito de verdade a partir da compreensão dos fundamentos da epistemologia, tendo em vista o estudo dos limites e possibilidades de uma ciência do direito no contexto da crise e da crí- tica do paradigma da modernidade. 2. ObjetivOs específicOs da disciplina 2.1. Apresentar a verdade como objeto de um intenso debate histórico – filosó- fico e jurídico – sobre o qual não há um consenso definitivo; 2.2. Estudar os principais fundamentos, antigos e modernos, que contribuíram para a constituição das idéias mais fortes de verdade na cultura ocidental; 2.3. Investigar as bases positivistas do cientificismo moderno e a sua inflexão sobre a chamada “ciência do direito”. 3. fOrmas de avaliaçãO O aluno será avaliado mediante sua participação qualificada em sala de aula, realização das leituras obrigatórias, trabalhos e provas que forem aplicados. 5FGV DIREITO EpIsTEmOlOGIa E mODERnIDaDE ii. programa do CUrso ementa Objetivos da filosofia e filosofia do direito. O pensamento e as tarefas do pen- samento. As idéias de verdade e seus desafios intelectuais e sociais. Fundamentos filosóficos da antiguidade para a verdade. Fundamentos filosóficos da modernidade para a verdade. Modernidade, verdade e ciência. O positivismo e os positivismos jurídicos na ciência do direito. intrOdUçãO: a verdade cOmO tema e prOblema 1. Introdução ao curso e seus objetivos. Pensamento e verdade. 2. Nossa idéia de verdade: aletheia, veritas, emunah. Unidade 1: fUndamentOs da antiGUidade 3. Realidade e verdade: Heráclito e Parmênides. 4. Linguagem e verdade: os Sofistas. 5. Conceito e verdade: Sócrates. Unidade 2: fUndamentOs da mOdernidade 6. Inatismo: Descartes. 7. Empirismo: Hume e Locke. 8. Formalismo Jurídico e Realismo Jurídico. 9. Criticismo: Kant.Unidade 3: ciÊncia e direitO na mOdernidade 10. O positivismo: Comte. 11. Modernidade e ideologia cientificista. 12. Positivismos jurídicos e a ciência do direito. 13. Os positivismos jurídicos e a ciência do direito II. 6FGV DIREITO EpIsTEmOlOGIa E mODERnIDaDE ObservaçãO impOrtante O Curso não se propõe a uma abordagem enciclopédica do tema proposto, o que seria impossível nos limites da carga horária da disciplina, além de didatica- mente questionável. O fio condutor de todas as reflexões é o tema da verdade e os autores serão abordados não com o fim de se conhecer suas respectivas obras, mas como forma de aproche para acepções relevantes ao tema. 7FGV DIREITO EpIsTEmOlOGIa E mODERnIDaDE iii. BiBliograFia sUgerida ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: frag- mentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. ALEXY, Robert. Derecho e razón práctica. México: Fontamara, 2002. ARAÚJO, Inês Lacerda. Introdução à filosofia da ciência. Curitiba: EdUFPR, 1993. ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. ARNAUD, André-Jean (Org.). Dicionário enciclopédico de teoria e sociologia do direito. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. ATIENZA, Manuel. As razões do direito: teorias da argumentação jurídica. São Paulo: Landy, 2000. BACON, Francis. Novum Organum ou verdadeiras indicações acerca da interpreta- ção da natureza. São Paulo: Abril Cultural, 1984. BARKER, Sir Ernest. 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ObjetivOs da aUla Apresentar o curso aos alunos e organizar a forma de avaliação; inserir o assunto da verdade mediante uma reflexão acerca do pensamento como experiência humana. prepare-se para a aUla Diz Aristóteles: “Foi, com efeito, pelo espanto que os homens, assim hoje como no começo, foram levadosa filosofar, sendo pri- meiramente abalados pelas dificuldades mais óbvias, e progredin- do em seguida pouco a pouco até resolverem problemas maiores...” (Aristóteles, Metafísica, I, 2). • O que significa o espanto ou estranhamento como condição para a filosofia? • O espanto ou estranhamento apenas pode acontecer diante das coisas que não são familiares? • Qual a relação (ou quais as relações possíveis) entre estranhamento e verdade? Nada nos é mais familiar do que o tempo. Veja o que diz Santo Agostinho sobre o tempo: “O que é o tempo? Tentemos fornecer uma explicação fácil e breve. O que há de mais familiar e conhecido do que o tempo? Mas o que é o tempo? Quando quero explicá-lo, não encontro explicação. Se eu disser que o tempo é a passagem do passado para o presente e do presente para o futuro, terei que perguntar: Como pode o tempo passar? Como sei que ele passa? O que é um tempo 13 3) PREPARE-SE PARA A AULA Diz Aristóteles: “Foi, com efeito, pelo espanto que os homens, assim hoje como no começo, foram levados a filosofar, sendo primeiramente abalados pelas dificuldades mais óbvias, e progredindo em seguida pouco a pouco até resolverem problemas maiores...” (Aristóteles, Metafísica, I, 2). x O que significa o espanto ou estranhamento como condição para a filosofia? x O espanto ou estranhamento apenas pode acontecer diante das coisas que não são familiares? x Qual a relação (ou quais as relações possíveis) entre estranhamento e verdade? Nada nos é mais familiar do que o tempo. Veja o que diz Santo Agostinho sobre o tempo: “O que é o tempo? Tentemos fornecer uma explicação fácil e breve. O que há de mais familiar e conhecido do que o tempo? Mas o que é o tempo? Quando quero explicá-lo, não encontro explicação. Se eu disser que o tempo é a passagem do passado para o presente e do presente para o futuro, terei que perguntar: Como pode o tempo passar? Como sei que ele passa? O que é um tempo passado? Onde ele está? O que é um tempo futuro? Onde ele está? Se o passado é o que eu, do presente recordo e o futuro é o que eu, do presente espero, então não seria mais correto dizer que o tempo é apenas o presente? Mas quanto dura um presente?? Quando acabo de colocar o “r” no verbo colocar, este “r” é ainda presente ou já é passado? A palavra que estou pensando em escrever a seguir, é presente ou futuro? O que é o tempo afinal?” (Santo Agostinho, Confissões) Como o tempo é familiar e pode ser estranhado, também as verdades são familiares e podem e devem ser estranhadas. Mas para que isso aconteça, é necessário abrir-se a uma experiência radical de pensamento. Para tanto, nada melhor do que a provocação feita por Heidegger: 9 “O que é o tempo? Tentemos fornecer uma explicação fácil e breve. O que há de mais familiar e conhecido do que o tempo? Mas o que é o tempo? Quando quero explicá-lo, não encontro explicação. Se eu disser que o tempo é a passagem do passado para o presente e do presente para o futuro, terei que perguntar: Como pode o tempo passar? Como sei que ele passa? O que é um tempo passado? Onde ele está? O que é um tempo futuro? Onde ele está? Se o passado é o que eu, do presente recordo e o futuro é o que eu, do presente espero, então não seria mais correto dizer que o tempo é apenas o presente? Mas quanto dura um presente?? Quando acabo de colocar o “r” no verbo colocar, este “r” é ainda presente ou já é passado? A palavra que estou pensando em escrever a seguir, é presente ou futuro? O que é o tempo afinal? (Santo Agostinho, Confissões) Como o tempo é familiar e pode ser estranhado, também as verdades são familiares e podem e devem ser estranhadas. Mas para que isso aconteça, é necessário abrir-se a uma experiência radical de pensamento. Para tanto, nada melhor do que a provocação feita por Heidegger: “O QUE MAIS DESAFIA O PENSAMENTO NESSA ÉPOCA DE DESAFIO DO PENSAMENTO, É QUE AINDA NÃO COMEÇAMOS A PENSAR.” Deve-se indagar ao aluno: x Por que ainda não começamos a pensar? x O que é pensar? O debate deve ser canalizado para a síntese negativa, isto é, o que não é pensar: x Pensar não é divagar ou devanear sem compromissos; ninguém se perde no pensamento, ao contrário, se acha. x Pensar não é racionalizar na forma de causalidades, antecedentes e conseqüentes; pensar não é cálculo nem ser eficiente. x Pensar não é mimese, não é fazer a mera repetição. Embora todos estes elementos possam até fazer parte de um contexto maior do pensamento, pensar é mais do que isso. Pensar é criar. Pensar é poder fazer surgir o inexistente dando sentido às coisas e ao mundo. Assim, pensar é um movimento de reapropriação do mundo por meio da significação e resignificação do mundo, o que faz 11FGV DIREITO EpIsTEmOlOGIa E mODERnIDaDE passado? Onde ele está? O que é um tempo futuro? Onde ele está? Se o passado é o que eu, do presente recordo e o futuro é o que eu, do presente espero, então não seria mais correto dizer que o tempo é apenas o presente? Mas quanto dura um presente?? Quando acabo de colocar o “r” no verbo colocar, este “r” é ainda presente ou já é passado? A palavra que estou pensando em escrever a seguir, é presente ou futuro? O que é o tempo afinal?” (Santo Agostinho, Confissões) Como o tempo é familiar e pode ser estranhado, também as verdades são fami- liares e podem e devem ser estranhadas. Mas para que isso aconteça, é necessário abrir-se a uma experiência radical de pensamento. Para tanto, nada melhor do que a provocação feita por Heidegger: “O que mais desafia o pensamento nessa época de desafio do pensamen- to, é que ainda não começamos a pensar.” Diante da afirmação de Heidegger: • Por que ainda não começamos a pensar? • O que é pensar? Temos hoje, dois grandes obstáculos ao pensamento que devem ser superados: a. O individualismo: este nos conduz a achar que nossa subjetividade e opor- tunidades pessoais somente podem ser forjadas sem o outro ou contra o outro. b. A massificação: esta nos conduz à perda de nossa singularidade nos definindo apenas como parte de coletivos mais ou menos amorfos e repetitivos. Para se superar tais obstáculos, deve-se ter em conta que o pensamento é uma experiência existencial e histórica, por isso ao mesmo tempo pessoal e social. Tam- bém deve-se ter claro que pensar não é um ato, mas uma atitude que nos define diante da vida; nos define como sujeitos criadores e capazes de transcender a mera repetição e a mesmificação. Representa, nesse sentido, 1) uma ruptura com as car- tilhas e manuais; e 2) uma exigência de justificação permanente de todas as normas e padrões de conduta. Certamente, a experiência de pensamento vai muito além da ordem do banal e exige esforço e superação. Leia a parábola abaixo, de Nietzsche, reflita e prepare-se para o debate: 9 “O que é o tempo? Tentemos fornecer uma explicação fácil e breve. O que há de mais familiar e conhecido do que o tempo? Mas o que é o tempo? Quando quero explicá-lo, não encontro explicação. Se eu disser que o tempo é a passagem do passado para o presente e do presente para o futuro, terei que perguntar: Como pode o tempo passar? Como sei que ele passa? O que é um tempo passado? Onde ele está? O que é um tempo futuro? Onde ele está? Se o passado é o que eu, do presente recordo e o futuro é o que eu, do presente espero, então não seria mais correto dizer que o tempo é apenas o presente? Mas quanto dura um presente?? Quando acabo de colocar o “r” no verbo colocar, este “r” é ainda presente ou já é passado? A palavra que estou pensando em escrever a seguir, é presente ou futuro? O que é o tempo afinal? (Santo Agostinho, Confissões) Como o tempo é familiar e pode ser estranhado, também as verdades são familiares e podem e devemser estranhadas. Mas para que isso aconteça, é necessário abrir-se a uma experiência radical de pensamento. Para tanto, nada melhor do que a provocação feita por Heidegger: “O QUE MAIS DESAFIA O PENSAMENTO NESSA ÉPOCA DE DESAFIO DO PENSAMENTO, É QUE AINDA NÃO COMEÇAMOS A PENSAR.” Deve-se indagar ao aluno: x Por que ainda não começamos a pensar? x O que é pensar? O debate deve ser canalizado para a síntese negativa, isto é, o que não é pensar: x Pensar não é divagar ou devanear sem compromissos; ninguém se perde no pensamento, ao contrário, se acha. x Pensar não é racionalizar na forma de causalidades, antecedentes e conseqüentes; pensar não é cálculo nem ser eficiente. x Pensar não é mimese, não é fazer a mera repetição. Embora todos estes elementos possam até fazer parte de um contexto maior do pensamento, pensar é mais do que isso. Pensar é criar. Pensar é poder fazer surgir o inexistente dando sentido às coisas e ao mundo. Assim, pensar é um movimento de reapropriação do mundo por meio da significação e resignificação do mundo, o que faz 12FGV DIREITO EpIsTEmOlOGIa E mODERnIDaDE Das três metamorfoses Três metamorfoses, nomeio-vos, do espírito: como o espírito se torna camelo e o camelo, leão e o leão, por fim, criança. Muitos fardos pesados há para o espírito, o espírito forte, o espírito de suportação, ao qual inere o respeito; cargas pesadas, as mais pesa- das, pede a sua força. “O que há de pesado?”, pergunta o espírito de suportação; e ajoe- lha como um camelo e quer ficar bem carregado. “O que há de mais pesado, ó heróis”, pergunta o espírito de supor- tação, “para que eu o tome sobre mim e minha força se alegre? Não será isto: humilhar-se, para magoar o próprio orgulho? Fazer brilhar a pró- pria loucura, para escarnecer da própria sabedoria? Ou será isto: apartar-se da nossa causa, quando ela celebra o seu triunfo? Subir para altos montes, a fim de tentar o tentador? Ou será isto: alimentar-se das bolotas e da erva do conhecimento e, por amor à verdade, padecer fome na alma? Ou será isto: estar enfermo e mandar embora os consoladores e ligar-se de ami- zade aos surdos, que não ouvem nunca o que queremos? Ou será isto: entrar na água suja, se for a água da verdade, e não enxotar de si nem as frias rãs nem os ardorosos sapos? Ou será isto: amar os que nos desprezam e estender a mão ao fantasma, quando ele nos quer assustar?” Todos estes pesadíssimos fardos toma sobre si o espírito de suportação; e, tal como o camelo, que marcha carregado para o deserto, marcha ele para o seu próprio deserto. Mas, no mais ermo dos desertos, dá-se a segunda metamorfose: ali o espírito tor- na-se leão, quer conquistar, como presa, a sua liberdade e ser senhor em seu próprio deserto. Procura ali, o seu derradeiro senhor: quer tornar-se-lhe inimigo, bem como do seu derradeiro deus, quer lutar para vencer o dragão. Qual é o grande dragão, ao qual o espírito não quer mais chamar senhor nem deus? “Tu deves” chama-se o grande dragão. Mas o espírito do leão diz: “Eu quero”. “Tu deves” barra-lhe o caminho, lançando faíscas de ouro; animal de escamas, em cada escama resplende, em letras de ouro, “Tu deves !” Valores milenários resplendem nessas escamas; e assim fala o mais poderoso de todos os dragões: “Todo o valor das coisas resplende em mim. Todo o valor já foi criado e todo o valor criado sou eu. Na verdade, não deve mais haver nenhum ‘Eu quero’!” Assim fala o dragão. Meus irmãos, para que é preciso o leão, no espírito? Do que já não dá conta sufi- ciente o animal de carga, suportador e respeitador? Criar novos valores – isso também o leão ainda não pode fazer; mas criar para si a liberdade de novas criações – isso a pujança do leão pode fazer. Conseguir essa liberdade e opor um sagrado “não” também ao dever: para isso, meus irmãos, precisa-se do leão. 10 como seres humanos. Assim, não pensamos por que somos humanos, mas somos humanos porque pensamos. Pelo pensamento nos humanizamos e humanizamos o mundo ao mesmo tempo em que o recriamos. Dessa forma dá-se a cultura. Somos mais do que seres da natureza, somos culturais porque reinventamos nosso mundo. Pensar é, por isso mesmo, uma experiência radical de LIBERDADE. Por ele nos libertamos das tutelas e curatelas para nos reinventarmos sob novas e infinitas possibilidades. Contudo, para que isso aconteça, antes de qualquer coisa, é necessário superar dois grandes obstáculos: 1. O individualismo: este nos conduz a achar que nossa subjetividade e oportunidades pessoais somente podem ser forjadas sem o outro ou contra o outro. 2. A massificação: esta nos conduz à perda de nossa singularidade nos definindo apenas como parte de coletivos mais ou menos amorfos e repetitivos. Para se superar tais obstáculos, deve-se ter em conta que o pensamento é uma experiência existencial e histórica, por isso ao mesmo tempo pessoal e social. Também deve-se ter claro que pensar não é um ato, mas uma atitude que nos define diante da vida; nos define como sujeitos criadores e capazes de transcender a mera repetição e a mesmificação. Representa, nesse sentido, 1) uma ruptura com as cartilhas e manuais; e 2) uma exigência de justificação permanente de todas as normas e padrões de conduta. Certamente, a experiência de pensamento vai muito além da ordem do banal e exige esforço e superação. Nessa linha, vale discutir com os alunos a parábola das Três Metamorfoses de Nietzsche: Das três metamorfoses Três metamorfoses, nomeio-vos, do espírito: como o espírito se torna camelo e o camelo, leão e o leão, por fim, criança. Muitos fardos pesados há para o espírito, o espírito forte, o espírito de suportação, ao qual inere o respeito; cargas pesadas, as mais pesadas, pede a sua força. "O que há de pesado?", pergunta o espírito de suportação; e ajoelha como um camelo e quer ficar bem carregado. "O que há de mais pesado, ó heróis", pergunta o espírito de suportação, "para que eu o tome sobre mim e minha força se alegre? 13FGV DIREITO EpIsTEmOlOGIa E mODERnIDaDE Conquistar o direito de criar novos valores – essa é a mais terrível conquista para o espírito de suportação e de respeito. Constitui para ele, na verdade, um ato de rapina e tarefa de animal rapinante. Como o que há de mais sagrado amava ele, outrora, o “Tu deves”; e, agora, é forçado a encontrar quimera e arbítrio até no que tinha de mais sagrado, a fim de arrebatar a sua própria liberdade ao objeto desse amor: para um tal ato de rapina, precisa-se do leão. Mas dizei, meus irmãos, que poderá ainda fazer uma criança, que nem sequer pôde o leão? Por que o rapace leão precisa ainda tornar-se criança? Inocência, é a criança, e esquecimento; um novo começo, um jogo, uma roda que gira por si mesma, um movimento inicial, um sagrado dizer “sim”. Sim, meus irmãos, para o jogo da criação é preciso dizer um sagrado “sim”: o espírito, agora, quer a sua vontade, aquele que está perdido para o mundo conquista o seu mundo. Nomeei-vos três metamorfoses do espírito: como o espírito torna-se camelo e o camelo, leão e o leão, por fim criança. Assim falou Zaratustra. (Nietzsche, Assim Falou Zaratustra) bibliOGrafia complementar CUNHA, José Ricardo. Direito e estética: fundamentos para um direito huma- nístico. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1998. (Capítulo 2 – O Homem como Universo Infinito de Possibilidades, pp. 55-74) GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Palavra e Verdade: na filosofia antiga e na psica- nálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990. (Introdução, pp. 7-23) 14FGV DIREITO EpIsTEmOlOGIa E mODERnIDaDE aUla 2. nossa idÉia de Verdade: aletHeia, Veritas, emUnaH NOTA AO ALUNO tema da aUla A idéia de verdade, suas contradições e possibilidades na filosofia e no direito.ObjetivOs da aUla Desenvolver uma reflexão sobre o conceito, sentido e limites da verdade; apre- sentar as principais tradições que confluíram para nossa idéia geral de verdade; co- tejar a idéia de verdade com a experiência jurídica. prepare-se para a aUla A busca pela verdade é tão antiga quanto a existência do homem no mundo. Trata-se mesmo de um traço antropológico, pois em todas as relações que o ho- mem trava (consigo mesmo, com o outro, com a natureza e com Deus) ele busca encontrar nela uma verdade. Essa busca pela verdade gera no homem certo conforto e estabilidade por estar diante de algo que acredita como fidedigno, naturalmente digno de confiança. De efeito, a busca pela verdade acaba por atribuir à verdade um valor em si mesmo, de forma que o verdadeiro é considerado bom e a verdade um bem. Entretanto, nem tudo pode ser qualificado como verdadeiro: a verdade deve, antes de qualquer coisa, ser buscada. Para isso, historicamente se diferenciou verdade de senso comum. No senso comum, permanecemos com nossas opiniões e crenças sem ter nenhum motivo para duvidar delas. Aqui, em geral, se reproduz as afirmações que são recebidas prontas, correndo-se o sério risco de perpetuar mitos e preconceitos. Quando o senso comum se cristaliza sobremaneira, estamos diante do que pode ser chamado de pensamento mítico, por oposição a um pensamento crítico. Veja e reflita sobre a tabela abaixo: pensamento mÍtiCo pensamento CrÍtiCo Preso e modelado Livre e criativo Descomprometido e irresponsável Comprometido e responsável esvaziado de senso ético Marcado pelo senso ético Simples Complexo Subserviente Autônomo. Evidentemente que a busca da verdade somente pode se realizar de forma crítica, isto é, no campo do pensamento crítico. Também relacionada com a verdade, mas diferente do senso comum ou do pensamento mítico, é a incerteza. Assim como no senso comum ou no pensamento mítico, na ordem da incerteza também se está 15FGV DIREITO EpIsTEmOlOGIa E mODERnIDaDE fora da verdade. Todavia, diferentemente do que ocorre no senso comum ou pen- samento mítico, na incerteza tem-se plena consciência da distância da verdade e da própria ignorância. Na ocorrência da incerteza, ficamos em dúvida sobre em que acreditar ou em como agir diante de certas pessoas, fatos ou situações. Essa dúvida gerada pela incerteza, quando conectada ao pensamento mítico, gera medo e pa- ralisia; porém, quando conectada ao pensamento crítico, nos impulsiona na busca pela verdade. Nessa segunda hipótese, é condição imprescindível na dinâmica do conhecimento. Contudo, a pergunta primacial que se coloca é sobre a na- tureza da verdade. O que é a verdade? Pense sobre quais se- riam os sentidos possíveis para a verdade. A verdade nos conforta e alivia. Também nos oferece uma sensação maior de estabilida- de. Contudo, ela não é absoluta ou suficiente para nos afastar de todas as dúvidas e insegu- ranças. Seja porque novas situações e descober- tas exigem novas verdades, seja porque a pró- pria unidade ontológica da verdade pode sofrer fissuras. Assim, estaremos diante de aporias. Uma das mais conhecidas aporias é o chamado PARADOXO DO CRETENSE, ou Paradoxo do mentiroso. Na sua forma original é atribuído ao cretense Epimênides, que teria afirmado que todos os cretenses são mentirosos. Como Epimênides é ele mesmo um cretense, então se ele diz a verdade, é um mentiroso; logo está mentido. Assim, se o que ele diz é verdadeiro, então o que lê diz é falso. Contudo, se o que ele diz é falso, então o que lê diz é verdadeiro. Como reagir ao Paradoxo do Cretense?? e o direito? Como o problema da verdade se relaciona com o Direito? A todo tempo somos confrontados com expressões do tipo: verdade dos fa- tos, verdade das leis, verdade do processo ou verdade do intérprete. É possível falar-se em verdade ou seriam verdades? Como lidar com os problemas de insegurança jurídica? 18 PENSAMENTO MÍTICO PENSAMENTO CRÍTICO Preso e modelado Livre e criativo Descomprometido e irresponsável Comprometido e responsável Esvaziado de senso ético Marcado pelo senso ético Simples Complexo Subserviente Autônomo. Evidentemente, a busca da verdade somente pode se realizar de forma crítica, isto é, no campo do pensamento crítico. Também relacionada com a verdade, mas diferente do senso comum ou do pensamento mítico, é a incerteza. Assim como no senso comum ou no pensamento mítico, na ordem da incerteza também se está fora da verdade. Todavia, diferentemente do que ocorre no senso comum ou pensamento mítico, na incerteza tem-se plena consciência da distância da verdade e da própria ignorância. Na ocorrência da incerteza, ficamos em dúvida sobre em que acreditar ou em como agir diante de certas pessoas, fatos ou situações. Essa dúvida gerada pela incerteza, quando conectada ao pensamento mítico, gera medo e paralisia; porém, quando conectada ao pensamento crítico, nos impulsiona na busca pela verdade. Nessa segunda hipótese, é condição imprescindível na dinâmica do conhecimento. Deve-se deixar claro aos alunos como a busca pela verdade envolve três conceitos distintos, mas recorrentes: Contudo, a pergunta primacial que se coloca é sobre a natureza da verdade. O que é a verdade? Acerca dessa questão fundamental, somos herdeiros de três tradições lingüístico- culturais distintas: o grego, o latim e o hebraico. x Em grego, a verdade comumente diz-se aletheia, significando o não-oculto, o revelado. Trata-se de descobrir o que é da forma que é. Portanto, o verdadeiro se manifesta como tal ao espírito por oposição ao falso, ao dissimulado. O verdadeiro é o reto, sem distorção ou falseamento. Por isso, é evidente à razão. x Em Latim, a verdade se diz veritas, significando rigor, precisão, exatidão na descrição ou num relato sobre algo. Trata-se de apresentar algo exatamente como ocorreu, numa linguagem fiel ao acontecido. O verdadeiro é o enunciado ou o relato VERDADE SENSO COMUM INCERTEZA 19 • Em hebraico, a verdade se diz emunah, significando confiança, fidelidade a um pacto, acordo ou consenso. Trata-se da crença no que será, no que deve acontecer amanhã em função do que aconteceu hoje. O verdadeiro é o que se liga ao crer, ao acreditar, seja por razões psicológicas ou sociológica. Por isso depende de uma fé ou confiança intrínseca ao sujeito. Dessa forma, temos as três grandes tradições herdadas pela filosofia na constituição da idéia de verdade: • ver-perceber: liga-se ao que é; • falar-descrever: liga-se ao que foi; • crer-confiar: liga-se ao que será. Dependendo do sentido ao qual se atribua mais peso, a verdade pode se apresentar de uma ou outra forma: • Como alethéia (ver-perceber) sugere evidência ou a clássica correspondência entre nosso intelecto e a coisa. • Como veritas (falar-descrever) sugere validade, coerência interna explicitada pelo uso correto das regras da linguagem. • Como emunah (crer-confiar) sugere confiança em convenções ou consensos que são estabelecidos ou herdados pelos sujeitos. Esquematicamente temos: [inserir figura 05] A verdade nos conforta e alivia. Também nos oferece uma sensação maior de estabilidade. Contudo, ela não é absoluta ou suficiente para nos afastar de todas as dúvidas e inseguranças. Seja porque novas situações e descobertas exigem novas verdades, seja porque a própria unidade ontológica da verdade pode sofrer fissuras. Assim, estaremos diante de aporias. Uma das mais conhecidas aporias é o chamado PARADOXO DO CRETENSE, ou Paradoxo do mentiroso. Na sua forma original é atribuído ao cretense Epimênides, que teria 20 então o que lê diz “é falso”. Contudo, se o que ele diz é falso, então o que lê diz “é verdadeiro”. Claro que, na verdade, não há paradoxo, pois o fato de alguémser mentiroso não quer dizer que tudo que ele diz é mentira. Mas o problema aponta para o paradoxo real que pode ser apresentado pela frase: Esta sentença é falsa. Se a sentença é falsa, então ela é verdadeira, mas se for verdadeira, então ela é falsa. Pode-se desqualificar este paradoxo dizendo-se ser ele sem sentido e autoreferenciado. Mas podemos dar uma versão que não é auto-referente e tem pleno sentido gramatical: A SENTENÇA SEGUINTE É FALSA A SENTENÇA ANTERIOR É VERDADEIRA Estamos diante de uma inconsistência lógica que vem sendo discutida e enfrentada há muito tempo pela filosofia.1 Independente dos resultados a que se chegue, o fato é que mesmo em relação à verdade, não há apenas várias correntes ou definições, mas limites ontológicos e lógicos com os quais devemos conviver, a despeito da sensação de insegurança que possa gerar em nós. E O DIREITO? Como o problema da verdade se relaciona com o Direito? A todo tempo somos confrontados com expressões do tipo: “verdade dos fatos”, “verdade das leis”, “verdade do processo” ou “verdade do intérprete”. É possível falar-se em verdade ou seriam verdades? Como lidar com os problemas de insegurança jurídica? Aqui, deve-se apresentar aos alunos as categorias trabalhadas por autores como Jerzy Wróblewski e Manuel Atienza: contexto da descoberta e contexto da justificação. No direito não basta a verdade pura e simples. Como fenômeno da cultura o direito importa valores, sentido moral ou ético. Por isso, suas normas – genéricas ou concretas – devem ser justificadas. O justo está para o campo cultural como o verdadeiro está para o campo natural. No direito, verdadeiro e justo se imbricam no campo ético. 1 - Para uma boa síntese cf. KIRKHAM, Richard L. Teorias da Verdade. São Leopoldo: Unisinos, 2003. CONTEXTO DA DESCOBERTA Formas pelas quais chega-se à decisão. 16FGV DIREITO EpIsTEmOlOGIa E mODERnIDaDE bibliOGrafia Obrigatória CHAUI, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 1994. (Unidade 3, Ca- pítulo 2 Buscando a Verdade; e Capítulo 3 As Concepções de Verdade; pp. 94-107) complementar KIRKHAN, Richard. Teorias da verdade. São Leopoldo: Unisinos, 2003. (Capí- tulo 1 Projetos de Teoria da Verdade; e Capítulo 9 O Paradoxo do Mentiro- so) 17FGV DIREITO EpIsTEmOlOGIa E mODERnIDaDE aUla 3. realidade e Verdade: HerÁClito e parmÊnides NOTA AO ALUNO tema da aUla Ontologia do real: o problema do ser e do devir. ObjetivOs da aUla Introduzir o debate acerca do ser e do devir como problema ontológico para a compreensão da verdade acerca do real. desenvOlvimentO No contexto do pensamento pré-socrático, dois grandes filósofos (ou pensado- res) se destacaram pela visceralidade de seus pensamentos. Heráclito de Éfeso e Par- mênides de Eléa plantaram para toda a posteridade filosófica a questão do ser e do devir. Duas compreensões distintas e opostas da ontologia do real que, ao mesmo tempo, informam e desafiam as concepções de verdade. Heráclito de Éfeso “Não se pode entrar duas vezes no mesmo rio. Dispersa-se e reúne-se; avança e se retira.” (Fragmento 91) A mudança, a transformação e, por conseqüência, o conflito, são partes imanentes da filosofia heraclitiana. Tamanha a importância desse filósofo Pré-Socrático que alguns autores atribuem a ele uma escola própria, independente da Escola Jônica: a Escola Mobilista, com tal denominação justamente por conter no cerne de seu raciocínio filosófico a idéia de movimento. O movimento, que surge a partir da força dos contrários é, em si mesmo, a força dialética por excelência: “movendo-se, descansa (o fogo etéreo do corpo humano)” (Fragmento 84 a). O pensamento logológico de Heráclito, ao encontrar-se com o dinamismo do movimento, reveste-se de imprevisibilidade, na medida em que nada é, mas vem-a-ser, a partir do encontro com seu contrário: “Tudo se faz por contraste; da luta dos contrários nasce a mais bela harmonia” (Fragmento 08). Logo, nada é absoluto, pois o movimento constante faz com que as coisas sejam e não sejam numa dinâmica sem fim. 24 AULA 3. REALIDADE E VERDADE: HERÁCLITO E PARMÊNIDES NOTA AO PROFESSOR 1. Tema da aula Ontologia do real: o problema do ser e do devir. 2. Objetivos da aula Introduzir o debate acerca do ser e do devir como problema ontológico para a compreensão da verdade acerca do real. 3. DESENVOLVIMENTO No contexto do pensamento pré-socrático, dois grandes filósofos (ou pensadores) se destacaram pela visceralidade de seus pensamentos. Heráclito de Éfeso e Parmênides de Eléa plantaram para toda a posteridade filosófica a questão do ser e do devir. Duas compreensões distintas e opostas da ontologia do real que, ao mesmo tempo, informam e desafiam as concepções de verdade. HERÁCLITO DE ÉFESO “Não se pode entrar duas vezes no mesmo rio. Dispersa-se e reúne- se; avança e se retira.” (Fragmento 91) A mudança e a transformação e, por conseqüência, o conflito são partes imanentes da filosofia heraclitiana. Tamanha a importância desse filósofo Pré-Socrático que alguns autores atribuem a ele uma escola própria, independente da Escola Jônica: a Escola Mobilista, com tal denominação justamente por conter no cerne de seu raciocínio filosófico a idéia de movimento. O movimento, que surge a partir da força dos contrários é, em si mesmo, a força dialética por excelência: "movendo-se, descansa (o fogo etéreo do corpo 18FGV DIREITO EpIsTEmOlOGIa E mODERnIDaDE e o direito? Acreditar no devir heraclitiano significa admitir que tudo está em constante mutação, inclusive o Direito. Se levarmos em conta a es- trutura tridimensional do direito, devemos considerar que basta a mudança de um de seus elementos (norma, fato ou valor) para que os demais também se transformem. Veja-se o caso Brown x Board Education (ao final da aula). parmênides de eléa “Pois bem, eu te direi, e tu recebe a palavra que ouviste, os únicos cami- nhos de inquérito que são a pensar: o primeiro, que é e portanto que não é não ser, de Persuasão é caminho (pois à verdade acompanha); o outro, que não é e portanto que é preciso não ser, este então, eu te digo, é atalho de todo incrível; pois nem conhecerias o que não é (pois não é exeqüível), nem o dirias...” (Fragmento 2). Parmênides, de uma geração após Heráclito e seu principal opositor, pode-se considerar como o principal representante da Filosofia do Ser. Desta forma, irá dis- tinguir dois caminhos básicos de reflexão filosófica: a do ser e a do não ser, sendo a segunda verdadeiramente impossível, dada sua não-existencialidade, e a primeira aquela que realmente leva a certeza, a verdade – alétheia. Fundamental na leitura do fragmento nos parece o caráter totalmente excludente instaurado por Parmênides no paradoxo ser / não ser. São duas proposições mutua- mente exclusivas. Não havendo intermediários possíveis e sendo o ser o único caminho investigatório capaz de levar a verdade, este é o absoluto, essência de todo o universo, a própria physis. E se a physis encontra-se na práxis humana pelo lógos, manifestada na prática racional-argumentativa, então a conclusão não poderia ser outra, senão a da fi- liação entre ser e pensar. Assim, para Parmênides, o único caminho filosófico é o do ser, aquele que possibilita o pensar; concomitantemente, o pensar passa a ser atividade in- trínseca do ser na sua manifestação lógica: “... pois o mesmo é a pensar e portanto ser”, diz o filósofo no seu fragmento de número três. O sentido absoluto do ser é nomeado no exercício da palavra que demarca o caráter de todos os entes: aquele que é, porque é preciso ser, não pode ser outra coisa, e o que não é, está excluído da verdade. e o direito? Acreditar no ser parmenídico significa admitir que tudo guarda uma essência imutável,ainda que uma camada superficial e acidental possa vir a se modificar, mas não a natureza das coisas. Logo, o Di- reito seria marcado por uma essência imutável. 20 então o que lê diz “é falso”. Contudo, se o que ele diz é falso, então o que lê diz “é verdadeiro”. Claro que, na verdade, não há paradoxo, pois o fato de alguém ser mentiroso não quer dizer que tudo que ele diz é mentira. Mas o problema aponta para o paradoxo real que pode ser apresentado pela frase: Esta sentença é falsa. Se a sentença é falsa, então ela é verdadeira, mas se for verdadeira, então ela é falsa. Pode-se desqualificar este paradoxo dizendo-se ser ele sem sentido e autoreferenciado. Mas podemos dar uma versão que não é auto-referente e tem pleno sentido gramatical: A SENTENÇA SEGUINTE É FALSA A SENTENÇA ANTERIOR É VERDADEIRA Estamos diante de uma inconsistência lógica que vem sendo discutida e enfrentada há muito tempo pela filosofia.1 Independente dos resultados a que se chegue, o fato é que mesmo em relação à verdade, não há apenas várias correntes ou definições, mas limites ontológicos e lógicos com os quais devemos conviver, a despeito da sensação de insegurança que possa gerar em nós. E O DIREITO? Como o problema da verdade se relaciona com o Direito? A todo tempo somos confrontados com expressões do tipo: “verdade dos fatos”, “verdade das leis”, “verdade do processo” ou “verdade do intérprete”. É possível falar-se em verdade ou seriam verdades? Como lidar com os problemas de insegurança jurídica? Aqui, deve-se apresentar aos alunos as categorias trabalhadas por autores como Jerzy Wróblewski e Manuel Atienza: contexto da descoberta e contexto da justificação. No direito não basta a verdade pura e simples. Como fenômeno da cultura o direito importa valores, sentido moral ou ético. Por isso, suas normas – genéricas ou concretas – devem ser justificadas. O justo está para o campo cultural como o verdadeiro está para o campo natural. No direito, verdadeiro e justo se imbricam no campo ético. 1 - Para uma boa síntese cf. KIRKHAM, Richard L. Teorias da Verdade. São Leopoldo: Unisinos, 2003. CONTEXTO DA DESCOBERTA Formas pelas quais chega-se à decisão. 26 OBS: Heráclito é o pai da dialética. [inserir figura 07] E O DIREITO? Acreditar no devir heraclitiano significa admitir que tudo está em constante mutação, inclusive o Direito. Se levarmos em conta a estrutura tridimensional do direito, devemos considerar que basta a mudança de um de seus elementos (norma, fato ou valor) para que os demais também se transformem. Veja-se o caso Brown x Board Education (ao final da aula). PARMÊNIDES DE ELÉA "Pois bem, eu te direi, e tu recebe a palavra que ouviste, os únicos caminhos de inquérito que são a pensar: o primeiro, que é e portanto que não é não ser, de Persuasão é caminho (pois à verdade acompanha); o outro, que não é e portanto que é preciso não ser, este então, eu te digo, é atalho de todo incrível; pois nem conhecerias o que não é (pois não é exeqüível), nem o dirias..." (Fragmento 2). Parmênides, de uma geração após Heráclito, e seu principal opositor, pode-se considerar como o principal representante da Filosofia do Ser. Desta forma, irá distinguir dois caminhos básicos de reflexão filosófica: a do ser e a do não ser, sendo a segunda verdadeiramente impossível, dada sua não-existencialidade, e a primeira aquela que realmente leva à certeza, à verdade – alétheia. Fundamental na leitura do fragmento nos parece o caráter totalmente excludente instaurado por Parmênides no paradoxo ser / não ser. São duas proposições mutuamente exclusivas. Não havendo intermediários possíveis e sendo o ser o único caminho investigatório capaz de levar a verdade, este é o absoluto, essência de todo o universo, a própria physis. E se a physis encontra-se na práxis humana pelo lógos, manifestada na prática racional-argumentativa, então a conclusão não poderia ser outra, senão a da filiação entre ser e pensar. Assim, para Parmênides, o único caminho filosófico é o do ser, aquele que possibilita o pensar; concomitantemente, o pensar passa a ser atividade intrínseca do ser na sua manifestação lógica: "... pois o mesmo é a pensar e portanto ser", diz o filósofo no seu fragmento de número três. O sentido absoluto do ser é nomeado no exercício da palavra,que demarca o caráter de todos os entes: aquele que é, porque é preciso ser, não pode ser outra coisa, e o que não é, está excluído da verdade. 20 então o que lê diz “é falso”. Contudo, se o que ele diz é falso, então o que lê diz “é verdadeiro”. Claro que, na verdade, não há paradoxo, pois o fato de alguém ser mentiroso não quer dizer que tudo que ele diz é mentira. Mas o problema aponta para o paradoxo real que pode ser apresentado pela frase: Esta sentença é falsa. Se a sentença é falsa, então ela é verdadeira, mas se for verdadeira, então ela é falsa. Pode-se desqualificar este paradoxo dizendo-se ser ele sem sentido e autoreferenciado. Mas podemos dar uma versão que não é auto-referente e tem pleno sentido gramatical: A SENTENÇA SEGUINTE É FALSA A SENTENÇA ANTERIOR É VERDADEIRA Estamos diante de uma inconsistência lógica que vem sendo discutida e enfrentada há muito tempo pela filosofia.1 Independente dos resultados a que se chegue, o fato é que mesmo em relação à verdade, não há apenas várias correntes ou definições, mas limites ontológicos e lógicos com os quais devemos conviver, a despeito da sensação de insegurança que possa gerar em nós. E O DIREITO? Como o problema da verdade se relaciona com o Direito? A todo tempo somos confrontados com expressões do tipo: “verdade dos fatos”, “verdade das leis”, “verdade do processo” ou “verdade do intérprete”. É possível falar-se em verdade ou seriam verdades? Como lidar com os problemas de insegurança jurídica? Aqui, deve-se apresentar aos alunos as categorias trabalhadas por autores como Jerzy Wróblewski e Manuel Atienza: contexto da descoberta e contexto da justificação. No direito não basta a verdade pura e simples. Como fenômeno da cultura o direito importa valores, sentido moral ou ético. Por isso, suas normas – genéricas ou concretas – devem ser justificadas. O justo está para o campo cultural como o verdadeiro está para o campo natural. No direito, verdadeiro e justo se imbricam no campo ético. 1 - Para uma boa síntese cf. KIRKHAM, Richard L. Teorias da Verdade. São Leopoldo: Unisinos, 2003. CONTEXTO DA DESCOBERTA Formas pelas quais chega-se à decisão. 19FGV DIREITO EpIsTEmOlOGIa E mODERnIDaDE bibliOGrafia Obrigatória BORNHEIM, Gerd. Os filósofos pré-socráticos. São Paulo: Cultrix, 1999. (Intro- dução; Seção Heráclito de Éfeso; Seção Parmênides de Eléia) complementar KIRK, G.S. SHOFIELD, M. Os filósofos pré-socráticos. Lisboa: Calouste Gul- benkian, 1994. (Capítulo 2 Os Pensadores Jônios; e Capítulo 3 A Filosofia no Ocidente) aneXO brOWn cOntra a secretaria de edUcaçãO [brOWn v. bOard Of edUcatiOn]: a decisãO da sUprema cOrte QUe transfOrmOU Um país david pitts Em maio de 1954 – em uma decisão histórica, no caso Brown Contra a Secre- taria de Educação [Brown v. Board of Education] – a Suprema Corte dos Estados Unidos emitiu uma determinação segundo a qual as escolas públicas segregadas eram inconstitucionais. O nome no caso, Brown, é o nome de Oliver Brown, um negro, que iniciou um processo quando sua filha de sete anos, Linda, teve sua matrí- cula negada em uma escola primária só para brancos na pequena cidade de Topeka, Kansas, no meio-oeste dos Estados Unidos, onde eles viviam. Nosso colaborado, David Pitts, rastreou as origens de uma das mais importantes decisões na história do direito constitucional dos Estados Unidos, queresultou em transformações não apenas em Topeka, mas na nação inteira. Na primavera de 1954, Oliver Brown era o pai mais famoso dos Estados Uni- dos. Mas ele não era o único autor da ação no caso Brown contra a Secretaria de Educação, que originalmente foi iniciado em 1951. Doze outros autores em Topeka se uniram a Brown para representar seus filhos – 20 ao todo – que, em conformi- dade com a lei, deveriam freqüentar escolas primárias segregadas. A ação inicial foi apoiada pela seção de Topeka da Associação Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor [National Association for the Advancement of Colored People] (NAACP), a organização de direitos civis mais antiga do país. O caso Brown, no entanto, não foi a primeira vez que a educação segregada, san- cionada pela lei, sofreu um desafio nos Estados Unidos. Em 1849, uma ação havia sido iniciada em Boston, Massachusetts. Somente em Kansas, entre 1881 e 1949, 11 ações foram iniciadas contra os sistemas de escolas segregadas. Quando a ação de Topeka chegou à Suprema Corte, a segregação racial era a norma, não a exceção, em boa parte do país, e era permitida ou legalmente exigida em 24 estados. O caso 20FGV DIREITO EpIsTEmOlOGIa E mODERnIDaDE Brown se destaca porque foi o primeiro caso bem sucedido desse tipo, por causa da abrangência da determinação da Suprema Corte, e por causa do efeito radical que teve sobre a sociedade americana em meados do século XX. Herói Anônimo Foto: Cortesia de Marita Davis. À esquerda, Walter White, vice- president executivo da naacp; à direita, mcKinley burnett, presi- dente da seção da naacp de to- pekano início da década de 50. “O herói anônimo no processo de Topeka é McKin- ley Burnett,” que, na época, era o presidente da seção local da NAACP, diz C.E. (Sonny) Scroggins, chefe do Comitê de Kansas para a Comemoração do Caso Bro- wn Contra a Secretaria de Educação [Kansas Commit- tee to Commemorate Brown v. Board of Education]. “Foi Burnett que reuniu Oliver Brown e os outros pais e foi em frente com o desafio legal, com a ajuda dos advo- gados locais”, acrescenta Scroggins, um ponto de vista confirmado por outras fontes em Topeka. Na verdade, Burnett – com a ajuda da secretária da NAACP Lu- cinda Todd e os advogados Charles Scott, John Scott, Elisha Scott e Charles Bledsoe – desenvolveram uma estratégia para ganhar a causa. Burnett morreu em 1970. Seu filho, Marcus, que tinha 13 anos na época do processo inicial e que ainda mora em Topeka, diz que desafiar a segregação “foi uma luta à qual meu pai se dedicou por toda a sua vida”. Ele era um trabalhador comum que acreditava que a segregação poderia ser abolida por meio dos tribunais. O tempo inteiro ele estava convencido de que venceríamos. “A irmã de Marcus Burnett, Marita Davis, que atualmente mora em Kansas City, Kansas”, concorda. “Meu pai estava sempre lutando pelos seus direitos”, ela diz. “Eu me lembro de que, até mesmo quando eu era bem pequena, ele estava sempre escrevendo cartas e organizando reuniões. A luta contra a segregação nas escolas se tornou uma coisa muito importante para ele”. Autores De acordo com algumas fontes em Topeka, Oliver Brown tinha uma posição de liderança entre os autores, principalmente porque ele era o único homem do grupo. Mas Charles Scott Jr., filho do principal advogado local, diz que Oliver Brown “se tornou o líder entre os autores porque o seu nome era o primeiro, por ordem alfa- bética. O caso foi levado em frente por meu pai e por outros advogados locais, em colaboração com o Sr. Brunett e a NAACP”. Linda Brown Thompson, que atualmente tem 55 anos e ainda mora em To- peka, reluta em falar sobre a sua experiência e sobre o papel do seu pai ao desafiar o sistema, em parte porque ela acha que a mídia concentrou suas atenções em demasia na sua pessoa, ignorando os outros 12 autores da ação em Topeka. Sua irmã, Cheryl Brown Henderson, diretora-executiva da Fundação Brown para a Igualdade, Excelência e Pesquisa na Educação [Brown Foundation for Educational 28 iniciou um processo quando sua filha de sete anos, Linda, teve sua matrícula negada em uma escola primária só para brancos na pequena cidade de Topeka, Kansas, no meio-oeste dos Estados Unidos, onde eles viviam. Nosso colaborado, David Pitts, rastreou as origens de uma das mais importantes decisões na história do direito constitucional dos Estados Unidos, que resultou em transformações não apenas em Topeka, mas na nação inteira. Na primavera de 1954, Oliver Brown era o pai mais famoso dos Estados Unidos. Mas ele não era o único autor da ação no caso Brown contra a Secretaria de Educação, que originalmente foi iniciado em 1951. Doze outros autores em Topeka se uniram a Brown para representar seus filhos – 20 ao todo – que, em conformidade com a lei, deveriam freqüentar escolas primárias segregadas. A ação inicial foi apoiada pela seção de Topeka da Associação Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor [National Association for the Advancement of Colored People] (NAACP), a organização de direitos civis mais antiga do país. O caso Brown, no entanto, não foi a primeira vez que a educação segregada, sancionada pela lei, sofreu um desafio nos Estados Unidos. Em 1849, uma ação havia sido iniciada em Boston, Massachusetts. Somente em Kansas, entre 1881 e 1949, 11 ações foram iniciadas contra os sistemas de escolas segregadas. Quando a ação de Topeka chegou à Suprema Corte, a segregação racial era a norma, não a exceção, em boa parte do país, e era permitida ou legalmente exigida em 24 estados. O caso Brown se destaca porque foi o primeiro caso bem sucedido desse tipo, por causa da abrangência da determinação da Suprema Corte, e por causa do efeito radical que teve sobre a sociedade americana em meados do século XX. Herói Anônimo Foto: Cortesia de Marita Davis. À esquerda, Walter White, vice-president executivo da NAACP; "O herói anônimo no processo de Topeka é McKinley Burnett," que, na época, era o presidente da seção local da NAACP, diz C.E. (Sonny) Scroggins, chefe do Comitê de Kansas para a Comemoração do Caso Brown Contra a Secretaria de Educação [Kansas Committee to Commemorate Brown v. Board of Education]. "Foi Burnett que reuniu Oliver Brown e os outros pais e foi em frente com o desafio legal, com a ajuda dos advogados locais", acrescenta Scroggins, um ponto de vista confirmado por outras fontes em Topeka. Na verdade, Burnett -- com a ajuda da secretária da NAACP Lucinda Todd e os 21FGV DIREITO EpIsTEmOlOGIa E mODERnIDaDE Equity, Excellence and Research], concorda com a avaliação de Charles Scott Jr. “Temos muito orgulho do que nosso pai fez”, Henderson diz. “Mas é importante que o caso Brown não seja simplificado demais – não devemos esquecer os advo- gados, os outros autores em Topeka e os autores nos outros estados, que acabaram sendo incluídos no caso Brown”. Zelma Henderson e Vivian Scales, duas pessoas que fazem parte do grupo de autores de Topeka, e que ainda moram na cidade, eram jovens mães no início da década de 50. As duas mulheres estavam ansiosas para entrar no caso. E as duas são muito gratas a McKinley Burnett e aos advogados locais, dizendo que foi a liderança dessas pessoas que tornou possível a luta pela integração. “Eu tinha que levar meus dois filhos de carro até o outro lado da cidade, passando por duas escolas só para brancos, até uma escola só para negros”, diz Henderson. “Meus filhos sempre tiveram orgulho do papel que tive- mos na história”, ela continua. “Donald Andrew ainda está aqui em Topeka. Ele tem 55 anos. Mas minha filha, Vicki Ann, morreu de câncer em 1984.” Scales também diz que tinha que levar sua filha, Ruth Ann à escola, “passando por uma escola só para brancos que ficava bem em frente à nossa casa.Minha filha, que ainda mora aqui e está com 57 anos, se sente muito bem devido ao que acon- teceu. Eu acho que fizemos uma coisa muito importante”. A PrimeirA Decisão O dia de Burnett e dos autores no tribunal em Topeka foi o dia 28 de fevereiro de 1951. Eles compareceram ao Tribunal Federal de Primeira Instância da Circuns- crição de Kansas [U.S. District Court for the District of Kansas]. Raymond Carter, que atualmente é juiz federal em Nova York, era, na época, advogado do Fundo de Defesa Legal da NAACP [NAACP Legal Defense Fund]. Com a ajuda dos outros advogados locais, ele apresentou o caso e solicitou a emissão de um mandado judi- cial que proibisse a segregação nas escolas primárias públicas de Topeka. Os juízes se mostraram favoráveis à causa dos autores, dizendo, na sua decisão: “A segregação de crianças brancas e negras nas escolas públicas é prejudicial para as crianças negras”. Mas no final a decisão dos juízes foi contra os autores porque a Suprema Corte havia decretado, em uma decisão de 1896 – no caso Plessy contra Ferguson – que sistemas escolares “separados porém iguais” para negros e brancos eram, na verdade, constitucionais, e essa decisão não havia sido anulada. Portanto, o tribunal de Kansas se sentiu forçado a tomar uma decisão a favor da Secretaria de Educação de Kansas e contra os autores, por causa do episódio de Plessy. “De certa forma, meu pai, os outros advogados locais e o Sr. Burnett não ficaram decepcionados”, diz Charles Scott Jr. “Eles sabiam que a única forma de derrubar a segregação no país inteiro e não apenas em Topeka, era perder a causa e em seguida entrar com um recurso na Suprema Corte”. 30 "Eu tinha que levar meus dois filhos de carro até o outro lado da cidade, passando por duas escolas só para brancos, até uma escola só para negros", diz Henderson. “Meus filhos sempre tiveram orgulho do papel que tivemos na história”, ela continua. "Donald Andrew ainda está aqui em Topeka. Ele tem 55 anos. Mas minha filha, Vicki Ann, morreu de câncer em 1984." Scales também diz que tinha que levar sua filha, Ruth Ann à escola, "passando por uma escola só para brancos que ficava bem em frente à nossa casa. Minha filha, que ainda mora aqui e está com 57 anos, se sente muito bem devido ao que aconteceu. Eu acho que fizemos uma coisa muito importante." A Primeira Decisão O dia de Burnett e dos autores no tribunal em Topeka foi o dia 28 de fevereiro de 1951. Eles compareceram ao Tribunal Federal de Primeira Instância da Circunscrição de Kansas [U.S. District Court for the District of Kansas]. Raymond Carter, que atualmente é juiz federal em Nova York, era, na época, advogado do Fundo de Defesa Legal da NAACP [NAACP Legal Defense Fund]. Com a ajuda dos outros advogados locais, ele apresentou o caso e solicitou a emissão de um mandado judicial que proibisse a segregação nas escolas primárias públicas de Topeka. Os juízes se mostraram favoráveis à causa dos autores, dizendo, na sua decisão: "A segregação de crianças brancas e negras nas escolas públicas é prejudicial para as crianças negras." Mas no final a decisão dos juízes foi contra os autores porque a Suprema Corte havia decretado, em uma decisão de 1896 -- no caso Plessy contra Ferguson -- que sistemas escolares "separados porém iguais" para negros e brancos eram, na verdade, constitucionais, e essa decisão não havia sido anulada. Portanto, o tribunal de Kansas se sentiu forçado a tomar uma decisão a favor da Secretaria de Educação de Kansas e contra os autores, por causa do episódio de Plessy. "De certa forma, meu pai, os outros advogados locais e o Sr. Burnett não ficaram decepcionados", diz Charles Scott Jr. "Eles sabiam que a única forma de derrubar a segregação no país inteiro e não apenas em Topeka, era perder a causa e em seguida entrar com um recurso na Suprema Corte." A Decisão da Suprema Corte No dia 1 de outubro de 1951, ao ser preparado para ir ao tribunal que tem a posição hierarquicamente mais elevada no país, o caso Brown foi combinado a outros processos que desafiavam a segregação nas escolas, na Carolina do Sul, Virgínia, Delaware e no Distrito de Colúmbia. O nome do conjunto de casos passou a ser, 22FGV DIREITO EpIsTEmOlOGIa E mODERnIDaDE A Decisão DA suPremA corte No dia 1 de outubro de 1951, ao ser preparado para ir ao tribunal que tem a posição hierarquicamente mais elevada no país, o caso Brown foi combinado a ou- tros processos que desafiavam a segregação nas escolas, na Carolina do Sul, Virgínia, Delaware e no Distrito de Colúmbia. O nome do conjunto de casos passou a ser, oficialmente, Oliver L. Brown e Outros Contra a Secretaria de Educação de Topeka e Outros [Oliver L. Brown et al. v. The Board of Education of Topeka, et al]. Thur- good Marshall, que mais tarde foi o primeiro negro a fazer parte da Suprema Corte, era o diretor jurídico da NAACP no nível nacional. Ele apresentou – com sucesso – o caso, representando os autores. A decisão unânime declarando que as escolas segregadas eram inconstitucionais foi lida no dia 17 de maio de 1954, pelo juiz-presidente da Suprema Corte Earl Warren. “Concluímos”, ele disse, “que no campo da educação pública não há lugar para a doutrina de ‘separados porém iguais’. Estabelecimentos de ensino separados são inerentemente desiguais. Portanto, declaramos que os autores e outros que se encontram em situação similar, para os quais essas ações foram iniciadas, estão sen- do, devido à segregação da qual reclamaram, privados da proteção igual das leis, garantida pela Décima-Quarta Emenda”. umA GrAnDe VitóriA LeGAL O resultado do caso Brown Contra a Secretaria de Educação foi considerado uma grande vitória legal, um caso histórico que serve para mostrar que, nos Estados Unidos, os tribunais existem não apenas para condenar crimes, mas para afirmar direitos. “Trata-se de uma das mais importantes decisões da Suprema Corte”, diz Robert Barker, professor de direito e especialista em direito constitucional na Fa- culdade de Direito da Universidade de Duquesne [Duquesne University School of Law] em Pittsburgh, Pensilvânia. “É importante observar”, ele acrescenta, “que a Suprema Corte contou com a cláusula de proteção eqüitativa da Décima-Quarta Emenda da Constituição dos Estados Unidos, ao apresentar a sua decisão. A Corte aplicou a cláusula de proteção eqüitativa com a finalidade a que ela se destina – proporcionar proteção para os negros, em particular”. No entanto, segundo Barker, há um significado mais amplo. “A decisão de 1954 resultou em muitos outros casos nos quais a cláusula de prote- ção eqüitativa foi citada, beneficiando mulheres e outros grupos que achavam que seus direitos eqüitativos lhes estavam sendo negados”. Ao ser indagado como a Corte pode tomar uma decisão – a favor da segregação no caso Plessy contra Ferguson e contra ela no caso Brown – Barker responde que a Corte dispunha de mais de 50 anos de provas de que a segregação racial, da maneira que era praticada, era, na verdade, um método de se oprimir um grupo racial e não algo “separado porém igual”. Mark Tushnet ecoa o pronunciamento de Barker no seu livro definitivo, Brown v. Board of Education: The Battle for Integration. [tradução livre: Brown Contra a Secretaria de Educação: A Batalha pela Integração]. “Até hoje”, ele escreve “o caso Brown se destaca como a mais profunda afirmação da Corte sobre a questão central 23FGV DIREITO EpIsTEmOlOGIa E mODERnIDaDE da história dos Estados Unidos – como os americanos de todas as raças se tratam entre si. Nesse aspecto, trata-se de uma vitória do constitucionalismo americano”. Pau Wilson, o procurador-adjunto do estado de Kansas que tratou do caso, no tribunal, a favor da segregação, concorda. “A decisão da Suprema Corte”, ele diz, “amplioua definição de justiça básica nas relações entre as comunidades”. Wilson, que detalha a história do processo em A Time To Lose: Representing Kansas in Bro- wn v. Board of Education [tradução livre: Hora de Perder: Representando Kansas no caso Brown Contra a Secretaria de Educação], escreve que a decisão também “deu uma nova dimensão ao conceito constitucional de proteção eqüitativa e do devido processo legal”. DePois DA Decisão A Secretaria de Educação de Topeka não esperou a ordem da Corte para unir as suas escolas primárias negras e brancas. Antes do caso Brown, a lei de Kansas havia previsto a segregação das escolas primárias das comunidades com população superior a 15.000 pessoas. As escolas de nível médio (equivalentes às sétima e oitava séries do primeiro grau, e às três séries do segundo grau, no Brasil) nunca havia sido segregadas. Mas em grande parte da nação, a tarefa seria mais difícil. Este é um dos motivos pelos quais a Suprema Corte, em um ato posterior, menos conhecido, emitiu, em 1955, uma decisão judicial, determinando “um início imediato e razoável das pro- vidências para a total conformidade” e a implementação da integração das escolas “com a devida rapidez”. Mesmo assim, houve muita resistência e a disposição das autoridades do poder executivo de usar a força para implementar a decisão da Corte se fez necessária em alguns lugares. O caso mais famoso ocorreu em 1957, quando o presidente Dwight Eisenhower enviou tropas federais a Little Rock, Arkansas, depois que o governador do estado desobedeceu uma ordem de um tribunal federal para integrar as escolas locais – a primeira vez em que tropas federais entravam em um estado do sul para proteger os negros desde os primeiros anos após a Guerra Civil. Em outras partes do sul do país, a situação variava de lugar para lugar. Na maio- ria dos lugares, a abolição da segregação ocorreu sem problemas, embora nem sem- pre com rapidez. No ano letivo 1956-1957, “o fim da segregação, afetando 300.000 crianças negras, estava em andamento em 723 distritos escolares”, de acordo com David Godfield, que conta em detalhes a história do fim da segregação em Black, White and Southern [tradução livre: Negros, Brancos e Sulistas]. Por outro lado, diz Goldfield, os legisladores promulgaram 45 leis “com o ob- jetivo de contornar a determinação da Suprema Corte” e até 1960, “menos de um por cento dos estudantes do sul do país estavam freqüentando escolas integradas”. O andamento do processo foi muito mais rápido em Topeka e no meio-oeste, de modo geral; o sul finalmente recuperou o atraso no final da década de 60 e início da década de 70. Embora a luta contra a segregação sancionada pelas leis tenha sido vencida há muito tempo, os tribunais federais, atualmente, ainda estão lidando com questões referentes à segregação nos distritos escolares, que são o resultado das tendências na escolha de áreas residenciais. 24FGV DIREITO EpIsTEmOlOGIa E mODERnIDaDE os tribunAis cAusAm muDAnçAs em Posições trADicionAis A luta contra a segregação mostra como é difícil mudar posições e costumes em qualquer sociedade, especialmente as posições que apresentam raízes profundas na tradição e na história, diz John Paul Jones, professor de direito e especialista em questões constitucionais na Universidade de Richmond [University of Richmond], em Virgínia. “Um fato importante é que as mudanças, quando elas ocorreram, foram, em grande parte, o resultado de atos do judiciário para fazer valer direitos inalienáveis assegurados pela Constituição dos Estados Unidos, e não o resultado de medidas sancionadas por legislaturas e executivos eleitos pelo povo”. Sem um judiciário independente, e sem as garantias da Constituição no que se refere aos direitos das minorias, ele acrescenta, a luta pelo fim da segregação teria sido muito mais difícil. Gary Orfield e Susan Eaton, concordam. Os tribunais, incluindo a Suprema Corte, tiveram um papel essencial, em comparação com os outros ramos do gover- no; é o que eles escrevem em Dismantling Segregation [tradução livre: Acabando com a Segregação]. Eles acrescentam: “Com a exceção do período de 1964 a 1968, os tribunais – e não o poder legislativo ou o executivo – têm sido os elementos do- minantes na elaboração de políticas no que se refere ao fim da segregação”. Embora a Suprema Corte somente tenha derrubado a segregação nas escolas públicas, o impacto da iniciativa foi muito mais amplo. Essa ação ajudou a deflagrar uma ofensiva sem trégua contra a segregação em todas as esferas da vida americana, incluindo o serviço público e o mercado de trabalho. Apenas um ano e meio após a determinação da Suprema Corte, em dezembro de 1955, o Dr. Martin Luther King Jr. liderou um bem sucedido boicote aos ônibus em Montgomery, Alabama, em sinal de protesto contra a segregação no sistema de transporte público local. Nos anos seguintes, mandados contra a segregação foram impetrados, como par- te de um cenário de ações populares iniciadas por um grande número de organiza- ções não-governamentais; essas ações, em conjunto, formaram o movimento pelos direitos civis. Com a promulgação da Lei dos Direitos Civis [Civil Rights Act] em 1964, e da Lei do Direito ao Voto [Voting Rights Act] em 1965, a segregação foi praticamente eliminada. “Fizemos A coisA certA” Os historiadores dos direitos civis, particularmente, ressaltam a importância do resultado do caso Brown para o progresso nas relações raciais em geral. “A decisão proporcionou um critério de avaliação de justiça – independente da cor das pessoas – pelo qual os americanos poderiam balizar seu progresso rumo à realização do ideal de oportunidades iguais”, escreve Robert Wiesbrot em Freedom Bound: A History of America’s Civil Rights Movement [tradução livre: Rumo à Liberdade: Uma His- tória do Movimento pelos Direitos Civis nos Estados Unidos]. O fato ainda é motivo de muito orgulho para os autores sobreviventes, quase meio século mais tarde. “Lembro-me como se fosse ontem”, diz Zelma Henderson. “A primeira notícia que vi sobre isso foi no jornal, o Topeka State Journal. Lembro- me bem da manchete, em letras garrafais: ‘Proibida a Segregação nas Escolas’. Senti 25FGV DIREITO EpIsTEmOlOGIa E mODERnIDaDE uma alegria enorme. Pensei, naquele momento, e penso, agora, que fizemos a coisa certa”. Vivian Scales acrescenta, “Isso aconteceu há muito tempo, mas é uma coisa que você nunca esquece, que fica com você para sempre”. marcus burnett, à esquerda, filho do líder da naacp em topeka, mcKinley burnett, e o ativista po- lítico sonny scroggins, na entra- da da escola primária monroe. Marcus Burnett não se lembra, especificamente, da reação do seu pai no dia em que a Suprema Corte derrubou a segregação. “Mas ele sempre acreditava que haveria justiça, portanto eu tenho certeza de que ele fi- cou muito feliz”, Burnett diz. “Meu pai acreditava que os tribunais eram o lugar certo para se desafiar a segre- gação. Ele nunca deixou de acreditar que os tribunais, no final, fariam valer a Constituição e a Declaração dos Direitos, e eliminariam a segregação”. No dia 26 de outubro de 1992, o presidente George Bush sancionou a Lei Pública 12-525 [Public Law 12- 525] determinando a criação do Sítio Histórico Nacio- nal do Caso Brown Contra a Secretaria de Educação [Brown v. Board of Education National Historic Site], em memória da decisão da Suprema Corte, de 1954. O sítio fica em Topeka, na Escola Primária de Monroe [Monroe Elementary School], a mesma escola freqüen- tada por Linda Brown, quase meio século atrás, antes do fim da segregação. O memorial – um trabalho da Fundação Brown [Brown Foundation] e do Comi- tê de Kansas para a Comemoração do Caso Brown Contra a Secretaria de Educação [Kansas Committee to Commemorate Brown v. Board of Education], entre outras entidades e indivíduos
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