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NEGÓCIOS JURÍDICOS PROCESSUAIS NO PROCESSO CIVIL BRASILEIRO1 Leonardo Carneiro da Cunha Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE. Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Pós-doutorado na Universidade de Lisboa. Professor adjunto da Faculdade de Direito do Recife (UFPE), nos cursos de graduação, mestrado e doutorado. Membro do Instituto Iberoamericano de Direito Processual, do Instituto Brasileiro de Direito Processual e da Associação Norte e Nordeste de Professores de Processo. Procurador do Estado de Pernambuco e advogado. 1. Apresentação. 2. Fatos jurídicos, atos jurídicos, atos-fatos jurídicos e negócios jurídicos. 2.1. Distinção entre atos jurídicos e negócios jurídicos. 3. Fatos jurídicos processuais, atos jurídicos processuais e atos-fatos jurídicos processuais. 4. Negócios jurídicos processuais. 4.1. Opiniões contrárias. 4.1.1. O publicismo no processo e o protagonismo do juiz. 4.1.2. O dogma da irrelevância da vontade. 4.2. Opiniões favoráveis. 4.3. Negócios jurídicos processuais típicos. 4.4. Negócios jurídicos processuais atípicos. 4.5. A ideia do modelo cooperativo de processo e os estudos mais recentes sobre negócios processuais. 5. O novo Código de Processo Civil brasileiro. 5.1. Generalidades. 5.2. Ampliação dos negócios processuais típicos. 5.3. A cláusula geral de negociação processual. 6. Limites aos negócios jurídicos processuais. 7. Bibliografia. 1. Apresentação O presente relatório discorre sobre a existência de negócios jurídicos processuais. Num primeiro momento, destaca-se a distinção entre fatos jurídicos, atos jurídicos, atos-fatos jurídicos e negócios jurídicos, para, em seguida, tratar dessa tipologia no âmbito processual. Há uma acirrada discussão doutrinária sobre a distinção entre atos jurídicos em sentido estrito e negócios jurídicos. Também existe uma acesa discussão quanto à existência de negócios jurídicos processuais. Há, de um lado, autores que não os admitem, destacando-se, de outro lado, os que os admitem. 1 Texto preparado para o I Congresso Peru-Brasil de Direito Processual e apresentado em Lima, no Peru, novembro de 2014, com acréscimos e adaptações feitas após a sanção e promulgação do novo Código de Processo Civil brasileiro. Partindo-se do pressuposto de que existem negócios processuais, o relatório relaciona os negócios processuais típicos no atual CPC brasileiro, passando, em seguida, a tratar da regulação dos negócios processuais no novo CPC do Brasil, discorrendo sobre os negócios típicos, atípicos, unilaterais, bilaterais e plurilaterais, bem como sobre os limites aos negócios processuais. 2. Fatos jurídicos, atos jurídicos, atos-fatos jurídicos e negócios jurídicos Os fatos tornam-se jurídicos pela incidência das normas jurídicas que assim os assinalam. Previsto o fato no enunciado normativo, sua ocorrência faz incidir a norma, daí surgindo o fato jurídico. Os fatos jurídicos lato sensu podem ser fatos da natureza ou atos humanos. Quando a hipótese de incidência ou o suporte fático tem como elemento um ato humano, pode entrar no mundo jurídico como ato jurídico, negócio jurídico, ato ilícito ou ato-fato. Os fatos da natureza, quando ingressam no mundo jurídico em razão da incidência normativa, revestem o colorido de fatos jurídicos stricto sensu. Os atos, que exteriorizam ou manifestam vontade humana, tornam-se atos jurídicos, quando sofrem a incidência da norma que os prevê. Já os atos ilícitos são aqueles contrários ao direito, dos quais resulta consequência desvantajosa para quem os pratica. Há, ainda, os negócios jurídicos, cuja conceituação relaciona-se com a autonomia da vontade e com a escolha conferida ao interessado da categoria jurídica e da estruturação do conteúdo eficacial das respectivas relações jurídicas. Como se percebe, os fatos jurídicos são aqueles que estão previstos no suporte fático e, por isso, sofreram a incidência de uma norma jurídica, ingressando no mundo do direito e podendo produzir efeitos jurídicos. Tais fatos podem ser atos humanos, passando, com a incidência, a ostentar a caracterização de atos jurídicos. Aqui a vontade humana é considerada relevante para a incidência da norma. O mundo do direito, composto pelos fatos jurídicos, divide-se em três planos: existência, validade e eficácia. Todos os fatos jurídicos em sentido lato (aí incluídos os fatos jurídicos stricto sensu, os atos jurídicos, os negócios jurídicos, os atos ilícitos e os atos-fatos) devem passar pelo plano da existência: basta a composição do suporte fático, a partir da incidência da norma, para que o fato passe a existir juridicamente, ingressando no mundo do direito. Os fatos jurídicos stricto sensu não passam pelo plano da validade. De igual modo, os atos-fatos não passam pelo plano da validade. Por ele apenas passam os atos jurídicos stricto sensu e os negócios jurídicos, nos quais é relevante a vontade humana. É aí que opera o sistema de invalidades, exatamente porque se anulam os atos dos quais decorram vícios de vontade. Por sua vez, o plano da eficácia diz respeito à produção de efeitos pelos fatos jurídicos. Como já acentuado, os fatos jurídicos stricto sensu são fatos da natureza, enquanto os atos jurídicos são atos humanos, caracterizados por expressarem uma vontade humana. Ao lado deles, há os atos-fatos jurídicos, que “são atos humanos, em que não houve vontade, ou dos quais se não leva em conta o conteúdo de vontade, aptos, ou não, a serem suportes fáticos de regras jurídicas”2. Quando a vontade humana, presente nos atos jurídicos stricto sensu e nos negócios jurídicos, é desprezada, tem-se o ato-fato. Os atos-fatos são fatos jurídicos produzidos por ação humana, mas a vontade de praticá-los é abstraída, não sendo considerada relevante pela norma jurídica. Os atos-fatos passam apenas pelos planos da existência e da eficácia, não se cogitando de (in)validade dos atos-fatos. Já os atos jurídicos em sentido estrito e os negócios jurídicos são produzidos por ação humana, sendo relevante a vontade. Há uma grande polêmica quanto à distinção entre eles, recomendando-se destacá-la. 2.1. Distinção entre atos jurídicos e negócios jurídicos A distinção entre ato jurídico em sentido estrito e negócio jurídico constitui tema inçado de dificuldades. Desde a pandectística, no início do século XIX, a ideia básica que presidiu a distinção é a de que os meros atos jurídicos provocam efeitos para cuja verificação é indiferente se foram, ou não, queridos pelos seus autores. A distinção não é simples, pois tanto no ato jurídico como no negócio há manifestação de vontade que produz efeitos previstos em lei. O negócio jurídico é geralmente identificado, definido ou qualificado como ato de autonomia privada. A autonomia privada, por sua vez, é, em regra, identificada como autodeterminação, autorregulação, autovinculação e, até mesmo, autarquia, sendo definida como um poder criador ou fonte de direito ou, pelo menos, de produção de efeitos que incidam sobre situações jurídicas. As noções de parte expressiva da doutrina consideram que a caraterística marcante dos negócios é a vontade ou a vontade declarada. Atribui-se à vontade um poder criativo de efeitos jurídicos, formando-se o chamado dogma da vontade. Desse modo, a declaração e os efeitos produzidos decorrem da vontade do sujeito de direito; a vontade humana produziria, por si, efeitos jurídicos. Essa é uma noção que atingiu seu auge no modelo liberal, que se orientava segundo os binômios vontade-liberdade e igualdade-justiça. O modelo liberal e suas incidências na autonomia privada e no contrato não têm sido poupados de críticas contundentes. Há quem afirme haver uma crise: crise do negócio jurídico, crise da doutrina do negócio jurídico, crise do contrato, crise do direito contratual, declínio do contrato ou da liberdade contratual. Isso porque a massificação da produção e do consumo teria tornado inviável a concepção liberal do contrato ou do negócio jurídico. No contrato-padrão, no contrato de adesão, no contrato-tipo, no contrato administrativo, no chamado contrato necessário, cada vez mais abundantes e frequentes na rotina das pessoas, não haveria vontade livre de estipulação e de 2 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito privado. Atual. Vilson Rodrigues Alves. Campinas: Bookseller, 1999, t. 1, § 26, n. 2, p. 133. negociação, a acerretar a referida crise. Ao lado disso, os excessivos intervencionismos legislativo, regulatório e estatal esbateriam ou, até mesmo, eliminariam a configuração e as características dos negócios jurídicos. Foram, enfim, postas em xeque as teorias que tinham como pressuposto a vontade dirigida à produção de efeitos jurídicos. Surgiram teorias que procuraram uma fonte alternativa para a vontade, defendendo que, em seu lugar, deveria ser considerada a presença da confiança, da responsabilidade e da compreensão. Outros afirmaram que o que importa não é a vontade real, pois esta seria uma noção mais psicológica ou alheia ao fenômeno jurídico. O importante seria considerar a vontade declarada. A partir daí, passou-se a defender que o negócio jurídico consistiria numa declaração de vontade voltada a produzir efeitos jurídicos, enquanto o ato jurídico em sentido estrito decorreria de uma mera manifestação de vontade, com vistas a obter efeitos jurídicos já estabelecidos em lei. Noutros termos, os efeitos jurídicos, no negócio jurídico, resultariam da vontade, ao passo que, no ato jurídico, os efeitos estariam estabelecidos em lei, não decorrendo da vontade. Por outro lado, há quem considere o negócio jurídico como uma norma negocial, elaborada pelos sujeitos de direito. E há, ainda, quem diga que os efeitos jurídicos não decorrem da vontade, nem mesmo nos negócios jurídicos. Os efeitos decorrem da lei, que prevê, em sua hipótese de incidência ou em seu suporte fático, a prática de um ato negocial para que aqueles efeitos sejam produzidos: trata-se de um ato de autorregulação, que o ordenamento associa à constituição, modificação e extinção de situações jurídicas. O negócio jurídico destaca-se por implicar a liberdade de celebração e a liberdade de estipulação. Os efeitos estão previstos em lei, somente sendo desencadeados se celebrado o negócio jurídico. Há negócios que produzem efeitos impostos pela lei que não podem ser afastados pela vontade, mas isso não desqualifica o ato como negocial. Na verdade, conforme esclarece Marcos Bernardes de Mello, o sistema jurídico, ao estabelecer o conteúdo das relações jurídicas, pode: (a) regulá-lo exaustivamente, em caráter cogente, não deixando à vontade qualquer margem, ou (b) permitir que a vontade negocial escolha, dentre as espécies, variações quanto à sua irradiação e a intensidade de cada uma. Na hipóteses a, deixa-se livre à vontade somente a escolha da categoria negocial, sem autorização quanto à estruturação do conteúdo eficacial da relação jurídica respectiva. Em b, admite-se a escolha da categoria negocial e concede-se o poder de estruturação do conteúdo eficacial da relação jurídica, cuja amplitude é variável. Não se permite, em nenhuma hipótese, a criação voluntária de efeitos que não estejam previstos ou, ao menos, admitidos pelo sistema3. 3 Teoria do fato jurídico: plano da existência. 19ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 225. Quando há dispositividade, confere-se aos sujeitos de direito o poder de escolha na estruturação do conteúdo eficacial da relação jurídica. Numa locação, é possível, por exemplo, dispensar uma garantia ou renunciar ao aluguel de alguns meses. Numa compra e venda, é possível aos contratantes estabelecer termos e condições, renunciar a certos efeitos, como a evicção, por exemplo. Outros efeitos serão produzidos necessariamente, não podendo ser eliminados ou afastados pela vontade dos contratantes. Há negócios jurídicos que, em virtude da imposição legal ou da cogência da norma aplicável, não permitem aos figurantes outra escolha: devem optar pelas categorias preestabelecidas nas normas jurídicas. É o que ocorre com o casamento. Há pouca margem para escolha: agregar ou não o nome de família do cônjuge, definir o regime de bens, inexistindo liberdade para os demais efeitos decorrentes do negócio celebrado. Os efeitos jurídicos não decorrem da vontade. Todos estão previstos em lei, decorrendo de imputação feita pelas normas aos fatos ou atos. No negócio jurídico, a vontade não cria efeitos; estes estão definidos pelo ordenamento, que pode conferir aos sujeitos de direito algum poder de escolha da categoria jurídica. Essa liberdade não existe nos atos jurídicos em sentido estrito. As normas gerais relativas à eficácia dos negócios jurídicos não se aplicam aos atos jurídicos. Não é possível, num ato jurídico, que o sujeito estabeleça termos e condições, modos ou encargos, pois se trata de liberdade presente apenas no negócio jurídico. Os atos jurídicos são incondicionáveis e inatermáveis, não podendo ter seus efeitos sujeitos a modos ou encargos, justamente porque o sujeito deve limitar-se à prática do ato, não havendo escolha de categoria jurídica. No ato jurídico em sentido estrito, a vontade não se destina à escolha da categoria jurídica. Manifestada ou declarada a vontade, produz-se o efeito preestabelecido em lei, que se realiza necessariamente, sem que a vontade possa modificá-lo, ampliá-lo, restringi-lo ou evitá-lo. Quando alguém, por exemplo, estabelece sua residência com ânimo definitivo, constitui-se o domicílio. Eis aí um ato jurídico. Mesmo que o sujeito não queira, ali será seu domicílio, com toda a eficácia jurídica relativa ao domicílio. De igual modo, são atos jurídicos o reconhecimento de filiação não decorrente de casamento, a interpelação para constituir o devedor em mora, a confissão e a interrupção da prescrição. No ato jurídico, o sujeito de direito não tem liberdade para escolher a categoria jurídica, nem variar ou excluir qualquer efeito jurídico a ser produzido. Apresentadas essas noções, cabe ceder a palavra a Marcos Bernardes de Mello, que assim conceitua o negócio jurídico: “é o fato jurídico cujo elemento nuclear do suporte fáctico consiste em manifestação ou declaração consciente de vontade, em relação à qual o sistema jurídico faculta às pessoas, dentro de limites predeterminados e de amplitude vária, o poder de escolha de categoria jurídica e de estruturação do conteúdo eficacial das relações jurídicas respectivas, quanto ao seu surgimento, permanência e intensidade no mundo jurídico.”4 3. Fatos jurídicos processuais, atos jurídicos processuais e atos-fatos jurídicos processuais A classificação até aqui demonstrada também existe no processo. Há, entretanto, quem não admita a existência de fatos jurídicos processuais em sentido estrito. José Joaquim Calmon de Passos, por exemplo, entende que, no processo, só há atos jurídicos, não havendo fatos jurídicos em sentido estrito. Nas suas palavras, “No processo, somente atos são possíveis. Ele é uma atividade e atividade de sujeitos que a lei prequalifica. Todos os acontecimentos naturais apontados como caracterizadores de fatos jurídicos processuais são exteriores ao processo e, por força desse exterioridade, não podem ser tidos como fatos integrantes do processo, por conseguinte, fatos processuais”5. Para Daniel Mitidiero, existem fatos jurídicos processuais em sentido estrito, mas só quando ocorridos dentro do processo e aptos a produzir efeitos nele. Por esse motivo, entende que a morte de uma das partes ou de seus procuradores seria fato jurídico material que se processualiza, não consistindo, na verdade, em fato jurídico processual6. Na verdade, o fato jurídico processual em sentido estrito é o acontecimento da natureza que, juridicizado pela incidência de norma processual, é apto a produzir efeitos dentro do processo7. Não interessa se o fato ocorreu fora ou dentro do processo. O que importa é sua previsão em hipótese normativa, juridicizando-o e protencializando a produção de efeitos jurídicos no processo8. Assim, são fatos jurídicos processuais em sentido estrito a morte da parte ou de seu procurador, uma inundação que venha a suspender um prazo processual, a existência de uma relação de parentesco entre o juiz e a parte, a implementação de idade que confira à parte a condição de idoso, passando a ter direito de prioridade na tramitação do processo, a perda dos autos, entre outros fatos. Por sua vez, o ato-fato é, como se viu, um ato humano em que a vontade é irrelevante. Há, no processo, atos-fatos. A revelia é um ato-fato. É irrelevante saber se o réu quis ou não deixar de contestar. Não importa qual sua vontade. A ausência de recurso também é um ato-fato. Em geral, a contumácia, a inércia ou a omissão é um ato-fato processual9. 4 Idem, p. 233. 5 Esboço de uma teoria das nulidades aplicada às nulidades processuais. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 64-65. 6 Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Memória Jurídica Editora, 2005, t. 2, p. 13. 7 BRAGA, Paula Sarno. “Primeiras reflexões sobre uma teoria do fato jurídico processual: plano da existência”. Revista de Processo. São Paulo: RT, n. 148, jun. 2007, p. 309. 8 Idem, p. 309. 9 CUNHA, Leonardo Carneiro da. “A contumácia das partes como ato-fato processual”. Pontes de Miranda e o Direito Processual. Fredie Didier Jr.; Pedro Henrique Pedrosa Nogueira; Roberto P. Campos Gouveia Filho (org.). Salvador: JusPodivm, 2013, p. 635-648. Não é, entretanto, toda e qualquer omissão ou inércia que se caracteriza como ato-fato. Há omissões negociais. Quando, por exemplo, o réu deixa de opor a exceção de incompetência relativa, sua inércia é negocial. Com efeito, “A propositura da demanda em foro incompetente, aliada à inércia do réu em opor a exceção de incompetência, caracteriza um negócio tácito ou implícito entre as partes”10. De igual modo, a renúncia tácita à convenção de arbitragem é uma omissão negocial. Por aí já se percebe que há dois tipos de omissão no processo: (a) a omissão contumacial e (b) a omissão negocial. Aquela é um ato-fato, esta é um negócio jurídico. E tal diferença é importante. O assistente, por exemplo, não pode atuar contra a vontade do assistido. Significa que, no tocante à omissões, o assistente não pode atuar quando a omissão for negocial. Assim, se o assistido for o réu e este não opuser exceção de incompetência ou não suscitar preliminar de convenção de arbitragem, o assistente não poderá fazê-lo, pois, se o fizer, estará a contrariar a vontade do assistido. Se, entretanto, o assistido não contesta ou não recorre, o assistente poderá fazê-lo, sem que esteja a contrariar sua vontade, pois a revela e a ausência de recurso são atos-fatos, sendo irrelevante a vontade. Já os atos processuais em sentido estrito são manifestações ou declarações de vontade em que a parte não tem qualquer margem de escolha da categoria jurídica ou da estruturação do conteúdo eficacial da respectiva situação jurídica. São, em geral, atos de conhecimento ou de comunicação, como, por exemplo, a citação, a intimação, a confissão e a penhora. 4. Negócios jurídicos processuais 4.1. Opiniões contrárias Na doutrina brasileira, muitos não tratam do tema, deixando de examinar a existência dos negócios jurídicos processuais. Há, entretanto, os que se manifestam contrariamente à existência dos negócios jurídicos processuais. Para Cândido Rangel Dinamarco, não é possível considerar a existência de negócios jurídicos processuais, pois os efeitos dos atos processuais resultariam sempre da lei, e não da vontade. Os atos processuais das partes não teriam o efeito da livre autorregulação, que é própria dos negócios jurídicos, justamente porque os efeitos são impostos pela lei. De igual modo, os atos do juiz não teriam o efeito da livre autorregulação, já que ele não dispõe para si, nem pratica atos no processo com fundamento na autonomia da vontade, mas no poder estatal de que é investido. Para Dinamarco, negócio jurídico seria ato de autorregulação de interesses, firmado no princípio da autonomia da vontade; todo negócio jurídico pressupõe, para ele, que seus efeitos sejam, exata e precisamente, aqueles que as partes querem, o que não ocorre no processo, pois a lei estabelece as consequências dos atos praticados no processo, sem conferir qualquer margem de intervenção às partes11. 10 CUNHA, Leonardo Carneiro da. Jurisdição e competência. 2ª ed. São Paulo: RT, 2013, n. 4.5, p. 191. 11 Instituições de direito processual civil. 6ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009, v. 2, p. 484. Este também é o entendimento de Alexandre Freitas Câmara, para quem não existem negócios jurídicos processuais, exatamente porque os atos de vontade praticados pelas partes produziriam no processo apenas os efeitos ditados pela lei12. No mesmo sentido, Daniel Francisco Mitidiero também entende que não existem negócios jurídicos processuais, “uma vez que todos os efeitos possíveis de ocorrência em virtude de atos dos sujeitos do processo já estão normados (ou normatizados) pela legislação”13. Vicente Greco Filho não menciona a existência de negócios jurídicos processuais, dando a entender que não os admite. Refere-se apenas a fatos e atos jurídicos processuais, destacando que não são atos processuais os “... negócios jurídicos que, a despeito de poderem ter conseqüências no processo, não têm por finalidade a produção de efeitos processuais, por exemplo, a alienação da coisa ou do direito litigioso, que tem influência no processo (v. art. 42), mas a vontade que a determinou não era diretamente dirigida à relação processual”14. Segundo ele, esses negócios jurídicos são, para o processo, meros fatos, seguindo aqui a opinião de Liebman, secundada por Cândido Rangel Dinamarco. Ernane Fidélis dos Santos parece não admitir a existência de negócios jurídicos processuais. Depois de diferenciar, no plano do direito material, o fato jurídico do ato jurídico, bem como do negócio jurídico, destaca que, no âmbito processual, há fatos e atos jurídicos, não mencionando os negócios jurídicos15. Curiosa é a opinião de Rodolfo Kronemberg Hartmann, para quem os fatos jurídicos lato sensu dividem-se em fatos jurídicos stricto sensu e atos jurídicos lato sensu. Estes últimos, por sua vez, dividem-se em (a) atos jurídicos stricto sensu; (b) negócios jurídicos; e, (c) atos processuais. Considera que ato jurídico stricto sensu é o que emana da vontade de apenas uma pessoa, caracterizando-se o negócio jurídico por decorrer da conjugação da manifestação de vontade de ambos os sujeitos que integrariam a relação jurídica. E quanto aos atos processuais, seriam simplesmente aqueles praticados no curso de um processo judicial e aptos a produzirem direitos ou obrigações16. Para ele, então, ato processual difere de negócio jurídico, dando a entender que não haveria negócios jurídicos processuais. José Joaquim Calmon de Passos também não admite os negócios processuais. Entende que, em virtude do disposto no art. 158 do CPC-1973, poderia ser admitida a existência de negócio processual. Ocorre, porém, que as declarações negociais das partes, para produzirem efeitos no processo, precisariam da intermediação do juiz: a desistência do recurso ou o acordo para a suspensão do processo seriam, por exemplo, negócios jurídicos apenas pela relevância que, em tais circunstâncias, seria dada à 12 Lições de direito processual civil. 25ª ed. São Paulo: Atlas, 2014, v. 1, p. 276. 13 Ob. cit., p. 15-16. 14 Direito processual civil brasileiro. 20ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, v. 2, n. 1, p. 6. 15 Manual de direito processual civil: processo de conhecimento. 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, v. 1, n. 341, p. 205-206. 16 Curso completo de processo civil. Niterói: Impetus, 2014, , n. 11.1, p. 172. vontade das partes em produzir o resultado. Sem o pronunciamento integrativo do juiz, não produzem efeitos. Logo, não seriam negócios processuais, pois a eficácia no processo não seria produzida pelas próprias declarações das partes17. Em suma, as opiniões contrárias à existência dos negócios processuais partem do pressuposto de que somente há negócio jurídico se os efeitos produzidos decorrerem direta e expressamente da vontade das partes, o que não ocorreria no processo, ou porque os efeitos decorrem da lei, ou porque seria necessária a intervenção judicial para que se produzam. 4.1.1. O publicismo no processo e o protagonismo do juiz Embora as codificações sejam fruto das ideias liberais, a legislação processual, em vários países, passou a receber a influência de Franz Klein e do código austríaco de processo civil, em cujas regras predominava a prevalência do interesse público, o publicismo do processo, os poderes instrutório do juiz, a busca da verdade e a promoção da efetiva igualdade das partes no processo. Propugnava-se a neutralização da liberdade das partes. Ao autor da demanda judicial apenas se reservava a simples função de provocar o exercício da jurisdição, outorgando-se ao juiz o poder de impulso do procedimento. Fortaleceram-se, assim, os dogmas de que às partes bastaria narrar os fatos, sendo o direito de conhecimento privativo do juiz, passando este a ser o protagonista do processo. Passou-se, enfim, de um modelo liberal, em que o juiz mantinha uma postura passiva, para um modelo mais social, conferindo ao juiz a posição de protagonista do processo, com uma postura solipsista, caracterizada pela atividade solitária de subsunção dos fatos aos textos normativos. A legislação processual brasileira, embora seja permeada de estrutura liberal, sofreu a influência europeia de instituição do publicismo e da ruptura da visão liberal do processo, reforçando o protagonismo do juiz, seus poderes instrutórios e a estatalidade como marca da atividade jurisdicional. Não é sem razão que a doutrina tradicional brasileira nega o caráter jurisdicional à arbitragem, pois parte do pressuposto de que a atividade jurisdicional é estatal. Nesse sentido, o Código Civil de 1916, no seu Livro III, tratava do direito das obrigações, contendo, no Título dos efeitos das obrigações, um capítulo sobre o compromisso, que abrangia os artigos 1.037 a 1.048. A sentença arbitral somente se executava depois de homologada, salvo se o árbitro fosse um juiz estatal nomeado pelas partes. Ao compromisso aplicavam-se as normas da transação. Os árbitros, nos termos do CPC de 1939, não proferiam sentença, mas laudos. O laudo deveria ser homologado pelo juiz a que, originariamente, competia o julgamento da causa. Somente poderia haver execução se houvesse homologação. 17 Esboço de uma teoria das nulidades aplicada às nulidades processuais. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 69-70. Em sua versão originária, o CPC de 1973, alinhado com o Código Civil 1916, então em vigor, continha um capítulo sobre o compromisso arbitral. Muitas das normas previstas no CPC de 1939 foram reproduzidas no CPC de 1973 a respeito do compromisso arbitral. O árbitro proferia laudo, que deveria ser homologado pelo juiz estatal. A exceção de impedimento ou de suspeição era apresentada ao juiz estatal, competente para a homologação do laudo arbitral. Ao juízo arbitral não era possível empregar medidas coercitivas, quer contra as partes, quer contra terceiros, nem decretar medidas cautelares. Quando fosse necessária a aplicação de alguma medida coercitiva ou cautelar, o juízo arbitral deveria solicitá-las à autoridade competente para a homologação do laudo. O laudo, para produzir os mesmos efeitos de uma sentença judiciária, precisava ser homologado por um juízo estatal, a partir de quando ostentaria a eficácia de título executivo judicial. Para homologação do laudo arbitral, era necessária a instauração de um procedimento especial perante o juiz a que originalmente tocasse o julgamento da causa. A doutrina, por muito tempo, não mencionava sequer a possibilidade de negócios processuais. Alguns, diante do modelo de processo adotado, em que era marcante o publicismo, o estatismo e a protagonismo do juiz, negavam expressamente a possibilidade de negócios processuais. Outros, como visto, aceitavam a existência de algumas convenções processuais, a exemplo da convenção para suspensão do processo. Esse modelo de processo, que foi adotado na legislação brasileira, influenciou a doutrina, que repeliu, por isso mesmo, a importância da atividade das partes, acarretando a conclusão de não ser possível haver negócios jurídicos processuais. A própria expressão “negócio jurídico” sempre soou como algo próprio do direito privado, não sendo compatível com a estatalidade da jurisdição e com os poderes conferidos ao juiz, nem com o seu protagonismo. 4.1.2. O dogma da irrelevância da vontade As opiniões contrárias à existência do negócio jurídico processual consideram, na realidade, que a vontade não tem qualquer relevância na produção de efeitos pelo ato processual. Desse modo, o sentido juridicamente relevante do ato processual seria objetivo, sem qualquer ligação a elementos estranhos à declaração. Não é sem razão, aliás, que os autores que negam a existência de negócios jurídicos processuais valem-se do fundamento segundo o qual as situações processuais não decorrem de vontade das partes ou de qualquer sujeito do processo, mas de expressas previsões normativas. A vontade das partes seria, então, irrelevante na determinação dos efeitos que os atos processuais produzem. Os efeitos dos atos processuais não seriam, em outras palavras, moldáveis. A única disponibilidade que as partes teriam seria a opção de praticar ou não o ato previsto numa sequência predeterminada pelo legislador. Qualquer que fosse a opção da parte, os efeitos dos atos processuais já estariam tabelados. Ademais, há ainda forte estigma de separar o direito processual do direito material, bem como o de que haveria um protagonismo do juiz na condução do processo. O processo compreenderia um concurso de atuações de sujeitos diferenciados: uns pedem; outros, munidos de poderes de autoridade, decidem. Isso denotaria que as partes encontrar-se-iam em posição de inferioridade, não havendo posição de igualdade entre o juiz e as partes. Esse pensamento formou o dogma da irrelevância da vontade no processo, pois não seria possível vincular o juiz à vontade de quem se encontrasse em posição de inferioridade. Logo, seria irrelevante a vontade das partes no processo. O dogma da irrelevância da vontade no processo decorre, ainda, do estigma de separar o direito processual do direito material. Para que se confiram efetividade e segurança jurídica ao processo, seria preciso haver a prevalência da forma em detrimento da vontade. O dogma da irrelevância da vontade no processo impediu que se construísse uma adequada teoria sobre os atos processuais, não havendo um tratamento satisfatório sobre a interpretação dos atos processuais, nem sobre os vícios de vontade nos atos processuais. Como a vontade seria irrelevante no processo, e considerando a ideia prevalecente de que a presença da vontade caracterizaria o negócio jurídico, a conclusão seria a de não existirem negócios jurídicos processuais. 4.2. Opiniões favoráveis O art. 158 do CPC de 1973 assim dispõe: “Os atos das partes, consistentes em declarações unilaterais ou bilaterais de vontade, produzem imediatamente a constituição, a modificação ou a extinção de direitos processuais”. Rogério Lauria Tucci entende que há negócios jurídicos processuais em razão do disposto nesse art. 158 do CPC. Os atos das partes podem criar, modificar e extinguir situações jurídicas, com efeitos imediatos, salvo a desistência da ação, cuja eficácia depende de homologação judicial. Elenca vários negócios processuais típicos e afirma que eles podem ser unilaterais e bilaterais, concluindo que a inércia do litigante pode também gerar a efetuação de um negócio jurídico processual, a exemplo da anuência implícita do réu quanto à desistência da ação, manifestada depois de apresentada a contestação18. Para Pontes de Miranda, as declarações de vontade das partes, “coincidentes por vezes, chamados acordos das partes, não são, de modo nenhum, negócios jurídicos bilaterais (contratos). São apenas declarações unilaterais de vontade ao juiz ou tribunal, ao Estado; tal como acontece quando o juiz abrevia ou prorroga prazos (art. 181 e § 1º), ou o adverso assente em que o pleiteante altere o pedido ou a 18 Negócio jurídico processual. Enciclopédia Saraiva de Direito. São Paulo: Saraiva, 1977, v. 54, p. 190-192. causa dele (art. 264)”19. Enfim, Pontes de Miranda entende que os atos processuais não são, em princípio, negócios jurídicos, mas reconhece os negócios jurídicos processuais sobre desistência da demanda ou de recurso, o de não usar rito especial ou de não empregar o procedimento executivo, o de só se admitir a prova documental, ou alguma outra, em determinados casos20. Em outra passagem de sua obra, Pontes de Miranda afirma que a petição inicial contém “elemento de comunicação de vontade, que é o desejo de solução à demanda, comunicação de conhecimento, que são as afirmações em juízo (aí, na petição inicial); mas o que prepondera é a declaração de vontade, com que se estabelece o ato jurídico de direito público entre o Estado e o autor, depois entre Estado e réu”.21 É de se observar que, nessa passagem, ele afirma haver, na petição inicial, preponderância do elemento negocial (declaração de vontade), conquanto haja em seu conteúdo atos de jurídicos em sentido estrito comunicativo (comunicação de vontade) e enunciativo (comunicação de conhecimento). Ao tratar dos atos das partes e de sua classificação, Moacyr Amaral Santos indica a existência de atos dispositivos, podendo ser unilaterais (quando a manifestação de vontade é de uma única parte, a exemplo da desistência da ação e da desistência do recurso), concordantes (consistentes em declaração de vontade de uma parte a que adere a parte contrária, mesmo por omissão, a exemplo da desistência da ação após a contestação ou da inércia do réu em não opor exceção de incompetência) ou contratuais (consistentes em declarações bilaterais expressas de vontade, a exemplo da eleição do foro e da transação). Entende que os atos dispositivos das partes são negócios processuais22. Em conhecido texto, José Carlos Barbosa Moreira admite a existência das chamadas convenções processuais ou, como prefere, convenções celebradas pelas partes sobre matéria processual. Lembrando que existem a eleição convencional de foro, a convenção de suspensão do processo, a que versa sobre a distribuição do ônus da prova, o adiamento da audiência por convenção das partes e outras que menciona, adverte que a liberdade de convenção entre as partes está inserida no âmbito das normas processuais dispositivas. Destaca que nada impede que autor e réu comprometam-se, por exemplo, a não indicar assistentes técnicos, deixando ao exclusivo encargo do perito a realização da diligência. Entende, enfim, que a vontade das partes pode ordenar-se a influir no modo de ser do processo, no conteúdo da relação processual, concebendo-se também que as partes queiram criar a obrigação de assumir determinado comportamento, de praticar ou deixar de praticar certo ato 19 Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1974, t. 3, p. 5. 20 Idem, p. 5. 21 Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1973, t. 1, p. 101. 22 Primeiras linhas de direito processual civil: processo de conhecimento. 25ª ed. Atual. Maria Beatriz Amaral Santos Köhnen. São Paulo: Saraiva, 2007, n. 229, p. 291-292. processual, como não recorrer, desistir de recurso interposto, não executar a sentença, desistir da ação ou da execução etc.23 Luiz Fux também admite a existência de negócios jurídicos processuais, mas considera que são hipóteses excepcionais, presentes nos casos de disposição das partes quanto às regras processuais. Entende que as normas processuais são cogentes, mas há, na sua opinião, algumas poucas exceções que conferem poder dispositivo às partes, como nas hipóteses de suspensão do processo por convenção das partes, bem como no foro de eleição e na convenção sobre o ônus da prova24. José Eduardo Carreira Alvim igualmente admite a existência dos negócios jurídicos processuais. E, apoiando-se nas lições de Alfredo Araújo Lopes da Costa, afirma que alguns negócios são unilaterais, como a desistência do direito de inquirir uma testemunha e, outros, bilaterais, como a suspensão do processo por convenção das partes25. Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart, ao mencionarem a suspensão do processo por convenção das partes, afirmam que tal hipótese retrata um típico caso de negócio jurídico processual26. Em estudo específico, Leonardo Greco afirma ser possível as partes, como destinatárias da prestação jurisdicional, praticarem as chamadas convenções processuais, assim entendidos todos os atos bilaterais praticados no curso do processo ou para nele produzirem efeitos, que dispõem sobre questões do processo. Faz um alerta para os limites da autonomia das partes na autorregulação do processo, discorre sobre o momento da eficácia das convenções processuais, sobre sua revogabilidade e seu regime legal, tratando de alguns negócios típicos, além de relacionar vários outros27. Depois de ressaltar que o tema é polêmico e de destacar a opinião contrária, Fernando Antônio Negreiros Lima admite a existência de negócios jurídicos processuais, apresentando como exemplos a opção pelo juízo arbitral, a convenção sobre o ônus da prova, a desistência do recurso, a renúncia ao direito de queixa, a suspensão convencional do processo, o oferecimento de perdão penal e sua aceitação pelo ofendido, bem como a desistência da ação28. E conclui, afirmando o seguinte: “Em todas as hipóteses aludidas, é certo que a lei processual interfere, traça limites, impõe condicionamentos: a desistência do recurso supõe expressos poderes conferidos ao advogado da parte desistente (RTJ 118/170); a suspensão convencional do processo não pode exceder a seis meses (art. 265, § 2º, CPC); a renúncia ao direito 23 “Convenções das partes sobre matéria processual”. Temas de direito processual – terceira série. São Paulo: Saraiva, 1984, p. 87-98. 24 Curso de direito processual civil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 433. 25 Teoria geral do processo. 8ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 244-245. 26 Processo de conhecimento. 12ª ed. São Paulo: RT, 2014, n. 8, p. 192. 27 “Os atos de disposição processual – primeiras reflexões”. Os poderes do juiz e o controle da decisões judiciais: estudos em homenagem à professora Teresa Arruda Alvim Wambier. José Miguel Garcia Medina; Luana Pedrosa de Figueiredo Cruz; Luís Otávio Sequeira de Cerqueira; Luiz Manoel Gomes Junior (coord.). São Paulo: RT, 2008, p. 290-304. 28 Teoria geral do processo judicial. São Paulo: Atlas, 2013, p. 547. de queixa em relação a um dos autores do crime necessariamente se estende a todos (art. 49, CPP); o repúdio ao perdão há de dar expressamente, em três dias, importando em aceitação o silêncio da parte (art. 58, CPP). Mas, é precisamente isso o que ocorre em relação aos negócios jurídicos não processuais: também eles sofrem contingenciamentos legais, como oportunamente nos adverte a lição de Miguel Reale, mencionada antes, sem que se cogite de negar, só por isso, a possibilidade de negócios jurídicos de direito material.”29 Segundo Paula Sarno Braga, existem negócios jurídicos processuais, sendo admissível, até mesmo, a existência de negócios processuais atípicos, desde que não contrariem normas cogentes30. Bernardo Silva de Lima também aceita a existência de negócios jurídicos processuais, destacando que a celebração deles consiste em “criar braços do princípio democrático no bojo do processo”31. De igual modo, Fredie Didier Jr. e Pedro Henrique Nogueira admitem a existência de negócios jurídicos processuais32. Para Marcos Bernardes de Mello, há, no campo do direito público, além dos atos jurídicos em sentido estrito, os negócios jurídicos de direito administrativo, de direito constitucional, de direito internacional, de direito social e de direito processual33. 4.3. Negócios jurídicos processuais típicos O negócio jurídico é produto da autonomia privada ou da autorregulação de interesses, implicando liberdade de celebração e de estipulação. Isso não impede que a legislação fixe o regime de determinados negócios. Nesse caso, tem-se um tipo previsto em lei, estando nela regulado. É o chamado o negócio jurídico típico, sendo dispensável o esforço da(s) parte(s) na sua regulação. A regulação já está estabelecida em lei. Há, no Código de Processo Civil brasileiro de 1973, vários negócios processuais típicos. Destacam-se, dentre outros, os seguintes: a) modificação do réu na nomeação à autoria (arts. 65 e 66); b) sucessão do alienante ou cedente pelo adquirente ou cessionário da coisa litigiosa (art. 42, § 1º); c) acordo de eleição de foro (art. 111); d) prorrogação da competência territorial por inércia do réu (art. 114); e) desistência do recurso (art. 158; art. 500, III); f) convenções sobre prazos dilatórios (art. 181); 29 Idem, p. 548. 30 Ob. cit., p. 318. 31 “Sobre o negócio jurídico processual”. Revisitando a teoria do fato jurídico: homenagem a Marcos Bernardes de Mello. Fredie Didier Jr.; Marcos Ehrhardt Jr. (coord.). São Paulo: Saraiva, 2010, p. 122. 32 Teoria dos fatos jurídicos processuais. Salvador: JusPodivm, 2011, p. 54-64. 33 Ob. cit., p. 200. g) convenção para suspensão do processo (arts. 265, II, e 792); h) desistência da ação (art. 267, § 4º; art. 158, parágrafo único); i) convenção de arbitragem (art. 267, VII; art. 301, IX); j) revogação da convenção de arbitragem (art. 301, IX, e § 4º); k) reconhecimento da procedência do pedido (art. 269, II); l) transação judicial (arts. 269, III, 475-N, III e V, e 794, II); m) renúncia ao direito sobre o qual se funda a ação (art. 269, V); n) convenção sobre a distribuição do ônus da prova (art. 333, parágrafo único); o) acordo para retirar dos autos o documento cuja falsidade foi arguida (art. 392, parágrafo único); p) conciliação em audiência (arts. 447 a 449); q) adiamento da audiência por convenção das partes (art. 453, I); r) convenção sobre alegações finais orais de litisconsortes (art. 454, § 1º); s) liquidação por arbitramento em razão de convenção das partes (art. 475-C, I); t) escolha do juízo da execução (art. 475-P, parágrafo único); u) renúncia ao direito de recorrer (art. 502); v) requerimento conjunto de preferência no julgamento perante os tribunais (art. 565, parágrafo único); w) desistência da execução ou de medidas executivas (art. 569); x) escolha do foro competente pela Fazenda Pública na execução fiscal (art. 578, parágrafo único); y) opção do exequente pelas perdas e danos na execução de obrigação de fazer (art. 633); z) desistência da penhora pelo exequente (art. 667, III); aa) administração de estabelecimento penhorado (art. 677, § 2º); bb) dispensa da avaliação se o exequente aceitar a estimativa do executado (art. 684, I); cc) opção do exequente pelo por substituir a arrematação pela alienação via internet (art. 689-A); dd) opção do executado pelo pagamento parcelado (art. 745-A); ee) acordo de pagamento amigável pelo insolvente (art. 783); ff) escolha de depositário de bens sequestrados (art. 824, I); gg) acordo de partilha (art. 1.031). Esses são todos negócios jurídicos processuais típicos, expressamente previstos e regulados no Código de Processo Civil brasileiro de 1973. A maioria é constituída de negócios comissivos, mas há omissões negociais, a exemplo das hipóteses d e j supra. A propositura da demanda em foro incompetente, aliada à inércia do réu em opor a exceção de incompetência, caracteriza um acordo tácito ou implícito de vontades. De igual modo, a propositura de demanda no juízo estatal, não obstante a convenção de arbitragem, aliada à inércia do réu em alegá-la, caracteriza uma convenção implícita. São, portanto, omissões negociais ou negócios omissivos. Os negócios processuais típicos podem ser unilaterais, bilaterais ou plurilaterais. A modificação do réu na nomeação à autoria (arts. 65 e 66) e a sucessão do alienante ou cedente pelo adquirente ou cessionário da coisa litigiosa (art. 42, § 1º) são negócios jurídicos plurilaterais. A desistência do recurso, o reconhecimento da procedência do pedido, a renúncia ao recurso, a renúncia ao direito sobre o qual se funda a ação, a escolha do juízo da execução, a desistência da penhora pela exequente são todos negócios unilaterais. Os negócios jurídicos bilaterais costumam ser divididos em contratos, quando as vontades dizem respeito a interesses contrapostos, e acordos ou convenções, quando as vontades se unem para um interesse comum. Não é comum a celebração de contrato processual, mas são vários os exemplos de acordos ou convenções processuais. A desistência da ação é um negócio processual unilateral típico. Quando já apresentada contestação, o negócio é típico bilateral. Os negócios jurídicos típicos produzem efeitos imediatos. O único que não produz efeito imediato é a desistência da ação; esta só produz efeitos depois de homologada pelo juiz (CPC-1973, art. 158, parágrafo único). A exigência de homologação não subtrai da desistência da ação sua natureza negocial. Trata-se apenas de uma condição legal para a produção de efeitos. O negócio já existe com a manifestação da vontade e, se já apresentada a contestação, com a concordância do réu; apenas seus efeitos só se produzem com a homologação. Não se deve confundir o plano da existência com o da eficácia. A lei pode ser mais rigorosa na disciplina do negócio jurídico, ou submetê-lo a controle, ou exigir determinada condição. Isso não afasta a natureza negocial da manifestação da vontade de desistir da ação. A parte pode escolher a categoria jurídica, o que já é suficiente para que se tenha aí um negócio jurídico. Os negócios jurídicos processuais típicos podem ser, portanto, comissivos ou omissivos, bilaterais ou unilaterais. 4.4. Negócios jurídicos processuais atípicos Além dos negócios típicos, é possível que as partes pactuem negócios que não se encaixem nos tipos legais, estruturando-os de modo a atender às suas conveniências e necessidades. O negócio é engendrado pela(s) parte(s), não havendo detalhamento legal. Nesse caso, o negócio jurídico é atípico. Os negócios jurídicos atípicos estão autorizados pelo disposto no art. 158 do CPC de 1973, ao dispor que “os atos das partes, consistentes em declarações unilaterais ou bilaterais de vontade, produzem imediatamente a constituição, a modificação ou a extinção de direitos processuais”. Os negócios processuais atípicos podem ser unilaterais, bilaterais ou plurilaterais. Produzem efeitos imediatos. 4.5. A ideia do modelo cooperativo de processo e os estudos mais recentes sobre negócios processuais A constitucionalização do direito, a consolidação da ideia de que princípio é norma, a adoção da técnica legislativa de uso de termos indeterminados e de cláusulas gerais contribuíram para importância da linguagem e da argumentação na metodologia do direito, consolidando a necessidade de se aumentar o debate para a construção da regra adequada à solução da controvérsia. O princípio da adequação – sempre invocado para explicar a criação de procedimentos especiais pelo legislador34 – passou também a ser invocado para justificar a adaptação do procedimento pelo juiz no caso concreto35. Não somente em casos específicos, mas também em qualquer caso, passou-se a admitir a adaptação do procedimento, em razão da construção de regras a partir do devido processo legal. Passou-se, assim, a entender que seria possível a flexibilização do procedimento pelo juiz, a fim de adequar o procedimento às peculiaridades do caso concreto36. Ao lado disso, fortaleceu-se a imagem do Estado Democrático de Direito, que exige participação dos sujeitos que estão submetidos a decisões a serem tomadas sobre situações que lhes digam respeito. A doutrina passou, então, a defender a comparticipação dos sujeitos processuais – aí incluídas as partes – na construção da decisão que deva solucionar os casos submetidos ao crivo judicial 37 . Consolidou-se a ideia de que o Estado democrático não se compraz com a edição de atos repentinos, inesperados, de qualquer dos seus órgãos, mormente daqueles destinados à aplicação do Direito. A efetiva participação dos sujeitos processuais é medida que consagra o princípio 34 SILVA, Clóvis do Couto e. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: RT, 1977, v. 9, t. 1, p. 1-16; LACERDA, Galeno. Comentários ao Código de Processo Civil. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1993, v. 8, t. 1, p. 18-20; FABRÍCIO, Adroaldo Furtado. Comentários ao Código de Processo Civil. 7ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995, v. 8, t. 3, p. 10. 35 DIDIER JR., Fredie. “Sobre dois importantes, e esquecidos, princípios do processo: adequação e adaptabilidade do procedimento”. Gênesis – Revista de Direito Processual Civil. Curitiba, v. 21, p. 530-541, 2001. 36 GAJARDONI. Fernando da Fonseca. Flexibilização procedimental: um novo enfoque para o estudo do procedimento em matéria processual de acordo com as recentes reformas do CPC. São Paulo: Atlas, 2008. 37 NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático. Curitiba: Juruá, 2008. democrático inspirador da Constituição de 1988, cujos fundamentos são vetores hermenêuticos para aplicação das normas jurídicas38. Daí se reconstruiu o conteúdo do princípio do contraditório, exigindo-se que o processo seja estruturado de forma dialética, com a marca de ser participativo. E isso porque a participação, própria do contraditório, é inerente ao regime democrático. O contraditório deve, enfim, instaurar um diálogo no processo entre o juiz e as partes. Essa reconstrução do contraditório fez com que a doutrina passasse a mencionar a existência do princípio da cooperação, que impõe ao juiz os deveres de diálogo com as partes, cabendo-lhe esclarecer, prevenir, auxiliar e consultar todas elas39. O princípio da cooperação destina-se, enfim, a transformar o processo civil numa “comunidade de trabalho”, potencializando o franco diálogo entre todos os sujeitos processuais, a fim de se alcançar a solução mais adequada e justa ao caso concreto. O processo, diante disso, deve ser entendido como uma “comunidade de comunicação”, desenvolvendo-se por um diálogo pelo qual se permite uma discussão a respeito de todos os aspectos de fato e de direito considerados relevantes para a decisão da causa. Ao longo de todo o procedimento, deve haver um debate, voltando- se também para o juiz e para todos os agentes estatais no processo. Há, na verdade, a cooperação das partes com o tribunal, bem como a cooperação do tribunal com as partes40. Na verdade, o excesso de publicismo no processo e o grande protagonismo do juiz fizeram com que aumentasse o número de partidários do garantismo processual, cujas ideias voltam-se à diminuição dos poderes do magistrado, sobretudo no âmbito probatório, a fim de se ter mais imparcialidade. O garantismo aproxima-se um pouco do modelo liberal do processo, em que há uma marcante passividade do juiz. Fala-se não apenas de um princípio da cooperação. Há, ainda, a ideia de um modelo cooperativo de processo, que, em verdade, funciona como um modelo intermediário entre o modelo social ou publicista e o modelo garantista. O juiz mantém seus poderes, mas é preciso atender aos deveres de cooperação, esclarecendo, prevenindo, auxilindo e consultando as partes. O modelo cooperativo diminui o protagonismo do juiz, mas também restringe sua passividade, evitando o resgate da ideia liberal do processo como uma “luta” ou “guerra” entre as partes. O modelo cooperativo baseia-se na ideia de que o Estado deve propiciar condições para a organização de uma sociedade livre, justa e solidária, com vistas a atender à dignidade humana, caracterizando-se pelas posições coordenadas do indivíduo, da sociedade civil e do Estado. 38 CUNHA, Leonardo Carneiro da. “O processo civil no Estado Constitucional e os fundamentos do projeto do novo Código de Processo Civil brasileiro”. Revista de Processo. São Paulo: RT, julho-2012, v. 209, p. 349-374. 39 MITIDIERO, Daniel. Colaboração no processo civil: pressupostos sociais, lógicos e éticos. São Paulo: RT, 2009, p. 101-103. 40 GOUVEIA, Lúcio Grassi. A função legitimadora do princípio da cooperação intersubjetiva no processo civil brasileiro. Revista de Processo. São Paulo: RT, jun. 2009, v. 172, p. 33. Com apoio na legislação portuguesa e considerando as semelhanças entre os ordenamentos, a doutrina passou a defender a existência de cooperação no sistema brasileiro41. Algumas mudanças legislativas reforçaram a ideia da cooperação. A Lei nº 11.051, de 2004, acrescentou o § 4º ao art. 40 da Lei nº 6.830, de 1980, para prever que, decorrido o prazo prescricional, o juiz, depois de ouvida a Fazenda Pública, pode, de ofício, reconhecer, na execução fiscal, a prescrição intercorrente e decretá-la. O contraditório deve, nesse caso, ser instalado para se oportunizar à Fazenda Pública demonstrar a eventual existência de alguma causa suspensiva ou interruptiva da prescrição e, enfim, para que possa contribuir com o convencimento do magistrado, instaurando um diálogo entre parte e juiz. Paralalamente a tudo isso, a arbitragem difundiu-se no Brasil. Em 1996, foi promulgacda a Lei nº 9.307, que passou a dispor sobre a arbitragem, conferindo maiores poderes ao árbitro. A este cabe decidir, de ofício ou a requerimento das partes, as questões relativas à existência, validade e eficácia da convenção de arbitragem e do contrato que contenha a cláusula compromissória. Havendo necessidade de medidas coercitivas ou cautelares, os árbitros poderão concedê-las. A sentença arbitral não precisa mais ser homologada, é irrecorrível e produz coisa julgada material, constituindo título executivo judicial. O Poder Judiciário não pode rever o mérito da sentença arbitral. O procedimento arbitral pode ser flexibilizado e regulado pela convenções firmadas entre as partes. A partir do início de vigência da Lei nº 9.307, de 1996, a doutrina brasileira sobre arbitragem desenvolveu-se intensamente, prevalecendo o entendimento de que arbitragem ostenta natureza jurisdicional. É certo que o árbitro não tem poder de império, não podendo executar suas próprias sentenças. Essa circunstância – que, para alguns, afastaria a natureza jurisdicional da arbitragem – não lhe retira a condição de atividade jurisdicional. Para o entendimento majoritário, deve-se distinguir o poder jurisdicional do poder de império, por ser possível que alguém disponha de jurisdição, embora despido do imperium42. Essas mudanças legislativas impulsinaram a arbitragem no Brasil, sendo nítida a relação do tema com o desenvolvimento de uma teoria dos negócios processuais. A ideia da cooperação e das recíprocas influências entre partes e juiz também contribuíram para o desenvolvimento de uma teoria dos negócios processuais43. O procedimento pode, como visto, ser flexibilizado pelo juiz. Diante da necessidade de 41 DIDIER JR., Fredie. Fundamentos do princípio da cooperação no direito processual civil português. Coimbra: Ed. Coimbra, 2010. 42 VALENÇA FILHO, Clávio de Melo. Poder Judiciário e sentença arbitral. Curitiba: Juruá, 2002. p. 48-50. No mesmo sentido: CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e processo: um comentário à Lei n. 9.307/96. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2004. p. 46. 43 Nesse sentido: MAZZEI, Rodrigo; CHAGAS, Bárbara Seccato Ruis. “Breve diálogo entre os negócios jurídicos processuais e a arbitragem”. Revista de Processo. São Paulo: RT, v. 237, nov-2014, p. 223-237. maior participação das partes e de um maior diálogo entre elas e o juiz, a flexibilização também pode ser feita por negócios processuais. Tudo isso fez crescer o interesse pelo estudo dos negócios jurídicos processuais no Brasil. Não é por outro motivo, aliás, que já há teses de doutorado defendidas em torno do assunto. Na Universidade Federal da Bahia – UFBA, Pedro Henrique Pedrosa Nogueira, em 2011, apresentou a tese “Negócios jurídicos processuais: análise dos provimentos judiciais como atos negociais”, em que defendeu a existência de negócios processuais. Seu orientador, professor Fredie Didier Jr., com quem escreveu um livro sobre a Teoria dos fatos jurídicos processuais, aí incluídos os negócios processuais, mantém, desde 2006, uma linha de pesquisa, no programa de pós-graduação da UFBA, dedicada ao estudo desse tema que intitulou o referido livro. Em 2013, Robson Renault Godinho apresentou, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP, a tese “Convenções sobre o ônus da prova – estudo sobre a divisão de trabalho entre as partes e os juízes no processo civil brasileiro”, em que sustentou haver negócios processuais, concentrando a análise na convenção sobre o ônus da prova. Ainda em 2013, Bruno Garcia Redondo apresentou, no programa de pós-graduação da PUC/SP, a dissertação de mestrado “Flexibilização do procedimento pelo juiz e pelas partes no Direito Prodessual Civil brasileiro”, defendendo a existência de negócios jurídicos processuais. Em 2014, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, Diogo Assumpção Rezende de Almeida apresentou a tese “Das convenções processuais no processo civil”, defendendo a existência de negócios jurídicos bilaterais no processo. Seu orientador, o professor Leonardo Greco, tem importante texto sobre os negócios processuais, já citado em linhas transatas44. O professor Antônio do Passo Cabral, da UERJ, está realizando estágio de pós- doutoramento na Universidade de Paris I (Panthéon-Sorbonne), sob a supervisão do professor Loïc Cadiet, para investigar sobre os negócios processuais, seus tipos, seu objeto e seus limites. Nas X Jornadas Brasileiras de Direito Processual, realizadas em agosto de 2014 em Campos do Jordão/SP, sob a organização do Instituto Brasileiro de Direito Processual – IBDP, houve uma mesa de discussão destinada aos negócios jurídicos processuais. Já está programado para março de 2015 um evento, sob a organização do IBDP, a realizar-se na Associação dos Advogados de São Paulo – AASP, exclusivamente dedicado a discutir os negócios jurídicos processuais. O tema, como se vê, é pulsante na doutrina brasileira, despertando o estudo e da produção acadêmica. 44 “Os atos de disposição processual – primeiras reflexões”. Os poderes do juiz e o controle da decisões judiciais: estudos em homenagem à professora Teresa Arruda Alvim Wambier. José Miguel Garcia Medina; Luana Pedrosa de Figueiredo Cruz; Luís Otávio Sequeira de Cerqueira; Luiz Manoel Gomes Junior (coord.). São Paulo: RT, 2008, p. 290-304. 5. O novo Código de Processo Civil brasileiro 5.1. Generalidades O novo CPC adota um modelo cooperativo de processo, com valorização da vontade das partes e equilíbrio nas funções dos sujeitos processuais. Com efeito, nos termos do seu art. 6º, todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si, cabendo ao juiz zelar pelo efetivo contraditório (CPC, art. 7º), de modo a não proferir decisão contra uma parte sem que esta seja previamente ouvida (CPC, art. 9º). Enfim, o juiz não pode valer-se de fundamento a respeito do qual não se tenha oportunizado manifestação das partes (CPC, art. 10). Há, no novo Código, uma valorização do consenso e uma preocupação em criar no âmbito do Judiciário um espaço não apenas de julgamento, mas de resolução de conflitos. Isso propicia um redimensionamento e democratização do próprio papel do Poder Judiciário e do modelo de prestação jurisdicional pretendido. O distanciamento do julgador e o formalismo típico das audiências judiciais, nas quais as partes apenas assistem ao desenrolar dos acontecimentos, falando apenas quando diretamente questionadas em um interrogatório com o objetivo de obter sua confissão, são substituídos pelo debate franco e aberto, com uma figura que pretende facilitar o diálogo: o mediador ou o conciliador. Põe-se a descoberto, no novo CPC, o prestígio da autonomia da vontade das partes, cujo fundamento é a liberdade, um dos principais direitos fundamentais previstos no art. 5º da Constituição Federal. O direito à liberdade contém o direito ao autorregramento, justificando o chamado princípio do respeito ao autorregramento da vontade no processo45. Com efeito, o novo CPC contém diversas normas que prestigiam a autonomia da vontade das partes, permitindo que elas negociem sobre o processo, de modo mais evidente do que no CPC/1973. O autorregramento da vontade no processo é permitido, assegurado e respeitado. O novo Código é estruturado de maneira a estimular a solução do conflito pela via que parecer mais adequada a cada caso, não erigindo a jurisdição como necessariamente a melhor opção para eliminar a disputa de interesses. O novo Código trata, por exemplo, da autocomposição, regulando a mediação e a conciliação (arts. 165 a 175), inserindo a tentativa de autocomposição como ato anterior à defesa do réu (arts. 334 a 695), permitindo, no acordo judicial, a inclusão de matéria estranha ao objeto litigioso do processo (art. 515, § 2º) e admitindo acordos sobre o processo (art. 190). Há, enfim, um estímulo à autocomposição, destacando-se os §§ 2º e 3º do seu art. 3º. A consagração do princípio da cooperação (art. 6º) relaciona-se com o fenômeno da valorização da autonomia da vontade no processo. O art. 190 prevê uma cláusula geral de negociação processual, permitindo a celebração de negócios processuais atípicos. 45 DIDIER JR., Fredie. “Negociação sobre o processo: autorregramento da vontade no projeto de novo Código de Processo Civil”. Texto inédito, gentilmente cedido pelo autor. O prestígio da autonomia da vontade, no novo CPC brasileiro, tem a confirmá- lo a previsão contida no seu art. 18, segundo o qual “Ninguém poderá pleitear direito alheio em nome próprio, salvo quando autorizado pelo ordenamento jurídico”. O dispositivo equivale ao disposto no art. 6º do CPC de 1973, que assim dispõe: “Ninguém poderá pleitear, em nome próprio, direito alheio, salvo quando autorizado por lei”. É bem de ver que o termo “lei” foi substituído por “ordenamento jurídico”. Tal alteração, aliada à valorização da autonomia da vontade, permite concluir que é possível haver legitimação extraordinária negociada, ou seja, por um negócio jurídico, que constitui fonte integrante do ordenamento jurídico, é possível atribuir a alguém a legitimação para defender interesses de outrem em juízo46. 5.2. Ampliação dos negócios processuais típicos O novo CPC brasileiro mantém vários dos negócios jurídicos típicos previstos no atual CPC. Realmente, há, no novo CPC, da mesma forma que existem no CPC/1973, negócios processuais típicos. As partes podem eleger o foro competente (NCPC, art. 63), convencionar a suspensão do processo (NCPC, art. 313, II), negociar o adiamento da audiência (NCPC, art. 362, I), acordar sobre a distribuição diversa do ônus da prova (NCPC, art. 373, §§ 3º e 4º), convencionar que a liquidação da sentença seja por arbitramento (NCPC, art. 509, I). Essas – e outras aqui não mencionadas – são hipóteses de negócios processuais típicos. Além deles, prevê outros novos, a saber: a) redução de prazos peremptórios O juiz pode, com a concordância das partes, reduzir prazos peremptórios. Essa é uma possibilidade autorizada pelo § 1º do art. 222 do do novo CPC, revelando uma hipótese de negócio plurilateral típico, celebrado entre juiz, autor e réu. b) calendário processual Inspirado nas experiências francesa e italiana, o art. 191 do novo CPC apresenta uma das grandes novidades a ser adotada no sistema processual brasileiro: o calendário processual. As partes, juntamente com o juiz, podem calendarizar o procedimento, fixando datas para a realização dos atos processuais, que ficam todos agendados. Trata-se de um negócio processual plurilateral típico, celebrando entre juiz, autor e réu, bem como, se houver, intervenientes. Estabelecido o calendário, dispensa-se a intimação das partes para a prática dos atos processuais que já foram agendados. Também não é mais necessária qualquer intimação para as audiências cujas datas tiverem sido agendadas no calendário. O calendário vincula as partes e o juiz. Os prazos nele previstos só podem ser alterados em casos excepcionais, devidamente justificados. 46 Nesse sentido: DIDIER JR., Fredie. “Fonte normativa da legitimação extraordinária no novo Código de Processo Civil: a legitimação extraordinária de origem negocial”. Revista de Processo. São Paulo: RT, junho-2014, v. 232, p. 69-76. O calendário permite às partes conhecer a possível duração do processo, com previsão cronológica do momento em que deve ser proferida a sentença47. Sua previsão no Código de Processo Civil é inspirada no critério de velocidade, evitando- se atos protelatórios48. Além de instrumento destinado a acelerar o processo, o calendário processual é técnica que serve à organização e à previsibilidade do processo49. A dispensa da intimação das partes é a principal finalidade do calendário processual. A celebração do calendário processual contribui para concretização do princípio da duração razoável do processo, evitando indefinição das datas para a prática dos atos sucessivos no processo. No CPC italiano, o calendário processual está previsto no art. 81-bis, introduzido pela Legge 18 giugno 2009, n. 69. O juiz italiano deve fixar o calendário, levando em conta a natureza, a urgência e a complexidade da causa. Tal art. 81-bis foi alterado pela Legge 14 settembre 2011, n. 148, para acrescentar que o juiz há de fixar o calendário em respeito ao princípio da duração razoável do processo. O calendário processual normalmente se relaciona com a prática de atos instrutórios50. Com efeito, fixado o calendário para os atos instrutórios, tudo torna-se mais previsível; todos os atos ficam agendados. Já se sabe quando serão praticados, concretizando-se a duração razoável do processo. Aliás, quando o juiz determina a realização de perícia, deve haver, se possível, a fixação de calendário para os atos relativos à prova pericial (NCPC, art. 357, § 8º). Além dos atos instrutórios, é também possível estabelecer o calendário processual para a prática de atos postulatórios, a exemplo das razões finais, bem como para a prática de atos decisórios e executivos51. O calendário pode ser estabelecido em qualquer etapa do procedimento, embora seja mais factível ou provável que se celebre na fase de organização e saneamento do processo, a fim de se agendarem os atos instrutórios. Não é sem razão, aliás, que o § 8º do art. 357 do NCPC assim dispõe: “Caso tenha sido determinada a produção de prova pericial, o juiz deve observar o disposto no art. 465 e, se possível, estabelecer, desde logo, calendário para sua realização”. É possível, de todo modo, que o juiz designe uma audiência apenas para negociar com as partes a fixação do calendário, organizando melhor a realização dos futuros atos processuais. Nos termos do Enunciado 299 do Fórum Permantente de Processualistas Civis: “O juiz pode designar audiência também (ou só) com objetivo de ajustar com as partes a fixação de calendário para fase de instrução e decisão”. 47 RICCI, Gian Franco. La reforma del processo civile: legge 18 giugno 2009, n. 69. Torino: G. Giappichelli Editore, 2009, p. 36. 48 RICCI, Gian Franco. Ob. cit., p. 37. 49 PICOZZA, Elisa. “Il calendario del processo”. Rivista di Diritto Processuale. Milano: CEDAM, 2009, LXIV, n. 6, p. 1.652. 50 RICCI, Gian Franco. Ob. cit., p. 37. 51 Sobre a calendarização da execução: COSTA, Eduardo José da Fonseca. “A execução negociada de políticas públicas em juízo”. Revista de Processo. São Paulo: RT, 2012, v. 212. O calendário é sempre negocial; não pode ser imposto pelo juiz. Trata-se de negócio jurídico processual plurilateral, havendo a necessidade de acordo de, pelo menos, três vontades: a do autor, a do réu e a do juiz. Se houver intervenientes, estes também devem integrar o negócio processual que fixa o calendário. É bem verdade que o juiz deve zelar pela duração razoável do processo (NCPC, art. 139, II), mas isso, por si só, não lhe autoriza a impor o calendário processual. É necessário que haja fixação “de comum acordo” pelo juiz e pelas partes, tal como dispõe o art. 191 do NCPC. Estabelecido o calendário, dispensa-se a intimação das partes para a prática dos atos processuais que já foram agendados. Também não é mais necessária qualquer intimação para as audiências cujas datas tiverem sido agendadas no calendário. A propósito, a dispensa de intimação das partes esta é a principal finalidade do calendário processual. O calendário vincula as partes e o juiz. Os prazos nele previstos só podem ser alterados em casos excepcionais, devidamente justificados. A mudança dos prazos estabelecidos no calendário processual somente deve ocorrer se justificada antes do escoamento dos prazos fixados. Aplica-se aqui o disposto no parágrafo único do art. 139 do NCPC. Nos termos do art. 12 do NCPC, os juízes devem observar a ordem cronológica de conclusão para proferir sentenças. Se a sentença somente pode ser proferida de acordo com a ordem cronológica, como se pode fixar, no calendário processual, a data para a prolação da sentença? Como, em outras palavras, compatibilizar o calendário processual fixado entre as partes e o juiz (NCPC, art. 191) com o respeito à ordem cronológica de julgamento (NCPC, art. 12)? Não é possível fixar, no calendário, uma data para a prolação da sentença sem observância da ordem cronológica, pois isso atinge terceiros que aguardam, na fila formada a partir das conclusões, a sentença de seus processos. A compatibilização dessas regras pode operar-se de duas maneiras: (a) ou bem se entende que a sentença não é ato que possa ser inserido no calendário processual; (b) ou, no calendário, fica estabelecido que a sentença será proferida em audiência especificamente designada para tanto, com sua data já fixada no próprio calendário. É que a sentença proferida em audiência exclui- se da ordem cronológica (NCPC, art. 12, § 2º, I). O calendário processual, fixado com fundamento no art. 191 do NCPC, é negócio processual plurilateral, firmado, de comum acordo, entre o juiz e as partes. Estabelecido o calendário, dispensam-se as intimações, pois todos os atos já estão agendados. Tal calendário processual não se confunde com o calendário estabelecido pelo juiz para a prova pericial. Nos termos do § 8º do art. 357 do NCPC, “[c]aso tenha sido determinada a produção de prova pericial, o juiz deve observar o disposto no art. 465 e, se possível, estabelecer, desde logo, calendário para sua realização”. Tal calendário, previsto no § 8º do art. 357 do NCPC, para a prova pericial, não se confunde com o calendário processual previsto no art. 191. Enquanto este último é fixado, de comum acordo, entre o juiz e as partes para quaisquer atos processuais e, uma vez estabelecido, vincula todos, dispensando as intimações dos atos agendados, o calendário da prova pericial é imposto pelo juiz, não dispensando as intimações. A prova pericial pode, todavia, integrar o calendário processual estabelecido, de comum acordo, entre o juiz e as partes, nos termos do art. 191 do NCPC; nessa hipótese, a prova pericial seria mais um ato a integrar o calendário processual. O § 8º do art. 357 do NCPC prevê um calendário específico só para a prova pericial, quando as partes e o juiz não tenham, de comum acordo, fixado o calendário processual, ou não a tenham nele incluído. Nada impede, porém, que o juiz e as partes, de comum acordo, incluam no calendário processual a prova pericial ou estabeleçam, também de comum acordo, um calendário específico para a prova pericial. Neste caso, ficam vinculados e dispensam-se as intimações dos atos pertinentes à prova pericial. c) escolha consensual do perito Ao longo da histórica legislativa brasileira, a escolha do perito comportou variações. Na época em que vigorava o Regulamento nº 737/1850, o autor indicava um perito, cabendo ao réu indicar outro; ambos escolhiam um terceiro. Não havendo consenso quanto ao terceiro perito, o juiz o nomeava para caso de desempate. Quando a prova era determinada de ofício, o juiz nomeava o perito, mas a praxe autorizava o mesmo procedimento: cada parte escolhia um perito, cabendo ao juiz escolher o terceiro. O Código de Processo Civil de 1939, em seu art. 129, assim dispunha: “Os exames periciais serão feitos por um perito, sempre que possível técnico, de livre escolha do juiz”. Já seu art. 132 enunciava que “[a] cada uma das partes será lícito indicar, em petição, um assistente técnico, a quem incumbirá acompanhar as diligências do perito, cujas conclusões poderá impugnar”. E, nos termos do parágrafo único daquele mesmo art. 132, “[a]o assistente serão facultados os mesmos meios de investigação que ao perito”. Cabia, então, ao juiz escolher o perito. Em 1946, sobreveio o Decreto-lei nº 8.570 que alterou tanto o art. 129 como o art. 132, ambos do CPC/1939. O art. 129 passou a ostentar a seguinte redação: “Os exames periciais poderão ser feitos por um só louvado,
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