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1 LÓGICA I Enunciados Declarativos 1. Linguagem natural e linguagens artificiais Em Lógica, é fundamental a distinção entre linguagem natural e linguagens artificiais, visto que a maneira como articulamos nosso raciocínio depende, fundamentalmente, da linguagem que utilizamos. Imagine, por exemplo, que você esteja numa sala de bate-papo na Internet, ou em seu comunicador instantâneo, e queira expressar alegria diante de algo que lhe foi dito. Você pode escrever a frase “Fiquei contente com o que você disse”, ou pode simplesmente apresentar o ícone “:)”; em ambos os casos, você estará manifestando alegria diante do que lhe foi dito. A principal diferença está no modo como você se expressa: no primeiro caso, você estará usando a linguagem natural, que é a linguagem que aprendemos desde a infância, e que utilizamos cotidianamente para comunicarmo-nos uns com os outros (em nosso caso, trata-se da língua portuguesa); já no segundo caso, você estará utilizando uma das muitas linguagens artificiais, que são linguagens construídas especificamente para um determinado objetivo (no caso, a linguagem dos emoticons, construída especificamente para agilizar e tornar mais atraente a comunicação por escrito na Internet). Além dessas linguagens, há várias outras linguagens, tanto naturais quanto artificiais: o inglês, o alemão, o francês e o russo são exemplos de outras linguagens naturais, enquanto os símbolos matemáticos, os sinais de trânsito, os mapas rodoviários e os gráficos de investimentos são exemplos de outras linguagens artificiais. Um exemplo muito interessante de linguagem artificial é o esperanto, construído em meados dos anos 80, que se baseou numa linguagem natural (o latim) e que tinha por objetivo eliminar as barreiras de comunicação entre os povos do mundo inteiro; a ideia seria a de que todos os homens falassem uma única língua (o esperanto), eliminando-se aos poucos as demais – ideia que, aliás, não deu muito certo ;) . Do ponto de vista lógico, no entanto, a noção de linguagem artificial é mais abstrata: a linguagem natural é aquela por meio da qual se podem expressar frases dotadas de sentido. Qualquer língua, portanto, viva ou morta, falada por um povo, é considerada linguagem natural. Em contrapartida, as linguagens artificiais são aquelas construídas com o objetivo de 2 privilegiar a forma em detrimento do sentido – isto é, nas quais o que é dito não importa, considerando-se apenas como é dito. 2. A noção de Enunciado Declarativo Quando lidamos com a linguagem natural (o português, em nosso caso), os elementos básicos do raciocínio lógico são os chamados enunciados declarativos. Tais enunciados são frases da língua portuguesa que podem ser verdadeiras ou falsas. A frase “Está chovendo”, por exemplo, pode ser verdadeira ou falsa: caso esteja, de fato, chovendo, será verdadeira; caso não esteja chovendo, será falsa. Tal frase expressa, portanto, um sentido que pode ser avaliado em termos de verdade ou falsidade, diferentemente de frases como “Que horas são?”, “Até que enfim!” ou “Entregue-me o relatório até as 14 horas!”, cujos sentidos não podem ser avaliados em termos de verdade ou falsidade. Porém, o que significa, exatamente, poder avaliar uma frase em termos de sua verdade ou falsidade, do ponto de vista lógico? Se digo que “está chovendo”, tenho por objetivo declarar que algo é verdadeiro. Isso ocorre não somente quando afirmo que “está chovendo”, mas quando expresso qualquer enunciado que declare algo sobre alguma coisa. Declarar é, portanto, do ponto de vista lógico, dizer que algo é verdadeiro: se digo que “está chovendo”, digo que “é verdade que está chovendo”. Assim, qualquer frase cujo sentido seja idêntico ao da mesma frase precedida por “É verdade que” será uma frase que poderá ser avaliada em termos de sua verdade ou falsidade: será verdadeira se o que afirma como verdadeiro for, de fato, o caso (em nosso exemplo, se, de fato, estiver chovendo); e será falsa se o que afirma como verdadeiro não for, de fato, o caso (em nosso exemplo, se, de fato, não estiver chovendo). Frases desse tipo (cujo sentido se mantém caso estejam precedidas pela expressão “é verdade que”) são os enunciados declarativos. Em nosso exemplo, a frase “Está chovendo” torna-se É verdade que está chovendo, cujo sentido é, obviamente, o mesmo da frase “Está chovendo”. Considere agora as frases da língua portuguesa que são perguntas, exclamações ou ordens. Tais frases não podem ser avaliadas em termos de verdade ou falsidade, uma vez que, 3 se precedidas pela expressão “é verdade que”, perdem o sentido. Isso significa que não podem ser verdadeiras ou falsas, e, portanto, não são enunciados declarativos. A pergunta “Que horas são?”, a exclamação “Até que enfim!” e a ordem “Entregue-me o relatório até as 14 horas!”, apresentadas anteriormente, se precedidas da expressão “é verdade que” tornam-se, respectivamente, É verdade que que horas são? É verdade que até que enfim! É verdade que entregue-me o relatório até as 14 horas!, frases estas que obviamente não têm sentido, pois não faz sentido perguntar se a pergunta “Que horas são?”, a exclamação “Até que enfim!” ou a ordem “Entregue-me o relatório até as 14 horas!” são verdadeiras ou falsas: uma pergunta tem por objetivo ser respondida, uma exclamação tem por objetivo expressar um sentimento, uma ordem tem por objetivo ser obedecida; nenhum desses tipos de frases tem por objetivo declarar que algo é verdadeiro. 3. A questão do contexto Para determinar se uma frase é um enunciado declarativo, uma pergunta, uma exclamação ou uma ordem, é frequentemente preciso analisar o contexto em que tal frase está inserida. Por exemplo, a frase É proibido fumar neste local é, à primeira vista, um enunciado declarativo (pois pode ser verdade ou não que seja proibido fumar neste local), e será de fato um enunciado declarativo quando for, por exemplo, a resposta a uma pergunta objetiva que tenciona saber se é proibido ou não fumar em determinado local. Contudo, é mais frequentemente utilizada como uma ordem, significando Não fume neste local!, 4 como no caso dos avisos da nova lei anti-fumo afixados nas paredes e fachadas de locais de acesso público. Neste caso, a intenção da frase não é afirmar algo verdadeiro (que pode, portanto, ser falso), mas proibir que se fume no local. A exclamação Que bom que você veio! é outro exemplo de uma frase que depende do contexto em que se insere para ser considerada um enunciado declarativo ou não. Em princípio, não é um enunciado declarativo, mas uma expressão de sentimento (se dita pela mãe diante do filho que a visita) ou ironia (se dita pelo chefe diante do subalterno que chegou três horas atrasado). No primeiro caso, a intenção da frase é afetiva, diz respeito apenas a quem a pronuncia; no segundo caso, a intenção da frase é repreensiva, e tem por objetivo constranger o funcionário. Porém, se um médico em folga passa pelo hospital onde trabalha no momento em que faltam médicos para atender às emergências, a mesma frase ganha sentido objetivo (isto é, passa a ter intenção declarativa), e pode ser lida como Foi bom você ter vindo, frase esta que é um enunciado declarativo. Os enunciado declarativos, portanto, são aqueles que têm intenção declarativa (isto é, que têm por objetivo afirmar a verdade de algo). Por essa razão, é importante ressaltar que, em Lógica, a noção de verdade se opõe à de falsidade, e não à de mentira. Isto porque a noção de mentira pressupõe uma intenção não declarativa, e não cabe à Lógica avaliar intenções, mas enunciados declarativos: se declaro que “está chovendo” mesmo sabendo que não está, estou mentindo do ponto de vista da minhaintenção ao declarar algo que sei que é falso; do ponto de vista exclusivamente do que declaro (independentemente de minha intenção ao declarar), o que estou dizendo é, simplesmente, falso. 5 4. A verdade ou falsidade dos enunciados declarativos O fato de que enunciados declarativos podem ser verdadeiros ou falsos não significa que: − Sejam, de fato, verdadeiros ou falsos; − Saibamos que são verdadeiros ou falsos; ou − Possamos saber se são verdadeiros ou falsos. O enunciado Estamos há um mês do Natal de 2009, por exemplo, é um enunciado declarativo, pois afirma que é verdade que “estamos há um mês do Natal de 2009”. O fato de que tal enunciado é verdadeiro hoje, mas, daqui a seis meses, será falso, não muda o fato de que pode ser verdadeiro ou falso (na verdade, confirma esse fato). Já o enunciado As borboletas de quarenta quilos voam baixo, por mais estapafúrdio que seja, é um enunciado declarativo, pois afirma que é verdade que “as borboletas de quarenta quilos voam baixo”. O fato de que não é nem verdadeiro nem falso (visto que não existem borboletas de quarenta quilos) não muda o fato de que poderia ser verdadeiro ou falso (caso existissem borboletas de quarenta quilos), o que decorre do fato de que, mesmo estapafúrdio, veicula uma afirmação cuja intenção é declarativa e cujo sentido é possível compreender. O enunciado Está chovendo no sul da Indonésia neste instante certamente é verdadeiro ou falso; o fato de que não saibamos se é verdadeiro ou falso não muda o fato, portanto, de que pode ser verdadeiro ou falso. 6 O enunciado Deus existe pode ser verdadeiro ou falso, mesmo que não seja possível saber, objetivamente, se Deus existe ou não (isto é, que não seja possível provar a existência de Deus ou sua inexistência); a crença na verdade ou na falsidade deste enunciado é uma questão subjetiva. Dizemos que um enunciado declarativo tem valor de verdade se tal enunciado é, de fato, verdadeiro ou falso. Obviamente: − O valor de verdade de um enunciado verdadeiro é verdadeiro; − O valor de verdade de um enunciado falso é falso. Enunciados declarativos são, portanto, enunciados que podem ter valor de verdade. 5. O enunciado declarativo condicional Enunciados declarativos condicionais são aqueles que declaram a verdade de algo sob certas condições, ou circunstâncias. Quando afirmo, por exemplo, que “se fizer muito calor, irá chover”, não estou afirmando que a declaração “irá chover” é verdadeira, pura e simplesmente, nem que a declaração “fará muito calor” é verdadeira, pura e simplesmente; estou declarando que, se determinadas circunstâncias ocorrerem (isto é, se a declaração “fará muito calor” for verdadeira), então a declaração “irá chover” será verdadeira. Também ao afirmar que “se houvesse maior zelo com a educação no Brasil, a vida no país seria menos penosa”, não estou declarando que a vida no Brasil é menos penosa, nem tampouco que há maior zelo com a educação no país – antes pelo contrário: estou declarando que, se determinadas condições não faltassem (isto é, se a declaração “há maior zelo com a educação no Brasil” fosse verdadeira), então a declaração “a vida no país [no Brasil, portanto] é menos penosa” seria verdadeira. Tais enunciados são, portanto, cada um deles, um só enunciado declarativo. 7 6. Identificação dos enunciados declarativos Para que seja possível identificar os enunciados declarativos num texto, é preciso interpretar com bastante cuidado o texto em questão. Por exemplo, a frase As ruas estavam sujas e vazias é um só enunciado declarativo, enquanto a frase As ruas estavam sujas e as casas estavam vazias é composta por dois enunciados declarativos: “as ruas estavam sujas” e “as casas estavam vazias”. Mesmo que o verbo do último enunciado não aparecesse na frase, ainda assim haveria dois enunciados declarativos (os mesmos, por sinal) em As ruas estavam sujas, e as casas, vazias, uma vez que a elipse do verbo é de natureza gramatical, não de natureza lógica. Já na frase As ruas sujas e as casas vazias demonstravam o abandono do lugar há um só enunciado declarativo, pois nada se afirma sobre as ruas ou as casas, mas sobre o que as ruas sujas e as casas vazias demonstravam, assim como em cada uma das frases As ruas sujas e as casas vazias demonstravam o quanto o lugar estava abandonado e As ruas sujas e as casas vazias demonstravam que o lugar estava abandonado há também um só enunciado declarativo, já que não se afirma, em nenhuma delas, que o lugar estava abandonado, mas o que as ruas sujas e as casas vazias demonstravam, exatamente como na frase “as ruas sujas e as casas vazias demonstravam o abandono do lugar”.
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