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Proletário ou Camponês? Uma discussão da natureza social do pequeno produtor agrícola inserido no agronegócio brasileiro. Ronaldo dos Santos Silva1 Os indícios de que o mundo do século XXI será melhor não são insignificantes. Se o mundo conseguir não se destruir (...) a probabilidade será bastante forte. Eric Hobsbawm (2002) Resumo Discuti-se neste artigo a natureza de classe dos pequenos agricultores, familiares ou não, que produzem para as tradings do agronegócio brasileiro. Esta discussão, colocada desde princípios do século XX resulta da interpretação das modificações produzidas na estrutura de classes no campo, a partir da penetração capitalista. Trabalha-se com a hipótese de que essas mudanças foram profundas mas não eliminaram a classe camponesa, caracterizada pela autoexploração do trabalho. A partir de uma revisão conceitual em autores clássicos como Marx, Lenin, Kautsky e Chayanov, avaliou-se a situação concreta de um pequeno produtor do município de Cristalina e concluiu-se, com base nos autores clássicos, que esse produtor pode ser definido como pertencente à classe camponesa, ressalvado que o conceito de camponês aqui considerado não é o conceito clássico, ligado ao sistema feudal de produção, mas uma nova formação social, parte do modo de produção capitalista tal como ele se expressou no campo brasileiro. Palavras-Chave: Campesinato, proletariado, agronegócio, Marx, Lenin, Kautsky, Chayanov Introdução Travou-se, durante todo o século XX, um intenso debate sobre o futuro da classe de pequenos produtores rurais dentro do modo de produção capitalista. Tal debate tinha por base a concepção marxista que colocava o campesinato como “uma imensa massa (...) incapazes de fazer valer seu interesse de classe em seu próprio nome” (MARX, 1988, p. 115), e que, portanto, teria seu destino traçado pela dinâmica capitalista, que tendia a 1 Bacharel em Ciências Contábeis, Especialista em Controladoria, Mestrando do Programa de Pós Graduação em Agronegócios – PROPAGA da Faculdade de Agronomia e Medicina Veterinária da Universidade de Brasília - UnB Hacker Realce Hacker Realce Hacker Realce 2 eliminar todos os resquícios dos modos de produção que lhe haviam antecedido (MARX, 1991). Essa não era uma polêmica meramente acadêmica. Ela teve reflexos práticos muito profundos na forma de atuar dos militantes políticos do século XX. Talvez o maior desses reflexos tenha sido a famosa oposição de diversos segmentos marxistas à bandeira da reforma agrária, ou ao menos sua subestimação, dada a priorização do programa sindical para o campo (PRADO JUNIOR, 1999), visto a tendência ao desaparecimento do campesinato. Neste início de século XXI esse debate segue vivo e atual. Apesar dos prognósticos de Marx. Lênin e outros tantos, um tipo de propriedade rural não empresarial e um tipo de trabalhador rural aparentemente não-proletário sobrevivem em todo o mundo, suscitando dúvidas entre os militantes políticos e os pesquisadores. No Brasil estima-se em quase cinco milhões o número de famílias identificadas com a agricultura familiar (DEL GROSSI, 2006). Muitas delas produzindo comodities para as grandes tradings do capitalismo moderno. Para entender esse setor e como ele se integra no moderno sistema de produção capitalista este artigo fará, à luz da teoria, um estudo de caso sobre um pequeno produtor rural do município de Cristalina (GO), verificando suas condições de produção e sobrevivência, avaliando se esse caso pode ser generalizado para todo o segmento. A hipótese que guia este trabalho é que as transformações ocorridas no campo brasileiro, a partir da penetração do capitalismo, provocaram profundas modificações na estrutura das classes rurais, mas não eliminaram por completo a classe camponesa, sendo possível encontrar produtores que, mesmo dentro de conceitos clássicos, enquadram-se nessa conceituação. Revisão Conceitual O dicionário de economia, preparado pelo professor Paulo Sandroni, com a colaboração de Jacob Gorender e outros, assim define campesinato: O conjunto de grupos sociais de base familiar que, em graus diversos de autonomia, se dedica a atividades agrícolas em glebas determinadas. Em termos gerais, caracteriza-se por produzir baseado no trabalho da família, empregando eventualmente mão-de-obra assalariada; possuir a propriedade dos meios de trabalho (...) ter autonomia total ou parcial na gestão da propriedade; e ser dono de parte ou da totalidade da produção. (SANDRONI, 1985, p. 44-45) A partir desse conceito passa-se ao levantamento bibliográfico do que foi dito por grandes pensadores marxistas dos séculos XIX e XX e por alguns de seus opositores, buscando lançar luz sobre o caráter social dos pequenos proprietários rurais brasileiros, familiares ou não. Hacker Realce Hacker Realce Produtos Hacker Realce comércio Hacker Realce Hacker Realce Hacker Realce Hacker Realce 3 Para Marx. Os proprietários de simples força de trabalho, os proprietários de capital e os proprietários de terras, cujas respectivas fontes de receitas são o salário, o lucro e a renda do solo, ou seja, os operários assalariados, os capitalistas e os latifundiários, formam as três grandes classes da sociedade moderna, baseada no regime capitalista de produção. (MARX, 1988, p. 99). Assim se refere Marx, em um de seus textos mais maduros, “O Capital”, às classes sociais fundamentais na sociedade capitalista de sua época. Nesse texto, como em inúmeros outros, o campesinato é visto como uma sobrevivência do modo de produção feudal e, portanto, secundário para o estudo em questão, não tendo qualquer papel relevante a cumprir na dinâmica do mundo capitalista. Em seu artigo “O 18 Brumário” Marx assim analisa a condição de classe dos pequenos camponeses franceses: A grande massa da nação francesa é, assim, formada pela simples adição de grandezas homólogas, da mesma maneira por que batatas em um saco constituem um saco de batatas. Na medida em que milhões de famílias camponesas vivem em condições econômicas que as separam umas das outras, e opõem o seu modo de vida, os seus interesses e sua cultura aos das outras classes da sociedade, estes milhões constituem uma classe. Mas, na medida em que existe entre os pequenos camponeses apenas uma ligação local e em que a similitude de seus interesses não cria entre eles comunidade alguma, ligação nacional alguma nem organização política, nessa exata medida não constituem uma classe. (MARX, 1988, P. 115). Constata-se, portanto, que os critérios utilizados por Marx para definir a classe camponesa são: (1) suas condições econômicas diferenciadas do restante da população; (2) seu modo de vida; (3) seus interesses e (4) sua cultura. Em escritos posteriores Marx irá esclarecer que dentre as condições econômicas diferenciadas destaca-se, como definidor de classe, o papel do grupo social no processo de produção. Ao mesmo tempo, Marx chama a atenção para o fato de que a ausência de uma organização política representativa dos interesses de classe do campesinato e, entenda-se, a impossibilidade de existência dessa representação, dado seu modo de produção isolacionista, impede que esse setor se transforme em classe social para si, isto é, em classe capaz de ter um projeto político próprio que transforme seus interesses num programa de ação e construa um governo e Estado próprios. Essa idéia, do caráter politicamente amorfo dos pequenos produtores rurais, acompanhou Marx desde seus primeiros escritos. Em artigo de meados do século XIX, Marx analisa as classes sociais em seu país natal: Hacker Realce HackerRealce Hacker Realce Hacker Realce Hacker Realce Hacker Realce Hacker Realce 4 Por fim, havia a grande classe dos pequenos fazendeiros, dos campônios, a qual, com a adição dos lavradores, constituía a grande maioria da população nacional (...) Contudo, ao mesmo tempo, é evidente e igualmente comprovado pela história de todos os países modernos que a população agrícola, devido à sua dispersão numa área muito ampla e pela dificuldade de elaborar um acordo entre uma boa parte dela, jamais pode tentar executar com êxito um movimento por conta própria; (MARX, 1988, p. 107-108) A essa concepção sobre o papel político da classe camponesa, somou- se, no arcabouço teórico dos marxistas pós-Marx, a correta interpretação segundo a qual “A natureza do modo de produção capitalista implica uma constante diminuição da população agrícola em relação à população não- agrícola” (MARX, apud LENIN 1988, p. 15), indicando que, além de não poder ser politicamente independente, o campesinato tendia, ademais, a reduzir-se drasticamente, talvez até seu completo desaparecimento. Dentre os autores marxistas que marcaram o pensamento pós-Marx destaca-se, logo no início de século XX, Vladimir Lênin. Para Lênin (1988, p. 35) o processo de decomposição dos pequenos agricultores em patrões e operários agrícolas constitui a base sobre a qual se forma o mercado interno na produção capitalista. E, após extensa análise sobre estatísticas da economia russa conclui: (...) O conjunto de contradições existentes no interior do campesinato constitui o que denominamos desintegração do campesinato (...) O campesinato antigo não se ‘diferencia’ apenas: ele deixa de existir, se destrói, é inteiramente substituído por novos tipos de população rural, que constituem a base de uma sociedade dominada pela economia mercantil e pela produção capitalista. Esses novos tipos são a burguesia rural (...) e o proletariado rural – a classe dos produtores de mercadorias na agricultura e a classe dos operários agrícolas assalariados. (LENIN, 1988, p. 113-114) Aqui Lênin identifica o início do processo de extinção do campesinato, com sua transformação em duas classes que se distinguem pelo seu papel no processo produtivo: a classe dos donos dos meios de produção, a burguesia rural, e a classe dos despossuidos, que para sobreviver devem vender sua força de trabalho à burguesia, o proletariado. Aparentemente Lênin esquece-se dos pequenos camponeses que sobrevivem a esse processo de desintegração e daqueles que, apesar de terem sido expulsos de suas terras, desejam voltar a tê-la. Para Lênin “O Hacker Realce Hacker Realce Hacker Realce Hacker Realce Hacker Realce Hacker Realce Hacker Realce Hacker Realce 5 proletariado rural (...) envolve o campesinato pobre, incluído aí o que não possui nenhuma terra.”. Esse novo ator social do campo russo, que se caracteriza pela venda de sua força de trabalho, de forma sistemática ou eventual, e possui metade dos estabelecimentos agrícolas é assim caracterizado por Lênin (1988, p.116): (...) possui estabelecimentos de extensão ínfima, cobrindo pedacinhos de terra, e, ademais, em total decadência (cujo testemunho patente é a colocação da terra em arrendamento); não pode sobreviver sem vender a sua força de trabalho (= ‘ofícios’ do camponês sem posses); seu nível de vida é extremamente baixo (provavelmente inferior ao do operário sem terra) Assim, para Lênin, qualquer camponês que venda, ainda que em tempo parcial, sua força de trabalho a outrem, mesmo se conservar suas terras e continuar trabalhando nelas no tempo remanescente, é um proletário e não um camponês. Essa concepção se tornará majoritária no movimento marxista durante todo o século XX. Segundo ela, salvo um setor intermediário altamente instável, que vive de crise em crise, caminhando para a extinção, o meio rural, totalmente integrado à economia capitalista, é formado por apenas duas classes sociais: burgueses e proletários. O impacto dessa concepção foi tão profundo que um autor como Eric Hobsbawm (2002), já no final do século XX, colocou como uma das marcas distintivas do século, a morte do campesinato. Dentro do movimento marxista, porém, levantaram-se algumas vozes destoantes à corrente leninista, destacando-se Karl Kautsky. Para esse teórico polonês: (...) não devemos pensar que a pequena propriedade territorial esteja em vias de desaparecer na sociedade moderna, ou que possa ser inteiramente substituída pela grande propriedade. A grande propriedade, por mais que rechace os camponeses livres, sempre manterá uma parte deles à sua ilharga, uma parte que ressuscita como pequenos arrendatários (KAUTSKY, 1980, p. 178 apud SCHNEIDER, 2003) Conforme Schneider (2003, p. 105): Kautsky afirma que o processo de transformação estrutural da agricultura sob o capitalismo não elimina, necessariamente, as pequenas propriedades desde que elas desenvolvam ‘formas de trabalho acessório’ (que podem ou não estar ligadas à agricultura) que lhes permitam manter sua reprodução social. Assim, segundo essa visão, há realmente uma penetração do capitalismo no campo, subordinando-o à grande indústria, como mercado Hacker Realce Hacker Realce Hacker Realce Hacker Realce Hacker Realce 6 consumidor e como fornecedor de insumos, porém isso não implica no aniquilamento da classe camponesa, que sim se pauperiza, mas poderá sobreviver com a geração de rendas acessórias que ampliem a renda da terra. O que Kautsky percebe é que a penetração do capitalismo no campo é capaz de gerar uma combinação de formações sociais muito mais rica do que simplesmente burgueses e proletários, pois, mesmo que o novo camponês já não seja um camponês feudal, ele ainda é um camponês, porém que exerce múltiplas funções e não apenas a de produtor rural. Fora da corrente marxista uma visão que teve certa repercussão foi a do populista russo Alexander V. Chayanov. O centro da teoria de Chayanov está na afirmação de que a unidade de produção familiar agrícola rege-se por princípios diferentes da unidade de produção capitalista. Para Chayanov apud Silva (1981): Na economia agrícola familiar, a família, equipada com meios de produção, emprega sua força de trabalho no cultivo da terra, e recebe como resultado de um ano de trabalho certa quantidade de bens. Uma simples observação de estrutura interna da unidade de trabalho familiar é suficiente para compreender que é impossível, sem a categoria salários, impor a esta estrutura o lucro líquido, a renda e o juro do capital, como categorias econômicas reais, no sentido capitalista da palavra. Portanto, nesse tipo de economia, não é possível distinguir entre renda da terra, salário ou remuneração do capital investido, sendo a renda obtida pela família um todo indivisível e, portanto, sendo o trabalho desenvolvido pela família algo diferente tanto da atividade do capitalista quando da do proletário. Conforme observa Abramovay (1998, p.6) (...) Chayanov elaborou uma teoria do funcionamento das unidades produtivas baseadas fundamentalmente no trabalho da família. Enquanto a renda dependesse fundamentalmente do trabalho familiar haveria um balanço entre a penosidade deste trabalho e as necessidades de consumo da família: uma vez preenchidas as necessidades, cada unidade adicional de trabalho passa a ter, para a família, um valor decrescente. Assim, estranhamente à lógica do capital, o camponês, ao ser um “proprietário que trabalha” (Wanderley, 1989) não está preocupado com o entesouramento ou reprodução do “capital”. Ele faz, isto sim, um freqüente balanço entre o esforço despendido e a satisfação das necessidades dafamília, condicionando aquele a esta. Sua diferenciação social será dada pelo tamanho da família, que determina sua capacidade de exploração da terra. A extensão das terras cultivadas, portanto, estará dada, essencialmente, pela força de trabalho da família. Hacker Realce Hacker Realce Hacker Realce Hacker Realce Hacker Realce Hacker Realce Hacker Realce Hacker Realce 7 O fato de que, para Chayanov, a lógica do camponês diferencie-se da lógica de acumulação do capitalista, não faz, segundo o autor, com que o camponês seja indiferente aos avanços da técnica, nem que tenda ao isolacionismo. Segundo Chayanov apud Wanderley (1989, p. 14): Mediante o estudo detido da produção camponesa atual, tal como é, estudamos principalmente o material a partir do qual, em nossa opinião, deverá evoluir historicamente o novo agro na próxima década, havendo convertido, por meio de cooperativas, uma considerável parte de sua economia em formas de produção socialmente organizadas. Deverá ser um campo industrializado em todas as esferas do processo técnico, mecanizado e eletrificado; um campo que teria aproveitado todos os sucessos da ciência e da tecnologia agrícola. Nessa concepção encontramos, inclusive, o germe daquilo que será chamado de capital social, aqui entendida a participação nas decisões através de organizações próprias, cooperativas, associações e outros grupos. (GALVÃO et al, 2005, p. 29) Concluindo esta revisão conceitual, a título de síntese, vale ainda a pena resgatar os cinco traços característicos das sociedades camponesas, elencados por Henri Mendras (1976): Uma relativa autonomia face à sociedade global; a importância estrutural dos grupos domésticos, um sistema econômico de autarcia relativa, uma sociedade de interconhecimentos e a função decisiva dos mediadores entre a sociedade local e a sociedade global (MENDRAS, 1976, apud Wanderley, 1999) Traços que sinalizam as características fundamentais do modo de produção camponês: ser um sistema produtivo diferenciado e ter como objetivo a manutenção do patrimônio familiar (Wanderley, 1989, p. 24) Estudo de Caso Celso Furtado, em 1957, chamou a atenção para os problemas advindos da chamada “tendência à concentração regional de renda” e alertou para a necessidade de desenvolverem-se políticas públicas para tentar mitigar seus efeitos nocivos sobre a integração da economia nacional, através de um processo de “aproveitamento mais racional de recursos e fatores no conjunto da economia nacional” (FURTADO, 2007, p. 331-335). Apesar da derrota política da corrente representada por Furtado, com a instauração do regime militar, em 1964, várias de suas teses encontraram eco nos meios empresariais, políticos e acadêmicos e acabaram por influir em determinadas políticas do período militar. 8 Uma dessas políticas foi a expansão para oeste da fronteira agrícola nacional. Um dos estados afetados por essa política foi Goiás que, a partir de fins dos anos de 1970 e durante toda a década de 1980 recebeu forte migração vinda do sul do país (GREMAUD, VASCONCELLOS E TONETO JUNIOR, 2002, p. 29-47). Dentro de Goiás, o município de Cristalina foi um dos que recebeu muitos pequenos agricultores familiares, fator que contribuiu decisivamente para o desenvolvimento do município. Hoje o município de Cristalina (GO) detém o nono PIB agropecuário do país, sendo grande produtor de soja e milho, destinados às grandes tradings internacionais como a Cargil e a Bunge. Segundo dados do Censo Agropecuário 1995/96, do IBGE, disponíveis no sitio do Ministério do Desenvolvimento Agrário, o município conta com pelo menos 326 propriedades de agricultura familiar, representando praticamente 50% dos estabelecimentos rurais do município. Esses estabelecimentos ocupam aproximadamente 15% da área total do município e respondem por 10% da produção rural local. Nesta pesquisa foi entrevistado o produtor Edemir Freitag, de 52 anos, diretor da Cooperativa Agropecuária do Serrado (COASER) e estudante de administração do agronegócio da Faculdade Central de Cristalina. A família Freitag, natural de Giruá, Rio Grande do Sul, migrou para Cristalina em 1985, adquirindo 125 ha de terras e iniciando o plantio de soja. Na época, além do filho Edemir, o pai e um irmão também trabalhavam. Hoje a família depende do trabalho apenas do Edemir, pois o pai está muito idoso e o outro irmão constituiu família própria. Os primeiros anos dos novos produtores de Cristalina foram muito difíceis, visto que a terra não era adequada para o tipo de plantio ao qual estavam acostumados, determinando uma produtividade muito baixa. Com o tempo foram desenvolvidas variedades próprias para a região, com a ajuda técnica da Embrapa, e a produtividade melhorou muito. Em alguns anos conseguiu-se boa colheita e a renda chegou a superar os custos. Nesse período o produtor chegou a adquirir um trator e outros implementos para melhorar a produtividade do trabalho da família. Contudo, a falta de recursos aliada à instabilidade econômica e política dessas décadas, contribuiu fortemente para que boa parte dos produtores vindos do Sul quebrasse e perdesse suas terras, após anos de trabalho em beneficiamento do solo. Essas terras foram, então, absorvidas por propriedades maiores, algumas com dezenas de milhares de hectares. Edemir foi um dos pequenos produtores que não conseguiu manter suas terras. Face aos baixos preços obtidos em muitas safras, às pragas, à alta dos insumos e aos juros bancários, teve de entregar suas terras, em 2000, para quitar dívidas, ficando apenas com o trator e alguns outros implementos. Desejando continuar na atividade, que já era desenvolvida pela família há mais de três gerações, arrendou terras e continuou a plantar soja. 9 Observe-se que esse processo de expropriação de pequenos produtores foi generalizado em toda a região e no país, forçando inúmeros produtores a voltar para suas regiões de origem ou deslocar-se para outros centros urbanos, ou ainda transformar-se em diarista ou assalariado rural. Nesses últimos anos Edemir tem arrendado de 200 a 250 há, a cada safra, para o plantio de soja, milho e outras culturas, de acordo com os preços esperados de mercado. O financiamento da safra é feito através da venda antecipada da produção, inclusive uma parte antes do plantio, para insumos e sementes. O trato da terra, da plantação à semeadura, a aplicação de defensivos durante a fase de crescimento e a colheita, são feitos pelo entrevistado com o auxilio de um ou dois contratados eventuais, usando os dois tratores que possui. Dadas as altas taxas de juros da venda antecipada, a produtividade apenas mediana das terras e a falta de capital para melhores investimentos, as rendas obtidas com as colheitas têm sido insuficientes para garantir a manutenção da família e pagar todos os débitos da safra. A opção é renegociar as dívidas, empurrando o que for possível para a próxima safra. O entrevistado informou ainda que as expectativas de culturas mais rentáveis para cada época, formas de combater as pragas, preços passados e futuros dos produtos agropecuários e outras tantas informações úteis ele e os demais produtores obtém em conversas informais uns com os outros, com corretores, vendedores de defensivos, professores e alunos da faculdade e técnicos agrícolas da Embrapa e através de jornais, revistas e matérias em programas especializados na televisão, além de discussões na cooperativa. O caso da família Freitag ilustra bem o processo pelo qual tem passado grande número de pequenos agricultores familiares. Os que optam por produzir comodities, como a soja, assumem uma integração muito maior ao mercado capitalista e uma subordinação muito maior. Fazemvenda antecipada da safra e, com isso, quando colhem já não são donos da produção. Pela falta de recursos não podem decidir o melhor momento de comprar insumos e vender a produção e mesmo o tipo de produção que será feita só limitadamente é escolha sua. Nesse sentido sua gestão é apenas relativamente independente. Nem por isso, entretanto, seu caráter de classe se altera, passando de camponeses a proletários. Não são assalariados. Após anos dedicados ao preparo da terra e à melhoria da produtividade o endividamento bancário e junto às tradings força essas famílias a abrir mão de suas posses para quitar dívidas e poder continuar produzindo, agora já em terras arrendadas de terceiros. Esse mecanismo garante a concentração e a centralização necessárias à expansão capitalista no campo e, nessa medida, permite aos grandes capitalistas apropriarem-se do trabalho dedicado pelas famílias camponesas, ao longo de anos, na melhoria da produtividade da terra, contudo isso, por si só, não as transforma em empregados do capital, isto é, proletários. 10 Esses agricultores, expulsos de suas terras, aspiram continuar a produzir e, ainda que pensem, eventualmente, em mudar de atividade, em geral não o fazem pois a produção agrícola é parte de sua cultura, de seu modo de ser. Nesse sentido, como ressaltou Marx (1988, p. 115), por suas condições econômicas e sociais que “opõem o seu modo de vida, os seus interesses e sua cultura aos das outras classes da sociedade, estes milhões constituem uma classe”: a classe camponesa. O caso da família Freitag é, ainda, bastante ilustrativo da indivisibilidade da renda obtida pela família camponesa, levantada por Chayanov apud Silva (1981). Após pagar pelos insumos adquiridos, empréstimos bancários e das tradings e pagar a renda da terra ao arrendador, o que sobra não é salário, visto que não há um empregador, nem é capital, visto que não será utilizado na contratação de trabalhadores para extração da mais-valia e reprodução do capital. O que sobra é apenas a renda da família e destina-se ao seu sustento. Não é uma renda que encontre expressão no sistema capitalista. Não é juro, renda da terra ou salário. Tal fato torna inequívoco que o trabalho que gerou essa renda também não pode ser confundido com o trabalho do proletário ou com a renda do capitalista. É algo único. É a renda camponesa. Observe-se que apesar de contratar um ou dois auxiliares em alguns momentos, e pagar-lhes diárias, a renda da produção não se confunde com a renda capitalista. As diárias pagas não são salário, no sentido capitalista, não servem para gerar mais-valia mas sim para potencializar o trabalho dos membros da família, que também participam da produção. Outro aspecto relevante é a vinculação do Sr. Edemir com a Coaser, seu interesse por uma especialização universitária, o uso de tratores na produção, e seu contato com outros produtores, corretores etc, demonstrando o interesse em obter acesso ao que há de mas moderno no progresso técnico voltado à produção e gestão rural e ter acesso ao capital social necessário para enfrentar os desafios da economia capitalista, confirmando as tendências apontadas por Chayanov (1989), Schneider (2003) e Galvão (2005). Não há, portanto, dúvidas quanto à natureza camponesa da família e de sua forma de produção, ainda que perfeitamente integrada à economia capitalista, produzindo comodities para grandes tradings internacionais, com equipamentos e técnicas relativamente modernas e com financiamento capitalista. Sua forma se trabalho, a origem de sua renda, seus interesses, sua cultura, tudo a distingue tanto dos capitalistas quanto do proletariado. Por outro lado, trata-se de um camponês moderno, que aprecia a inovação tecnológica, age coletivamente através de cooperativas, busca cultura através de centros universitários e pessoal especializado da área. Nesse sentido, também não se confunde com o camponês feudal, aproximando-se muito mais ao camponês definido por Chayanov. 11 Conclusões Após uma revisão conceitual sobre o termo camponês, resgatando autores clássicos como Marx, Lênin, Kautsky e Chayanov, realizou-se, neste trabalho, um estudo de caso com um produtor de soja do município de Cristalina (GO). Através desse estudo de caso identificaram-se os elementos que caracterizam esse produtor familiar como um camponês atingido pelo processo de diferencial social descrito por Lenin, sendo alienado de sua terra, mas mantendo outros meios de produção. Contudo, por seu modo de vida, sua cultura, seus interesses, seu modo de produzir e a natureza de sua renda são inegáveis suas características camponesas. Ao mesmo tempo, identificou-se o que difere esse camponês moderno da concepção clássica de camponês medieval, mostrando que esse novo camponês está inserido na economia capitalista, com grau muito menor de autonomia, porém com muito maior integração com seus pares, via cooperativa e associações e com profundo interesse pela modernização tecnológica da produção. Este trabalho aponta para a necessidade de um aprofundamento da revisão teórica sobre o conceito de camponês e o avanço na discussão de um conceito moderno, que incorpore também a dinâmica dessa classe tão modificada pelo modo de produção capitalista. Novos estudos poderão ser feitos, também, incorporando metodologia estatística para refutar e aprofundar os resultados obtidos neste estudo de caso. Referências ABRAMOVAY, Ricardo. O admirável mundo novo de Alexander Chayanov. 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