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Divaldo Lyra Junior e Rosana Costa História da Farmácia UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE CENTRO DE CIÊNCIAS BIOLÓGICAS E DA SAÚDE DEPARTAMENTO DE FISIOLOGIA LABORATÓRIO DE ENSINO E PESQUISA EM FARMÁCIA SOCIAL DISCIPLINA INTRODUÇÃO À FARMÁCIA – MATERIAL DE APOIO PEDAGÓGICO 2 Organização: Prof.Dr. Divaldo P. de Lyra Junior Colaboração: Acad. Farm Rosana dos Santos Costa Aracaju/ 2009 Divaldo Lyra Junior e Rosana Costa História da Farmácia BREVE HISTÓRIA DA FARMÁCIA NO BRASIL Rosana dos Santos Costa e Divaldo P. de Lyra Junior Divaldo Lyra Junior e Rosana Costa História da Farmácia 1. A FARMÁCIA NO BRASIL COLONIAL Os profissionais de saúde que atuaram no Brasil colonial foram físicos ou licenciados, boticários, cirurgiões aprovados e cirurgiões barbeiros que vieram à colônia junto com as expedições colonizadoras (FERREIRA, 1999). No entanto, esses profissionais eram pouco numerosos, a exemplo dos físicos que, no século XVIII, não ultrapassavam quatro em cidades, como Recife ou Rio de Janeiro. Essa proporção reduzida de profissionais com relação à demanda da população culminou na prática médica realizada por leigos. Estes obtinham seus conhecimentos de modo empírico, e agiam orientados por manuais vindos de Portugal ou por tradição oral do uso de remédios. Ainda no período colonial, o governo português tentou fiscalizar a atividade médica no Brasil, mas uma série de obstáculos impossibilitou a concretização da regulamentação até o século XIX. Nesse período, a fiscalização das atividades relacionadas aos profissionais de saúde era responsabilidade da Fisicatura-mor. Contudo, esse órgão não conseguiu manter uma delimitação absoluta entre os ofícios envolvidos, havendo muitos profissionais que exerciam suas atividades de forma clandestina. Dessa forma, era comum que o médico exercesse a prática da cirurgia e o cirurgião a da sangria ou da manipulação de medicamentos (JESUS, 2001). Também os boticários se atreviam a prescrever drogas e fazer pequenas intervenções cirúrgicas (MIRANDA, 2004). Desta forma, todos, indistintamente, medicavam de qualquer maneira. Segundo Miranda (2004), essa dificuldade da aplicação da legislação sanitária do Reino favoreceu o aparecimento de uma medicina empírica, supersticiosa e extravagante. È importante frisar que antes da instituição de um estabelecimento farmacêutico propriamente dito, os primeiros colonizadores fizeram uso da caixa-de-botica, uma caixa de madeira que continha vários tipos de remédios guardados em vidros. Geralmente eram importadas da metrópole e enviadas para regiões mais distantes por cidades, como Bahia, Rio de Janeiro e Pernambuco, de acordo com as necessidades das tropas e a ocorrência de epidemias (MIRANDA, 2004; SANTOS FILHO, 1991). Divaldo Lyra Junior e Rosana Costa História da Farmácia Nesse cenário em que os profissionais de saúde eram escassos na América Portuguesa, os jesuítas desempenharam um importante papel na assistência médico- farmacêutica e mesmo hospitalar. Os primeiros jesuítas inacianos vieram ao Brasil, liderados por Manuel da Nóbrega, em 1549, na embarcação de Tomé de Souza (primeiro Governador-Geral do Brasil). Com o intuito de estabelecer uma atividade missionária e educacional nas terras coloniais, houve a organização dos aldeamentos para a conversão dos indígenas e a fundação de Colégios Jesuíticos (CALAINHO, 2005). Muitas dificuldades foram vivenciadas pelos missionários inacianos em seu propósito, referentes tanto ao terreno da natureza quanto aos costumes e valores dos indígenas, distintos de sua realidade européia (SANTOS, 2003). Os padres jesuítas logo compreenderam que para que os ensinamentos de natureza espiritual fossem assimilados de modo efetivo, seria preciso dedicar-se ao cuidado com o corpo. Por essa razão, além de zelar pelas enfermidades espirituais, os jesuítas tiveram a preocupação de tratar das enfermidades do corpo. Existiam dois ofícios básicos dentre as comunidades jesuíticas: o ofício dos que cuidava e tratava dos doentes, e o ofício dos que manipulava remédios. As boticas jesuíticas eram dependências especiais dos Colégios, anexas à enfermaria, constituídas em geral por uma sala e uma oficina. Apesar de representar um número reduzido, mesmo até o século XVIII, as boticas jesuítas eram célebres, o que justifica a admiração dos viajantes europeus perante a grandeza das instalações e dos serviços oferecidos pelas boticas dos Colégios. (CALAINHO, 2005; SANTOS, 2003). Em 1640, a autorização da venda de medicamentos resultou na difusão das boticas na colônia, que eram dirigidas por boticários aprovados em Coimbra pelo físico- mor ou por seu delegado comissário, em Salvador. O monopólio dos boticários sobre a comercialização de drogas e remédios foi concedido pelas leis portuguesas. (Santos, 2003). Geralmente pertencentes a famílias humildes, os boticários se submetiam a um exame junto aos comissários do Físico-mor do Reino para obter a Carta de Examinação, que autorizava o exercício do ofício (EDLER, FONSECA, 2005). Devido à inexistência de escolas, os boticários recebiam os ensinamentos na prática de na condição de aprendizes com um mestre, seguindo manuais de orientação como o Exame de boticários ou a Coletânea farmacêutica (JESUS, 2001; Filgueiras, 1998; Santos Filho, 1991). Àqueles que tinham condições financeiras de estudar no Divaldo Lyra Junior e Rosana Costa História da Farmácia exterior, havia o curso de ensino farmacêutico na Universidade de Coimbra, no entanto, somente a partir de 1772, com a Reforma Pombalina, o curso foi ministrado de modo sistemático por meio da implantação da matéria Prática Farmacêutica e da Matéria Médica (PITA, 1999). As poucas boticas existentes na Colônia localizavam-se, geralmente, nas ruas principais e ocupavam uma casa onde residia o boticário, juntamente com sua família, no andar superior. Até o século XVII, quando adquiriram semelhança com as congêneres européias, as boticas eram de aparência modesta e acanhada, não diferindo das lojas de barbeiro da época. Representavam um local de socialização, com espaço para conversas, jogatinas e discussões políticas (MIRANDA, 2004; SANTOS FILHO, 1991). 2. A VINDA DA FAMÍLIA REAL E O INÍCIO DO ENSINO FARMACÊUTICO NO BRASIL Com a transferência da Corte Portuguesa em 1808, são criados os espaços institucionais para formação de profissionais de várias áreas dentre os quais os ligados à saúde, e o ensino sistematizado das ciências, entre elas a Química. No mesmo ano de sua chegada, D. João VI fundou as Escolas que, mais tarde, representaram as futuras Faculdades de Medicina, fundadas em 1832, a Escola de Cirurgia da Bahia (1808) e a Escola Anatômica, Cirúrgica e Médica do Rio de Janeiro (1808) (BARRETO, 2005). Além dos cursos de medicina e de cirurgia, o de parteira e o de farmácia. Em 1839, funda-se em Ouro Preto, Minas Gerais, a primeira Escola de Farmácia da América do Sul (MOTT, Alves, 2006). Em 1837, foram diplomados, pelo curso de Farmácia da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, os primeiros seis Farmacêuticos brasileiros. Dois desses diplomados, Manoel José Cabrale Calixto José de Arieira, foram os fundadores da Escola de Farmácia de Ouro Preto, em 1839, que foi o primeiro estabelecimento autônomo de Ensino Farmacêutico no Brasil e na América Latina (ZUBIOLI, 1992). Por haver uma grande restrição à expansão dos cursos superiores e controle dos médicos do exercício dos ramos afins (farmácia, arte dentária, partos), a Escola de Farmácia de Ouro Preto Divaldo Lyra Junior e Rosana Costa História da Farmácia (1839) foi uma exceção por ter rompido a barreira contra a abertura de novos cursos superiores e por ter sido criada independentemente do ensino médico. Ainda no século XIX, algumas farmácias brasileiras, de tradição e com atividade próspera, transformaram-se em laboratórios fabricantes de preparados que tiveram muita popularidade no país, dando origem às primeiras indústrias farmacêuticas nacionais (THOMAZ, 2001). A indústria farmacêutica nacional, cuja produção se baseava no emprego de matérias-primas vegetais e minerais, predominou no cenário brasileiro até a década de 1930. Contudo, a abertura econômica do Brasil possibilitou a entrada de capital estrangeiro, implicando no surgimento de grandes laboratórios internacionais que começaram a produzir os medicamentos industrialmente (Santos Filho, 1999). Ademais, no final deste século, foram fundadas mais duas escolas de Ensino Autônomo da Farmácia: a Escola de Porto Alegre, em janeiro de 1896 e a Escola de São Paulo, em 1899 (MOTT, ALVES, 2006). 3. A FARMÁCIA NO BRASIL DO SÉCULO XX Até o século XX, o farmacêutico foi um personagem de destaque na sociedade, sendo o principal responsável pelo desenvolvimento e manufatura artesanal dos medicamentos (LUZ, 2000). A sua influência não se restringiu unicamente ao fornecimento dos medicamentos, mas também a íntima ligação com a comunidade em que estava inserido e a sua representatividade enquanto profissional de saúde. Além disso, a farmácia era considerada como um local de saúde e ponto de encontro da cidade (JESUS, 2001). No decorrer do século XX, o uso de medicamentos industrializados, e conseqüente “medicalização da saúde”, promoveu modificações drásticas no perfil da Farmácia. Essas mudanças tiveram repercussão no Ensino Farmacêutico, que, frente ao desafio de formar profissionais condizentes com a realidade da sociedade do período, sofreu reestruturações em seu perfil curricular. Em 1963, com base no pensamento de que a especialização do profissional era a solução para o problema, o currículo do curso de Farmácia foi dividido em duas etapas: a primeira levava à formação do farmacêutico, destinado a dirigir a farmácia comercial; a segunda, opcional, conduzia à formação do farmacêutico-bioquímico, após a conclusão de uma das quatro especialidades que o Divaldo Lyra Junior e Rosana Costa História da Farmácia curso oferecia (Indústria Farmacêutica e de Alimentos; Controle de Medicamentos e Análise de Fármacos; Química Terapêutica e Laboratório de Saúde Pública) (Zubioli, 1992). Esse currículo vigorou somente até a Reforma Universitária de 1969, que estabeleceu a fragmentação da profissão em habilitações (Farmacêutico, Farmacêutico Bioquímico e Farmacêutico Industrial) (Santos, 1999). O caráter comercial que a farmácia vinha demonstrando foi reforçado com a promulgação da Lei nº 5991/73, que conceituou a dispensação como o "ato de fornecimento ao consumidor de drogas, medicamentos, insumos farmacêuticos e correlatos, a título remunerado ou não". De acordo com Angonesi (2008), esta definição além de não esclarecer as funções e responsabilidades do farmacêutico na dispensação, conferiu a esta um caráter de simples entrega de produto. Essa condição de repasse de medicamentos industrializados dificultou, ou mesmo aboliu a distinção entre dispensação e comércio. A transformação da farmácia em um empreendimento comercial rentável culminou na sua disseminação em todo o país. Nesse contexto, a venda de medicamentos assemelhou-se a de qualquer outra mercadoria, como eletrodomésticos, roupas ou materiais de construção, sem dar importância à natureza e às exigências legais do varejo farmacêutico (CUSTÓDIO, VARGAS, 2005). Paralelo a isso, os proprietários das farmácias desestimularam a direção técnica do farmacêutico, afastando-o do contato direto com a população, ou até mesmo, descartando a sua presença na farmácia. A situação de desvalorização da atuação farmacêutica dentro das farmácias comerciais começou a ser discutidas na década de 80. Nesse sentido, vale ressaltar o movimento de contestação do chamado “Projeto Biomédico” como fato que promoveu a união da classe farmacêutica em prol de interesses em comum do conjunto dos profissionais (VI SEMINÁRIO, 1994). Certamente a luta contra o “Projeto Biomédico” trouxe um acúmulo de experiências e uma tomada de consciência indiscutivelmente importante para a retomada da profissão, através da redefinição da identidade profissional e social do Farmacêutico, bem como da elaboração do conceito de Assistência Farmacêutica (CEME, 1998). Divaldo Lyra Junior e Rosana Costa História da Farmácia Ainda hoje, no Brasil, a instalação de uma farmácia é livre e pode ser aberta em qualquer localidade, independente do número de farmácias existentes e da população a ser atendida. Os critérios que regem a abertura de uma farmácia são estritamente comerciais, prescindindo, na maioria das vezes, do farmacêutico, que só é convocado para atender as exigências da lei. Assim, não é bastante se ter determinado no Brasil que o farmacêutico deve estar presente na farmácia durante todo o tempo em que esta estiver aberta ao público. Falta aos farmacêuticos, a liberdade necessária para a prática da profissão, respeitando as disposições que a lei impõe. Enfim, a sociedade brasileira anseia pelo resgate do farmacêutico como o profissional capaz de auxiliar no que se refere ao uso do medicamento em seu tratamento, de modo a garantir sua efetividade e segurança (LUZ, 2000). Referências ANGONESI, D. 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