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213 Aulas Semana 8 [12 e 13 de novembro] CAPÍTULO 8 Direito Administrativo como ordem de regulação da ação administrativa 30 – Regulação jurídica da ação administrativa Depois do contacto com o tema da relação entre Administração Pública e direito privado, é altura de voltarmos ao Direito Administrativo. Enquanto direito da Administração Pública, o Direito Administrativo constitui um critério de regulação da ação administrativa; constitui, em rigor, um critério de regulação jurídica da Administração. Mas a ação da Administração não tem de observar ou de respeitar apenas critérios jurídicos: essa ação não tem apenas de ser jurídica, conforme ao direito, mas também correta e oportuna, desenvolvida em conformidade com regras não jurídicas. O direito – sistema de normas jurídicas – não se apresenta pois como o único fator de conformação e de regulação da ação administrativa. Embora haja por vezes a tentação de importar para o território jurídico os critérios (económicos e técnicos) que conduzem a uma “boa administração” ou ao “bom andamento da Administração”, a verdade é que estes objetivos não se alcançam muitas vezes por meio da racionalidade jurídica, mas antes pela observância de regras técnicas (leges artis) e científicas, de boas práticas ou de códigos de conduta sem valor jurídico. Não se exclui sequer que a atuação administrativa se oriente apenas pelos critérios de razoabilidade que pautam a conduta que se espera de um “bom administrador” (bonus administrator: adaptação, a este campo, do critério do “bom pai de família”). Neste sentido, a “boa administração” surge (também) como o resultado de uma atuação certa, correta, em face do disposto em regras não jurídicas, além de razoável, oportuna e conveniente, em face das circunstâncias concretas. Como se disse, existe uma tendência para importar estes padrões não jurídicos da ação para o domínio do direito: este processo pode ver-se, por exemplo, no direito italiano, onde a Constituição estabelece o princípio de que os serviços públicos são organizados de modo a assegurar o bom andamento da administração. Situação com outro recorte ocorre já, no âmbito do direito da União Europeia, com o artigo 41.º da Carta Europeia dos Direitos Fundamentais, sobre o “direito a uma boa 214 administração”. Com efeito, neste caso, o direito a uma boa administração é uma fórmula europeia que condensa um catálogo de direitos subjetivos em geral reconhecidos nas ordens jurídicas nacionais aos cidadãos administrados. Entre nós, o CPA alude, desde a reforma de 2015, a um princípio da boa administração, associado diretamente às ideias de eficiência, de economicidade e de celeridade e que projeções no modo de organização da Administração Pública, quanto à aproximação dos serviços públicos às populações e à desburocratização: cf. artigo 5.º. Importa ainda ter presente que a observância de regras técnicas e científicas pode constituir uma exigência de normas jurídicas administrativas. A exigência do cumprimento de regras técnicas encontra-se, por exemplo, pressuposta no artigo 9.º do Regime da Responsabilidade Civil do Estado e demais Entidades Públicas; aí se consideram ilícitas as ações ou omissões da Administração que violem disposições ou princípios constitucionais, legais ou regulamentares ou infrinjam regras de ordem técnica ou deveres objetivos de cuidado e de que resulte a ofensa de direitos ou interesses legalmente protegidos. Pelo que se pode concluir, embora não exista sempre uma separação nítida entre regulação jurídica e regulação não jurídica, não parece haver dúvidas de que o direito não pode ter a pretensão de monopolizar e esgotar a regulação da ação administrativa. Em geral, quando encarada a ação administrativa no seu todo, nas suas decisões e nos seus resultados, o direito pode ter de admitir que se “administre melhor e pior”, que, de um ponto de vista de administração ou de gestão, haja “decisões boas e decisões menos boas”: assim, a definição dos melhores termos de circulação do trânsito numa rotunda ou a opção sobre se os edifícios públicos devem ser aquecidos com ar condicionado ou com aparelhos de gás não são assuntos que caiba ao direito regular. Assim se percebe a justificação para esta conclusão talvez um pouco desconcertante: a “má administração” não corresponde necessariamente a uma situação ilegal ou antijurídica. Impõe-se, pois, uma distinção entre mérito e legalidade. Sem prejuízo da relevância do mérito e da submissão da ação da Administração a critérios não jurídicos, a nós interessa o estudo da submissão da Administração ao direito. Como sabemos, a Administração Pública tem o “seu” direito, e a primeira regra fundamental neste aspeto estabelece que toda a atuação administrativa tem de se basear numa lei. Daqui decorre a obediência à lei (princípio da legalidade). Mas, como se sabe, a lei (a regra legal) não esgota o direito, nem, como veremos, se revela suficiente como 215 instrumento de regulação jurídica da Administração. Por isso, a obediência à lei tem de se complementar com a obediência ao direito – veja-se o artigo 3.º, n.º 1, do CPA, onde se estabelece precisamente que a Administração Pública deve atuar “em obediência à lei e ao direito”. Num outro momento, haverá oportunidade de estudar de forma desenvolvida os contornos variados que a atividade da Administração Pública pode assumir. Mas, desde já, estamos em condições de perceber que a Administração desenvolve atividades de recorte muito variado: presta cuidados de saúde e serviços de ensino, constrói estradas, gere sistemas informáticos, atribui subsídios, realiza compras, emite certificados e diplomas, toma decisões de autorização ou de proibição, faz exames e inspeções, etc.; ora, a incidência do Direito Administrativo – das “leis administrativas” – não apresenta, em todos os casos, o mesmo grau de intensidade. Na verdade, o Direito Administrativo tem pouco a dizer sobre o modo como se realiza uma operação médica, como se processa uma obra de engenharia ou como se leciona uma aula. Trata-se, nesses casos, de ações de um recorte material, operativo, técnico, cuja regulação, quando existe, cabe a outras áreas do conhecimento. Dentro do catálogo enorme e variado de ações que a Administração desenvolve algumas há que apresentam uma natureza jurídica e que, por isso mesmo, se afeiçoam de um modo particular a uma regulação jurídica. Eis o que ocorre com os casos em que a Administração Pública: toma “decisões”, que vão provocar transformações jurídicas (v.g., ampliar ou restringir a esfera jurídica de alguém), celebra “contratos” ou emite “normas jurídicas”, que fixam critérios gerais de conduta para terceiros. Agora, nestas “ações que afetam a ordem jurídica”, a incidência do Direito Administrativo vai fazer-se sentir de uma forma especialmente acentuada. 31 – Subordinação da Administração Pública ao direito e à lei Nos números precedentes, desenvolveu-se, em geral, o tema da subordinação da Administração Pública ao Direito Administrativo. Agora, vamos passar a um plano mais específico ou concreto, para analisar o modo de realização dessa subordinação em cada ação administrativa. Aludimos, neste contexto, a uma subordinação da Administração ao direito e à lei, no quadro do que podemos designar por princípio da juridicidade e da legalidade da Administração. 216 O que está agora em causa é a ideia de que toda a ação administrativa tem de cumprir uma exigência de juridicidade e de legalidade que pode desdobrar-se em quatro itens: i) Legalidade material – trata-se de referenciar uma norma jurídica que indique que a AdministraçãoPública “pode”, está autorizada a empreender aquela ação; ii) Legalidade orgânica – a mesma norma jurídica, ou outra, há de ainda indicar a instância competente para desenvolver a referida ação (“quem faz”); iii) Legalidade formal-procedimental – incluem-se aqui as normas jurídicas que regulam aspetos relacionados com o procedimento a seguir e com a forma a adotar no desenvolvimento da ação administrativa; iv) Legalidade substancial ou juridicidade – ocupam aqui uma posição de relevo normas jurídicas com a natureza de princípios gerais com aptidão para condicionar ou balizar a formulação do conteúdo da ação administrativa. Os quatro itens acabados de expor articulam-se com as funções do Direito Administrativo [cf. ponto 5.2]: os dois primeiros materializam a função de legitimação e os dois últimos materializam a função de condicionamento da ação administrativa. A subordinação da Administração Pública (em particular, as pessoas coletivas de direito público) ao direito exprime-se, em primeiro lugar, no princípio da legalidade ou do fundamento normativo da ação administrativo: nos termos deste princípio, a atuação da Administração tem de se basear numa lei, num ato legislativo ou, pelo menos, numa norma jurídica editada com fundamento legal. Essa lei ou norma jurídica, que podemos designar por “norma de competência” ou “de ação”, é o ato normativo que justifica cada comportamento da Administração – assim, por exemplo, o artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 166/2013, de 27 de dezembro, atribui ao inspetor-geral da ASAE competência para aplicar determinadas sanções em casos identificados. Todavia, no desenvolvimento da sua ação, a Administração não fica apenas subordinada à lei de competência, que a habilita a agir num caso específico. Surge, além disso, um outro leque de vinculações e de critérios de atuação jurídica, num plano formal e procedimental: assim, por exemplo, a lei estatui que a decisão de aplicação de sanções terá forma escrita e deve ser fundamentada, será precedida de pareceres e da audiência do interessado, etc. 217 Por outro lado, em muitos casos, emergem vinculações situadas num plano substancial, que têm uma influência na determinação do sentido e do conteúdo da decisão. A subordinação ao direito exprime-se, neste último caso, na subordinação da Administração a princípios constitucionais ou de direito da União Europeia, bem como a princípios gerais de Direito Administrativo e a outras normas jurídicas pensadas para a Administração e com aptidão para orientar a ação administrativa específica. Estas outras vinculações – que acrescem à vinculação inicial ou de base que resulta da norma da ação ou de competência –, sobretudo as que conhecem projeção num plano substancial, têm uma incidência muito particular quando a norma de ação ou de competência não define, em termos taxativos e definitivos, os pressupostos (na hipótese normativa) e o conteúdo específico da ação administrativa concreta (na estatuição normativa. Emerge, neste cenário, o problema da discricionariedade administrativa. 32 – Discricionariedade administrativa O estudo desta matéria deve ser feito por: José Carlos Vieira de Andrade, Lições de Direito Administrativo, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2015, pp. 53-66.
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