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NO LABITINTO DA MEMÓRIA: A ORALIDADE NAS NARRATIVAS DE QUINTINO DE LIRA Juliana Patrízia Saldanha de Sousa 1 -UFPA “A Justiça não resolve essa questão. Quem vai resolver essa questão é o gatilho e mais nada 2”. Quintino 1951-1985 RESUMO A razão deste artigo é de discutir a relação entre memória e narrativa oral, tomando como objeto de pesquisa o episódio mais marcante da história de Santa Luzia do Pará, o conflito armado entre colonos e posseiros nos anos 80. Revisitando a memória daqueles que foram testemunhas desse momento histórico, busco mostrar através da oralidade as narrativas sobre as ações de Quintino. Tais narrativas trazem consigo uma gama de experiências individuais e coletivas relevantes para a história social, política e cultural de Santa Luzia do Pará. Palavra-chave: Quintino, Conflito, Memória, Oralidade, Narrativa ABSTRACT The purpose of this article is to discuss the relationship between memory and oral narrative, taking as a research object the most striking episode in the history of Santa Luzia do Pará, the armed conflict between settlers and squatters in the 80. Revisiting the memory of those who were witnesses this historic moment, I try to show through oral narratives about the actions of Quintino. Such narratives bring with them a range of individual and collective experiences relevant to the social, political and cultural Santa Luzia do Pará. Keyword: Quintino, Conflict, Memory, Orality, Narrative, 1 Graduada em Letras. Especializada em Linguagens e Saberes da Amazônia e Mestranda no PPGLS (Programa de Pós-Graduação em Linguagens e Saberes da Amazônia. UFPA-Bragança. 2 Em 15/11/1984, Quintino e sua tropa entram em Viseu, tentando encontrar a Juíza da Comarca para questionar o mandado de prisão expedido contra ele. Não obtendo sucesso, o Gatilheiro discursa em praça pública e é ovacionado pelo povo. Em seguida, ele dá um depoimento gravado ao Heráclito Ferreira, Diretor do Departamento de Arquivo e Documentação de Viseu, que posteriormente foi publicado em O Liberal (1984, P. 18) INTRODUÇÃO - Um mergulho na saga do Gatilheiro, le Redresseur de torts. Santa Luzia do Pará 3 , está localizada no nordeste paraense, foi uma das cidades-palco do segundo conflito agrário de maior notoriedade no Estado do Pará, na década de 80, que envolveu diretamente duas partes distintas: Grileiros X Posseiros. Fotografia 1- Em entrevista ao jornal O Liberal. Fonte: O Liberal Na liderança dos colonos, destacou-se Quintino, 38 anos. Profissão: “matador de cabra safado”. Ele buscava liberar as terras, griladas por fazendeiros e a empresa mineradora Cidapar. Ganhou fama, de repercussão internacional. Em meados dos anos 80 a situação se agravou, chegando a ser cogitada pelo então presidente João Figueiredo com uma possível intervenção federal. Sem solução para a questão agrária, ele articula com outros trabalhadores e montam um grupo armado para impedir que os grileiros tomassem posse de suas propriedades e buscam outro meio de fazer “justiça”, utilizando para isso, o gatilho. 3 Santa Luzia do Pará está localizada na Br 316 da Pa-Ma, nos anos 80, ainda era Vila e pertencia ao município de Ourém. Nos dois lados desse combate, apresentaram-se personagens coadjuvantes que ajudaram a compor a história desse emblemático conflito que faz parte da memória da população luziense. Entre eles destacam-se o ex-governador do Estado do Pará, Jader Barbalho, autoridades de todas as esferas políticas, empresários da região, fazendeiros, comerciantes locais, igreja católica sob o domínio da diocese de Bragança, a população em geral e o personagem principal nascido Quintino Silva de Lira, mais conhecido como, Gatilheiro. Pe. Catel, na época, pároco da Vila de Santa Luzia, relembra a entrada de Quintino na luta pelas terras contra o fazendeiro Paraná. O início mesmo da história4, quando começou a fama do Quintino. Na época as terras não tinham títulos, dentro dessa área tinha mais de trinta ou até 40 famílias. O fazendeiro Paraná queria impor a saída dessas famílias com ameaças, assassinato de colono, expulsando todos de lá. Então começou a revolta dos colonos e o Quintino fazia parte desse grupo. Eles foram até a comarca de Ourém, brigar na justiça pelo direito às terras, depois de várias audiências sem acordo entre as partes e, quase um ano depois, começaram as ameaças entre o Paraná e o Quintino. Paraná em sua prepotência não aceitava acordo com os colonos, nisso o Quintino perdeu a paciência e mandou uma carta fazendo uma promessa: Amanhã eu te mato! (Pe. CATEL. Belém-Pa, 10 jun 2013) Um dos intermediadores das negociações entre os colonos e o governo, Francisco Vasques, nos conta a conversa em uma reunião entre o grupo de colonos. 4 As transcrições das narrativas orais utilizadas nesse artigo, segue a proposta do modelo apresentado pelo Prof. Dr. José Guilherme dos Santos Fernandes (UFPA), coordenador do projeto “Rotas do Mito”. Para Fernandes, “a transcrição da narrativa do entrevistado altera-se a fonte COMIC SANS MS, pois outro destaque deve ser dado ao gênero oral, ou seja, procura-se ressaltar a procedência diversa dos discursos presente – cultura escrita e cultura oral – para chamar atenção que estamos face a um saber da ciência e outro da experiência” (p.162). Outros Tempos, www.outrostempos.uema.br, ISSN 1808-8031, v. 02, p.156-166 A gente não queria entrar pra esse lado armado, foi a necessidade que nos levou a isso. O Quintino foi o primeiro que entendeu que pela justiça o problema não seria resolvido”. Barbudo relembra as palavras de Quintino: “Olha, daqui pra frente não tem mais conversa! Eles não respeitam a gente! A farda que eles vestem não é deles. Então, não adianta que nós não vamos aqui conseguir muita coisa. O que nós podemos fazer aqui, já que bala entra em nós, entra neles também. (VASQUES, Francisco. 07 jun. 2013) Francisco continua dizendo: “e até por uma decisão maior do próprio Quintino que dizia que não ia mais esquentar os bancos da justiça. Esse foi o termo que ele usou na época!” Anos depois, Quintino já conhecido nacionalmente e descrente de que o governo não resolveria a crise, ele concede uma entrevista ao repórter Paulo Roberto Ferreira falando de sua decepção com a justiça. Bom, é o seguinte: Eu digo e não peço segredo a vocês, vocês podem dizer até lá na federal ou na Segup que não venham me “preseguir”; que eles ficam vivos lá. Porque eu já ocupei as autoridades e as autoridades não deram jeito e então eu estou para dar um jeito nisso(...) Por que já chega de ficar de costas ardendo naqueles sofás em Belém, na Central da Polícia, na Segup, no Tribunal de justiça procurando os meus direitos e hoje eu caço meus direitos é no gatilho e o cabra que entra pra me perseguir eu mato (...) e assim chega de tanta promessa, de tanto sofrer. Eu já entendi que só o gatilho resolve essa questão. (LIBERAL Apud Loureiro, 1997, p. 287) Após recorrerem a todos os órgãos governamentais como Delegacia, Iterpa, Fórum, entre outros, o grupo percebeu que a Justiça não solucionava o problema e tentaram encontrar no gatilho uma forma de resolver a questão, haja vista que haviam procurado todos os meios legais para a solução do empasse. Quintino dá seu recado em uma entrevista ao jornal O Liberal: (...) “fiquem avisados porque eu vivo a lutar pelos colonos contra os grileiros,seja de qualquer região. Que o meu destino é este. Isto é um caso muito sério porque eu nunca enfrentei uma luta para perder a parada”. (LIBERAL Apud Loureiro, 1997, p. 287) No livro Estado, bandidos e herói: Utopia e luta na Amazônia (2001), Violeta Loureiro 5 usa o termo francês “redresseur de torts” - reparador de erros - ao definir o perfil do Gatilheiro que torna-se, segundo a autora, “de ator individual para ator político, de indivíduo comum a reparador de erros” (2001, p. 291). Na tentativa de reparar os erros cometidos por fazendeiros e, consequentemente, pelas autoridades, Quintino “interpreta” dois personagens na sociedade. O de justiceiro, aclamado pelo povo humilde, que via na figura de Quintino a esperança de dias melhores. No outro, o de fora da lei, papel esse dado pelas autoridades constituídas, polícia militar e pelos meios de comunicação como os jornais impressos. A partir destes relatos, pretende-se investigar as narrativas orais com relação às ações de Quintino, enquanto agia como Gatilheiro, com o propósito de embrenhar-me no labirinto da memória, individual e coletiva, através da oralidade dos agentes sociais testemunhas deste evento singular. Busca-se também, através da memória, registar e discutir as narrativas orais, que apesar de decorrido 30 anos da morte do Gatilheiro, os fatos acontecidos durante o conflito, ainda permeiam o imaginário popular. Levando essas informações em consideração, acredita-se que pesquisar as narrativas, sobre o Quintino, constitui-se algo de grande relevância e significação, pois é possível fazer leituras utilizando a memória coletiva para entender o conflito a partir dos fatos histórico, e apropriando-se da memória individual para compreender a relevância dessas narrativas e como foram capazes de influenciar no cotidiano da população, na época. Nesse sentido, tem-se a possibilidade de resgatar e catalogar tais narrativas, numa perspectiva de construção de um acervo, para a valorização da cultura local, como parte da história cultural e social do município de Santa Luzia do Pará. Sobre essa questão, Von Simson nos mostra a relevância de se conservar as memórias. Essas instituições realizam, portanto, hoje, de forma profissional, uma tarefa social anteriormente exercida pelos idosos. São elas os museus, arquivos, bibliotecas e centros de memórias, que de alguma forma e segundo critérios previamente estabelecidos realizam o trabalho de coletar, tratar, recuperar, organizar e colocar à disposição 5 Originalmente apresentado como tese de doutorado pela autora no Institut des Houtes Études de l’ Amérique Latine- Sorbonne Nouvelle, em 1994 – Paris, sob o nome Redresseurs de l’histoire en Amazonie brésiliènne (reparadores de Erros na história da Amazônia Brasileira). Posteriormente publica o livro, em 2001, com o título Estado, Bandidos e Heróis: Utopia e luta na Amazônia. da sociedade a memória de uma região específica ou de um grupo social retida com suportes materiais diversos. (VON SIMSON, 2004, p. 13) É importante frisar que na possibilidade de catalogar as narrativas orais, as gerações futuras terão condições de analisá-las e entendê-las, dentro do contexto social e cultural em que ela está inserida, configurando-se de fundamental relevância para a preservação dos acontecimentos históricos de uma sociedade. Assim, pesquisar as ações do Gatilheiro, através da memória, na tentativa de compreender as consequências causadas pelas ações do Gatilheiro na sociedade Luziense. Sabemos que as narrativas estão presentes na memória do ser humano desde os tempos mais remotos. As instituições e os pesquisadores da área apontam que através da memória coletiva buscam-se informações vividas por um grupo de indivíduos em um determinado tempo e espaço. Partindo desse pressuposto, Jacques Le Goff, em sua obra História e Memória, define a memória como “propriedade de conservar certas informações, remete-nos em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele representa como passadas” (2013, p. 387) Nessa linha de pensamento, Le Goff expõe novas concepções recentes da memória, mostrando os principais aspectos de estruturação nas atividades de “auto-organização”. Tanto o aspecto psicológicos como nos biológicos a memória é o “resultado de sistemas dinâmicas de organização” e que só existem “na medida em que a organização os mantém ou os reconstitui”. (Idem, p. 388) O autor ainda certifica que “a memória se configura em elemento essencial dentro do que chamamos de identidade, individuais ou coletivas; cuja busca é uma das atividades fundamentais do indivíduo das sociedades de hoje”. (Idem, p. 435) Para o entendimento dessas indagações faz-se necessário entender o que diz Pierre Janet sobre o ato mnemônico, ou seja, o que facilita a memorização, fundamental é o comportamento narrativo que se caracteriza pela sua função social. Com isso, o ato de narrar transforma a “linguagem, ela própria produto da sociedade”. (FLORÈS, 1972 apud LE GOFF, 2013, p. 389). Nesse sentido, a narrativa oral assume o papel de transmissora de informações provenientes do passado e é o instrumento indicado para as análises fundamentais, dos retalhos, que compõe a história de uma comunidade. Mergulhando na memória do Sr. Costa, ele nos conta o momento em que Quintino faz tocaia e mata o fazendeiro Paraná, fato este, que efetivamente deu início a saga de Gatilheiro. Quintino chegou lá em casa e disse: - “Vai ficar caro esse roçado!! Vai ficar muito é caro! O Paraná não pagou o que prometeu os duzentos contos, não pagou ninguém!”. (...) Passou uns dias, o Quintino esperou no ladeirão, perto da Vila do Broca. Daí ele levou uma garrafa de vinho, pacote de bolacha, refrigerante. Aí ele fez a tocaia pra pegar o Paraná, esperou, esperou, aí quando foi umas nove horas ele ia passando e o Quintino torou ele na bala. Daí ele entrou na mata e encontrou o meu filho, o Chico, que estava brocando um roçado e perguntou pro Quintino: - “O que é que tu tá fazendo por aí?”. Quintino respondeu: - Tu não viu uns cachorros correndo atrás de um veado, viu? O Chico falou: - “Num vi não”. Quintino disse assim: - “Não rapaz! Eu tô é brincando! Fui acertar o homem lá na ladeira! Quer ver ele lá? Vai lá!“. Meu filho disse que não ia de jeito nenhum!. Daí correu a notícia que o Paraná tinha morrido. Uma das balas pegou na cachorrinha que a mulher do Paraná levava! Depois disso ele sumiu e virou o que todo mundo conhece! (COSTA, João. Santa Luzia do Pará, 10 set. 2014) A narrativa citada acima, sob a ótica do entrevistado, apresenta uma das versões da morte do Paraná. Durante a entrevista, os detalhes da narrativa apresentaram-se cronologicamente de forma desconexa. Decorrido algum tempo, o Sr. Costa apropriou-se da rememoração, e de forma coerente, deu início a narrativa seguindo os fatos ocorridos naquela época. Maurice Halbwachs falando sobre Memória Individual e Memória Coletiva pontua- nos dizendo que “a memória é fundamental para recorremos a testemunhos para reforçar ou enfraquecer e também para completar o que sabemos de um evento sobre o qual já temos algumas informações” (2006, p. 29). Para o pesquisador, no “primeiro plano da memória de um grupo se destacam as lembranças dos eventos e das experiências que dizem respeito à maioria de seus membros e que resultam de sua própria vida” (Idem, p. 51). Nesse sentido, memórias individuais e coletivas se inter-relacionamna medida em que as memórias de um individuam é resultado de experiências vivenciadas por um grupo e ainda que, onde existe uma história, existem várias memórias. Em A memória, a história, o esquecimento, Paul Ricouer afirma que devemos a Maurice Halbwachs uma “audaciosa decisão de pensamento que consiste em atribuir a memória diretamente a uma entidade coletiva que ele chama de grupo ou sociedade”. (RICOUEUR, 2010, p. 130). Seria então, a memória, uma das ferramentas da humanidade, indispensável para a construção da história das sociedades? Conjectura-se que o ser humano não adquiriu uma memória referta, ou seja, o exercício da rememoração é fundamental para a composição da narrativa. Para tanto, Henri Atlan aproximando “linguagens e memória”, apresenta os sistemas auto organizadores que fundamentam o armazenamento da nossa memória. Sobre isso ele afirma que: A utilização de uma linguagem falada, depois escrita, é de fato uma extensão fundamental das possibilidades de armazenamento da nossa memória que, graças a isso, pode sair dos limites físicos do nosso corpo para se interpor quer nos outros, quer nas bibliotecas. Isso significa que, antes de ser falada ou escrita, existe uma certa linguagem sob forma de armazenamento de informações na nossa memória. (ATLAN, 1972, p. 461 apud LE GOFF, 2013, p.389) O autor considera que o ato de guardar informações na memória, é de certa forma uma linguagem, pois mesmo sem a utilização da narrativa oral ou escrita, ainda assim, é uma linguagem em forma de pensamento. Portanto, é de suma importância a preservação da memória através da oralidade, pois na memória tem-se uma fonte de informações sobre acontecimentos históricos, culturais e sociais ocorridos em um determinado lugar e essas informações são relevantes no sentido de se conhecer o passado. Convém ressaltar os vários momentos em que os entrevistados davam início as suas narrativas dizendo que “era difícil lembrar, pois foi uma época difícil, perigosa”. Porém, logo em seguida, as lembranças começavam a irromper na memória e através da oralidade a narrativa começava a ser tecida. Sr. Nelson relembra esse encontro com nostalgia e apreensão, sentimentos que ainda estão presentes na memória dos populares. Eu tinha minha barraca no garimpo do Cachoeira e a turma do Quintino sempre aparecia por lá, sempre de passagem. Numa manhã dessas, eles apareceram e pediram pra se chegar. Foi feito café pra turma toda, trocaram proza com a gente, Então eu disse que tinha que sair porque eu ia até Santa Luzia, que na época era a maior vila na região e tudo era comprado lá, eu disse isso mas morrendo de medo do Quintino achar que eu podia deletar onde o bando dele estava. Passado um tempo eu saí e eles ficaram por lá, caminhei por um tempo, acho que mais de uma hora na estrada quando vi os pistoleiros da Cidapar vindo na minha direção. Graças a Deus não me pararam pra perguntar nada, mas meu coração quase sai pela boca só de imaginar que os pistoleiros iam se encontrar com a tropa do Quintino (NELSON, Santa Luzia do Pará, 26 jul. 2014) Sendo assim, a rememoração é o instrumento que possibilita a retomada das lembranças que eventualmente possam ter causado, traumas ou fortes emoções, provocando o esquecimento. Por sua vez, memória torna-se imprescindível e assume a responsabilidade de trazer, à tona, ocorrências que compõem os retalhos dos acontecimentos cotidianos de uma sociedade. Ricoeur, pontua-nos dizendo que “é a esse tesouro do esquecimento que recorro quando tenho o prazer de me lembrar do que, certa vez, vi, ouvi, experimentei, aprendi, adquiri (RICOEUR, 2010, p. 427) Florêncio narra um fato, no mínimo curioso, no bar do Sr. Zé Gomes, grande amigo de Quintino, e destaca o poder de persuasão que Quintino adquiriu no decorrer do conflito. Fotografia 2- O Liberal. 24/11/1984. O Quintino chegava aqui em Santa Luzia e tudo parava por causa dele. Muita gente queria ver o famoso Quintino, mas ele nunca estava só, sempre acompanhado, ás vezes 8 a 12 homens, tudo pra proteger ele. Um dia ele estava bebendo no bar do Zé Gomes e ele viu um policial e perguntou se ele vendia o cinturão, carregado de bala, porque ele tinha gostado muito e o policial disse assim: - “Nada não! Não precisa pagar não! Ele é seu!”. Ele tirou o cinturão e deu pro Quintino. O Quintino disse a ele pra sentar e beber todo mundo junto, mas o policial se recusou, tava trabalhando, fardado, sabe como é, né? Não pode! O Quintino insistiu e disse que agora ele era o comandante do policial, e que ele não se preocupasse que agora ele era o seu chefe! Rapaz! Até a policial tinha medo do Quintino! (FLORENCIO, Luís Carlos. Santa Luzia do Pará, 10 set. 2014) Diante dessa exemplificação, os acontecimentos passados, sob esse aspecto que Ricoeur considera no “Domínio de reserva”, sempre estará na dependência da memória para que aflore, e a parti daí, comece a apresentar-se em fragmentos de lembranças e, consequentemente dê vazão as narrativas que configuram-se como históricas. “A própria memória se define, pelo menos numa primeira instância, como luta contra o esquecimento” (Idem, p. 424). Sendo assim, a memória torna-se instrumento relevante para a preservação e valorização da história local, que através das narrativas, os fatos históricos ocorridos no passado, servirão como base de estudos acerca da formação histórica, social e cultural de uma determinada sociedade. CONSIDERAÇÕES FINAIS A realidade mostra que nos dias atuais, as conversas entre vizinhos e familiares, as prosas nos finais de tarde feitas no batente da porta ou nas calçadas, resumiram-se apenas as cordialidades entre os conhecidos. Podemos considerar que com a chegada da modernização, a tecnologia “prendeu” o cidadão diante da televisão e do computador. Esse vício tecnológico foi capaz, pode-se dizer, de dizimar o hábito de contar histórias, e assim, as pessoas foram perdendo o costume de narrar suas experiências de vida, favorecendo o desuso das narrativas orais nos dias atuais. Dessa forma, pode-se considerar que, após 30 anos decorridos desse fato histórico, para os moradores do município de Santa Luzia do Pará, o ato de narrar os acontecimentos vivenciados pela população não fazem mais parte do cotidiano popular, ao ponto de não serem narradas com certa riqueza de detalhes, como faziam as pessoas que vivenciaram o conflito. Apesar de essa realidade ser presente nos dias atuais, as narrativas orais estão ganhando espaço nos centros acadêmicos. Peter Burke explicita um dos motivos para o atual reconhecimento e a valorização da memória histórica. Mais que os livros, filmes e programa de televisão mostram, há um forte interesse popular pelas memórias históricas. Esse interesse cada vez maior provavelmente é uma reação à aceleração das mudanças sociais e culturais que ameaçam as identidades, ao separar o que somos daquilo que fomos. Em um nível mais específico, o crescente interesse por memórias do Holocausto e da Segunda Guerra Mundial ocorre em um tempo em que esses acontecimentos traumáticos estão deixando de fazer parte da memória viva. (BURKE, 2005, p. 88) Compartilhando o pensamento de Burker, nota-se que, em relação às narrativas de Quintino Lira, as pessoas que viveram naquela época deixaram de narrar os episódios do conflito, permitindo que as narrativas caíssem no esquecimento, ou por questões traumáticas ou por perda do hábito de narrar os acontecimentos passados. Vê-se que durante seu depoimento, Sr. Costa, vezou outra, perguntava se essa conversa (entrevista) não traria problemas pra ele, pois, mesmo depois de transcorrido trinta anos do fim do conflito, ainda hoje há marcas profundas na memória popular. Essa preocupação é causada pelo trauma vivido por essa geração que presenciou momentos de terror durante a caçada ao Gatilheiro. As memórias coletadas durante a pesquisa possibilitarão, de certa forma, a rememoração da história desse período, indo de encontro ao passado por meio das diferentes memórias individuais que, sobretudo, são memórias coletivas. Le Goff nos diz que “adentrar nesse estudo da memória social é um dos meios de atingir fatos do tempo e da história, pois a memória se configura como um patrimônio infinito que se forma através de fragmentos” (Idem, p. 472). Nessa perspectiva, as experiências partilhadas são simbolizadas através da oralidade, dando sentido as perdas e as vitórias que fazem parte da história de Santa Luzia do Pará. Le Goff sobre isso, reitera dizendo “Pois, não se pode compreender a memória da sociedade sem percebê-la na dinâmica das tensões de poder entre variados grupos e classes sociais” (Idem, p. 475) Atentemo-nos para a distinção entre documento e monumento apontado por Le Goff, para ele, “monumento é tudo aquilo que pode evocar o passado, perpetuar a recordação” (Idem. p. 486), ou seja, remete-se a um povo, “herança do passado”, representa algo que foi vivido. Assim, Le Goff, considera que os monumentos seriam os desencadeadores da recordação, como um estímulo externo para a recuperação da memória. Portanto, o monumento permite resgatar os fatos específicos, armazenados na memória coletiva, ocorridos em um determinado tempo na sociedade. Enquanto que a história só existe devido ao documento. No entanto, o documento pode conter inverdades, pois os fatos registrados da história passam a ser uma escolha do historiador. A diferença entre monumentos e documento, é que este, volta-se para questões sociais e o monumento é a ponte para as lembranças do passado, já o documento é o conjunto dos dados específicos dessas recordações. Dessa forma, busca-se investigar a monumentalidade das narrativas orais sobre a saga de Quintino como Gatilheiro. Le Goff, sobre memória histórica, aponta que é “necessário dá uma importância especial às diferenças entre sociedades de memória essencialmente oral e sociedades de memória essencialmente escrita” (Idem, p. 390). O autor sabiamente reitera dizendo que “a memória, na qual cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir ao presente e ao futuro. Devemos trabalhar de forma que a memória coletiva sirva para a libertação e não para a servidão dos homens”. (Idem, p.437) Finalizando, observa-se que, através da oralidade, pode-se caminhar no labirinto da memória que compõe as narrativas de Quintino de Lira, nesse caso, percebe-se que ao contar histórias, a identidade das comunidades não caem no esquecimento, consequentemente, os ecos das vozes serão traduzidos, com isso, forma-se cidadãos pensantes, de forma que as diversas experiências relatadas através da memória coletiva, possibilitem discursões acerca dos conflitos. Nesse sentido, as narrativas orais podem ser registradas, documentadas e assim, servirão como suporte para que as gerações futuras tenham a possibilidade de analisá-las para a compreensão seu contexto histórico, social e cultural da época em Santa Luzia do Pará. REFERÊNCIAS BURKE, Peter. O que é História Cultural? Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. FERNANDES, José Guilherme dos Santos. Do oral ao escrito. In. Outros Tempos, v. 02, p. 156-166. Disponível em: http://www.outrostempos.uema.br. Acesso em: 24 fev. 2015 HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. Tradução de Beatriz Sidou. São Paulo: Centauro, 2006. LE GOFF, Jacques. História e memória. Tradução de Bernardo Leitão...[at al.].- 7º Ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP. 2013. LOUREIRO, Violeta Refkalefsky. Estado, Bandidos e Heróis. Belém: CEJUP, 1997. RICOEUR, P. A memória, a história e o esquecimento. Campinas: Unicamp, 2010 VON SIMSON, Memória, Cultura e Poder na Sociedade do Esquecimento. In. Margens. Dossiê memória e Oralidade. v. 1. nº. 1, p. 11-24 Abaetetuba. PA: UFPA 2004 ENTREVISTAS CATEL, Pe. Aposentado. Entrevista concedida a Juliana Patrízia Saldanha de Sousa. Belém, 10 de jun. 2012. COSTA, João, Aposentado. Entrevista concedida a Juliana Patrízia Saldanha de Sousa. Santa Luzia do Pará PA, 10 set. 2014 FLORENCIO, Luís Carlos. Autônomo. Entrevista concedida a Juliana Patrízia Saldanha de Sousa. Santa Luzia do Pará PA, 10 set. 2014 NELSON, Francisco. Aposentado. Entrevista concedida a Juliana Patrízia Saldanha de Sousa. Santa Luzia do Pará PA, 26 jul. 2014 VASQUES, Francisco Chagas. Vereador. Entrevista concedida a Juliana Patrízia Saldanha de Sousa. Santa Luzia do Pará PA, 07 jun. 2013
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