Prévia do material em texto
Educação, História, Memória e Cultura em Debate Educação, História, Memória e Cultura em Debate Volume II Memórias, narrativas e culturas Organizadores César Evangelista Fernandes Bressanin José Maria Baldino Maria Zeneide Carneiro Magalhães de Almeida Diagramação: Marcelo A. S. Alves Capa: Carole Kümmecke - https://www.conceptualeditora.com/ O padrão ortográfico e o sistema de citações e referências bibliográficas são prerrogativas de cada autor. Da mesma forma, o conteúdo de cada capítulo é de inteira e exclusiva responsabilidade de seu respectivo autor. Todos os livros publicados pela Editora Fi estão sob os direitos da Creative Commons 4.0 https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) BRESSANIN, César Evangelista Fernandes; BALDINO, José Maria; ALMEIDA, Maria Zeneide Carneiro Magalhães de (Orgs.) Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II: Memórias, narrativas e culturas [recurso eletrônico] / César Evangelista Fernandes Bressanin; José Maria Baldino; Maria Zeneide Carneiro Magalhães de Almeida (Orgs.) -- Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2021. 454 p. ISBN - 978-65-5917-245-0 DOI - 10.22350/9786559172450 Disponível em: http://www.editorafi.org 1. Educação; 2. História; 3. Memória; 4. Estado; 5. Brasil; I. Título. CDD: 370 Índices para catálogo sistemático: 1. Educação 370 Sumário Apresentação 11 César Evangelista Fernandes Bressanin José Maria Baldino Maria Zeneide Carneiro Magalhães de Almeida Prefácio 15 Maria do Espírito Santo Rosa Cavalcante Ribeiro José Alcides Ribeiro Capítulo 1 22 Arquipélago de memórias: pandemia e vida cotidiana de professores, estudantes e pais/mães de alunos (familiares) Valdeniza Maria Lopes da Barra Keyla Bastos Sarah Karoline Teixeira Capítulo 2 34 Memória e história, entre tensões e práticas Thalles Valente de Paiva Ana Clara Valente de Paiva Capítulo 3 58 Memórias do tempo presente: as narrativas dos professores durante o ensino remoto em Rio Verde-GO Nívea Oliveira Couto de Jesus Capítulo 4 70 Reflexões fenomenológicas sobre a memória em Paul Ricoeur Arliene Stephanie Menezes Pereira Lia Machado Fiuza Fialho Ana Carolina Braga de Sousa Capítulo 5 85 História oral e memória: algumas ponderações Simone Gomes de Faria Karen Laiz Krause Romig Capítulo 6 106 Interfaces entre história oral e memória: contribuições para pesquisas biográficas Scarlett O’hara Costa Carvalho Lia Machado Fiuza Fialho Cristine Brandenburg Capítulo 7 126 Patrimônio e memória: ações educativas que promova o conhecimento dos bens de natureza materiais e imateriais da cidade de Mossâmedes Stefany Lorrane Menezes Ferreira Capítulo 8 142 Contributos e desafios da educação patrimonial no contexto da pandemia do Covid 19 Giselda Shirley da Silva Vandeir José da Silva Capítulo 9 165 Educação patrimonial e decreto Lei 25/1937-artigos 17 e 19: limites e possibilidades na Cidade de Goiás Dhyovana da Silva Cardoso Capítulo 10 182 História e memória: limites e possibilidades do uso da literatura nas novas abordagens históricas João Pedro Rodrigues do Carmo Maria Zeneide Carneiro Magalhães de Almeida Paulo Cesar Soares de Oliveira Capítulo 11 201 Memórias e narrativas sobre a escola em Machado de Assis e Cora Coralina Rosângela Soares de Almeida Ribeiro Maria Zeneide Carneiro Magalhães de Almeida Capítulo 12 215 Os processos de aprendizagem de mestres pifaneiros: educação também é um patrimônio imaterial Camila Betina Röpke Ednardo Monteiro Gonzaga do Monti Capítulo 13 237 Narrativas (auto) biográficas dos professores do curso de música da Universidade Federal do Piauí-UFPI Joeline Conceição de Sousa Rodrigues Ednardo Monteiro Gonzaga do Monti Capítulo 14 245 Memórias do trabalho docente: a docência como vocação feminina na Escola Normal de Caetité Andreia Pereira dos Santos Ana Elizabeth Santos Alves Capítulo 15 264 Um olhar sobre a escola em Aparecida de Goiânia: lugar de história e memória a partir da narrativa da professora Nilda Simone Maria Edimaci T. B. Leite Maria Zeneide C. M. de Almeida Capítulo 16 283 Educação escolar no Marajó: história e memória da educação pública em breves Joyce Pinto de Oliveira Eliane Miranda Costa Capítulo 17 305 “O jeito salesiano de educar” e as representações sociais dos professores salesianos na memorialística corumbaense Cristian Lopez Gomes Heloise Vargas de Andrade Capítulo 18 326 A imprensa sul-mato-grossense e a educação salesiana (1977-2017) Jusilene dos Santos Branco da Silva Celeida Maria Costa de Souza e Silva Edgar da Silva Queiros Capítulo 19 350 Memória e história oral: buscando evidências para desvendar a Universidade Federal de Goiás-Regional de Jataí Maria Zeneide Carneiro Magalhães de Almeida Marliane Dias Silva Capítulo 20 365 Ambientes digitais de disponibilização e preservação da história e memória da EJA em Goiás Walquiria Cunha Borges Maria Margarida Machado Capítulo 21 388 Dona Joaninha, o cordão umbilical de São José da Tapera: saberes tradicionais e o ofício de partejar no médio sertão alagoano Derllânio Telecio da Silva Capítulo 22 399 Francisco lins na europa: notícias da viagem no Jornal do Comércio de Juiz de Fora (1912) Daise Silva dos Santos Capítulo 23 410 Memória indígena e colonialismo: notas sobre os projetos de educação no Oiapoque e a escolarização do povo Kalinã Valber Rogério dos Santos Jean Jaques Evangelina Sônia dos Santos Jeanjaque Ramiro Esdras Carneiro Batista Capítulo 24 425 Memórias em tempo de pandemia: a reestruturação do trabalho docente e saúde mental presente nas narrativas de professoras na Cidade de Goiânia Priscilla Barros da Silva Capítulo 25 441 Museus e tecnologias em tempos de pandemia Tayara Barreto de Souza Celestino Apresentação César Evangelista Fernandes Bressanin José Maria Baldino Maria Zeneide Carneiro Magalhães de Almeida 1 Este e-book “Educação, História, Memória e Cultura em Debate”, em seu segundo volume, que tem como subtítulo “Memórias, Narrativas e Culturas”, é resultado de parte dos trabalhos apresentados durante o I Colóquio Internacional do Diretório/Grupo de Pesquisa “Educação, História, Memória e Cultura em diferentes espaços sociais-CNPq- HISTEDBR” (DGP – EHMCES – CNPq - HISTEDBR), do Programa de Pós- Graduação em Educação (PPGE) da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO) entre os dias 19 e 21 de maio de 2021, no formato online. Um dos objetivos do DGP-EHMCES-CNPq-HISTEDBR é produzir e organizar o corpus das pesquisas sobre a educação em seus diferentes níveis, processos, modalidades e espaços, enfatizando as memórias da vida escolar, memórias (auto)biográficas da profissão docente, memórias e narrativas das instituições escolares confessionais, privadas e públicas, a partir de levantamento, organização e catalogação de fontes primárias e secundárias ancoradas nos pressupostos teóricos e metodológicas da Memória e da História Oral. Pesquisas sobre cultura material e imaterial, patrimônio e manifestações culturais em diferentes espaços sociais que fazem interfaces com a educação, também, compõem o rol de investigações do DGP- EHMCES-CNPq-HISTEDBR e têm possibilitado ampliar a produção acadêmica e científica do diretório como contributo na formação de 1 DGP-EHMCES / PPGE – PUC-GO 12 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II profissionais da educação comprometidos em valorizar, respeitar e disseminar a interlocução da escola e da universidade com a sociedade. Para isso, o DiretórioDGP-EHMCES-CNPq-HISTEDBR realiza um trabalho coletivo que deriva da união de diferentes pessoas e instituições nacionais e internacionais em torno de interesses comuns. Certa vez, Dom Hélder Câmara, em uma de suas alocuções, assim expressou-se: "Não devemos temer a utopia. Gosto de repetir que, ao sonharmos sozinhos, limitamo-nos ao sonho. Quando sonhamos em grupo, alcançamos imediatamente a realidade" (ROCHA, 2009). À vista disso, o DGP- EHMCES-CNPq-HISTEDBR do PPGE PUC-GO, com seus líderes, pesquisadores e estudantes, não temeu a situação complexa colocada pela pandemia da COVID-19 e, servindo-se dos desafios, das tecnologias e redes digitais, acessórias ao ensino, à pesquisa e à extensão, sonhou a realização de um evento em que, além de socializar os resultados de seus trabalhos e investigações, pudesse acolher outros pesquisadores e estudantes para o compartilhamento dos resultados da produção acadêmica. O sonho era modesto, mas construído em grupo, alcançou uma realidade maior do que a planejada. De um evento local e institucional tornou-se internacional. Incorporou mais de 500 participantes ouvintes e cerca de 150 pesquisadores que apresentaram suas produções e contribuições nos grupos de trabalho “Educação e Saberes”, “Educação e Memória”, “História da Educação” e “Educação e Cultura”, o que possibilitou organizar essa coleção de e-books composta de 4 volumes, sendo esse o segundo deles2. A natureza nos presenteia, através das ostras, com pérolas de cores diferenciadas. Esta coletânea é um grande presente e, entre as suas pérolas 2 2 Volume I – História da Educação e suas abordagens; Volume II – Memórias, Narrativas e Culturas; Volume III – Educação e Saberes; Volume IV – Educação e cultura em diferentes espaços sociais. César E. F. Bressanin; José Maria Baldino; Maria Zeneide Carneiro M. de Almeida | 13 textuais, a de autoria de Valdeniza Maria Lopes da Barra e suas companheiras da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás, é a que amálgama as demais, a partir da temática em evidência. O texto é resultado de sua partilha no I Colóquio Internacional do DGP- EHMCES sobre o importante projeto “Arquipélago de Memórias: pandemia e vida cotidiana de professores, estudantes e pais/mães de alunos (familiares)”. As demais pérolas que formam o belo colar desta obra, desdobram- se em objetos e temáticas diversos sobre memórias, narrativas e culturas. São capítulos assinados por experientes pesquisadores, mestres e doutores em processo de formação, graduandos da iniciação científica que contribuem com o itinerário das pesquisas por todo o Brasil. Assim, temos outros vinte e quatro textos, frutos de sérias, ousadas e interessantes pesquisas que tecem narrativas, criam argumentos e produzem o conhecimento da mesma forma como as pérolas são produzidas dentro da ostra: um grão de areia revestido de várias camadas de nácar (PEZZOLO, 2010). A proposta é que esta coletânea enriqueça nossas possibilidades de leituras. Esperamos que os leitores desfrutem dessa obra sonhada em conjunto e colorida com muitas pérolas preciosíssimas. Goiânia-GO, julho de 2021. Referências ROCHA, Dom Geraldo Lyrio. Dom Helder Câmara: Profeta da justiça e Mensageiro da esperança. Atualidade Teológica. Ano XIII nº 31, janeiro a abril / 2009. PEZZOLO, Dinah. A Pérola: História, cultura e Mercado. São Paulo: Senac, 2010. 14 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II Prefácio Maria do Espírito Santo Rosa Cavalcante Ribeiro José Alcides Ribeiro Tempo, tempo, tempo, tempo Vou te fazer um pedido Tempo, tempo, tempo, tempo Compositor de destinos Tambor de todos os ritmos Tempo, tempo, tempo, tempo Entro num acordo contigo Tempo, tempo, tempo, tempo Por seres tão inventivo E pareceres contínuo. (Caetano Veloso, “Oração ao Tempo”, 1979) Com esse excerto da “Oração ao Tempo” de Caetano Veloso, lançado no álbum Cinema Transcedental, de 1979, começamos a prefaciar o livro “Memórias, Narrativas e Culturas”, posto que ritmo, invenção e continuidade são marcas indeléveis de quem se aventura no campo das pesquisas demarcadas pelos usos da categoria memória. Sobre a questão relativa a como a sociedade recupera o seu passado, há uma passagem em Pollak (1992) que reconhece a memória como um fenômeno produzido a partir da negociação dos critérios que a validam, portanto, não é algo que está naturalmente dado. Em certas circunstâncias históricas, a memória pode ser apagada, roubada e ou negociada. Recordemos Certeau, que em certa passagem do seu livro “A Escrita da História” (1982, p.77) diz que “[...] a articulação da história com um lugar é a condição de uma análise da sociedade. [...] Levar a sério o seu 16 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II lugar não é ainda explicar a história. Mas é a condição para que alguma coisa possa ser dita sem ser nem legendária (“ou edificante”), nem a-tópica (sem pertinência) [...]” Pensar a escrita de narrativas por essas perspectivas implica reconhecer os sujeitos históricos pelo campo das subjetividades, remete, portanto, às reflexões que permitam reconhecer como os sentimentos acumulados no cotidiano das experiências de vida, em um tempo e um lugar, são traduzidos em memórias e os sentidos que elas podem revelar. Para Stone (1991, p.13), as narrativas têm suas singularidades demarcadas pelas suas “[...] disposição descritiva, mais do que analítica, seu enfoque central diz respeito ao homem e não às circunstâ̂ncias. Portanto, elas tratam do particular e do específico, é uma modalidade de escrita, modalidade esta, porém, que afeta e é afetada pelo conteúdo e pelo método”. Considerando o conceito de cultura, os/as pesquisadores/as dos estudos culturais estudam a dimensão das suas significações, tomando por base a compreensão do antropólogo Clifford Geertz (2012,p.4): O conceito de cultura que eu defendo é essencialmente semiótico. Acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do significado. Ainda, dentro desse conceito convém ressaltar que, o/a pesquisador/a em suas várias possibilidades de análises, intenciona compreender como as pessoas pensam, como interpretam o mundo, conferindo-lhe significados e emoções (Darnton, 1986). Maria do Espírito Santo Rosa Cavalcante Ribeiro; José Alcides Ribeiro | 17 Um outro autor ligado à epistemologia da teoria da cultura, é seminal, também, para as articulações entre os campos da cultura e da história. Umberto Eco (1990, p. VII-XIII, grifo do autor, tradução nossa) diz que as culturas “[...] podem ser governadas por um sistema de regras ou por um repertório de textos que impõem modelos de comportamento.” A sociedade gera diretamente textos, que formam macrounidades das quais regras podem ser inferidas possivelmente, mas que primeiramente e de maneira importante propõem modelos para ser seguidos e imitados. Em tempos de pandemia e negacionismos, os desafios do tempo presente pedem por atitudes que impilam a mudar a situação de melancolia e desesperança que parece predominar nas expectativas humanas nesse agora de nossas existências. Construir narrativas em tempos tão exigentes remete-nos a demandar as utopias que dão esperança e sentidos às nossas vidas, quando a morte é escancarada em estatísticas que extrapolam o índice de mais de quinhentos mil pessoas contaminadas pela Covid 19. Conjugar memória e cultura em suas diversas temáticas e possibilidades epistemológicas de abordagens é o propósito dos vinte e cinco capítulos que compõem este livro.Cada capítulo traz contribuições singulares e criativas, fundamentadas em investigações meticulosas e eruditas. Abordagens epistêmicas sobre as dimensões e usos da categoria memória podem ser encontradas em Memória e história, entre tensões e práticas de Thalles Valente de Paiva e Ana Clara Valente de Paiva, capítulo 2, em Reflexões fenomenológicas sobre memória em Paul Ricouer, de Arliene Stephanie Menezes Pereira, Lia Machado Fiuza Fialho e Ana Carolina Braga de Sousa, capítulo 4, e no capítulo 5 História oral e memória: algumas ponderações de Simone Gomes de Faria e Karen Laiz Krause Romig. Reflexões sobre a memória em tempos de pandemia são propostas no capítulo 1 em Arquipélago de memórias: pandemia e vida cotidiana de 18 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II professores, estudantes e pais/mães de alunos (familiares), Valdeniza Maria Lopes da Barra, Keyla Bastos e Sarah Karoline Teixeira, no capítulo 3 em Memórias do tempo presente: as narrativas dos professores durante o ensino remoto no Rio Verde- Go de Nívea Oliveira Couto de Jesus, no capítulo 24 em Memórias em tempo de pandemia: a reestruturação do trabalho docente e saúde mental presente nas narrativas de professoras na cidade de Goiânia, de Priscilla Barros da Silva e no capítulo 25 em Museus e tecnologias em tempos de pandemia de Tayara Barreto de Souza Celestino. Pensar as interfaces entre patrimônio, memória e educação são contribuições que podem ser conferidas no capítulo 7 em Patrimônio e memória: ações educativas que promova o conhecimento dos bens de natureza materiais e imateriais da cidade de Mossâmedes de Stefany Lorrane Menezes Ferreia, no capítulo 8 Contributos e desafios da educação patrimonial no contexto da pandemia do covid 19 de Giselda Shirley da Silva e Vandeir José da Silva e capítulo 9 em Educação patrimonial de Decreto Lei 25/1937-artigos 17 e 19: Limites e possibilidades na cidade de Goiás de Dhyovana da Silva Cardoso. Conhecer as possibilidades de intersecções entre história e memória pelos usos da literatura e das práticas educativas musicais é o convite do capítulo 10 em História e memória: limites e possibilidades do uso da literatura nas novas abordagens históricas de João Pedro Rodrigues do Carmo, Maria Zeneide Carneiro Magalhães de Almeida e Paulo Cesar Soares de Oliveira, do capítulo 11 em Memórias e narrativas sobre a escola em Machado de Assis e Cora Coralina de Rosângela Soares de Almeida Ribeiro e Maria Zeneide Carneiro Magalhães de Almeida e do capítulo 12 Os processos de aprendizagem de mestres pifaneiros: a educação também é um patrimônio imaterial de Camila Betina Röpke e Ednardo Monteiro Gonzaga do Monti. Maria do Espírito Santo Rosa Cavalcante Ribeiro; José Alcides Ribeiro | 19 A imprensa como espaço de memória é o propósito narrativo do capítulo 18 em A imprensa Sul – Matogrossense e a educação salesiana (1977-2017), de Jusilene dos Santos Branco da Silva, Celeida Maria Costa de Souza e Silva e Edgar da Silva Queiros e do capítulo 22 em Francisco Lins na Europa: notícias da viagem no Jornal do Comércio de Juiz de Fora (1912) de Daise Silva dos Santos. A escrita de si enquanto um campo indispensável para os estudos da memória pode ser conferida no capítulo 6 em Interfaces entre história oral e memória: contribuições para pesquisas biográficas de Scarlett O’hara Costa Carvalho, Lia Machado Fiuza Fialho e Cristine Brandenburg e no capítulo 13 em Narrativas (auto) biográficas dos professores do curso de música da Universidade Federal do Piauí-UFPI de Joeline Conceição de Sousa Rodrigues e Ednardo Monteiro Gonzaga do Monti. Lembrando Michelle Perrot em seus escritos de memória sobre como as mulheres recordam, o capítulo 14 remete os/ as leitores/as às Memórias do trabalho docente: a docência como vocação feminina na escola normal de Caetité de Andreia Pereira dos Santos e Ana Elizabeth Santos Alves) e o capítulo 15 apresenta Um olhar sobre a escola em Aparecida de Goiânia: um lugar de história e memória a partir da narratia da professora Nilda Simone de Maria Edimaci T. B. Leite e Maria Zeneide C. M. de Almeida. Memória e história da educação quer da escola pública, quer confessional, é o que pode-se conferir no capítulo 16 Educação escolar no Marajó: história e memória da educação pública em Breves de Joyce Pinto de Oliveira e Eliane Miranda Costa, no capítulo 17 “o jeito salesiano de educar” e as representações sociais dos professores salesianos na memorialística corumbaense de Cristian Lopez Gomes e Heloise Vargas de Andrade, no capítulo 19 em Memória e história oral: buscando evidências 20 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II para desvendar a Universidade Federal de Goiás – regional de Jataí de Maria Zeneide Carneiro Magalhães de Almeida e Marliane Dias Silva. Destaca-se ainda, nesse campo de abordagem, a pesquisa sobre a memória da educação escolar do povo Kalinã no capítulo 23 em Memória indígena e colonialismo: notas sobre os projetos de educação no Oiapoque e a escolarização do povo Kalinã de Valber Rogério dos Santos Jean Jaques, Evangelina Sônia dos Santos Jeanjaque e Ramiro Esdras Carneiro Batista. Questões como armazenamento e expectativas de vida da memória digital são o foco da narrativa do capítulo 20 em Ambientes digitais de disponibilização e preservação da história e memória da EJA em Goiás de Walquiria Cunha Borges e Maria Margarida Machado. Conhecer as possiblidades de pesquisas e os deslocamentos temáticos dos usos das categorias “memórias”, “narrativas” e “culturas” são a contribuição original de cada um dos capítulos que compõem esta coletânea. Escrever narrativas históricas sobre temas tão diversos e tramas não contadas é um convite a unir essas vozes polifônicas à voz de Milton Nascimento, quando canta que a história é: Um trem riscando os trilhos Abrindo novos espaços Acenando muitos braços Balançando nossos filhos Quem vai impedir que a chama Saia iluminando o cenário Saia incendiando o plenário Saia inventando outra trama Quem vai evitar que os ventos Batam portas mal fechadas Maria do Espírito Santo Rosa Cavalcante Ribeiro; José Alcides Ribeiro | 21 Revirem terras mal socadas E espalhem nossos lamentos (“Cancion por la unidad de Latino America” Música de Pablo Milanes e Chico Buarque de Hollanda,1978) São Paulo, agosto 2021 Referências DARNTON, Robert. O grande massacre de gatos, e outros episódios da história cultural francesa. Rio de Janeiro: Graal, 1986. ECO, Umberto. Introduction. In: LOTMAN, I. Universe of the mind: a semiotic theory of culture. Boomington and Indianapolis: Indiana University Press, 1990. GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2012. POLLAK, Michel. Memória e identidade social. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro: FGV, n. 10, 1992 CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982 STONE, Lawrence. O ressurgimento da narrativa. Reflexões sobre uma nova velha história. In: RH- Revista de História, IFCH, UNICAMP, 1991 Capítulo 1 Arquipélago de memórias: pandemia e vida cotidiana de professores, estudantes e pais/mães de alunos (familiares) 1 Valdeniza Maria Lopes da Barra 2 Keyla Bastos 3 Sarah Karoline Teixeira 4 Arquipélago de Memórias: pandemia e vida cotidiana de professores, estudantes e pais/mães de alunos (familiares) é uma ação de extensão cadastrada na Pró Reitoria de Extensão (PROEC) da Universidade Federal de Goiás (UFG), sob registro SIEC EV151-2020. Este projeto foi iniciado em 13 de julho de 2020 e atualmente conta com uma rede de parceria que envolve professores e estudantes de instituições brasileiras de 26 estados e DF; parceiros de instituições dePortugal, Peru e Espanha.5 Dentre os objetivos do projeto, estão: a) Promover a captação e guarda de relatos de vivências de professores, estudantes e familiares de alunos com vista à composição de uma “cápsula do tempo” da pandemia, postulando a composição de um acervo/memorial que também se constitua como um fundo documental subsidiário de trabalhos futuros; 1 Este texto foi preparado para apresentação do projeto Arquipélago de Memórias junto ao I Colóquio Internacional do Diretório/Grupo de Pesquisa Educação, História, Memória e Cultura em diferentes espaços sociais/CNPq/HISTEDBR, realizado junto à PUC GO, em 20 de maio de 2021. 2 Pedagoga, mestra e doutora pelo Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação: História, Política, Sociedade (PUC/SP), professora associada da Faculdade de Educação (UFG), com atuação na graduação e pós-graduação. Coordenadora do projeto Arquipélago de memórias. 3 Pedagoga. Servidora pública da Secretaria Municipal de Educação de Anápolis. Mestranda em Educação do PPGE/FE UFG, compõe a equipe de coordenação geral do projeto Arquipélago de memórias. 4 Pedagoga pela FE/UFG, compõe a equipe de coordenação geral do projeto Arquipélago de memórias. 5 Os parceiros associados ao projeto assumem o compromisso de divulgar o projeto e trabalhar pela captação de relatos em suas localidades. Como contrapartida, a equipe de coordenação do projeto recebe e organiza os relatos que, a partir de 2023, poderão ser acessados pelos parceiros, mediante termo de anuência e, a partir de 2025, poderão publicar trabalhos tendo como base, os conteúdos dos relatos do projeto Arquipélago de memórias. Valdeniza Maria Lopes da Barra; Keyla Bastos; Sarah Karoline Teixeira | 23 b) Reunir parceiros interessados no objeto do projeto, com vistas à produção de testemunhos de vivências da pandemia em suas localidades, possibilitando uma cartografia oral da pandemia com sotaque e diversidade dentro e fora do país, viabilizando estudos diversos. Constituem-se destinatários do projeto: professores/profissionais da educação, estudantes, pais/mães (familiares de alunos) vinculados à educação básica e superior, redes pública e privada. Seno o eixo temático do projeto: pandemia – vida cotidiana e educação. 1 Premissa do projeto Um evento extraordinário reposicionou a vida ordinária: “a vida dentro da vida”. Da premissa decorre a pergunta diretriz do projeto: Como a pandemia impactou a vida cotidiana de professores, estudantes e familiares de alunos? O projeto surge a partir da constatação da percepção de que a vida cotidiana de todo mundo sofre uma irrupção por conta do estado de pandemia decretado pela OMS em 11 de março de 2020, seguido de uma série de medidas com vistas à desaceleração do contágio pelo vírus, incluindo-se aí o distanciamento social e adoção de protocolos de higiene (máscara, álcool em gel). O que impôs uma escalada de restrições à mobilidade e a frequência a espaços públicos afetando todas as esferas da vida social (shoppings, restaurantes, igrejas, turismo, escola, etc.). É sabido que não são todos os acontecimentos extraordinários que são sensíveis à vida cotidiana, mas a pandemia o é, já que se trata de um acontecimento “extraordinário” com afecção direta sobre a vida ordinária. Ao tempo em que se dá o fechamento dos espaços públicos também ocorre o reordenamento do espaço doméstico, base de colisões e conexões entre vida coletiva, vida laboral, vida cotidiana. Residem aí tensões já que no plano da vida cotidiana se inscrevem os interesses imediatos de cada um, 24 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II sendo o indivíduo é distanciado da “consciência de nós” por um conjunto de determinações que estruturam (imediato, espontâneo, pragmático) e, ao fazê-lo em geral bloqueiam a passagem das dimensões particular e coletiva de cada indivíduo, prevalecendo os interesses individuais imediatos. Por sua vez a pandemia tende a induzir o desbloqueio, sugerindo a transição entre práticas individuais e coletivas e vice-versa, sob pena de expor a todos e qualquer um ao risco da morte. Da pergunta diretriz do projeto desdobram dois argumentos. 1) transição entre práticas individuais e coletivas ou dimensões política e cotidiana, vida pública e privada; 2) a relação dialética entre cotidiano e história. 2 Primeiro argumento: Sobre a transição entre práticas individuais e coletivas Uma consulta a jornais eletrônicos, sites e outras plataformas digitais foi realizada entre março e maio de 2020, e revelou que a palavra cotidiano e a acepção imediata de "vida de todos os dias" apareciam associada a temáticas relacionadas à cultura, à política, à economia, ao meio ambiente, à segurança pública, à educação, à violência doméstica dentre outros6. Esta constatação pode parecer óbvia se considerarmos, como o faz Lukács (1966), corroborado por Heller (1989), Netto (2011), que a vida cotidiana é ineliminável, portanto constitutiva da vida, já que ninguém pode 6 Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-abr-08/pandemia-rever-patologias-sociais-cotidiano. Acesso em: 04 de maio de 2020. Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/diana-de-celso-frateschi/ Acesso em: 04 de maio de 2020. Disponível em:https://sites.usp.br/psicousp/pandemia-aproxima-a-morte-do-cotidiano-e-impoe-transformacoes- ao-luto/ Acesso em: 06 de maio de 2020. Disponível em:https://mais.opovo.com.br/jornal/reportagem/2020/05/25/fotorreportagem--a-pandemia-e-o- cotidiano-dascomunidades.html#gallery-13 Acesso em: 06 de maio de 2020. Disponível em:https://www.migramundo.com/o-impacto-da-pandemia-no-cotidiano-do-empreendedor-migrante-igualdade- de-condicoes/ Acesso em: 06 de maio de 2020. Disponível em: https://www.acritica.com/channels/cotidiano/news/balanco-mostra-queda-em-producao-de-lixo- domiciliar-durante-pandemia Acesso em: 07 de maio de 2020. Valdeniza Maria Lopes da Barra; Keyla Bastos; Sarah Karoline Teixeira | 25 abstrair-se totalmente desta esfera. Contudo, do ponto de vista factual, o cotidiano habitualmente aparece como uma seção específica (apartada) na diagramação de um "jornal". A pandemia e os respectivos desdobramentos dela decorrentes induz o tratamento que se dará a temas macroestruturais, de tal modo que estes passam a ser redimensionados por aspectos ordinários da vida comum, a exemplo do que ocorre no Brasil com a política de complementação de renda (auxílio emergencial). Esta colocou no horário nobre da TV aberta assim como nas primeiras páginas dos jornais as milhões de vidas ordinárias invisibilizadas pela pobreza, destituídas de CPF (Cadastro de pessoa física), de conta bancária, de acesso à internet etc. Filas humanas intermináveis em calçadas que davam acesso a agências bancárias em busca de R$ 600,007 como forma de garantir que tais pessoas tivessem condições mínimas para "ficar em casa"8. Algo também ocorrerá com o setor cultural que se reinventa, a exemplo do teatro "arte política por excelência", arte cujo assunto é "o homem e suas relações com outros homens" (ARENDT, 2001, p. 200), passa a funcionar a partir do chamado “teatro em casa”, acompanhado de forma remota, o ator em casa, o público em casa. De igual modo lives de músicas, palestras e uma miríade de atividades afins. Do ponto de vista do consumo, há uma alteração substancial nos hábitos, tendo em vista a suspensão ou a restrição do acesso a espaços como shoppings centers, restaurantes e comércios de rua, dentre outros. O impacto da pandemia atinge desde os processos de administração pública das cidades, passa 7 O valor de 600,00 reais (BRL) equivale a 106,04 dólares (USD). 8 Um ano após o início da pandemia o valor do auxílio emergencial foi reduzido à media de 250,00 por família. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/auxilio-emergencial/noticia/2021/03/22/auxilio-emergencial- nova-rodada-comeca-a-ser-paga-no-inicio-de-abril-veja-datas-para-quem-e-do-bolsa-familia.ghtml.Acesso em 29 de março de 2021. O valor de 250,00 reais (BRL) equivale a 44,19 dólares (USD). 26 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II pelas condições que indicam o aumento da violência doméstica, até o modo como se processa e se realiza a gestão de resíduos como o lixo doméstico. Por sua vez a educação escolar passa a experimentar o ensino remoto, quando mães e pais são premidos a reorganizarem a vida doméstica na qual a convivência com os filhos “em casa” foi substancialmente ampliada, tanto como é ampliado e modificado o leque de atribuições de tais sujeitos. Tudo isso investe a vida de todos os dias (“rés do chão”) de novas camadas de vivências e sentidos Vê-se assim que não é forçoso identificar nas diferentes camadas da vida social cotidiana alguns flagrantes do modo como a pandemia atua na transição entre vida individual e vida coletiva, vida privada e vida pública. A captura de tais flagrantes é ajudada pelo ensinamento de Boaventura de Souza Santos (2020) quando diz que existe uma “pedagogia” derivada da pandemia. Esta pedagogia tem um professor “cruel”, o vírus. Para ensinar, esta pedagogia mata, para lembrar a relação do indivíduo com a humanidade ela interdita o contato de uma pessoa com outras e, no plano político ela exige que os interesses econômicos (mercado) cedam lugar para o papel que o estado deve ter junto à sociedade e especialmente junto aos setores mais vulneráveis. 3 Segundo argumento: Sobre a relação dialética entre cotidiano e história A pandemia é um evento histórico, de natureza cíclica e, claro, sensivelmente ajudado pela ação humana. Fernand Braudel, nome importante da segunda geração da chamada Escola dos Annales, no livro As estruturas do cotidiano: o possível e o impossível, se propõe a tratar o cotidiano das economias pré-industriais reconhecendo-o como a estrutura (cotidiano) na qual se forjam as forças instituintes do capitalismo industrial. Para ele os grandes eventos do século XIX se forjaram na monotonia do tempo frágil dos homens, da vida cotidiana “onipresente, Valdeniza Maria Lopes da Barra; Keyla Bastos; Sarah Karoline Teixeira | 27 invasora, repetitiva”, trata-se da “vida material” que “corre sob o signo da rotina”. Assim existe, aos olhos deste autor, uma dialética esclarecedora entre cotidiano e história. As epidemias, pestes e doenças seriam “uma constante” na história, isto é, “uma estrutura da vida dos homens” (BRAUDEL, 1995, p. 66). As doenças possuem a própria história que é cíclica, alterna fases de “virulência e de apaziguamento”. A epidemia é doença (estrutura) que se espalha com as viagens e contágios, estaria sempre “de reserva” aguardando a conjuntura para aparecer “de novo”. O fato de o homem praticar um “macroparasitismo predador”, desencadeia processos junto ao habitat de microorganismos que, apesar de minúsculos, por serem patogênicos, quando saem do seu “nicho biológico” atingem aos seres humanos, tornando-os reféns. Em geral os “acontecimentos” são considerados como excepcionalidades, distinguindo-se das “ocorrências” habituais que correspondem àquilo para o qual não damos importância porque se repetem dia a dia na vida de todos nós. Chamamos a isto de cotidiano. Enquanto o “o acontecimento quer-se, crê-se único” e se pretende produto da instantaneidade, é na dimensão cotidiana em que a ocorrência se repete e, “ao repetir-se, torna-se generalidade”. A esta repetição monótona e interminável Braudel chama “estrutura” (p. 17). Logo, para ele, a epidemia (acontecimento) se forja na “lentidão”, “na inércia” da vida cotidiana (estrutura) e se viabiliza em determinada “conjuntura”. Outro aspecto é que eventos como a pandemia potencializam a visibilidade de fissuras sociais e expõem as desigualdades econômicas (BRAUDEL, 1995; SOUZA, 2020), sendo que uma maneira de identificar a desigualdade desnudada pela pandemia no contexto atual e, por tabela, se atingir a educação escolar, é se deter sobre o acesso às novas tecnologias de informação e comunicação, por exemplo. Se epidemias ocorreram em diferentes momentos da história como demonstra Braudel (1995) e são 28 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II repetições históricas (estruturais), é preciso se atentar para as inovações engendradas e reveladas na conjuntura atual e que a captação de relatos (professores, estudantes e familiares) sobre as vivências da pandemia – propósito do projeto - poderá subsidiar exercícios de compreensão de instantes de transição. 4 Quanto ao enquadramento teórico-metodológico do projeto A pandemia da covid-19 é um evento da duração histórica presente: o que isto significa? A pandemia da covid -19 é evento que entrará para a narrativa histórica pelo modo como afeta a vida do homem (substância da história) e porque deixará marcas (memórias), insumo importante para a história. É um evento da duração histórica presente e, dada à importância política, cultural, social não se circunscreve ao interesse acadêmico, podendo ser enquadrada como interesse da vertente denominada “história pública”, como diria Rousso (2018), sendo objeto debatido por jornalistas, médicos, professores, biólogos, etc. A pandemia entrará para a narrativa da história porque sendo um evento de viés dramático da duração presente e, portanto, para o qual, ainda não temos um epílogo, como diria Lacoutre (1978), ao tratar da chamada “história imediata” é intensificada pela conjuntura de tempos “sombrios”, “obscuros”, “difíceis”, “tempo de cólera”, “tempos pandemônicos”, “tempos pandêmicos”. De tal modo que parece não faltar “adjetivos” para expressar algo “substantivo” desta “lacuna entre o passado e o futuro” (ARENDT, 2009) - duração histórica presente. Esta temporalidade não pode ser vista “como um simples lugar de passagem contínua entre um antes e um depois, mas como uma “lacuna entre passado e futuro”, como notara Arendt (2009). Essa noção de “lacuna” entre o passado e o futuro parece indicar que “o presente pode revelar” Valdeniza Maria Lopes da Barra; Keyla Bastos; Sarah Karoline Teixeira | 29 algo de “descontínuo, de ruptura e de início” (DOSSE, 2012, p. 20). Afinal, conforme pensa Hanna Arendt o que está entre o passado e o futuro corresponde a um “intervalo de tempo totalmente determinado por coisas que não são mais e por coisas que não são ainda” Na história, diz ela “esses intervalos mais de uma vez mostraram poder conter o momento da verdade” (ARENDT, 2009, p. 35-36). A duração histórica presente também é correlata daquilo que Lacoutre chamou de “história em fusão” em que somos colocados na condição de atores, testemunhas, alguns protagonistas de um enredo para o qual desconhecemos o desfecho. Trata-se de um contexto cuja singularidade também é dada pelo fato de que a pandemia da covid 19 se inscreve num “mundo convulsionado e comunicante” (LACOUTRE, 1989, p 319), em que esses acontecimentos são levados de forma instantânea ao conhecimento da opinião pública de uma sociedade “alucinada por informação” e angustiada pela mesma informação. Esta constatação intensifica a necessidade de se produzir “inteligibilidade histórica” para aquilo que é “secreção e projeção” da história. Como é ameaça à vida, a pandemia possui uma dramaticidade que a aproxima dos chamados “eventos traumáticos”, o que se justifica pelas medidas de restrição da convivência social, (isolamento), estados de depressão, adoecimento, morte, luto. Desconhecemos o desfecho de uma “história em fusão” (ROUSSO, 2020) não sabemos como os acontecimentos do presente reverberarão no futuro, como marcas trágicas do presente que poderão persistir em “passados que não passam”. Ao mesmo tempo, nutrimos uma saudade por um passado muito recente e que se presentifica no presente e também está no modo como lidamos e perpectivamoso amanhã/o próximo ano/o futuro. Ou seja, vive-se um presente aumentado ou “tempo amplo”, diria Gumbrecht (2010) já que 30 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II este carrega temporalidades simultâneas: a saudade de ontem e a incerteza pelo amanhã. Em termos de cotidianidade, há uma importante vontade de reestabelecer uma situação de controle sobre as ações no espaço-tempo presente, desejo da repetibilidade/ritualística rotineira necessária para a vida de todos os dias, algo subtraído/substituído da/na vida de todos os dias. Captar a “lacuna entre o passado e o futuro” é uma das ambições do projeto Arquipélago de memórias. 5 A opção por relatos orais A oralidade é instrumento privilegiado da história do presente nas suas várias vertentes. Para o projeto Arquipélago de memórias, a oralidade é veículo (do relato) e conteúdo. A oralidade é compreendida como “irradiadora da presença” que indicia tanto a “a materialidade dos corpos, sujeitos, objetos e do mundo”. Assim como os seus elementos constitutivos: “pausas, silêncios... como a percepção de “anseios, dúvidas, certezas, medos, alegrias, saberes e conhecimentos” (RAMÔA, 2020), “digressões, repetições, correções” que “tornam evidente o trabalho da palavra em manifestar o processo de transformação e o trabalho da consciência”. De tal modo que o modo de narrar pode revelar formas de interpretar e se situar na realidade social (PORTELLI, 2001). Le Goff ao tratar o conceito de memória trata o sentido perceptivo- cognitivo da memória e alerta que antes de ser falada ou escrita “existe uma linguagem sob a forma de armazenamento de informações” esta “linguagem” traduz seletividade e corresponde a uma “estrutura” auto organizadora do conhecimento que se antecipa à fala. Tomando-se emprestada o entendimento de que o impresso coloca o leitor na presença de uma memória (LE GOFF, 1984, p. 34), o relato oral do Arquipélago de memórias também é visto como veículo que coloca o voluntário do relato Valdeniza Maria Lopes da Barra; Keyla Bastos; Sarah Karoline Teixeira | 31 em presença para quem o ouve. De tal modo que o relato oral pretendido pelo projeto poderia ser correlato de um produtor “de presença” (GUMBRECHT, 2010). 6 Condições de produção dos relatos no projeto Existem ao menos duas formas de produção dos relatos. 1) Sistematizado: quando o voluntário do relato conhece o projeto por meio de algum projeto de ensino, pesquisa ou extensão e afins e decide efetivar o relato; 2) Espontâneo: quando o voluntário do relato acessa o site do projeto, se orienta (ou não pelo roteiro lá disponibilizado) e, no horário e local que o desejar, opta por efetivar o relato. Cabe considerar que numa situação de entrevista/relato a memória veiculada pela oralidade é “trabalho da consciência” e se o cotidiano é o lugar onde prevalece o “não pensado”, haveria um dos desafios metodológicos do projeto Arquipélago de memórias. 7 Para concluir O projeto tem uma “vontade de memória” declarada. Por umas e outras pode ser aproximado aquilo que Pierre Nora chamou, ao tratar de “lugares de memória” chamou de “ilusão de eternidade”. Pode ser que sim. Ao reconhecer que o projeto compõe a propalada celebração da memória sem perder de vista que a ação humana (historiador, poeta, etc.) pode perdurar falas/vozes, gestos, e este também pode corresponder a um ato político, isto é, “salvar” certos feitos e falas da futilidade (ARENDT, 2009), ato de “resistência” às mudanças tecnológicas que, sob o real pretexto da pandemia, invadiu a vida cotidiana de relações mediatizadas pelas telas (TV, celular, computador). 32 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II Enfim captar e guardar relatos orais sobre o modo como a pandemia afeta a vida cotidiana é também trabalhar para a “produção de presença” (GUMBRECHT), num encontro marcado para 2025 com a existência de nós no presente. Referências ARENDT, Hanna. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. ARENDT, Hanna. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2009. BARRA, Valdeniza Maria Lopes da. Arquipélago de memórias: pandemia e vida cotidiana de professores, estudantes e pais/mães de alunos (familiares). Projeto. Goiânia, 2020. Disponível em: Arquipélago de Memórias (google.com), acesso em 15 de maio de 2021. BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo. As estruturas do cotidiano. São Paulo: Martins Fontes.1995. GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de presença. Rio de Janeiro: Contraponto; Editora PUC Rio, 2010. HELLER, Agnes. O cotidiano e a história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. LACOUTRE, Jean. A história imediata. In: LE GOFF, Jacques (Org.). A história nova. São Paulo, Martins Fontes, 1995. LE GOFF, Jacques. Memória. Enciclopedia Einaudi Memória-História. Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1997. LUKÁCS, Georg. Estética. A peculiaridade de lo estético. México: Ediciones Grijalbo, 1966. Valdeniza Maria Lopes da Barra; Keyla Bastos; Sarah Karoline Teixeira | 33 NETTO, José Paulo. Para a crítica da vida cotidiana. In: NETTO, José Paulo; CARVALHO, Maria Caria Carvalho Brant (Org.). Cotidiano: conhecimento e crítica. São Paulo: Cortez, 2011. NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Revista Proj. História. São Paulo, 1993. PORTELLI, Alessandro. A história oral como gênero. Revista Proj. História. São Paulo, 2001. RAMÔA, Hosana do Nascimento. Presença da voz: a potência da oralidade na narrativa de professores na história oral. RevistAleph. Rio de Janeiro: UFF, 2020. ROUSSO, Henry. Entrevista com Henry Rousso. Disponível em: SciELO - Brasil - Entrevista com Henry Rousso Entrevista com Henry Rousso, acesso em 15 de maio de 2021. SOUZA SANTOS, Boaventura de. A cruel pedagogia do vírus. Portugal: Almedina, 2020. Capítulo 2 Memória e história, entre tensões e práticas Thalles Valente de Paiva 1 Ana Clara Valente de Paiva 2 1 Introdução Das intuições das Musas que relampejavam sobre os “gênios nobres” que cantavam e narravam as imagens do passado, retroagindo os feixes do passado ao mundo dos vivos, a deusa Mnemósine, mãe das nove Musas, brindava, para com seus eleitos, uma consciência divina, não individual, mas coletiva; outorgava aos seus artistas, o poder de assegurar a imortalidade dos mortais ao cantar seus passados. Era assim que a consciência histórica se conservava e reatualizava- se na era arcaica grega, pelos cantos dos poetas. Somente pela incorporação das musas aos poetas que era possível o aedo explanar sobre as “estórias” da polis. Seduzidos pelas melodias de seus cantos, os homens comuns rompiam os limites reais (o espaço-tempo) transcendendo suas fronteiras temporais e geográficas, embrenhando-se nas virtualidades míticas passadas, experimentando suas inscrições reais e factuais, temendo e gozando dos restos que, outrora, não foram significados. Essa experiência presentificava o pregresso dos antepassados, o transformando substancialmente em vida. Essa força mística da oralidade dava à poesia um poder quase divino. Podemos dizer hoje, que seria uma faculdade quase delirante, por se fazer 1 Doutorando em Educação no Programa de Pós-graduação da Faculdade de Educação (PPGED) pela Universidade Federal de Uberlândia. E-mail: thallesvalentep@hotmail.com 2 Graduanda em Dança no Instituto de Artes (IARTE) pela Universidade Federal de Uberlândia. E-mail: aninhavpaiva@gmail.com Thalles Valente de Paiva; Ana Clara Valente de Paiva | 35 acima dos regimentos normativos da lei. O trovoar de Hesíodo, segundo Torrano (2006), se punha, por vezes, acima dos reis, nobres locais que retinham o poder de conservar e interpretar as fórmulas pré-jurídicas, não-escritase administrativas da justiça entre os querelantes e para aqueles que encarnavam a autoridade mais alta entre os homens. O poeta detinha o poder de ser o cultor dos regimes das memórias, suas palavras provocavam uma viagem cheia de descobertas, da qual os ouvintes aprendiam sobre seu passado, utilizando-se dessa sabedoria não para simplesmente guardá-lo, mas atualizá-lo às demandas comunitárias e ao cuidado de si Essa atividade era exercida em conjunto, uma relação cultural que tanto modernos e pós-modernos perderam com o passar do tempo. Partilhar da atividade mnêmica, se fazia como uma espécie de ritual de fortalecimento do espírito do sujeito e da comunidade, como relata Gagnebin (2013), que os “Feácios não se cansam em escutar as lembranças de Ulisses e esquecem mesmo do sono, o porqueiro Eumeu adoras suas histórias e as avalia com competência literária, Penélope e Ulisses trocam histórias e carícias (GAGNEBIN,2013,p.11)”. O ato de lembrar e narrar, tecia-se, de certa maneira, como uma proteção apolínea em tensão à radicalidade real do dionisíaco, de outro modo, as formas de imaginar e significar o passado com novas cores e novos formatos, ao mesmo tempo que afugentava os males pela beleza do canto, ressignificava o seu conteúdo traumático. Portanto, a Mnemosyne se constituía pela própria falta de significado puro de passado; a prática de lembrar modulava-se por lampejos, sendo esses orquestrados pela musicalidade, ou seja, as lembranças aparecem nas rimas com seus sentidos e significados sempre atualizados. Esse era o imenso poder que os povos ágrafos experimentavam, a potência dos cantos dos poetas dispunha de uma força paradoxal que 36 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II desenrolava-se “além do bem e do mal”. O poder de renomear as palavras com os curtos-circuitos metonímicos puramente estéticos que carregavam a sabedoria mágica dos mitos, trazendo a presença e ausência da coisa perdida, o passado. O poeta ama a estética, a harmonia e melodia das palavras que compõem a venustidade de um verso, para ele, primeiro, vem beleza da forma, depois o conteúdo da verdade. O canto do poeta era a plenitude das forças ontofânicas como a mais alta revelação da vida, dos Deuses, do mundo e dos seres. As narrativas não buscavam a ciência, e sim a estética e a sabedoria consagrada pelos deuses. Segurar tamanho poder não seria extremamente perigoso? Por ser um mero gozo “delirante”? Sócrates3 temendo o poder dos poetas, referiu a eles como ilusionistas, homens que não se preocupam com a verdade. Talvez seja certo dizermos que a memória, em seu sentido “pré- socrático”, estava intrigada com a força do mythos (pré-filosófico), todo seu desenvolvimento se organizava no compartilhamento de saberes passados com a comunidade, organizados na poesia relacionadas à intuição divina. No entanto, essa relação mítica não era uma atividade irracional, não-crítica etc; de maneira oposta, quando um mito era cantado pelos poetas, ou representado no teatro, naquele instante, a cidade (e seu regimento sociocultural) era submetida aos questionamentos, através de debates comunitários se fazia contestações aos seus valores fundamentais.4 Já os “pós-socráticos” empenharam-se e afastar tomar 3 Ver PLATÃO. A República. Edição Eletrônica. Disponível em:http://www.eniopadilha.com.br/ documentos/Platao_A_Republica.pdf.,p.85. 4 Segundo Vernant, os gregos dedicavam com o máximo cuidado a repertoriar e a fixar seu patrimônio lendário herdado, mas também de questioná-lo, muitas vezes, “de maneira às vezes radical, apresentando com clareza o problema da verdade - ou da falsidade - do mito. Nesse plano, as soluções são diversas: desde a rejeição, a denegação pura e simples, até as múltiplas formas de interpretação que permitem"salvar" o mito substituindo a leitura banal por uma hermenêutica erudita que revela, sob a trama da narração, um ensinamento secreto análogo, por trás do disfarce da fábula, às verdades fundamentais cujo conhecimento, privilégio do sábio, abre a única via de acesso ao divino, Mas, quer recolham preciosamente seus mitos, quer os interpretem, critiquem-nos ou rejeitem-nos em nome de outro tipo de saber, mais verídico, os antigos continuam a reconhecer neles o papel intelectual que lhes era comumente atribuído, na Grécia das cidades-Estado, como instrumento de informação sobre o mundo do além.” Thalles Valente de Paiva; Ana Clara Valente de Paiva | 37 distâncias dos mitos, seria a virada do saber ao conhecimento (Razão), o gesto revolucionário do vir a ser das ciências, o nascimento da filosofia. A tradição socrática, platônica e aristotélica, são semeadas na era medieval, de lá para os modernos, temos uma adequação de mediação da memória à história. Com a historiografia moderna, é o historiador que é o novo guardião da memória, sua lógica formal (ou em outros casos, a dialética) não prioriza mais meras aparências, ou partilha de uma sabedoria comunitária do passado (doxa), mas o entendimento (episteme) do passado. 2 Memória vs história No vir a ser da historiografia contemporânea (grosso modo, 1980), a memória e a história tornam-se “rivais”. No entanto, esse antagonismo não é “reconhecido” por uma tensionalidade equivalente, na verdade, a história é a legisladora e a mediadora desse jogo, no fim, ela sempre vence. A vitória está do lado dela, porque ela é dona das metodologias da memória, seus regimes de verdade produzem memória, e não existe o contrário. Não há o contrário, defende Pierre Nora (1993), pois toda memória coletiva passa pelo filtro da história: é impossível a escapatória da memória das ferramentas historiográficas. A história tem o arbítrio, porque nela está relegado a uma exterioridade puramente exterior, ela é um receptáculo puramente vazio que tem a capacidade de armazenar a memória vívida. A disciplina histórica encarna, alega Halbwachs, um “saber abstrato” indispensável para restituir o passado fora da dimensão do vivido. A memória é espontaneamente ingênua, não crítica – apenas a história que é potencialmente iconoclasta, a história, argumenta o francês, é a unicidade, Para mais ver Vemant, Jean-Plerre, 1914-Mito e religião na Grécia antiga / Jean-Pierre Vemant; tradução Joana Angélica D'Avila Melo. - São Paulo: WMF Martins Fontes, 2006, p. 19 a 20. 38 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II é afirmação do Um: “A história é uma e só se pode dizer que só existe uma história (HALBAWCHS, 1997, p. 120 apud DOSSE,2003, p.281)”. Podemos dizer que, como disserta Seixas (2001), Nora “apropriou- se” da oposição entre memória individual e memória coletiva, e, principalmente, entre a memória coletiva e história de Halbwachs. A memória coletiva é espontânea, desinteressada e seletiva, guardando apenas o útil no elo entre passado e presente, ao contrário da história, assegura Halbwachs, que constituí um processo político, ou seja, manipulador. A memória coletiva por ser oral e afetiva, esquece das inúmeras narrativas do passado; enquanto a história analisa o rastros e sua rede causalidades, organizando e sistematizando (por ser escrita) as diferenças e lacunas numa totalidade (SEIXAS, 2001, p.40). Indo além da espontaneidade da memória, observou-se nas virtualidades espectrais de seus antecedentes, fragmentos relevantes aos interesses políticos do presente. Na procura de “resgatar” seus rastros preponderantes e regulares, ou periféricos e marginalizados, a memória é reconhecida à política tanto nas suas retomadas, como nas reconstruções (de maneira ativa e engajada) do passado. Na luta pela memória, os grupos hegemônicos conservam-se somente as memórias que sirvam à positividade da perpetuação de seus poderes; enquanto grupos periféricos e heterogêneos, aprendem o mundo presente e lutam pelo reconhecimento de seus direitos eidentidades. No atrito entre a memória poder e contra(poder), as disputas se restringem na gestão da memória, na sua expressão no consentimento social e cultural (naquilo que deve ou não ser guardado, lembrando, arquivado etc.). Sendo assim, a memória potencializa-se nas crises, nas lutas políticas, ou melhor, nas rupturas históricas – sempre estando a serviço da história. Neste segmento, podemos entender a assertiva de Nora (1993) que, toda memória já não é memória, mas história. Abolindo a Thalles Valente de Paiva; Ana Clara Valente de Paiva | 39 dicotomia entre memória coletiva e história, o historiador assegura que elas são próximas demais, as duas atuam de forma interessada – a memória, em seu conteúdo, identifica-se com a história. Ao esquecimento, do mesmo modo, só é possível observá-lo pela ótica histórica, na investigação das identidades passadas, pela via de um critério utilitário político. Toda memória, “individual”, “coletiva”, e “histórica” é, portanto, reconhecida pela mediação política e demandada pelas realizações históricas. Assim, presenciamos nos dias de hoje, assevera Nora (1993), o fim das “sociedades-memórias”, fala-se tanto da memória, justamente por ela não existir mais. Analisemos a memória registradora destacada pelo historiador, aquela que delega ao arquivo o cuidado de se lembrar por ela, controlando os registros do passado. Reforma-se o passado pelo poder da materialidade dos inúmeros registros guardados – é a expressão pura da memória em sua materialidade: das relíquias aos monumentos, símbolos e rituais, datas e comemorações e uma infinidade de documentos (bio)bibliográficos. Assenhoreou-se uma memória historicizada, seletou-se seus traços à história – até mesmo os esquecimentos passam pelos dispositivos da história. Se toda memória, alega Nora (1993), é historicizada, logo, salvaguardar que todas as “identidades” da memória passam pelo crivo utilitarista da história (isto é, seja individual ou coletiva é histórica), não é perder de vista as contradições do Real? De outro modo, o que restaria das memórias negadas, recalcadas, pelos antagonismos etc., seriam estas mediadas ou silenciadas em sua totalidade aos lugares da memória, ou pelo reconhecimento do historiador? A “previsibilidade” não descaracteriza a linguagem da memória e o seu valor negativo ao regimento simbólico da história? Poderia existir uma gestão pura da 40 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II memória? E será que a memória está realmente dominada pelos procedimentos historiográficos? Sobre estas questões, por vezes, a ajuda da literatura se faz necessária. No que se refere à memória registradora (dominada pelo lugar simbólico), podemos pensarmos juntos com A biblioteca de babel, de José Luis Borges (1999). Lá é descrito como o lugar que dispõe de uma quantidade quase infinita de conteúdos memoriais. Alegam, os viajantes que estiveram na biblioteca: “Não há, na vasta Biblioteca, dois livros idênticos (BORGES, 1999, p.40).” Aliás, eles afirmam que existe um catálogo fiel com os nomes dos livros e suas localidades. Há também milhares e milhares de catálogos falsos, até mesmo as demonstrações das falácias desses catálogos (Idem, p.40). A organização dos livros é extremamente organizada, e seus guias de localização são extremamente sofisticados. Os rumores nos dizem que há excepcionais funcionários, peritos nas lógicas catalográficas. Um bibliotecário experiente está ciente e, também, está cansado de organizar e criar catálogos de história que mencionam a si mesmo em uma lista extensa de outros catálogos, obviamente, organizados para facilitar a pesquisa de Todos os livros de história da humanidade. No entanto, já que essa biblioteca tem uma infinidade de livros catalogados, imaginemos que existe um dilema: um catálogo de todos os catálogos que não incluíam a si mesmos como verbetes. O bibliotecário está tentando criar um catálogo que não faz nenhuma menção de si na capa, ou seja, um catálogo que não íncluísse seu próprio título na lista que fornece de outros catálogos. Neste caso, esse funcionário deveria incluir o título do catálogo que está fazendo em seu próprio catálogo? Se ele decidir não incluí-lo, o catálogo será um catálogo que não contém a si mesmo como verbete e, portanto, deveria ser incluído. Se, em contrapartida, ele decidir incluí-lo, então, ele será um catálogo que inclui a si mesmo como verbete e que, consequentemente, não Thalles Valente de Paiva; Ana Clara Valente de Paiva | 41 deveria ser incluído. O que o elaborador do catálogo deve fazer? Diante dessa aporia, de que maneira o bibliotecário organizaria os catálogos? Ou melhor, seria possível, no fim, o controle Total desse registro?5 Ora, não teríamos, aqui, algo que escapa do controle Total da biblioteca? O mesmo não poderia acontecer com a história ao organizar a memória? Já que, aqui, não temos uma instância cuja a infalibilidade é um receptáculo vazio de captura completa, defendida por Halbwachs, ou a mediação total da história à memória (regulação do simbólico ao imaginário). Pelo contrário, o status do catálogo de todos os catálogos que não incluem a si mesmos permanece essencialmente uma aporia. A mediação sempre deixa um resto não-simbolizado, algo sempre escapa à simbolização. O movimento da memória (tanto à voluntária, como à involuntária) não é, da mesma maneira dos catálogos? Repleto de paradoxos, acasos, metonímias, não-cronológico, cheios de contrariedades e contradições? Se a memória é cheia de furos e impasses, de jogos e brincadeiras, não é pela razão de ser negativa aos “filtros da história”? Aqui, deveríamos ir para um “ponto vista” radicalmente distinto ao de Halbwachs: não é apenas porque o “filtro da história” fracasse em sua tentativa de capturar a memória em sua totalidade, mas porque este (assim como a memória) é composto por uma falta. Quem sabe, o “filtro da história” na sua tentativa pretensiosa, não seria o como o célebre paradoxo de Aquiles tentando em vão pegar a tartaruga (ou Heitor)? Esse paradoxo se concerne à seguinte passagem da Ilíada: 5 O paradoxo catálogo é de Bertrand Russell, em Alfred North Whitehead, Principia Mathematica, vol. 1 (Cambridge: Cambridge UniversityPress, 1910) apud FINK, Bruce, 1956 – O sujeito lacaniano; entre a linguagem e o gozo/Bruce Fink; tradução de Maria de Lourdes Sette Câmara; consultoria Mirian Aparecida Nogueira Lima. - Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p.50 42 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II Tal como, no sonho, um homem não consegue perseguir um fugitivo, e nem este por sua vez consegue escapar-lhe nem o outro alcançá-lo, nem pode Aquiles, nesse dia, alcançar Heitor na corrida, nem pode Heitor escapar-lhe (XXII, v. 199-200. apud ŽIŽEK,1989,p.21). Ao pressupormos, assim, uma memória que une-se à história, estaríamos em uma relação idêntica à do sujeito que tenta a todo custo se unir com o objeto, de maneira parecida, como, lembra Žižek (1989), aquelas cenas de sonhos em que nos aproximamos continuamente de um objeto que, contudo, sempre mantém à distância de nós. O objeto é inacessível, não porque Aquiles não pode agilizar-se à tartaruga – é possível deixá-la para trás –, mas porque ele não pode unir-se com ela. Porventura, a unicidade da memória à história, defendida por Halbwachs e Nora, não compadeceria de uma relação de um desejo unitário – aquilo que sempre tentamos pegar, mas sempre escapa por entre as mãos? Aqui, seria interessante caminharmos juntos com a psicanálise (visto que a memória é um dos temas centrais na análise). Lacan salientou que a união com objeto, tem um certo limite de falta, situado em um cedo demais e tarde demais, justamente, porque a linguagem (simbólico) é furada. Nestes dois paradoxos, que apresentamos aqui, temos o cortedo Real ao simbólico6, isto é, no status simbólico sempre aparece uma exceção à lógica, um imprevisto, uma aporia – justamente por existir cadeias que não cessam de se inscrever, dada a negatividade do Real. O signo tenta, mas nunca se une ao seu objeto (por isso Aquiles nunca se unirá à tartaruga). 6Lacan conceitua um real antes da letra, i.e., o real pré-simbólico, o R1, o real de segunda ordem é o após a letra, R2, que é caracterizado por impasses e impossibilidades, paradoxos devido às relações entre os elementos da ordem simbólica em si, esses impasses ao signo vem negatividade radical do Real. Para mais: FINK, Bruce, 1956 – O sujeito lacaniano; entre a linguagem e o gozo/Bruce Fink; tradução de Maria de Lourdes Sette Câmara; consultoria Mirian Aparecida Nogueira Lima. - Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. Thalles Valente de Paiva; Ana Clara Valente de Paiva | 43 Por esta perspectiva, nos perguntamos sobre a tensão entre memória e história: primeiro, a memória como uma entidade abstrata (imaginário), segundo, a história, como aquilo que descreve as causalidades do passado em uma narrativa cronológica, lógica e coesa (simbólico). Talvez, deveríamos refletir que, na tentativa de dar historicidade à memória, a história “captura” uma parte da memória (contrariando os posicionamentos de Halbwachs e Nora) retroagindo seu significado que, no entanto, acaba por deixar um resto. E o resto, o que faremos com ele? O que fazemos com essa coisa não-simbolizada? 3 Entre a memória voluntária e involuntária, a resposta do Real Existem certas situações que, espontaneamente, nos é revelado fragmentos esquecidos (não-simbolizados) por meio de afetação que relampejam memórias provocadas por um cheiro, ou como Marcel Proust (2006), Em busca do tempo perdido, sabores “encontrados em algumas circunstâncias totalmente diferentes, despertam em nós, à nossa revelia, o passado, passamos a sentir o quanto este passado era diferente daquilo que acreditávamos (PROUST, 2006,p. 255)”. Para ele, oposto a grande parte da historiografia, à memória involuntária é a memória “verdadeira”: ela sempre rompe com o hábito e não se limita simplesmente a descrever o passado (como a voluntária), mas o de romper e atravessar obstáculos e pintar à vida; contrário da memória voluntária, que pinta como os maus pintores, pincelando cores sem realidade. Juntos com Proust, podemos supor a seguinte pergunta: será que a história faria maus usos, ou más escolhas das cores das memórias? Seixas (2004), pressupõe que sim. Para a historiadora, existe uma eleição historiográfica da memória voluntária que desqualifica a memória involuntária, restando à segunda o signo da irracionalidade, o avesso à história (SEIXAS, 2001, p.48). A história não estaria preocupada com as 44 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II afetações estéticas da memória, ou melhor, as sensibilidades são apenas “reconhecidas” nos seus rastros de inteligibilidades. Sabemos que existe uma diferença gritante entre uma memória reconstruída pelos “filtros históricos”, e a reconstrução do passado pela memória involuntária (Idem, p.48). No entanto, o caráter ético da história, seu poder de “resgatar” as memórias dos vencidos, e, pelo entendimento histórico, transcrever as memórias dos exilados da história tradicional, concerne-se apenas a memória voluntária, não restando nada à ação da memória involuntária. Na bela passagem de O tempo recuperado, podemos supor o porquê da história rechaçar a memória involuntária: Como em geral se faz, a desenhar as feições de uma transeunte um mesmo rosto - segundo descreve o homem como se tivesse o erro fosse mais primário, e continuar, quando em lugar do nariz, apenas um espaço vazio, onde no máximo se faz um queixo, deveria existir a não ser que tivesse tempo de preparar na coisa já bem refletiriam nossos desejos. E até sem empregar a importante, as cem máscaras vêem e lêem as feições, ou, para o sentido dado aos olhos que por medo, ou, pelo contrário, o amor e o mesmos olhos, conforme espera as mudanças operadas por hábito, graças aos quais se escondem aquilo cuja falta (como todavia a idade e anos, mesmo se, por fim, não empreende me demonstrar) Se a memória voluntária preocupa-se em preencher as lacunas, por outro lado, a memória involuntária relaciona-se com a lacuna. O vazio é reconhecido como um espaço contingente, radical de potencialidades à criação. A história, deste modo, se interessa pela memória voluntária justamente pelo seu conteúdo sintético, isto é, onde existe o vazio, a memória voluntária preenche pelo entendimento, colocando os objetos faltantes no seu “devido” lugar; a memória involuntária, ao contrário, é simplesmente um jogo formal, as suas ressignificações surgem de acordo com as afetações em contraste com os entraves de determinadas situações. Thalles Valente de Paiva; Ana Clara Valente de Paiva | 45 “O que a memória voluntária deixa escapar?” – Pergunta Seixas (2001)? “Toda a dimensão afetiva e descontínua da vida e das ações dos homens (SEIXAS, 2001, p.47).” Disto, poderíamos supor que Seixas(2001) faria o uso da memória involuntária como um regimento subversivo infrarracional? Isto é, fundamentada no modo como o sujeito enfrenta as ameaças aos seus interesses vitais (a vida em contraste à mediação simbólica)? Portanto, a vida vem em primeiro, e não o seu significado – a mediação simbólica. A metáfora das três metamorfoses do espírito (camelo, leão e criança), em Assim falou Zaratustra, é interessante para entendermos os apontamentos da historiadora. Contrária a servidão e a obsessão simbólica do camelo, e a rebeldia à mediação simbólica do leão, a criança é um espírito leve, pois ela engaja-se junto às afetações, ao jogo da criação e dos instintos que privilegiam a vida. Certa vez, crianças brincavam com suas conchas junto ao mar. Mas o imprevisto as acometeu, a onda tragou seus brinquedos e os levou para o fundo. As pobres crianças choraram. Mais uma vez uma outra onda que, para surpresas delas, retorna-lhes trazendo novos brinquedos, lançando à sua frente novas conchas coloridas. As crianças, todas eufóricas, rapidamente esquecem daquilo que perderam e se divertem com o novo(NIETZSCHE,2018, p.91). Se a memória voluntária, ao serviço do entendimento histórico, acaba por mediar as rupturas e os acasos da vida ao regimento de abstrações que a seduzem ao ciclo ruminante do passado, a memória involuntária se preocupa em refazer seu passado, a lacuna Real do objeto passado não é vista como algo para se recuperar, mas vista como uma abertura à criação. Somos tentados a supor, a imaginar um diálogo, ou melhor uma personificação aos moldes subversivos de Seixas (2001). “Vamos dar vozes às memórias excluídas da história?” – Pergunta a memória, não esperando obter resposta. “Sim!” – Diz a historiografia, confiante. “Então, o que 46 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II faremos?” – Indaga a memória, em tom esperançoso. “Ora, compilaremos uma vastidão de documentos e recolheremos os seus rastros memorialísticos os tecendo com as melhores narrativas! Faremos um mausoléu escriturário para que seus espíritos finalmente descansarem em paz!” – Reponde a história, tendo certeza que fará o bem. Indignada responde a memória: “– Entretanto, e as memórias que circulam junto aos vivos excluídos!? Esperaremos a morte de seus desejos, que eles se tornam ruínas, para que, finalmente, possamos criar seus mausoléus!?” Se a memória voluntária (mediada pela história) preocupa-se em recuperar para criar uma abstração de passado, a memória involuntária “recria o real; neste sentido, é a própria realidade que se forma na (e pela) memória (SEIXAS,2001, p.51).” Olhando por este prisma, a frase de Proust (2016) faz ainda mais sentido: “se nossa vida é errante,a memória é sedentária (PROUST,2016, p.2993)”. Podemos supor que para Seixas (2001) que, de Proust a Nietzsche, o excesso de memória voluntária, (ou que Nietzsche (2003) chama de “memória conhecimento”) resulta em um cansaço à vida. O que cura esse sintoma (os excessos das informações e do conhecimento) é exercitar a “faculdade de esquecer”, não como uma lobotomia, mas o de criar um estado tranquilo à consciência: “transformando e incorporando o que é estranho e passado, curando feridas, restabelecendo o perdido, reconstituindo por si mesma as formas partidas (NIETZSCHE, 2003, p.9)”. Se certa parte da historiografia, negou as potencialidades transformativas da memória involuntária, do outro lado, os pós- estruturalistas históricos não avaliam as possibilidades que o conhecimento também tem sua potencialidade emancipatória. Dos princípios, apolíneo (mediação simbólica) e o dionisíaco (páthos), como aludiu Eagleton(2013), os pós-estruturalistas inclinam-se mais ao segundo, a essa radicalidade patológica que fere o simbólico, que Thalles Valente de Paiva; Ana Clara Valente de Paiva | 47 desestrutura a normatividade. As vertentes pós-modernas, grosso modo, estão mais preocupadas com a desarticulação da estética ao conhecimento com seu excesso de elemento dionisíaco que nunca é suprassumido. No entanto, esse excesso afetivo da memória, destacado por Seixas(2001), descaracterizado por certa parte da historiografia dada ingenuidade, ou irracionalidade da memória, não se restringe apenas pelas sensibilidades estéticas, mas por algo ainda mais radical, próprio da linguagem, da relação entre subjetividade e linguagem. A plasticidade da memória involuntária, se deve por ela ser mais do que ela mesma, como um objeto estranho autônomo, sem ter um corpo próprio e específico, ela aparece e some como um vulto e fugindo de nosso controle, e, quanto mais próximo dela, mais angustiados ficamos. O poder dessa verdade é explícita no capítulo I (O caminho de Guermantes), Em busca do tempo perdido, na cena que a personagem Marcel lembra como foi a conversa com sua avó, pela primeira vez usando o telefone: […] minha avó conversava comigo, o que ela me dizia eu sempre o acompanhara na partitura aberta de seu rosto, onde os olhos ocupavam enorme espaço; mas sua própria voz, escutava-a hoje pela primeira vez. E porque essa voz me surgia mudada em suas proporções desde o instante em que era um todo, e assim me chegava sozinha e sem o acompanhamento das feições do rosto, descobri quanto era doce aquela voz; talvez mesmo nunca o tivesse sido a esse ponto, pois minha avó, sentindo-me distante e infeliz, julgava poder abandonar-se à efusão de uma ternura que, por “princípios” de educação, ela habitualmente recalcava e escondia. A voz era doce, mas também como era triste, primeiro devido à própria doçura, quase filtrada, mais do que nunca o seriam algumas vozes humanas, de toda dureza, de todo elemento de resistência aos outros, de todo egoísmo; frágil à força de delicadeza, parecia a todo instante prestes a quebrar-se, a expirar em um puro correr de lágrimas; em seguida, tendo-a sozinha comigo, vista sem a máscara do rosto, nela 48 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II reparava, pela primeira vez, os desgostos que a tinham marcado no decurso da vida (PROUST, 2016, p.1111). Quando ele se lembra desse objeto, que volta como parcial, a Voz da avó aparece como um objeto autônomo, é como se aquela Voz não pertencesse mais aquele seu velho corpo, aquela identidade que ele postulou a ela, é como se ela (a Voz) estivesse “sozinha comigo, vista sem a máscara do rosto”. A subtração dessa memória retira certas características da realidade ordinária e retorna como um espectro não- morto, assombrando o homem: Eu gritava “Vovó, vovó”, e desejaria beijá-la; mas perto de mim só tinha aquela voz, fantasma tão impalpável como o que talvez viesse me visitar quando minha avó morresse. “Fale comigo”; mas aconteceu então que, deixando-me mais só ainda, deixei subitamente de perceber aquela voz. Minha avó já não me ouvia, não estava mais em comunicação comigo, tínhamos deixado de estar em face um do outro, de ser audíveis um para o outro, eu continuava a interpelá-la, tateando na noite, sentindo que os apelos dela também deveriam ter-se extraviado (PROUST, 2016, p. 1112). Paradoxalmente, temos o retorno de um objeto que sinaliza a distância do passado (a sua avó não está com ele) e igualmente sinaliza uma virtualidade excessivamente próxima, que é mais real do que ter sua avó materialmente presente: Presença real a dessa voz tão próxima — na separação efetiva! Mas também antecipação de uma separação eterna! Com muita frequência, escutando desse modo, sem ver quem me falava de tão longe, pareceu-me que essa voz clamava das profundezas de onde não se sobe, e conheci a ansiedade que ia me estreitar um dia, quando uma voz voltasse assim (sozinha e já não presa a um corpo que eu não devia rever nunca mais) a cochichar no meu ouvido palavras que eu gostaria de beijar de passagem sobre lábios para sempre em pó (PROUST, 2016, p. 1110 a 1111). Thalles Valente de Paiva; Ana Clara Valente de Paiva | 49 Aqui, novamente, a psicanálise lacaniana se faz necessária. A ansiedade que a personagem sentiu em seu contato “direto” com objeto, não é simplesmente por tê-lo perdido, ao contrário, a angústia é uma afetação de estar próximo demais do objeto. Como disse Žižek (2012), a angústia surge quando objeto a (o mais gozar7) surge diretamente na realidade. Quando somos invadidos por esse objeto fantasmático, a realidade deixa de ser ela mesma (ŽIŽEK,2012,p.387). Agora podemos entender a razão de Seixas (2001) sinalizar a importância da memória involuntária como mais “verdadeira” que a memória voluntária, justamente, porque ela não constrói de maneira mediata, mas de maneira imediata o passado. O passado não é mais uma entidade abstrata morta, reconstituída e tecida e guardada pela narrativa histórica, mas uma coisa paradoxal que se apresenta diretamente na forma de um Real aterrador – uma coisa paradoxal que demanda redenção. Como em Hamlet, de Shakespeare, o Rei “retorna” dos mortos para o mundo dos vivos, como um espírito aterrador demandando que seu filho (Hamlet) reconheça a verdade e redima o passado. Este é o caráter paradoxal da memória involuntária, e seu resto não-simbolizado que a historiografia ainda não ressignificou, que, no entanto, sempre deveríamos atentar a este resto, pois ele dispõe de uma verdade necessária. Todavia, devemos observar algo de suma importância: para que essa verdade apareça, deve existir um conteúdo anterior simbolizado. De outra 7 O objeto a é um status é puramente fantasístico. Como disse Žižek (2010), “Jacques Lacan, O Seminário, livro u, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, Rio de janeiro, Zahar, 1985, p.86. Aqui está um caso de como ler Lacan, deveríamos passar de um seminário para o écrit correspondente - o ecnt que corresponde ao Seminário XI é "Posição do inconsciente" que contém uma formulação muito densa, mas também muito precisa: do mito da "lameia". L'Objet petit a (o objeto a, onde "a" representa "o outro, o objeto pequeno outro" - segundo o desejo de Lacan, muitas vezes a expressão não é traduzida) é um neologismo de Lacan com múltiplos significados. Principalmente, designa o objeto- causa de desejo: não diretamente o objeto de desejo, mas aquilo que, no objeto que desejamos, faz com que o desejemos (ŽIŽEK, 2010, p.78).” Por exemplo, quando estamos diante de um objeto ou de uma pessoa que aparenta ter algo a mais do que ela mesma, uma aura enigmática (como a voz da avó de Marcel). 50 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II maneira, para que a memória involuntária transpareça sua verdade, deve haver um conteúdo quea significou anteriormente, o objeto para que uma nova forma rompa seu antigo significado antigo, trazendo aquilo que o simbólico tentou capturar em sua completude que, no entanto, “fracassou”. Pela memória voluntária a personagem de Proust (2016), tem certeza da identidade de sua avó, mas quando ele conversa com ela pelo telefone, o conteúdo que ele tinha de sua identidade não contempla os excessos da forma da Voz da avó, a algo nela mais do que ela mesmo (o objeto a). A memória involuntária retroage novos significados, afetações que antes o simbólico não havia mediado. No fundo isso é uma lacuna entre forma e conteúdo. Por isso que deveríamos, segundo Žižek (2013), prestarmos atenção que a forma sinaliza aquela parte do conteúdo que foi excluída da linha narrativa explícita, ou seja, “se quisermos reconstruir “todo” o conteúdo narrativo, devemos ir além do conteúdo narrativo explícito como tal e incluir aquelas características formais que agem como substitutas do aspecto “reprimido” do conteúdo (ŽIŽEK, 2013,p.174).” 4 Do Real à redenção Da repressão do conteúdo e seu resto ainda não-simbolizado, Gagnebin (20108) rememora os mortos da ditadura militar brasileira que continuam presos aos dispositivos de esquecimentos forçados, corpos que não foram sepultados e os espíritos que ainda não foram reconciliados. Não sabemos suas histórias, ou como morreram, nem mesmo onde estão os seus restos – só nos resta o seu vazio. De maneira ética, a filósofa nos diz que precisamos enterrar os nossos mortos, pois os mortos não sepultados atormentaram o mundo dos vivos, “de maneira dolorosa seus herdeiros e descendentes, mas também e sem dúvida seus algozes 8GAGNEBIN, Jeanne Marie. O preço de uma reconciliação extorquida. Em O que resta da ditadura : a exceção brasileira / Edson Teles e Vladimir Safatle (Orgs.). - São Paulo: Boitempo, 2010. Thalles Valente de Paiva; Ana Clara Valente de Paiva | 51 passados, que, mesmo quando afirmam não se arrepender, reagem com tamanha violência e rapidez quando se alude ao passado (GAGNEBIN, 2010, p.185).” Para este sepultamento, Gagnebin retoma Michel de Certeau (1984), e a sua tumba escriturária, a escrita é um “rito de sepultamento”, “que pode ser interpretado, de maneira clássica, como expressão da vontade humana de honrar a memória dos mortos, de respeitar os antepassados, de opor à fragilidade da existência singular a esperança de sua conservação na memória dos vivos (GAGNEBIN, 2010,p.184).” O rito de sepultamento marca o processo de luto social, demarcando o mundo dos vivos e dos mortos para impedir que espectros obscenos retornem ao mundo dos vivos, para que os vivos vivam suas vidas. Disserta Certeau(1982). […] no sentido etnológico e quase religioso do termo, a escrita representa o papel de um rito de sepultamento; ela exorciza a morte introduzindo-a no discurso. Por outro lado, tem uma função simbolizadora; permite a uma sociedade situar-se, dando-lhe, na linguagem, um passado, e abrindo assim um espaço próprio para o presente: "marcar" um passado, é dar um lugar à morte, mas também redistribuir o espaço das possibilidades, determinar negativamente aquilo que está por fazer e, conseqüentemente, utilizar a narratividade, que enterra os mortos, como um meio de estabelecer um lugar para os vivos (CERTEAU, 1982,p.104). Será que somente a escrita da história é suficiente para suprassumir esse resto, o espectro obsceno do passado? É claro que a escrita é importante, ela que demarca o reconhecimento do morto ao sujeito, o passado torna-se “reconhecido” ao presente. Todavia, ela cria um conteúdo de laço, isto é, seu ato é uma prática de laçar o objeto morto, o passado. Aqui, devemos estarmos atentos aos apontamentos de Certeau (1982), se por um lado a historiografia cria um laço “ficcional”: “A historiografia (quer dizer "história" e "escrita") traz inscrito no próprio 52 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II nome o paradoxo – e quase o oximoron – do relacionamento de dois termos antinômicos: o real e o discurso. Ela tem a tarefa de articulá-los e, onde este laço não é pensável, fazer como se os articulasse (Idem, p.6).”; por outro, o fazer como se articulasse, é nomear o espectro na linguagem, mas nunca se captura esse real de maneira completa, pois: […] falar dos mortos é também negar a morte e, quase, desafiá-la. Igualmente diz-se que a história os "ressuscita". Esta palavra é um engodo: ela não ressuscita nada. Mas evoca a função outorgada a uma disciplina que trata a morte como um objeto do saber e, fazendo isto, dá lugar à produção de uma troca entre vivos. (…) Esta é a história. Um jogo da vida e da morte prossegue no calmo desdobramento de um relato, ressurgência e denegação da origem, desvelamento de um passado morto e resultado de uma prática presente (CERTEAU, 1982, p.53). Se a história é uma prática do presente ao passado, isto quer dizer que o morto nunca ficará satisfeito sobre o que se diz a respeito de seu nome. As escritas científicas tentam acalmar esta estranha fantasmagoria, oferecendo-lhe túmulos escriturários, mas esses nunca são suficientes para acalmá-lo, sempre falta alguma coisa para escrita. No entanto, da lacuna entre forma e conteúdo (o furo na linguagem) é que faz a escrita movimentar, a necessidade do ofício do historiador. Dessa lacuna, devemos nos atentar na forma e conteúdo da memória e da história. Se por um lado, a história (com a memória voluntária) cria um conteúdo ao passado (uma tumba escriturária), a memória involuntária atua na forma do Real, sinalizando aquilo que conteúdo, que a tumba não mediou, recalcou, excluiu de sua narrativa. Necessitaríamos de olhar a lacuna, não como um “fracasso” completo, como se objeto não pudesse ser entendido em sua razão, mas como um processo “em si” da linguagem. Dos “fracassos” da simbolização, naquilo que ainda não foi Thalles Valente de Paiva; Ana Clara Valente de Paiva | 53 significado, podemos criar novas significações, dar um novo sentido. Se recuarmos dessa tarefa, como disse Lacan (1985), aquilo que não é assumido, ressignificado, simbolizado pelo sujeito retorna no Real (LACAN, 1985, p.20). Aqui é possível entender o apreço de Certeau de significar o passado como uma prática (participante ativo dos Seminários de Lacan) de purificação dos espectros dos passados. Mas essa purificação pode ser lida de forma ainda mais radical, não somente como escrita, mas como ação política. O espectro subversivo da memória involuntária, quem sabe, não seria tal e qual como um misterioso passado descontínuo que requisita uma forma de continuidade, o índice do passado misterioso (mais do que ele mesmo) que incita à redenção? Benjamin (2005), em Sobre o conceito de história, pode nos ajudar a pensar o poder da memória. O filósofo pergunta (Tese II), “Não nos afaga, pois, levemente um sopro de ar que envolveu os que nos precederam? (BENJAMIN,2005,p.48)?” Os desejos dos mortos dos excluídos que estão nos escombros (ou nos lugares de memória), bastaria um instante para ressoar novamente suas mensagens passadas quão um trovão que estraleja no soturno céu tempestuoso. Suas vozes se ascendem e se apagam, quão um objeto que atua de maneira “autônoma e parcial” na realidade (Tese V): “uma imagem célebre e furtiva, visível apenas no tempo de um relâmpago (Idem, p.64)”. Se sempre escapa algo da história em seu processo de significação, ela sempre acaba por deixa um resto não significado na realidade, uma voz que ainda não adentrou ao corpo da linguagem, daí a sequência(Tese II): “Não ressoa nas vozes a que damos ouvido um eco das que estão, agora, caladas (Idem, p.48)?” Aqui, não estamos caindo em tentações fatalistas, a memória não seria apenas uma apresentação melancólica de um passado dos derrotados (ou apenas sepultadas em tubas escriturárias),mas, também, de potência, sublimando com seu poder subversivo para as aberturas do presente. É 54 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II óbvio que nas derrotas das vozes excluídas, uma vez nas ruínas, sua revelação pode aparecer, inicialmente, como um signo de melancolia. Freud (2011) postulou que a melancolia é uma fixação de um passado derrotado que, no entanto, poderia ser diferente. Assim, para nos livrarmos dessa fixação melancólica desse outro que se foi, seria necessário passar pelo trabalho do luto. O luto não é uma simples substituição que equivaleria a um estatuto intercambiável, ou seja, a perda do objeto amado não é complementada pelo câmbio de um objeto substituto. Em geral, descreveu Freud, “se observa que o homem não abandona de bom grado uma posição da libido, nem mesmo quando um substituto já se lhe acena (FREUD, 2011,p.29)”. Nos resta, a princípio, o desamparo, a perda do objeto amado não pode ser revertida. Se tentarmos negar nosso afeto ao objeto amado perdido, tentando de todas as formas forçar esquecimento seria elevar, destaca Safatle(2015), “a lobotomia a ideal de vida (SAFATLE,2015,p.125)”. Não é necessário substituições, ou esquecimentos forçados, o amor ao objeto perdido permanecerá. A operação de lidar com o desamparo, o seu trabalho de luto, seria como um processo de sublimação: um trabalho da memória, uma forma de existência, entre presença e a ausência, permanência e duração. Uma existência espectral, que anima o mundo dos vivos, como forças ressonantes que dão vida ao presente, os objetos mortos pulsam no presente tomando outras formas, apossando-se de objetos em uma metamorfose contínua. A transformação social, evidentemente, é uma política da memória, mas, aqui, é diferente da ligação direta com a mediação histórica de Nora, a redenção da memória benjaminiana não seria descrever os fatos como eles realmente foram, os acontecimentos que geraram ilusões, ou a simplesmente a exclusão dos sonhos perdidos na história; a tarefa é, antes de tudo, reconstruir as potencialidades dos sonhos ocultos nos escombros Thalles Valente de Paiva; Ana Clara Valente de Paiva | 55 da história. A memória ligada à prática, é revolucionária, pois insiste que os vultos espectrais que perambulam como objetos parciais assombrando o presente, exigem uma redenção, uma significação para que finalmente possam descansar, não somente nas tumbas escriturárias, mas como agentes transformadores na realidade. 5 Considerações finais O poder da memória, em Benjamin, portanto, não é uma construção acumulativa de fatos, e tecida por um tempo linear, sendo uma cronologia insossa, ou “como mero instrumento a serviço da vontade de acumulação (GAGNEBIN, 2013, p.21)”. O excesso de fatos pelos fatos, estagnam as potencialidades da ação. A memória involuntária, também, deveria ser entendida como memória ação, uma intensidade à inovação, o Kairos, o instante preciso da transformação possível. Daí não teríamos mais uma memória docilizada, tal como propõe certos segmentos da historiografia, entretanto, uma iluminação recíproca de um passado para um potencial presente de transformação coletiva e individual. As Vozes Perdidas, que Benjamin tanto nos sinalizou, não seriam um pedido para eternizá-las, mas de criar imagens mais verdadeiramente frágeis, imagens involuntárias que sinalizam para promessas que não foram cumpridas (Idem, p.21). Das memórias que movimentam-se no seio social, trazendo com sigo afetações e saberes, mas, paradoxalmente, fantasmas atormentados. É necessário perante essa contradição Real, a ação de criar, dar novos sentidos e significados para essas lembranças. É óbvio que um novo significado traz consigo um esquecer, não como uma lobotomia, mas um esquecer criativo, sublimatório. Se lembrássemos de tudo, não poderíamos ir além do que nos procede. Se guardarmos tudo, seremos como o Funes, o memorioso, de José Luis Borges, o excesso de memória 56 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II “matará” a todos de congestão pulmonar (BORGES, 1999,p.57). Devemos não somente sepultar os nossos mortos em tumbas escriturárias, mas, também, utilizarmos de seus sonhos enterrados na história para criarmos um novo amanhã. Referências BENJAMIN, Walter. Aviso de incêndio: uma leitura das teses “Sobre o conceito de história” / Michael Liiwy; tradução de Wanda Nogueira Caldeira Branr, [tradução das teses] Jeanne Marie Gagnebin, Marcos Lurz Muller. - São Paulo: Boitempo, 2005. CERTEAU, Michel de: A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982. BORGES, José Luis. [1941] Biblioteca de Babel; [1942]. In: Obras Completas I (1923-1949). Rio de Janeiro: Ed. Globo, 1999. DOSSE, François. Uma história social da memória. In: A História. Bauru, SP: Edusc, 2003. EAGLETON, Terry. Doce Violência: A ideia do trágico. 1.ed. São Paulo: Editora Unesp,2013. FREUD, S. Luto e melancolia. Trad, Marilene Carone. São Paulo: Cosac Naify, 2011(versão digital LeLivros). GAGNEBIN, Jeanne Marie. O trabalho de rememoração de Penélope. In: PINHO, Amon (coord.). Despertar, Politizar, Redimir: Walter Benjamin à contracorrente das mitologias da modernidade. São Paulo: Hedra; Uberlândia: EDUFU. GAGNEBIN, Jeanne Marie. O preço de uma reconciliação extorquida. In: O que resta da ditadura: a exceção brasileira / Edson Teles e Vladimir Safatle (Orgs.). - São Paulo: Boitempo, 2010. TORRANO, José Antonio. Hesíodo Teogonia. A origem dos Deuses. Estudo e tradução. 6. ed. São Paulo: Iluminuras, 2006. Thalles Valente de Paiva; Ana Clara Valente de Paiva | 57 LACAN, Jaques. O Seminário, livro 3: As psicoses. Zahar; 2ª edição, 1985. NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Segunda consideração intempestiva: da utilidade e desvantagem da história para a vida. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003. NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra: um livro de todos e para ninguém/ Friedrich Nietzsche; tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. PROUST, Marcel. No caminho de Swann / Marcel Proust; tradução Mario Quintana; 3a ed. rev. Olgária Chaim Féres Matos; prefácio, cronologia, notas e resumo Guilherme Ignácio da Silva; posfácio Jeanne-Marie Gagnebin. — São Paulo: Globo, 2006. — (Em busca do tempo perdido; v. 1). PROUST, Marcel, 1871-1922 Em busca do tempo perdido [recurso eletrônico]: volumes 1, 2 e 3 / Marcel Proust; tradução Fernando Py. - [4. ed.]. - Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016. SAFATLE, Vladimir, Os circuitos dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do individuo/ Vladimir Safatle – 2. ed. reimp. – Belo Horizonte: Autentica Editora, 2016. SEIXAS, Jacy Alves de. “Percursos de memórias em terras de história: problemáticas atuais” In: BRESCIANI, Stella.; Naxara, Márcia [org.] Memória e (re)ressentimento – indagações sobre uma questão sensível. Campinas, SP: Ed. Unicamp, 2001. ŽIŽEK, Slavoj. O mais sublime dos histéricos: Hegel com Lacan. Trad. V. Ribeiro. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 1991. ŽIŽEK, Slavoj. Menos que nada: Hegel e a sombra do materialismo dialético. São Paulo, Boitempo, 2013. Capítulo 3 Memórias do tempo presente: as narrativas dos professores durante o ensino remoto em Rio Verde-GO Nívea Oliveira Couto de Jesus1 1 Introdução O texto trata dos estudos parciais do projeto de pesquisa: Memórias do tempo presente: as narrativas dos professores durante o ensino remoto em Rio Verde-GO, visando ampliar os estudos referentes a memória coletiva e individual e transformar os relatos experienciais e relacionais, em atos reflexivos mais críticos que propiciem um processo de construção de um caminho possível para uma nova escola e um novo professor pós pandemia. Além de contribuir para que as narrativas dos professoresdurante o ensino remoto se transformem em fontes de pesquisa e ampliem os estudos acerca das narrativas como forma de pensar e fazer ciência. Acredita-se que problematizar as relações das memórias do tempo presente com as demandas sociais, sobretudo nas pesquisas que fazem uso das fontes orais possam apontar que o futuro de certos passados pode estar sob ameaça no presente do nosso tempo. Devido à Covid-19, causada pelo novo coronavírus, o Ministério da Educação (MEC) publicou no dia 18 de março de 2020 a portaria nº 343, autorizando em caráter excepcional a substituição das aulas presenciais por aulas na modalidade a distância. Diante da mudança, estudantes, escolas, faculdades e universidades precisaram adaptar a rotina e as aulas à nova realidade, a fim de não comprometer o cronograma escolar no 1 Doutoranda em Educação PUC GOIÁS. niveacouto@hotmail.com mailto:niveacouto@hotmail.com Nívea Oliveira Couto de Jesus | 59 período de isolamento social. As escolas tiveram que se adequar à forma digital para amenizar os prejuízos relacionados ao processo de ensino aprendizagem dos estudantes. Diante disso, a reflexão das narrativas dos professores durante o ensino remoto em Rio Verde é um instrumento de suma relevância para a construção de uma pesquisa em história da educação, pautada nas memórias do tempo presente. 2 História Oral, Memória e Narrativas Os relatos orais não são práticas recentes. Eles foram utilizados, no decorrer da história, para repassarem ensinamentos, experiências e valores de geração para geração. Contudo eram práticas não sistematizadas que foram perdendo valor com o aparecimento da escrita. No século XX, com a proposição, pela historiografia francesa, da utilização de novos procedimentos metodológicos nas pesquisas históricas, iniciou- se um processo de valorização dos relatos orais. Entretanto, a história oral, como é atualmente concebida: a “moderna” história oral é uma prática recente no meio acadêmico. Começou a se estruturar e ganhar espaço em meados do século XX. Essa expansão está associada ao avanço tecnológico e à necessidade de registrar as experiências vividas pelos combatentes, por seus familiares e pelas vítimas dos conflitos da II Guerra Mundial. No Brasil a difusão da moderna história oral teve início na década de 70. Foi nessa época que se começou a dar voz aos silenciados, ou seja, àqueles que até então não tinham liberdade de expressão, como por exemplo, as comunidades negras, indígenas, as feministas, os operários, os estudantes. Até então, a utilização da história oral era voltada para as elites, era baseada em registros documentais e entrevistas de homens públicos com atuação no cenário político. 60 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II Atualmente a história oral tem dado ênfase aos fatos locais de interesse coletivo. Ela contribui para a valorização do indivíduo enquanto sujeito que age, interage e constrói a história. Segundo Meihy (2002), apesar de outros fatores terem contribuído e de ter sido um longo processo de maturação, já se tem notado uma melhoria da autoestima de comunidades que, ao participarem da história oral, passaram a se ver também como parte da história. “Sem dúvida, a definição de cidadania, em termos atuais, muito tem a ver com o reconhecimento do papel da história oral”. (MEIHY, 2002, p.91). Segundo José Carlos Sebe Bom Meihy (2011), a história oral moderna necessita, incondicionalmente, do suporte tecnológico dos meios de gravação de voz. A moderna história oral depende de recursos eletrônicos na medida em que estes se colocam como meios mecânicos para auxiliar não apenas na gravação em seu momento de realização, mas, sobretudo depois, quando se presta à fase de transposição do oral para o escrito. Uma das características mais evidentes da história oral remete à constante utilização dos meios eletrônicos usados. Aliás, sem os recursos da aparelhagem eletrônica e mecânica de nossos dias, as entrevistas dificilmente teriam alcance em projetos de moderna história oral que, por sua vez, são pensados com a presença obrigatória desses artifícios. (MEIHY; HOLANDA, 2014, p. 21). Meihy estabelece a relação da história oral com o tempo presente: “Ela é sempre uma história do tempo presente e também reconhecida como história viva” (MEIHY; HOLANDA, 2014, p.17), pois seu recorte temporal está ligado ao tempo da vida, e exposto à inconstância do que está por vir. A matéria-prima da História oral são as narrativas que sempre estiveram presentes em todas as épocas históricas. Há uma relação de dependência da História em geral com a História oral, e ambas são Nívea Oliveira Couto de Jesus | 61 alimentadas pelas Memórias, seja a Memória “oficial”, seja a Memória “subterrânea” e/ou “marginalizada”, sendo estas últimas “[...] que prosseguem seu trabalho de subversão no silêncio e de maneira quase imperceptível” e que “[...] afloram em momentos de crise em sobressaltos bruscos e exacerbados” (POLLAK, 1989, p. 3; 15). Refletindo acerca do conceito de memória, entendemos este como inerente à capacidade humana, pois, lida com experiências, sociais e individuais, que podem ser (re)transmitidas para diversos sujeitos históricos. Para Thomson (1998, p. 57): (...) a memória “gira em torno da relação passado-presente, e envolve um processo contínuo de reconstrução e transformação das experiências relembradas”, em função das mudanças nos relatos públicos sobre o passado. Que memórias escolhemos para recordar e relatar (e, portanto, relembrar), e como damos sentido a elas são coisas que mudam com o passar do tempo. A memória apoia-se sobre o passado vivido, o qual permite a constituição de uma narrativa sobre o passado do sujeito de forma viva e natural, mais do que sobre o passado apreendido pela história escrita (HALBWACHS, 2013: p.75). Em Halbwachs, a memória histórica é compreendida como a sucessão de acontecimentos marcantes na história de um país. O próprio termo “memória histórica” desta forma, seria uma tentativa de aglutinar questões opostas, mas para entender em que sentido a História se opõe à Memória, para Halbwachs (2013), é preciso que se atenha à concepção de História por ele empregada. A memória coletiva é pautada na continuidade e deve ser vista sempre no plural (memórias coletivas). Ora, justamente porque a memória de um indivíduo ou de um país estão na base da formulação de uma identidade, que a continuidade é vista como característica marcante. A História, por outro lado, encontra-se pautada na síntese dos grandes 62 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II acontecimentos da história de uma nação, o que para Halbwachs (2013) faz das memórias coletivas apenas detalhes. A História possui uma história e olhar para ela é considerar a vida, os conceitos, as teorias, os comportamentos, como uma construção, fruto de diversos conflitos, tensões e interesses. Vasculhar o cotidiano com as lentes da História Cultural é percorrer caminhos tortuosos, por vezes desafiadores, desconstruir cristalizações e, fundamentalmente, criticar cada fala, objeto, documento ou fotografia, explorando-os como “testemunho histórico” (NASCIMENTO, 2003, p. 68), em diálogo com os contextos nos quais estão inseridos. Muitos imaginam que a história está pronta e que o papel do historiador é apenas contá-la, mas a história é uma construção. (BAUER, 2017, p. 52). Segundo a autora a análise de um passado, próximo ou distante, depende de quem escreve, do contexto que escreve e das fontes consultadas, pois Historiadores não são os únicos autores dessas narrativas. Há políticas de negacionismo promovidas por governantes e produtos culturais, como filmes e livros, que contribuem na formação de uma memória social, para citar exemplos de espaços em que se operam essasescolhas do que se vai lembrar ou esquecer. A argumentação em favor das narrativas dos professores durante o ensino remoto como um recurso metodológico como forma de pensar e fazer ciência é algo recente. Segundo Alves e Gonçalves, (...) parece certo que, só recentemente, o termo narrativa não nos transporta apenas para o mundo da literatura e da criação literária. Atualmente é já um dado adquirido que a narrativa se constitui como uma metáfora e o instrumento de um novo paradigma de entendimento, de observação e de compreensão psicológica e educativa (2001, p. 92). Nívea Oliveira Couto de Jesus | 63 Vivenciar um momento importante de ensino remoto com uma gama de narrativas que estará nos livros de história de amanhã justifica a pesquisa pela emergência na contemporaneidade de se pensar a preservação da memória coletiva e sua transformação em história. A pesquisa está sendo desenvolvida principalmente através da documentação oral. As entrevistas estão sendo realizadas privilegiando a história oral temática, acreditando assim reabrir o diálogo entre os personagens que participaram e construíram a composição deste cenário histórico pandêmico. Portanto a utilização dos pressupostos metodológicos da História Oral, que subsidia a pesquisa em História Cultural e Memória. A recuperação do passado, próximo ou distante não tem condições de ser totalmente objetiva porque a subjetividade do pesquisador está presente. Por isso, para compreendermos porque o presente é o que é, devemos trabalhar dentro de uma perspectiva sócio histórica, pois ela interroga o passado com interesses ditados pelo presente, rejeitando verdades universais. Dessa forma, na metodologia da história oral o pesquisador pode criar e recriar fontes. Olhar o passado não pode ser um exercício de nostalgia, lembranças simples e saudades. As sociedades, em sua organização política, econômica, social e cultural, pensam o passado de diversas formas e o narra de distintas maneiras. Nesse sentido, como afirma Portelli (1997), é impossível reviver o passado sem resgatá-lo e colocá-lo no coração. Sabemos que o campo da história oral não é um espaço único de interpretação teórico-metodológica. As várias disciplinas podem contribuir para o aprofundamento dessa discussão, enfatizando coincidências e conflitos. Essa proposta de estudo pode contribuir para rever a construção da realidade dos sujeitos, permitindo que o pesquisador aprofunde, por exemplo, a entrevista com o narrador e a possibilidade de diálogo entre a teoria e o exercício da prática. 64 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II A subjetividade vem sendo bastante reverenciada na metodologia da história oral. Esta deve contribuir na construção de textos originais, na organização dos dados, na interpretação da realidade, sem privilegiar aquelas preposições que o pesquisador/educador já tem a priori. Nesse sentido, é sempre recomendável nos perguntarmos se o que a realidade apresentada é analisada a partir da perspectiva crítica. A subjetividade pode ser o ponto forte da pesquisa. Alguns informantes conseguem reconstruir o diálogo e são específicos em sua análise; outros falam apenas de modo geral e amplo. Entretanto, vários teóricos insistem na afirmação de que as fontes orais estão distantes dos acontecimentos, enfatizando a possibilidade de distorção da memória. Portelli (1997, p. 33) defende que: (...) na verdade, este problema existe para muitos documentos escritos, comumente elaborados alguns tempo após o evento ao qual se refere, e sempre por não participantes. As fontes orais podiam compensar a distância cronológica com um envolvimento pessoal mais íntimo. Para operacionalização da pesquisa alguns procedimentos estão sendo organizados, tais como o caderno de campo nas versões impressa e digital por meio de plataforma digitais, contendo dados do projeto, dados dos depoentes, dados dos contatos e dados do andamento das etapas e de preparo do documento final e envio de correspondências. 3 Algumas narrativas Até o momento foram realizadas entrevistas com professores de quatro escolas da rede estadual de ensino no município de Rio Verde GO. A análise das narrativas nos permite observar como foram os primeiros momentos vivenciados pelos professores durante o ensino remoto. Nívea Oliveira Couto de Jesus | 65 Nos transformamos nesse momento em Youtubers, em editores de vídeo, produtores de curta metragens, mas uma coisa é certa, não devemos deixar nossos alunos desamparados nesse momento de luta. Um ponto positivo que eu tenho percebido por parte dos alunos e das famílias é o engajamento de todos, estamos vendo (virtualmente é claro) uma participação quase maciça e um apoio muito grande das famílias nesse trabalho à distância. (Elaine Divina R. S. Oliveira, 2020) A professora Elaine ministra aulas no Colégio Estadual Filhinho Portilho. Na sua narrativa, é visível o esforço para adequar à nova realidade e alcançar os alunos nesse período de isolamento social. A coordenadora pedagógica do Colégio Estadual Martins Borges, a professora Jehane Christina de Oliveira docentes afirma que os professores que dominam aplicativos de ambientes virtuais estão realizando videoconferências, gravando videoaulas para canais do youtube entre outros, para promover a melhor interatividade. Os que têm maior dificuldade estão se esforçando para ganhar esse conhecimento e poder utilizá-lo. O professor Carlos Cézar explicita na sua narrativa sua prática de ensino. Como professor tenho procurado me adequar a essa nova realidade, esperando que em breve volte à normalidade. Como aspectos positivos posso dizer que o momento para mim tem sido de aprendizado, pois tenho buscado estudar mais a fundo sobre novas tecnologias que facilitem a comunicação com os alunos para o envio e recebimento de atividades, orientações para a conclusão de tarefas, acompanhamento online por meio do grupo de estudos via WhatsApp. Aponto ainda a interação com os alunos por meio das redes sociais como mais uma ferramenta de apoio aos estudos. Até o momento a participação dos estudantes do grupo ao qual tenho sido tutor tem sido positiva, pois a maioria tem questionado e buscado cumprir os ciclos de estudos dentro dos prazos estabelecidos. Agora esse tipo de ensino exige muito mais tempo de disponibilidade do professor para atender as demandas, pois a todo momento chegam dúvidas e atividades respondidas pelos alunos para 66 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II serem baixadas, conferidas e arquivadas na pasta de cada um. E isso exige muito tempo sentado à frente do computador ou manuseando a tela do celular, pois o acúmulo pode gerar mais trabalho depois e ser mais desgastante ainda, pois são muitas listas de atividades. Me preocupa também aqueles alunos da rede que não tem acesso a essas tecnologias. Outra situação é saber como mensurar até que ponto esse sistema de ensino nos ensinos fundamental e médio pode ser garantia de aprendizado por parte dos estudantes. (Carlos Cézar Vieira, 2020) Segundo Estella Maria Silva Souza, uma das coordenadoras pedagógicas do Colégio Estadual Eugênio Jardim, o maior desafio está em envolver os alunos do 6º ano, pois os estudantes precisam compartilhar o celular com os pais para a realização dos exercícios, o que na maioria das vezes ocorre à noite quando chegam do trabalho. Acredito que, de toda experiência positiva que estou vivenciando com essas aulas não presenciais, o ponto extremamente negativo é o não cumprimento de um horário específico, já que estamos trabalhando com o nosso dispositivo pessoal, isso faz com que os alunos e seus responsáveis acreditem que possuem acesso livre a nós, professores, em todo o tempo, a qualquer horário, isso tem sido muito desgastante e desagradável(Depoimento: Estella Maria Silva Souza, 2020). No depoimento da professora Estella, fica evidente sua angústia diante da falta de privacidade, visto que a metodologia de aulas não presenciais foi criada em caráter emergencial, gerando desgaste profissional e pessoal. A narrativa da professora Elizabeth Maria Fermino que atua como coordenadora de turno do Colégio Estadual Manoel Ayres, apresenta as dificuldades de acompanhamento dos alunos com relação ao comprometimento com as atividades escolares, bem como a falta de Nívea Oliveira Couto de Jesus | 67 autonomia dos pais em relação aos filhos. Ações que contribuem para o sucesso ou fracasso escolar. Está muito difícil, porque os alunos não o compromisso nem de responder a frequência. É uma busca constante e exaustiva, por mais que a gente tente facilitar para os alunos. A princípio a chamada tinha um tempo limite, eu deixava 1h e meia para responder a frequência. Daí tentei facilitar para eles, pois muitos dependem do telefone do pai para responder a presença e eu vi que eles precisavam de uma ajuda. Então passei a fazer a chamada no formulário do google forms para facilitar, pois era só clicar no nome deles e por mais que estava disponibilizado o dia inteiro para responder parece que aí é que eles acharam que não tinha que responder mais. Então eu tenho que ligar para os pais, ligar para os alunos e minha maior dificuldade é com o Ensino Fundamental, porque como os pais trabalham, os alunos ficam em ficam sozinhos e eles não tem esse compromisso de assistir aula. Os pais também não têm o compromisso de ver se o filho está fazendo está fazendo a parte dele como aluno de assistir as aulas, responder presença. Quando eu ligo e vou explicar para o pai que o aluno tem uma semana, duas semanas que não responde presença, eles dizem: como assim? Eles têm telefone, tem internet, tem tudo em casa e não responde. Alguns me falam assim: Nossa Elizabeth... alunos de 7º ano, que os filhos falam para eles que não vão estudar e eles não podem fazer nada. Como assim? O pai não ter autonomia de falar para filho que tem que estudar e fazer a parte dele... então está faltando esse compromisso familiar do pai ser responsável pelo aluno e não ele achar que é dono de si e não fazer a parte dele como aluno. A evasão está gigantesca, porque os pais não cumprem com seu quesito de ser pai, de ser responsável pelos filhos, a gente teria um maior compromisso dos alunos (Depoimento: Elizabeth Maria Fermino, 2021). As narrativas dos professores durante o ensino remoto favorecem a demonstração das emoções, dos fatos e das experiências que são singulares e plurais nas vivências de cada professor. Nos relatos, por meio de narrativas justifica-se um tempo e ampliam-se as possibilidades deles 68 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II se reconhecerem no processo, tendo em vista as experiências vividas e as narrativas construtivas de formação da identidade pessoal e profissional em um período desafiador como o da pandemia do covid-19 e a implantação do ensino remoto. 4 Algumas considerações Diante de um presente conturbado pelas questões que afligem o individual e o coletivo, pela pandemia do covi-19, tornou-se relevante ouvir as narrativas dos professores durante o ensino remoto, no sentido de serem transformadas em fontes de pesquisa e também como forma de pensar e fazer ciência por meio dos estudos envolvendo História Oral, História Cultural e Memória. As narrativas dos professores traçam os caminhos de encontros e desencontros históricos, por meio da seleção das memórias do tempo presente. Pensar e narrar sobre o próprio tempo, constitui um grande desafio ao historiador. No entanto, não se pode fugir da urgência de pensar a história de nosso próprio tempo, buscando formas de pensar e fazer ciência no campo da História da Educação. Referências ALVES, J. F.; GONÇALVES, F. O. Educação narrativa de professores. Coimbra: Quarteto, 2001. BAUER, Caroline Silveira. Como será o passado? História, historiadores e a Comissão Nacional da Verdade. Jundiaí: Paco Editorial, 2017. HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. Tradução de Beatriz Sidou. 2ª ed. São Paulo: Ed. Centauro, 2013. HELLER, Agnes. O cotidiano e a história. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1989. Nívea Oliveira Couto de Jesus | 69 MEIHY, José Carlos Sebe Bom. Manual de História Oral. 4.ed. São Paulo: Loyola, 2002. MEIHY, José Carlos Sebe Bom; HOLANDA, Fabíola. História oral: Como fazer, como pensar. – 2. Ed. - São Paulo: Contexto, 2011. NASCIMENTO, Jorge Carvalho do. Historiografia educacional sergipana: uma crítica aos estudos de História da Educação. São Cristóvão: Grupo de Estudos e Pesquisa em História da Educação/NPGED, 2003. (Coleção Educação é História, 1). POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, p. 3-15, 1989. PORTELLI, Alessandro. O que faz a história oral diferente? Projeto História. São Paulo: Educ, 1997, n. 14, p. 33-7. THOMPSON, Paul. A voz do passado. Tradução de Lólio Lourenço de Oliveira. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1998. Capítulo 4 Reflexões fenomenológicas sobre a memória em Paul Ricoeur Arliene Stephanie Menezes Pereira 1 Lia Machado Fiuza Fialho 2 Ana Carolina Braga de Sousa 3 1 Introdução A memória ou a reminiscência remete-nos sempre à lembrança do passado e ao esquecimento. Para compreender o fenômeno mnemônico debruçamo-nos, neste capítulo, sobre um dos pensadores mais expressivos do século XX, o filósofo francês Paul Ricoeur (1913-2005), pela contribuição científica que esse pesquisador deixou aos estudos da memória, os quais foram retratados na sua obra denominada “A memória, a história, o esquecimento” (2007), com ênfase no que ele intitula de “fenomenologia da memória”. A partir da leitura do livro supracitado foi levantada a seguinte questão norteadora: quais as principais ideias de Paul Ricoeur sobre a memória reconstituídas a partir da fenomenologia? Essa inquietação conduziu-nos a uma análise descritiva acerca do que o autor argumenta a 1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). Mestra em Educação Física pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Docente do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE). Integrante do grupo de pesquisa Práticas Educativas, Memórias e Oralidades (PEMO/UECE). E-mail: stephanie_ce@hotmail.com 2 Doutora em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará. Pós-doutora em Educação pela Universidade Federal da Paraíba. Professora do Centro de Educação da Universidade Estadual do Ceará. Professora Permanente do Programa de Pós-graduação em Educação (PPGE/UECE) e do Mestrado Profissional em Planejamento e Políticas Públicas (MPPP/UECE). Líder do Grupo de Pesquisa Práticas Educativas Memórias e Oralidades - PEMO. Editora da revista Educação & Formação do PPGE/UECE. E-mail: lia.fialho@uece.br 3Docente da rede estadual da educação do Ceará. Graduada em História pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). Integrante do grupo de pesquisa Práticas Educativas Memórias e Oralidades (PEMO/UECE). E-mail: carolbraga30@yahoo.com.br mailto:lia.fialho@uece.br mailto:carolbraga30@yahoo.com.br Arliene Stephanie Menezes Pereira; Lia Machado Fiuza Fialho; Ana Carolina Braga de Sousa | 71 partir da fenomenologia sobre a natureza da memória/lembrança, baseado em outros autores que são suscitados na sua obra que se inter- relacionam com a problemática no tocante às possibilidades e limitações referentes aos usos e maus usos da memória. O objetivo deste capítulo é, a partir da obra “A memória, a história e o esquecimento”,trazer à tona a reflexão fenomenológica de Paul Ricoeur sobre a essência dos fenômenos mnemônicos. A metodologia utilizada foi de cunho descritiva, a partir da leitura, fichamento e análise do livro, o que nos proporcionou novas visões sobre uma realidade que tomou a descrição da análise da ideia de memória realizada pelo autor em questão, ao observar, relatar e refletir os aspectos mais relevantes consoantes a essa temática. Para melhor organização das ideias e compreensão leitora, dividimos este capítulo em três partes: a primeira, introdutória, na qual se explicita a temática estudada, o objeto de estudo, o problema de pesquisa, o objetivo e a estrutura do texto; a segunda, denominada “Biografia de Paul Ricoeur (1913-2005)”, na qual mencionamos a origem de Paul Ricoeur para situarmos o contexto de vida do filósofo e entendermos um pouco sobre sua trajetória formativa e os aspectos da gênese filosófica ao qual o autor adentrou, baseados teoricamente na escrita de Lauxen (2015) e nos arquivos do Fundo Paul Ricoeur (GOLDENSTEIN, s/d); a terceira seção, intitulada “Reflexões fenomenológicas sobre a memória na obra A Memória, a História, o Esquecimento”, explicita as principais ideias acerca do referido livro (2007) para nos debruçarmos sobre a compreensão da fenomenologia da memória; e na quarta e última seção, “Considerações Finais”, retomamos a problemática proposta e refletimos sobre as principais ideais, apontando limitações e sugerindo o despontar de outras reflexões. 72 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II 2 Biografia de Paul Ricoeur (1913-2005) Como explicita Lauxen (2015), Jean Paul Gustave Ricoeur nasceu em uma família protestante na comuna francesa de Valence, em 27 de fevereiro de 1913. Ele e sua irmã foram criados pelos avós paternos e por uma tia solteira, também paterna, na comuna de Rennes, pois logo após seu nascimento ficou órfão de mãe e em seguida seu pai faleceu na primeira Batalha de Marne (que ocorreu de 5 a 12 de setembro de 1914), ainda que dado como morto somente no ano de 1915. Ricoeur cresceu com a imagem de um pai que era herói, mas que ele nunca conheceu. Numa entrevista, ele nos diz que a única recordação que guardara de seu pai era a de uma foto que ele tirou em 1915, depois disso, afirma: “aquela imagem nunca mais se moveu” (1997, p. 13). Ricoeur guardava consigo essa foto junto à cabeceira de sua cama (LAUXEN, 2015, p. 3). Sua tia, chamada Adele, dedicou-se à sua educação e de sua irmã. Lauxen (2015, p. 3) também menciona que Ricoeur teve uma infância traumática, [...] pois cresceu na dúvida sobre sua origem materna, sua família jamais lhe falou quem era a sua mãe. Ele só compreendeu o que é dizer “mamãe” ou “papai” por intermédio de seus filhos, nunca pôde pronunciar essas palavras. A infância e adolescência de Ricoeur foram marcadas por todos esses acontecimentos traumáticos. A busca pelos livros torna-se para Ricoeur, então, uma forma de encontrar refúgio, do qual ele nunca mais saiu. Ainda na infância, Paul Ricoeur passava grande parte de seu tempo na escola e nas livrarias. Nesta última, tinha contato com os grandes clássicos da literatura. Além disso, tinha também a leitura muito perpetrada no seio familiar por meio da religiosidade. Assim, transitava entre as leituras com viés crítico e literário, bem como pelas leituras de Arliene Stephanie Menezes Pereira; Lia Machado Fiuza Fialho; Ana Carolina Braga de Sousa | 73 cunho religioso. Já “Nos últimos anos do ensino secundário conheceu Roland Dalbiez, seu primeiro professor de filosofia, do Liceu de Rennes, que exerceu forte influência sobre ele. [...] Ricoeur confessa que essa intrepidez filosófica o acompanhou durante toda a sua vida” (LAUXEN, 2015, p. 4). Paul Ricoeur adentrou a universidade e graduou-se em Filosofia na Universidade de Rennes em 1933, aos 20 anos de idade; logo em seguida, começou a dar aulas no Liceu de Saint-Brieuc. Em 1934 sua irmã faleceu de tuberculose, causando-lhe imensa dor. No entanto, continuou os seus estudos, agora na Universidade de Sorbonne, em Paris, onde fez o mestrado entre os anos 1934 e 1935 e conheceu o filósofo Gabriel Marcel (GOLDENSTEIN, s/d) que o [...] convidou para participar das reuniões filosóficas das ‘sextas-feiras’, que eram uma espécie de sarau filosófico. Nessas reuniões, era proibido citar autores, deveriam enfrentar os problemas concretos da existência humana, primeiro descrever o fenômeno, em seguida, elevar essa descrição a uma reflexão segunda, que se pergunta qual o sentido dessa experiência (LAUXEN, 2015, p. 4). Paul Ricoeur começa a enveredar mais profundamente na leitura de Husserl, mais precisamente na escola fenomenológica em que começa a caminhar para uma experiência despojada das construções herdadas de tudo o que se acredita saber ou poder, para voltar-se ao objetivo puro e à abertura ao mundo de uma consciência. Em 1935 casou-se com Simone Leja com quem teve cinco filhos (três de seus filhos nasceram antes da guerra). Em 1936 criou a revista Être, inspirado nos conceitos do teólogo suíço Karl Barth. Entre os anos 1935 e 1936 foi nomeado para o Liceu de Colmar, cidade próxima à fronteira com a Alemanha, onde aproveita para estudar alemão e obtém uma bolsa para 74 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II uma estadia linguística em Munique (na Alemanha) em 1939 (GOLDENSTEIN, s/d). Segundo Goldenstein (s/d), ainda em 1939 serviu como oficial da reserva durante a primeira guerra mundial e foi preso pelos nazistas um ano depois. Lauxen (2015) relata que Paul Ricoeur encontrava-se numa unidade de combate e tentava impedir a ofensiva dos soldados alemães, todavia, encontrava-se em um buraco sem aviação e munição, onde foi obrigado a render-se. Foi enviado ao campo de Groß Born e depois a Arnswalde, na Pomerânia (atualmente Polônia), onde ficou durante cinco anos (1940-1945), até o fim da guerra. Em 1948 foi nomeado o primeiro professor associado da Universidade de Estrasburgo na França, onde passou oito anos como professor e concluiu seu doutorado. Em 1950 também realizou a tradução de “Ideen” (Ideias), de Husserl com o título “Guiding ideas for a fenomenology” (Ideias orientadoras para uma fenomenologia). Este trabalho é sua “tese secundária”. E, posteriormente, publicou Filosofia da vontade: O voluntário e o involuntário, que é a “tese de estado” (GOLDENSTEIN, s/d). De acordo com Goldenstein (s/d), em 1956 foi nomeado professor na Sorbonne, e passou a viver no Murs Blancs (Os muros brancos), na comuna francesa de Châtenay-Malabr com sua esposa e seus filhos. Murs Blancs era um local escolhido pelos fundadores da revista Esprit (da qual Ricoeur participava) para viver e trabalhar em comunidade. Ele desempenhou um importante papel de revisão na revista e liderou o grupo de filosofia no início dos anos 1960. Paul Ricoeur optou por lecionar em Nanterre, anexo à Sorbonne, onde se juntou a Mikel Dufrenne, filósofo francês, e juntos fundaram o departamento de filosofia. Posteriormente, Ricoeur foi nomeado reitor de Nanterre. Entre 1970 e 1973 muda-se para a Bélgica, onde leciona no Arliene Stephanie Menezes Pereira; Lia Machado Fiuza Fialho; Ana Carolina Braga de Sousa | 75 departamento de filosofia da Universidade de Louvain; e após três anos, retornou à Universidade de Nanterre, onde encerrou sua carreira de professor (GOLDENSTEIN, s/d). Catherine Goldenstein (s/d) ainda menciona que Paul Ricoeur, desde 1954, havia lecionado algumas vezes no Atlântico (em Montreal, no College Quaker de Haverford e Yale) e foi nomeado professor na Universidade de Chicago, nos Estados Unidos, lecionando no departamento de filosofia. Na França ainda coordenou o Centro de Estudos da Fenomenologia Husserliana, o primeiro na Universidade de Sorbonne.Paul Ricoeur foi também membro de dez academias estrangeiras, Doutor Honoris causa de mais de trinta universidades em todo o mundo e publicou mais de trinta livros, sendo alguns dos títulos publicados no Brasil: A memória, a história, o esquecimento; A crítica e a convicção; Teoria da interpretação; O conflito das interpretações; Vivo até a morte: seguido de fragmentos; Tempo e narrativa; O si mesmo como um outro; Sobre a tradução; Ser, essência e substância em Platão e Aristóteles; Escritos e conferências; Hermenêutica e ideologias; Amor e justiça; A religião dos filósofos; A metáfora viva;; A simbólica do mal; Nas fronteiras da filosofia; Outramente; Na escola da fenomenologia; O discurso da ação; Em torno ao político; A hermenêutica bíblica; Ideologia e Utopia; O justo ou a essência da justiça; Da interpretação - ensaio sobre Freud; Da metafísica à moral. (GOLDENSTEIN, s/d). Paul Ricoeur faleceu no dia 20 de maio de 2005 em sua residência no “Murs Blancs” e foi um dos expoentes no campo da fenomenologia e da hermenêutica, sendo considerado um dos grandes nomes da filosofia contemporânea. Inclusive, recebeu diversos prêmios como: Prêmio Hegel (Stuttgart), Prêmio Karl Jaspers (Heidelberg), Prêmio Leopold Lucas (Tübingen), Grande Prêmio da Academia Francesa, Grande Prêmio da Cidade de Paris, Prêmio Balzan, Prêmio Kyoto, Grande Prêmio da 76 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II Academia da Moral e Ciências Políticas, Prêmio Internacional Paulo VI e o Prêmio Kluge (LAUXEN, 2015). 3 Reflexões fenomenológicas sobre a memória na obra “A Memória, a História, o Esquecimento” A obra “A Memória, a História, o Esquecimento” (2007) é a tradução brasileira da obra “La mémoire, l'histoire, l'oubli, Le Seuil” que foi publicada originalmente em 2000. Nesta obra, como o próprio nome apresenta, Paul Ricoeur debruça-se sobre os três cernes que dão nome ao livro embasando-se na filosofia para nos defrontar com a representação do passado e a essência dos fenômenos mnemônicos. Para isso, ele também recorre a outros filósofos como Platão, Aristóteles, Sócrates, John Locke, Hursse, Heideggerl e Merleau-Ponty, trazendo à tona a base filosófica que suscita suas principais interpretações por meio da atitude fenomenológica sobre a memória e a “coisa lembrada”. A questão da memória é cara a Ricœur. Ele trata do tema e remonta a Platão ao considerá-la uma representação, um reavivamento de algo ausente, já desaparecido, fazendo-o novamente presente. E conclui que contar com alguém e contar para alguém, ou seja importar-se e ser considerado pelo próximo, pelo outro, é uma réplica da amizade a sobrepor-se à morte, o evento que interrompe todos os planos e intenções mas não consegue apagar a existência de alguém para aqueles que lamentam sua morte. A memória é, pois, de algo que deixa o domínio da indiferença e se inscreve em significação de algo que tem sentido conservar-se (LEONHARDT; CORÁ, 2011. p. 22). Leonhardt e Corá (2011) mencionam que, a partir de um olhar pautado nas bases filosóficas, Paul Ricoeur lança-se a uma linguagem erudita sobre a memória entendendo-a como algo dotado de sentido. A questão da memória apresentada na primeira parte do livro é objetal, pois ela repercute durante toda a obra. Arliene Stephanie Menezes Pereira; Lia Machado Fiuza Fialho; Ana Carolina Braga de Sousa | 77 Uma das primeiras reflexões trazidas no livro é sobre a ideia da representação do passado como memória, em que Paul Ricoeur recorre ao filósofo Aristóteles a partir do capítulo “Da memória e da reminiscência”, ao afirmar que a memória é sempre do passado. Posto isso, infere que a recordação surge em forma de imagem e, a partir de então, dá-se como um signo de qualquer coisa diferente, mas ausente, que se considera como tendo ocorrido no passado. Ricoeur apresenta-nos assim a primeira questão sobre a presença, a ausência e a anterioridade. Para o dizer de outra forma, a imagem-recordação está presente no espírito como alguma coisa que já não está lá, mas esteve. Uma metáfora tem um papel importante ao longo do trabalho de elucidação desse enigma e pode ajudar- nos num momento: o da impressão, como o da marca do sinete na cera; a noção de rasto faz, também ela, parte do mesmo conjunto de metáforas úteis. Mas permanece o mesmo enigma: a impressão ou o rasto, ambos, estão plenamente presentes, no entanto, pela sua presença reenviam para a chancela do sinete ou para a inscrição inicial do rasto. (RICOEUR, 2003, p. 1). O filósofo instiga-nos a refletir sobre a noção de ausência, a qual possui diversas significações que podem referir-se à irrealidade de elementos fictícios, em que parte da ausência do passado pode representar coisas inteiramente diferentes. Destarte, para compreender que o sentido da distância temporal, de afastamento e de imersão na ausência, traduz- se no enigma que o fenômeno mnemônico tem o passado representado na imagem como signo da sua ausência. Assim, Paul Ricoeur (2007) estrutura a fenomenologia da memória, em que tece suas afirmações a partir do filósofo alemão Edmund Husserl dando primazia às questões relativas à memória e coloca a distinção entre memória (realidade anterior vivida) e imaginação (lembrança fantasiada); 78 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II nas quais a memória é sempre do passado, sendo trazida à baila por intermédio do exercício da rememoração (reminiscência do passado). Paul Ricoeur apresenta-nos nesses entremeios o esquecimento como campo da memória, o qual deriva de sua evocação, com o que ele menciona como “um dever de não esquecer”. Mas, esse implacável processo de apagamento não sucumbe ao problema do esquecimento, pois o esquecimento está ligado ao processo de rememoração, numa busca que vai ao encontro das memórias perdidas. Inclusive, infere que “O esquecimento é o emblema de quão vulnerável é nossa condição histórica” (RICOUER, 2007, p. 300). Lauxen (2008) acrescenta ao explicar que há esquecimento quando não houve algo marcante e por isso o esquecimento relaciona-se à memória, pois é o seu oposto. Interessa destacar que na busca pelas memórias perdidas, Paul Ricoeur recorre à psicanálise, mais especificamente a Sigmund Freud, para atribuir às resistências solidamente instaladas da memória, como a compulsão; explicando-nos que há nesse exercício de recordar a compulsão por repetir em vez de rememorar. Para explicarmos mais precisamente como Paul Ricoeur recorre à fenomenologia remetemo-nos a Coelho (2014) que cita que: Segundo Ricoeur, a fenomenologia mantêm três teses centrais: primeiro, que a significação é a categoria mais englobante de toda a descrição fenomenológica; segundo que o sujeito é o portador destas significações; e terceiro que é a redução transcendental, isto é, a colocada entre parênteses do mundo e a afirmação da consciência como absoluto, que possibilita o nascimento de um ser para o campo das significações, ou seja, que permite que todo ser se apresente à descrição como fenômeno, como aparecer, logo, como significação a explicitar (COELHO, 2014, p. 2). Arliene Stephanie Menezes Pereira; Lia Machado Fiuza Fialho; Ana Carolina Braga de Sousa | 79 Desse modo, é por intermédio de uma descrição fenomenológica que Paul Ricoeur envereda pela compreensão dos fenômenos da memória, que representam, então, o passado dimensionalmente para o qual o sujeito projeta-se. Sob o olhar ricoeuriano, a fenomenologia da memória sucede a partir da experienciação do passado representado como imagem, quer em estado de latência ou da percepção. As três vertentes, “a história, a memória e o esquecimento”, que acabam entrecruzando-se pela temática, é posta por Paul Ricoeur da seguinte forma: [...] em primeiro lugar, a memória enquanto tal; depois, a história enquanto ciênciahumana, e o esquecimento como dimensão da condição histórica de humanos que somos. A memória, segundo esta construção linear, era vista simplesmente como matriz da história, enquanto a historiografia desenvolvia o seu próprio percurso além da memória, desde o nível dos testemunhos escritos conservados nos arquivos, até ao nível das operações de explicação; depois, até à elaboração do documento histórico como obra literária. O esquecimento era, neste caso, tratado sobretudo como uma ameaça para a operação central da memória, a reminiscência, a anamnesis dos gregos, e, logo, como um limite da exigência do conhecimento histórico de providenciar uma narrativa que ligue os acontecimentos passados. Do ponto de vista da escrita da história, a noção de passado histórico parece ser a última e irredutível referência de todo o trabalho da historiografia (RICOEUR, 2003, p. 1). A memória então, confrontada com um enigma, não deixa de ter seus artifícios e quando Paul Ricoeur traça os usos e os abusos da memória, ele levanta primeiramente a distinção entre rememoração e memorização para explicitar que a memorização é a lembrança de esquemas pelo esforço de relembrar, numa espécie de memória artificial. No entanto, mesmo o exercício da rememoração aponta para os abusos descritos pelo autor em 80 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II três concepções: memória impedida (memória que é negada), memória manipulada (emergência de afirmação identitária) e memória abusiva (com modelo a ser empregado). Para esta questão de usos e abusos, Lauxen (2008, p. 282), ao tecer uma análise crítica da obra de Paul Ricoeur, menciona que A memória, enquanto exercida na prática, está exposta à aporia do uso e abuso. O autor explora a larga tradição das técnicas de memorização (ars memoriae). A memória, enquanto exercida, é, ainda, impedida (enferma) no nível patológico terapêutico; manipulada, em função da manutenção da identidade individual e coletiva (ideologia). A memória coletiva integra e forma a identidade do grupo mediante datas comemorativas e outros expedientes. Além disso, a memória pode ser uma obrigação (dever de memória) um “recorda-te” que também é um “não te esqueças”. A fenomenologia da memória proposta por Paul Ricoeur desdobra-se na interface do sujeito com a sua identidade coletiva, depreendendo-se entre sua memória individual e a memória coletiva, ou seja, entre uma memória singular e uma memória plural. A partir disso, retorna novamente à fenomenologia para levantar a convergência entre “o eu, os outros e o mundo”, dado que se afetam continuamente. Ademais, Paul Ricoeur também recorre à sociologia, mais especificamente na obra “A memória coletiva” de Maurice Halbwachs, para defender a ideia de que não nos lembramos sozinhos, pois a memória é uma entidade coletiva o qual intitulou de grupo ou sociedade. Na passagem da memória à historiografia, revelam-se a constituição entre o vivo e o vivido para elucidar a experiência anteriormente vivida. Assim, infere-se que o tempo da história narrada não possui linearidade com estruturação e quantificações, mas extrapola esses limites, pois: “Nesse aspecto, o tempo da história procede tanto pela limitação da imensa Arliene Stephanie Menezes Pereira; Lia Machado Fiuza Fialho; Ana Carolina Braga de Sousa | 81 ordem do pensável quanto pela superação da ordem do vivido” (RICOEUR, 2007, p. 165). Na representação histórica da memória, observa-se a materialização dos fenômenos mnemônicos por meio da epistemologia histórica, na qual a representação tanto no aspecto narrativo como sob outras nuances não deixa de fora a fase documental e explicativa, pois as duas sustentam-se mutuamente. Nesse sentindo, Paul Ricoeur menciona as confrontações de acontecimentos causais na história e as relações de diferenciações que vão surgindo na simbologia das narrativas, incitando-nos para as primeiras explicações acerca do neologismo “representância”. O filósofo mobiliza esse termo para compreender o passado assinalando que condensa em si todas as expectativas e exigências ligadas à intencionalidade histórica, que passam a constituir as reconstruções dos acontecimentos. Na fenomenologia, a intencionalidade define o estatuto da consciência e a qualifica por direcioná-la para algo, sendo influenciada em grande parte por nossos estados conscientes. Paul Ricoeur (2007) atenta- nos para isso dizendo que nesse campo o objeto não são as pessoas, mas as narrativas, dado que elas são o exercício de reflexão de memória e que o fenômeno mnemônico traz à tona a coisa-lembrada “Uma vez que, na memória-lembrança, o passado é distinto do presente fica facultado à reflexão distinguir, no seio do ato da memória a questão do ‘o quê’, da do ‘como?’ e da do ‘quem?’ [...]” (p. 41). Concordamos com Ricoeur (2007) quando ele menciona que é a partir da memória que garantimos que algo ocorreu antes de formarmos a lembrança e que as representações do passado foram realizadas justamente pela memória. “Esse vis-à-vis, essa réplica, podem ser da ordem da eventualidade, da desconfiança, da suspeita, da defecção, da denúncia. Por isso, nesse mesmo registro inscreve-se a categoria de 82 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II incerteza que a micro-história coloca em lugar de destaque” (RICOEUR, 2007, p. 237). Mas Paul Ricoeur não nega essa oposição, tanto dos próprios testemunhos entre eles como dos testemunhos com as fontes documentais. Para isso ele nos diz que: Essa situação de conflito não pode limitar-se ao campo da história como ciência, reaparece ao nível dos nossos conflitos entre contemporâneos, ao nível das questões fortes, às vezes formuladas coletivamente, em prol de uma tradição memorial contra outras memórias tradicionais” (RICOEUR, 2003, p. 3). Paul Ricoeur coloca-nos defronte ao dilema da sobreposição das fontes orais pelas documentais ou vice-versa, mas afirma que uma complementa a outra e vão assim, desvelando as memórias, pois as fontes não constituem estágios sucessivos, mas estão intrincados (RICOEUR, 2007). Ou seja, o aspecto narrativo não se acrescenta de fora à fase documental e à fase explicativa, mas vão-se acompanhando e sustentando- se. 4 Considerações finais Neste texto objetivamos, a partir da obra “A memória, a história e o esquecimento”, trazer à tona a reflexão fenomenológica de Paul Ricoeur sobre a essência dos fenômenos mnemônicos, utilizando de uma metodologia de cunho descritiva, a partir da análise crítica da obra supracitada. Foi possível descrevermos um pouco da trajetória do filósofo francês Paul Ricoeur desde a sua infância, passando pela sua formação e como a partir dessas vivências, ele tratou da questão daquilo que intitulou de “fenomenologia da memória” a partir dos estudos fenomenológicos, até a Arliene Stephanie Menezes Pereira; Lia Machado Fiuza Fialho; Ana Carolina Braga de Sousa | 83 sua morte. O foco foi a análise da obra, “A memória, a história e o esquecimento”, que se fez necessária para refletirmos sobre os diversos campos de estudo em que transitam a memória, em especial, no campo da Filosofia. Este estudo suscitou-nos novos olhares sobre as vivências, as descrições e as análises dos fenômenos mnemônicos. Concluímos que as principais ideias do autor ressaltam que a memória deve ocupar seu devido lugar de reconhecimento no campo da historiografia, considerando para isso as narrativas dos sujeitos, passíveis de serem considerados objetos de estudo, ainda que permeados por lembranças e esquecimentos, especialmente no campo da fenomenologia, pois promovem reflexões singulares e importantes. Apontamos como limitação para esse capítulo o fato de as discussões no campo da memória serem vastos e a necessidade, portanto, do aprofundamento de outras leiturasdesenvolvidas por teóricos em outros tempos e contextos. Inclusive, apontamos para a necessidade de uma leitura mais densa e aprofundada sobre o autor, não exploradas em sua inteireza porque, além de somente ser possível com a leitura integral da obra, houve a necessidade de realização de uma síntese em poucas páginas. Referências COELHO, C. Fenomenologia e hermenêutica: a crítica de Paul Ricoeur à hermenêutica de Martín Heidegger. Ensaios Filosóficos, v. IX, maio, 2014. GOLDENSTEIN, Catherine (inventariante dos arquivos de Paul Ricoeur). Biographie. Fonds Ricoeur, s/d. Disponível em: http://www.fondsricoeur.fr/fr/ pages/biographie.html. Acesso em: 02 mai. 2021. LAUXEN, Roberto Roque. Os cem anos de nascimento de Paul Ricoeur: uma biografia intelectual. Revista Páginas de Filosofia, v. 7, n. 1, p.1-25, jan./jun., 2015. http://www.fondsricoeur.fr/fr/pages/biographie.html http://www.fondsricoeur.fr/fr/pages/biographie.html 84 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II LAUXEN, Roberto Roque. A Memória, a história, o esquecimento by Paul Ricoeur. Filosofia Unisinos, v. 9, n. 3, p. 281-283, set./dez., 2008. Disponível em: http://revistas.unisinos.br/index.php/filosofia/article/view/5365. Acesso em: 30 abr. 2021. LEONHARDT, Ruth Rieth; CORÁ, Elsio José (Orgs). O Legado de Ricoeur. Guarapuava: Unicentro, 2011. RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Tradução de Alain François [et al.]. Campinas, SP: Unicamp, 2007. RICOEUR, Paul. Memory, history, oblivion. “Haunting Memories? History in Europe after Authoritarianism. Universidade de Coimbra, 2003. Disponível em: https://www.uc.pt/fluc/uidief/textos_ricoeur/memoria_historia. Acesso em: 01 mai. 2021. http://revistas.unisinos.br/index.php/filosofia/article/view/5365 https://www.uc.pt/fluc/uidief/textos_ricoeur/memoria_historia Capítulo 5 História oral e memória: algumas ponderações Simone Gomes de Faria 1 Karen Laiz Krause Romig 2 1 Introdução A proposta central deste estudo foi o de abordar algumas contribuições evidentes que este método de pesquisa das Ciências Humanas tem trazido para a historiografia atual. Neste ínterim, o ensaio em seu aporte metodológico é de cunho qualitativo tendo como fonte de análise as referências bibliográficas. Como amparo de nossas posições contamos com os postulados teóricos de Meihy e Ribeiro (2011), Ferreira (2004), Thompson (1992) e Portelli (1991), entre outros estudiosos da área que são referências para o assunto em questão que sustentaram/am a linha de pensamento fundante ao apontarmos algumas ponderações e contribuições deste método para a historiografia atual. Ademais, justificamos a análise deste porque a partir de 1980 as pesquisas incluem a História Oral como um potente campo para se aferir as experiências e as memórias de pessoas comum rompendo o viés tradicional de narrativa para propiciar que estes protagonistas deem voz as suas histórias oportunizando uma abertura para novas problematizações. Partindo disso, de natureza nem tão antiga quanto nova- a História Oral- em uma de suas possibilidades de atuação serve como um método qualitativo que auxilia na interpretação das representações e dos símbolos possibilitando a criação de uma percepção 1 Doutoranda em Educação, Universidade Federal de Pelotas/ UFPEL, simonegomesdefaria@gmail.com 2 Doutoranda em Educação, Universidade Federal de Pelotas/ UFPEL, karenlaizromig@gmail.com mailto:karenlaizromig@gmail.com 86 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II de um passado recente por meio de procedimentos metodológicos próprios. É sabido que não foi aceita prontamente pelos historiadores tradicionais sendo taxada de subversiva passando pelo exame de diversos pontos de vista teórico acerca dos usos da memória ao apontar que ela apresenta falseabilidades e se encontra circunscrita em um processo limitado e parcial ao lidar com o campo da subjetividade. No entanto, os adotantes deste método de pesquisa constroem de modo rigoroso as fontes que desejam através das entrevistas. Entrementes, ao se trabalhar com este método se está em busca de uma fonte histórica que será assim considerada quando esta se tornar escrita, logo, é por meio da memória que teremos tal fonte, posto que, a memória é seletiva porque recordamos o que queremos recordar ao olhamos através da nossa experiência. A memória ressignifica a experiência no tempo e sendo seletiva recorda coisas significativas, todavia, há uma reinterpretação ao lhe dar sentido. Em via de regra quando nos acontece algo não entendemos o nos acontece, mas, tentamos dar sentido ao que não tem sentido ainda. Assim sendo, partindo destas proposições o texto visa a levantar informações e ponderações acerca do uso do método, que por sua vez, será subdivida em quatro momentos: primeiramente realizamos um breve esboço do surgimento da História Oral como fonte de pesquisa expondo diacronicamente como este método de pesquisa vem ganhando cenário nas produções acadêmicas internacionais e nacionais passando por questões acerca dos procedimentos teóricos e práticos do método e finaliza-se com algumas abordagens acerca da relação de história e memória apontando algumas de suas contribuições mais evidentes para o século XXI. Simone Gomes de Faria; Karen Laiz Krause Romig | 87 2 Um breve esboço do surgimento da História Oral como fonte de pesquisa Compreender como cada pessoa se formou é encontrar as relações entre as pluralidades que atravessam a vida. Ninguém se forma no vazio. Formar-se supõe troca, experiência, interações sociais, aprendizagem, um sem fim de relações. Ter acesso ao modo como cada pessoa se forma é ter em conta a singularidade da sua história e, sobretudo, o modo singular como age, reage e interage com os seus contextos. Um percurso de vida é assim um percurso de formação, no sentido em que é um processo de formação. (MOITA, 2007, p. 114-115) Moita (2007) em sua citação nos esboça a importância de compreender as pluralidades de situações que atravessam a vida das pessoas. Assim sendo, o documento oral compõe um documento histórico, pois, serve como fonte de pesquisa e deve ser interpretado com rigorosidade como qualquer outro, e, nos desvela importantes especificidades mediante as entrevistas de pessoas que viveram ou vivem em um determinado contexto histórico imiscuindo-se como autênticos personagens da História. É sabido que com o advento e aumento avassalador das tecnologias da informação e da comunicação as investigações históricas, como em outras áreas de saber vêm ocupando um local de destaque nas difusões do conhecimento em torno da oralidade. De acordo com as premissas teóricas de Joutard3 (1998) é importante que façamos um bom uso das evoluções tecnológicas para alçarmos resultados positivos nas pesquisas que se apropriam desse método. Nesse aspecto, a Universidade de Columbia está diretamente atrelada ao uso do gravador que viabilizou a captura sonora, que até então, não houvera antes de 1950. A esse instrumento deve-se a importância de um grande aumento 3 Philippe Joutard fora o percussor das premissas teóricas da História Oral na França. Atualmente é Professor de História na Universidade de Provence e da Ecole des Hautes Etudes em Ciências Sociais. 88 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II de estudos relacionados às técnicas que eram utilizadas pelos pesquisadores adeptos desse método. Nesse limiar, o gravador serviu para viabilizar a captura sonora, bem como, para se interpretar as diferentes formas de manifestação do tom da fala; possibilitou a extração de férteis conclusões através das expressões, das hesitações, da linguagem do corpo, dos lapsos de memória e dos silenciamentos oportunizando conhecer de modo mais profícuo asações vivenciadas pelos entrevistados. Outro recurso que tem otimizado pesquisas nessa operação metodológica são as redes informatizadas que compõe aos sítios da web que englobam numerosos acervos de arquivos orais. Ressaltamos que a utilização da imagem digital resultou numa predisposição cada vez maior para a tomada de imagens, tornando mais flexível as entrevistas porque coloca em cheque o desvelar das variadas linguagens, dos gestos e das mímicas de quem fornecerá o seu testemunho. Outrossim, gostaríamos de ressaltar que por meio da evolução tecnológica que nos foi possibilitada um novo olhar para a História Oral. Assim, nem todo tipo de comunicação é uma via tecnológica porque é medular que as pessoas se comuniquem, contudo, os recursos tecnológicos servem como um caminho para possibilitar uma melhoria nas investigações. No entanto, o papel da comunicação ainda é essencial para revelar o porquê de determinados acontecimentos nas mais diversas esferas sociais. Inegavelmente, tal método de pesquisa foi visto pelos historiadores, principalmente os positivistas e tradicionais, como um procedimento muito subjetivo, e assim, por muito tempo foi alvitrado preconceituosamente. A assertiva advinda dos aportes teóricos de Portelli (1991) nos revela que a subjetividade é advinda da memória, que por sua vez, é o objeto deste método de pesquisa, podem ser fantasiosos e falíveis Simone Gomes de Faria; Karen Laiz Krause Romig | 89 não se constituindo em dado preciso, embora, muitas vezes se a utiliza porque nem sempre conseguimos as informações necessárias em documentos escritos. Desta forma, para corroborar com essa proposição, nos apropriamos da voz de Joutard (1998) para refletirmos que a narrativa oral e a escrita são fontes que estão imbricadas, uma completa a outra nos estudos de investigações científicas. Analisando diacronicamente o desenvolvimento metodológico da História Oral se apreende que seu surgimento remonta a Antiguidade Grega com os cabeças Heródoto e Tucícledes, entretanto, foi muito resistida pelos positivistas. Desde o século XVII a História vem se opondo a fonte oral como nos elucidam Matos e Senna (2011). Não obstante, na França no século XX, se instaura um movimento reacionário ao paradigma historiográfico tradicional com o escopo central de modificar a teoria da História. No artigo “Aos cinquenta anos: uma perspectiva internacional da história oral”, um dos capítulos do livro História oral: desafios para o século XXI o pesquisador Alistair Thomson4 nos revela que a História Oral nasceu em 1948 pelo americano Allan Nevins5 que pesquisava as memórias de personalidades importantes dos Estados Unidos. Logo após começa a surgir vários movimentos em torno do uso da História Oral, principalmente, em países da Europa Ocidental, e Estados Unidos. Neste momento, outros pesquisadores começam a realizar debates fecundos, bem como, seminários e algumas revistas especializadas neste teor teórico. Como sabemos a Universidade de Columbia dos Estados 4Professor e historiador de grande renome internacional da Universidade de Sussex, Inglaterra e membro do Conselho da Associação Internacional de História Oral (IOHA) de 1996 a 2000. Pesquisa com afinco as ideias de veteranos de guerra e de migrantes, bem como, disserta sobre o método da História de vida da pesquisa oral. 5Josepeh Allan Nevins foi um grande jornalista americano e historiador. Durante sua vida se dedicou a estudar as histórias da Guerra Civil, e principalmente, biografar grandes personalidades como Henry Ford, Hamilton Fish, Groves Cleveland e Rockefeller. Desta forma, é considerado o primeiro historiador a se apropriar da História Oral de forma institucionalizada na alcunhada Universidade de Columbia nos Estados Unidos. 90 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II Unidos foi a pioneira no uso deste método devido ao surgimento do gravador e posteriormente essa operação metodológica acaba sendo amplamente divulgada na Europa com o intuito primordial de abordar ao redor dos grandes heróis e dos aspectos da História Política, isto como, dos personagens principais dos Estados Unidos da América. Desta forma, em 1960, a História Oral se torna uma importante arma empregada por jovens pesquisadores que visavam alterar o estatuto dos paradigmas teóricos até então vigentes, pois: Nos anos Kennedy, mais do que o choque da Guerra Vietnã – a não ser sob a forma indireta do “terceiro mundismo” -, a descoberta da “outra América”, da pobreza, e a expansão do movimento negro desencadeiam o interesse pelos excluídos, pelas minorias étnicas, imigrantes e deliqüentes (FERREIRA, 1994, p.21 sic). A fala acima nos esclarece que é na década de 60, do século passado, que nos Estados Unidos os olhares se voltam para uma contra história, ou seja, uma história que até então era vista de baixo. Neste mesmo período, na Europa, antropólogos, sociólogos deram início às incipientes discussões ao redor da evidência histórica e no uso da memória foram muito abordadas, pois, a discussão do momento era advinda que com o passar do tempo essa apresentaria lacunas que poderiam desestabilizar a Ciência Histórica. Ainda, sabemos que na Itália se estabelece uma segunda geração de historiadores orais como nos elucida Matos e Senna (2011), visto que, esses tinham como cerne principal refazer as construções representadas pela cultura popular embasados em testemunhos orais sendo o cenário ideal para uma observação mais atenta das singularidades da História Oral como fonte e, não como de debilidades como era aportada pelo paradigma tradicional. Simone Gomes de Faria; Karen Laiz Krause Romig | 91 Nesse ínterim, essa se torna mais crítica e audaciosa porque apresentaram viáveis alternativas para a utilização dos recursos memorialistas, se cerceando deste método para constituir uma nova história propugnada pelos sindicalistas e feministas em 1968 de acordo com as vozes de Matos e Senna (2011). Em suma, foi criada uma nova história, modificaram-se as tradicionais correntes historiográficas passando a direcionar novos olhares e perspectivas como questões de gênero, setores populares, pessoas com necessidades especiais, religião, transnacionalismo e transculturalismo, operários, as mulheres, o cerne social, entre outras temáticas de pesquisa. Na fase posterior de historiadores orais, em 1970, acontece um “boom” de pesquisas se aportando do método principalmente em investigações que primavam pela utilização de histórias de vida tanto na Europa como nos Estados Unidos. Tem-se como expoente, na França, Alexandre Joutard, desenvolvendo pesquisas relacionadas ao redor de etno-textos e da previdência social conforme nos alude Matos e Senna (2011), bem como, na Grã-Bretanha assume como expoente na área Paul Thompson que aponta que “a função da História Oral, ao devolver a história do povo, é de democratizar a própria história. ” (Ferreira, 1994, p. 29) Em 1990, surge à quarta geração de historiadores orais, as proposições mais consistentes estavam atreladas às experiências e as possibilidades de mudanças viáveis mediante ao uso da fonte oral. Nessa perspectiva apontada, de acordo com os acontecimentos do período foi organizada teoricamente e metodologicamente passando a se denominar História Oral. Na América Latina, a História Oral, tem um percurso diferente dos países Europeus e dos Norte-Americanos, embora essa surgisse na década de 70 com temáticas que eram alicerçadas pela história política e pela 92 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II antropologia o seu desenvolvimento só veio a ocorrer após o período da redemocratização nos países que vivenciaram as Ditaduras Militares, pois, nessa década ainda era amplamente preconizado o uso de fontes escritas com base em informações analíticas,e por sua vez, o uso da oralidade não apresentava nenhum prestígio nos meios acadêmicos. Inegavelmente, a América Latina, desencadeou um processo de dependência com relação aos países de primeiro mundo, e principalmente incorporando as ideias em voga de seus colonizadores. Além disso, tornou a Europa como centro de referência e inspiração do saber, acarretando várias disputas arguitivas entre os resistentes conservadores e os progressistas libertários. Partindo deste pressuposto, o surgimento desse método necessita de novas abordagens e soluções do que os apresentados pela Europa e pelos Estados Unidos. Convém expor que os países do “Sul” se alicerçaram de uma sofisticada fundamentação teórica em face de um complexo engendramento político local. Dessa maneira, houvera uma sinopse dos textos advindos de países do primeiro mundo para que houvesse uma readaptação consoante a própria localidade. No Brasil, a História Oral, começa a ser sistematizada por Aspásia Camargo, em 1975, com o projeto de pesquisa intitulado “Trajetória e desempenho das elites políticas brasileiras”, com o intuito de registrar o depoimento de pessoas que haviam sido partícipes da história política do país na década de 30 a fim de compreender as transformações deste período, ou seja, o processo de consolidação do Estado brasileiro até a Ditadura de Militar de 1964. No entanto, tal sistematização pela pesquisadora foi possível “a partir de cursos fornecidos por especialistas mexicanos e norte-americanos na Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro” conforme nos revela Moraes (1994, p.09). Partindo deste fato, sua definição começa a ganhar contornos partir de 1979, no obstante, o seu Simone Gomes de Faria; Karen Laiz Krause Romig | 93 robustecimento viera a ocorrer somente depois de 1983 no processo de redemocratização política do país com o intuito de ser uma nova voz nos debates democráticos que foi inspirada nos moldes da Universidade de Columbia dos Estados Unidos coordenado pelo grupo alcunhado de C.P.D.O.C6 patrocinado pela Fundação Ford. Vale ressaltar que, mesmo após a redemocratização, não houve grandes mudanças, apenas alguns breves debates que ainda tencionavam a prezar a produção estrangeira e não valorizar a local. Desta forma, o método esteve mais imbricado com os interesses de jornalistas, sociólogos, antropólogos e psicólogos devido ao fato que a instabilidade política ainda influenciava a metade da década de 1980. Segundo as premissas teóricas de Ferreira (1994, p.08) na década de 1980 os pesquisadores que adentravam no terreno da História Oral: eram predominantemente cientistas sociais, constatou-se uma maioria de historiadores, com 51% ficando os cientistas sociais em segundo lugar, com 34%. A seguir vinham os profissionais das áreas de educação e letras, com 3,7% e, finalmente, das áreas de enfermagem, psicologia e saúde pública, com 1,8% cada (MORAES, 1994, p.08). Os dados demarcados pela pesquisadora nos revelam que havia uma diversidade de pesquisadores interessados na apropriação deste método ou disciplina, técnica ou fonte, no entanto, até então era domínio maior dos historiadores. Entretanto, é em 1980, que se expande as temáticas abordadas como “a classe trabalhadora brasileira, a história de bairros, as 6 É o Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, criada em 1973, tem como escopo primordial abrigar conjuntos de documentos da História do Tempo Presente pertencente à Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas. Vale expor que há quase dois milhões de documentos de personalidade pública, assim sendo, convém ressaltar que o centro tendia a dar primazia para a elite nacional. Segundo Verena Alberti (2004) “o programa procurou conjugar duas tend~encias no desenvolvimento da história oral: de um lado, a norte-americana, que privilegiava a formação de bancos de depoimentos orais, sem que sua produção se subordinasse necessariamente a um projeto de pesquisa, e, de outro, a europeia, que privilegia a lógica da investigação científica, sem que as entrevistas dela resultantes fossem necessariamente colocadas à disposição de um público de pesquisadores.” 94 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II minorias e grupos discriminados, como negros e mulheres. ” (FERREIRA, 1994, p.11) Outrossim, um dos pontos mais significativos para que isso ocorresse era porque as Universidades estavam em calamidade pública, devido à Ditadura Militar, bem como, muitas não executaram suas atividades acadêmicas dificultando o acesso de referências bibliográficas específicas ao método; muitas das existentes não havia traduções corretas dos grandes pesquisadores teóricos na área. Assim sendo, desde a sua origem, a História Oral, foi instituída com o teor militante, os depoimentos mais recorrentes na ditadura advieram dos militares e da elite política e cultural da época. A História Oral entra em cena com o intuito de dar mais emoção a toda aquela gama de escritos frios, pois após o período ditatorial há muitos documentos secretos que não traziam informações almejadas por muitas vezes serem somente um amontoado de papéis havendo uma necessidade de desvelar a memória de esferas que tencionaram que a população se esquecesse, e assim, se silenciassem. Nesse entremeio de acontecimentos onde os países necessitam de afirmação houve o anseio de surgir pesquisas orais com crianças, mulheres, analfabetos, camponeses, marginalizados sociais, africanos, indígenas, imigrantes, operários, pessoas portadoras de necessidades especiais, carnavalescos, militares de esquerda, pessoas doentes, pessoas comuns, presos políticos partindo do local para o âmbito nacional, ou seja, a Micro História, a Nova História Cultural. Outra marca importante na História Oral brasileira, muito aportada em estudos, está intrínseca ao Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), bem como, narrativas extraídas de imigrantes e migrados de diversas nacionalidades. Tais temas continentes estão se desenvolvendo e sendo amplamente Simone Gomes de Faria; Karen Laiz Krause Romig | 95 utilizados em projetos que visam o desenvolvimento agrário e aqueles que versam a respeito da identidade, etnicidade, cultura, entre outros. Atualmente, a História Oral latino-americana se encontra em estado germinal, tem se destacado e com um aumento bastante significativo apresentando estudos de grande qualidade e originalidade, bem como, há o surgimento de várias revistas acadêmicas aportando do assunto, entretanto, essa tendência oral por muito tempo foi fixada somente em instituições de Ensino Superior. Portelli (2000) em seu artigo “Memória e diálogo: desafios da História oral para a ideologia do século XXI” outro capítulo do livro História oral: desafios para o século XXI afirma que a História Oral está muito afiada dentro do contexto latino-americano. Nos dias atuais houve um avanço muito grande, principalmente porque já nasceu muito tarde, e foram ampliados para espaços populares, arquivos, movimentos sociais, setores sociais com o objetivo central de reaver as histórias contadas das adversas trajetórias sociais. Porém, se denota que os países latino-americanos apresentam contextos muitos diferentes porque há alguns em desenvolvimento e outros ainda estão engatinhando para compreender e empreender os usos da história oral em suas investigações. A configuração do método na América Latina foi muito diferente do que nos países de primeiro mundo dada como um reflexo de um determinado momento histórico, em resumo, a sua institucionalização decorre com o caráter explicativo para que houvesse uma compreensão de como se encontrava a sociedade brasileira apontando uma reconfiguração para as Políticas Púbicas Brasileiras. Passado este aporte de como se fora constituindo o campo de estudo definiremoso que é a História Oral concatenado de autores que compõem o enquadramento teórico- metodológico. 96 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II 3 História Oral: definição e procedimentos teóricos Há uma gama de autores que se debruçam acerca da definição do que é História Oral. Dentro desta ótica, nos apropriamos de alguns como Meihy e Ribeiro (2011, p.12) que nos revela que “História oral é um conjunto de procedimentos que se iniciam com a elaboração de um projeto e que continua com a definição de um grupo de pessoas a serem entrevistado. ” Os autores colocam em xeque uma questão muito importante, ou seja, falar em uma entrevista nem sempre requer estar realizando uma História Oral porque ela pode ser simples, isolada, única ou até mesmo não serem gravadas como os autores Meihy e Ribeiro (2011, p.13) nos esclarecem, já que, as entrevistas que contemplam a História Oral são aquelas derivadas de um projeto de pesquisa quer seja ele acadêmico ou institucional, tendo em vista que, a entrevista em história oral representa uma sistematização dos processos organizados pela lógica proposta no projeto inicial. Entende-se por projeto o plano capaz de articular argumentos operacionais de ações desdobradas de planejamentos de pesquisas prévias sobre algum grupo social que tem algo a dizer. Pode-se afirmar que sem projeto não há história oral. ” (MEIHY; RIBEIRO, 2011, p.13). Assim, todo projeto de História Oral deve conter necessariamente uma entrevista, mas, nem toda entrevista faz parte de um projeto de História Oral. Na sequencia, Alberti (1990) nos esmiúça que a História Oral é um método de pesquisa de cunho diversificado que tem como primazia o uso de entrevistas com indivíduos que estiveram presentes em um dado momento. De acordo com as premissas teóricas de Joutard (1998) a História Oral sempre foi dividida entre aqueles que pesquisavam assuntos relacionados com as ciências políticas e para a elite e, os que apostavam em investigar pessoas sem voz na História, por sinal, esses se encontravam Simone Gomes de Faria; Karen Laiz Krause Romig | 97 em um campo antropológico. Esses últimos núcleos de pesquisadores se encontram em ascensão criando grandes e possíveis possibilidades de ampliar estudos com a História Pública. Afinal, o que podemos falar sobre o que é história oral? Podemos afirmar que ela pode ser uma técnica, uma fonte ou um método, todavia, no que se refere a uma metodologia reiteramos que está não é tão velha como também nem tão nova, bem como, não foi algo aceitado prontamente pela historiografia clássica, pois, demorou muito tempo para ser abraçada pelos historiadores mais tradicionais. Da História Oral surgem dois termos que devemos analisá-los em separado, logo, História é um termo polissêmico que pode ser uma narração de algo que nos contam e também é uma disciplina e, a palavra oral indica que é uma comunicação verbal apontando uma diferença da escrita. Entrementes, a história tradicional se baseou nos documentos, neste viés, a História Oral foi considerada como uma aberração, pois, era uma forma designada para as sociedades ágrafas ou consideradas pré- moderna, posto que, o mundo moderno é herdeiro da escrituração desde a criação da imprensa por Johannes Gutenberg. Em palavras resumidas, a História Oral é algo que nos contam de forma oral, em uma conversação com um objetivo de ser uma fonte para a história, ou seja, é uma metodologia de fonte criadora de sujeitos e protagonistas que se percebem e são afetados pelos diversos processos históricos. Destarte, é de natureza qualitativa, que por sua vez, é muito importante ressaltar este aspecto, visto que, aqui não nos interessa números estatísticos porque podemos trabalhar com apenas um só testemunho desde que está fonte seja contextualizada e esta narrativa desvele uma percepção de valor ao revelar uma cultura de informação através de seu testemunho. 98 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II 4 História Oral: procedimento prático da pesquisa Partindo das aduções de Meihy e Ribeiro (2011, p.28): “a história oral é campo aberto à produção de conhecimento sobre diferenças” sendo considerado como um terreno multidisciplinar para pesquisas qualitativas. Neste viés, as entrevistas ocorrem no empenho de reelaborar a memória e interpretarmos as singularidades de cada experiência do entrevistado. Aqui nos reportamos à fala de Charles T. Morrissey, um dos primeiros historiadores orais norte-americano, que nos revela que uma entrevista nunca pode seguir regras fixas e pré-estabelecidas porque existem várias formas de se realizar uma entrevista. Ressaltamos que a: A entrevista significa realmente duas pessoas que estão se olhando. E é nesse olhar-se um ao outro que a fonte oral se justifica, porque constitui um processo de aprendizado. Não estamos estudando fontes: estamos conversando com pessoas que buscam diferentes conhecimentos. E é nessa síntese nova que elaboramos através do diálogo, estamos convencidos, e vivemos essa experiência, que vamos mudar uns e outros (VILANOVA, 1994, p.47). A entrevista, cerne de um projeto de pesquisa da história oral, é uma ação realizada por dois sujeitos que ao mesmo tempo que busca respostas capta novos temas, problemas e injunções acerca da temática que vem sendo problematizada, ou seja, “nos transformamos e transformamos aqueles que entrevistamos. ” (VILANOVA, 1994, p.47) Ademais, de acordo com Meihy e Ribeiro (2011, p.13) as entrevistas realizadas em um projeto de História Oral precisam apontar suas condições para que ocorram porque delas criamos uma fonte escrita. Sabemos que existem quatro gêneros relacionados com a História Oral de acordo com a categorização proposta por Meihy e Ribeiro (2011) como: a história oral de vida, história oral testemunhal, tradição oral e a História Simone Gomes de Faria; Karen Laiz Krause Romig | 99 Oral temática onde são criadas um roteiro de perguntas como peça fundamental para obtermos as respostas necessárias as perguntas demarcadas. Ainda se faz importante salientar que não devemos nos preocupar com a quantidade de sujeitos analisados, e sim, que a sua narrativa nos demonstre suas experiências pessoais relacionadas com o processo histórico que desejamos contextualizar. Ademais, quando nos aportamos de uma pesquisa em que se aproprie metodologicamente da História Oral precisamos ter em mente que os colaboradores ou depoentes devem nos propiciar organicidade ao tema proposto. Em viés conclusivo, vale mais a qualidade da entrevista que Alberti (2004, p.32) denomina “unidades qualitativas” do que as “unidades estatísticas”, ou seja, a quantidade das entrevistas, visto que, em alguns casos pode ocorrer o fenômeno que Meihy e Ribeiro (2011, p.79) denomina “rendimentos decrescentes” ou o processo de “saturação” delianeado por Bertaux (1997). 5 História Oral e memória: contribuições e ponderações A história e a memória não são face da mesma moeda. Neste sentido, de forma mais literal podemos afirmar que a memória é composta por fragmentos soltos do passado que estão ligadas a afetividades quer sejam individuais ou coletivas, já a história é de cunho científico, que por sua vez, tem objetivo de trazer à tona os fatos como assim foram sucedidos, embora, nem sempre ela seja plena ou dotada de uma neutralidade pura. Em suma, a memória constitui-se em documento sendo objeto principal da História Oral que visa a operacionalizar o diálogo entre teoria e os dados empíricos, posto que, a memória segundo Burke (2000) pode ser vista como uma fonte histórica porque realiza uma reconstrução do passado. Deste modo, a memória é seletiva, pois, recordamos o que queremos recordar porque olhamos através da nossa experiência, logo, a memória 100 | Educação, História, Memória eCultura em Debate - Volume II ressignifica a experiência no tempo. O que já foi uma tragédia hoje já não é mais porque os relatos de uma tragédia são ressignificados, ou seja, a Pandemia em que vivemos em um contexto atual há uma interpretação, contudo, daqui um tempo a memória recordará deste momento histórico, porém, haverá uma reinterpretação ao lhe dar sentido no presente, visto que, quando nos acontece algo não entendemos o nos acontece, mas, tentamos dar sentido ao que não tem sentido ainda. No contexto atual -a pandemia- temos um acontecimento difícil em uma narrativa no tempo e no espaço onde procuramos dar sentido ao que não tinha sentido. Para melhor esclarecer esta situação apresentada nos embasamos em Pierre Bordieu (1986) quando ele diz que quando contamos nossa vida é uma ilusão biográfica com ordem sequenciada no tempo e espaço. Ao descrever um tempo depois do acontecido será imiscuído dos sentidos, do olfato, dos ruídos, então, será diferente porque o fato passado é ressignificado no presente. Neste limiar, após mostrarmos algumas ponderações acerca do assunto adentramos nas principais contribuições deste método de pesquisa. A primeira que apontamos é que este método é democrático porque os atores sociais são sujeitos comuns, visto que, podemos entrevistar qualquer pessoa, de qualquer idade porque o que realmente nos importa é o seu ponto de vista, quer seja, através deste método podemos trabalhar com todo tipo de pessoa em vários aspectos conquanto esta sirva para construir fontes para a História e documentar o que ainda não existe com o objetivo central de dar organicidade a um determinado processo histórico, assim, estas fontes servirão de amparo para futuras investigações. Outra contribuição deste método é que por meio da recopilação das fontes e através dos testemunhos orais estas servirão como um meio de entendermos um contexto dentro de um processo que ainda não foi Simone Gomes de Faria; Karen Laiz Krause Romig | 101 analisado, que por sua vez, é divulgado por meio de artigos que são denominados: artigos da palavra. Além disso, o método viabiliza a possibilidade de que possamos examinar os processos históricos através das suas rupturas e suas continuidades, incluso, em temas extemos como aqueles relacionacionados com a pobreza, com os doentes mentais, entre outros. A mais, a História Oral é uma metodologia qualitativa e subjetiva que nos ajuda a ver as representações, os símbolos e através dela criar uma percepção. É importante entender que este método se difere das fontes tradicionais, embora, não menos rigorosa, ou seja, há uma diferença para os adotantes deste método de pesquisa, pois, são os pesquisadores que constroem as fontes que desejam através das entrevistas e, nos casos tradicionais da História as fontes já estão prontas para análise. Assim, a fonte é interpretada pelo historiador onde os documentos escritos são representações de um passado, embora, a verdade não seja absoluta, mas, apresenta um consenso de verdade onde deve ser interpretada. E por fim, a principal contribuição que encontramos ao longo da nossa jornada de estudos é a de que método de pesquisa possibilita a inclusão dos sujeitos como partícipes da História ajudando-os a construírem poder do próprio lugar onde se encontram e talvez este seja um dos motivos por tanto tempo ter sido um método considerado como subversivo. 6 Considerações finais O presente ensaio procurou levantar algumas questões acerca do que é propriamente a História Oral. Partindo dessa premissa, é importante anunciar que com o advento das novas tecnologias da informação, como o gravador e o computador, estes serviram como alavancada para a difusão da oralidade enquanto fonte de pesquisa. 102 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II Ademais, outro fator que possibilitou o uso da História Oral em ambientes acadêmicos/institucionais deve-se pelo fato que se é ampliado o campo de estudos e preocupações do historiador. Neste ínterim, aqui é mais importante análise dos processos e das estruturas do que propriamente daqueles considerados como grandes acontecimentos do passado, ou seja, é colocado um holofote para as questões do tempo presente ou a chamada história recente. Aqui se analisa gente comum, no empenho de valorizar os testemunhos orais como fonte transitando desde as motivações individuais e coletivas. Para tanto, muitos historiadores clássicos não viram com bons olhos porque partem do princípio que a memória apresenta falhas e subjetividades, contudo, este discurso após plausíveis argumentações dos pesquisadores da área têm sido dirimidas ao longo do tempo. Ainda, o ensaio analisa cronologicamente a história da História Oral e aponta que seu uso é tão antigo quanto a própria História, todavia ele só irá ser considerado como um método de pesquisa, técnica ou fonte no século XX. A História Oral passou por várias correntes e movimentos de renovação tanto na Europa como nos Estados Unidos, e assim, desde seu surgimento, por volta de 1950, é somente em 1990 que realmente se torna sistematizado metodologicamente. Os países da América Latina apresentaram um percurso dicotômico dos pertencentes a Europa e o Estados Unidos, visto que, embora desde a década de 70 já fossem utilizados em pesquisas de algumas áreas vem a ganhar força após o período da democratização nos países que vivenciaram as Ditaduras Militares como o caso brasileiro. Nos itens, História Oral: definição e procedimentos teóricos e História Oral: procedimentos práticos de pesquisa nos apoiamos dos fios teóricos de vários autores para definir o que é História Oral, o que é e qual Simone Gomes de Faria; Karen Laiz Krause Romig | 103 o uso entrevista e, algumas questões acerca da memória. Relatamos a importância da entrevista no desenvolvimento do método, além disso, expusemos sinteticamente os tipos recorrentes da História Oral: História Oral Temática, de Vida a Testemunhal e a Tradição Oral consoante a visão de Meihy e Ribeiro (2011). Na parte em que abordamos História Oral e memória: contribuições e ponderações concluímos que sua grande contribuição incide no fato que este método é democrático porque aqui há o interesse pela voz de qualquer pessoa, de qualquer idade, desde que esta tenha um ponto de vista que coadune com os objetivos de um projeto de pesquisa com vistas a dar organicidade a um determinado processo que servirá de fonte histórica para gerações futuras. Além disso, outro ponto de destaque é que este possibilita dar sentido as vozes de pessoas consideradas comuns para que estas se reconheçam e percebam seu lugar de fala, bem como, observa o modo que os encadeamentos históricos acarretaram em suas vidas, pois, trabalhar com a subjetividade não é homogeneizar porque cada sujeito possui sua perspectiva especialmente quando se examina as mudanças e as continuidades na relação dialética do indivíduo com a sociedade. Referências ALBERTI, V. História oral: A experiência do CPDOC. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1990. ALBERTI, Verena. Manual de História Oral. Rio de Janeiro: FGV, 2004. BERTAUX, D. Les récits de vie. Collection 128. Paris: Nathan, 1997. BOURDIEU, Pierre. L'illusion biographique. Actes de la Recherche en Sciences Sociales. v. 62-63, jun., p. 69-72, 1986. 104 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II BURKE, Peter (Org.). A Escrita da História: Novas Perspectivas. Trad. Magda Lopes. São Paulo: Editora Unesp, 2000. CAMARGO, Aspásia. História oral e política. In: FERREIRA, Marieta de Moraes (Org.). História oral e multidisciplinaridade. Rio de Janeiro: Diadorim, 1994. p.75-99. FERREIRA, Marieta de Moraes (org). História oral e multidisciplinaridade. Rio de Janeiro: FINEP/Diadorim, 1994. 157p. FERREIRA,Marieta de Moraes e AMADO, Janaína (Orgs.) Usos e Abusos da História Oral. Rio de janeiro: FGV, 1998. MEIHY, José Carlos Sebe Bom; RIBEIRO, Suzana Lopes Salgado. Guia prático de história oral: Para empresas, universidades, comunidades, famílias. São Paulo: Contexto, 2011. MOITA, Maria da Conceição. Percursos de formação e de trans-formação. In: NÓVOA, António. Vida de professores. Lisboa: Porto Editora, 2007. p. 11-140. JOUTARD, Philippe. "Desafios à história oral do século XXI". In: FERREIRA, Marieta de Moraes; FERNANDES, Tania Maria; ALBERTI, Verena (orgs.). História Oral: Desafios para o século XXI. Rio de Janeiro: Fiocruz, Casa de Oswaldo Cruz e FGV/CPDOC, 2000, p.31-45. MATOS, J. S.; SENNA, A. K. História Oral como fonte: Problemas e métodos. Rio Grande, v. 2, n. 1, p. 95-108, 2011. PORTELLI, Alessandro. Aos cinqüenta anos: uma perspectiva internacional da história oral. In: ALBERTI, Verena et al. (Orgs.). História Oral: Desafios do século XXI. Rio de Janeiro: Fiocruz/Casa de Oswaldo Cruz /CPDOC – FGV, 1998. VILANOVA, Mercedes. Pensar a subjetividade- estatísticas e fontes orais. In: FERREIRA, Marieta de Moraes (Org.). História oral e multidisciplinaridade. Rio de Janeiro: Diadorim, 1994. Simone Gomes de Faria; Karen Laiz Krause Romig | 105 THOMPSON, Paul. A voz do passado. São Paulo: Paz e Terra, 1992. THOMSON, Alistair. Aos cinqüenta anos: uma perspectiva internacional da história oral. In: ALBERTI, Verena et al. (Orgs.). História Oral: Desafios do século XXI. Rio de Janeiro: Fiocruz/Casa de Oswaldo Cruz /CPDOC – FGV, 2000. Capítulo 6 Interfaces entre história oral e memória: contribuições para pesquisas biográficas Scarlett O’hara Costa Carvalho 1 Lia Machado Fiuza Fialho 2 Cristine Brandenburg 3 1 Introdução As pesquisas biográficas são realizadas por meio de fontes orais, documentais, legais, imagéticas, entre outras. As biografias que utilizam os relatos orais, necessariamente trabalham com a memória, que por sua essência, é permeada por esquecimentos e lembranças. Diante disso, questionou-se: Como a história oral pode mobilizar a memória com o mote de contribuir para a elaboração dos estudos biográficos? Para responder a essa problemática central, elaborou-se uma pesquisa com o objetivo de compreender a interface da história oral com a memória, como substratos importantes para o desenvolvimento de estudos biográficos. Desse modo, parte-se de um estudo de abordagem qualitativa, realizando-se uma pesquisa bibliográfica, considerando as contribuições de alguns autores que se dedicam às temáticas memória e história oral: Nora (1993), Le Goff (2003), Meihy e Holanda (2007), Thompson (1992), Alberti (2005), Ferreira e Amado (2006), entre outros. A relevância em utilizar a história oral como metodologia de pesquisa, na qual são realizadas entrevistas com indivíduos, consiste em 1 Mestre em Educação, Doutoranda em Educação, Bolsista Capes/Funcap, scarlettoharacc@gmail.com 2 Doutora em Educação Brasileira, professora da Universidade Estadual do Ceará, Pesquisadora Produtividade CNPq, lia_fialho@yahoo.com.br 3 Doutora em Educação Brasileira, Instituto Dom José de Educação e Cultura/Universidade do Vale do Acaraú, crisfisio13@gmail.com about:blank about:blank about:blank Scarlett O’hara Costa Carvalho; Lia Machado Fiuza Fialho; Cristine Brandenburg | 107 despertar a memória de protagonistas ou testemunhas de acontecimentos e conjunturas no tempo passado ou no presente, pois esta metodologia não se refere apenas à entrevista ou à fonte oral, mas a um conjunto de ações planejadas a partir de um projeto previamente elaborado que contribui para as pesquisas biográficas (MEIHY; HOLANDA, 2007). Justifica-se o envolvimento das pesquisadoras com esta temática em destaque pelo fato de todas estarem engajadas com o grupo de pesquisas Práticas Educativas, Memórias e Oralidades (PEMO), chancelado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico CNPq, vinculado à Universidade Estadual do Ceará (UECE). Dentre vários projetos de pesquisa envolvendo graduandos, mestrandos, doutorandos e pesquisadores de diversas instituições nacionais e internacionais, majoritariamente trabalha-se com pesquisas utilizando a metodologia da história oral para elaborar biografias de mulheres professoras no campo da história da educação (FIALHO; SANTOS; SALES, 2019). Contudo, pressupõe-se que as fontes orais, veiculadas por meio das memórias, são o fio condutor que contribuem para o desenvolvimento das pesquisas de cunho biográfico e corroboram com a preservação da história cultural, social e educacional. 2 Diálogo entrecruzado: história oral e memória em confluência No Brasil, por volta de 1970, por meio do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), da Fundação Getúlio Vargas, começou-se a valorização das pesquisas em história oral, mais especificamente quando foi realizado o I Curso Nacional de história oral, em 1975, em que se buscava registrar os testemunhos vivos da elite econômica quanto ao processo político no decorrer do século XX (ALBERTI, 2005). Desde então, o campo vem sendo debatido por um 108 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II número maior de pesquisadores, ampliando e ganhando credibilidade nos estudos científicos. Meihy e Ribeiro (2011, p. 41) destacam que a história oral pode ser utilizada como ferramenta, técnica, metodologia ou como disciplina: Como ferramenta, a história oral é apenas um complemento em que parte da entrevista vale como ilustração. Nesse caso, não se valoriza a especificidade da narrativa. Como técnica, a história oral é feita para discutir algum postulado já estabelecido. Nessa alternativa, ela deve duvidar dos discursos estabelecidos que, prioritariamente, instruem argumentos que serão contrapostos às entrevistas. Em termos metodológicos, a história oral precede os eventuais diálogos com os argumentos estabelecidos. Nesses casos, primeiro vêm as entrevistas e, em vista delas, questiona-se o balanço bibliográfico sobre o assunto. A vanguarda da história oral defende que ela é um campo disciplinar novo, com objetos, procedimentos e fins próprios. No entanto, não há um consenso na utilização da história oral como disciplina com campo próprio do conhecimento e sua utilização no meio acadêmico é, majoritariamente, como fonte de pesquisa ou como metodologia. Logo, há um consenso entre pesquisadores em destacar a importância da história oral como metodologia (ALBERTI, 2005; FIALHO; CARVALHO, 2017). Assim, utiliza-se a história oral como metodologia, pois percebe-se a importância do trabalho com narrativas por meio de entrevistas orais, o que permite elaborar análises individuais e coletivas, bem como desenvolver compreensões específicas com maior apropriação (ALBERTI, 2005). Além disso, essa metodologia é capaz de contribuir para a análise das memórias mediante as entrevistas realizadas com pessoas de um determinado grupo, envolvido com temas de interesse para a pesquisa em desenvolvimento pelo pesquisador, numa interrelação indissociável entre o indivíduo e o seu contexto (FERREIRA; AMADO, 2006). Scarlett O’hara Costa Carvalho; Lia Machado Fiuza Fialho; Cristine Brandenburg | 109 As fontes orais são fundamentais para compreender as intenções das ações, as tensões, os conflitos, as subjetividades, as crenças e o imaginário do biografado. Por esse motivo destaca-se a fonte oral nas pesquisas biográficas, possibilitando elaborar narrativas tanto de personalidades como “[...] conhecer os sonhos, anseios, crenças e lembranças do passado de pessoas anônimas, simples, sem nenhum status político ou econômico, mas que viveram os acontecimentos de sua época” (MATOS; SENNA, 2011, p. 101). Thompson (1992, p. 25) enfatizaque “A entrevista propiciará, também, um meio de descobrir documentos escritos e fotografias que, de outro modo, não teriam sido localizados”. Salienta-se que, segundo Lüdke e André (1986), a gravação tem a vantagem de registrar o oral, deixando o entrevistador livre para prestar toda a sua atenção ao entrevistado. Sobre isso, Meihy e Ribeiro (2011, p. 13) alertam que: Não se deve confundir história oral com entrevistas simples, isoladas, únicas e não gravadas. Também não cabe chamar entrevistas comuns de história oral, pois em muitos casos elas se orientam por procedimentos e práticas diferentes, respeitáveis e legítimas, mas em outras chaves explicativas ou outras necessidades. O que caracteriza a entrevista em história oral é a sistematização dos processos organizados pela lógica proposta no projeto inicial. A relevância das entrevistas em história oral está relacionada aos participantes selecionados, bem como às condições de sua realização. Reis (1994, p. 126) aponta que “os documentos, fontes orais ou escritas, referem-se à vida cotidiana das massas anônimas, à sua vida produtiva, à sua vida comercial, ao seu consumo, às suas crenças coletivas, às suas diversas formas de organização da vida social”, e, mais do que isso, por meio da memória dos sujeitos singulares, possibilita-se captar individualidades e subjetividades específicas de um ser. 110 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II Todos os meios são tentados para se vencer as lacunas e os silêncios das fontes, mesmo, e não sem risco, os considerados antiobjetivos (REIS, 1994), lançando luz aos sujeitos históricos que nem sempre desfrutaram da devida visibilidade na narrativa histórica oficial. Para Thompson (1992), as fontes orais não devem ser utilizadas apenas como um documento a mais, pois, “[...] se as fontes orais podem de fato transmitir informação ‘fidedigna’, tratá-las simplesmente ‘como um documento a mais’ é ignorar o valor extraordinário que possuem como testemunho subjetivo, falado” (THOMPSON, 1992, p. 137). O advento da tecnologia interferiu na produção historiográfica, estimulando o uso do gravador como instrumento capaz de captar e arquivar a fonte oral, o que permitiu a propagação e ênfase maior em produções com a história oral. Todavia, ao se discutir acerca da história oral, essa questão perpassa a memória, pois trabalha-se diretamente com lembranças, com esquecimentos e com informações que passam pelo filtro do entrevistado. Desse modo, o imbricamento da memória e da história é também a relação entre memória coletiva e individual, sempre entrelaçada e dotada de poder: o de esquecer, de lembrar, de omitir, de silenciar. Sobre isso, Neves (2001, p. 31) reitera que “cada depoimento é único e fascinante em sua singularidade e potencialidade de revelar emoções e identidades”, afinal, um relato sobre um fato pode ser dado de forma diversa por pessoas díspares, ou, no mínimo, as lacunas e esquecimentos podem ser outros, inclusive quando um mesmo sujeito tenta narrar novamente determinado acontecimento. A metodologia da história oral é um importante instrumento de investigação científica, em razão de fomentar novas informações por meio das entrevistas e de proporcionar o encontro de outras fontes documentais. Infere-se, desse modo, que a fonte oral não só é apenas importante, mas necessária para a compreensão historiográfica Scarlett O’hara Costa Carvalho; Lia Machado Fiuza Fialho; Cristine Brandenburg | 111 (CARVALHO, 2018). Nessa perspectiva, cabe ao pesquisador, diante das fontes oficiais de que dispõe, fazer novas perguntas sobre o passado, para escolher novos objetos de pesquisa, isto é, reler alguns tipos de documentos oficiais de novas maneiras e produzir novas fontes e interpretações, por isso é “necessário ler os documentos nas entrelinhas, julgando necessário não apenas colocar ordem no material pesquisado, mas também buscar caminhos para a organização da escrita dessa história vista sob outro prisma” (BURKE, 1992, p. 25 ). Considera-se que a metodologia da história oral traz à lembrança um fato vivido ou presenciado, que, por sua vez, não vem à tona com a mesma imagem com que foi experimentado em um passado, e sim reconstituído a partir das narrativas do presente. Tal reorganização narrativa não intenta uma descrição verdadeira e inquestionável, totalmente fidedigna e perfeita, mas uma versão do que se acredita ser de maior aproximação possível com o real, construída junto às fontes encontradas e elencadas como contribuintes, sem ignorar os filtros do pesquisador que as interpreta desde o seu arcabouço de conhecimentos e visão de mundo. O colaborador, que pode ser o próprio biografado ou não, traz em relato memórias de suas experiências e lembranças a ele repassadas, filtradas consciente ou inconscientemente por ele mesmo, ao disseminá- las. Enfim, na história oral registram-se sentimentos, testemunhos, visões, interpretações em uma narrativa entrecortada pelas emoções do ontem, renovadas ou ressignificadas pelas emoções do hoje. Como assevera Bosi (1994, p. 55), na maior parte das vezes, “[...] lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e ideias de hoje, as experiências do passado”. Bosi (1994, p. 55) assevera ainda que: Por mais nítida que nos pareça a lembrança de um fato antigo, ela não é a mesma imagem que experimentamos na infância, porque nós não somos os 112 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II mesmos de então e porque nossa percepção alterou-se e, com ela, nossas ideias, nossos juízos de realidade e de valor. O simples fato de lembrar o passado, no presente, exclui a identidade entre as imagens de um e de outro, e propõe a sua diferença em termos de ponto de vista. Concorda-se com Bosi (1994, p. 21) no que concerne a sua conceituação sobre lembranças, pois acredita-se que “[...] uma lembrança é um diamante bruto que precisa ser lapidado pelo espírito. Sem o trabalho da reflexão e da localização, ela seria uma imagem fugidia”. O percurso da memória, portanto, é permeado de falas e de silêncios, que dependem dos sentimentos vividos pelos sujeitos, bem como pela correlação de forças sociais; e nem tudo vem à tona nas lembranças. Conforme afirma Pollak (1989, p. 8), “[...] existem na lembrança de uns e de outros zonas de sombra, silêncios e ‘não ditos’”. Isto é, as fronteiras desses silêncios com o esquecimento definitivo e o reprimido inconsciente não são evidentemente estanques, pois estão em deslocamento contínuo, isto é, considera-se que o silêncio ou o esquecimento também são reveladores de conflitos. De tal modo, importa trazer à tona o silêncio e o esquecimento, como artefatos reveladores de conflitos valorosos para o desenvolvimento das pesquisas biográficas. Assim, a intensidade das emoções, as frustrações, os conflitos e tensões lembrados são acompanhados de sentidos tecidos pelo amálgama entre passado, presente e futuro. Percebe-se, dessa maneira, que não somente os fatos são guardados na memória, mas também os sentimentos experienciados. Há um processo de seletividade, de filtragem, de negociação, de conciliação, do que deve ser lembrado. Vasconcelos e Araújo (2016, p. 18) asseveram que “São momentos de ressignificação do tempo. Um deslocamento entre passado-presente. São as marcas do tempo que se agitam na lembrança e partilham seus segredos mais recônditos”. Dessa forma, essas Scarlett O’hara Costa Carvalho; Lia Machado Fiuza Fialho; Cristine Brandenburg | 113 subjetivações possibilitam lançar luz às interpretações que os sujeitos constroem sobre si e sobre seus artefatos, clarificando o que sentem e pensam acerca das vivências pessoais e grupais. Ainda de acordo com esses autores, É como se tal narrativa pudesse, de alguma forma, reviver momentos com os olhosdo presente, quando as lembranças passam a ser não somente lembranças, mas feixes de instantes que foram recompostos pelas inúmeras mediações que se deslocam entre passado e presente. São pedaços de realidades que não podem mais ser apalpados, pois se evaporam entre os dedos, mas podem ser rememorados. A entrevista seria, então, a possibilidade de colar as lembranças e os retalhos da vida dos que se foram e que revivem no contexto da narrativa (VASCONCELOS; ARAÚJO, 2016, p. 20). Para Jucá (2003, p. 52) “o valor do uso da História oral reside na possibilidade de diálogo a ser mantido entre o entrevistado e o pesquisador, no qual a subjetividade na construção do conhecimento histórico não brota exclusivamente de uma única posição, mas do diálogo travado entre o entrevistador e o entrevistado”. Ainda sobre essa assertiva, Alberti (2005, p. 14) pontua que: A entrevista ganha maior dimensão quando resulta da cumplicidade prolongada entre entrevistador e entrevistado. O pesquisador deve construir com o entrevistado uma relação de sensibilidade e de rigor; de adesão no processo de compreender e de crítica atenta no processo de indagar, de reconstituição e questionamento. Cumplicidade controlada garante a dimensão e a consistência do que é revelado. É importante elucidar a ideia de que, mesmo compreendendo que a história oral não se caracteriza por ser um retrato fiel de ocorrências, certamente ela evidencia interpretações muito pessoais constituídas ao longo da trajetória de vida de cada um sob circunstâncias particulares. 114 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II Afinal, os acontecimentos são contados mediante os filtros culturais que a própria sociedade edifica. Como destacam Matos e Senna (2011), as lembranças são filtradas ativando aquilo que é significativo. O entrevistado vai escolhendo o que falar, elaborando, assim, sua narrativa. Conquanto, ressalta-se que é por intermédio desse crivo que se pode realizar uma reflexão mais rica quanto às histórias. Segundo Schultz (1964), cada pessoa experimenta e conhece o fato social de maneira particular, mas as experiências vivenciadas e internalizadas ganham significados que perpassam o convívio grupal, de modo que as interpretações dos acontecimentos não se reduzem à soma dos elementos, mas sim à compreensão dos modelos culturais e das particularidades do entorno. Consoante com esse autor, Thompson (1992) enfatiza a riqueza e a importância da memória dos sujeitos, como os entrevistados contam suas histórias do passado, alternativa para uma abordagem histórica, um estudo que valoriza e dá tratamento às fontes de uma memória viva. Um novo paradigma é estabelecido a partir de então, passando a memória pessoal a ter um significado cada vez maior para a memória coletiva. Isto é, uma possibilidade de análise da vida indissociada da coletividade. Para Halbwachs (2004, p. 85), “[...] toda memória é coletiva, e como tal, ela constitui um elemento essencial da identidade, da percepção de si e dos outros”. A memória está viva, ou seja, ao relatar fatos e histórias de vida, o documento vivo passa a expor o que está ou ficou guardado na memória dos indivíduos. A memória é espontânea ou induzida, e somente relata o que realmente o sujeito tem vontade de falar. Cabe ao pesquisador ser ético a fim de reproduzir com fidelidade o que lhe foi dito, sendo recomendável evitar as revisões minuciosas das entrevistas realizadas, quando as pretensas correções ou a clareza desejada, que podem desvirtuar o conteúdo autêntico das narrativas. Para Thompson (1992), a história oral Scarlett O’hara Costa Carvalho; Lia Machado Fiuza Fialho; Cristine Brandenburg | 115 funciona a partir do interesse social do pesquisador, surgindo como maneira de “dar voz” aos que por algum motivo não têm uma história contada. A partir dessa proposta de uma nova alternativa de trabalhar a história, os pesquisadores passaram a utilizar dados orais para ouvirem aqueles que não tiveram suas histórias no registro documental, que não galgaram visibilidade social. Por isso, “[...] a evidência oral pode conseguir algo mais penetrante e mais fundamental para a história, contribui para uma história que não só é mais rica, mais viva e mais comovente, mas também mais verdadeira” (THOMPSON, 1992, p. 137). Não se trata apenas de apresentar uma nova perspectiva sobre os fatos e entendê-la como uma verdade inquestionável acerca das fontes coletadas, ao contrário, visa oferecer um arcabouço de informações expressas nas narrativas orais dos sujeitos históricos, o que pode garantir uma análise mais apurada dos acontecimentos e dos sujeitos envolvidos. Ou seja, a compreensão dos contextos que influenciam os sujeitos na elaboração de relatos de memória, sejam eles escritos ou narrados oralmente, contribui para as pesquisas biográficas (DOSSE, 2015). Segundo Thompson (1992), não há fontes totalmente seguras, pois tanto o oral como o escrito podem ser modificados. Admite ainda que o processo da memória depende também da percepção de como ela acontece. Salienta que o documento escrito foi produzido dentro de um determinado contexto, seja ele social, cultural ou político e por isso, é passível de várias interpretações. Em consonância com esse pensamento, Le Goff (2003, p. 548) pontua que a fonte documental é “[...] o resultado de uma montagem, consciente ou inconsciente, da história da época, da sociedade que o produziu, mas também das épocas sucessivas durante as quais continua a viver”. Interessa, pois, salientar que a história oral ganha sentido quando deixa de ser documento equiparável aos escritos já existentes. Por ser 116 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II fundamento de “outra visão”, a história oral merece destaque (MEIHY; RIBEIRO, 2011). As fontes orais entrecruzadas com as fontes documentais conseguem expressar e realçar as lembranças constituintes de uma narrativa para além dos discursos já prontos, memorizados. É perceptível, portanto, o caráter metodológico de que trata a história oral na elaboração de pesquisas científicas, pois não se detém apenas a questionar teorias preexistentes por meio dos relatos obtidos com as entrevistas, nem de apresentar uma verdade em detrimento das outras perspectivas, mas de abordar lembranças, esquecimentos e subjetividades, contemplando um universo de significados, significações, ressignificações, representações psíquicas e sociais, simbolizações, simbolismos, percepções, pontos de vista, perspectivas, experiências de vida e analogias (TURATO, 2003). Uma pesquisa que utiliza essa metodologia precisa considerar e valorizar os silêncios, os esquecimentos, a gesticulação, o semblante do entrevistado e tudo o que acompanha sua narrativa, pois as subjetivações intrínsecas ao informante também são aspectos importantes de análise (FIALHO, 2012). Com efeito, é a partir da memória das narrativas de pessoas sem larga expressividade pública, que esses estudos possibilitam não somente a visibilidade desses indivíduos sujeitos igualmente históricos, mas trazem à tona suas contribuições e seus feitos. Segundo Burke (2010), as memórias são constituídas pela reconstrução do passado por meio do presente, e as pesquisas biográficas seriam o resultado desse momento de lançar luz à lembranças e/ou esquecimentos. Sobre a memória, Nora (1993, p. 9) elucida que: [...] é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente; a história, uma representação do passado. Porque é afetiva e mágica, a memória não se acomoda a detalhes que a confortam: ela se alimenta de lembranças vagas, telescópicas, globais ou flutuantes, particulares ou simbólicas, sensível a todas as transferências, cenas, censuras ou projeções. A história, porque operação Scarlett O’hara Costa Carvalho; Lia Machado Fiuza Fialho; CristineBrandenburg | 117 intelectual e laicizante, demanda análise e discursos críticos. A memória instala a lembrança no sagrado, a história a liberta e a torna sempre prosaica [...]. De modo congruente com o exposto por Nora (1993) e asseverado por Le Goff (2003, p. 419), acredita-se que “[...] a memória é a propriedade de conservar certas informações, propriedade que se refere a um conjunto de funções psíquicas que permite ao indivíduo atualizar impressões ou informações passadas, ou reinterpretadas como passadas”. A memória é a base constituidora da oralidade. Portanto, como discorreu Nora (1993), ela, apesar de sempre atual, não apresenta precisão, pois está constantemente ajustada às crenças e ao imaginário dos indivíduos. Bosi (1994, p. 281) atenta para o fato de que a “[...] memória é, sim, um trabalho sobre o tempo, mas sobre o tempo vivido, conotado pela cultura e pelo indivíduo”. A autora afirma que o tempo social acaba consumindo o individual, fazendo com que a percepção pessoal seja acolhida pela coletiva. A memória é produto de um trabalho de ressignificação tecido pela amálgama entre presente e passado; ela vem à tona à medida que é fabricada, sem necessidade de linearidade (LE GOFF, 2003). Tal fabricação requer tratamento teórico e metodológico por parte daqueles que se dedicam à coleta das lembranças. Sobre a memória, Delgado (2010, p. 16) acrescenta que A memória, principal fonte dos depoimentos orais, é um cabedal infinito, onde múltiplas variáveis – temporais, topográficas, individuais, coletivas – dialogam entre si, muitas vezes revelando lembranças, algumas vezes, de forma explícita, outra vezes de forma velada, chegando em alguns casos a ocultá-las pela camada protetora que o próprio ser humano cria ao supor, inconscientemente, que assim está se protegendo das dores, dos traumas e das emoções que marcaram sua vida. 118 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II Por meio da história oral são produzidas as narrativas orais, sendo elas, as próprias narrativas de memória. Entretanto, as narrativas de identidade na “medida em que o entrevistado não apenas mostra como ele vê a si mesmo e o mundo, mas também como ele é visto por outro sujeito ou por uma coletividade” (SILVEIRA, 2007, p. 41). Thompson (1992, p. 197) diz que: “Toda fonte histórica derivada da percepção humana é subjetiva, mas apenas a fonte oral permite desafiar essa subjetividade: descolar as camadas de memória, cavar fundo em suas sombras, na expectativa de atingir a verdade oculta”. Sabendo que a memória é dinâmica e que muda e evolui de época para época, é pertinente que seu uso seja relativizado, uma vez que o objeto de análise, no caso, não é a narrativa objetivamente falando nem sua relação contextual, e sim a interpretação do que ficou (ou não) registrado nas lembranças das pessoas e que foi passado para a escrita (MEIHY; HOLANDA, 2007). Nas palavras de Reis (2000, p. 32), “O presente liga-se ao passado e o passado ao presente de tal forma que o passado se torna presente e o presente imuniza-se contra a sua sorte, que é se tornar passado”. Compreende-se, assim, que a memória representa um mecanismo do presente por intermédio de vivências e experiências ocorridas em um passado, assim a vida de toda pessoa, seja ela “anônima” ou não, possui valor para a História. O uso da história oral para o desenvolvimento de pesquisas biográficas e investigações de outros campos, torna-se relevante, por possibilitar o trabalho com memórias e narrativas de pessoas que testemunharam acontecimentos importantes da História, pois permite outro olhar acerca dos fatos narrados pela História Oficial (FERREIRA; AMADO, 2006), Há uma articulação entre o particular e o geral, isto é, entre aquilo que se constitui como específico de uma narrativa e o momento histórico em que ela acontece. As falas são produzidas por sujeitos em um contexto Scarlett O’hara Costa Carvalho; Lia Machado Fiuza Fialho; Cristine Brandenburg | 119 sócio-histórico, que fazem uso da memória e da palavra, e isso implica o trabalho com o que é dito e não dito, com o que é silenciado. O pesquisador precisa estar atento a essa oralidade, pois, mesmo que o silêncio não fale, “O silêncio é. Ele significa. Ou melhor: no silêncio, o sentido é [...]; ele passa pelas palavras. Não dura. Só é possível vislumbrá-lo de modo fugaz. Ele escorre por entre a trama das falas” (ORLANDI, 1997, p. 34). A história oral, ao trabalhar com lembranças, esquecimentos e subjetividades, não objetiva uma verdade histórica, mas sim a ampliação dessa compreensão. Ela define-se pelo “[...] resultado de experiências que vinculam umas pessoas às outras, segundo pressupostos articuladores de construções de identidades decorrentes de memórias expressadas em termos comunitários” (MEIHY; HOLANDA, 2007, p. 27). Nas palavras de Alberti (2005, p. 155), a história oral “[...] permite o registro de testemunhos e o acesso a histórias dentro da história e, dessa forma, amplia as possibilidades de interpretação do passado”. Silva (2009) infere que a memória transformou-se, para muitos, no objeto da história oral. Desse modo, os pesquisadores começaram a considerar que, a partir do entendimento do processo de formação da memória histórica, poderiam compreender como os indivíduos vinculam passado e presente, bem como a necessidade de valorizar as identidades, as memórias e as visões de mundo de grupos por vezes invisibilizados em determinadas fontes tradicionais (MAIA; BRAGA JÚNIOR; FIALHO, 2015). Para Fialho (2020), ao trabalhar com memórias o pesquisador biográfico deve-se ater aos interesses do estudo, não se trata exclusivamente de gravar as narrativas, um depoimento, ou uma história de vida, pois, ao “captar algo que ultrapassa o caráter individual do que é transmitido e se insere na interpretação que terá para a coletividade, já que a vida que emerge na biografia de um grupo que tem história, e a 120 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II história é construída e constituída pela interação dos indivíduos” (FIALHO et al., 2020, p. 9). Conclui-se, portanto, que é a partir da memória que se torna factível compor as narrativas biográficas, pois ao tratarem da história de vida de um indivíduo, seja ele um sujeito comum ou de grande visibilidade social, possibilitam não somente lançar lume a esses indivíduos, sujeitos históricos, mas permitem trazer à tona sua existência imbricada em compreensões subjetivas que qualificam a interpretação de minúcias individuais e coletivas interdependentes do contexto social, cultural, econômico e político em que se insere. Os atos de relembrar e narrar, mobilizados com a história oral, configuram-se como uma oportunidade de refletir acerca de acontecimentos ao despertar lembranças relatadas mediante a oralidade, mais rica em detalhes. Por último, salienta-se que as pesquisas biográficas tornam-se relevantes, haja vista que contribuem para melhor compreensão da realidade sócio-histórica de determinado período e das subjetividades do sujeito, revelando singularidades e particularidades de um coletivo indissociadas do individual. 3 Algumas considerações O presente artigo foi perspectivado com o objetivo de compreender a interface da história oral com a memória, como substratos importantes para o desenvolvimento de estudos biográficos. A pesquisa apontou que o uso da história oral em pesquisas biográficas é relevante metodologicamente, pois proporciona uma abordagem interdisciplinar que valoriza o sujeito. A utilização dessa metodologia permite que se manifestem, no presente, realidades diversas do passado que foram, de algum modo, ofuscadas ou não. Assim, torna-se factível compreender que o valor do uso da história oral reside na possibilidade de diálogo a ser ScarlettO’hara Costa Carvalho; Lia Machado Fiuza Fialho; Cristine Brandenburg | 121 mantido entre o entrevistador e o entrevistado, na (re)elaboração de narrativas históricas. A história oral, dessa forma, mobilizada a partir da memória como mote, contribui com a elaboração de estudos biográficos, na medida em que é utilizada como metodologia de pesquisa, inclusive já consolidada no campo científico. Sendo assim, reproduzidas em diversos estudos acadêmicos biográficos, vêm perpetuando a história de vida de indivíduos e do seu contexto sócio-histórico, ou seja, de uma sociedade. Diante do exposto, os resultados apontaram que a memória transformou-se no objeto da história oral, pois a história oral produz narrativas orais que são narrativas de memória. O trabalho com história oral, especificamente no gênero biográfico, exige inferência sobre a memória, pois trabalha-se diretamente com lembranças e com esquecimentos, propositais ou naturais, que vão compor um rol de informações que passam pelo filtro de reminiscências tanto do colaborador, como do pesquisador, que é quem vai interpretá-las. Para compor uma narrativa oral é necessário recorrer à memória, logo, a interface da história oral com a memória encontra-se galgada na constituição das lembranças apresentadas, que passam pela mobilização individual e pelo processo subjetivo de trazê-las à tona em forma de narrativas oralizadas. Dessa maneira, a história oral, ao trabalhar com memórias, lembranças, esquecimentos, lança lume ao cotidiano e às subjetividades inerentes a este, pois aborda um universo de significados, ressignificações, simbolismos e percepções de experiências de vida, que são verbalizadas por quem as vivenciou direta ou indiretamente. Pode-se inferir, todavia, que a história oral possui importância nas pesquisas biográficas do tempo presente, visto que tem capacidade de propiciar uma melhor compreensão da construção da história do indivíduo na sociedade. Todavia, as discussões não se esgotam aqui, ao contrário, propõe-se que 122 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II esse capítulo seja utilizado como aporte para estimular novos estudos e suscitar outras curiosidades e indagações acerca da temática em tela. Referências ALBERTI, V. Manual de história oral. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005. BOSI, E. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. BURKE, P. A Escola dos Annales (1929-1989): a revolução francesa da historiografia. 2. ed. São Paulo: Unesp, 2010. BURKE, P. A escrita da História: novas perspectivas. São Paulo: Unesp, 1992. CARVALHO, S. O. C. Irmã Maria Montenegro: formação e atuação educacional empreendidas na educação cearense (1945-2005). 2018. Dissertação (Mestrado em Programa de Pós-Graduação em Educação) - Universidade Estadual do Ceará. DELGADO, L. A. N. História Oral: memória, tempo, identidades. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. DOSSE, F. O desafio biográfico: escrever uma vida. Tradução de Gilson César Cardoso de Souza. São Paulo: Edusp, 2015. FERREIRA, M. M.; AMADO, J. (Orgs.). Usos e abusos da História Oral. 8. ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2006. FIALHO, L. M. F. A experiência socioeducativa de internação na vida de jovens em conflito com a lei. 2012. 359 f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós- Graduação em Educação, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2012. FIALHO, L. M. F.; BRAGA JUNIOR, V. R. de S.; MONTE, R. S.; BRANDENBURG, C. O uso da história oral na narrativa da história da educação no Ceará. Práticas Educativas, Memórias e Oralidades - Rev. Pemo, [S. l.], v. 2, n. 1, p. 1–13, 2020. Disponível em: Scarlett O’hara Costa Carvalho; Lia Machado Fiuza Fialho; Cristine Brandenburg | 123 https://revistas.uece.br/index.php/revpemo/article/view/3505. Acesso em: 14 maio. 2021. FIALHO, L. M. F.; SANTOS, F. M. B. ; SALES, J. A. M.. Pesquisas Biográficas na História da Educação. Cadernos de Pesquisa, v. 26, p. 11-29, 2019. Disponível em: http://www.periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/cadernosdepesquisa/article/ view/12743/689. Acesso em: 14 maio 2021. FIALHO, L. M. F; CARVALHO, S. O. C. História e memória do percurso educativo de Célia Goiana. Série-Estudos, Campo Grande, v. 22, p. 137-157, 2017. Disponível em: https://www.serie-estudos.ucdb.br/serie-estudos/article/view/992. Acesso em 14 maio 2021. HALBWACHS, M. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2004. JUCÁ, G. N. M. A oralidade dos velhos na polifonia urbana. Fortaleza: Imprensa Universitária, 2003. LÜDKE, M.; ANDRÉ, M. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas. São Paulo: EPU, 1986. LE GOFF, J. História e memória. 5. ed. Campinas: FGV, 2003. MAIA, S. S.; BRAGA JÚNIOR, V. R. S.; FIALHO, L. M. F. Biografias de idosos: uma fonte para pesquisas. In: FIALHO, L. M. F.; SANTANA, J. R.; VASCONCELOS, J. G. (Org.). Fontes orais em pesquisas educacionais. Fortaleza: UFC, 2015. p. 19-30. MATOS, J. S.; SENNA, A. K. História oral como fonte: problemas e métodos. Revista Historiæ, Rio Grande, v. 2, n. 1, p. 95-108, 2011. Disponível em: https://periodicos.furg.br/hist/article/view/2395. Acesso em: 14 maio. 2021. MEIHY, J. C. S. B.; RIBEIRO, S. L. S. Guia prático de História oral: para empresas, universidades, comunidades, famílias. São Paulo: Contexto, 2011. about:blank about:blank about:blank about:blank about:blank about:blank about:blank about:blank about:blank about:blank 124 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II MEIHY, J. C. S. B.; HOLANDA, F. História oral: como fazer como pensar. São Paulo: Contexto, 2007. NEVES, L. A. Memória e história: substratos da identidade. In: História Oral: Revista da Associação Brasileira de História Oral. – São Paulo: ABHO, 2001. NORA, P. Entre memória e História: a problemática dos lugares. Projeto História, São Paulo, n. 10, p. 7-28, 1993. ORLANDI, E.P. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. Campinas, SP. Editora da UNICAMP. 1997. POLLAK, M. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, p. 3-15, 1989. REIS, J. C. Escola dos Annales: a inovação em História. São Paulo: Paz e Terra, 2000. REIS, J. C. Tempo, história e evasão. Campinas: Papirus, 1994. SILVEIRA, E. S. História Oral e memória: pensando um perfil de historiador etnográfico. MÉTIS: história & cultura, v. 6, n. 12, p. 35-44, jul./dez. 2007. Disponível em: http://www.ucs.br/etc/revistas/index.php/metis/article/view/835. Acesso em: 14 maio 2021. SCHULTZ, A. Equality and the social meaning structure. Collected Papers II. Hague: Martinus Nijhoff, 1964. SILVA, M. G. L. P. A Escola Normal do Ceará nos anos de 1930 a 1950: palco de debates políticos e pedagógicos no calor das reformas. 2009. 235 f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2009. THOMPSON, P. A voz do passado. Tradução Lólio Lourenço de Oliveira. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. file:///C:/Users/marce/Documents/Editora%20Fi/Cooking/X%20-%20Cesar%20Evangelista%20Fernandes%20Bressanin/Volume%202/Disponível%20em: about:blank Scarlett O’hara Costa Carvalho; Lia Machado Fiuza Fialho; Cristine Brandenburg | 125 TURATO, E. R. Tratado da metodologia da pesquisa clínico-qualitativa. Petrópolis: Vozes, 2003. VASCONCELOS, J. G.; ARAÚJO, M. M. Narrativas de mulheres educadoras militantes no contexto autoritário brasileiro (1964-1979). Fortaleza: UECE: Imprece, 2016. Capítulo 7 Patrimônio e memória: ações educativas que promova o conhecimento dos bens de natureza materiais e imateriais da cidade de Mossâmedes Stefany Lorrane Menezes Ferreira 1 1 Introdução Ao falar-se sobre educação patrimonial devemos compreenderque é um processo complexo e intensamente amplo, abrange vários métodos, profissionais, áreas especificas e públicos diversificados. De acordo com a obra “Para repensar a educação patrimonial” de Simone Scifoni (2015) A educação patrimonial não pode ser vista como produto ou como sinônimo de divulgação de informações, mas como um processo em que se busca criar uma nova relação entre os moradores e o seu patrimônio (SCIFONI, 2015, p. 198). Diante a essa citação é notório a participação ativa que as ações educativas têm sobre as comunidades em seu processo de reconhecimento e tratamento com os seus bens patrimoniais. Assim sendo o cenário da cidade de Mossâmedes se torna o espaço a qual se faz necessário o desenvolvimento de ações educativas, que possuam o intuito de promover o conhecimento e a aproximação da população com o seu patrimônio cultural, as temáticas destas ações devem voltar-se para os patrimônios materiais e imateriais da cidade, tendo como propósito mapear quais são 1 Mestranda pela Universidde Estadual de Goiás. Câmpus Cora Coralina. Programa: PROMEP Estudos Culturais, Patrimônio e Memória. Email: sthefanyh_ta@hotmail.com mailto:sthefanyh_ta@hotmail.com Stefany Lorrane Menezes Ferreira | 127 esses bens culturais para os moradores, justamente com o objetivo de haver esse elo de proximidade da comunidade com o seu bem patrimonial. As origens da cidade de Mossâmedes é marcada pelo processo de colonização e dominação, usando-se da religião católica como um dos seus principais instrumentos, o mesmo foi criado com o objetivo de ser um local de catequização dos índios caiapós. Em sua formação espacial, estrutural e arquitetônica, se torna notável a grande presença do catolicismo desde a iniciação da formação do município. Quando se tem acesso as plantas antigas e compara-se com o que o município se tornou hoje, resta-se daquela época apenas a Igreja Matriz de São José, no entanto ao refletir-se sobre a sua sociedade, o catolicismo esta entrelaçada à cultura dos dias atuais. A cidade é preponderantemente católica e suas principais ações culturais são de cunhos religiosos. Esse é o cenário a qual este artigo sobre educação patrimonial propõe-se desenvolver. Grande parte da população não possui conhecimento histórico e conceitual de cultura e patrimônio cultural, seguem as tradições sem por diversas vezes conhecer a simbologia que esta representa. Ao promover as ações educativas o objetivo central é o mapeamento do patrimônio cultural da cidade, visando o conhecimento e despertamento dos indivíduos em relação aos seus bens culturais e a importância que os mesmos possuem. 2 Cidade de Mossâmedes: formação histórica A cidade de Mossâmedes tem em seu passado intrigantes processos históricos, principalmente no que se refere ao seu surgimento e desenvolvimento. Segundo Monteiro (1951) O projeto de construção do aldeamento de São José de Mossâmedes tinha por objetivo tornar-se um local de 128 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II alojamento e catequização de índios caiapós, lugar este que se tornou uma expressão do domínio dos colonizadores sobre os colonizados. Segundo Sérgio Buarque de Holanda (1995) postula que para muitas nações conquistadoras a construção de cidade representou um grande instrumento de dominação. E um dos fatores de destaque nesse instrumento de dominação foi à religiosidade, visível na formação das cidades coloniais através do encontro entre a cruz, a espada e o poder colonizador da igreja e do estado. Essa realidade é visivelmente percebida quando analisamos as primeiras plantas elaboradas sobre o surgimento do aldeamento de São José de Mossâmedes. De acordo com o folhetim produzido por Ofélia Sócrates Nascimento Monteiro, em 1951, afim de bem alojar os índios chamados à civilização, resolveu D. José erigir, perto de Vila Boa, um aldeamento modelo. Para isso foi ele, pessoalmente, escolher o local, que recaiu na região onde havia uma roça de José Vaz. Foram destacados alguns alferes de dragões para a comissão de inspecionar as obras em execução. Um regente ao qual cabia zelar pela parte econômica e pela educação dos aldeados. Como medida de economia, a fim de evitar os gastos com feitores, foram destacados os dragões para administrar as roças e a fazenda de gado. Não existe consenso acerca do ano da construção do aldeamento de São José de Mossâmedes. Enquanto, Cunha Mattos (1856), Souza (1998) e Saint- Hilaire (1975) afirmam que ele foi construído em 1755 e reedificado em 1774, outros autores, Alencastre (1979) e Ofélia Sócrates (1951), falam deste aldeamento como se ele tivesse iniciado em 1774. Porém, pode se ver através de algumas histórias, que nesse intervalo que vai de 1755 à 1774 houve uma possível destruição do aldeamento, tendo seu recomeço em 1774. Contudo, nenhum dos autores que afirmam ter sido o aldeamento construído em 1755 explica o que aconteceu da construção até sua “reconstrução” em 1774. Stefany Lorrane Menezes Ferreira | 129 Segundo Raymundo José da Cunha Mattos: (...) A aldea, agora denominada São José, existia no anno de 1755 como habitação dos índios Cayapôs; foi reedificada no anno de 1774 com a denominação de São José, e elevada a Parôquia no anno de 1780. O Governador e Capitão Geral José de Almeida e Vasconcellos deu-lhe o sobrenome de Mossâmedes, e construionella casas que mais parecem palácios, do que lugares de vivência de Índios quase selvagens. Esses palácios, onde, temporariamente residirão alguns generaes, estão reduzidos a ruínas em consequência da fraqueza da sua construção. Está assentada na parte meridional da Serra Dourada. (...). (MATTOS, 1856, p. 137). Os dados mais convincentes e esclarecedores parecem estar na obra de Alencastre (1863). Ao afirmar que a construção desse aldeamento data de 1774, este autor apresenta documentação adequada para a confirmação. José Martins Pereira de Alencastre afirma que: Esse projeto foi levado avante, indo ele mesmo, (o governador – José de Almeida de Vasconcelos de Soreval e Carvalho – Barão de Mossâmedes) escolher e demarcar a cinco léguas de Vila Boa o terreno em que devia ele ser fundado, ao qual deu logo o nome de São José de Mossâmedes, que não só recorda o nome próprio do seu fundador, como do seu solar de Mossâmedes. (ALENCASTRE, 1979, p. 214). Durante o período do século XVIII, o processo de colonização ainda era muito presente, sendo uma de suas grandes ferramentas a catequização, ou seja, a disseminação do cristianismo da igreja católica. Assim como ocorreu em Vila Bola, posteriormente, denominada cidade de Goiás. Durante este período, várias cidades e povoamentos foram erigidos baseando-se, preponderantemente, na economia mineradora. Seja de forma direta ou indireta, São José de Mossâmedes recebe esta influência 130 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II ao se pensar o propósito de sua formação: os índios caiapós por muitas vezes saqueavam bandeirantes/brancos que utilizavam das estradas e rotas para se locomoverem juntamente com sua mercadoria e ouro. No entanto, o medo começava a solar estes indivíduos, pois não havia segurança em transitar em certas regiões, locais em que viviam estes índios. Em um dado momento, - segundo algumas fontes historiográficas como o livro de Célia Brito (1982) Luiz Palacin (1976) e Ofélia Sócrates (1951) - este fato começou a incomodar a corte de Portugal, e a Capital Vila Boa, surgindo, por isso, o projeto de construção do aldeamento de São José de Mossâmedes. Houve uma mudança de governo em Vila Boa. Em 1781, Luiz da Cunha Menezes assume o governo da Capitania, sob seu mandato, o mesmo passou a missão para José Luiz Pereira, que era a de promover a conquista pacífica dos índios Caiapós. Levava ele 50 homens práticos nessasexcursões pelo sertão e três índios da aldeia para servirem de intérpretes. Após estas expedições trouxeram dois netos maioral da tribo, um dos quais veio uma menina sendo esta batizada pelo nome de Damiana por Luiz da Cunha Menezes. Índia, a qual futuramente auxiliaria na catequização e na busca de índios para povoar o aldeamento. Nos dias de hoje, ela ainda é uma figura importante: a praça principal da cidade - onde reside a Igreja Matriz de São José - tem o seu nome e a bandeira do Município leva seu rosto estampado. Por volta de 1771, foi construído na aldeia de São José um pátio em que no centro das extremidades ergueu-se a Igreja Matriz; sendo usada uma técnica com terra socada, como se as paredes fossem de um grande adobe, medindo mais de um metro de largura. Até os dias atuais essa técnica usada não apresenta rachaduras. Nos cantos do pátio, construíram-se edifícios, como a residência do governador. Ao redor Stefany Lorrane Menezes Ferreira | 131 foram surgindo às casas, alojamentos para os índios caiapós, formando assim, um conjunto arquitetônico regular e planejado. Ao analisar a planta original da cidade é identificável a forte presença do catolicismo desde seus moldes iniciais. O traçado urbano da cidade se forma entorno de uma edificação religiosa que possui visualmente um lugar de destaque, seguindo um quadrilátero as demais construções se formam envolto da igreja sendo que a mesma representa o ponto mais alto, desta maneira se torna perceptível a forte presença da religião católica na formação do espaço urbano do aldeamento. Ao indagar sobre Mossâmedes um dos pontos de referência para a identificação da cidade, são suas festas tradicionalmente católicas e a Igreja Matriz que se localiza na praça central da cidade. As principais práticas culturais do município são de cunhos religiosos, algo que não é por acaso, quando analisamos o passado histórico da cidade, é notório que a sociedade e seu espaço ainda são bastante influenciados pelas suas origens, o catolicismo é impregnado dentro desta comunidade, porém muitos não possuem essa consciência histórica e cultural, reproduzindo nestes espaços praticas carregadas de simbolismos e tradições, sem o devido conhecimento. Desta maneira a relevância social da ação educativa é contribuir para a compreensão dos aspectos culturais e patrimoniais da cidade de Mossâmedes, é problematizar qual a influência e o impacto que seu passado histórico possui sobre sua cultura e identidade. É por meio de esta iniciativa colaborar para que a população de forma geral tenha acesso e conexão aos seus bens culturais, ir além de uma transmissão de informações, mas buscar a proximidade da comunidade mossamedina com o seu patrimônio cultural. De acordo com HORTA (1999) 132 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II O conhecimento crítico e a apropriação consciente pelas comunidades do seu Patrimônio são fatores indispensáveis no processo de preservação sustentável desses bens, assim como no fortalecimento dos sentimentos de Identidade e cidadania. A Educação Patrimonial é um instrumento (...) que possibilita ao individuo fazer a leitura do mundo que o rodeia, levando-o à compreensão do universo sociocultural e da trajetória histórico-temporal em que esta inserido (HORTA,1999, p. 4) Sendo assim a importância da aplicação da ação educativa, consiste em justamente despertar na sociedade mossamedina essa consciência histórica e cultural, mostrar que a cidade tem seu valor, que possuem aspectos relevantes para a história, despertar esse sentimento de identidade e cidadania. Muitas vezes quando dialogamos com os jovens que residem à cidade, os mesmos olham a igreja como algo velho sem valor, tratam as festas como mera atividade de lazer, sem analisar os elementos sociais que os envolvem, por tanto a ação educativa se objetiva justamente a isto, atiçar estes jovens sobre a relevância cultural desses espaços, demonstrando o valor que os mesmos possuem. De acordo com MACHADO (2010) Observando a paisagem urbana, percebemos a sua produção material, a tecnologia que está presente em cada canto do espaço, os saberes que são transmitidos. Esse cenário, construído historicamente, revela essa dimensão concreta da cidade, independentemente do seu tamanho. Nela há também uma dimensão abstrata que está repleta de códigos, símbolos, de representações, percebidos quando desvelamos as relações sociais, os ritos, os usos e costumes, a arte de conviver, a estética, as formas de dominação/exclusão (MACHADO, 2010, p. 36). Desta forma o objetivo da ação educativa se voltará, em despertar o olhar crítico e social dos cidadãos de Mossâmedes, buscará a compreensão e o interesse deles para com sua cidade, identificando junto a eles seus Stefany Lorrane Menezes Ferreira | 133 bens patrimoniais, suas memórias, tradições e identidade, visando à consciência de sua relevância histórica e cultural. 3 Patrimônio e Memória: ação educativa sobre bens patrimoniais O presente artigo tem como intuito desenvolver uma discussão acerca de Educação Patrimonial e suas ações educativas diante as comunidades, demonstrando a importância e a relevância social que esta área possui sobre a sociedade e seus bens patrimoniais. De acordo com o site do IPHAN: A Educação Patrimonial constitui-se de todos os processos educativos formais e não formais que têm como foco o patrimônio cultural, apropriado socialmente como recurso para a compreensão sócio-histórica das referências culturais em todas as suas manifestações, a fim de colaborar para seu reconhecimento, sua valorização e preservação. Considera-se, ainda, que os processos educativos devem primar pela construção coletiva e democrática do conhecimento, por meio da participação efetiva das comunidades detentoras e produtoras das referências culturais, onde convivem diversas noções de patrimônio cultural (IPHAN, 2014). Nota-se desta forma que a educação patrimonial é um processo responsável pela busca da proteção e da preservação do patrimônio cultural, é por meio destas ações educativas que ocorre a aproximação da comunidade com o seu bem patrimonial. É através das metodologias que regem este processo que por diversas vezes cria-se um elo entre a sociedade e partes de seu patrimônio cultural material e imaterial. O patrimônio faz parte de uma seleção dentro de um espaço cultural, é escolhido e determinado para representar a cultura de um povo, faz parte de sua identificação perante aos demais grupos, é permeado de simbologia, tradição, identidade e memórias. No entanto neste processo de selecionar os bens patrimoniais algumas classes se sentem exclusas, e http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Educacao_Patrimonial.pdf 134 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II não conseguem se identificar diante ao seu patrimônio cultural, é nesta instancia que surge a educação patrimonial, a mesma possui a responsabilidade de conhecer a comunidade e prove-la a opção de nomear o que realmente consideram seu patrimônio cultural. Quando falamos patrimônio, rapidamente ligamos essa palavra ao passado ou algo que devemos preservar. Ensina Oliven (2003), patrimônio refere-se a algo que herdamos e que, por conseguinte, deve ser protegido. Dessa forma, podemos afirmar que patrimônio é preservar algo que corre o risco de ser destruído. Sabemos que patrimônio cultural é essencial para a história da humanidade e consequentemente precisa ser conservado, ele faz parte daquilo que somos e onde pertencemos da curva para nossa identidade seja ela local, regional ou até mesmo nacional. O patrimônio cultural vai além do concreto, como a autora Marília Londres Fonseca mesma afirma “além da pedra e da cal”. As manifestações da cultura popular ou da cultura eruditasão elementos que também precisam ser preservados, fazem parte da história. Como aponta Oliven: No Brasil, a legislação sobre o patrimônio cultural é da década de 1930, quando o país passou por um processo de integração nacional, com o aprofundamento da construção da brasilidade. A opção feita naquela época foi realizada pela arquitetura de elite. Mário de Andrade propôs, em 1936, um projeto de lei em que também fossem incluídos, no patrimônio brasileiro, os falares, os cantos, as lendas, as magias, a medicina e a culinárias indígenas (OLIVEN, 2003, p. 80-81). Ao levantar-se a discussão sobre o conceito de patrimônio é notável que o mesmo passou por um processo de formação, no início o bem cultural era apenas os bens materiais, como por exemplo as igrejas, os Stefany Lorrane Menezes Ferreira | 135 palácios, castelos, ruínas, arquiteturas relacionadas principalmente a elite, no entanto com o decorrer dos anos, com novos estudos e referenciais teóricos, esse conceito se ampliou, abrindo espaço para novos agentes históricos. A história nesse momento vai além dos dominantes, a voz silenciada dos dominados cria curvas, sons e imagens. Desta maneira é indispensável falarmos sobre a educação patrimonial, a mesma assume um papel de mediação entre a sociedade e o seu patrimônio, faz parte do processo de conhecimento e aproximação das comunidades com os seus bens culturais. Dentro desse campo ações educativas são desenvolvidas, com o intuito de dar voz à população, deixar que a mesma tenha a possibilidade de nomear o que para ela seria seu patrimônio cultural, como está se identifica, onde ela pertence e se reconhece. De acordo com Scifoni, Educação Patrimonial pensada não na perspectiva tradicional de levar conhecimento ou ensinar a população sobre o seu patrimônio, mas ao contrário, de compreender o patrimônio a partir das histórias e dos significados atribuídos pelos seus moradores, reconhecendo a existência de um saber local, considerando o olhar e a vivencia desses, e criando uma perspectiva de participação social no processo de identificação e proteção do patrimônio (SCIFONI, 2015, p. 200). Durante muito tempo o patrimônio foi apenas determinado pelas autoridades e elites locais, levando em consideração o belo, o imponente, sem destacar os componentes sociais, as tradições, as memórias, a cultura popular, o imaterial, as identidades, se tornando desta maneira um fator de exclusão, no entanto este quadro tem sofrido alterações e a educação patrimonial faz parte desse processo. 136 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II Entre essas questões não podemos deixar de destacar a memória, está é um dos elementos chaves ao se tratar de cultura e patrimônio cultural. Segundo COSTA: A memória é um mecanismo cerebral complexo. Pessoas a usam para guardar ou esquecer informações. E lembranças carregadas de emoções, são as mais guardadas na memória, mesmo que remetam às situações duras ou difíceis pelas quais passamos (COSTA, 2014, p.8). Sendo assim as memórias estão ligadas essencialmente as emoções, as pessoas mantêm nas lembranças aquilo que é importante para elas, elementos que fazem parte de suas vidas e da sua história, o ser humano é formado por esse conjunto de lembranças, são elas que os definem e os moldam, enquanto pertencentes de uma sociedade e de grupos sociais. Ao discorrermos sobre o conceito de memória é impossível não citarmos Pierre de Nora, de acordo com o autor memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos, então sempre estará sujeita a ser lembrada ou esquecida, é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente. Nora (1993) afirma: A memória não se acomoda a detalhes que a conforta, ela se alimenta de lembranças vagas, telescópicas, globais ou flutuantes, particulares ou simbólicas, sensível a todas as transferências, cenas, censuras ou projeções. A história demanda análise e discurso crítico. A memória instala a lembrança no sagrado, a história liberta, e a torna sempre prosaica (NORA, 1993 p. 9). Nesse sentido, vimos que a memória é enraizada no concreto, no espaço, na imagem, no objeto, a memória é algo absoluto, um fenômeno puramente privado. De acordo com Nora (1993) não existe memória espontânea, por isso é preciso criar arquivos, manter datas Stefany Lorrane Menezes Ferreira | 137 comemorativas, organizar celebrações, notariar atas, porque essas operações não são naturais. A relação entre memória e história se estabelece na instancia que os historiadores se tornam guardiões da memória, transcreve os acontecimentos para ser lembrado posteriormente. Conforme Burke (2000), historiadores tão diversos como Heródoto, Froissart e Lord Clarendon afirmaram escrever para manter viva a memória de grandes feitos e de grandes acontecimentos. Tanto a história quanto a memória enfrentam uma seleção, interpretação e distorção socialmente condicionado, seja consciente ou inconscientemente. Nora (1993) acredita que os chamamos de memória é a constituição gigantesca e vertiginosa do estoque material daquilo que nos é impossível lembrar, repertório insondável daquilo que poderíamos ter necessidade de nos lembrar. Na medida em que a memória começa a desaparecer, surge a necessidade de acumular vestígios, testemunhos, documentos, imagens, sinais do que já foi. A preservação das memórias, das tradições, dos bens patrimoniais se torna importante justamente porque são esses elementos que dão vida e suporte para as identidades culturais, são a essência de um povo, representa simbolicamente o que eles são, é o que os fazem únicos, diferentes, são sua cultura. Desta forma a preservação do nosso patrimônio cultural é necessária, tanto quando se trata de patrimônio material quanto de patrimônio imaterial. Patrimônio material se refere às igrejas, estátuas, quadro etc. Patrimônio imaterial são as práticas regulares, o conjunto das manifestações culturais, tradicionais e populares, ou seja, as criações coletivas, emanadas de uma comunidade, fundadas sobre tradição (UNESCO, 1993). Temos como exemplo de patrimônio cultural imaterial a procissão do Fogaréu que acontece todo ano na Cidade de Goiás. 138 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II Segundo Fonseca (2003) na Constituição Federal de 1988 em seu artigo 216, patrimônio cultural brasileiro é: Os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referências à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais incluem: as formas de expressão; os modos de criar; fazer e viver; as criações científicas, artísticas e tecnológicas; as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico (FONSECA, 2003, p. 62). Assim sendo surge à importância da educação patrimonial e suas ações educativas, ao descrevermos os conceitos de patrimônio cultural, bens de natureza material e imaterial, memória e cultura, notamos que ambos estão relacionados às identidades dos povos, são o que os tornam particularmente diferentes, únicos e importantes. O objetivo da ação educativa a qual se busca desenvolver, está relacionada intrinsecamente a esses conceitos. A cidade de Mossâmedes é uma comunidade pequena, porém rica em práticas sociais e culturais, no entanto ao fazer pequenos levantamentos é detectável que a maioria da população, principalmente os jovens, não possui o conhecimento da história do surgimento do município e quais são seus bens patrimoniais, reproduzem tradições sem a consciência do simbolismo que aquela prática carrega. As memórias da população mossamedinaassim como suas tradições estão ligadas fortemente ao catolicismo, e quando refletimos sobre as origens da cidade é notório que isso não é por acaso, existe todo um contexto histórico e social por trás dessa trama. A cultura da cidade volta- se muito ao exercício da religião católica, desta maneira a ação educativa Stefany Lorrane Menezes Ferreira | 139 na cidade de Mossâmedes visa compreender além do que as fontes escritas mostram, busca ouvir e da voz a população, entender o que para ela é seu patrimônio, sua história, suas memórias, sua identidade, como estes se reconhecem e onde eles pertencem. Ao desenvolver está ação educativa o público alvo será os jovens, justamente na busca de perceber os elementos culturais que estão sendo transmitidas, quais as memórias estão sendo passadas, o que a população de Mossâmedes considera importante, de valor cultural e social, quais são os seus bens patrimoniais, o que para eles devem ser preservados, e desta forma a ação educativa terá como um dos seus elementos principais mapear os bens culturais da cidade seja de valor material ou imaterial. 4 Considerações Finais Na produção do artigo ao refletirmos sobre o objetivo da ação educativa na cidade de Mossâmedes, é notório como o seu passado histórico influencia sua cultura e seu patrimônio cultural. Apesar das grandes alterações na paisagem urbana do município a Igreja Matriz de São José ainda é seu principal ponto de referência, algo que não é por acaso, já que ao analisarmos as práticas sociais da cidade, é perceptível a grande predominância do catolicismo sob a cultura. Quando se analisa as plantas antigas e o que Mossâmedes se tornou atualmente, é impossível não refletir sobre a manutenção da Igreja enquanto único patrimônio cultural material e como isso influencia as práticas sociais da cidade. No entanto nem toda a população possui este conhecimento histórico, não compreendem como a história do surgimento do município ainda está tão presente no seu dia a dia, e como esta impacta a sua identidade enquanto mossamedino, não apenas sua identidade, mas como suas memórias, tradições, bens patrimoniais, sua cultura. 140 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II Portanto a ação educativa tem como propósito conscientizar a sociedade mossamedina de como o seu presente esta entrelaçado intrinsecamente ao seu passado, as influências que suas origens têm sob sua cultura e suas estruturas sociais. Ao mapear os bens patrimoniais da cidade, o intuito está em dar a população à oportunidade de nomear o que para ela seria seu patrimônio cultural, aproximando-a afetivamente e emocionalmente de sua realidade e de seus bens patrimoniais. Referências ALENCASTRE, J. P. M. Anais da Província de Goiás, 1863. Convênio SUDECO/GOVERNO DE GOIÁS. Goiânia, 1979. BRITO Célia Coutinho S. A mulher, a história e Goiás. 2 ed. Goiânia: Dep. de Cultura, 1982. BURKE, P. História como memória social. In: BURKE, Peter. Variedades de história cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. COSTA, Sabrina Campos. O Patrimônio Cultural em sala de aula: abordagens interdisciplinares nos municípios paraenses. João Pessoa: Iphan, 2014. (caderno temático; 4). FONSECA, Maria Cecília Londres. Para além da pedra e cal: por uma concepção ampla de patrimônio cultural. In: ABREU, Regina e CHAGAS, Mário (org). Memória e patrimônio: ensaios contemporâneos. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. HOLANDA, Sérgio Buarque de, 1902- 1982. Raízes do Brasil. In: O Semeador e o Ladrilhador. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. Cap. 4, p. 93 - 138. HORTA, Maria de Lourdes Parreira; GRUNBERG, Evelina; MONTEIRO, Adriane Queiroz. Guia básico de educação patrimonial. Brasília: IPHAN: Museu Imperial, 1999. Stefany Lorrane Menezes Ferreira | 141 MACHADO, M. B. P.; MONTEIRO, K. M. N. Patrimônio, identidade e cidadania: reflexões sobre educação patrimonial. In: BARROSO, V. L. M. [et al] (Org.). Ensino de História: desafios contemporâneos. Porto Alegre: EST Edições, 2010, p. 25 – 37. MATTOS, Raymundo José da Cunha. Itinerário do Rio de Janeiro ao Pará e Maranhão pelas províncias de Minas Gerais e Goiaz. Rio de Janeiro, 1856. MONTEIRO, Ofélia Sócrates. História de São José de Mossâmedes. (Produção Caseira) 1951. NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Trad. Yara Aun Khoury. In: Projeto História, n. 10, São Paulo: PUC-SP, 1993 p. 07-28. OLIVEN, Rubens George. Patrimônio intangível: considerações iniciais. In: ABREU, Regina; CHAGAS, Mário (Orgs.). Memória e patrimônio: ensaios contemporâneos. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. PALACIN, Luiz. Fundação de Goiânia e desenvolvimento de Goiás. Oriente, 1976. SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem à província de Goiás. São Paulo: Edusp, 1975. SCIFONI, Simone. Para repensar a Educação Patrimonial. In: PINHEIRO, Adson R. S. (Org.). Cadernos do patrimônio cultural: Educação Patrimonial. Fortaleza: Secultfor: Iphan, 2015, p. 195 – 206. SOUZA, José Antônia Gomes de. Objetos do Riso. Goiânia: Ed. Do autor. 1998. Capítulo 8 Contributos e desafios da educação patrimonial no contexto da pandemia do Covid 19 Giselda Shirley da Silva1 Vandeir José da Silva2 1 Introdução Este texto apresenta como objeto de estudo a educação patrimonial e os contributos para o processo educativo e para a formação e fortalecimento identitário, percebendo-a também como instrumento de difusão do patrimônio cultural elencando como plano de observação, as cidades de Paracatu e João Pinheiro, ambas localizadas na região Noroeste do Estado de Minas Gerais. O objetivo da pesquisa foi conhecer e analisar os contributos e desafios encontrados para a realização de educação patrimonial na contemporaneidade, elencando estes dois municípios mineiros como espaço de estudo. A inquietação que moveu a pesquisa perpassa pela adoção de medidas e ações que estão sendo desenvolvidas nestes dois municípios do Noroeste de Minas em relação a educação patrimonial, levando em consideração as dificuldades encontradas para a realização das ações educativas nestes tempos de pandemia do Covid 19. Essas dificuldades são pensadas levando 1 Doutoranda - Universidade de Évora/Universidade de Lisboa - Portugal. Pesquisadora Integrante- CIDEHUS-UE - Centro Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedades da Universidade de Évora. Mestre em História Cultural pela Universidade de Brasília- (UnB). Membro do projeto de pesquisa - Educação, História, Memória e Cultura em Diferentes Espaços Sociais – PUC - Pontifícia Universidade Católica de Goiás. E-mail: giseldashyrley@hotmail.com 2 Doutorando pela Universidade de Évora/Universidade de Lisboa, Portugal. Pesquisador Integrante do CIDEHUS – UE, Centro Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedades da Universidade de Évora. Bolseiro FCT. Mestre em História Cultural pela UnB, Universidade de Brasília. Membro do projeto de pesquisa Educação, História, Memória e Cultura em Diferentes Espaços Sociais da PUC, Pontifícia Universidade Católica de Goiás. E-mail: vandeirj@hotmail.com Giselda Shirley da Silva; Vandeir José da Silva | 143 em consideração que os decretos municipais determinam o isolamento social, fazendo assim, com que, as instituições promotoras dessas ações educativas busquem encontrar novas possibilidades e (re) inventar as ações de modo a promover uma educação que contribua para o conhecimento e difusão dos bens culturais da região. A pesquisa foi realizada no viés qualitativo e teve como suporte teórico autores que partilham do solo da história cultural e da educação. A investigação no campo se deu com entrevistas como profissionais que atuam em instituições que promovem essas ações e documentos do acervo da Secretaria de Cultura e Turismo dos municípios de Paracatu e JoãoPinheiro. Atendendo as exigências das Deliberações Normativas do Conselho Estadual do Patrimônio Cultural- CONEP- e visando pleitear repasse de recursos do ICMS no critério Patrimônio Cultural, os municípios desenvolvem projetos e ações de educação patrimonial, observando as diretrizes dessas Deliberações são elaborados relatórios de todo o processo educativo e uma cópia é encaminhada ao Iepha-MG e a outra fica no acervo das Secretarias de Cultura e Turismo dos municípios. Assim, a pesquisa documental foi feita mediante a análise desses conjuntos documentais e fundamentaram a apresentação dos dados aqui apresentados. Buscou-se viabilizar reflexões sobre o patrimônio cultural e educação patrimonial entendendo a necessidade de pensar sobre a memória, cultura e educação, sendo estes elementos constitutivos da nossa identidade e partindo do pressuposto que a educação possui uma força fundamental na formação das pessoas contribuindo para a transformação da sociedade. Tendo como palavras-chave, “Educação Patrimonial, cultura, identidade”, fundamentou os estudos em Le Goff (2003), Silva (2011), Pelegrini (2009), Nora (2012), Gonçalves (2015), Canclini (1994), Castriota. 144 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II O estudo desvelou os desafios encontrados pelos municípios para a realização das ações de educação patrimonial em contexto pandêmico e adverso, sendo a necessidade de isolamento social um fator dificultador na realização das ações. 2 Educação patrimonial: conceitos e reflexões acerca da caminhada da educação patrimonial em Paracatu e João Pinheiro É fundamental conceber a Educação Patrimonial em sua dimensão política, a partir da concepção de que tanto a memória como o esquecimento são produtos sociais. É preciso o enfrentamento do desafio de encarar a problemática de que, no Brasil, nem sempre a população se identifica ou se vê no conjunto do que é chamado de patrimônio cultural nacional. Sônia Regina Rampim Florêncio Nas palavras da autora percebemos a importância da educação patrimonial em sua dimensão política e identitária. A autora traz algumas diretrizes para o entendimento conceitual em relação as atividades educativas que enfoquem tema do patrimônio cultural. Segundo ela: A Educação Patrimonial se constitui de todos os processos educativos formais e não formais que têm como foco o patrimônio cultural apropriado socialmente como recurso para a compreensão sócia histórica das referências culturais em todas as suas manifestações com o objetivo de colaborar para o seu reconhecimento, valorização e preservação. Considera ainda que os processos educativos de base democrática devem primar pela construção coletiva e democrática do conhecimento, por meio do diálogo permanente entre os agentes culturais e sociais e pela participação efetiva das comunidades detentoras e produtoras das referências culturais onde convivem noções de patrimônio cultural diversas (FLORENCIO et al, 2014) A partir das palavras de Florêncio, podemos perceber a relevância da educação patrimonial para o fortalecimento do sentimento de Giselda Shirley da Silva; Vandeir José da Silva | 145 pertencimento e amor à cidade. Nesse sentido, afirmou sabiamente a Professora Cléria Botelho da Costa (2011) ao relacionar educação patrimonial e cidadania, argumentando que partia “do argumento de que a identificação com a cidade, o amor a ela é o móvel que conduz os sujeitos a uma prática cidadã. Em outros termos, o sentimento de pertença a um grupo, a uma cidade estimula a participação coletiva em práticas de preservação do patrimônio”. Ainda em suas reflexões, a historiadora deixou explícito seu lugar de fala e entendimento acerca do patrimônio cultural, relacionando-o a “um vestígio do outrora no presente que ilumina a construção do futuro, em outros termos, que se configura na tridimensionalidade - presente, passado e futuro” (COSTA, 2011). Nesse sentido, se pauta na definição de tempo de Benjamim (BENJAMIN, 1989, p. 226). A educação patrimonial enquanto projeto educativo e fruto de política pública é relativamente recente. Carlos Henrique Rangel e Rodrigo Flávio de Melo Faleiro, que atuavam no Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais - IEPHA/MG, apresentaram breve histórico da trajetória da educação patrimonial em Minas Gerais, fazendo uma abordagem empírica, didática e criativa. Segundo eles: Formalmente a Educação Patrimonial é trabalhada pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais – IEPHA/MG – há pouco tempo. Algumas ações foram realizadas para envolver as comunidades desde a década de 1980, mas nunca se seguiu de forma contínua e sistemática. As primeiras ações visavam uma efetiva participação da comunidade. Depois sentiu-se necessidade de uma maior fundamentação teórica. Por meio da parceria entre a Secretaria de Estado da Educação e a Fundação João Pinheiro foi discutida uma nova metodologia de ação educativa e cultural. Porém, foi com a criação do ICMS Cultural que se conseguiu uma maior expansão do conceito “educar pela memória” por diversos municípios do Estado (FALEIRO, RANGEL, 2013) 146 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II Pela narrativa apresentada, podemos observar que há alguns anos tem-se realizado projetos e ações educativas voltadas para a educação para o patrimônio tanto em nível estadual quanto municipal. Essa política adotada em prol da proteção e difusão do patrimônio cultural parte do entendimento da importância da atuação social e educativa no tema da preservação dos bens culturais coletivos. No mesmo direcionamento das iniciativas do Estado de Minas Gerais, foi estimulado a adoção de políticas locais de proteção e difusão do patrimônio cultural dos diferentes municípios que compõe esta Unidade da Federação. Estímulo este que vem reforçado por uma política de incentivo fiscal que estimula os gestores municipais a criarem e fortalecerem seus setores de cultura e entre as ações adotadas, a criação de projetos de educação patrimonial. 3 Educação patrimonial em Paracatu e João Pinheiro A Deliberação Normativa do CONEP 020/2018 determina que em relação aos Programas de Educação para o Patrimônio e ações de Difusão os municípios devem apresentar o conjunto documental que corrobore e informe acerca dos projetos e ações educativas em andamento, detalhando como está sendo realizada a educação patrimonial junto aos variados públicos e espaços sociais da municipalidade, da mesma forma, as ações de difusão e os materiais produzidos para divulgação do patrimônio cultural local. Esse conjunto documental foi muito importante para a narrativa que apresentamos acerca do objeto proposto para análise. Em Paracatu, conforme dados obtidos na pesquisa de campo, desde 2008 quando se criou a Secretaria da Cultura no município, desenvolve- se trabalhos de educação patrimonial. O público alvo era prioritariamente educacional e as ações realizadas presencialmente. Em Paracatu, no ano de 2020, fez-se algumas ações presenciais e outras por meio de Giselda Shirley da Silva; Vandeir José da Silva | 147 videoconferências. Nos demais anos, o público alvo foi prioritariamente o escolar, já, em 2020, foi mais diversificado. Em ambas as cidades, no que se refere aos contributos e desafios, percebe-se semelhanças entre as duas realidades estudadas. Entre os fatores que influenciaram para a criação de uma política cultural local voltada para a educação patrimonial está a criação da Secretária de Cultura e Turismo em Paracatu (2008) e em João Pinheiro (2009). Todavia, em ambos já haviam instituições locais voltadas para a preservação da memória histórica, sendo em Paracatu, a Fundação Casa de Cultura e em João Pinheiro criada na década de 1990 e em dezembro de 2006a Casa da Cultura de João Pinheiro. Outro fator motivador é a Política Cultural do Estado de Minas, que, por meio da Lei Robin Hood Lei Estadual n. º 18.030/20093 e o repasse do ICMS Cultural aos municípios mineiros, tem, nos últimos anos, estabelecido como um dos critérios para obtenção da pontuação a realização de uma política cultural local que inclua a educação patrimonial. Por meio de Deliberações Normativas são apresentadas as orientações para que os municípios desenvolvam as ações educativas no estado, visando, de certa maneira “nortear” o trabalho de educação patrimonial, como um dos pilares da política cultural. Em 2018, entrou em vigor a Deliberação Normativa CONEP Nº06/2018, mantendo-se em vigência até princípio de 2021. Assim as ações educativas realizadas em tempo da Pandemia do COVID 19, para fins de pontuação tiveram que adequar as recomendações da referida normativa. Em 2021 entrou em vigor a nova Deliberação, a qual continuará a orientar os trabalhos ainda nesse período de pandemia, sendo os relatórios dessas ações encaminhados ao Instituto 3 Distribuição da parcela da receita do produto da arrecadação do ICMS pertencente aos municípios de Minas Gerais - Critério patrimônio cultural 148 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais – Iepha-MG e também mantidos no acervo das referidas secretarias municipais de cultura. Com o repasse de recursos resultantes do ICMS no critério Patrimônio Cultural, o município tem condições de investir em uma política cultural local, e manter um trabalho efetivo e contínuo de educação patrimonial. O quadro III dessa Deliberação Normativa, que trata da salvaguarda e promoção, no seu item “c) aborda especificamente os Programas de Educação para o Patrimônio nas Diversas Áreas de Desenvolvimento, enfocando especificamente a relação de procedimentos a serem documentados e informados sobre a elaboração de projetos e a realização de atividades de educação patrimonial. Nessa perspectiva, os municípios necessitaram recriar suas ações observando a Deliberação Normativa e os decretos municipais que orientaram sobre as condutas dos indivíduos em tempos da pandemia. Assim, os Programas de Educação para o Patrimônio assim como definido na Deliberação Normativa 20/2018, foram compostos de diversas áreas que englobaram ações envolvendo o Setor Municipal de Patrimônio Cultural, as escolas, desenvolvimento de ações em locais de memória coletiva e em obras de conservação e restauração. Assim, podem “promover ações integradas de Educação para o Patrimônio com ênfase nos processos culturais, produtos e manifestações. As ações deverão ser de iniciativa da administração municipal e ter a como público alvo os diversos grupos sociais da população local” (DN 06/2018) A partir desses eixos, os municípios puderam promover ações integradas de Educação para o Patrimônio Cultural com ênfase nos processos culturais, seus produtos e manifestações. Destaca-se que as Giselda Shirley da Silva; Vandeir José da Silva | 149 ações deverão ser de iniciativa da administração municipal e ter a como público alvo os diversos grupos sociais da população local. Em relação aos contributos, pode-se inferir que o maior deles é cooperar para o conhecimento da história local, construção da identidade, levando em consideração serem os seguintes eixos temáticos contemplados na educação patrimonial: Patrimônio Cultural/Objeto Cultural - Material e Imaterial; História; Memória; Identidade e Cultura. Observamos assim, como o trabalho de educação patrimonial é fundamental para a preservação da memória e construção da identidade, pois, conforme Candau (2014, p.10), “memória e identidade estão indissoluvelmente ligadas”. A preservação da memória é, na perspectiva de Pesavento (2012, p. 402) “igualmente presentifcação de um ausente, é narrativa que comporta uma imagem, é construção imaginária de um tempo”. Em relação aos desafios encontrados, conforme foi percebido na análise documental, os dois municípios inseridos neste estudo já tinham um eixo direcionador dos trabalhos que, de certa maneira, foi “interrompido” com a pandemia do COVID 19, sendo necessário que se (re) criassem as ações, o modo de fazer, a relação com o público alvo. Muitas ações que haviam sido previamente planejadas tiveram que ser descartadas, adiadas e ou modificadas, tal como ocorreu com a grande maioria dos municípios mineiros. Em Minas gerais, tal como em outras Unidades da Federação, foram adotadas medidas restritivas de convívio social, sendo estabelecidos decretos que normatizaram as ações evitando aglomerações para conter a disseminação do vírus. Nesse contexto, o calendário escolar em todo o estado foi suspenso desde o mês de março de 2020 como uma medida ações de prevenção e enfrentamento ao coronavírus, sendo esta uma 150 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II determinação adotada pelo governo do estado e seguida pelos gestores municipais. Desde 2020, alguns decretos municipais regularam o funcionamento de alguns estabelecimentos e impôs medidas restritivas para conter aglomeração das pessoas em espaços que não fossem estritamente necessários. Em João Pinheiro, houve suspensão de atividades presenciais e restrição de circulação de pessoas durante a pandemia COVID-19 no município regulamentados pelos decretos, entre os quais mencionamos os de número 134-2020 (Medidas para conter pandemia COVID 19), o de nº 230-2020 (medidas complementares para enfrentamento ao COVID-19), nº 413/ 2020 - Normas Covid. Em Paracatu, o Decreto nº 5.637 de 17 de março de 2020 declarou situação de emergência no âmbito do legislativo em decorrência do surto da doença respiratória e tratou de medidas para seu enfrentamento. De forma geral, na área da cultura e do Patrimônio Cultural, diversas ações da municipalidade foram impactadas com o isolamento social. Em João Pinheiro e Paracatu, as ações de educação patrimonial impactadas em decorrência do isolamento social foram aquelas que dependiam de atendimento presencial, eventos públicos com qualquer aglomeração, atendimento no museu, biblioteca, casa da cultura, atividades culturais festivas. Entre elas, podemos citar como exemplo, as festividades de folia de reis, capoeira, entre outras atividades que envolviam a presença das pessoas. Considerando a atuação do Setor Municipal de Patrimônio Cultural, as ações que que estavam sendo planejadas puderam ser realizadas normalmente antes da vigência do decreto de isolamento social (a partir de 01 de dezembro de 2019 a março de 2020), sendo impactadas no período posterior a março quando se adotou as medidas restritivas. Nesse Giselda Shirley da Silva; Vandeir José da Silva | 151 sentido, citamos as ações de educação patrimonial com escolas e comunidade; o 40º Encontro Regional de Folias de Santos Reis realizado no período de carnaval de 2020; o giro natalino de folias de reis; visitação nos locais onde haviam presépios, os quais haviam sido inscritos no circuito de presépios e lapinhas de Minas reuniões, presenciais do Conselho Municipal de Patrimônio Cultural; atendimento presencial nos museus, biblioteca, casa da Cultura, entre e outras ações. Nesse cenário, o Setor Municipal de Patrimônio Cultural buscou adotar medidas visando minimizar os impactos da restrição de circulação sobre as ações. Como determinado nos decretos que tratavam das medidas de enfrentamento ao COVID 19, houve restrição de circulação de pessoas nos espaços públicos de preservação da memória, como no museu, casa da cultura, biblioteca, sendo o funcionamento dessas instituições regulamentado pela administração pública. As ações de educação patrimonial presenciais foram suspensas e adotadas atividades remotas, como exemplo,Webinar, fórum de discussão, conferências, minicursos, seminários, tudo realizado pelo Google Meet. Adotou-se com maior efetividade o uso das tecnologias, e meios de comunicação usando as mídias, tais como WhatsApp, faceboock, rádio, discussões em grupos de WhatsApp. No diagnóstico da situação dos grupos culturais e detentores do patrimônio cultural que foram mais impactados em João Pinheiro, sendo que, muitos enfrentaram dificuldades no cotidiano no âmbito pessoal e na manutenção da tradição em decorrência do contexto em se viveu/vive em tempos de pandemia e em relação a restrição de circulação, dificultando a manutenção e recriação de suas práticas. Entre as dificuldades encontradas pelos foliões de Santos Reis na manutenção da tradição, está a própria realização do rito e dos giros tradicionais. Em João Pinheiro há grupos de folias temporâneas, ou seja, 152 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II que fazem as apresentações e cantam aos Três Reis Santos durante todo o ano, ajudando cumprir promessas e com as orientações de isolamento social. Todavia, os grupos deixaram de fazê-lo, principalmente porque são em sua grande maioria, idosos integrantes dos grupos de risco. Muitos não sabem usar as mídias para continuar a divulgação do bem cultural, apesar da Associação estar se esforçando para manter a tradição, tendo realizado ao longo do ano duas lives beneficentes. Essas duas lives ajudaram na difusão da tradição, mas, não foram todos os grupos que participaram. Não podem mais fazer as reuniões periódicas na sede da Associação para não haver aglomeração. Não participaram de eventos regionais ou estaduais com apresentação das folias, como fazem todos os anos, pelo fato, de não terem sido estes realizados no contexto atual. As escolas, cujo público-alvo das ações educativas em João Pinheiro e Paracatu foram fechadas, fazendo-se necessário que se (re) pensasse acerca da necessidade de ampliar o leque de abordagem, inserindo outros seguimentos sociais e outros meios de comunicação. Nesse sentido, o Iepha-MG realizou Rodadas virtuais para orientar os municípios na forma de realização das atividades e apresentar outras possibilidades de ação. Assim, diferente do que era realizado nos anos anteriores, as equipes das secretarias de cultura aqui estudadas tiveram que se adequar e fazer uso das tecnologias para conseguir superar as dificuldades impostas pelo isolamento social e conseguirem, inda assim, desenvolver ações de educação patrimonial. Na área de desenvolvimento de “locais de memória coletiva”, a maioria das ações eram realizadas majoritariamente voltadas para visitas guiadas em bens materiais imóveis. Em João Pinheiro, nessa área foram realizadas duas atividades diferentes, que foram Em João Pinheiro na área de desenvolvimento de Locais de memória coletiva foram realizadas duas ações, sendo a primeira, com a participação Giselda Shirley da Silva; Vandeir José da Silva | 153 em Programa de Rádio Jornal da Nova - Rádio Nova FM da cidade de João Pinheiro/MG, com a temática “Patrimônio Imaterial: Grupos de Folia de Reis - Tradição do Município e bem imaterial registrado”, sendo realizada a parceria com a rádio local, a Associação dos Foliões de Santos Reis e o Conselho Municipal de Patrimônio Cultural. A reflexão foi mediada pelo jornalista Welington e a participação da Presidente do Conselho Municipal de Patrimônio Cultural de João Pinheiro, e pesquisadora de Folia de Reis, doutora Maria Célia da Silva Gonçalves e Mailton, folião e representante da Associação da Folia de reis de João Pinheiro. A segunda ação foi com os Grupos Vinculados, “Centro Cultural Esportivo Pé Firme e Grupo de Capoeira Nagô”. Esta ação foi presencial, mas inserindo apenas alguns membros de cada grupo e observando as orientações quanto as normas de proteção e cuidados para evitar a disseminação do vírus. Foi realizada discussão sobre o Patrimônio Cultural com recorte no patrimônio imaterial e medidas de salvaguarda e proteção do mesmo; importância da capoeira no contexto histórico cultural do Brasil, em Minas Gerais e João Pinheiro. A área de desenvolvimento do Setor, e escolas todas as sete ações foram realizadas utilizando mão de videoconferências pelo Google Meet, e sendo realizada Webinar, fórum de discussão, conferência, seminários, roda de conversa e minicurso, sendo este último voltado formação continuada de professores da Rede Municipal de ensino. Foram realizadas parcerias com as Instituições de Ensino Superior de João Pinheiro, Paracatu e Patos de Minas, membros do Conselho Municipal de Patrimônio Cultural, Conselho Municipal de Turismo, Circuito Turístico Noroeste das Gerais e Alto Paranaíba, Secretaria Municipal de ensino, Servidores municipais em geral, destacadamente aqueles nos setores vinculados à área cultural e comunidade em geral. 154 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II O objetivo foi propiciar reflexões acerca do Patrimônio cultural, cultura, turismo, história, memória, identidade. As quatro ações foram exitosas, havendo eventos com quase 100 pessoas, número máximo permitido pelo Meet. Já na Área de atuação “Obras de Conservação e restauro” que abrange as seguintes ações de educativas (sensibilização, formação, projetos, etc.) junto aos bens culturais em processo de obras de conservação e/ou restauração, que nos anos seguintes foram realizadas presencialmente, no ano de 2020 não foi possível realizar, pois, mesmo estando realizando obra de restauro em um bem tombado, optou-se por não fazer ações presenciais por ser a obra realizada em um período em que avançava o índice de contágio pelo vírus e ter sido indicado pela gestão municipal que se evitasse aglomerações. Em 2021, foi realizado um Seminário online com acadêmicos do curso de Arquitetura para se trabalhar os conceitos de patrimônio cultural e restauro., 2014. Já em Paracatu, com base na análise documental do Quadro III C enviado ao Iepha-MG, que trata especificamente da educação para o patrimônio nas diversas áreas do desenvolvimento, observamos que as ações voltadas para a educação patrimonial foram realizadas com vistas a atender a Deliberação Normativa em vigor 20/2018 e os interesses do Setor de Patrimônio e realidade local. Em decorrência da atual pandemia as ações de formações e Educação Patrimonial foram adaptadas. As rodas de conversas e palestras passaram para as plataformas virtuais. Na área de Desenvolvimento do “Setor”, a empresa RM Cultural concretizou-se com os servidores da Prefeitura Municipal, principalmente aqueles vinculados à área cultural, em 15 de outubro de 2020 a “Live – Patrimônio Cultural” que foi divulgada à diversos grupos do município. A finalidade da Live foi debater sobre os Giselda Shirley da Silva; Vandeir José da Silva | 155 principais conceitos ligados ao patrimônio cultural como também, sobre as diferentes categorias de classificação. Para tanto, foram apresentados os conceitos de patrimônio cultural, bem, cultura, diversidade cultural, identidade, memória, monumento e história. Seguido da definição de Patrimônio Cultural brasileiro e as suas diversas categorias, como bem material (natural, arqueológicos, arquitetônico, móveis) e imaterial (saberes, celebrações, formas de expressão e lugares). Por fim, se apresentou os diversos instrumentos de proteção dos bens culturais (tombamento, registro, inventário). Ainda na área de desenvolvimento do “Setor Municipal de Patrimônio Cultural”, foi realizada uma “Roda de Conversa Especial – Dia do Patrimônio Histórico”. Conforme a historiadora Larissa Geórgia Bráulio de Moura4, mesmo com as dificuldades inerentes ao contexto pandêmico em que vivemos, de restrição e orientações de isolamento social, o contexto não impediu a realização do dia Nacional de Patrimônio Histórico,comemorado no Brasil em 17 de agosto. Visando realizar ações que promovessem o patrimônio cultural local, a Secretária Municipal de Cultura e Turismo de Paracatu promoveu diversas ações, como a distribuição de kits e a realização da Roda de Conversa Especial do Dia do Patrimônio. A finalidade era compartilhar visões e experiências sobre o trabalho de preservação a história e a cultura local. Com esse intuito, buscou-se parceria com a Empresa Multinacional que tem empreendimentos mineratórios em solo Paracatuense, a empresa Kinross Gold Corporation - Paracatu - KBM. A historiadora Larissa Geórgia Braúlio Moura foi a responsável pela ação idealizada pela Secretaria Municipal de Cultura e Turismo, envolvendo outros 4 Historiadora que atuou na Secretaria da Cultura e Turismo de Paracatu entre os anos de 2018 a 2020. Entrevista realizada em janeiro de 2021 por meio do Google Meet. 156 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II funcionários da mesma secretaria e jovens que fazem parte do projeto Integrar da empresa Kinross, funcionários da Kinross e alguns conselheiros do Conselho Municipal de Patrimônio Histórico, Artístico E Paisagista de Paracatu – COMPHAP5. O objetivo da ação foi debater a respeito do que é patrimônio, sua importância para a comunidade local, o papel social e do Poder Público na proteção e salvaguarda dos bens culturais do município. Uma das ações de educação patrimonial realizada neste dia 17 de agosto de 2020, “Dia do Patrimônio”, envolveu um público diverso, de todas as faixas etárias e níveis de escolaridade. Foram feitos kits com amostras das quitandas registradas como patrimônio imaterial de Paracatu. Essas quitandas e folders foram organizadas e compuseram os Kits de divulgação do patrimônio cultural de Paracatu e foram distribuídos aos moradores do núcleo histórico da cidade colonial. Os servidores da Secretaria da Cultura e Turismo fizeram um trabalho educativo, indo de casa em casa do Núcleo Histórico6, entregando os referidos kits e falando sobre a importância da preservação do patrimônio e sua importância na constituição da identidade. Segundo Larissa, todo o cuidado foi tomado pela equipe na realização dessa ação, com o uso de máscaras, álcool em gel e mantendo o distanciamento dos moradores das casas inseridas na área tombada pelo Iphan e inserida no projeto. No mesmo dia, foi realizada a roda de conversa promovida em parceria com a Empresa Kinross e a Secretaria de Cultura, sendo um evento online e aberto ao público em geral. A ação foi divulgada nas mídias 5 Criado pela Lei Municipal Nº 2636 de 26 de janeiro de 2007. O COMPHAP foi criado no âmbito da Secretaria Municipal de Cultura, é um órgão colegiado de assessoramento do Poder Executivo, com autonomia para normatizar e deliberar assuntos relativos à preservação, proteção, conservação e defesa do patrimônio histórico, cultural, artístico, bibliográfico e paisagístico. Paracatu, Lei Municipal Nº 2636/2007. 66 Segundo Larissa Braulio, foram 50 kits distribuídos em quatro ruas do núcleo histórico. Antônio Porto, Temístocles Rocha, Pinheiro Chagas e Rua do Ávila e junto, o material impresso Giselda Shirley da Silva; Vandeir José da Silva | 157 sociais. Além da comunidade local, participaram da ação, funcionários da Secretaria da Cultura, jovens que fazem parte do projeto Integrar da empresa Kinross, funcionários da Kinross, presidente do COMPHAP e secretário de Cultura e Turismo, Isac Costa Arruda, bem como, alguns conselheiros membros do referido Conselho. Ana Cunha, Diretora de Relações Governamentais e Responsabilidade Social da Kinross, ao falar sobre a ação, ponderou que: Desde o começo estivemos envolvidos em ações junto às manifestações do patrimônio imaterial da cidade e às comunidades tradicionais, essa tem sido a tônica da nossa atuação. Ficamos honrados por podermos ser agentes e participantes dessas ações que valorizam um patrimônio cultural tão rico como o de Paracatu. Poder fazer parte da construção desse legado é muito importante para nós7. Na narrativa da representante da empresa parceira da prefeitura e Secretaria da Cultura na realização desse evento, é salutar o cuidado com o patrimônio cultural do município e as reflexões realizadas em prol da sua preservação. Segundo a entrevistada Larissa, na roda de conversa foi abordada a questão conceitual acerca do patrimônio cultural e a relevância para a comunidade. Os participantes tiveram a oportunidade de falar sobre o patrimônio local e a necessidade de preservação desses bens culturais para cada um, possibilitando o debate entre representantes de vários grupos que se faziam presentes no evento. A historiadora que estava diretamente ligada a ação, mencionou ter sido exitosa, pois, os moradores das casas tombadas que foram inseridas no trabalho educativo se sentiram 7 Notícia intitulada “Paracatu recebe ações de comemoração ao Dia Nacional do Patrimônio Histórico”. BMS BRASILMINING SITE.com.br. Disponível em: https://brasilminingsite.com.br/paracatu-recebe-acoes-de- comemoracao-ao-dia-nacional-do-patrimonio-historico/ Publicação de 18 de agosto de 2020. https://brasilminingsite.com.br/paracatu-recebe-acoes-de-comemoracao-ao-dia-nacional-do-patrimonio-historico/ https://brasilminingsite.com.br/paracatu-recebe-acoes-de-comemoracao-ao-dia-nacional-do-patrimonio-historico/ 158 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II prestigiados, recebendo os kits com atenção e agradecendo os funcionários da secretaria por tê-los inseridos nessa comemoração do dia do patrimônio e da percepção da importância do cuidado com o Núcleo Histórico da cidade. Na área de desenvolvimento do-Setor Municipal de Patrimônio Cultural, citamos também o 5º Fórum de Sustentabilidade das Cidades Históricas de Minas realizado entre os dias 29 de junho a três de julho8, realizado pela Universidade Federal de Ouro Preto (PROEX e DEURB), Associação das Cidades Históricas de Minas Gerais (ACHMG) e a prefeitura da cidade de Paracatu, em parceria com Rede Globo Minas e a AMIRT. O tema principal do fórum foi o “Planejamento Municipal para o Desenvolvimento Sustentável das Cidades Históricas de Minas”, sendo destaque na discussão a cidade de Paracatu, que possui seu Núcleo Histórico tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). No dia dois de julho de 2020, o tema em debate foram os exemplos de sucesso em prol da preservação do patrimônio e Paracatu foi exemplificado na Sessão Casos de Sucesso9. Paracatu faz parte da 8 Programação da 5º Fórum de Sustentabilidade das Cidades Históricas de Minas Gerais. Painéis de debates | 29 de junho a 1 de julho. Painéis de debates serão realizados em formato de Webinar (videoconferência entre os palestrantes por meio do Google Meet) com a transmissão ao vivo em canal do Fórum no YouTube. Painel de debates 1 | Data e horário: 29 de junho – 15 h às 17 h | Tema: "Políticas públicas de urbanismo para a gestão sustentável das cidades históricas com o enfoque no ordenamento territorial, mobilidade urbana e saneamento básico" | Mediador, Paulo Vieira (Prof. DEURB/UFOP); Palestrantes: Sandra Maira Antunes Nogueira (Prof.ª. DEARQ/UFOP), Bárbara Abreu Matos (Prof.ª. DEURB/UFOP) e Aníbal da Fonseca Santiago (Prof. DECIV/UFOP) Painel de debates 2 | Data e horário: 30 de junho – 15 h às 17 h | Tema: "Políticas públicas de patrimônio cultural e turismo para o desenvolvimento sustentável das cidades históricas" | Mediador, Marcos Eduardo Carvalho Gonçalves Knupp (Prof. DETUR e Pró-reitor de Extensão UFOP); Palestrantes: Ana Alcântara (Secretária Executiva da ACHMG); Isabel de Paula (coordenadora de Cultura da UNESCO – representante no Brasil) e; representante da CNM. Painel de debates 3 | Data e horário: 1 de julho – 15 h às 17 h | Tema: "Políticas públicas de trabalho, emprego e rendapara o desenvolvimento sustentável das cidades históricas" | Mediador, Carolina Machado Saraiva de Albuquerque Maranhão (Prof.ª. ICSA/UFOP); Palestrantes: Dra. Graça Maria Borges de Freitas (Juíza do Trabalho do Tribunal Regional do Trabalho 3ª Região – Vara do Trabalho de Ouro Preto); Alair Ferreira de Freitas (Professor da UFV). Disponível em: https://www.revistamuseu.com.br/site/br/noticias/nacionais/8780-15-06-2020-v-forum-de- sustentabilidade-das-cidades-historicas-virtual-e-gratuito-divulga-programacao.html. Acesso: 20 de maio de 2021. 9 Sessão Casos de Sucesso "Ações de Patrimônio, Cultura e de Turismo como indutoras para o desenvolvimento sustentável de Paracatu" | Data e horário: 2 de julho – 15 h às 17 h | Tema: Projeto desenvolvidos pela iniciativa pública nas áreas sociocultural, econômicas e ambiental no município de Paracatu | Mediadora, Angélica Vasconcelos https://www.revistamuseu.com.br/site/br/noticias/nacionais/8780-15-06-2020-v-forum-de-sustentabilidade-das-cidades-historicas-virtual-e-gratuito-divulga-programacao.html https://www.revistamuseu.com.br/site/br/noticias/nacionais/8780-15-06-2020-v-forum-de-sustentabilidade-das-cidades-historicas-virtual-e-gratuito-divulga-programacao.html Giselda Shirley da Silva; Vandeir José da Silva | 159 Associação das Cidades Históricas e sediou o evento realizado de forma virtual, sendo transmitido ao vivo por canal do Fórum no YouTube O público alvo dessa ação foram pessoas de todo o estado. Os Palestrantes eram representantes de prefeituras, órgãos estaduais e federais, universidades, sociedade civil organizada e demais convidados. Webinar sobre patrimônio histórico e memória resultante da parceria entre a Secretaria de Cultura e Turismo de João Pinheiro, Secretaria de Cultura e Turismo de Paracatu e a Faculdade Finom/Tecsoma. Evento realizado no dia 05 de novembro de 2020 por meio de videoconferência entre os palestrantes por meio do Google Meet. Participaram professores e alunos dos cursos de Arquitetura, Engenharia Civil, História e Geografia da referida Instituição, funcionários das duas Secretarias de Cultura e Turismo organizadoras do evento. Na área de desenvolvimento, Locais de Memória Coletiva, citamos o 6º Fórum Permanente de Sustentabilidade das Cidades Históricas de Minas Gerais, realizado em outubro de 2020 com a temática central as “Comunidades Tradicionais”. O objetivo principal foi contribuir com a constituição e o fortalecimento de ações em prol da sustentabilidade social, cultural, econômica e ambiental em comunidades tradicionais. Souto Silva (Secretária Municipal de Cultura e Turismo de Paracatu); Palestrantes: um representante de cada um dos três casos selecionados. 160 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II Imagem 1 – Programação do 6º Fórum Permanente de Sustentabilidade das Cidades Históricas de Minas Gerais Fonte: Iepha-MG Na área de Desenvolvimento “Escolas” envolvendo os de projetos junto ao público escolar, em Paracatu foram realizadas algumas ações nesse aspecto educativo Uma delas foi desenvolvida com os alunos da EJA (Educação de Jovens e Adultos) do ensino fundamental 1 da Escola Municipal Dr. Antônio Ribeiro e alunos do Fundamental 1 e 2 da EJA (Educação de Jovens e Adultos) Primavera entre os meses de julho a novembro de 2020. Os professores trabalharam os conteúdos sobre patrimônio material e imaterial por meio de vídeos, imagens, apresentações virtuais, bate papos e áudios que eram disponibilizados nos grupos de WhatsApp (salas de aulas virtuais). Giselda Shirley da Silva; Vandeir José da Silva | 161 O Projeto: “Patrimônio: restaurando o elo com o passado” inserido na área de desenvolvimento “escolas” foi realizado por meio de oficinas no mês de dezembro de 2019 ministrada pela artista plástica Cibele Bartels com acadêmicos do curso de Arquitetura da Faculdade Finom/Tecsoma. A oficina foi dividia em duas partes; a primeira teórica em que se abordou os estilos arquitetônicos de Paracatu e a segunda parte prática, em que os alunos aplicaram os conhecimentos adquiridos na teoria na construção dos desenhos. Como este evento antecedeu a pandemia no Brasil, ocorreu de forma presencial, destonando dos demais apresentados no relatório enviado ao Iepha MG em dezembro de 2020. 4 Considerações Finais O correr da vida embrulha tudo. A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. Guimaraes Rosa Inspirados pelas palavras desse gigante da literatura brasileira, tecemos as considerações finais deste texto. Entendemos serem tempos difíceis vivenciados nesse período de pandemia que assola o país e o mundo, exigindo de nós, coragem, criatividade, resiliência e capacidade de (re) inventar a cada momento. Isso foi percebido na análise das ações voltadas para a educação patrimonial e preservação/ difusão do patrimônio cultural em Paracatu e João Pinheiro, municípios localizados na região Noroeste do estado de Minas Gerais. Cientes da necessidade de realizar os projetos de educação patrimonial, os quais tem sido executado nesta última década e estão inseridos dentro da política local de patrimônio cultural, os gestores e profissionais que atuam no Setor de Patrimônio Cultural de ambas as Secretarias de Cultura e Turismo, prezando pelos critérios de continuidade 162 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II e compromisso com a educação para o patrimônio, buscaram meios de recriar as ações anteriormente planejadas A. cada novo ano se fazia planejamento das ações a serem executadas nas diversas áreas de desenvolvimento relacionadas a educação para o patrimônio, conforme se prevê nas Deliberações Normativas do CONEP, todavia, em decorrência da vigência dos decretos estaduais e municipais, essas ações foram diretamente impactadas pelas medidas de isolamento social. Nesse contexto, em ambos os municípios, buscou-se realizar as ações de educação patrimonial fazendo uso das mídias e redes sociais para alcançar o público alvo pretendido. Talvez essa necessidade de mudança da forma de fazer tenha sido um dos vetores para a adoção de outros recursos e uso de tecnologias que antes não eram utilizadas, como exemplo, eventos realizados por videoconferência. Os debates passaram a ser efetivados de forma virtual e os chats, espaços de argumentação escrita, quando não se tinha oportunidade para debate oral. Na adversidade se inventa, se cria e recria, assim, mesmo com as dificuldades inerentes ao contexto contemporâneo pandêmico, tem-se a oportunidade de mudar e transformar nosso modo de agir e interagir com as coisas e pessoas. Os espaços virtuais de aprendizagem viabilizaram a aproximação de pessoas distantes fisicamente, mas que puderam compartilhar do mesmo espaço interativo de uma videoconferência e ter a oportunidade de construir novos saberes e trocas de experiências. Dessa maneira, muitos eventos realizados foram enriquecidos, por essa possibilidade de aproximação, para além do espaço geográfico No decorrer das ações de educação patrimonial, enfatizou-se o papel da Educação para o patrimônio na conscientização da comunidade local acerca da relevância da preservação dos bens culturais, em especial, no que tange aos processos de tombamento de bens materiais e o registro de Giselda Shirley da Silva; Vandeir José da Silva | 163 bens imateriais. Essas reflexões são cruciais no incentivo de que futuras gerações continuem as tradições e saberes locais. Percebemos pela análise documental do acervo de ambos os municípios que a Educação Patrimonial e a Difusão são consideradas ações essenciais na valorização dos bens culturais e integrantes dos processos de proteção previsto nas legislações locais, visando tanto a formação da identidade coletiva, quanto para atenderas orientações da política de ICMS no critério “Patrimônio Cultural”. Assim, no campo da educação patrimonial as experiências adquiridas em 2020 possibilitaram a percepção do quanto ainda pode-se aprimorar, como se pode utilizar as tecnologias em favor da difusão do patrimônio, mas também possibilitou a percepção do quanto é rico e importante as relações interpessoais e os trabalhos com as escolas, ação que foi de certo modo prejudicada por não estar havendo aulas presenciais. Esse é um cenário que não mudou, pois à pandemia do Covid 19 ainda assola o país e s orientações de isolamento e distanciamento social ainda estão em vigência. Assim, o desafio continua Referências BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas, v. I, São Paulo, Brasiliense, 1989 CANCLINI, G.C. Diferentes, desiguais e desconectados: Mapas da interculturalidade. Rio de Janeiro, EDUFRJ, 2005. COSTA, Cléria Botelho da. Da Educação Patrimonial à Cidadania. VIII Seminário da Associação Nacional Pesquisa e Pós-Graduação em Turismo. 02 e 04 de outubro de 2011 – UNIVALI– Balneário Camboriú/SC FALEIRO, Rodrigo Flávio de Melo, RANGEL, Carlos Henrique. Educação patrimonial: uma abordagem empírica, didática e criativa. (Heritage education – an empirical, 164 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II didactic and creative approach). Cadernos de História, v. 14, n. 20, p. 188-211, 30 abr. 2013. FLORENCIO, Sônia R. Rampim et al. Educação Patrimonial: histórico, conceitos e processos. Brasília: Iphan, 2014. FLORÊNCIO, Sônia Regina Rampim. Educação patrimonial: algumas diretrizes conceituais. Cadernos do patrimônio cultural: educação patrimonial/ Organização Adson Rodrigo S. Pinheiro. – Fortaleza: Secultfor: Iphan, 2015 FONSECA. Maria Cecília Londres. O Patrimônio em processo: trajetória da política federal de preservação no Brasil. Rio de Janeiro: UFRJ/Iphan, 2005. NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. In: Projeto História. São Paulo (10), dez. 1993, p. 7-28. PESAVENTO, Sandra Jatahy. História, Literatura e Cidades: diferentes narrativas para o Campo do patrimônio. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional nº 34 / 2012. POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989. p. 03-15. Capítulo 9 Educação patrimonial e decreto Lei 25/1937-artigos 17 e 19: limites e possibilidades na Cidade de Goiás Dhyovana da Silva Cardoso 1 1 Introdução O artigo apresenta a proposta e as discussões de uma Ação Educativa em andamento, sobre Educação Patrimonial. Os alunos analisaram o Decreto Lei n°25/1937 e avaliaram sua efetividade em casos específicos na Cidade de Goiás. Serão analisados principalmente casos do art.17 e art.19 deste decreto. Necessário destacar a importância da participação da sociedade nestes processos de leitura e releitura do mundo, na decodificação de seu patrimônio. Levando a reflexão do patrimônio, quando explorado de forma correta contribui para a formação da identidade cultural do indivíduo fazendo com que este se aproxime mais do local e seus bens Os alunos perceberão sua importância podendo contribuir para a valorização e preservação da riqueza cultural que o rodeia e consequentemente identificando-se com o regional, nacional e global. Provocando situação de aprendizado despertando nos alunos o interesse em resolver questões significativas para vida social e coletiva. Só se preserva quando existe significado, quando é representativo e que de alguma maneira as pessoas se identificam. O intuito é entender o Centro histórico da Cidade de Goiás e suas as residências além se seus aspectos físicos e materiais. É preciso perceber que o patrimônio cultural 1 Mestranda do Programa de Pós Graduação do Mestrado Profissional em Estudos Culturais, Memória e Patrimônio da Universidade Estadual de Goiás(PROMEP/UEG/Câmpus Cora Coralina). Email: dhyovanacardoso01@gmail.com. mailto:dhyovanacardoso01@gmail.com 166 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II vai além do que o edificado com “pedra e cal”, mas que é um referencial da história e memória da sociedade, como afirma Machado & Monteiro: Todos os bens patrimonializados contribuem para a formação de identidades de grupos e categorias sociais. Fazem parte da memória e, como tal, permitem- nos estabelecer elos de pertencimento com o passado (...) É através da memória que o indivíduo reúne os fragmentos do passado, mobiliza este passado e atribui a ele um valor, um sentido. A memória é um elemento importante na construção das identidades coletivas, pois permite conectar o passado e o presente. (2010, p. 26 e 27). Desta maneira a comunidade poderá exercer a cidadania de modo mais eficiente, pois entenderá seu poder e grau de intervenção no usufruto de seus espaços, sendo capaz de intervir e transformá-lo. Pensamos assim, nas pessoas que são excluídas de certo modo em função das desigualdades geradas pelo sistema, inclui-los neste debate ensinando minimamente a importância de cada um na preservação de um patrimônio que é de todos. Sabe-se que a temática da Educação Patrimonial está relacionada à educação popular, desta forma também a herança cultural. É indispensável que reconheçamos essa herança e sua contribuição para nossa identidade social e individual. A educação patrimonial nesse sentido é importantíssima, sendo ela o instrumento que facilita o diálogo direto dos bens culturais com a comunidade, permitindo que esteja faça a releitura do mundo que está inserida. Como cita Horta (1999, p.4): [...] o trabalho da Educação Patrimonial busca levar as crianças e adultos a um processo ativo de conhecimento, apropriação e valorização de sua herança cultural, capacitando-os para melhor usufruto destes bens, e proporcionando a geração e produção de novos conhecimentos, num processo contínuo de criação cultural. Dhyovana da Silva Cardoso | 167 A ação educativa proporcionara ao sujeito aproximação com o bem que são fundamentais para que o indivíduo faça uma leitura mais aprofundada do patrimônio em questão, complementa Horta (1999, p.6): “Educação Patrimonial busca levar as crianças e os adultos a um processo ativo de conhecimento, aproximação e valorização de sua herança cultural”. Assim, a ação educativa contribuirá para a formação crítica dos estudantes e também poderá servir de subsídio para a equipe escolar ao reformular o Projeto Político Pedagógico. Ela poderá trazer dados, a partir da experiência com os estudantes sobre fatos que precisam ser trabalhados em sala de aula. 2 Educação Patrimonial mediando o tombamento Ao se falar e discutir sobre patrimônio na Cidade de Goiás é de fundamental importância que se debata sobre a legislação de preservação do patrimônio cultural, a conhecida Lei de Tombamento que completa 84 anos neste ano de 2021. O Decreto-Lei 25/37 é essencial quando se pensa em meios para preservação de um patrimônio que transpassa o material e está intimamente ligado aos viveres, fazeres e sensibilidades afetivas das pessoas. Desta forma é indispensável que se compreenda e analise a responsabilidade, tanto do Estado quanto da sociedade ela manutenção e restauração dos bens tombados. Faz-se necessário repensar o que se muda na cidade de Goiás após a patrimonialização do centro histórico, pelo seu reconhecimento a nível mundial e pela preocupação em se manter como patrimônio da Humanidade. Precisa-se também analisar a perda de algumas residências tombadas do centro histórico, por falta de manutenção ou de reforma, que causam prejuízo ao proprietário e ao patrimônio cultural. 168 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II Como se sabe, uma maior atenção é dada pelos órgãos governamentais aos monumentos tombadoscomo igrejas, palácios, museus; assim, consequentemente as residências, ou seja, os imóveis privados vêm sofrendo o risco de deterioração, já houve casos de casas desmoronarem outras escoradas com paus. Entender o decreto lei principalmente no que se refere aos artigos 17 e 19 ajuda na compreensão de algumas situações que ocorrem na cidade. O bem tem um valor histórico fundamental, porém algum destes se deixa acabar pela manutenção ineficiente, pela demora ou omissão em avisar o órgão competente sobre a necessidade de reparação do bem tombado, ou quando avisa, não se consegue o recurso em tempo hábil para preservar. Desta maneira pode-se observar a importância de instrumentos normativos legais, no que se refere à proteção e preservação de bens patrimoniais, pois antes que se desperte o sentimento de pertencimento em relação aos bens patrimoniais, as pessoas devem respeitar e não destruir estes bens. Existindo uma legislação que protege e pune quem destrói ou ameaça determinados patrimônios. Mesmo destacando a importância da preservação e da lei de tombamento de bens materiais já consagrados, é fundamental problematizar que o patrimônio não é neutro, ao contrário ele sofre com disputas de poder e pelo poder, obedecendo determinados interesses, como José Reginaldo dos Santos Gonçalves bem aborda: Nos processos de produção social das identidades, estas não resultam de um exclusivo trabalho coletivo de construção e preservação, uma vez que as práticas de destruição lhes são igualmente indispensáveis. No plano individual ou coletivo, somos, antes de tudo, o que esquecemos e descartamos (GONÇALVES, 2005, p. 225). Dhyovana da Silva Cardoso | 169 Percebe-se assim que o que se deseja anular, que foi descartável e não valorizado também diz muito sobre a cidade, seus habitantes, sua história e consequentemente sua cultura, ou seja, diz sobre a ação direta do homem na natureza e qual o sentido disto tudo para os mesmos. O patrimônio pode assim ser percebido tanto como um processo de silenciamento e homogeneização das dissonâncias como objeto de luta que possa a vir valorizar as diferenças da sociedade brasileira que se destaca por sua diversidade cultural. Falar sobre Educação Patrimonial significa ultrapassar algumas barreiras epistemológicas e verdades absolutas. Primeiro é necessário problematizar o termo “alfabetização cultural” usada no Guia Básico de Educação Patrimonial e é reutilizada várias vezes como base para outros autores. Quando se tenta alfabetizar parte da ideia que o outro não tem conhecimento e necessita da luz deste. Desvaloriza tudo que o Outro traz consigo e menospreza num sentindo intelectual. Silveira e Bezerra (2006, p.88,89) diz que “a perspectiva conscientizadora deve ser substituída pela sensibilização e pela participação crítica acerca do valor da paisagem patrimonial”. Acrescenta ainda (2006, p.90) “antes de interpretarmos as paisagens e os objetos como bens patrimoniais, devemos considerar que tais elementos estão imersos numa complexa teia de significações”. Uma segunda questão importante é entender que a educação patrimonial não ocorre somente em ambientes formais como escolas e museus, mas também em ambientes não formais sempre tendo como foco o Patrimônio Cultural a fim de colaborar para seu reconhecimento, valorização e preservação. Para Florêncio (2014, p. 19): Os processos educativos devem primar pela construção coletiva e democrática do conhecimento, por meio do diálogo permanente entre os agentes culturais 170 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II e sociais e pela participação efetiva das comunidades detentoras e produtoras das referências culturais. É de fundamental importância entender que o foco das ações educativas são os sujeitos, elas servem como instrumento de mediação entre as pessoas e os bens patrimoniais. A Educação Patrimonial configura-se como um processo que recorre a várias metodologias, e uma ferramenta essencial para preservação do patrimônio, despertando o interesse a determinados bens, sensibilizando e valorizando acerca do patrimônio. Criando assim espaços de aprendizagem e reflexão dos grupos sociais em relação ao seu próprio patrimônio. Desta maneira quando se valoriza o “Outro” e seus saberes numa perspectiva reflexiva e democrática é possível falar do conhecimento que propicia a formação de sujeitos autônomos que sabem pensar e intervir de modo consciente na realidade. Criando elos de pertencimento onde os grupos são capazes de apropriar-se de seu passado e usá-lo como caminho para o fortalecimento indenitário de suas comunidades agindo de forma autônoma e cidadã. Para isso é necessário romper com alguns paradigmas que “[...] contribui para ampliação do conceito de cultura, suprindo a dicotomia entre “cultura erudita” e “cultura popular” enfatizando a importância de uma educação pautada na cultura da diversidade, no respeito ao outro e a diferença (MACHADO; MONTEIRO, 2010, p. 26). Outro esclarecimento se torna necessário: existem outras formas de preservação que não seja apenas o tombamento. Por exemplo o inventário é a primeira forma para o reconhecimento da importância dos bens culturais, através do registro de suas características principais. Outra forma também é a inclusão destes bens nos Planos Diretores da Cidade, estes também estabelecem formas de preservação do patrimônio em nível municipal, através do planejamento urbano. Desta maneira fica claro que Dhyovana da Silva Cardoso | 171 as cidades devem promover o desenvolvimento sem a destruição do patrimônio. Interessante mostrar que o tombamento pode ser um instrumento de defesa duma comunidade, pois visa a preservação de um determinado bem que carrega valores e significados para sociedade em questão. Visto que colabora na preservação da memória, dos referenciais culturais de um determinado grupo. Entendendo, portanto, a importância do decreto lei 25/37 e a ação protagonista da comunidade no que se refere à proteção e preservação dos conjuntos de bens que podem ou não se encontrar ameaçados ou deteriorados em uma sociedade. Pensando sempre que o bem cultural é relativo e representativo à identidade de sociedades, possui referencial a memória que busca se preservar, perpetuar. Dessa forma, para que a Educação Patrimonial seja efetivada, é necessário que os espaços formais de ensino busquem ações educativas como forma de aproximar a comunidade do seu patrimônio cultural, pois como apontam alguns pesquisadores: Quanto mais nos sentimos pertencentes a um grupo, mais temos condições de ter consciência do nosso papel social e da nossa condição de cidadão. Os elos de pertencimento que estabelecemos com o grupo permitem a tomada de consciência crítica e a interpretação autônoma do universo cultural. Quando os grupos são capazes de apropriar-se de seu passado, de reinventá-lo em contextos atuais, estão dando continuidade ao processo criador. Isso é condição necessária para uma atitude cidadã (MACHADO; MONTEIRO 2010, p. 25). Instrumentalizando os alunos de forma geral para que estes possam agir de forma efetiva na seleção, identificação, registro, inventário, conservação e preservação dos elementos constitutivos do patrimônio 172 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II local. Na perspectiva da possibilidade de construir coletivamente estratégias de preservação no processo de construção do sentimento de pertencimento e de valorização de identidades culturais plurais. 3 Desconstruindo (pré) conceitos sensibilizando para valorizar Existe na Cidade de Goiás uma relação conflituosa entre a comunidade e o IPHAN, mesmo que as pessoas não tenham passado por algum tipo específico de situação, alimenta prejulgamento em relação a este órgão. Não ocorre de forma diferente dentrodas escolas. O que se percebe em determinados momentos é a visão já pré-concebida sobre o patrimônio edificado da cidade e as obrigações e exigências em relação a estes. Visto que o patrimônio chega até os alunos de forma enrijecida e até mesmo autoritária é visível a dificuldade que determinadas pessoas tem de construir laços afetivos com o bem material, preferindo se distanciar do patrimônio existente na sociedade, ou simplesmente agindo e pensando de forma indiferente a estes. Esta ação é relevante, pois alguns destes pré (conceitos) podem ser desconstruídos, fundamentado no contexto de surgimento e alicerçado da necessidade de se preservar para que os bens significantes e representativos para sociedades não fossem destruídos. Sabemos da necessidade quase que vital do homem de memória, e estes espaços e bens nada mais são que a consagração desta memória em pequenos fragmentos ou conjuntos de um passado que se deseja preservar, como cita Nora (1993, p. 27) “bloquear o trabalho de esquecimento, imortalizar a morte, materializar o imaterial”. Partindo da carência de tentar despertar se não o sentimento de pertencimento a estes lugares e este passado, pelo menos o entendimento e a sensibilização do porquê são importantes preservar determinados Dhyovana da Silva Cardoso | 173 espaços e bens. Para que a partir daí os alunos se vejam como protagonistas, sujeitos, podendo pensar o processo de tombamento de outros lugares e bens que são representativos do ponto de vista coletivo e foge daquilo que já foi consagrado como patrimônio. Mostrando a importância da legislação que assegura a proteção e a preservação, de forma que se possa problematizar a lei usando-a para beneficiar grupos diferentes, com singulares referenciais e memórias partindo do pressuposto que todas as pessoas fazem história e devem ter sua memória enaltecida, relembrada de alguma forma. A partir desta ação educativa, modos de ver e estar podem ser modificados e consequentemente ocasionar uma transformação na sociedade. A tomada de consciência de quem nós somos e o que podemos a fazer em relação a algo que é de fundamental importância. A Educação Patrimonial é importante “sendo um elemento estratégico de atuação política, da constituição, da memória e da sustentabilidade dos saberes tradicionais” (MARCHETTE, 2016, p.89), pois pode aproximar a comunidade de seus bens culturais e dar visibilidade a grupos sociais marginalizados contribui para ocupação socioespacial e circulação de ideias dentro da sociedade de forma democrática. 4 O tombamento e as residências: espaços de interações sociais A cidade de Goiás tem hoje em seu centro histórico algumas residências que estão em processo grave de deterioração, com encosto para que não venham a cair, outras até se tornaram ruínas. O espaço em que tais casas estão localizadas em Goiás foi tombado como Patrimônio Histórico da Humanidade por todo seu valor cultural e histórico, deveriam estar preservadas e protegidas. Sabe-se que quando o bem é de propriedade privada, a responsabilidade pela manutenção não é somente do Estado, mas também fundamentalmente do proprietário. 174 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II Para a pessoa proprietária do bem tombado existem obrigações a serem cumpridas. Algumas consistem em realizar obras de conservação necessárias à preservação do bem ou, se não tiver condições financeiras, deve-se comunicar a sua necessidade ao órgão competente (art.19 do DL 25/37). Quanto as outras, o proprietário não pode destruir, demolir ou mutilar as coisas tombadas nem, sem prévia autorização do Instituto Brasileiro do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN repará- las, pintá-las ou restaurá-las (art. 17 do mesmo Decreto). No que se refere às obrigações de suportar, o proprietário fica sujeito à fiscalização, indenizações e processos jurídicos. Faz-se necessário avaliar o Decreto-Lei nº 25, de 30 de novembro de 1937 em sua efetividade e desdobramentos causados após a patrimonialização da cidade de Goiás. Pensando principalmente sobre aquilo que ultrapassa a objetividade e materialidade quando se discute patrimônio, refletindo então sobre sensibilidades, histórias, laços que estes donos das residências trás com a história da cidade em suas experiências pessoais. Como bem aborda Britto: [...] o patrimônio consiste em um processo de formação indenitária, de instituição de solidariedades e de promoção de laços de afeto a partir de/entre os bens, possibilitando tecer redes de afinidades para além das margens metodológicas e institucionais a que historicamente foram destinados (2014, p. 980). É fundamental pensar o patrimônio cultural como espaços de interações sociais, de relações de poder e política. Desta forma, refletir sobre residências e espaços patrimoniais, significa repensar os afetos e histórias do passado que coexistem em nosso presente, considerando novas histórias e emoções que vão se construindo. Essas residências mais que o material e edificado, pode representar significados, sentidos, http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Decreto-Lei%20n°%2025%20de%2030%20de%20novembro%20de%201937.pdf http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Decreto-Lei%20n°%2025%20de%2030%20de%20novembro%20de%201937.pdf Dhyovana da Silva Cardoso | 175 sentimentos, que o proprietário vivenciou ali. Isto é possível na medida em que se entende o patrimônio não apenas como algo puro e simples, mas a partir de aspectos subjetivos que se empregam. O patrimônio às vezes chega até as pessoas de forma enrijecida e autoritária, ficando visível a dificuldade que determinadas pessoas têm de construir algum laço afetivo com o bem material, preferindo muitas vezes se distanciar do patrimônio. No entanto, usando Silva (2019) como referência “não é porque é material que se torna estático”. A concepção de patrimônio sofreu fragmentações no decorrer dos anos, o que antes era tido como algo enrijecido e acabado, cedeu espaço para se pensar o patrimônio em constante movimento e permeado por relações. Faz-se essencial refletir sobre a importância e contribuição que os órgãos de preservação fizeram no decorrer dos anos, analisando de forma minuciosa a memória de quem se pretende preservar e o porquê determinado grupo viu o que hoje é tombado na cidade de Goiás como importante, reconhecendo o esforço, a iniciativa e acima de tudo respeitando a diversidade ou a diferença no que se refere aos bens que foram patrimonializados. Torna-se evidente a importância da legislação que assegura a proteção e a preservação, de forma que se possa problematizar o decreto 25/37, que pode ser usado para beneficiar grupos diferentes, com referenciais, memórias e identidades diversas. Sendo algo enriquecedor, visto que pessoas que fazem a história e devem ter suas memórias valorizadas, relembradas e enaltecidas de alguma forma. O patrimônio deve mostrar a diversidade que é a sociedade brasileira. É a partir de uma base legal que se pode dar voz a grupos silenciados. Durante muito tempo foi dada mais atenção ao patrimônio material referentes ao passado branco e colonial este é visto com certo grau de superioridade ao patrimônio imaterial. Interessante mostrar que o 176 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II tombamento pode ser um instrumento de defesa de uma comunidade, pois visa a preservação de um determinado bem que carrega valores e significados para a sociedade. Colaborando na preservação da memória, dos referenciais culturais de um determinado grupo. No entanto é preciso problematizar a quais referencias, ou memórias é narrado. Entendendo, portanto, a importância do decreto lei 25/37 e a ação protagonista da comunidade no que se refere à proteção e preservação dos conjuntos de bens que podem ounão se encontrar ameaçados ou deteriorados em uma sociedade. O interessante é conscientizar a comunidade e forma geral para que esta possa agir de forma efetiva na seleção, identificação, registro, inventário, conservação e preservação dos elementos constitutivos do patrimônio local. Na perspectiva da possibilidade de construir coletivamente estratégias de preservação. Choay aborda que: [...] de nada serve contemplar o espelho do patrimônio, não há oura solução senão atravessá-lo. Com essa metáfora do espelho transposto, quero ressaltar a força subversiva de uma abordagem do patrimônio que volte às costas para procedimentos dominantes: para começar, transposição reflexiva e crítica que opta, em plena e perfeita consciência, por uma mudança radical de orientação, com suas implicações e seus ricos; em seguida, transposição concreta e prática que abre, no cercado patrimonial, caminho árduo rumo a esse novo norte (2017, p. 253) O fato é que somente estes instrumentos não são suficientes e necessários para esta proteção, mas também a participação da população de um modo geral. “[...] a própria cultura, o próprio atuar dos homens, faz surgir diferentes e muitas vezes mais efetivos instrumentos de proteção do patrimônio Cultural” (HENRIQUE FILHO, 2013, p. 105). Dhyovana da Silva Cardoso | 177 Quando se pensa em patrimônios tombados é necessário que se reflita sobre estes conjuntos de bens que é apresentado como nossa herança coletiva e o que pode vir a se tornar patrimônio reconhecido e preservado do ponto de vista legal. Como aborda Gonçalves (2015, p.220) é possível pensar o patrimônio não apenas como algo situado em um tempo ou espaço distante e inalcançável, mas também como um processo presente, incessante, conflituoso e interminável de reconstrução. Desta maneira, é essencial observar aquilo que é destruído ou esquecido. Segundo Gonçalves (2015, p.219): Se até os anos 1980 as narrativas estavam voltadas firmemente para a nação, e todo e qualquer bem tombado era em função de seus vínculos com a história e a identidade nacional, nas últimas décadas, desde então patrimônios associados a diversos grupos e movimentos sociais vêm sendo reivindicados, reconhecidos ou contestados sem que os vínculos com uma “identidade nacional” sejam necessariamente colocados em primeiro plano. Observa-se uma desestabilização das concepções de patrimônio centradas na história e na identidade nacional. O tombamento e a preservação de determinados patrimônios culturais significam também a preservação e promoção de identidades esta experiência pode ser objeto de transformação social ou laço lesivo que silencia a memória de determinados grupos sociais. Desta maneira o patrimônio é também instrumento de luta pelo reconhecimento de indivíduos e comunidades. Assim Henrique Filho (2013, p. 29) diz que “O titular principal do patrimônio cultural, sem dúvida, é a sociedade brasileira” e estes vinculados a diversas obrigações, não isentos totalmente de responsabilidades deixado a dispor do órgão público a manutenção. Pois, se a gestão principal deste patrimônio é entregue aos órgãos públicos, isto 178 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II não deve provocar o afastamento da sociedade em questão. Se determinado local é valorizado e tombado como patrimônio cultural é porque ele tem valor pessoal e social na história e memória coletiva daquele lugar, desta maneira não se pode deixar que acabe ou mesmo que destrua esses bens da humanidade. Faz-se necessário construir uma nova relação da população com seu patrimônio e isto significa entender que os bens culturais também são produtos baseados na opressão e na violência. Como cita Scifoni: Para isso, em primeiro lugar, é preciso desmitificar e desfetichizar o patrimônio, o que significa explicitar que os patrimônios não são objetos dados, cabendo ao poder público apenas a tarefa de reconhecer neles valores intrínsecos. Valores são atribuídos, resultado de escolhas que são feitas. [...] Isto significa que um patrimônio reconhecido não tem valor em si mesmo [...] são atribuídos valores, em determinado momento e contexto histórico. Disto resulta o caráter político e, portanto, conflituoso do universo cultural (2015, p. 203). Portanto torna-se necessário repensar e reinstaurar a totalidade de nossas práticas atuais do patrimônio, percebendo-o como algo atual que está em constante movimento e interação na sociedade. Podendo ser utilizado como instrumento de luta política e analisado do ponto de vista das subjetividades, sensibilidades, emoções vivencias e sentimentos. Os bens patrimonializados contribuem para a formação de identidades de grupos, de categorias sociais, fazem parte da memória e permite estabelecer elos de pertencimento com o passado. Dessa maneira, contribuiremos com a formação de indivíduos conscientes de seus direitos e prontos para intervirem no espaço em que vivem, por meio de “uma educação para uma cidadania ativa, uma educação para a esperança”. Dhyovana da Silva Cardoso | 179 5 Considerações finais Estudar patrimônio é também estudar sensibilidades e vivências, tangenciando o subjetivo e abstrato das pessoas e suas emoções. Um erro pensar que patrimônio se refere apenas o material e ao passado, pelo contrário ele está em constante movimento e transformação, sendo usado como meio para dar voz aos silenciados e fazendo notar os que foram por décadas invisíveis. Sendo possível a ponte entre passado e presente e entendendo esquecimentos como produtos sociais. Por não ser neutro a patrimonialização é um ato político por excelência e pode ser usado para beneficiar outros grupos. É possível observar a importância de dos instrumentos normativos para preservação e promoção do patrimônio cultural, e o que muda após sua aplicação em diferentes lugares e espaços. Desta maneira, a comunidade de um modo geral é a peça fundamental na proteção e preservação do patrimônio, contudo, só pode ocorrer mudanças na medida em que exista o sentimento de pertencimento e afetividade em relação a estes patrimônios. Pensar em residências tombadas é imaginar o fluxo de histórias e experiências que as envolve, se tornam únicas na medida em que os agentes estabelecem diferentes formas de experenciá-lo em seus modos de vidas, permitindo a aproximação das pessoas com seus patrimônios. Compreendendo que naquele espaço em diferentes temporalidades houve relações e sociabilidades promovidas com afetividade. São mais que residências tombadas, são espaços que habitam e podem chamar de seu lar, produto de memórias e identidade, lugar e suporte em que homens e mulheres tecem suas histórias de vida e de sua comunidade. Pensando o patrimônio a partir das interações entre a comunidade e suas residências. No Patrimônio cultural tais residências se 180 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II apresentam como anexadoras de experiências de pertencimento e sociabilidades. Por fim, o conhecimento da legislação e do poder de cada cidadão no que se refere a proteção e preservação de bens culturais, são referências a sua identidade e ao seu passado que possibilita que estes possam propor a salvaguarda, a proteção e até mesmo o tombamento de outros espaços, de outros bens, de outros fazeres, de outras expressões e celebrações. Facultando que outros grupos tenham seus bens vistos de forma diferente, com uma maior atenção. A Educação Patrimonial é um instrumento importante para sensibilização e participação crítica acerca do patrimônio, seus bens e lugares como panoramas possíveis de serem considerados, envolvendo pessoas que convivem diariamente com estes. Evidenciando as possibilidades do patrimônio por maio das ações educativas, transformados a relação desses sujeitos com seus bens e lugares.Considerando a visão do Outro pautado na reciprocidade, diálogo e trocas culturais. Referências BEZERRA, Marcia; SILVEIRA, Flávio Leonel Abreu. Educação Patrimonial: Perspectivas e Dilemas. In: Antropologia e Patrimônio Cultural Diálogos e Desafios Contemporâneos. Goiânia: Nova Letra, 2006. BRITTO, Clovis Carvalho. A terceira margem do patrimônio: o rio Vermelho e a configuração do habitus vilaboense. Diálogos (Maringá. Online), v.18, n.3, p.975- 1004, set-dez/2014. CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. 6. Ed. São Paulo: Estação Liberdade: Ed. UNESP, 2017. Dhyovana da Silva Cardoso | 181 FLORÊNCIO, S. R.; CLEROT, P.; BEZERRA, J.; RAMASSOTE, R. Educação patrimonial: princípios e diretrizes conceituais. In: Educação patrimonial: histórico, conceitos e processos. Brasília: Iphan, 2014, p. 18 – 28. GONÇALVES, José Reginaldo Santos. O mal-estar do patrimônio: identidade, tempo e destruição. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 28, n. 55 p. 211-228, jan-jun 2015. HENRIQUE FILHO, Tarcísio. A evolução histórica da proteção ao patrimônio cultural, ATHENAS, Vol.II, n1, jan-jul.2013/ ISSN2316-1833/ www,fdcl.com.br/revista. HORTA, Maria de L; GRUNBERG, Evelina; MONTEIRO, Adriane Q. Guia básico de educação patrimonial. Brasília: Iphan/Museu Imperial, 1999. MACHADO, M. B. P.; MONTEIRO, K. M. N. Patrimônio, identidade e cidadania: reflexões sobre educação patrimonial. In: BARROSO, V. L. M. [et al] (Org.). Ensino de História: desafios contemporâneos. Porto Alegre: EST Edições, 2010, p. 25 –37. MARCHETTE, Tatiana Dantas. Educação patrimonial e políticas públicas de preservação no Brasil. Curitiba: Intersaberes, 2016. NORA, Pierre. Entre memórias e história: a problemática dos lugares. Projeto História, São Paulo, n. 10, p. 7-28, 1993. SCIFONI, Simone. Para repensar a Educação Patrimonial. In: PINHEIRO, Adson R. S. (Org.). Cadernos do patrimônio cultural: Educação Patrimonial. Fortaleza: Secultfor: Iphan, 2015, p. 195 – 206. SILVA, Neemias Oliveira da Silva. Patrimônio e Corpo: o Cine Teatro São Joaquim como paisagens de emoções. Universidade Estadual de Goiás. Campus Cora Coralina: 2019. Capítulo 10 História e memória: limites e possibilidades do uso da literatura nas novas abordagens históricas João Pedro Rodrigues do Carmo 1 Maria Zeneide Carneiro Magalhães de Almeida 2 Paulo Cesar Soares de Oliveira 3 1 Introdução Tratar de uma relação entre história e literatura apresenta diversas questões. Ao longo do desenvolvimento da humanidade, os indivíduos criaram novas e diversas formas de manifestação artística. A literatura surge como forma de distração da realidade social, apresentando como possibilidade uma observação. Desse modo, durante a construção da História enquanto Ciência Humana, no século XIX, a literatura foi deixada de lado no desenvolvimento do conceito de documento. Nesse sentido, diversos aspectos da realidade social foram deixados em segundo plano na construção da ideia das fontes históricas. Os historiadores tradicionalmente têm focado na história dos “vencedores” e das classes dominantes, dos reis e do clero. E o conceito de documento histórico ao longo dos séculos ficou restrito as fontes estatais, oficiais e escritas. Esta centralidade grafocêntrica da análise histórica 1 Licenciado em História pelo Instituto Superior de Educação da Faculdade Alfredo Nasser (UNIFAN-GO), professor de história SEDUC-GO. joaopedrohistoriador@gmail.com. 2 Professora Adjunta/PUC-GOIÁS-PPGE/EFPH- Linha de Pesquisa: Educação, Cultura e Sociedade; Doutora em História Cultural/UNB. Mestre em Educação/UNICAMP-FE. Pedagoga/UCG (PUCGO). Líder do Diretório CNPq/PROPE/ Grupo de Pesquisa: Educação, História, Memória, Culturas em Diferentes Espaços Sociais- HISTEEDBR. Ex-professora da Faculdade de Educação /UFG. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5736362178244406 ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2220-9932 E-mail: zeneide.cma@gmail.com 3 Doutorando em Educação (PUC-GO), Mestre em Educação (UFG), graduado em História (UFG), professor e intérprete de LIBRAS (PROLIBRAS). Professor efetivo de LIBRAS/ História da SEDUC-GO, professor redator formador MEC-BNCC. No Instituto Superior de Educação da Faculdade Alfredo Nasser (UNIFAN-GO) atua como Professor de LIBRAS/ História nos cursos de Pedagogia, Letras, História e Medicina. libras.paulo@hotmail.com. João Pedro R. do Carmo; Maria Zeneide Carneiro M. de Almeida; Paulo Cesar S. de Oliveira | 183 relega a segundo plano outros sujeitos e objetos como passives de escrutínio científico. Esta perspectiva tende a mudar a partir do início do século XX como o surgimento de uma historiografia mais aberta e plural que ficou conhecida como Nova História. A história ganhou novos e maiores horizontes. Surgem novas fontes históricas e o conceito de documento histórico é reformulado e ampliando. Neste contexto, a literatura ganha lugar enquanto fonte, pois possibilita vislumbrar aspectos da realidade social e histórica a partir dos textos literários. O presente estudo bibliográfico busca investigar a relação entre história e literatura, e os limites e as possibilidades que incorrem neste processo. Desse modo, inicia-se por uma discussão a respeito do conceito de documento e fonte histórica na construção da História enquanto Ciência Humana. Posteriormente, discute-se a ampliação dos conceitos de fonte e documento histórico, as novas possibilidades teóricas e objetos e os fundamentados na Nova História a partir do início do século XX. Depois disso, observa-se a relação entre história e literatura. O presente estudo bibliográfico buscou investigar a trajetória histórica do uso da literatura como fonte historiográfica e mantenedora da memoria. A partir de um referencial teórico pautado na trajetória dos principais autores de uma das corretes mais importantes da histografia contemporânea que são os pensadores das escolas dos 4Annales. Buscou- se de forma sucinta contemplar pensamentos dos historiadores Bloch (2001), Peter Burke (1992), Chartie (2002) e Le Goff (2013) sobre as novas possibilidades investigativas. Esses pensadores desde o início do século passado, cada um em sua época e perspectiva, tem possibilitado a inserção 4 A Escola das Analises ou (École des Annales) é um movimento historiográfico que surge no século XX na França, fundado por Lucien Paul Victor Feberv (1878-1956) e Marc Bloch. Foi um movimento demasiadamente importante, pois criou as bases para a construção de uma história que se volte a estudar temáticas antes nunca estudadas e/ou abordadas. 184 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II de temas diversificados e o alargamento das fontes como análise científica possível da História. Como apoio a essas teorias inovadoras, dialogou-se também com alguns de seus estudiosos no Brasil como Bittencourt (2008), Pesavento (2003, 2019), Schwarcz (2001) dentre outros. 2 O Positivismo histórico e a erudição da História no século XIX Para entendermos esta mudança conceitual sobre as fontes e os objetos possíveis da história, faz-se necessário analisar o contexto da construção da história enquanto Ciência Humana. E também conhecer o processo de institucionalização e a análise temporal que as escolas históricas e os historiadores tiveram acerca da compreensão e do uso dos documentos e fontes históricas. Com base nisso, parte-se de uma análise acerca do positivismo enquanto influencia na formação da ciência história e posteriormente, uma análise do pensamento estruturalista5 como inspiração teórica para a o surgimento da Nova História. A história para os positivistas deveria ser uma narrativa dos acontecimentos, sendo assim uma história objetiva. Os historiadores deveriam apresentar aos leitores os fatos ocorridos, esses fatos eram captados dos documentos e os documentos pertenciama um Estado ou instituições oficiais. Esses elementos foram essenciais para a erudição da História no século XIX. A erudição da história consolidou-se primeiramente na Europa em países como Inglaterra, França, Prússia e Itália. Le Goff6 (2013, p. 122) aponta que, “o grande centro, o farol, o modelo da história erudita no século XIX, foi a Prússia” criando instituições e coleções de prestígio, 5 O estruturalismo é uma teoria que parte da linguística, das estruturas da linguagem, tendo como objetivo observar aspectos estruturais e estruturantes da sociedade, que analisa a realidade social a partir de um conjunto de elementos e relações estruturais tais como a família, o estado, a cultura e a política. (LÉVI-STRAUSS, 2008). 6 Jacques Le Goff,historiado francês da terceira Escola dos Annalis e apresentar a História em correlação com a Antropologia (SILVA; SILVA, 2016). João Pedro R. do Carmo; Maria Zeneide Carneiro M. de Almeida; Paulo Cesar S. de Oliveira | 185 fortificando laços entre a erudição e o ensino, formação de seminários e investigação histórica. Le Goff (2013), aponta que a erudição prussiana contagiou estudiosos europeus. Entre os principais nomes do positivismo está o de Leopold Von Ranke7, historiador alemão do século XIX, que definia a história como história factual, ou seja, o historiador deve analisar a História restritamente atento aos fatos da forma como aconteceu, deveria “contar os fatos tais como eles se deram”. Com a consolidação do pensamento positivista nas Ciências Humanas, a História deu seus primeiros passos enquanto ciência no século XIX, período de grande avanço científico para todas as áreas do conhecimento humano. Os profissionais das Ciências Humanas neste período precisavam fazer com que a história ganhasse o status e a legitimidade de ciência como o das ciências da Natureza e Exatas. A história passou a ser profissionalizada, e os historiadores os seus profissionais, segundo Peter Burke8 (1992, p. 16) A História rankeana era o território dos profissionais. O século XIX foi a época em que a história se tornou profissionalizada, como seus departamentos nas universidades e suas publicações especificas, como a Historische Zeitschrift e a English Historical Review. Desta forma, o domínio das análises históricas passa a migrar dos antiquários e das mãos dos armadores9 para se transformar em ciência, 7 Leopold Von Ranke, historiador alemão, nasceu em 1795 e faleceu em 1886. Cursou os estudos universitários na universidade de Leipzig. Desenvolveu um método histórico que se contrapõe a filosofia da história de Hegel, sua influência se dá através de suas perspectivas acerca do trabalho do historiador e a forma como ele deve lidar com as fontes. Ranke possui diversos livros sobre o campo da História e o papel do historiadoe (CUNHA, 2018). 8 Peter Burke, historiador inglês e professor de história das ideias no School of European Studies. 9 Nesse contexto, os armadores são historiadores que não eram historiadores profissionais, pois o conceito de historiador, institucionalizado, não era aplicado a esses indivíduos devido ao campo da historiografia estar se fortificando justamente neste período (BURKER, 2001). 186 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II ganhando cientistas próprios, departamentos, salas, debates e publicações. Le Goff (2013, p. 121) também aponta para essa profissionalização da história que “em 1834, o historiador Guizot, então ministro, instituiu um comitê de trabalhos históricos, encarregado de publicar uma coleção de Documentos Inéditos Sobre a Sociedade da França”. O surgimento da história enquanto ciência se deu a partir de questões políticas, econômicas e sociais. Dentre essas se destaca a importância dos governos europeus que buscavam criar uma identidade nacional, devido a mudanças territoriais europeias e os processos de unificações e surgimentos de países e nações. Os governos começaram a abrir espaço para os historiadores que auxiliariam a gerir, identificar e cristalizar estas identidades nacionais. Le Goff (2013), observa que a sociedade francesa na segunda metade do século XIX também estava na busca desta unidade nacional e identitária. Demandando de intelectuais das ciências diversas se envolverem neste movimento. A história, mesmo sendo nova no espaço acadêmico daquele período, foi parte fundamental neste processo. Le Goff (ibid, p. 121), aponta que “daquele momento em diante passa a existir uma “armadura” defensora da história: cadeiras de faculdade, centros universitários, sociedades culturais, coleção de documentos, bibliotecas, revistas”. A formação da história enquanto ciência deu-se a partir de análise restrita do conceito e da definição do que seja documento legitimamente histórico. Pois, os documentos oficiais tinham a função de legitimar os fatos históricos pesquisados. A história para os “tradicionalistas10” era 10 O campo tradicionalista remete a perspectiva da história tradicionalista. Esse campo tinha por objetivo compreender apenas uma perspectiva da história, ou seja, a história das classes dominantes. João Pedro R. do Carmo; Maria Zeneide Carneiro M. de Almeida; Paulo Cesar S. de Oliveira | 187 baseada somente nessa perspectiva, como aponta Peter Burker (200, p. 13), sobre a perspectiva positivista. [...] segundo o paradigma tradicional, a história deveria ser baseada em documentos. Uma das grandes contribuições de Ranke foi a exposição das limitações das fontes de narrativas vamos chamá-las de crônicas – e sua ênfase na necessidade de basear a história escrita em registro oficiais, emanados do governo e preservados em arquivos. Para os historiadores deste período, a análise de um fato histórico deveria ser realizada somente a partir de fontes escritas, não só escritas, mas o documento deveria ter valor oficial, governamental ou institucional. Os historiadores, enquanto pesquisadores no século XIX privilegiaram a escrita oficial e documental como pontua Le Goff (2013, p. 104), “A ideia de que o nascimento da história estava ligado ao aparecimento da escrita levava a privilegiar os documentos escritos”. Os historiadores do século XIX e início do século XX compreendiam que o uso da escrita documental e oficial era extremamente importante para o ofício do historiador, e acabavam por silenciar as outras fontes escritas como livros diversos, literatura e produções diversas manuscritas ou impressas. Bloch (200, p. 95), ao criticar esta estrita e rigorosa escolha e seleção das fontes e dos documentos salienta que “Os documentos manejados pelos eruditos eram, na maioria das vezes, escritos que se apresentavam por si só ou que eram apresentados, tradicionalmente, como de um autor ou época dados; que contavam deliberadamente estes ou aqueles acontecimentos”. Os documentos oficiais eram vistos como a verdade para os positivistas. Os historiadores tradicionalistas estudavam a história factual, dos fatos importantes para a humanidade, as conquistas e os feitos dos grandes homens. Como aponta Peter Burke (1992, p.10), 188 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II De acordo com o paradigma tradicional, a história diz respeito essencialmente à política. Na ousada frase Vitoriana de Sir John Seeley, Catedrático de História em Cambridge, “História é a política passada: política é a história presente”. A política foi admitida para ser essencialmente relacionada ao Estado; em outras palavras, era mais nacional e internacional, do que regional. A história positivista estava preocupada, principalmente, com os acontecimentos políticos, relacionados ao Estado, considerando importantes os feitos políticos, bélicos e eclesiásticos da humanidade. As principais potências europeias do século XIX consolidaram-se como centros de pesquisa, e a histórianão poderia perder o trem do progresso. A história deveria se endurecer quanto ciência e buscava na construção da história nacional e internacional a sua legitimidade cientifica. O que legitimava o fato histórico era o documento, em contrapartida o material produzido pelos profissionais da História dava força e significado ao legado nacional. Esta ligação com a história factual era uma história como aponta Peter Burke a historia dos positivistas (1992, p.12), “oferece uma visão de cima, no sentido de que tem sempre se concentrado nos grandes feitos dos grandes homens, estadistas, generais ou ocasionalmente eclesiásticos”. A historiografia tradicionalista focava na história dos vencedores, das figuras importantes, das classes dominantes, dos governantes, das guerras e conflitos, instituições religiosas, nas leis, na família, na educação e no Estado. O discurso de um estadista, uma carta de um general, os planos sobre uma determinada empreitada comercial ou uma tomada de decisão pela igreja católica, eram o que tinha relevância. Tudo que transformava a nível nacional ou internacional e era documentado, ou que continham escritos sobre a classe dominante era material de estudo para a João Pedro R. do Carmo; Maria Zeneide Carneiro M. de Almeida; Paulo Cesar S. de Oliveira | 189 historiografia. Para os historiadores rankeanos11, a história era a história dos vencedores. Le Goff (2013, p.104), também comenta sobre a perspectiva dos positivistas. Durante muito tempo, os historiadores pensaram que os verdadeiros documentos históricos eram os que esclareciam a parte da história dos homens digna de ser conservada, transmitida e estudada: a história dos grandes acontecimentos (vida dos grandes homens, acontecimentos militares e diplomáticos, batalhas e tratados), a história política e institucional. Nesse sentido, pode-se compreender a história tradicionalista e a importância do documento para a cientificidade e solidificação do campo da história. Com o decorrer do tempo a historiografia foi se estruturando numa nova perspectiva de pesquisa, o campo tradicionalista dos documentos oficiais não sustentava as indagações dos historiadores e um novo movimento começou a surgir no início do século XX. 3 O Culturalismo e a Historiografia do Século XX: novas possiblidades de estudo A história fundamentada na narrativa dos vencedores, das genealogias das classes dominantes dominou o cenário por longos séculos. As análises da realidade social sob o ponto de vista daqueles que a vivenciavam até então silenciadas pediam para serem analisadas. Desse modo, observa-se no início do século XX o surgimento de novas correntes historiográficas. Pois, o pensamento historiográfico acompanha o desenvolvimento social e político da humanidade, não sendo isento de suas influências e acabam também por influenciá-los. É neste momento 11 De acordo com Peter Burke (1992, p. 10), “Será conveniente descrever este paradigma tradicional como “história rankeana”, conforme o grande historiador alemão Leopold Von Ranke (1795-1886), embora este tivesse menos limitado por ele que seus seguidores (assim como Marx não era marxista, Ranke não era um rankeano)”. 190 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II que a literatura ganha lugar e possibilidades de auxílio para o oficio do historiador. No século XX, as perguntas sobre a história humana necessitavam de novas respostas. A história não era só a dos vencedores, também uma história que explicasse as questões e anseios dos vencidos, das mulheres, da cultura e do povo oprimido e comum. Além das demais demandas da história temática e dos temas sensíveis e urgentes da contemporaneidade que começam a ganhar destaque a partir do século passado. Nesse período o historicismo12 e o positivismo entraram em combate. Segundo Burke (1992), O principal embate entre historicistas e positivistas se dava em relação a uso de metodologias das ciências humanas para a construção de análises das ciências humanas. Com o pensamento historicista que se inicia com a busca pela interdisciplinaridade de campos do saber como o estruturalismo histórico que começa a ganhar forma e passa a influenciar grandemente as Ciências Humanas. Para a antropóloga e historiadora brasileira Lilia Moritz Schwarcz (2001, p. 9), a história era “à versão da época, que definia o passado como rígido, que ninguém altera ou modifica” está afirmação feita pelos positivistas é correta, contudo a história também pode e deve ser analisada por diferentes lados, pois um mesmo fato pode ter várias perspectivas e interpretações. Peter Burke menciona que o precursor desta forma inovadora de ver a história foi o estudioso Jacob Burckhardt13 que em 1860 já considerava a história cultural como linha de estudo. 12 Historicismo é um movimento que compreende os indivíduos e as comunidades a partir de diversos aspectos sociais (cultura, política, economia etc). 13 Jacob Christoph Burckhardt (1818-1897), historiador da arte e da cultura, professor de historia na Universidade de Basileia e em Zurique. João Pedro R. do Carmo; Maria Zeneide Carneiro M. de Almeida; Paulo Cesar S. de Oliveira | 191 Em 1860, o estudioso suíço Jacob Burckhardt que publicou um estudo de The Cicilization of the Renaissence in Italy, concentrando na história cultural e descrevendo mais as tendências do que narrando os acontecimentos (BURKE, 1992 p. 18). Mas, foi somente em 1939, com a fundação da revista Escola das Análises, que a história estrutural ganhou força. Chamada de Nova História, contrapondo-se a história rankeana do século XIX. Enquanto a história positivista se preocupava com os fatos e os documentos ligados á política, Marc Bloch e Lucien Feberv, como alguns autores que já consideravam outros tipos de história, viam que tudo estava conectado ou tudo tinha uma história. Por mais que as mulheres não estivessem presentes em determinada tomada de decisão, as mulheres participavam da sociedade. Bloch (2001, p. 79), acreditava que tudo produzido pelo homem era testemunho de sua existência. “A diversidade dos testemunhos é quase infinita. Tudo que o homem diz ou escreve, tudo que fábrica, tudo pode e deve informar sobre ele”. Marc Bloch (2001), criticava a história positivista e a centralidade ao documento, um documento poderia ser falsificado ou poderia ser tendencioso, porém para os estruturalistas até o documento falso se torna fonte histórica. Com esta nova visão historiográfica as fontes e os fatos foram relativizados e ampliados. Segundo Reis (2008), o estruturalismo é uma corrente fundamental para as Ciências Humanas modernas. O pensamento estrutural tornou possível a compreensão da realidade social a partir de diversas óticas, possibilitando aos agentes sociais uma compreensão de si no decorrer do processo histórico. Para, além disso, trouxe a possibilidade de compreender a história sob uma ótica prima, fundadas na construção de narrativas próprias e representadas. 192 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II Para Portelli (2010), o papel do historiador ganhou um novo significado e igualmente seu objeto de pesquisa ampliou-se de forma significativa. Após o termino da segunda grande guerra, o pensamento social ampliou-se de forma significativa, novas teorias, estruturas metodológicas e perspectivas surgem no cenário politico e social. Estas novas abordagens trouxeram como possibilidade a compreensão da história em diversas matrizes, óticas e conseguem abarcar uma totalidade de relações que não são necessariamente hegemônicas. Desde modo, o papel do historiador encontra-se com novas perspectivas e novas abordagens históricas. De acordo com Le Goff (2013, p. 105), Na atual renovação da ciência histórica – que se acelera, ao menos na sua difusão (o incremento essencialveio com a revista dos Annales, fundada por Bloch e Febvre em 1929) -, uma nova concepção do tempo histórico desempenha um papel importante. A história seria feita segundo ritmos diferentes e a tarefa do historiador seria, primordialmente, reconhecer tais ritmos. Dessa forma, Le Goff (2013, p. 13), observa que: A crítica da noção de fato histórico tem, além disso, provocado o reconhecimento de “realidades” históricas negligenciadas por muito tempo pelos historiadores. Junto a história à história política, à história econômica e social, à história cultura, nasceu uma história das representações. Nesse sentido que ocorre a ideia de uma “nova história” ou “história estrutural” principalmente para o que ficou conhecido como a primeira geração dos Annales. Dentro disso, a Escola das Análises torna-se demasiadamente significativa, pois através de seus estudos, de uma nova João Pedro R. do Carmo; Maria Zeneide Carneiro M. de Almeida; Paulo Cesar S. de Oliveira | 193 compreensão dos sujeitos e agentes sociais, das estruturas e das relações, uma nova abordagem tornou-se possível. De acordo com Burke (1992, p. 10), A nova história é a história escrita como uma reação deliberada contra o “paradigma” tradicional, aquele termo útil, embora impreciso, posto em circulação pelo historiador de ciência americano Thomas Kuhn [...]. Poderiamos também chamar este paradigma de a visão do senso comum da história, não para enaltecê-lo, mas para assimilar que ele tem sido com frequência – com muita frequência – considerado a maneira de se fazer história, ao invés de ser percebido como uma dentre varias abordagens Conforme o autor observa, um movimento que busca por fontes que representassem a “história dos debaixo”, uma história que estivesse desassociada da linha tradicionalista que, com o auxílio da etnologia, possibilitou a ampliação do conceito de fonte histórica. E também a possibilidade da investigação dos fenômenos sociais a partir de documentos que não são, necessariamente, documentos vinculados ao Estado ou somente escritos e oficiais. Dentre outros a literatura surge enquanto documento histórico, trazendo panoramas e perspectivas dos agentes sociais em seu processo de vida. A literatura passa a ser compreendida e aceita como fonte histórica e como aporte a análise e critica de fatos históricos, possibilitando novas perspectivas e observações a respeito da realidade social que não implica necessariamente na análise de documentos oficiais. 4 A Literatura como fonte histórica e seu uso no ensino aprendizagem de História A partir do século passado o conceito de documento histórico foi sendo ressignificado, incorporando outros recursos e materiais como fonte histórica. Com base nisso, a literatura, a fotografia e, até mesmo, a 194 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II estatística surge como recurso de investigação histórica. Segundo a historiadora e pesquisadora Circe Maria Fernandes Bittencourt, Os estudos de textos literários têm assim como objetivo não apenas desenvolver “o gosto pela leitura” entre os alunos, mas também fornecer condições de análises mais profundas para o estabelecimento de relações entre conteúdo e forma. As contribuições de vários pesquisadores da literatura e sua história têm possibilitado abordagens mais complexas que merecer ser introduzidas pelos professores de história (BITTENCOURT, 2008, p. 341) Da mesma forma a escritora Sandra Jatahy Pesavento (2006, p. 2), observa a respeito da relação entre literatura e história: Para enfrentar esta aproximação entre estas formas de conhecimento ou discursos sobre o mundo, é preciso assumir, em uma primeira instância, posturas epistemológicas que diluam fronteiras e que, em parte, relativizem a dualidade verdade/ficção, ou a suposta oposição real/não-real, ciência ou arte [...] assim, literatura e história são narrativas que tem o real como referente, para confirmá-lo ou negá-lo, construindo sobre ele toda uma outra versão, ou ainda para ultrapassá-lo. Como narrativas, são representações que se referem à vida e que a explicam. Nesse interim, a literatura torna-se fonte histórica na medida em que os indivíduos não estão dissociados do contexto social em que vivem, durante o processo de escrita ou leitura de uma obra literária. A literatura apresenta-se como fonte histórica na medida em que permite uma compreensão da realidade social, da moda, dos conflitos, dos valores morais, das perspectivas políticas e ideológicas de uma sociedade. A respeito dessa relação, Pesavento (2003, p. 33), compreende que: Ainda como desdobramento desta compreensão da História que a aproxima da Literatura, temos o entendimento de que ambas as narrativas realizam a configuração de um tempo. Seja este o que se passou, no caso da História, ou João Pedro R. do Carmo; Maria Zeneide Carneiro M. de Almeida; Paulo Cesar S. de Oliveira | 195 que poderia ter se passado, mas que realmente se passa, para a voz narrativa da Literatura, este tempo se constrói como uma nova temporalidade, nem presente nem passado, mas que ocupa o lugar do passado e, no caso da História, a ele se substitui. É este presente da escrita que inventa um passado ou constrói um futuro, para melhor explicar-se. Nesta medida, o momento da feitura do texto torna-se essencial para o entendimento das ações narradas, sejam elas acontecidas ou não. Com base nisso, a literatura, embora transpareça uma análise da realidade de forma ficcionada, possibilita uma experimentação do real, do contexto histórico, mesmo que este esteja inserido em gêneros literários como o futurismo, o surrealismo e etc. O que torna fundante essa relação é o fato dela estar calcada em experiências reais, que exprimem perspectivas e relações sociais concretas. Mas, sem sombra de dúvida, o exercício ficcional de escrita da História encontra limites, se formos considerá-Io com relação àquele que preside a escrita da Literatura. Estes limites se dão, por um lado, pela exigência deste acontecido, ou de que os personagens e fatos sejam reais. Nesta medida, a História coloca reticências a uma postura tal como a de Hayden White, que leva muito longe a dimensão desta imaginação histórica, ou a de Roland Barthes, quando afirma que nada existe fora do discurso. Sim, a realidade é apreendida pela linguagem e nesta encontra significado, mas o imaginário pressupõe o real como referente (PESAVENTO, 2003, p. 35). Em consonância, a literatura enquanto fonte história apresenta certos limites, uma compreensão da realidade histórica a partir da literatura parte de uma análise objetiva, que busca investigar mecanismos e aspectos da realidade histórica. Torna-se demasiadamente importante observar que o uso da literatura como fonte histórica é importante, pois permite observar aspectos da realidade histórica sob a ótica dos indivíduos que a experimentam. Para além dos documentos oficiais, a literatura como 196 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II fonte histórica traz como possibilidade uma investigação profunda da realidade social. Com base na discussão anterior, a literatura permite observar a realidade social a partir dos indivíduos, das classes ou grupos sociais que a experimentam. Por causa disso, a literatura pode se tornar fonte histórica, permitindo uma análise lúdica e, ao mesmo tempo, concreta da realidade. Desse modo, o historiador francês Roger Chartier (2002), observa que a literatura, ao longo do desenvolvimento da história humana, foi um recurso fundamental de informação e comunicação. O autor observa que a partir da difusão da literatura, foi possível que indivíduos de espaços distintos tivessem acesso a informação. O autor destaca que, por exemplo, a literatura de cordel tornou possível que indivíduos que residiamem regiões distantes, tivessem acesso aos conflitos, a informações e, fundamentalmente, aos fatos históricos (CHARTIE, 2002). Outro autor que também consegue fazer esta ligação é Barros (2005, p. 128), que observa: A leitura, enfim, é prática criadora – tão importante quanto o gesto da escritura do livro. Pode-se dizer, ainda, que cada leitor recria o texto original de uma nova maneira – isto de acordo com os seus âmbitos de “competência textual” e com as suas especificidades (inclusive a sua capacidade de comparar o texto com outros que leu e que podem não ter sido previstos ou sequer conhecidos pelo autor do texto original que está se prestando à leitura). Pesavento (2003, p. 38), por sua vez, pontua que: [...] a narrativa histórica comporta e mesmo exibe elementos de historicidade que devem conduzir o leitor a uma realidade extratextual, diz Pomian, mas que só pode ser acessada pelo trabalho de imaginação, principiado pelo texto e completado pela leitura. Leitores de História, em princípio, busca saber como João Pedro R. do Carmo; Maria Zeneide Carneiro M. de Almeida; Paulo Cesar S. de Oliveira | 197 foi, ou mais ainda, a verdade do que foi. Mesmo porque, consagradamente, pesa sobre o historiador o papel de desempenhar a fala autorizada sobre o passado. Mas, mesmo detendo esta autoridade da fala, o historiador se vale dos recursos da linguagem, do esforço retórico do convencimento, das evidências de pesquisa. O uso de obras literárias nas aulas de história permite o desenvolvimento do senso crítico e de uma observação criativa acerca da realidade social. A literatura possibilita que os indivíduos compreendam aspectos de determinados momentos históricos tendo como base uma análise que está diretamente centrada nas experiências e na observação participante, mesmo que esta não seja objetivo central da obra. Como vimos, a literatura é uma forma de experimentação da realidade social. Embora exista uma perspectiva de que a literatura seja apenas uma forma de observação ficcionada da realidade, ela apresenta uma vasta gama de questões que tornam possível uma compreensão da realidade social, tridimensional, possibilitando conectar de passado, presente e futuro. Esse processo pode ser compreendido devido aos indivíduos estarem inseridos em determinados contextos, carregam aspectos políticos, sociais e culturais. Dessa maneira, a literatura assume importância nas análises históricas, pois permite vislumbrar aspectos da realidade social para além dos documentos. De acordo com Rezende (2010, p. 98) Sendo a literatura uma forma de ler, interpretar, dizer e representar o mundo e o tempo, possuindo regras próprias de produção e guardando modos peculiares de aproximação com o real, de criar um mundo possível por meio da narrativa, ela dialoga com a realidade a que refere de modos múltiplos, como a confirmar o que existe ou propor algo novo, a negar o real ou reafirmá- lo, a ultrapassar o que há ou mantê-lo. 198 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II O uso da literatura possibilita uma observação a partir de diversos cenários da realidade histórica14. O auxílio da literatura permite o desenvolvimento de novas formas de compreensão a respeito de determinados objetos, levando em consideração aspectos que se tornam marginais numa análise dos documentos oficiais. Também permite uma observação que côngrua aspectos relacionados à experimentação dos indivíduos e relações sociais, valores e perspectivas. 5 Considerações finais Desse modo, pode-se observar que história tradicional interessava-se pelo estudo da realidade social a partir das instituições oficiais, tais como o Estado e a Igreja. Nesse sentido, as fontes históricas e os documentos oficiais eram, dessa forma, vinculados a essas instituições. Dentro disso, a construção da História enquanto Ciência Humana se deu através da construção de metodologias que se baseavam no Positivismo e numa compreensão dos fenômenos sociais a partir das ciências biológicas. A partir da Nova História, os conceitos de documento e fonte histórica são largamente ampliados e relativizados colocando como possibilidade a análise da realidade histórica para além da estrutura do Estado. Os documentos e as fontes históricas colocam como estrutura metodológica a análise de diferentes pontos de vista, perspectivas, culturas e relações sociais. A literatura surge como possibilidade de investigação histórica, trazendo impressões, costumes, conflitos, relações e dinâmicas sociais a partir dos textos literários. Os textos literários assumem importância, pois a 14 Um exemplo disso é o livro “1984 de George Orwell”. Esta obra pode ser utilizada para demonstrar um panorama do desenvolvimento do nacionalismo ao longo do século XX. Outro exemplo é a obra de autoria do mesmo autor denominada “A revolução dos bichos”, que pode ser utilizado para demonstrar em outro prisma os conceitos de socialismo e comunismo e o que aconteceu no socialismo real a partir da Revolução Russa. Um exemplo de uma obra que pertença à literatura nacional é o livro “Memorias póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis. Ele consegue, por meio da narrativa, demonstrar como pano de fundo o panorama das relações sociais e culturais no Império brasileiro do século XIX. João Pedro R. do Carmo; Maria Zeneide Carneiro M. de Almeida; Paulo Cesar S. de Oliveira | 199 partir desse gênero é possível ter contato com perspectivas e fenômenos históricos que não se limitam apenas a compreensão de documento tradicional. Portanto, estabelecer uma relação entre história e literatura torna-se importante, pois coloca possibilidade uma compreensão dos fenômenos sociais a partir de diferentes óticas. Embora exista uma compreensão a respeito da literatura somente pelo seu lado ficcional, a literatura permite a compreensão de culturas, aspectos e fenômenos sociais que não estão somente ligadas a personagens, mas em todos os aspectos da vida social. Através das obras literárias podem-se observar diversos aspectos da realidade social. Mas, encontra-se como aspecto limitador a construção de uma metodologia que busque relacionar estes aspectos e o desenvolvimento de um estudo cientifico. Pois, o uso da literatura demonstra não somente possibilidades, mas também, limites de aproximação com a história. Como limite, apresenta-se o cuidado de o pesquisador em não se deixar apenas na construção de uma análise que se limite aos aspectos ficcionais da obra e não perceba sua real relação com o passado que se quer e apreender. Outro limitador trata-se da dificuldade de se fazer uma leitura de extensas obras, muitas vezes de um português arcaico e distante da realidade do pesquisador que já possui uma carga grande de leitura conceitual, factual e de análise da pesquisa de campo para realizar em suas produções. Com certeza a literatura permite uma compreensão a respeito de diferentes perspectivas de um mesmo processo histórico. Mas, deve-se existir uma compreensão a respeito da divisão entre realidade e ficção para uma discussão mais aprofundada e que relacione estes dois aspectos. 200 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II Referências BARROS, José. A história cultural e a contribuição de Roger Chartier. Diálogos, v. 9, n. 1, p. 125-141, 2005. BITTENCOURT, Circe M. F. Ensino de história: Fundamentos e métodos. 2ª ed. São Paulo: Cortez, 2008. BLOCH, Marc. Apologia da história ou oficio do historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. BURKE, Peter (org.). A escrita a história: novas perspectivas. São Paulo: Unesp, 1992. CHARTIE, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. 2ª Ed. Algés: Difel, 2002. LE GOFF, Jacques. História e memoria. 7ª ed. Campinas: Unicamp, 2013. LEVI-STRAUSS, Claude. AnthropologieStructurale. Paris: Plon, 1958. LEVI-STRAUSS, Claude. Antropologia Estrutural. São Paulo: Cosac Naify, 2008. PESAVENTO, Sandra. O mundo como texto: leituras da História e da Literatura. História da educação, v. 1, n. 14, p. 31-45, 2003. PESAVENTO, Sandra História & literatura: uma velha-nova história. Nuevo mundo, 2006. Disponível em: <http://nuevomundo.revues.org/index1560.html> Acesso em: 16 de Out. 2019. PORTELLI, Alessandro. História Oral e Poder. Mnemosine, v. 6, n. 2, p. 2-13, 2010. REIS, Jose Carlos. Nouvelle Histoire e o tempo histórico. São Paulo: Annablume, 2008. REZENDE, Valdeci. História e Literatura: Algumas Considerações. Revista de Teoria da História, v. 1, n. 3, 2010. SCHWARCZ, Lilia. Apresentação á edição brasileira. In. BLOCH, Marc. Apologia da história ou oficio do historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. Capítulo 11 Memórias e narrativas sobre a escola em Machado de Assis e Cora Coralina Rosângela Soares de Almeida Ribeiro 1 Maria Zeneide Carneiro Magalhães de Almeida 2 1 Introdução Tem barreiras a filosofia; a ciência política acha um limite na testa do capanga. Não está no mesmo caso a arte do arroz-doce, e acresce-lhe a vantagem de dispensar demonstrações e definições. Não se demonstra uma cocada, come- se. Comê-la é defini-la. (ASSIS, 1994). A Literatura em seus vários contextos apresenta uma grande soma na vida da pessoa, pois os textos apresentam em diferentes épocas que podem ser comparados com a atualidade, sejam nos mais diversificados gêneros. Os autores a serem pesquisados na tese de doutorado em educação são: Machado de Assis com o Conto de escola e com algumas poesias de Cora Coralina referente a educação. Pretende-se desenvolver uma pesquisa qualitativa, e também memórias e narrativas, tendo como instrumento de suporte os autores FRIEDRICH (1991), RICOEUR (2000), FREIRE (2009), ALMEIDA (2009), 1 Doutoranda em educação do programa de Pós-graduação pela PUC-Goiás. Mestra em Letras (PUC-Goiás). Professora da Rede Municipal em Alvorada-TO. E-mail: rosangela.almeida123@hotmail.com http://lattes.cnpq.br/2730832887948216 2 Doutora em História Cultural(UNB); Mestre em História e Filosofia da Educação(UNICAMP);Pedagoga(UCG/PUCGO); Ex-profa.Adjunta FE/UFG. Atualmente é profa.Adjunta da PUC Goiás/PPGE. Linha de Pesquisa: Educação, Sociedade e Cultura. Líder do Diretório/CNPq-Grupo de Pesquisa "Educação, História, Memória e Culturas em Diferentes Espaços Sociais"- HENCES/HISTEDBR.Zeneide.cma@gmail.com http://lattes.cnpq.br/5736362178244406. Orcid iDhttps://orcid.org/0000-0003-2220-9932 202 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II TEIXEIRA (2010), ASSIS (2011), PLAZA (2013); CORALINA (2013), BLOOM (2017), dentre outros. A pesquisa será desenvolvida com os alunos do Ensino Médio do Colégio Estadual de Alvorada-TO. Como a autora menciona: “essas lembranças representam as singularidades da ação humana de toda uma coletividade que vem aos poucos se esvanecendo nas lembranças das gerações atuais.” (ALMEIDA, 2009 p. 18), as lembranças nos remetem reviver algo, que relembrado nos conecta a contextos diversos de imagens e realidades revividas. O autor Machado de Assis (Joaquim Maria Machado de Assis) foi jornalista, contista, cronista, poeta e teatrólogo, nasceu no Rio de Janeiro em 1839, e faleceu na mesma cidade em 29 de setembro de 1908. Filho do pintor e dourador Francisco José de Assis e da açoriana Maria Leopoldina Machado de Assis. Machado de Assis era o filho mais velho e perdeu a sua mãe muito cedo. Foi criado no morro do livramento do Rio de Janeiro, estudou como pode e, em 1854, com 15 anos incompletos publicou o seu primeiro trabalho literário. Já Cora Coralina (1889-1985) foi uma poetisa e contista brasileira. Publicou seu primeiro livro quando tinha 75 anos e tornou-se uma das vozes femininas mais relevantes da literatura nacional. Cora Coralina começou a escrever poemas e contos quando tinha 14 anos, chegando a publicá-los, 1908, no jornal de poemas “A Rosa”, criado com algumas amigas. Ana Lins dos Guimarães Peixoto conhecida como Cora Coralina, nasceu na cidade de Goiás, no Estado de Goiás, no dia 20 de agosto de 1889. Filha de Francisco de Paula Lins dos Guimarães Peixoto, desembargador, nomeado por Dom Pedro II, e de Jacinta Luísa do Couto Brandão. Cursou apenas até a terceira série do curso primário. Rosângela Soares de Almeida Ribeiro; Maria Zeneide Carneiro Magalhães de Almeida | 203 A leitura do texto lírico constitui uma problemática relevante nos nossos dias, já que o gosto e o tempo disponibilizados pelos Jovens Alunos do Ensino Médio para a leitura são praticamente insignificantes. Dessa forma, torna-se eficaz o estudo da problemática acima referida, na busca de caminhos possíveis no processo da leitura da poesia/Conto no contexto escolar. Sabe-se do imenso valor que a literatura possui, todavia, essa prática em sala de aula bem como fora dela propicia, além do alargamento intelectual, a elevação da imaginação, bem como o desenvolvimento de princípios e características individuais capazes de medir e reafirmar os próprios sentimentos e ações do Leitor. A poesia é capaz de sensibilizar o ser humano, e nesse sentido evidencia-se a importância de trabalhar o gênero em fase escolar, para tanto as contribuições da poesia/conto para essa nova concepção leitora. Diante disso, torna-se indispensável uma reflexão sobre a abordagem da poesia, conto em sala de aula, bem como conhecer os caminhos percorridos pelos discentes nesse processo. Como podemos constatar na citação da autora a seguir: Compreendo a escola como um lugar de lembranças e memórias, por isso, na minha concepção, essa abordagem também será buscada para a reflexão que a refere tanto como um espaço de estranhamento, como também aquele que guarda similaridades com o habitat familiar ou doméstico (ALMEIDA, 2009, p. 36) De acordo com a citação da autora (2009) o ambiente escolar é um lugar adequado para o aluno expressar suas emoções, guardar memórias da mesma maneira que é o lugar onde se vive, ou seja, a escola é o segundo lar, lugar esse que será relembrado em diversas circunstâncias. Pois as lembranças da vida escolar ficam na memória para sempre 204 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II Diante das reflexões referentes ao tema proposto, é importante salientar que as poesias, contos estimulam diversas experiências de aprendizagem, como: leitura, interpretação, criação e reflexão sobre a vida escolar no atual momento e as suas trajetórias até o presente momento. As obras de Machado e Cora são extremamente ricas e abertas a vários questionamentos e ensinamentos em prol de um novo aprendizado, uma nova maneira de analisar sobre outras perspectivas o nosso redor, a sociedade e também sobre o nosso eu em consonância com as referidas leituras. 2 Conto de escola A escola era na Rua do Costa, um sobradinho de grade de pau. O ano era de 1840. Naquele dia - uma segunda-feira, do mês de maio - deixei-me estar alguns instantes na Rua da Princesa a ver onde iria brincar a manhã. Hesitava entre o morro de S. Diogo e o Campo de Sant’Ana, que não era então esse parque atual, construção de gentleman, mas um espaço rústico, mais ou menos infinito, alastrado de lavadeiras, capim e burros soltos. Morro ou campo? Tal era o problema. De repente disse comigo que o melhor era a escola. E guiei para a escola. Aqui vai a razão. Na semana anterior tinha feito dois suetos, e, descoberto o caso, recebi o pagamento das mãos de meu pai, que me deu uma sova de vara de marmeleiro. As sovas de meu pai doíam por muito tempo. Era um velho empregado do Arsenal de Guerra, ríspido e intolerante. Sonhava para mim uma grande posição comercial, e tinha ânsia de me ver com os elementos mercantis,ler, escrever e contar, para me meter de caixeiro. Citava-me nomes de capitalistas que tinham começado ao balcão. Ora, foi a lembrança do último castigo que me levou naquela manhã para o colégio. Não era um menino de virtudes. Subi a escada com cautela, para não ser ouvido do mestre, e cheguei a tempo; ele entrou na sala três ou quatro minutos Rosângela Soares de Almeida Ribeiro; Maria Zeneide Carneiro Magalhães de Almeida | 205 depois. Entrou com o andar manso do costume, em chinelas de cordovão, com a jaqueta de brim lavada e desbotada, calça branca e tesa e grande colarinho caído. Chamava-se Policarpo e tinha perto de cinqüenta anos ou mais. Uma vez sentado, extraiu da jaqueta a boceta de rapé e o lenço vermelho, pô-los na gaveta; depois relanceou os olhos pela sala. Os meninos, que se conservaram de pé durante a entrada dele, tornaram a sentar-se. Tudo estava em ordem; começaram os trabalhos. - Seu Pilar, eu preciso falar com você, disse-me baixinho o filho do mestre. Chamava-se Raimundo este pequeno, e era mole, aplicado, inteligência tarda. Raimundo gastava duas horas em reter aquilo que a outros levava apenas trinta ou cinqüenta minutos; vencia com o tempo o que não podia fazer logo com o cérebro. Reunia a isso um grande medo ao pai. Era uma criança fina, pálida, cara doente; raramente estava alegre. Entrava na escola depois do pai e retirava-se antes. O mestre era mais severo com ele do que conosco. — O que é que você quer? — Logo, respondeu ele com voz trêmula. Começou a lição de escrita. Custa-me dizer que eu era dos mais adiantados da escola; mas era. Não digo também que era dos mais inteligentes, por um escrúpulo fácil de entender e de excelente efeito no estilo, mas não tenho outra convicção. Note-se que não era pálido nem mofino: tinha boas cores e músculos de ferro. Na lição de escrita, por exemplo, acabava sempre antes de todos, mas deixava-me estar a recortar narizes no papel ou na tábua, ocupação sem nobreza nem espiritualidade, mas em todo caso ingênua. Naquele dia foi a mesma coisa; tão depressa acabei, como entrei a reproduzir o nariz do mestre, dando-lhe cinco ou seis atitudes diferentes, das quais recordo a interrogativa, a admirativa, a dubitativa e a cogitativa. Não lhes punha esses nomes, pobre estudante de primeiras letras que era; mas, instintivamente, dava-lhes essas expressões.[...] 206 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II 2.1 Análise do Conto de escola O Mestre deve ser meio sério para dar autoridade à lição e meio risonho para obter o perdão da correção. (Machado de Assis) O Conto de escola de machado de Assis escrito em 1840 nos destina a uma época de regras severas no cenário educacional do século XIX. O conto é narrado em primeira pessoa, pelo personagem Pilar já adulto sobre as suas lembranças da escola quando ele tinha dez anos. Remete-nos a vários questionamentos em relação à postura de um professor da época, que era considerado detentor do saber e não aceitava questionamentos e nos relata também a postura do alunado em relação ao professor, que de tão rígido que era os alunos tinham muito receio até de perguntar algo, também não podia faltar às aulas, sendo a escola tradicional numa época que os castigos eram bem severos como a da “palmatória.” A narrativa relata o menino Pilar que era o mais inteligente da sala e que não queria ir a escola sentia-se mais atraído pelos colegas da rua. O Raimundo que era o filho do professor, era um aluno que demorava a aprender, era o mais lento da turma e o Curvelo, era o mais velho da turma que estava de olho para contar tudo ao professor. De acordo que vamos adentrando na narrativa percebemos alguns aspectos presentes na escola atual e na sociedade. Um exemplo é o caso de corrupção explícito no conto e de pessoas semelhantes a Curvelo dedo duro, que à custa dos outros quer se dar bem e não pelos seus próprios méritos. Em relação ao ano que foi escrito o conto, podemos observar na citação a seguir: A referência a maio de 1840 é cuidadosamente escolhida. A Regência estava acabando, em um sentido muito específico: esse foi o mês em que uma seção do partido liberal propôs pela primeira vez a antecipação da Maioridade de d. Rosângela Soares de Almeida Ribeiro; Maria Zeneide Carneiro Magalhães de Almeida | 207 Pedro II, que faria dezoito anos em 1843, mas que foi de fato proclamado maior de idade quando ainda tinha catorze anos, em 23 de julho de 1840. (GLEDSON, 2006, p. 93) Conforme a citação do autor (2006) pode observar que a narrativa deixa-nos indícios de que estava acontecendo algo no país, de acordo que vamos adentrando nas escrituras machadianas, a postura do professor lendo o jornal. De acordo com Gledson (2006, p. 94) “ele não podia ver nada, estava agarrado aos jornais, lendo com fogo, com indignação”. A expressão deixa a perceber que ele não estava conformado com os acontecimentos que lia ali no jornal como a maior idade adiantada, e também a figura do professor não era tão valorizada na época. Na narrativa, podemos observar a repudia do professor fixado em cada linha do jornal e da sua atitude perante o os alunos, como pode-se verificar a seguir: “Policarpo bradou de novo que lhe desse a moeda, e eu não resisti mais, meti a mão no bolso, vagarosamente, saquei-a e entreguei-lha. Ele examinou-a de um e outro lado, bufando de raiva; depois estendeu o braço e atirou-a à rua.” Conclui-se que o conto de estudante de estudante do Machado de Assis nos relata momentos que ainda acontecem na nossa sociedade em alguns contextos da escola brasileira, que deixa a desejar por parte dos governantes que não investem no trabalho docente e em várias esferas educacional. 3 A escola da mestra Silvina Minha escola primária... Escola antiga de antiga mestra. Repartida em dois períodos para a mesma meninada, das 8 às 11, da 1 às 4. Nem recreio, nem exames. 208 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II Nem notas, nem férias. Sem cânticos, sem merenda... Digo mal — sempre havia distribuídos alguns bolos de palmatória... A granel? Não, que a Mestra era boa, velha, cansada, aposentada. Tinha já ensinado a uma geração antes da minha. A gente chegava "— Bença, Mestra." Sentava em bancos compridos, escorridos, sem encosto. Lia alto lições de rotina: o velho abecedário, lição salteada. Aprendia a soletrar. Vinham depois: Primeiro, segundo, terceiro e quarto livros do erudito pedagogo Abílio César Borges — Barão de Macaúbas. E as máximas sapientes do Marquês de Maricá. (...) Num prego de forja, saliente na parede, estirava-se a palmatória. Porta de dentro abrindo numa alcova escura. Um velhíssimo armário. Rosângela Soares de Almeida Ribeiro; Maria Zeneide Carneiro Magalhães de Almeida | 209 Canastras tacheadas. Um pote d'água. Um prato de ferro. Uma velha caneca, coletiva, enferrujada. Minha escola da Mestra Silvina... Silvina Ermelinda Xavier de Brito. Era todo o nome dela. Velhos colegas daquele tempo, onde andam vocês? (...) E faço a chamada de saudade dos colegas: Juca Albernaz, Antônio, João de Araújo, Rufo. Apulcro de Alencastro, Vítor de Carvalho Ramos. Hugo das Tropas e Boiadas. Benjamim Vieira. Antônio Rizzo. Leão Caiado, Orestes de Carvalho. Natanael Lafaiete Póvoa. Marica. Albertina Camargo. Breno — "Escuto e tua voz vai se apagando com um dolente ciciar de prece". (...) E a Mestra?... Está no Céu. (CORALINA, 2014, p.64-65). 210 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II 3.1 Análise do poema- A escola da mestra Silvina “Poeta, não somente o que escreve. É aquele que sente a poesia, se extasia sensível ao achado de uma rima, à autencidade de um verso.” (Cora Coralina)O poema de Cora Coralina, a escola da mestra Silvina é repleto do exercício disciplinar, retratando a autonomia do professor no contexto escolar, escrito na primeira edição em 1965. Percebe-se que a autora utiliza uma linguagem coloquial. De acordo com Peres e Borges (2015, p.39), a poetisa empregou “em seus escritos, a linguagem que melhor se adaptou ao seu empreendimento poético: a coloquial. Conscientemente, em seus textos, há o resgate de uma linguagem perdida, presente nos verbetes dos dicionários, mas há muito em desuso”. Nos versos do poema supracitado percebemos versos livres sem rima de uma naturalidade na voz poética e de questões universais como: o ensino escolar, a concepção da criança e de todas as dificuldades da vida. Nota-se a mestra Silvina, que na época não havia chamada, mas sim um ritual de entradas com “Bença Mestra” (Coralina, 2014, p. 62), nesse fragmento percebeu a maneira respeitosa de os alunos cumprimentarem a professora fazendo uma pausa. Apresenta uma escola de maneira tradicional, onde o eu lírico do início ao fim do poema seguem as regras: os alunos devem entrar na sala de aula, ler em voz alta, soletrar as palavras, cobrir as letras, fazer os exercícios, decorar a tabuada em coro. Percebe-se que as tarefas propostas são um processo de memorização pela repetição, as palavras têm somente características sonoras. Rosângela Soares de Almeida Ribeiro; Maria Zeneide Carneiro Magalhães de Almeida | 211 A escola da mestra Silvina, nos repassa a forma de disciplina rígida e como era o processo de ensino no cotidiano escolar, com as séries juntas, as meninas eram separadas dos meninos, notando o professor possuidor do saber e em relação aos castigos severos. O Eu Lírico classifica a professora Silvina como uma pessoa boa, idosa e cansada, com muitos anos de profissão. Ela havia ensinado a outras gerações e, embora fosse aposentada, ainda continuava a ensinar. Os alunos, da escola da mestra Silvina realizam atividades, mas sempre controlados pela professora, percebe-se neste contexto a professora é única possuidora do saber e os alunos passivos no comando da professora. Desta maneira, nota-se que os alunos obedecem ao que é imposto, chegando a sala de aula senta nos bancos e leem em voz alta o alfabeto e as lições. Adentrar ao universo coralíneo é reviver um passado que a poetisa viveu no período do reinado de D. Pedro II, num casarão onde funcionavam as aulas, e que os alunos não tinham voz ativa, onde demonstra a escola sempre num mesmo “tom”, ou seja, aquele ritual de chegada, a mesma cartilha, todos sentados em bancos sem encosto, nos repassa uma cena de uma escola maçante, monótona, em todos os versos do poema podemos construir uma imagem da escola da mestra Silvina, de uma professora com muitos anos de profissão e que não pode usufruir da sua aposentadoria. Percebemos no contexto atual de educação muitos professores aposentados, que continuam a trabalhar, são de alguns estados que ainda não tem o plano de carreira e que o salário não é o suficiente para sobreviverem. E com tudo que está acontecendo no cenário brasileiro, o professor fica desmotivado e deixam de qualificar, pois o que ganha mal dá para as prioridades. 212 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II Conforme Cambi (1999) “a educação também muda profundamente: ela é ainda, transmissão da tradição e aprendizagem por imitação.” Conforme o autor a educação tende a seguir alguns parâmetros de um ensinamento já ultrapassado, mas de uma maneira bem lenta, a educação vai aos poucos se readequando, mas podemos perceber que ainda existem alguns professores que são favoráveis a uma escola tradicional e que não se esforçam por mudarem, visto que tudo mudou ao nosso redor, os nossos alunos a cada dia apresentam novos comportamentos, novas formas de aprendizagens. As escrituras da autora nos revelam plurissignificação poética em cada verso do poema, revelando o contexto histórico mesclando a sua simplicidade em forma de poetar. Destarte, a temática do poema “A escola da mestra Silvina” nos relata uma sociedade que era imposta pelo poder do autoritarismo relembrando as leis de uma educação rígida, que um dia feriu a alma de muitas crianças do seu tempo. 4 Considerações finais As memórias se transformam com o tempo, são modificadas pelas experiências vividas pelo sujeito e pelas suas circunstâncias da vida no momento atual, no presente. (ALMEIDA, 2009) Conclui-se que o Conto de estudante de Machado de Assis e o poema A escola mestre Silvina de Cora Coralina apresentam várias similaridades em relação a escola sendo cada um na sua época. Percebe-se o distanciamento cronológico de ambos, mas de acordo que vamos adentrando as escrituras dos autores constatamos em vários contextos apresentam vários comportamentos dos mestres, por exemplos, sendo detentores do saber e o uso da palmatória sempre que for necessário. Os Rosângela Soares de Almeida Ribeiro; Maria Zeneide Carneiro Magalhães de Almeida | 213 alunos sentados nos bancos e de um ensino simultâneos e as aulas funcionavam de período integral e separava as meninas dos meninos. Nota-se no Conto de estudante do Machado de Assis e no Poema A escola da mestra Silvina de Cora Coralina, várias similaridades presentes nas escrituras de ambos a presença das categorias obediência e poder que podemos observar em ambos os textos do início ao final. É importante salientar, que segundo Cambi (1999) “a contemporaneidade é uma época da educação social.” Conforme o autor a educação vem aos poucos mudando conforme pudemos observar no poema a escola da mestra Silvina e no Conto de estudante de Machado de Assis a sua performance educacional, quanto na postura de professor e aluno mudou-se radicalmente. Dessa maneira, o Conto e o poema analisado faz-nos refletir sobre uma educação retrógada onde os alunos não podiam argumentar, tendo como o mestre um autoritário e que não tinha e nem apresentava gesto de carinho para com os discentes, não dava abertura de diálogo para com os seus alunos. Por fim, a análise dos dois textos de Machado e Cora, faz-nos viajar ao passado, refletir o que avançou no sistema educacional e o que está por vir numa educação que pode melhorar a cada dia em seus variados contextos, graças ao passado, porque podemos indagar, repensar, expor o nosso ponto de vista e também fazer uma autorreflexão sobre o meu papel na condição de professora numa sociedade que segundo Cambi (1999), “a educação não é um destino, mas uma construção social, o que renova o sentido da ação quotidiana de cada educador.” Referências ALMEIDA, Maria Zeneide Carneiro Magalhães de. Educação e memória: velhos mestres de Minas Gerais (1924-1944). Tese de Doutorado em História pelo Programa de 214 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II Pós-Graduação em História da UNB. Orientadora: Doutora Cléria Botelho da Costa. Brasília – DF, 2009. 311 f. ASSIS, Machado de. Obra Completa. Rio de Janeiro : Nova Aguilar 1994. v. II. CAMBI, Franco. História da Pedagogia. São Paulo: Editora UNESP, 1999 CORALINA, Cora. Poema dos becos de Goiás e estórias mais. 23ª ed. São Paulo: Global, 2014. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 42. ed. Petrópolis: Vozes, 2014. GLEDSON, John. Por um novo Machado de Assis: Ensaios. São Paulo. Companhia das letras, 2006. PERES, Eliane Teresinha; BORGES, Francieli. Relações entre história e literatura: a obra de Cora Coralina e as questões do ensino e dos processos de escolarização no final do século XIX e início do século XX. Rev. Bras. Hist. Educ., Maringá-PR, v. 15, n. 2 (38), p. 23-53, maio/ago, 2015. Disponível em: http://periodicos.uem.br/ ojs/index.php/rbhe/article/view/38923/pdf_66. Acesso em: 10jan. 2018. Capítulo 12 Os processos de aprendizagem de mestres pifaneiros: educação também é um patrimônio imaterial Camila Betina Röpke 1 Ednardo Monteiro Gonzaga do Monti 2 1 Introdução No início da civilização humana, todos os mitos, crenças, valores, culturas e conhecimentos eram transmitidos às novas gerações por meio da oralidade (DÍAZ, 2010). Nesse contexto, a memória era indispensável nos processos de aprendizagem, e os membros mais antigos das comunidades eram as grandes fontes de sabedoria (VANSINA, 2010). Contudo, com o tempo, diferentes nações substituíram os relatos orais pela escrita (DÍAZ, 2010), e muitos dos conhecimentos dos anciões já foram ou estão se perdendo (BÂ, 2010; DÍAZ, 2010; VANSINA, 2010). Em música, esse deslocamento de processos educativos amparados na oralidade para a escrita também ocorreu. A grafia musical está bastante presente no ensino formal, ligado às instituições de ensino que atuam com essa arte e que atendem a uma parcela da população. Ainda hoje, um expressivo número de músicos, profissionais e amadores, aprende, desenvolve-se e ensina música amparado pela pelas habilidades aurais – tirando “de ouvido” –, pela fala e pela visualização das performances de um modelo (CORRÊA, 2008; GREEN, 2002; MENEGATTI, 2012; PEDRASSE, 2002; SILVA, 2010; VELHA, 2008). 1 Doutoranda em Educação pela UFPI, professora do curso de licenciatura em música da UFPI. camilaropke@ufpi.edu.br. 2 Doutor em Educação pela UERJ, professor no Programa de Pós-Graduação e da graduação em Música da UFPI. ednardo@ufpi.edu.br. mailto:camilaropke@ufpi.edu.br mailto:ednardo@ufpi.edu.br 216 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II As práticas educativas musicais estão ligadas a alguns estilos do fazer musical. A música de origem erudita europeia tem seu sistema de ensino mais formal, amparado pela escrita e pela leitura de partituras (FONTERRADA, 2008; GREEN, 2002). Já as manifestações populares adquirem, em sua maioria, características informais, baseadas principalmente nas habilidades aurais (GREEN, 2002). A aprendizagem do pífano, arte tradicional do Nordeste do Brasil, enquadra-se nesta categoria de música popular; seus processos de aprendizagem ocorrem com a transmissão do saber de um mestre para aqueles membros mais jovens de suas comunidades e que têm interesse em aprender este ofício. Essas transmissões de conhecimento perpetuado ao longo das gerações consistem em um patrimônio, um bem não palpável, construído pelas ações educativas daqueles envolvidos com a arte do pífano (IPHAN, 2017). Tendo em vista sua característica popular e informal, este patrimônio educativo geralmente não deixa registros escritos; não temos partituras, métodos ou livros didáticos produzidos pelos envolvidos nestas atividades. Também não ocorre em locais pré-estabelecidos, como escolas, centros educativos, centros sociais, salas de ensaio, entre outros. Os músicos aprendem e praticam em espaços diversos – em residências, em praças, nas lavouras e em demais locais onde estes por ventura se encontram. Por vezes, estes processos educativos ocorrem em festejos tradicionais de uma localidade, como missas, novenas, batizados, casamentos, procissões e demais eventos cívicos (MENEGATTI, 2012; PEDRASSE, 2002; SILVA, 2010; VELHA, 2008). Tendo em vista seu caráter não tangível, um dos recursos empregados para conhecer as vivências, os conhecimentos adquiridos e os caminhos trilhados por estes músicos na busca de uma formação musical são suas narrativas. Neste contexto, os estudos já produzidos sobre os Camila Betina Röpke; Ednardo Monteiro Gonzaga do Monti | 217 mestres pifaneiros e que se utilizaram dos seus relatos orais nos fornecem importantes informações sobre a infância, suas vidas, suas músicas e seus processos de aprendizagem. Desta forma, buscamos aqui compreender as práticas educativas de mestres pifaneiros e suas relações e contribuições para o desenvolvimento de um patrimônio educativo imaterial. Para atingirmos nossos objetivos, optamos por analisar estudos já realizados focados na arte do pífano e em seus mestres. Os trabalhos selecionados para compor a análise deste artigo foram desenvolvidos em âmbito de pós-graduação. Para localizá-los, realizamos buscas no catálogo de teses e dissertações da CAPES ao longo do primeiro semestre de 2020. Procuramos pelos termos “pífano” e “pif”, bem como por aqueles que, seguindo Guerra-Peixe (1970), são empregados para se referirem às bandas de pífano, que são: “zabumba”, “cabeçal”, “esquenta- mulé” e “esquenta-mulher”. Esse processo resultou na localização de quatro estudos completos, todos abordando os processos de aprendizagem musical iniciados ainda na infância (MENEGATTI, 2012; PEDRASSE, 2002; SILVA, 2010; VELHA, 2008). Os trabalhos selecionados são oriundos de três linhas de pesquisa diferentes: Musicologia (MENEGATTI, 2012; PEDRASSE, 2002), História Social (VELHA, 2008) e Educação Musical (SILVA, 2010); e foram desenvolvidos nas regiões Sudeste e Centro-Oeste do país. Os sujeitos das pesquisas são mestres pifaneiros nordestinos e que se desenvolveram musicalmente nesta região do Brasil (MENEGATTI, 2012; PEDRASSE, 2002; SILVA, 2010; VELHA, 2008). A análise destes estudos se faz importante, pois possibilita que tenhamos uma visão mais ampliada acerca do movimento pifaneiro e das práticas educativas de seus mestres. A partir deste levantamento, podemos identificar pontos convergentes nas formações dos músicos entrevistados. Esperamos, desta forma, contribuir na ampliação da compreensão e da 218 | Educação, História, Memória e Cultura em Debate - Volume II valorização deste patrimônio educativo imaterial, que são o ofício e os modos de aprendizado destes artistas. 2 As práticas educativas e o patrimônio imaterial Se pensarmos em como se dá um processo educativo, possivelmente a imagem de uma escola virá a nossas mentes. Isso porque estas são responsáveis por muitos dos conteúdos que adquirimos ao longo da vida. Conforme aponta Libâneo (2010), a escola é um elemento relevante para atender às demandas educativas de nossa sociedade global. Para o autor, os objetivos educativos e a sistematização dos conteúdos das escolas são fundamentais para o desenvolvimento da consciência crítica e das habilidades intelectuais e sociais necessárias em nossos tempos. Contudo, ressalta que, embora a escola seja importante, não é a única que fomenta a educação. A maior parte dos conhecimentos e habilidades adquiridas por uma pessoa se dá fora dos muros da escola, em atividades cotidianas que ocorrem em espaços variados, tais como no trabalho, em casa, no parque, no museu, na sala de concerto, e, muitas vezes, sem a presença de um profissional da área (LIBÂNEO, 2010). Deste modo, fora dos muros da escola, existe um horizonte de patrimônios educativos imateriais. No Brasil, temos bons exemplos, tais como: as escolas de samba, os Centros de Tradições Gaúchas (CTGs), os grupos folclóricos, a literatura de cordel, as festas de boi, as novenas, as procissões, entre tantos outros. Estas culturas são aprendidas, majoritariamente, fora dos muros das instituições de ensino. Ainda conforme Brandão (1981), alguns saberes, geralmente dos membros das camadas mais baixas do estrato social, são negligenciados pela educação erudita formal. As comunidades, entretanto, encontraram meios próprios de reproduzirem esses seus conhecimentos ao longo das gerações. O autor afirma que esse sistema de ensino de origem popular Camila Betina Röpke; Ednardo Monteiro Gonzaga do Monti | 219 “[...] é evidente em muitas situações: na Capoeira da Bahia, nas confrarias populares de Foliões de Santos Reis, numa quadrilha de pivetes ou numa equipe rústica de construtores” (BRANDÃO, 1981, p. 105) – e, acrescentamos