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FACULDADE DO NORTE NOVO DE APUCARANA CESA – CENTRO DE ESTUDO SUPERIOR DE APUCARANA Credenciada pela Port. Ministerial Nº 277/2001, publicada no D.O.U. em 19/10/2001 PROF ª IVANA NOBRE BERTOLAZO MATERIAL DA DISCIPLINA DE DIREITO ADMINISTRATIVO I (FUNDAMENTOS DE DIREITO PÚBLICO) Material escrito para fins didáticos e com objetivo de ser utilizado em sala de aula. Reprodução permitida desde que se cite a fonte do material ou do texto inserido nele. Não substitui o uso da bibliografia básica indicada para o curso. Apucarana 2012 COMO CITAR ESSA APOSTILA: BERTOLAZO, Ivana Nobre. Material da Disciplina de Direito Administrativo I (Fundamento de Direito Público). 2012. Apostila feita para os alunos do 7º período da graduação em Direito na Faculdade do Norte Novo de Apucarana (FACNOPAR) Apucarana – PR. SUMÁRIO FUNDAMENTOS DE DIREITO PÚBLICO ......................................................................................... 04 1 Regulação Jurídica do Poder Político ............................................................................................. 04 1.1 Poder ...................................................................................................................................... 04 1.2 Poder Político ............................................................................................................................... 05 1.3 Estado-Poder e Estado-Sociedade .............................................................................................. 06 1.4 Direito Público e Direito Privado ................................................................................................... 06 1.5 Plano ...................................................................................................................................... 06 2 Evolução Histórica do Poder Político .............................................................................................. 08 2.1 Pré-História ................................................................................................................................. 08 2.2 Antigüidade ................................................................................................................................. 08 2.3 Idade Média.................................................................................................................................. 09 2.4 Absolutismo .................................................................................................................................. 10 2.5 Idade Contemporânea .................................................................................................................. 10 3. O Estado Social e Democrático de Direito ..................................................................................... 11 3.1 O Estado de Direito ...................................................................................................................... 11 3.1.1 Supremacia da Constituição ...................................................................................................... 12 3.1.2 Separação dos Poderes ............................................................................................................ 12 3.1.3 Superioridade da Lei ................................................................................................................. 14 3.1.4 Garantia dos Direitos Individuais ............................................................................................... 14 3.1.5 Estado Social e Democrático De Direito................................................................................... 17 4.O Sujeito Estado ............................................................................................................................. 18 4.1 O Estado é Uma Pessoa Jurídica ................................................................................................ 18 4.2 Personalidade Jurídico-Constitucional do Estado ....................................................................... 21 4.3. Personalidade de Direito Público ................................................................................................ 22 4.4. Relacionamento Externo do Estado ............................................................................................ 23 4.5. Descentralização Política e Administrativa do Estado ................................................................. 23 5. Atividades do Estado ...................................................................................................................... 24 5.2. Atividades dos Particulares ......................................................................................................... 25 5.3. Exploração pelo Estado de Atividade dos Particulares ............................................................... 25 5.4. Atividades Estatais ...................................................................................................................... 26 5.4.1 Atividades Instrumentais ........................................................................................................... 26 5.4.2 Atividades-Fím .......................................................................................................................... 26 5.4.2.1 Relacionamento Internacional ................................................................................................ 26 5.4.2.2 Atividades de Controle Social ................................................................................................. 26 5.4.2.3 Atividades de Gestão Administrativa ...................................................................................... 27 5.5 Atos e Fatos Jurídicos .................................................................................................................. 28 5.5.1 Fato Jurídico .............................................................................................................................. 28 5.5.2 Ato Jurídico ............................................................................................................................... 28 6. Uma Introdução ao Direito Processual ........................................................................................... 29 6.1. O Fenômeno Processual no Direito Público ................................................................................ 29 6.2. Noção de Processo ..................................................................................................................... 31 6.3. Relação Jurídico-Processual ....................................................................................................... 32 6.4. Esquema Geral dos Processos Estatais ..................................................................................... 33 6.4.1 Processo Legislativo ................................................................................................................. 33 6.4.2 Processo Judicial ...................................................................................................................... 33 6.4.3 Procedimento Administrativo ..................................................................................................... 34 7. O Que é Direito Administrativo? ..................................................................................................... 34 8. Equilíbrio entre Autoridade e Liberdade ......................................................................................... 36 8.1. A Sociedade como Titular e Destinatária do Poder ..................................................................... 36 8.2. Competência............................................................................................................................... 37 8.3 Direitos dos Particulares............................................................................................................... 39 9. Direito e Ciência Jurídica................................................................................................................ 40 9.1 Normas Jurídicas. Os Mundos do Ser e do Dever-Ser ................................................................ 41 9.2 Sistema Jurídico ........................................................................................................................... 42 9.3 Direito e Ciência Jurídica.............................................................................................................. 43 9.4 A Atividade do Profissional do Direito .......................................................................................... 44 9.5 Divisão da Ciência Jurídica em Ramos ........................................................................................ 44 10. A Dicotomia Direito Público X Direito Privado .............................................................................. 46 10.1. A Dicotomia Público X Privado .................................................................................................. 46 10.2. A Dicotomia Público X Privado No Direito ................................................................................. 46 10.3. Distinção entre Direito Público e Direito Privado com Base no Regime Jurídico ...................... 47 11. Os Princípios no Direito ................................................................................................................ 48 11.1. Princípios e Ciência do Direito .................................................................................................. 48 11.2. Os Princípios Jurídicos são Parte do Ordenamento .................................................................. 48 11.3. Importância dos Princípios no Direito Publico ........................................................................... 49 11.4. Utilidade dos Princípios na Aplicação do Direito ....................................................................... 49 11.5. Princípios Explícitos e Implícitos ............................................................................................... 50 12. Princípios Gerais do Direito Público ............................................................................................. 51 12.1 Autoridade Pública .................................................................................................................... 52 12.2 Submissão do Estado à Ordem Jurídica .................................................................................... 53 12.3 Função ...................................................................................................................................... 55 12.4 Igualdade dos Particulares Perante o Estado ............................................................................ 56 12.5 Devido Processo ........................................................................................................................ 59 12.6 Publicidade ................................................................................................................................. 60 12.7 Responsabilidade Objetiva ......................................................................................................... 61 12.8 Igualdade das Pessoas Políticas ............................................................................................... 63 REFERÊNCIAS ...................................................................................................................................... FUNDAMENTOS DE DIREITO PÚBLICO 1.Regulação Jurídica do Poder Político 1.1 Poder Os seres humanos não vivem sós. Buscam sempre, por diversos modos, estabelecer relações as mais variadas com seus semelhantes: comunicam-se, trocam bens, unem esforços em atividades comuns, compartilham os espaços. A vida humana é, essencialmente, uma experiência compartilhada. A vida impõe, portanto, a formação de grupos sociais. Cada indivíduo participa de inúmeros grupos, no interior dos quais mantém relações. Inicialmente, todos integram o grupo de habitantes da Terra, vinculados por interesses em parte semelhantes — a preservação da paz e da natureza, o respeito mútuo - e em parte distintos - a disputa por territórios, o pagamento de dívidas internacionais. Depois, esse grande grupo vai se dividindo, quase ao infinito, em múltiplos outros: o dos habitantes de um mesmo continente, o dos nacionais de um país, o dos moradores de uma cidade, o dos empregados de uma empresa, o dos membros de um partido político, o dos integrantes de uma família. A convivência, seja dos indivíduos no interior desses grupos, seja de cada grupo com os demais, depende de um fator essencial: da existência de regras estabelecendo como devem ser as relações entre todos. Em uma palavra: a convivência depende da organização. Os integrantes de cada grupo social - uma família, uma empresa, um clube, uma cidade, um país, o mundo - vivem sob regras comuns. O grupo social pode ser definido, portanto, como a reunião de indivíduos sob determinadas regras. Para existirem tais regras, alguma forca há de produzi-las; para permanecerem, alguma força deve implicá-las, com a aceitação dos membros do grupo. A essa força, que faz regras o exige o seu respeito, chama-se poder. Norberto Bobbio, mencionando a distinção de três correntes explicando o significado do poder, indica que a mais aceita "estabelece que por 'poder' se deve entender uma relação entre dois sujeitos, dos quais o primeiro obtém do segundo um comportamento que, em caso contrário, não ocorreria. A mais conhecida e também a mais sintética das definições relacionais é de Robert Dahl: 'A influência (conceito mais amplo, no qual se insere o de poder) é uma relação entre atores, na qual um ator induz outros atores a agirem de um modo que, em caso contrário, não agiriam' (1963, trad. it., p 68). Enquanto relação entre dois sujeitos, o poder assim definido está estreitamente ligado ao conceito de liberdade; os dois conceitos podem então ser definidos um mediante a negação do outro: c poder de A implica a não-liberdade de B. A liberdade de A implico o não-poder de B" (Estado, Governo, Sociedade, p. 78). Em todo grupo, um, ou alguns, dos membros exerce sobre os outros o poder: na família, os pais sobre os filhos; na empresa, c diretor sobre os gerentes, os gerentes sobre os chefes de seção, os chefes sobre os demais. 1.2. Poder político Se é certo que em todo grupo organizado há um poder, existem, no entanto, diferentes espécies de poderes e, em conseqüência, diferentes espécies de grupos sociais. Dentro da empresa, o poder do patrão sobre o empregado resulta da dependência econômica: o empregado insubmisso (que não aceita o poder do patrão) perde o emprego. No clube, o poder da diretoria se expressa, entre outros meios, pela possibilidade de punir os associados. Ao pensarmos no Brasil como um grupo de pessoas (brasileiras e estrangeiras) organizadas sob determinadas regras, que permitem a convivência de todas, verificamos ser ele também um grupo social, pertencente à espécie a que chamamos de Estado. Então, no Estado brasileiro há um poder, que sujeita todos os habitantes do país. Damos a esse poder a designação de poder político. Qual a peculiaridade dele, a determinar sua distinção em relação aos demais tipos de poderes existentes? A primeira característica do poder político é a possibilidade do uso da força física contra aqueles que não se comportem de acordo com as regras vigentes: quem não obedeceà proibição de matar seu semelhante é perseguido e preso; quem não paga os impostos é privado de seus bens. É verdade ser uma exceção o uso, pelo Estado, da força física contra os membros do país. Mas essa possibilidade existe, como último recurso contra os insubmissos, e é em virtude dela que as pessoas, normalmente, aceitam, sem resistir, as imposições do Estado. Isso não é tudo. O que há de significativo no Estado é o fato de ele reservar para si, com exclusividade, o uso da força. O Estado nega, a quem por ele não autorizado, o direito de usar a força contra os outros indivíduos. Assim, a segunda característica fundamental do poder estatal é a de não reconhecer a ninguém poder semelhante ao seu. Então, a peculiaridade do poder do Estado (poder político) é, de um lado, o basear-se no uso da força física e, de outro, o reservar-se, com exclusividade, o uso dela. "Uma vez reduzido o conceito de Estado ao de política e o conceito de política ao de poder, o problema a ser resolvido toma-se o de diferenciar o poder político de todas as outras formas que pode assumir a relação de poder. (...) O poder político vai-se assim identificando com o exercício da força e passa a ser definido como aquele poder que, para obter os efeitos desejados (retomando a definirão hobbesiana) tem o direito de se servir da força, embora em última instância, como extrema ratio. (...) Se o uso da força é a condirão necessária do poder político, apenas o uso exclusivo deste poder lhe é também a condição suficiente" (Norberto Bobbio. Estado, Governo. Sociedade, pp. 78-80 e 81). Decorrem disso duas conseqüências muito importantes. A primeira: o poder do Estado se impõe aos demais poderes existentes em seu interior, razão pela qual lhes é superior. Os poderes do patrão, do pai, do sindicato, da diretoria do clube, são subordinados ao poder do Estado. A segunda: o Estado não reconhece poder externo superior ao seu. O Estado brasileiro não admite que o alemão exerça qualquer poder sobre as pessoas residentes no Brasil. A isso denominamos soberania. Resumindo, o grupo organizado de pessoas chamado Estado: a) mantém-se com o uso da força; b) reserva para si seu uso exclusivo; c) não reconhece poder interno superior ao seu; d) não reconhece poder externo superior ao seu (é soberano). 1. 3. Estado-poder e Estado-sociedade Mas, no interior do Estado, como em todo grupo, há alguém que exerce o poder e quem se submete a ele. Quem é, dentro do Estado, o detentor do poder e quem é seu destinatário? Chamaremos o detentor do poder político de Estado-poder e seu destinatário de Estado-sociedade. O Estado-poder é integrado por aqueles que definem as regras de convivência na sociedade e as aplicam, com o uso da força, se necessário: o presidente da república, os ministros, os deputados e senadores, os governadores, os deputados estaduais, os prefeitos, os vereadores, os juizes, os servidores públicos em geral. O Estado-sociedade é formado por todos os habitantes do país. O Estado-poder cria e faz cumprir as regras regendo as relações das pessoas dentro do Estado-sociedade: as de relacionamento entre pais e filhos, patrão e empregado, credor e devedor, entre vizinhos. Quem não as cumpre espontaneamente, sujeita- se ao uso de força, pelo Estado-poder, para a obtenção da obediência. A essas regras, criadas pelo Estado-poder e impostas com o uso da força, chamamos de normas jurídicas. Normas são regras de conduta. A regra segundo a qual as pessoas não devem comer à mesa com as mãos também é uma norma, pois também pretende impor condutas. Porém, não é norma jurídica. A razão é simples: sua observância não pode ser imposta com c uso da força. Se não atentar a ela, não mais serei convidado a jantar com os amigos, mas não serei por eles fisicamente constrangido a usar os talheres. A regra pela qual os pais devem alimentar os filhos é norma jurídica: se descumprida, pode levar à prisão do pai, imposta pelo Estado-poder. O Estado-poder não é um ser humano, não é pessoa no sentido comum da palavra. Vimos que é integrado por indivíduos. No entanto, quando realizam as atividades do Estado-poder, seus integrantes não o fazem como se cuidassem de suas próprias vidas, mas sim como se, naquele momento, fossem outras pessoas. Quando o servidor público varre a ma, quem está limpando a cidade é o Estado-poder. Quando o Presidente da República expulsa estrangeiro do país, quem pratica o ato é o Estado-poder. Quando o juiz condena um criminoso, a sentença é do Estado-poder. Assim, pode-se dizer que esses indivíduos agem no lugar de outra pessoa (o Estado-poder), que só existe em nossa imaginação. Essa pessoa imaginária é uma pessoa jurídica. O Estado-poder é uma pessoa jurídica. Para maior facilidade, passemos a chamá-lo simplesmente de Estado. O Estado, como pessoa que é, relaciona-se com os membros da sociedade. O Estado se relaciona com o criminoso, quando o condena à prisão; com a empresa, quando a contrata para fazer a limpeza de prédio público; com o servidor público, quando o demite do trabalho; com todos os indivíduos, quando edita normas jurídicas regendo suas vidas. Existirão regras estabelecendo os termos da convivência da pessoa Estado com os membros da sociedade? (Quando alguém pode ser condenado à prisão? Quais os direitos e deveres da empresa que contrata com o Estado? E possível demitir servidor público? Como deve ser feita a norma que vai reger a vida dos indivíduos?) O que regula tudo isso são normas jurídicas. Existem, portanto, normas jurídicas para reger a relação da pessoa Estado com as demais pessoas. Interessante perceber que, sendo normas jurídicas, essas regras devem ser obedecidas, seja pêlos indivíduos, seja pelo Estado. Daí a dúvida: se o Estado não cumprir as normas (condenando alguém indevidamente à prisão, deixando de pagar a empresa pêlos serviços realizados, demitindo servidor que não podia ser dispensado, editando normas sem observar os requisitos necessários), quem vai obrigá-lo a se submeter, usando até a força, se necessário? Veremos mais tarde que é o próprio Estado quem fará isto. Parece improvável, à primeira vista, que o Estado constranja a si próprio, mas existem mecanismos adequados para garantir o funcionamento do sistema. 1. 4. Direito público e direito privado Vimos até aqui que as relações dos membros da sociedade entre si (o marido com sua mulher, os comerciantes com os consumidores, os empregados com seus patrões, o locador com o inquilino) são regidas por normas jurídicas. E, também, as relações ente o Estado e os membros da sociedade (indivíduos em geral, empresas, servidores públicos) são regidas por normas jurídicas. O conjunto de todas essas normas forma o Direito. Para facilitar seu estudo, vamos dividi-lo em dois grandes grupos: o direito público e o direito privado. Veremos mais tarde qual a utilidade e sentido exato dessa distinção. Por ora, podemos trabalhar com estas noções aproximativas (um tanto imprecisas, ainda): a) O direito privado é formado pelo conjunto de normas regendo as relações dos indivíduos entre si, dentro do Estado-sociedade (relações de família, relações dos comerciantes entre si e entre comerciantes e seus clientes, relações entre locador e inquilino, e outras mais); b) O direito público é formado pelo conjunto de normas que regulam as relações entre Estado e indivíduos (relações Estado-ser-vidor, Estado-empresa etc.). Podemos, agora, ampliar um pouco a idéia de direito público, embora sem pretender um conceito científico. O Estado, sendo pessoa jurídica, é integrado por muitos indivíduos, que realizam (cada qual como se fosse o próprio Estado) as várias atividades estatais: produzir leis (uma das espécies de normas jurídicas), julgar os acusados de crimes, prestar os serviços públicos (como os de transporte coletivo eiluminação urbana), e assim por diante. Chamamos esses indivíduos de agentes públicos (o governador de Roraima, o juiz de Piraçununga, o deputado federal do Paraná, o fiscal de rendas, o procurador da república). É claro que os agentes públicos não escolhem, por sua vontade, a atividade estatal que vão desenvolver. Cada qual tem sua competência, sua atribuição. Vários agentes integram um órgão (os procuradores da republica integram a Procuradoria Geral da República). A divisão de competências entre os vários agentes ( O que faz um Governador? O que faz um fiscal?) e entre os vários órgãos (Qual a atribuição do Ministério da Fazenda? E da Secretaria da Segurança Pública?) é estabelecida em normas jurídicas. Normas de direito público, evidente, por tratarem da organização da pessoa jurídica Estado. Ainda mais. O Estado brasileiro trava relações com outros Estados (o argentino, o indiano, o italiano), celebrando tratados, trocando embaixadores, fazendo intercâmbio científico. Essas relações são regidas por normas de direito público. Agregando-se essas referências, podemos dizer que o Direito Público é o ramo do Direito composto de normas jurídicas tratando: a) das relações do Estado com os indivíduos: b) da organização do próprio Estado, através da divisão de competências entre os vários agentes e órgãos; c) das relações entre Estados. Perceba como esses conceitos simples são apresentados por Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, um dos mais importantes juristas que se dedicaram, no Brasil, ao estudo do direito público: "As normas jurídicas que organizam o Estado-poder e regulam "i sua ação, seja em relação com outros Estados, seja em relação com a própria entidade, através dos seus órgãos, ou com outras pescas, que receberam o encargo de fazer as suas vezes, ou mesmo com terceiros, particulares, no Estado-sociedade, a fim de realizar o objetivo deste, são de valor social diferente das normas jurídicas prescritas para regerem as relações dos particulares, entre si, ou das comunidades por eles formadas. "Isto se explica porque ordenam institutos jurídicos para o Estado-poder alcançar o bem comum dos indivíduos coletivamente considerados, como elementos do Estado-sociedade, como participantes de um todo político. Não se confundem com os oferecidos aos particulares para alcançarem imediatamente o seu bem individual, de cada qual isoladamente considerado, nas suas relações recíprocas. "Fundamentam, destarte, a distinção do direito em dois ramos distintos: público e privado" (Princípios Gerais de Direito Administrativo, vol. I, p. 13). Voltando, agora, à idéia de poder político, é fácil constatar que o direito público compõe-se das normas jurídicas reguladora do seu exercício. Definimos o poder político como aquele que, para obter os efeitos desejados (para obrigar os indivíduos a respeitarei suas determinações), tem o direito exclusivo de se servir da força s que não reconhece poder superior ao seu, interno ou externo. O direito público disciplina as relações entre o Estado (que detém o podeir político) e os indivíduos (que sofrem o poder político), organiza a distribuição do poder político dentro da pessoa jurídica Estado (entre os diversos agentes e órgãos) e regula as relações entre os vários Estados (isto é, entre os detentores de poder político). Nosso curso, de fundamentos do direito público, estuda a regulação jurídica do poder político, isto é, as normas jurídicas que disciplinam sua organização (dentro da pessoa jurídica Estado) e seu exercício, nas relações com quem sofre o poder (os indivíduos e com os outros Estados. Veja que não estudaremos o próprio poder político, mas as normas jurídicas que o regulam. Portanto, não veremos a sociologia de poder, a história do poder, a psicologia do poder, mas apenas o direito do poder. Em suma, cuidaremos da ciência do direito público (estudo das normas que regulam o poder político). Só se conhece o direito público depois de saber o modo como as normas regulam o poder político (É ele limitado? Como é dividido seu exercício? O indivíduo tem instrumentos jurídicos para se opor ao poder político? Um Estado obedece às leis do outro?). Até este momento, sabemos apenas qual será o objeto do estudo. Por isto, não podemos ainda definir o direito público: antes, precisamos descobrir as características dele, em seus aspectos fundamentais. Também não há como indicar ainda o que o distingue, em essência, do direito privado. Qual a distinção entre um macaco e um ganso? Certamente não é o fato de terem nomes diferentes; antes, ao contrário: têm nomes distintos porque têm características diversas. Em outras palavras, queremos dizer que a reunião, em dois conjuntos distintos (direito público/direito privado), de certas normas jurídicas resulta de havermos constatado que as normas do conjunto que chamamos direito público regulam as relações delas objeto (as relações do poder político) de modo radicalmente diverso do que as normas do conjunto direito privado disciplinam as relações de que se ocupam (outras relações que não as envolvidas com o poder político). Sendo certo que o Estado exerce o poder político, o estudo da regulação jurídica deste deve esmiuçar aquele, tanto em seu aspecto estático (enquanto ser, enquanto instituição) quanto em seu aspecto dinâmico (enquanto ação). Partindo de rápida visão sobre o progresso, através dos tempos, da regulação jurídica do poder político - que servirá ao menos para vislumbrar as razões que encaminharam o Estado moderno a ser como é hoje em dia -, fixaremos o conceito de Estado Social e Democrático de Direito. Isso porque não nos interessa verificar o modo de ser do direito público de qualquer Estado, mas sim o do tipo de Estado no qual o brasileiro atual se classifica. Com esse pano de fundo, iniciaremos um percurso que nos leve a surpreender o poder político em seus aspectos quem?, o quê?, como? e pá rã quem?. A análise revelará que o Estado é pessoa jurídica (dando significado à afirmação nesse sentido lançada um pouco acima), mostrando como se estrutura e como se relacionam seus agentes e órgãos. O primeiro ponto, então, consiste no exame do Estado enquanto sujeito de direito. O segundo tópico destina-se a apontar o que faz o Estado, quais são suas atribuições. Relevante, aí, será não apenas conhecer as atividades em si, como, sobretudo, saber de sua repercussão jurídica na vida social. Resultará, igualmente, uma nítida distinção entre o campo público de atividades (o setor das atividades reservadas ao Estado) e o campo privado de atividades (o setor reservado aos indivíduos). Prosseguindo, teremos noção de como se exerce o poder, de várias etapas que demanda a produção de um ato estatal e da maneira como os indivíduos podem participar. A seguir, será hora de verificar a posição em que o Estado s apresenta em face do indivíduo e este em face daquele. Em outras palavras, de saber quais são os termos das relações jurídicas entre eles. Descobriremos, então, que o direito público não é - como poderia parecer, inicialmente, de um ramo jurídico relativo à disciplina do poder político — um direito autoritário, mas certamente oposto: um conjunto de normas cuja finalidade primordial é cercear o poder e, como conseqüência, proteger os indivíduos. Delineado o painel inicial, poderemos aprofundar e tornar mais precisos nossos conhecimentos, o que faremos estudando em seqüência o direito e a ciência jurídica, a grande dicotomia direito público x direito privado, a função dos princípios no direito e, finalmente, os princípios gerais do direito público. 2. EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA REGULAÇÃO DO PODER POLÍTICO Um estudo jurídico do direito público há de ser feito a partir das normas vigentes em dado país, num certo momento. Os problemas jurídicos não se resolvem, de fato, senão com o exame dodireito positivo. As cogitações históricas, políticas e ideológicas não são, enquanto tais, atribuição específica dos juristas. Contudo, o Direito é fruto de produção cultural, longamente sedimentada, sendo por vezes impossível compreendê-lo sem situá-lo dentro da história. Em outras palavras: o Direito consagra certos modelos cujo sentido advém do contexto histórico, ideológico ou político em que concebidos. Quando se fala, hoje, em direito público, faz-se referência a um plexo de idéias consagradas modernamente, sobretudo após as Revoluções Americana e Francesa, em torno das relações entre indivíduo e Estado, mas que nem sempre foram aceitas e aplicadas. Por isso, como introdução à análise jurídica do direito público e, em certa medida, como condição dela, faz-se necessário um exame pré-jurídico, que revele seu significado cultural. 2.1 Pré-história Nos primórdios - pensemos no homem das cavernas - as relações humanas também adotavam estruturas de poder. Evidente que o caçador, ao usar da força para impedir o outro de se apoderar do animal abatido, estabelece com ele relação de poder. E difícil, porém, identificar poder político em um grupo pré histórico nômade. Por razão muito simples: o emprego da força não era reservado a ninguém. Ao contrário, todos disputavam suas posições no grupo através da força. Eram instáveis, em conseqüência as posições no grupo, dependendo do resultado das disputas físicas, que se sucediam. Na medida em que o homem começa a se fixar na terra e os grupos vão se organizando em terno se certas regras mais ou menos estáveis - sobretudo as que permitem a determinação de quem manda e quem obedece -, começa a surgir poder político, ainda que embrionário. Pensemos na comunidade indígena - o exemplo atual de sociedade primitiva - e na existência de um cacique e um pajé: este; exercem poder político dentro do grupo. Há regulação jurídica do exercício desse poder? Em verdade sim, porém de modo muito limitado. Realmente, observam-se regras de sucessão na posição de chefe (passando de pai para filho por exemplo), de divisão de atribuições (indicando as do cacique as do pajé), de solução de conflitos. As regras sobre o exercício d( poder são, entretanto, em pequeno número, mesmo porque são pouco extensas as atribuições dos chefes. Não há Estado em sociedade como esta, dada a extrema simplicidade da estrutura de poder e sua não-institucionalização. 2.2 Antigüidade A cidade é a unidade política, não só dos gregos, como de toda antigüidade clássica. O grego é um cidadão, integrante da cidade, de cujos órgãos participa. A lei é elemento essencial da identificação do grego com a cidade: a coesão desta vem daquela. O grego sente orgulho de se submetei" a uma ordem (à lei), não à vontade de um homem. Entretanto, a concepção grega de lei - que vigorará por longos séculos -difere substancialmente da atual. A lei para os antigos era sagrada e imutável, sendo atribuída a um poder divino, e, desse modo, integrando a religião. Isso explica por que não se podiam identificai normas regulando o exercício do poder de editar leis (isto é, de editar as normas disciplinando as relações dos indivíduos entre si, que hoje chamamos como normas de direito privado): ou não se reconhecia aos homens tal poder - embora, de fato, sempre tenha sido usado pêlos poderosos -, ou se o reconhecia a título de exceção, ou era explicado pelo poder divino dos soberanos. O julgamento dos conflitos envolvendo os indivíduos desde tempos imemoriais foi assumido pelas autoridades públicas, embora sem a exclusão imediata de membros da comunidade em certas decisões. Contudo, isso não levou à identificação da atividade de julgar como regulada por um direito público, diverso do direito privado que se visava aplicar. As normas regendo a atividade de julgar (que hoje incluímos no direito processual, um dos ramos do direito público) eram entendidas como parte do direito civil (ramo do direito privado). Os tribunais só conheciam das demandas entre cidadãos, não se cogitando do exame judicial de questões envolvendo o Poder Público. Vale dizer: não havia como questionar, perante um órgão julgador, o desrespeito pêlos detentores do poder político das normas que regulavam seu exercício. "Mesmo depois de passar a ser missão do Estado, a proteção dos direitos continuou circunscrevendo-se à proteção dos cidadãos entre si. Os tribunais públicos não podiam conhecer nem das pretensões do Estado ou contra o Estado nem das transgressões da ordem sacra ou doméstica. O Estado se encontrava acima dos tribunais. A sanção dos crimes contra o Estado cabia apenas aos magistrados competentes, com a intervenção, quando necessária, dos comícios (iudicium publicum, provocatio ad populum). A solução dos litígios entre o Estado e os particulares com relação aos contratos competia, do mesmo modo que o exercício dos direitos públicos administrativos, aos funcionários que gozavam do necessário poder coercitivo (coercitio), sem fiscalização judicial e sem intervenção de juizes" (Robert Von Mayr, História dei Derecho Romano, v. I, p. 105). A administração dos negócios públicos (recolhimento de impostos, policiamento da ordem na cidade etc.) sempre esteve confiada a certos agentes públicos. Contudo, frequentemente, essa atividade se confundiu com a de editar normas, estando ambas em poder de um soberano. Em rigor, desconhecia a distinção entre as atividades legislativa e executiva, que só poderá ser feita com clareza quando, a partir sobretudo das idéias de Rousseau, afirmar-se ( principio da superioridade das leis. Ademais, não se podia cogitar de regras cogentes (de observância obrigatória) a regular o exerci cio das funções administrativas, eis que não se conhecia a idéia de direito individual. Por isso, é totalmente descabido talar de um direito administrativo da época. Cumpre ressaltar devidamente a inexistência, na antigüidade, dos direitos individuais. É certo que, na Grécia, as idéias de liberdade e de igualdade ocupam espaço fundamental no pensamento político. Porém, sã( inconfundíveis as concepções grega e moderna de liberdade. A liberdade para os helênicos era, essencialmente, a oportunidade de participar dos negócios públicos, de cumprir uma função na cidade de se submeter à lei (liberdade política), e a não sujeição corpora de um cidadão a outro (liberdade civil). Como a cidade, enquanto instituição, era o instrumento da liberdade, esta não seria oponível àquela. Inexistia um direito à liberdade individual contra a autoridade. Fustel de Coulanges, demonstrando que os antigos não conheceram o conceito individualista de liberdade, escreve: "Singular erre é, pois, entre todos os erros humanos, acreditar-se que nas cidade; antigas o homem gozava de liberdade. O homem não tinha, sequer a mais ligeira concepção do que esta fosse. Ele não se julgava ca' paz de direitos, em face da cidade e dos deuses". E, mais adiante "ter direitos políticos, poder votar e nomear magistrados, podei ser arconte, a isto se chamou liberdade; mas o homem, no fundo jamais deixou de ser escravo do Estado. Os antigos, sobretudo os gregos, exageravam muito sobre a importância e os direitos da sociedade e isto, sem dúvida alguma, devido ao caráter sagrado í religioso de que a sociedade se revestiu na origem" (A Cidade Antiga, p. 185). A distinção teórica entre direito público e privado foi formulada pêlos romanos, que desenvolveram intensamente a doutrina privatista. Entretanto, inexistindo uma consciência clara, à época. da diferença entre o poder político e outras espécies de poderes. como acabamos de examinar, seria impossível levar muito longe os estudos em torno da regulação jurídica do poder político (do direito público), que teriam de aguardar muitos séculos até que pudessem adquirir feição. 2.3 . Idade MédiaO advento da Idade Média, com a dispersão da autoridade entre os inúmeros centro de poder (os reis, a Igreja, os senhores feudais, as corporações de oficio, etc.), torna mais complicada a identificação de normas de direito público a regerem as relações entre os poderosos e os indivíduos. Com a autoridade central enfraquecida, as atividades legislativa, judicial e administrativa serão disputadas entre os reis, a Igreja, os senhores, as corporações e explicadas com o recurso de idéias variadas. A aspiração da Igreja em erigir um Império da Cristandade e a conseqüente pretensão de interferir em assuntos temporais estará fundada na religião. Os poderes militares, administrativos, fiscais e jurisdicionais dos senhores feudais serão explicados pela situação patrimonial, pela posse da terra, regulada pelo direito privado. Dalmo Dallari bem analisa a situação do período: "Conjugados os três fatores que acabamos de analisar, o cristianismo, a invasão dos bárbaros e o feudalismo, resulta a caracterização do Estado Medieval, mais como aspiração do que como realidade: um poder superior, exercido pelo Imperador, com uma infinita pluralidade de poderes menores, sem hierarquia definida; uma incontável multiplicidade de ordens jurídicas, compreendendo a ordem imperial, a ordem eclesiástica, o direito das monarquias inferiores, um direito comunal que se desenvolveu extraordinariamente, as ordenações dos feudos e as regras estabelecidas no fim da Idade Média pelas corporações de ofícios. Esse quadro, como é fácil de compreender, era causa e conseqüência de uma permanente instabilidade política, econômica e social, gerando uma intensa necessidade de ordem e de autoridade, que seria o germe da criação do Estado Moderno" (Elementos de Teoria Geral do Estado, p. 62). 2.4 Absolutismo A Idade Moderna, com a centralização do poder em torno de um soberano, permitirá enfim a identificação mais clara das regras a regerem as relações deste com os seus súditos. O período se caracteriza pela formação do Estado, de um poder soberano dentro de certo território, sujeitando todos os demais A idéia de soberania, formulada originalmente por Jean Bodin (Les Six Livres de Ia Republique, 1576), identificará a partir de então aí normas ligadas ao exercício do poder político. De um lado, explicará a unificação do poder dentro de certo território, com a submissão de todas as pessoas à mesma ordem jurídica e o não reconhecimento de outras ordens - as vigentes em outros territórios - come aplicáveis. E a origem do Estado Moderno. De outro lado, a mesma concepção de soberania servirá para a justificação do absolutismo O poder soberano não encontra limitação, quer interna, quer externa. Será, por isso, insuscetível de qualquer controle. Parecia, ao espírito da época, que quem detinha o poder - de impor normas, de julgar, de administrar — não poderia ser pessoalmente sujeito a ele ninguém pode estar obrigado a obedecei" a si próprio. Tentando sintetizar as normas que então disciplinavam c exercício do poder político, podemos indicar as seguintes: a) O Estado, sendo o criador da ordem jurídica (isto é, sendo incumbido de fazer as normas), não se submetia a ela, dirigida apenas aos súditos. O Poder Público pairava sobre a ordem jurídica. b) O soberano, e, portanto, o Estado, era indemandável pele indivíduo, não podendo este questionar, ante um tribunal, a validade ou não dos atos daquele. Parecia ilógico que o Estado julgasse E si mesmo ou que, sendo soberano, fosse submetido a algum controle externo. c) O Estado era irresponsável juridicamente: le roi ne peut mal faire, the king can do no wrong. Destarte, impossível seria exigir ressarcimento por algum dano causado por autoridade pública. d) O Estado exercia, em relação aos indivíduos, um poder de polícia. Daí referirem-se os autores, para identificar o Estado da época, ao Estado-Polícia, que impunha, de modo ilimitado, quaisquer obrigações ou restrições às atividades dos particulares. Em conseqüência, inexistiam direitos individuais contra o Estado (o indivíduo não podia exigir do Estado o respeito às normas regulando o exercício do poder político), mas apenas direitos dos indivíduos nas suas recíprocas relações (o indivíduo podia exigir do outro indivíduo a observância das normas reguladoras de suas relações recíprocas). e) Dentro do Estado, todos os poderes estavam centralizados nas mãos do soberano, a quem cabia editar as leis, julgar os conflitos e administrar os negócios públicos. Os funcionários só exerciam poder por delegação do soberano, que jamais o alienava. Como se vê, o direito público (vale dizer, as regras que regiam o exercício do poder político) poderia ser resumido, na época, a uma norma básica: o poder deve ser acatado e é ilimitado. O notável jurista argentino Agustín Gordillo explica por que seria impossível desenvolver-se, nesse clima, o estudo do direito público: "No Estado de Polícia, em conseqüência, ao reconhecer-se ao soberano um poder ilimitado quanto aos fins que poderia perseguir s quanto aos meios que poderia empregar, mal poderia desenvolver-se uma consideração científica desse poder. Não cremos que se possa afirmar, pura e simplesmente, que não existia um Direito Público, como por exemplo disse Mayer, pois inclusive este princípio jo poder ilimitado e as normas que dele emanaram constituem um serio ordenamento positivo; porém, ao menos pode-se sustentar que não existia, em absoluto, um ramo do conhecimento jurídico em torno do mesmo" (Princípios Gerais de Direito Público, p. 28). 2. 5. Idade Contemporânea A transformação radical da regulação do poder político, dando-lhe a feição que tem hoje e ensejando a construção da ciência do direito público, ocorrerá na Idade Contemporânea, sendo as devoluções Americana e Francesa (e as Constituições delas resultantes) seus marcos históricos mais notáveis. O que há de significativo neste novo período é que os sujeitos incumbidos de exercer o poder político deixarão de apenas impor normas aos outros, passando a dever obediência - no momento em que atuam - a certas normas jurídicas cuja finalidade é impor limites ao poder e permitir, em conseqüência, o controle do poder pêlos ;eus destinatários. O exemplo mais remoto de norma jurídica imposta ao poder político para limitá-lo, com a finalidade de proteger os destinatários, é o da Magna Carta da Inglaterra, que os barões e prelados ingleses impuseram ao rei em 1215. O seu § 39 dispõe: "Nenhum homem livre poderá ser detido ou mantido preso, privado de seus bens, posto fora da lei ou banido, ou de qualquer maneira molestado, e não procederemos contra ele nem o faremos vir, a menos que por julgamento legítimo de seus pares e pela lei da terra". Perceba como as normas sobre o exercício do poder se ampliam. Até então, em todas as épocas anteriores, destinavam-se í impor - praticamente sem limites e sem controles - a obediência das pessoas às determinações do poder político. Agora, cuidarão ainda de fazer prevalecer o poder político sobre os indivíduos (que pagarão impostos ao Estado, submeter-se-ão ao seu julgamento obedecerão às leis por ele produzidas); mas também - e sobretudo - de organizar o Estado para limitar e controlar seu poder (os cidadãos escolhem em eleições os parlamentares, o Parlamento faz normas para regular a cobrança de impostos pelo Executivo, um Tribunal pode anular a lei feita pelo Parlamento, o indivíduo pode movei uma ação judicial para se furtar da cobrança ilegal de impostos...). Cunha-se, a partir de então, o conceito de Estado de Direito isto é, de um Estado que realiza suas atividades debaixo da ordem jurídica, contrapondo-se ao superado Estado-Polícia, onde o podei político era exercido sem limitações jurídicas, apenas se valendo de normas jurídicas para se impor aos cidadãos. Não há como conhecero direito público moderno sem ter presente a noção de Estado de Direito. Por isso, vamos estudá-lo com detalhes a seguir. Contudo, a evolução da disciplina jurídica do poder político não terminou aí. A idéia de Estado de Direito sem perder o conteúdo inicial, foi sendo enriquecida até se chegar hoje, ao Estado Social e Democrático de Direito. Saber o que seja um Estado ao mesmo tempo de Direito, democrático e social é c objeto do Capítulo seguinte. 3.O Estado Social e Democrático de Direito 3. 1. Estado de direito Terminamos o capítulo anterior indicando a noção Estado de Direito como fundamental ao conhecimento das características essenciais do direito público. Estudá-la significa descobrir princípios que estão estampados em cada norma de direito público. A idéia intuitiva a respeito – dada pelo próprio sentido literal da expressão - é aquela segundo a qual Estado de Direito é o que se subordina ao Direito, vale dizer, que se sujeita a normas jurídicas reguladoras de sua ação. O Estado Polícia apenas submetia os indivíduos ao Direito, mas não se sujeitava a ele. O professor português Afonso Rodrigues Queiró, após enfatizar, como nós, que "o Estado de Direito não é uma noção secundária e transcurável, mas essencial, primária, um postulado, um pressuposto teórico do direito público", explica seu conceito em termos semelhantes. Confira: "Para nós, como conceito desse tipo de Estado, vale o de Stahl: 'o Estado deve ser Estado de Direito (...) deve assegurar inviolavelmente e perfeitamente determinar os confins e limites de sua atividade e as esferas de liberdade dos seus cidadãos na forma do Direito'. O Estado de Direito é, para Stahl, de certo modo, um conceito formal, e é nesta medida que na ciência do direito público deve ser acolhido. Todas as funções do Estado - e a administrativa in specie - se devem realizar na forma do Direito e as normas do Direito são o quadro da atividade do próprio Estado. (...) A fórmula de Stahl, que perfilhamos, permite dizer que os fins do Estado devem 'tecnicizar-se nas formas do Direito' (Ravà) e é c que se não passa no outro tipo técnico e histórico, o chamado Estado-Polícia, que por isso se opõe como 'categoria', como 'espécie fixa logicamente' (Panunzio), ao Estado de Direito. Portanto: o Estado do Direito Público moderno é o Estado de Direito. A sua atividade realiza-se dentro de normas, e precisamente de normas jurídicas; assim a justiça como a Administração" (Reflexões sobre a Teoria do Desvio de Poder em Direito Administrativo, pp. 8 e 9). Adotado este ponto de partida - o Estado de Direito define ( respeita, através de normas jurídicas, seja os limites de sua atividade, seja a esfera da liberdade dos indivíduos -, podemos agregai ainda duas idéias, para chegarmos, finalmente, ao conceito que procuramos. De um lado, percebemos que a vinculação do Estado à lei, para ser efetiva, exige que, dentro dele, uma mesma autoridade não seja incumbida de fazer a lei e de, ao mesmo tempo, aplicá-la. Caso contrário, ao fazer a aplicação, poderia alterar a lei anteriormente feita Ainda: necessária a presença de outra autoridade, também diversa das demais, para julgar as eventuais irregularidades da lei e de sue aplicação. Em outras palavras, as funções de fazer as leis (legislar) aplicá-las (administrar) e resolver os conflitos (julgar) devem pertencer a autoridades distintas e independentes. A isso denominamos separação dos Poderes. De outro lado, essa separação não pode ser mudada pelo legislador, através de lei, pois, do contrário, bastar-lhe-ia exercer sua atividade (legislar) para anular o poder do administrador e do juiz Também, os indivíduos não teriam direitos oponíveis ao próprio Estado se este pudesse suprimi-los através de lei. Em suma, deve haver uma norma superior à lei (e, em conseqüência, superior ao Estado que a produz) definindo a estrutura do Estado e garantindo direitos aos indivíduos. A essa norma chamamos Constituição. Assim, definimos Estado de Direito como o criado e regulado por uma Constituição (isto é, por norma jurídica superior às demais), onde o exercício do poder político seja dividido entre órgãos independentes e harmônicos, que controlem uns aos outros, de modo que a lei produzida por um deles tenha de ser necessariamente observada pêlos demais e que os cidadãos, sendo titulares de direitos, possam opô-los ao próprio Estado. Acompanhe como Norberto Bobbio constrói seu conceito em termos semelhantes: "Por Estado de direito entende-se geralmente um Estado em que os poderes públicos são regulados por normas gerais (as leis fundamentais ou constitucionais) e devem ser exercidos no âmbito das leis que o regulam, salvo o direito do cidadão recorrer a um juiz independente para fazer com que seja reconhecido e refutado o abuso e o excesso de poder. Assim entendido, o Estado de direito reflete a velha doutrina - associada aos clássicos e transmitida através das doutrinas políticas medievais - da superioridade do governo das leis sobre o governo dos homens, segundo a fórmula lex facit regem, doutrina, essa, sobrevivente inclusive da idade do absolutismo, quando a máxima princeps legibus solutus é entendida no sentido de que o soberano não estava sujeito às leis positivas que ele próprio emanava, mas estava sujeito às leis divinas ou naturais e às leis fundamentais do reino. Por outro lado, quando se fala de Estado de direito no âmbito da doutrina liberal do Estado, deve-se acrescentar à definição tradicional uma determinação ulterior: a constitucionalização dos direitos naturais, ou seja, a transformação desses direitos em direitos juridicamente protegidos, isto é, em verdadeiros direitos positivos. Na doutrina liberal, Estado de direito significa não só subordinação dos poderes públicos de qualquer grau às leis gerais do país, limite que é puramente formal, mas também subordinação das leis ao limite material do reconhecimento de alguns direitos fundamentais considerados constitucionalmente, e portanto em linha de princípio 'invioláveis' (esse adjetivo se encontra no art. 2a da Constituição italiana). "Do Estado de direito em sentido forte, que é aquele próprio da doutrina liberal, são parte integrante todos os mecanismos constitucionais que impedem ou obstaculizam o exercício arbitrário e ilegítimo do poder e impedem ou desencorajam o abuso ou o exercício ilegal do poder" (Liberalismo e Democracia, p. 19). As pedras de toque desse novo modo de conceber as relações entre os indivíduos e o Estado - cuja falta faria desmoronar todo o edifício - são, portanto: a) a supremacia da Constituição; b) a separação dos Poderes; c) a superioridade da lei; e d) a garantia dos direitos individuais. Vamos examinar cada uma, verificando sei relacionamento. 3.11Supremacia da Constituição Acima das leis, produzidas pelo Estado, existe uma norma jurídica fundamental que não é feita nem alterada por ele, estabelecendo os termos essenciais do relacionamento entre as autoridades e entre estas e os indivíduos: a Constituição (também chamada de Carta ou Lei Magna). O ordenamento jurídico (conjunto das normas jurídicas) pode ser visto graficamente como uma pirâmide. No topo dela encontra se a Constituição, pairando sobre todas as demais normas. A Constituição define quem pode fazer leis (quem tem competência legislativa), como deve fazê-las (qual o processo a ser seguido) e quais os limites da lei (p. ex.: os direitos individuais, que não podem se prejudicados pela lei). Por isso se diz que a lei tira seu fundamento de validade da Constituição. Uma lei vale, deve ser obedecida – seja pelos Poderes Executivo e Judiciário, ou seja pelos indivíduos -, porque foi feita com base e na forma da Constituição. Um ato do Presidente da República (a nomeação de funcionário, a doação de leite para crianças desnutridas) tira seu fundamentode validade da lei; este ato vale, deve ser acatado, por haver sido produzido na forma e com base na lei. A sentença do juiz (condenando um criminoso, decretando o despejo de inquilino em débito) também tira sei fundamento de validade da lei. Por isso o ordenamento jurídico é uma pirâmide: o ato administrativo e a sentença valem se estiverem de acordo com a lei, que lhes é superior; a lei vale se estiver de acordo com a Constituição, que lhe é superior. Olhando no sentido inverso, verificamos que a Constituição é o fundamento de validade de todas as normas do ordenamento jurídico. Nisso consiste a supremacia da Constituição. A lei editada por alguém não autorizado pela Constituição, 01 cujo conteúdo viole direito individual por ela assegurado, será inconstitucional. A norma inconstitucional, como não encontra seu fundamento de validade na Constituição, não vale, não pode nem deve ser acatada. Para garantir que leis inconstitucionais não sejam aplicadas, com isto violando os direitos individuais, a própria Constituição concebe um sistema para sua eliminação do mundo jurídico. E o chamado controle da constitucionalidade das leis, realizado no Brasil pelo Poder Judiciário, através de ações adequadas. A Constituição é feita por um Poder Constituinte. A Carta brasileira de 1969 foi ditada por três pessoas: os chefes militares auto-investidos na função de constituintes. A Carta de 1988 foi promulgada por Assembléia de representantes do povo, eleita para tal finalidade. Os militares, num caso, e a Assembléia, no outro, foram o Poder Constituinte. Inexistem normas jurídicas regulando o Poder Constituinte: ele é poder de fato, não jurídico. Exerce a função de constituinte quem tiver força para fazer respeitar o conjunto de regras de organização do Estado que houver concebido. Feita a Constituição, o Poder Constituinte desaparece. Surge o Estado, corno criatura da Constituição. Podemos dizer, então, que o Estado brasileiro atual nasceu, no sentido jurídico, em 5 de outubro de 1988, com a promulgação da vigente Carta. A Constituição opera papel importantíssimo na sujeição do Estado à ordem jurídica, eis que, como norma jurídica anterior a ele, supera a dificuldade de submetê-lo às normas que por si próprio crie. A Constituição não é feita pelo Estado. Ao contrário, o Estado é fruto da Constituição. O Estado, em conseqüência, é pessoa jurídica, criada e regida pelo direito constitucional, que o precede. Por isso, todo seu funcionamento haverá de atender às disposições constitucionais. "Não só estarão o Poder Executivo e o Poder Judiciário submetidos à lei, mas também estará o legislador submetido à Constituição, cujos limites e princípios não poderá violar nem alterar ou desvirtuar. Desta maneira todos os órgãos do Estado, todas as manifestações possíveis de sua atividade, inclusive as que outrora se puderam considerar como supremas, estão hoje submetidas a uma nova ordem jurídica superior. Este há de ser um passo de suma importância para o posterior desenvolvimento do Direito Público sobre a base dos princípios constitucionais e não só legais ou regulamentares" (Agustín Gordillo, Princípios Gerais de Direito Publico, p. 64). 3.1.2 Separação dos Poderes Para ser real o respeito da Constituição e dos direitos individuais por parte do Estado, é necessário dividir o exercício do pode político entre órgãos distintos, que se controlem mutuamente. A cada um desses órgãos damos o nome de Poder: Poder Legislativo Poder Executivo e Poder Judiciário. A separação dos Poderes estatais é elemento lógico essencial do Estado de Direito. Cada Poder (isto é, cada órgão) exerce uma espécie definição Ao Legislativo cabe a função legislativa, correspondente à edição de normas gerais e abstraías (as leis), seja para regular os demais atos estatais, seja para regular a vida dos cidadãos. Ao Executivo cabe a função administrativa, isto é, a atividade de, em aplicação da lei anteriormente editada, cobrar tributos (dos quais o imposto e uma espécie), prestar serviços (como a distribuição de água encanada, de geração de energia elétrica, de transporte aéreo), ordenar E vida privada (multando indústrias poluidoras, controlando o trânsito de veículos pelas ruas, autorizando a construção de edifícios), e assim por diante. Ao Judiciário cabe a função jurisdicional: julga sob provocação do interessado, os conflitos entre os indivíduos (e disputa em torno da propriedade de terreno, a cobrança de divida, í ação de divórcio), ou entre indivíduos e Estado (a ação proposta por empresa para anular multa imposta pelo Executivo, ou por cidadão para se livrar de imposto cobrado de forma inconstitucional) Os Poderes exercem suas funções com independência em relação aos demais. Cada um tem suas autoridades, que não devem respeito hierárquico às autoridades do outro Poder. O Presidente da República é impotente para dar ordens ao juiz. O Presidente de Congresso Nacional não avoca para si atribuições dos Ministros de Executivo. A cada função corresponde uma espécie de ato (de norma) estatal: a lei (função legislativa), o ato administrativo (função administrativa) e a sentença (função jurisdicional). A lei se submete â Constituição. O ato administrativo e a sentença são inferiores à lei. A sentença pode anular (isto é, desfazer os efeitos, tirar do mundo jurídico) o ato administrativo ilegal. Agora está solucionada dúvida surgida no Capítulo I: se o Estado deve se submeter às normas jurídicas e se o descumprimento delas é sancionado (punido) pelo próprio Estado, como evitar que ele escape à sanção? A resposta é simples: o Judiciário - órgão independente e, por isso, imparcial - é quem, dentro do Estado, incumbe-se de velar pelo respeito dos demais Poderes à ordem jurídica, negando efeito às leis inconstitucionais e anulando atos administrativos ilegais. Assim, o Estado se submete à lei porque se submete à jurisdição. Esse ponto é especialmente destacado por Geraldo Ataliba em obra fundamental para o direito público brasileiro: "Assim também, para que se repute um Estado como de Direito é preciso que nele se reúna à característica da subordinação à lei, a da submissão à jurisdição, nos termos postulados por Giorgio Balladore Palieri (v. Diritto Costituzionale, 3a ed., Milão, Giuffrè, pp. 80 e ss. Especialmente p. 85). Este notável publicista milanês insiste que só é possível reconhecer Estado de Direito onde: a) o Estado se submete à jurisdição; b) a jurisdição deva aplicar a lei preexistente; c) a jurisdição seja exercida por uma magistratura imparcial (obviamente, independente), cercada de todas as garantias; d) o Estado a ela se submeta como qualquer pars, chamada a juízo em igualdade de condições com a outra pars" (República e Constituição, p. 120). Em resumo, à separação de órgãos (Poderes), corresponde uma distinção de atividades (funções), que produzem diferentes atos, como segue: Poder Legislativo — função legislativa - lei; Poder Executivo - função administrativa (ou Governo) - ato administrativo; Poder Judiciário - função jurisdicional (ou justiça) - sentença. Percebe-se a importância da separação dos Poderes no controle do exercício do poder político. Cada Poder corresponde a um limite ao exercício das atividades do outro. Assim, o poder freia o poder, evitando a tirania. A formulação teórica da divisão dos Poderes e funções do Estado é de Montesquieu, em sua obra clássica Do Espírito das Leis, "A democracia e a aristocracia, por sua natureza, não são Estados livres. Encontra-se a liberdade política unicamente nos governos moderados. Porém, ela nem sempre existe nos governos moderados: só existe nestes últimos quando não se abusa do poder; mas a experiência eterna mostra que todo homem que tem poder é tentado a abusar dele; vai até onde encontra limites. Quem o diria! A própria virtude tem necessidadede limites. ''Para que não se possa abusar do poder é preciso que, pela disposição das coisas, o poder freie o poder. Uma constituição pode ser de tal modo, que ninguém será constrangido a fazer coisas que a lei não obriga e a não fazer as que a lei permite. (...). "Há, em cada Estado, três espécies de poderes: o poder legislativo, poder executivo das coisas que dependem do direito das gentes, e executivo das que dependem do direito civil. "Pelo primeiro, o príncipe ou magistrado faz leis por certo tempo ou para sempre e corrige ou ab-roga as que estão feitas. Pelo segundo, faz a paz ou a guerra; envia ou recebe embaixadas, estabelece a segurança, previne as invasões. Pelo terceiro, pune os cri mês ou julga as querelas dos indivíduos. Chamaremos este ultime do poder de julgar e, o outro, simplesmente o poder executivo do Estado. "A liberdade política, num cidadão, é esta tranqüilidade de espírito que provém da opinião que cada um possui de sua segurança. e, para que se tenha esta liberdade, cumpre que o governo seja de tal modo, que um cidadão não possa temer outro cidadão. "Quando na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistratura o poder legislativo está reunido ao poder executivo, não existe liberdade, pois pode-se temer que o mesmo monarca ou o mesmo senado apenas estabeleçam leis tirânicas para executá-las tiranicamente. "Não haverá também liberdade se o poder de julgar não estivei separado do poder legislativo e do executivo. Se estivesse ligado ao poder legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador. Se estivesse ligado ao poder executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor. "Tudo estaria perdido se o mesmo homem ou o mesmo corpo dos principais, ou dos nobres, ou do povo, exercesse esses três poderes: o de fazer leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar os crimes ou as divergências dos indivíduos" (Do Espirito das Leis, pp. 148 e 149). 3.1.3 Superioridade da lei A lei, que, até o período medieval, era vista como sagrada e imutável e, no período absolutista, como fruto de um querer divino (que o soberano expressava), ganha, com o Estado de Direito, característica humana: passa a ser a expressão da vontade geral. A lei, destinada a reger a vida dos homens, deve ser feita por eles. "As leis não são, propriamente, mais do que as condições da associação civil. O povo, submetido às leis, deve ser o seu autor. Só àqueles que se associam cabe regulamentar as condições da sociedade", dirá Jean Jacques Rousseau, em seu Do Contrato Social. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, acolhendo sua doutrina, estabelecerá que "a lei é a expressão da vontade geral. Todos os cidadãos têm o direito de concorrer, pessoalmente ou por eles. Sendo expressão da vontade geral, a lei impor-se-á ao próprio Estado, quando este se ocupar do Governo e da Justiça. Nisto consiste a superioridade da lei: na virtude de ser superior — e, portanto, de condicionar - aos atos administrativos e às sentenças. Desse modo, estabelecendo-se urna hierarquia entre a lei e os atos de sua execução (atos administrativos e sentenças), criam-se os meios técnicos indispensáveis ao funcionamento da separação dos Poderes. "Parece-nos que a idéia rousseauniana da superioridade da lei (vontade geral) postula a existência duma repartição orgânica das funções do Estado, pois só se concebe que a lei seja revestida de superioridade quando há órgãos que na realização das suas funções lhe devam obediência. Quer dizer: Rousseau é insuficiente por si e só ao lado de Montesquieu o seu pensamento adquire relevância para a ciência do direito público" (Afonso Rodrigues Queiró, ob. cit, pp. 8 e 9, nota 2). Em verdade, aqui temos uma via de mão dupla: nem a superioridade da lei pode funcionar onde inexista separação dos Poderes, nem esta é possível sem a superioridade da lei. O administrador e o juiz, ao exercerem suas atividades (produzindo atos administrativos e sentenças), apenas aplicam a lei, apenas realizam concretamente a vontade geral, sem que suas vontades particulares interfiram no processo. A atividade pública deixa, assim, de ser vista como propriedade de quem a exerce, passando a significar apenas o exercício de um dever-poder, indissoluvelmente ligado a finalidade estranha ao agente. Ademais, ninguém exercera autoridade pública que não emane da lei. . De outro lado, só a lei pode definir e limitar o exercício dos direitos individuais. O interesse individual só cede ante interesses públicos e estes são estabelecidos pela lei, não pela vontade isolada do príncipe. A propósito, a citada Declaração dos Direitos de Homem e do Cidadão estabeleceu que os limites ao exercício dos direitos naturais de cada homem não poderiam ser determinados senão pela lei (art. 4a), de modo que "tudo o que não está proibido pela lei não pode ser impedido, e ninguém pode ser obrigado a fazer o que ela não ordene". Com isso, os cidadãos se submetem ao governo da lei, vale dizer, têm seus deveres regulados por uma norma geral e abstraía emanada da Assembléia de seus representantes. "Por 'governo da lei' entendem-se duas coisas diversas embora coligadas: além do governo sub lege, que é o considerado até aqui, também o governo per leges, isto é, mediante leis, ou melhor através da emanação (se não exclusiva, ao menos predominante) d' normas gerais e abstraías. Uma coisa é o governo exercer o pode segundo leis preestabelecidas, outra coisa é exercê-lo mediante leis isto é, não mediante ordens individuais e concretas" (Norberto Bobbio, O Futuro da Democracia — Uma Defesa das Regras do Jogo, p. 157). É essa nova concepção de lei que permitirá a construção de todo o direito público moderno. 3.1.4 Garantia dos direitos individuais Também da Constituição resulta o reconhecimento de certos direitos — os de liberdade e igualdade, sobretudo - que os indivíduos titularizam independentemente de outorga estatal. As Declarações de Direitos, solenemente embutidas nas Constituições americana e francesa e depois repetidas e aumentadas em todas as Constituições modernas, permitirão que os indivíduos oponham seus direitos ao próprio Estado. O preâmbulo da Constituição dos Estados Unidos da América editada em 1787, afirmava: "Nós, o Povo dos Estados Unidos, a fim de formar uma União mais perfeita, estabelecer a Justiça, assegurar a tranqüilidade interna, prover a defesa comum, promover o bem-estar geral e garantir para nós e para os nossos descendentes os benefícios da Liberdade, promulgamos e estabelecemos esta Constituição para os Estados Unidos da América". Contudo, o texto da Constituição se limitou a regular o funcionamento dos Poderes Públicos. A enumeração de direitos individuais contra o Estado surgirá através da Primeira Emenda. Nela, prevê-se, por exemplo, que "o Congresso não legislará no sentido de estabelecer uma religião, ou proibindo o livre exercício dos cultos; ou cerceando a liberdade de manifestação ou de imprensa, ou o direito do povo de se reunir pacificamente, e de dirigir ao Governo petições para a reparação de seus agravos". A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de outubro de 1789, posteriormente mantida como preâmbulo da Constituição francesa de 1791, afirmava, com eloquência ainda maior: "Os representantes do povo francês, reunidos em Assembléia Nacional, considerando que o desconhecimento, o esquecimento ou o desprezo dos direitos do homem são as únicas causas das infelicidades públicas e da corrupção dos governantes, resolveram expor, em uma declaração solene, os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem, a fim de que esta declaração, constantemente presente a todos os membros do corpo social, lhes relembre sem cessar os seus direitos e deveres; a fim de que os atos do poder legislativoe os do poder executivo, podendo ser a todo momento comparados com a finalidade de qualquer instituição política, sejam mais respeitados; a fim de que as reclamações dos cidadãos, fundadas em princípios claros e incontestáveis, sirvam sempre à manutenção da Constituição e à felicidade de todos". Em seguida, em seus artigos 1a e 2a, estabelecia que os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos e que a finalidade de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem: a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão. Sendo de origem constitucional, tais direitos não poderão ser suprimidos pelo Estado, nem mesmo por via legislativa. Portanto, ainda que o interesse público prevaleça sobre o interesse particular, isso nunca poderá se dar em prejuízo dos direitos individuais previstos na Constituição. A Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão dispôs, a propósito, que "a lei não tem o direito de proibir senão as ações prejudiciais à sociedade" (art. 5a) e que "a lei não deve estabelecer senão as penas estrita e evidentemente necessárias" (art. 8a). Assim, o respeito aos direitos dos indivíduos passa a ser um dos fins do Estado, torna-se de interesse publico. Da garantia, contida na Constituição, de direitos em favor dos indivíduos surgirá a noção de direito subjetivo público, isto é. de um direito que o indivíduo titulariza contra o próprio Estado. ampliando o antigo conceito de direito subjetivo, até então circunscrito às relações entre particulares. O direito de propriedade, que já era assegurado em Roma pelas leis civis, consistia, então, num direito subjetivo privado: o proprietário tinha a faculdade (o direito) de recorrer aos tribunais contra qualquer semelhante que invadisse seu imóvel. Mas não teria a mesma faculdade se a violência viesse do Estado; por isso, o direito de propriedade era apenas um direito subjetivo privado, não direito subjetivo público (isto é, oponível ai Estado). Contudo, quando a Constituição garante o direito de propriedade como direito individual, está conferindo ao proprietário um direito subjetivo público, que o Estado haverá de acatar e garantir. Com a referência - propositalmente a última - à garantia dos direitos individuais, nós, que já havíamos apreendido a dinâmica do funcionamento do Estado de Direito, conseguimos visualizai sua razão de ser, sua finalidade. A separação dos Poderes, a superioridade da lei, a Constituição, não são valores em si mesmos, antes existem para tomar efetiva, permanente e indestrutível a garantir de direitos individuais. A proteção do indivíduo contra o Estado é c objetivo de toda a magistral construção jurídica que percorremos Nada mais natural, portanto, que o direito público por inteiro esteja embebido desta preocupação última, que exala desde a Constituição até a mais ínfima das normas. Gordillo, ao analisar a evolução do Estado de Direito da mera legalidade para a ampla constitucionalidade, acentua com propriedade esta idéia: "O conceito de Estado de Direito, por certo, não é unívoco e sofreu urna evolução que o foi aperfeiçoando: numa primeira fase pode-se dizer que o fundamento era um respeito à lei por parte do Poder Executivo: este era o então vigente principio da legalidade dos particulares. Logo os limites que o Estado de Direito impõe são estendidos à própria lei: se diz então, como já vimos, que também a lei deve respeitar princípios superiores: é o outro princípio fundamental do respeito à Constituição por parte das leis manifestado através do controle judicial da dita constitucionalidade. O indivíduo aparece, assim, protegido contra os avanços injustos dos poderes públicos numa dupla face: por um lado, que a Administração respeite a lei, e, por outro, que o legislador respeite a Constituição. O cerne da questão radica sempre, como se percebe, em que os direitos individuais não sejam transgredidos por patê dos poderes públicos” (Princípios Gerais de Direito Publico, p. 68) .Vimos no tópico anterior que Estado de Direito é o criado e regulado por uma Constituição (isto é, por uma norma jurídica superior às demais), onde o exercício do poder político seja dividido entre órgãos independentes e harmônicos, que controlem uns aos outros, de modo que a lei produzida por um deles tenha de ser necessariamente observada pêlos demais e que os cidadãos, sendo titulares de direitos, possam opô-los ao próprio Estado. Pois bem. Um Estado como esse não é necessariamente democrático. Iniciando nossa construção do conceito de Estado democrático - ao qual iremos agregando, pouco a pouco, todas as notas que definam as condições suficientes de um Estado do gênero —, podemos defini-lo como aquele onde o povo, sendo o destinatário do poder político, participa, de modo regular e baseado em sua livre convicção, do exercício desse poder. O mero Estado de Direito decerto controla o poder, e com isso protege os direitos individuais, mas não garante a participação dos destinatários no seu exercício. A noção de democracia, que já existira desde a Grécia, chegou inclusive a ser entendida como contraditória à de Estado de Direito, consagrada pelo liberalismo. "O liberalismo dos modernos e a democracia dos antigos foram frequentemente considerados antitéticos, no sentido de que os democratas da antiguidade não conheciam nem a doutrina dos direitos naturais nem o dever do Estado de limitar a própria atividade ao mínimo necessário para a sobrevivência da comunidade. De outra parte, os modernos liberais nasceram exprimindo uma profunda desconfiança para com toda forma de governo popular, tendo sustentado e defendido o sufrágio restrito» durante todo o arco do século XIX e também posteriormente. Já i democracia moderna não só não é incompatível com o liberalismo» como pode dele ser considerada, sob muitos aspectos e ao menos até certo ponto, um natural prosseguimento" (Norberto Bobbio, Liberalismo e Democracia, p. 37) Superada a sua faze inicial, o Estado de Direito foi paulatinamente incorporando instrumentos democráticos, com a finalidade de permitir a participação do povo no exercício do poder de modo muito coerente, alias, com o projeto inicial de controlar o Estado. O conceito que inicialmente sintetiza tais instrumentos é o da República – idéia que se vai mesclando à de Estado de Direito, para formar com ela, na atualidade, um todo uno e indivisível. A República, tal como consagrada por nossa Constituição, implica fazer dos agentes públicos, que exercem diretamente o poder político, representantes diretos do povo, por ele escolhidos e renovados periodicamente. Os agentes passam a exercer mandato – palavra que, em sua origem no direito privado, significa contrato entre o titular de certo direito e alguém por ele investido temporária mente no poder de exercê-lo. Estabelece-se, destarte, relação de representação entre o povo (titular do poder) e os agentes público (exercentes do poder), amando estes como mandatários, como verdadeiros procuradores daquele. A procuração política se outorga por tempo determinado, através de eleições, de modo a permitir que o dono do poder seja chamado periodicamente a renová-la ou cassá-la, transferindo-a a outrem. Mas a renovação dos mandatos não é o único controle do povo sobre os exercentes do poder. Estes podem ser responsabilizados (punidos e destituídos de seus cargos quando violam seus deveres, excedendo ou descumprindo os ter mós do mandato que receberam. "República é o regime político em que os exercentes de funções políticas (executivas e legislativas) representam o povo e decidem em seu nome, fazendo-o com responsabilidade, eletivamente ( mediante mandatos renováveis periodicamente. São, assim, características da República a eletividade, a periodicidade e a responsabilidade. A eletividade é instrumento da representação. A periodicidade
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