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Ética e política Agostinho

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ética transpolítica - a civitas dei
Fernando Quintana
A Idade Média é marcada pela ideia de dois mundos: o mundo supralunar e o mundo sublunar, o “indivíduo-fora-do mundo” e o “indíviduo-no-mundo”. Acompanhando autores da época: o homem dividido entre duas cidades simbólicas - a civitas dei ou sanctis e a civitas terrestris ou pecatis. Em tal contexto, a moral e ética cristãs que levam à felicidade, isto é, à salvação da alma, sendo mais relevante que o governo dos homens - a civitas hominis. 
Trata-se de um legado, a moral e ética cristãs, do qual é necessário indagar sua origem e isso porque ambas reaparecem, explícita ou implicitamente, na afamada fórmula, em voga nos dias de hoje, ética na política. Uma fórmula, cujos seguidores acreditam, por exemplo, que a honestidade é condição de uma boa política sem perceber que tal virtude “cristã”, apesar de necessária, não é suficiente já que um bom governo não depende do (bom) caráter dos que exercem cargos públicos, mas sobretudo, do “aprimoramento das instituições”, segundo Espinosa e Montesquieu. 
Tal constatação, contudo, não impedindo partidários da ética na política de considerar, naïvement, que o rigoroso respeito de valores morais é condição suficiente de uma boa sociedade e um bom governo (aliás!, como acreditavam os pais da Igreja durante o império romano e início da idade média). Uma atitude, importa frisar, da qual é difícil desvencilhar-se porque foi “fixada para sempre por nossas crenças religiosas” (Sandel, 2012: 37) ou, acompanhando outros autores, porque a autoridade dos mandamentos divinos tem eco na validade incondicional dos deveres morais que não podemos deixar de escutar (Habermas, 2013: 17). 
Uma atitude que, segundo a distinção weberiana, ética da responsabilidade e ética da convicção, avalia as ações e decisões segundo o respeito rigoroso a princípios morais e não a partir do resultado (ética da responsabilidade). Uma ética, conhecida também como a do “sermão da montanha” (weber) que se aplica aos homens de paz e de boa vontade (Aron, 1959: 50). 
Uma moral e ética que têm uma longa história, no Ocidente, que se confunde com a própria história do cristianismo. Uma moral e ética que ainda, com sua forte empreinte no senso comum, ignora a saída da religião enquanto força estruturante que comanda a forma política da sociedade para um mundo em que a religião não determina mais a ordem política nem a ordem coletiva (Gauchet, 1998: 14). 
O retorno ao pensamento da Idade Média, com seu componente teológico, obedece ao fato de propor uma visão idealista ou utópica da sociedade, a civitas dei, e isso através de um étalon deísta: o amor a Deus. Tal situação, como tentaremos mostrar, faz que a ética seja transpolítica já que o bem supremo (a felicidade, a tranquilidade ou serenidade da alma) só pode ser atingida plenamente no reino de Deus.
Nesta volta à Idade Média escolhemos um dos principais Pais da Igreja: Aurelius Agustinus, que, convertido ao cristianismo, escreve Civitas Dei. A escolha do “fundador do pensamento político medieval” deve-se a que deixa com sua abundante obra, que cobre um período de quarenta anos, uma importante herança: Agostinho ocupa no ocidente um lugar excepcional, suas opiniões e obras têm predominância durável na reflexão medieval (Lecoq, 2003:50); Agostinho é a figura mais importante, pelo volume da obra e influência que deixou na Idade Média, em relação à ética (Boulnois, 2003: 139); Agostinho é o maior dos criadores de sínteses cristãos (Wolin, 2001: 133), etc. 
A Idade Média cobre mil anos, um longo período que se encontra no meio do mundo antigo e moderno (séculos V-XV), caracterizado não só pelo forte entrelaçamento da religião e política, mas sobretudo pela superioridade da primeira. Situação esta que se inicia com o evento mais importante da história do Império Romano: a conversão do imperatur christianissimo Constantino (312) e a proclamação do cristianismo, pelo imperador Teodósio I, como religião oficial do Império (380). Quanto à relevância do primeiro evento, a conversão constantina, vale trazer o seguinte comentário: [1: A Alta Idade Média vai do século V (fim do Império Romano de Ocidente) ao século IX, e a Baixa Idade Média do século IX ao século XV (1453: queda do Império Romano de Oriente, Constantinopla). ]
Um dos acontecimentos decisivos da história ocidental a até mesmo da história mundial deu-se no ano 312 no imenso Império Romano. A Igreja cristã tinha começado muito mal esse século IV de nossa era: de 303 a 311, sofrera uma das piores perseguições de sua história, milhares foram mortos. (Nesse ano) deu-se um dos acontecimentos mais imprevisíveis: Constantino, o herói dessa grande história, converteu-se ao cristianismo depois de um sonho (“sob este sinal vencerás”). Por essa época, considera-se que só cinco ou dez por cento da população do Império (70 milhões de habitantes, talvez) eram cristãos. ‘Não se pode esquecer que a revolução religiosa promovida por Constantino em 312 foi o ato mais audacioso já cometido’ (...) Sem Constantino, o cristianismo teria permanecido uma seita de vanguarda (Veyne, 2010: 11-14).
Tal contexto, o predomínio do cristianismo, porém, muda com o saqueio de Roma e a queda definitiva do Império Romano do Ocidente por povos chamados de “bárbaros” pelos romanos. Um cenário fazendo que o gigante agonize: vândalos, alanos e suevos atravessam a Gália, saqueando-a; visigodos pilham Roma (410), antes de instalar-se na Espanha; ostrogodos fixam-se na Itália e francos colonizam progressivamente a Gália. O Império Romano deixa de existir no Ocidente (476) (Gondoin, 2011: 10). 
O primeiro evento, o saqueio de Roma pelo rei visigodo Alarico, é importante porque constitui o pano de fundo em que Agostinho escreve sua principal obra: A cidade de deus (413-426). Situação agravada, ainda, por lutas e conflitos internos depois da morte de Teodósio I (395) e a divisão do império do Ocidente e do Oriente entre seus filhos Arcádio e Honório. Ambos os fatos, guerras góticas e civis, deixando as legiões romanas arruinadas e impossibilitadas de reunir um exército para a defesa da Itália (Gibbon, 1989: 400). 
Com a queda do último imperador romano do Ocidente (Rômulo Augusto deposto pelo “bárbaro” Odoacro: 476) o cristianismo procura erigir-se em força capaz de unificar a civilização ocidental (Lebeu, 2011: 26) e fazer da igreja Catholica (Universal) uma instituição hegemônica, mas não sem conflitos com o poder temporal. Tratar-se-ia do chamado problema teológico-político que domina grande parte da Idade Média.
De fato, um dos traços mais importantes da concepção política medieval provém da afamada distinção agostiniana das duas cidades: civitas celeste e civitas terrena. Distinção que encontra eco, posteriormente, na carta do Papa Gelásio I quando defende a “doutrina das duas espadas” (494) segundo a qual o mundo é governado por diversi ordini: res spiritualia e res temporalia, sacerdotium e imperium, o mundo espiritual reservado aos eleitos e o mundo terrestre ao poder efêmero dos homens, sendo que o primeiro, a auctoritas, poder espiritual, é soberano em matéria religiosa enquanto a potestas, poder temporal, é soberano nos assuntos civis. Contudo, tal solução dualista, composta por duas instâncias complementares, cada uma soberana no seu respectivo domínio, implica, de fato, a superioridade da primeira, que se ocupa da administração da alma, diante da segunda, que se ocupa de administração das coisas e pessoas. Em resumo: o gládio espiritual sobre o gládio terreno (Macedo, 2008: 22). 
Essa doutrina que se inspira, por sua vez, na máxima pauliana, Epístolas aos romanos e coríntios: “dar ao César o que é do César e a Deus o que é de Deus” ou, na ideia de que o poder espiritual ocupa-se do cuidado da alma (homem regenerado) e o poder temporal do corpo (homem pecaminoso) supõe, vale reiterar, a supremacia da vis diretiva ou espiritual diante da vis fatual ou temporal, uma vez que a salvação da alma é mais relevante do que o gozo de bens temporais. Em termos agostinianos: o amora Deus superior a qualquer conquista temporal. 
Voltando ao escrito agostiniano, A cidade de deus, ele pode ser considerado um texto reativo contra os “bárbaros” (invasores), mas também propositivo, na medida em que visa restaurar a esperança do povo cristão através da criação de uma sociedade ideal (civitas dei) e a defesa de uma instituição, a igreja católica, responsável pela salvação da alma, não sem descartar a possibilidade de novos imperadores, com conduta moral e correta, serem a “imagem de Deus na terra”.
Para mostrar como a moral e ética agostiniana são importantes para compreender a política, gostaríamos de começar com a seguinte anedota da vida do teólogo medieval: era agosto de 386 quando Agostinho escuta uma voz que lhe diz: “toma e lê, toma e lê” (tolle, lege, tolle, lege). Era um livro do apóstolo São Paulo que lhe ordena: “Não caminheis em glutonarias e embriaguez, não nos prazeres impuros do leito e em leviandades, não em contendas e emulações, mas revesti-vos de Nosso Senhor Jesus Cristo, e não cuides de carne com demasiado desejos” (Pesanha, 1987: VI). 
O contato de Agostinho com o escrito pauliano é importante porque influencia sua conversão ao cristianismo, que se dá no mesmo ano. Além do mais, a leitura do texto sagrado, o Novo Testamento, junto com a forte influência de sua mãe Mônica e São Ambrósio (bispo de Milão) o levam a ingressar na Igreja de Hipona, onde permanece como bispo durante mais de quarenta anos (391-430). [2: Como exemplo, a seguinte passagem do bispo de Hipona, que, diante do fato de seu pai não estar batizado, declara: “Minha mãe desejava ardentemente que eu Vos considera-se a Vós, meu Deus, como pai, mais do que aquele que ainda não tinha fé” (Agostinho, 2007: 18). ]
A leitura do Novo Testamento é também relevante porque lhe confirma a existência de verdades eternas e o acesso a um ser imutável, todo-poderoso, fonte de todo conhecimento perfeito e do bem: Deus. De fato, é a partir da “iluminação divina”, “luz eterna”, que é possível para Agostinho não apenas a fé, mas também o conhecimento. Um tipo de conhecimento que é também influenciado pelo neoplatonismo de Plotino do qual apreende (antes de converter-se ao cristianismo) de que a alma é superior ao corpo, que as ideias, enquanto verdades eternas, permitem a descoberta de regras imutáveis para o conhecimento. O que mostra como a teologia cristã se interessa pela filosofia (Strauss, 1989: 298).
Contudo, existe uma diferença já que para os neoplatônicos o mundo sensível não é suscetível de conhecimento perfeito (a realidade é uma imagem imperfeita das ideias, dizia Platão) enquanto para Agostinho o mundo sensível é suscetível de conhecimento perfeito porque é feito por Deus. Ou seja, Deus faz possível, através da razão, tanto o conhecimento do mundo sensível (variável) quanto do mundo lógico (invariável). Para o bispo de Hipona, então, todo conhecimento é possível porque é resultado de um processo de iluminação divina; sem esquecer que é da luz eterna que se deriva o princípio moral de fazer o bem e evitar o mal. Preceito fundamental da tradição cristã caracterizado pela obediência a Deus:
Deus é nosso pai. Deus nos ordena que lhe obedeçamos. Devemos obedecer a Deus porque Ele conhece o que nos convém, e o que nos convém é obedecê-lo. Não cumprimos esta obediência e nos afastamos d´Ele. Por isso, devemos apreender a reconciliar-nos com Deus com a finalidade de que possamos viver (...) numa relação familiar com Ele (MacIntyre: 1994: 113).
Uma obediência que, por sua vez, se origina na santidade, bondade e poder divino: pela primeira conheço as coisas sábias queridas por Deus, pela segunda pratico ações boas que agradam a Deus, pela terceira porque vou ao inferno, se não o obedeço, ou serei feliz, no céu, se obedeço a Ele.
As influências que teve Agostinho configuram aquilo denominado de Patrística, da qual foi “sem dúvida, no ocidente, o padre mais brilhante” (Lara, 1999: 31). Tal doutrina, mistura das verdades reveladas e ideias filosóficas dos neoplatônicos recepcionadas e aplicadas pelos primeiros pais da igreja (Ambrosio, Crisóstomo, Gregório, etc), teve o mérito de deixar um legado, vale reiterar, em que o conhecimento não pode ser visto fora da fé, como se depreende da seguinte fórmula: há que saber para crer e crer para saber (intellige ut credas, crede ut intelligas). 
Uma doutrina em que razão e fé andam pari passu e tornam possível não só o conhecimento, mas também o caminho para a beatitudo: a tranquilidade, serenidade ou felicidade da alma (ataraxia) e que, em termos éticos, exige a áskesis, isto é, realizar esforços salutares para alcançar o sentido espiritual (Lécrivain: 2003: 148) ou, ainda, uma “moral da renúncia” para alcançar a salvação (Foucault, 2012: 267). 
Sendo assim, o soberano ou supremo bem, a felicidade da alma, remete a um nível mais alto do que a natureza: ele é compreendido, antes de tudo, como uma promessa de realização individual cumprida para além do tempo, por meio da redenção (Caillé; Lazzeri; Senellart, 2003: 19). Tratar-se-ia, segundo a concepção do homem que nasce com o cristianismo, do “indivíduo-fora-do-mundo”, do “individuo-em-relação-a-Deus” segundo expressão de Ernest Troeltsch:
A alma individual recebe valor eterno de sua relação filial com Deus, e nesta relação se funda também a fraternidade humana: os cristãos se juntam em Deus do qual são seus membros. Esta extraordinária afirmação se encontra sobre um plano que transcende o mundo do homem e instituições sociais, mesmo que estas provinham também de Deus. O valor infinito do indivíduo é ao mesmo tempo o rebaixamento, a desvalorização do mundo tal qual ele é: um dualismo aparece (indivíduo-fora-do-mundo/indivíduo-no-mundo), uma tensão é criada que é constitutiva do cristianismo e atravessa toda a história (Dumont, 1983: 40). 
De A cidade de deus importa destacar duas palavras: amor e virtude. Dois termos ou arquétipos que, como veremos, tornam possível avaliar a proximidade ou distância do governo dos homens, civitas hominis, diante do rigorismo moral e ético do teólogo medieval.
A reflexão moral de Agostinho é construída em termos polares: alma-corpo; comune-privus; altruísmo-avareza; ordem-desordem; santidade-pecado. Um conjunto de virtudes e vícios, sendo que o triunfo das primeiras junto com outras virtudes tais como a temperança, coragem, justiça e prudência, fundadas no amor a Deus, fazem com que os homens se aproximem do ideal por ele querido: a felicidade da alma.
Sobre o primeiro dualismo, o bispo é categórico em Confissões: o mal corresponde à ação da carne, aos prazeres infernais e tenebrosos da carne, à lodosa concupiscência da carne, aos deleites ilícitos carnais. E lamenta, no mesmo escrito, pela sua juventude (dezesseis anos) por não ter escutado o ensinamento divino, contrário de tais praticas: “aqueles que agirem desta maneira sofrerão as tribulações da carne”; “é bom para o homem não tocar em mulher alguma”; “quem não tem esposa pensa nas coisas de Deus e como lhe agradar” (Agostino, 1987: 29-30).
Tal dualismo, o corpo ligado ao pecado diferentemente da alma que se aproxima de Deus, encontra eco no coração duplo pauliano: o homem, ser imperfeito, encontra-se dividido entre a dedicação a Deus e ao próximo e as zonas de sua própria intimidade (carnal), ao apartar-se do que há de mais privado em si mesmo (a carne) torna-se mais próximo daquilo a que se denomina simplicidade do coração (Magalhães, 2008: 38). 
Com respeito às duas palavras chaves, amor e virtude, o bispo de Hipona escreve: “se a virtude nos conduz à vida feliz, afirmarei que a virtude não é absolutamente senão o supremo amor a Deus”. Afirmativa que se repete na célebre frase: a virtude é a ordem do amor a Deus que ordena: dai-me a caritás (Agostino, 1990: XV, 22). Ou, “estimar exatamente as coisas é viver segundo a justiça e santidade; aquele que tem ordem em seu amor ama o que deve ser amado e não ama o que não deve sê-lo”. A identificação ordem e amor podendo ser ilustrada ainda na seguinte metáfora, que faz referênciaà polêmica distinção, - paz dos justos e paz dos pecadores:
Imaginemos alguém suspenso pelos pés e de cabeça para baixo. A situação do corpo e a ordem dos membros são antinaturais (a paz dos pecadores), porque invertida a ordem (a paz dos justos) exigida pela natureza (divina), estando acima o que naturalmente deve estar em baixo. Semelhante desordem perturba a paz do corpo e por isso molesta [...] o corpo terreno tende à terra e, opondo-se a isso o que o mantém suspenso pelos pés, busca a ordem da paz que lhe é própria e de certo modo pede, com a voz de peso, o lugar em que naturalmente repouse (Agostinho, 1990:XIX ,12).
Com base na premissa de que a verdadeira virtude é o amor a Deus, as quatro virtudes - cardiais - agostinianas recebem no discurso do amor sua razão de ser. Assim, por exemplo, a temperança - “o amor de Deus que se conserva inteiro e incorrupto”; a coragem - “o amor que suporta tudo facilmente por causa de Deus”; a justiça - “o amor ao serviço de Deus apenas e porque ordena as outras coisas submetidas ao homem”; e, a prudência - “o amor que discerne bem as coisas favoráveis a Deus, daquelas que são obstáculos a isso”. A relevância dada ao amor lembra Coríntios I, 13: “o amor é maior que a fé e a esperança”. O amor entendido como caridade - virtude graças a qual se ascende ao amor a Deus e ao próximo. 
Em contrapartida, o pecado é a falta de ordem/amor, é desordem: uma perversidade voluntária pela qual é rompida a ordem concreta inscrita por Deus em sua criação e alma humana; um desregramento perverso dos pecadores que derruba a ordem correta das coisas (Agostinho, 1990: XIV, 26). 
O amor a Deus é o amor agapé, ligado ao perdão, desinteressado, espiritual, o amor de Cristo pela humanidade, o amor de quem morreu pelos homens e não exigiu nada em troca, Deus caritas Est. O amor cristão ou ágape é uma consideração pelo outro que é independente e inalterável: o sacrifício de si em virtude do qual o amor não faz concessão ao interesse próprio (Ricoeur, 2012: 4). E isso, em contraste com o amor éros, ligado à falta ou carência, interessado, que se extingue quando a necessidade é satisfeita.
A identificação pecado-desordem implica o triunfo da concupiscência ou orgulho, isto é, “o prazer em relação a si, viver para si” (sibi placere secundum vivere), que está na origem do alheamento de Deus: “o começo do orgulho é desviar-se de Deus”, diz Agostinho, ele consiste no homem “exaurir-se”, “inflar-se”, “derramar-se no exterior”, ou seja, “ser cada vez menos” em contraposição de “ser cada vez mais” que passa pela paz e calma interior, a tranquilidade da alma.[3: Tal dualismo, amor a Deus-concupiscência, contrasta totalmente com a avaliação feita por filósofos modernos como David Hume que, em Investigações sobre os princípios da moral, se refere às virtudes cristãs ou fradescas (abnegação, humildade, etc) como “vícios” que “não aumentam nossos poderes de nós deleitarmos por nós mesmos” (Rawls, 2005: 17). ]
Seguindo com as dicotomias agostinianas vale trazer também a distinção frui (gozar) e uti (usar). “Dizemos gozar (amar) de uma coisa que nos deleita por ela mesma, sem precisar relacioná-la a outra coisa; e usar de uma coisa que buscamos por outra coisa” (Agostinho, 1990: I, 25). Esta distinção pode ser relacionada ao dualismo: honesto-útil, ou seja, as coisas que devem ser buscadas por elas mesmas, as gozamos, são honestas, enquanto as que buscamos por outra coisa, as usamos, são úteis. 
Contudo, a utilitas não pode ser entendida fora do horizonte da honestas porque ambas são pensadas em função do amor divino: amar, afirma Agostinho, é apegar-se a uma coisa pelo amor dela mesma, usar é apegar-se a tudo que se encontre no nosso alcance para obter o que se ama, com a condição, arremata, de amá-lo. Em outras palavras, o bispo admite o útil, por exemplo, o amor na família, o amor ao próximo, na medida em que contribuem para o amor das coisas eternas. As coisas temporais podem servir então como meios para fins eternos. A identidade entre utilidade e honestidade, fundadas no amor divino, faz com que o moralmente correto seja eficaz e que o eficaz contribua para o honesto.
Para terminar com os dualismos agostinianos convém insistir numa dicotomia que é fundamental: caritás/amor versus concupiscência/orgulho. A primeira é o movimento do espírito em direção a Deus e, portanto, do amor ao próximo; pelo contrário, a segunda é o movimento do espírito em direção ao beneficio próprio e de algum corpo, mas não de Deus. Assim, a raiz de todos os males é a concupiscência enquanto a raiz de todos os bens é o amor. Tais atitudes são importantes porque se encontram na fundação de dois tipos de sociedades - celeste e pecaminosa: 
[...] sendo tantos e tão grandes os povos disseminados por todo o orbe da terra, tão diversos em ritos e em costumes e tão variados em língua, em armas e em roupas, não formem senão dois gêneros de sociedade humana, que, conformando-nos com nossas Escrituras, podemos chamar duas cidades. Uma delas é a dos homens que querem viver segundo a carne, a outra, a dos que querem viver segundo o espírito, cada qual na sua própria paz. E a paz de cada uma delas consiste em ver realizados todos os seus desejos (Agostinho, 1990: XIV, 131).
Segundo Agostinho o amor ao próximo é consequência do amor a Deus. Em termos de tipo de vida, isso implica que a vida contemplativa toma a frente diante da vida ativa. Ou seja, é necessário conhecer Deus para abrir-se ao terceiro, amar o próximo, sendo que tal conduta não pode dar-se fora do conhecimento da verdade, da “contemplação de Deus”, que exige uma “vida ociosa”. Deste modo, a moral e ética cristãs fazem possível o amor à verdade e, por tabela, o amor ao próximo.
O elogio ao ócio, à vida contemplativa, que não é inação, mas a procura permanente da verdade, supõe o triunfo da vida interior diante das desavenças do mundo exterior, como diz Agostinho:
Não vás para fora, volta-te para dentro. É no interior do homem que mora a verdade [...] O crente não se deixa dispersar na variedade das vicissitudes e peripécias da história, na conjuntura das lutas, dos sistemas e movimentos de independência. Tem de retornar para dentro da Fé. Pois é no interior da graça que atenda a libertação da Verdade (Leão, 1990: 20).
Neste sentido, o teólogo medieval se encontra mais próximo de Paulo do que de Cristo: a fé mais próxima da salvação da alma do que da ação. O importante é conhecer a verdade, única forma de liberar-se dos assuntos mundanos. Conhecer a verdade, condição da salvação, supõe, portanto, uma atitude quietista: o cristianismo, com sua crença no além, cuja glória se anuncia no deleite da contemplação confere sanção religiosa à degradação da vida ativa. Tal entendimento encontra eco no teólogo medieval quando afirma: “Não vás para fora, volta-te para dentro” - o que significa que dos três tipos de vida distinguidos pelo autor: ociosa, ativa e mista, a “dignidade do ócio” é fundamental já que, sem o estudo e a busca da verdade, o amor não é possível (Agostinho, 1990: XIX, 19). Tratar-se-ia do triunfo do bios theoretikos, que procura a verdade, a salvação da alma, por cima da vita activa (Habermas, 1990: 42).
Neste ponto, Agostinho segue também Platão, a vida contemplativa é mais relevante do que a vida ativa, mas com uma importante diferença que diz respeito à concepção da natureza: divina e igualitária; cósmica e hierárquica, respectivamente. Ou seja, uma visão “democrática” ou igualitária da natureza - a cada um segundo o amor a Deus - que implica colocar todos os talentos ou dons a serviço do bem e uma visão “aristocrática” ou hierárquica da natureza - a cada um segundo os talentos ou dons (ouro - inteligência; prata - coragem; bronze - apetência) (Ferry, 2001: 84). 
Para o bispo de Hipona a vida é regida por dois amores, o puro e o impuro, como se depreende da seguinte passagem de A cidade: um está voltado para os outros, o outro voltado para si; um se preocupa com o bem de todos, em vista da sociedade celeste, o outro subordina o bem comuma seu próprio poder, em vista da dominação arrogante; um é submisso a Deus, o outro rival de Deus; um é tranquilo, o outro é turbulento; um é pacífico, o outro fomenta distúrbios; um prefere a verdade aos louvores, o outro é ávido de louvores; um é amistoso, o outro é invejoso; um quer para outrem o que quer para si, o outro submeter outrem a si; um quer governar no interesse de outrem, o outro governar no seu próprio interesse.
Dois amores que servem para estruturar sua teoria moral, mas também sua afamada distinção: civitas dei ou sanctis e civitas terrestri ou pecatis. Duas cidades, a santa, cimentada na caritas cristã, e a terrestre, desgarrada pela cupiditas humana e que, importa frisar, não são históricas, mas imaginadas, místicas porque se enfrentam num “combate espiritual” - no “coração de cada homem”: 
Dois amores fundaram, pois, duas cidades, a saber: o amor próprio, levado ao desprezo a Deus, a terrena (ou pecatis); o amor a Deus, levado ao desprezo de si próprio, a celestial (ou sanctis). Gloria-se a primeira em si mesma e a segunda em Deus, porque aquela busca a glória dos homens e tem esta por máxima glória a Deus [...] Naquela, seus príncipes e as nações avassaladas vêem-se sob o jugo da concupiscência de domínio; nesta, servem em mútua caridade, os governantes, aconselhando, e os súditos, obedecendo (grifo nosso) (Agostinho, 1990: XIV, 28).
Dois princípios antitéticos, dois tipos de espírito, que aparecem concretamente na civitas hominis, tertium gene, mistura de ambas as cidades, que pode aproximar-se mais de uma ou de outra, bonne privus ou bonne comune, civitas sanctis ou pecatis. Tal entendimento é ilustrado na seguinte frase: “Com efeito, ambas as cidades enlaçam-se e confundem-se no século até que o juízo final as separe”. Essa passagem de A cidade pode ser relacionada à outra em que o autor estabelece o objetivo que se propõe alcançar nesta obra: a origem, progresso e fim de ambas as cidades (celeste e terrena) através da divina assistência e para glória da cidade de Deus (Agostinho, 1990: I,35). 
Dentre as duas sociedades encontra-se, então, na linha fronteiriça, uma terceira cidade que traduz a luta constante de governados e governantes de caminhar na direção do amor a Deus ou de si próprio. Um movimento, portanto, pendular que traduz a situação dramática pela qual atravessa a humanidade, dilacerada entre o bem e o mal. A este respeito, cabe um esclarecimento.
Antes da sua conversão Agostinho foi maniqueísta, seguidor do sacerdote persa Mani (Maniqueu), e acreditava que o mundo era regido por dois seres, duas divindades ou forças, igualmente poderosas, benigna e maligna, ambas tendo como origem o bem e o mal e como destino inexorável um ou outro e isso, vale acrescentar, em contraste com o cristianismo, que acredita apenas num ser, cuja existência representa o bem ou, como diz o bispo em Confissões: “tão somente um Deus infinitamente bom”, enquanto o mal é tido como um desvio do bem, “uma privação do bem” (Agostinho, 1987: 47).
Partindo da premissa de que Deus está na origem do bem, de que a criação se encontra impregnada pela bondade e perfeição divina, etc., a existência do mal é inexplicável do ponto de vista da criação divina. Apesar de o bispo de Hipona dessubstancializar o mal (o mal não é um ser - como o bem), existe, contudo, a possibilidade de uma privação, diminuição ou desvio da conduta em relação ao bem. Ser livre significa então caminhar no “fio de uma navalha”, andar “no fio do bem”, tomando boas decisões e realizando boas ações, mas também correndo o risco de resvalar para decisões e ações ruins - como resulta do seguinte comentário: 
Criaturas ilimitadas que somos, e inclinadas à corrupção desde o pecado original, não discernimos, em nossas escolhas, o bem absoluto que deveria ser nossa meta, mas nos contentamos com os bens relativos, exacerbando-lhes a dimensão e o significado, de modo que apareçam como absolutos. Em outras palavras, não distinguimos, via de regra, o fim supremo dos meios relativos pelos quais podemos atingi-lo. Assim nunca escolhemos o mal, porque nele em si mesmo não existe; escolhemos um bem menor e o elegemos como o que de maior poderíamos desejar (Silva, 2011: 72).
Com base no reconhecimento da existência de apenas um ser que leva ao bem (Deus), Agostinho afirma, em Do liberum arbitrium, “quanto de errado” estava o sacerdote persa com seu determinismo maniqueísta (o bem só pode levar ao bem, o mal só ao mal) e também em Confissões quando declara: “Ai! Ai de mim! - acreditei nos erros dos maniqueístas” (Agostinho, 1987: 46). Para Agostinho, pelo contrário, a vida é uma perigrinagem em direção ao bem, mas o homem pode afastar-se dele, sendo assim a escolha do homem é fundamental, uma vez que pode caminhar em direção da civitas sanctis ou pecatis. Tal situação, vale insistir, é possível porque existe a liberdade, o livre arbítrio, que encontra seu fundamento último no próprio ato do nascimento, resumido na frase lapidar: houve um início/começo - o homem foi criado, antes dele não tinha nada (initium ut esset creatus est homo, ante que nullus fuit). 
Frase talismã que permite mostrar, apesar da situação pela qual passa a humanidade pelo pecado original, que é possível mudar, tomar decisões e seguir a direção certa e(,) isso pelo fato do nascimento, que, do ponto de vista agostiniano, é dar início a algo novo: “a capacidade de começar como enraizada no nascimento” (Eslin, 1988: 148-149). No caso, optar neste mundo, a civitas hominis, pela aproximação ou afastamento em relação às duas cidades (celeste e pecadora). 
O movimento pendular, que oscila entre ambas as cidades, pode ser associado, por sua vez, a duas visões do Estado, negativa e positiva, como mostram alguns estudiosos que assinalam em relação à primeira interpretação que “Agostinho considerou o império dos romanos, com toda sua majestade dominadora do orbe, com todas suas leis, sua literatura e filosofia, como a obra execrável de espíritos infernais”. Assim, haveria no bispo uma cosmovisão negativa da sociedade política - o império com seus maus ou ímpios imperadores como consequência do pecado original, que levou à sujeição dos homens. No entanto, há também uma visão positiva do Estado, como se depreende do seguinte comentário: “o fenômeno fundamental da vida política é, para nosso pensador, o intento de sociabilidade e da ordem, que já está no animal, e impulsiona o homem, pela lei da natureza, a procurar a comunidade e a paz com os outros” (Rossi, 2000: 137-138). Ou seja, uma visão positiva do Estado que estaria dada pelos exemplos dos bons imperadores cristãos (Constantino e Teodócio I) e também, como veremos, pela república romana. 
Essas duas visões contrapostas encontram respaldo em várias passagens de A cidade quando afirma, por um lado, que houve governantes que serviram à paz e à justiça eternas; que existe uma vocação sobrenatural do homem à sociabilidade natural iniciada na família, continuando na urbe (cidade) e no orbe (Terra). Trata-se de uma visão positiva na qual o autor avalia a humanidade e os governos com independência do pecado, baseada no estado de inocência - o mundo pré-adânico. E, por outro lado, quando reconhece que houve governantes que serviram apenas a si mesmos e de que existe uma fraqueza radical da humanidade que a leva à insociabilidade. Trata-se de uma visão negativa em que o autor avalia a humanidade e os governos com base no estado pecaminoso - o mundo pós-adânico. Neste caso, o Estado é considerado apenas como poder fático, puro exercício da força física, produto do pecado original.
Retomando a distinção, paz dos justos/paz dos pecadores, teríamos, por um lado, a paz dos pios que procuram conservar a ordem divina, a sociabilidade natural do homem e, por outro, a paz dos ímpios baseada na desordem e numa sociabilidade forçada: 
Que milhafre, por mais solitário que voe sobre a presa, não procura companheira, faz o ninho, choca os ovos, alimenta os filhotinhos e mantém como pode a paz em casa com a companheira, como uma espécie de mãe de família?Quanto mais não é o homem arrastado pelas leis da natureza humana a formar sociedade com todos os homens e a conseguir a paz em tudo que esteja a seu alcance! Os maus combatem pela paz dos seus e, se possível, querem submeter todos, para todos servirem um só [...] a soberbia (dos ímpios governantes) imita com perseverança Deus. Odeia sob ele a igualdade com os companheiros, mas deseja impor seu senhorio em lugar do dele. Odeia a justa paz de Deus e ama sua própria paz, embora injusta [...] comparada com a paz dos justos, a paz dos pecadores não merece sequer o nome de paz (Agostinho, 1990: XIX, 12).
Seguindo exemplos da Roma antiga (753a.C.-476), Agostinho associa a visão negativa do Estado ao império romano (27a.C.-476), mais especificamente, aos maus ou ímpios imperadores, e a visão positiva do Estado à república (509 a.C.-27a.C.). No primeiro caso, estamos diante de uma situação privada do bem, do amor a Deus, no segundo, diante de uma situação em que é possível chegar ao bem, porém relativo, já que, como veremos, “algo” lhe falta.
Apesar de reconhecer que o império foi positivo porque foi cristianizado (a conversão constantina), ele teria dado mostras do uso da força física não para manter a segurança e paz dos súditos e defender-se de terceiros, mas sobretudo de ter usado a força para orgulho ou concupiscência de imperadores. Basta lembrar, por exemplo, a recente passagem citada “a soberba imita (às vezes) Deus e deseja impor seu senhoria” e também, em referência implícita aos maus imperadores, quando declara que eles odeiam a justa paz de Deus e amam sua própria paz, embora injusta. Sem esquecer que foram os responsáveis de uma sociabilidade não natural, mas forçada como se depreende da seguinte metáfora:[4: Dentre os quais podemos citar o imperador Nero (54-68) pela “transformação em tochas humanas dos cristãos”, segundo Agostinho exemplo de “Anticristo”; e, também Diocleciano (284-305) pela “Grande Perseguição”, talvez a mais sangrenta contra os cristãos. Perseguições que acabam com o Edito de Milão (313) também conhecido como “Édito de Tolerância” durante o reinado de Constantino.]
A principal causa de separação entre os homens é a diversidade das línguas. Suponhamos que em viajem se encontrem duas pessoas; uma ignora a língua da outra, mas por necessidade têm de caminhar juntas grande trecho. Os animais mudos, embora de espécie diferente, associam-se de modo mais fácil que essas duas pessoas, apesar de seres humanos. E quando, unicamente, por causa da diversidade de línguas, os homens não podem comunicar uns aos outros o que pensam, de nada serve para associá-los a mais pura semelhança de natureza. Tanto assim, que em tal caso o homem está melhor em companhia de seu próprio cão que de homem estranho (Agostinho, 1990: XIX,7).
No entanto, além da visão negativa do Estado, o império em mãos de maus imperadores, que encontra fundamento no pessimismo antropológico agostiniano dado pelo pecado original, o império contribuindo para a desordem, a paz dos ímpios, etc, percorre pari passu outra visão - positiva - do Estado, a república romana que, pelo contrário, teria contribuído para avançar na direção da paz e justiça eternas, mas, contudo, sem atingi-las plenamente e isso por não ter o amor a Deus como referência. 
Quanto à república importa dizer, seguindo o jurisconsulto romano Cícero, tratar-se de uma forma de governo que não coincide com as formas simples (monarquia, aristocracia, governo popular) porque é composta, nem com as formas más (tirania, oligarquia, governo da turba) porque é reta. É uma forma mista de governo a qual evita a decadência das formas simples no oposto (monarquia-tirania, aristocracia-oligarquia, governo popular-governo da turba) e, assim, ter maior duração no tempo; é também boa porque consegue conciliar, com instituições políticas tais como cônsules, senado e tribunos da plebe, o melhor de cada forma simples, fazendo possível o controle mútuo dos principais grupos que a integram (patrícios e plebeus). Além do mais, é uma forma moderada de governo visto que se funda, como se lê no parágrafo 39 do livro I, De re publica, em dois princípios: vinculum júris e utilitatis comunione. 
Finalmente, é uma forma boa de governo pois se funda na virtude dos cidadãos, isto é, segundo a ética ciceroniana, o estoicismo, um tipo de comportamento que pode ser resumido ao fato de os homens viverem em harmonia com a natureza e tal situação ser possível, segundo o estoicismo, porque a recta ratio (justa razão), a lei natural, é identificada a zeus: chefe do governo universal, que “nos ordena o que devemos fazer e nos proíbe o contrário”. Viver de acordo com a natureza, então, é viver em harmonia consigo mesmo, sendo que a identificação do sujeito com a natureza acontece quando a pessoa se encontra longe das paixões já que são elas as incitadoras da perturbação da alma. 
Tal ética assume, por sua vez, um viés cívico quando, em Dos deveres, Cícero enumera uma série de virtudes: sabedoria, coragem, temperança, que, junto com a principal virtude, a justiça, “impedir um homem de prejudicar outro”, devem ser praticadas pelo cive romano para atingir o bem comum, Contudo, importa frisar, são virtudes originadas num ser o qual se escreve com “‘d’ minúsculo, que é o deus de Cícero, e não com ‘D’ maiúsculo que é o Deus cristão” (grifo do autor) (Le Goff: 2007: 20). 
Agostinho, como lembra Pessanha, desenvolve toda sua cultura com base na leitura do latim e é Cícero quem lhe abre as portas do saber: deleitava-me lendo Hortênsio, diz o bispo, as palavras acendiam em mim o desejo de abraçar a própria sabedoria. Contudo, a admiração por Cícero devia-se ao fato de não conhecer os ensinamentos de Paulo e as Sagradas Escrituras. Prova disso quando afirma: como ardia, Deus meu, como ardia em desejos de voar das coisas terrenas para Vós; em Vós está a sabedoria; como me magoava no meio de tão grande orador não encontrar o nome de Cristo (Agostinho, 2007: 44). 
No entanto, o que importa destacar desse comentário não é o fato de Cícero ter conduzido Agostinho às portas do saber, mas, sobretudo, como a leitura da principal obra política do jurisconsulto romano, De re publica, o leva a desenvolver uma reflexão crítica desta forma de governo com base na sua concepção transpolítica da ética. 
Para o bispo, a república tinha o mérito de assentar-se na virtude dos cidadãos fazendo com que os grupos sociais que a integram (patrícios e plebeus) trabalhem em prol do bem comum. Tais virtudes, porém, são pagãs, não cristãs e, apesar de louvadas pelo autor, este não as considera verdadeiras, visto que não estão ordenadas em direção ao verdadeiro fim, em direção à verdadeira virtude: o amor, a caridade - dons divinos. 
Tal forma de governo teria se revelado melhor que o império com seus maus imperadores, mas insuficiente para atingir a civitas dei. No “elogio” à república, o comportamento moderado do cidadão romano, o bispo de Hipona cita a seguinte metáfora do estoico Cipião:
[...] assim como a cítara nas flautas, no campo e nas próprias vozes se deve guardar certa consonância de sons diferentes, sob pena de a mudança ou a discordância ferirem ouvidos educados, e tal consonância, graças a combinação dos mais dessemelhantes sons, se torne concorde e congruente, assim também igual tonalidade na ordem política admitida entre as classes alta, média e baixa (patrícios e plebeus) suscitava o congraçamento dos cidadãos. E aquilo que no canto os músicos chamam harmonia era na cidade a concórdia, o mais suave e estreito vínculo de consistência em toda república (Roma), que sem justiça não pode, em absoluto, sobreviver (grifo do autor) (Agostinho, 1990: III,21).
Contudo, segundo outra passagem de A cidade, em que se refere expressamente a Cícero e sua conhecida definição da república - é a coisa do povo baseada num laço jurídico e uma comunhão de interesses -, replica dizendo que não existe coisa do povo pelo fato de que tal definição se funda numa ideia errada de justiça: “dar a cada um o seu”. Uma justiça que, segundoestudiosos, ensina “os homens a visar ao benefício comum no uso de bens públicos e ao beneficio privado no uso dos bens privados” (Adverse, 2013: 31).
Para Agostinho, tal definição da justiça é mundana demais já que diz respeito à procura e satisfação de bens que são temporais e não leva em conta o mais importante o amor a Deus. E, sendo assim, declara: não existiu nunca república romana (numquam republicam fuisse romanam) porque ela não conhece a verdadeira justiça (divina). 
Ou seja, o problema da definição ciceroniana da república radica no fato de ser uma associação política incompleta, pois se assenta também numa visão incompleta da justiça. Para Agostinho a verdadeira justiça implica que se dê a Deus o merecido reconhecimento. Em razão de não estar fundada no amor de Deus, a república é imperfeita. Ela toma por virtude, uma virtude que é pagã, mundana demais, “dar a cada um o seu”, e não toma como regra a “mais acertada e curta virtude”, isto é, o “amor à ordem divina”, resumida na conhecida frase: “Ordenai-me a caridade” - a caridade sendo a responsável por nos conduzir a amar Deus acima de tudo e as demais criaturas em relação a Ele.
A partir desta crítica, Agostinho passa a elogiar definitivamente a civitas dei porque esta é fundada em Deus e na conquista de bens espirituais. No entanto, ao perceber a atitude extrema na avaliação da república, suaviza sua posição e propõe outra definição: povo é o conjunto de seres racionais unidos pela comunhão de objetos amados.
Ou seja, para avaliar as sociedades e governos, o grau de justiça, há de se examinar os valores que os animam e, assim sendo, afirma: “não podemos dizer que Roma não formou um povo, que seu governo não foi uma república, que não houve seres racionais unidos pela comunhão de objetos amados” (Agostinho, 1990: XIX,24); e isso, importa acrescentar, apesar de continuar acreditando que lhe faltou “algo”: o amor divino, fonte de verdadeira justiça. Por isso Agostinho jamais emprega para essa forma de governo, a república, a frase: feliz o povo que tem Deus por Senhor.
A “incompletude” do pensamento ciceroniano em relação ao pensamento agostiniano pode ser observada também em relação à concepção da lei. De fato, em De legibus, o jurisconsulto reconhece existir a “lei natural” (recta ratio) por cima da lei temporal ou humana, àquela o bispo denomina: lei eterna. Tal mudança de terminologia obedece, na verdade, à importância da providência divina a qual determina o dever dos homens, no campo do fazer e do não fazer, se estes desejam ser bons. Para Cícero, o fato da lei humana, as leis da república, estar em harmonia com a lei natural é suficiente para se chegar à virtude, que nos exige atos justos a todos. Isso, porém, não é suficiente para Agostinho já que existe uma “lei superior e mais secreta”, a lei eterna, a qual contempla todos os atos do homem, incluso os internos, única capaz de produzir a verdadeira virtude. Além do mais, tal lei é acompanhada de sanções que, diferentemente da lei natural ciceroniana, dizem respeito à salvação ou danação da alma: 
Devido ao fato de que os inocentes muitas vezes sofrem injustamente e que os atos dos homens malvados nem sempre são castigados aqui na terra, não pode conceber-se a lei eterna sem uma vida ulterior na qual os que se desviaram possam ser direcionados e assim restaurada a ordem perfeita da justiça. Implica a existência de um deus justo, providente e omnisciente, que recompensa e castiga a cada um de acordo com seus méritos (Fortin, 1992:187). 
Para a sociedade se aproximar da civitas dei, o autor dá uma série de “dicas” voltando-se para a sociabilidade natural do homem, baseada no estado de inocência ou pré-adânico, como forma de resgatar a graça divina. De fato, com base numa visão antropológica otimista, afirma, em A cidade, “depois da família, a casa, vem a cidade, a urbe, depois a Terra, o orbe, terceiro grau de sociedade que supõe todos esses estágios”. Acredita que esses distintos momentos pelos que passa a humanidade são importantes porque levam à tranquilitas temporalis: “colocar as coisas na sua ordem” (a paz dos justos), e que tais estágios de concórdia são possíveis pela comunhão de interesses que os anima: a paz na casa porque o pai comanda em benefício da esposa e filhos; a paz na cidade porque o governante comanda em benefício dos governados. Todos esses comandos são justos já que tem como fonte o amor divino (origem da boa sociabilidade). 
Tal entendimento, numa visão linear da história, até chegar a tranquilitas espiritualis - a plena serenidade da alma, depois do juízo final. Ou seja, tratar-se-ia de uma resposta que, como destacamos no início, se encontra fora da política, do governo dos homens. O ideal da sociedade humana, como ela deve ser, a cidade celeste, nunca é alcançado neste mundo, uma vez que a solução é transpolítica (Fortin, 1992, 204).
A visão idealista da cidade pregada pelo teólogo corresponde ao fim da época d’ouro cristã (Constantino e Teodósio I) e ao insucesso do Império Romano em conseguir formar uma comunidade política “à imagem de Deus”, ela corresponde a um tempo de desastre e decadência associado à traição das tradições religiosas (Markus, 1993: 89). 
A cidade de deus não é só uma crítica aos pagãos invasores, “bárbaros”, mas também um intento de restaurar a esperança no povo cristão ao colocar a cidade celeste como um topos, que, apesar de transcendental, funciona como crítica da ordem social e política tal qual é: incapaz de construir um estado cristão que cumpra as profecias. Uma situação, parafraseando Agostinho, em que o homem viverá feliz, não quererá nada de mal, não quererá nada daquilo que lhe falta, não lhe faltará nada daquilo que ele quer. Ou seja, a beatitudo ou felicidade da alma, que, segundo o filósofo francês Pascal, não é humana, mas teocêntrica porque “arrebata o homem para além de si mesmo” (Bulnois, 2003: 140).
A reflexão agostiniana, como destacamos, dá-se no contexto do milenar conflito que marca a Idade Média, o chamado: problema teológico político, em que dois poderes, temporal e espiritual. Tais poderes podem ser considerados complementares ou em relação de subordinação. Insistir neste “problema” é importante porque permitirá elucidar o que conveniou-se chamar de agostinismo político. Estamos diante de um problema amplo e complexo que merece, portanto, uma advertência: 
Problemas enormes àqueles do temporal e do espiritual na Idade Média. Problemas apaixonadamente debatidos, cujas soluções frequentemente dividem os historiadores já que colocam ao mesmo tempo em termos ‘políticos’ (superioridade de um poder sobre o outro) e ‘místico’ (impregnação do estado pelo espírito cristão). É necessário que neste tema, mais que em qualquer outro fiquemos limitado a uma olhada superficial (grifo nosso) (Fédou, 1971:68). 
Com base nesta observação, podemos dizer, resumidamente, existir duas saídas ou soluções possíveis a tal “problema”: a solução monista e a solução dualista. Esta consiste em aceitar diversi ordini, isto é, potestas e autoritas, cada uma soberana no seu domínio – o poder temporal ocupando-se dos assuntos civis e o espiritual dos religiosos. Enquanto aquela consiste na união de ambas as esferas, política e religiosa, as quais, por sua vez, podem revestir duas formas, a cesaro-papista (todo o poder ao imperador) e a papo-cesarista (todo o poder ao papa).
Com respeito à solução dualista, cumpre lembrar a posição do Papa Gelásio I (494), de inspiração pauliana, segundo a qual o mundo é governado por duas ordens complementares entre si, autoritas ou sacerdotium, potestas ou imperium, cada uma soberana na sua esfera, contudo, a vis diretiva ou espiritual toma a dianteira frente à vis fatual ou temporal, uma vez que a salvação da alma é mais importante que o gozo de bens temporais. Tratar-se-ia, seguindo o papa, de uma diarquia hierárquica:
Há duas ordens, augusto imperador, através das quais se governa soberanamente este mundo: a autoridade sagrada dos pontífices e poder real. Mas o poder dos sacerdotes é tão grandeque, no juízo final, terão que dar conta ao Senhor dos próprios reis. De fato, filho muito clemente, sabes muito bem que governas ao gênero humano por tua dignidade, mas que tens que baixar a cabeça com respeito diante dos prelados das coisas divinas [...] e sabes muito bem que não deves presidir a ordem religiosa, mas te submeter a ela (Muñoz, 2002: 240). 
A orientação é clara: o caráter sagrado da função imperial, um rei-sacerdote, deve ser rejeitado pelos cristãos. A função do imperador deve ficar limitada, principalmente, às funções da ordem pública e dos bens temporais que ficam confiados ao seu cuidado. 
Posição que retoma a de Agostinho, uma vez que do movimento pendular da civitas hominis (entre a cidade celeste e pecaminosa) é possível uma complementaridade de ambos os poderes, espiritual e temporal: os bons imperadores romanos. Em reforço desta posição podemos trazer a opinião do historiador Bernard Landry, em L’ idée de chrétientè chez les scoclastiques du XIII, segundo a qual para Agostinho: o papa possui duas espadas, a espiritual e a temporal, e se conserva uma e confia a outra ao imperador é porque quer consagrar-se totalmente a sua função religiosa (Derathé, 1991: 39). 
A relação em exame pode ser também entendida como um “jogo de espelhos” no qual um deles tende a assumir prerrogativas do outro. É a interpretação do historiador Marc Bloch, em Os reis taumaturgos, segundo a qual a Igreja, com o império, se estatiza (centralização e racionalização burocrática) ou, estado se eclesiastiza (sacralização e ritualização de procedimentos). Exemplo da primeira, “estatização da igreja”, basta lembrar o Concílio de Nicéia (325), durante o reinado de Constantino, que concede à Igreja Católica uma estrutura de poder parecida com a do império. Exemplo da segunda, “cristianização do estado”, os impérios: carolíngio e otonida (séculos IX -X).
Além do mais, a partir da solução dualista fica incorporado um axioma segundo o qual: “cada um deve submeter-se às autoridades constituídas, porque não há autoridade que não venha de Deus”, ou seja, a necessária aceitação da submissão ao poder secular, mas ao mesmo tempo o reconhecimento da transcendência do poder divino (Bulnois: 2003, 135). 
A clara orientação do papa Gelásio I no sentido de dois poderes complementares deu lugar, no decorrer do tempo, a duas interpretações mais restritas: o monismo “cesaro-papista” e, até dogmática, o monismo “papo-cesarista”, que procura afirmar a total supremacia do poder clerical sobre o laico - simples agente e servidor do primeiro em relação aos assuntos deste mundo (Markus, 1993: 89). 
Em relação ao monismo “cesaro-papista”, dar ao imperador o que é do papa, o poder temporal tomando a dianteira frente ao poder religioso, o poder do papa sendo absorvido pelo imperador, podemos citar o Império Carolíngio (Carlus Magnus: 747-814) e o Sacro Império Romano Germânico (Othon I: 962-973). Em ambos os casos, os príncipes são ungidos pelos papas, que permanecem submetidos através do juramento de fidelidade em troca de proteção. Trata da superioridade da potestas imperial sobre a auctoritas pontifícia. O rei dos carolíngios e otonidas projetando para si o inaugurado por Constantino e Teodósio I - bons exemplos de imperadores cristãos. 
As monarquias medievais carolíngia e otonida podem ser consideradas exemplos em que a sociedade é identificada à cristandade, em que os assuntos eclesiásticos invadem o domínio secular, a “cristianização do estado”, cabendo aos reis, além de assegurar a ordem pública, cumprir obrigações que dizem respeito à manutenção da religião: combater infiéis, castigar hereges, punir crimes contra a fé (Magalhães, 2008: 40). Carlos Magno e Othon, sobretudo o primeiro, apresentando-se como os “protetores do papado”, expressão mais acabada de monarquia medieval que, na sua relação com o papa, se refere a ele como “seu senhor e protetor” e adota uma atitude de independência e até mesmo de superioridade diante dele (Brion, 2008: 44). 
No entanto, é principalmente a solução monista, “papo-cesarista”, que interessa, uma vez que os escritos do bispo ficaram atrelados ao chamado agostinismo político: a exploração ideológica pela Santa Sé para justificar o poder absoluto do papa diante do poder temporal. Tal “adulteração” de Agostinho pode ser constatada na época de papas todo-poderosos (Gregório VII, Inocêncio II, III, IV e Gregório IX), que, durante dois séculos, representaram os momentos mais sombrios do cristianismo. 
A subordinação do imperador ao papa, dar ao papa o que é do imperador, tida ainda por muitos como a verdadeira herança agostiniana, significa que a Igreja Católica passa a encarnar, neste mundo, a civitas dei. Uma instituição que não tolera outras religiões a não ser a sua. Tal experiência faz que a Igreja não aceite a liberdade de consciência religiosa e lance mão da força física para converter aqueles que se opõem à fé cristã, servindo-se para isso do poder secular como meio de opressão. Uma situação em que o poder absoluto do poder eclesiástico precisa do poder secular para assentar seu total predomínio. 
Assim, a civitas dei: cidade invisível que se estende no passado, o presente, o futuro e rejeita toda identificação com qualquer instituição visível (Wolin, 2001: 141) é substituída por uma instituição concreta, a Santa Sé, que diz ser a imagem real da cidade celeste. A pretensão papal de uma autoridade única tanto na esfera civil quanto eclesiástica (extra ecclesiam nulla salus), sendo atribuída à obra do bispo de Hipona: a chamada plenitude do poder encontra respaldo em formulações de Agostinho que compreendiam a ideia de uma escala, na qual os seres inferiores se reportariam aos superiores e a ordem sobrenatural (representada pela Santa Sé) se encontraria acima da natural (Magalhães, 2008: 40). E ainda, como exemplo de agostinismo político, a opinião de um pensador desta corrente - o teólogo Hugues de Saint-Victor (século XIII):
Como, no firmamento, o sol é a origem de toda luz, o papa o é, na sociedade humana, a origem de toda autoridade; dele, como acontece nos rios, emanam todos os poderes dos bispos e suas dioceses, a jurisdição do imperador sobre o gênero humano e aquela dos reis em seus reinos. A ele pertence o poder espiritual, e dar existência ao poder terrestre, e de julgá-lo se é considerado culpado (Derathé, 1992: 39-40).
A posição do teólogo francês encontra eco na opinião de outros autores da época que defendem ser a Igreja representante de Deus, da verdade, da beatitude e da justiça, e ser a inserção do vicário de Cristo na origem da autoridade dos príncipes e reis a afirmação de que o homem deve obedecer apenas a Deus. 
Tal entendimento contrasta com a opinião de outros estudiosos discordantes da ideia dos escritos do bispo de Hipona poderem ser reduzidos ao agostinismo político - ao uso ideológico feito pela Santa Sé:
A tendência da Igreja absorver o Estado tem sido vista como o legado mais importante de Agostinho ao pensamento político da Idade Média. Porém, este “agostinismo político” não faz parte de nenhuma maneira do pensamento de Agostinho sobre a natureza da sociedade e da política (Markus, 1993:110).
Das situações em que o poder laico é totalmente absorvido pelo papa, o imperador vassalo da Igreja, cumpre lembrar certos eventos que acontecem, aliás, durante o pontificado dos papas citados - a “Reforma Gregoriana” (1049-54); as “Investiduras” (1075-1112); as “Cruzadas” (1095-1291); a “Inquisição” (1184); as “Indulgências” (1190); o “Purgatório” (que atinge seu auge no século XII); e o “Concílio Ecumênico de Latrão IV” (1215). Este último representou um momento de apogeu da autoridade papal, em que a Igreja Católica afirma sua hegemonia em toda a cristandade - um Estado Pontifício -, baseado num sistema hierocrático, em que o poder é concentrado no sumo pontífice, como defende o papa Inocêncio III, o “vicário de Cristo”, que advoga a plenitude potetatis diante do poder do imperador. [5: O desencadeamento das cruzadas, em particular a Quarta cruzada (a Jerusalém),sendo justificado pela vinda próxima do Anticristo que devia ser precedida, nos últimos tempos, por conquistas bem sucedidas e um estada dos “santos” em Jerusalém (Lécrivain, 2003: 150). ]
Tais exemplos, a parte “obscura da Idade Média” (Le Goff, 2007: 18), ilustram a infeliz fortuna que teve a obra de Agostinho: a Igreja Católica que se arroga a chave do reino celestial e a única mediadora das coisas terrenas e divinas. Um maudit legado, o agostinismo político, bem distante do que, acreditamos, foi a intenção do autor: a defesa irrestrita de uma moral, baseada em preceitos religiosos, que contribui para alcançar a serenidade da alma no além. 
As comunidades políticas concretas podendo contribuir para aproximar-se desse ideal - os bons imperadores e os cidadãos virtuosos da república - ou afastar-se dela - os maus ou ímpios imperadores. Dois tipos de governo, império e república, apesar desta última lhe faltar “algo”: a mais acertada e curta virtude - o amor divino. 
Tal entendimento, para concluir, faz com que a ética agostiniana seja transpolítica por ser fundada numa moral autosuficiente, o cristianismo, em que os governos dos homens se mostram aquém da salvação da alma (apesar dos bons imperadores e dos cidadãos virtuosos da república). Tal postura mostrando também a fraqueza moral e política do cristianismo, uma vez que para ambos o verdadeiro propósito desta vida e deste mundo encontra-se em outro mundo (a civitas dei) (MacIntyre: 1994: 148). e isso em contraste com outros autores segundo o qual o “amor a Deus” (Agostinho) é no plano ético, da conduta humana, comparável ao princípio utilitarista ou ao imperativo Kantiano (Ricoeur, 2012: 9). 
referências
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