Prévia do material em texto
REGULAMENTAÇÃO DA FAMÍLIA MULTIESPÉCIE A FAMÍLIA FORMADA POR ANIMAIS DOMÉSTICOS E SEUS TUTORES Juliana Alves Leonardo Felipe da Rosa RESUMO O presente trabalho discute a inclusão de animais de estimação como membros das famílias humanas, abordando aspectos legais e sociais dessa nova configuração familiar. Antigamente, animais eram vistos como objetos de direitos, que com o tempo, houve a mudança de percepção, reconhecendo os animais como seres sencientes. Nos últimos anos, os movimentos de direitos humanos abriram caminho para a defesa dos direitos dos animais. Sendo assim, a família multiespécie é definida como aquela formada por humanos e seus animais de estimação, baseada em vínculos afetivos, tendo como percepção jurídica o Projeto de Lei 179/23 que propõe direitos como guarda, convivência e pensão alimentícia para animais de estimação, visando reconhecer os animais como membros da família e garantir- lhes proteção legal. A evolução do direito das famílias destaca a dignidade humana e a proteção aos animais. Embora a dignidade humana seja exclusiva aos seres humanos, há um esforço para proteger os animais sem comprometer esse princípio constitucional de dignidade. Algumas mudanças legais introduziram conceitos como divórcio, união estável e família monoparental, evoluindo para incluir novas configurações familiares, como a família mosaico, formada por membros de diferentes relações anteriores. A inclusão dos animais como membros da família traz possíveis efeitos legais, como obrigação alimentar e sucessão, trazendo o debate sobre o status jurídico dos animais a ser considerado como propriedade viva e com interesses próprios. Há de se ressaltar que a jurisprudência brasileira e catarinense poderá reconhecer legalmente a guarda e convivência dos animais de estimação, uma vez que há a tendência crescente dos animais de estimação serem vistos e aceitos como membros das famílias que buscam uma proteção legal mais "humana" e digna. Por fim, espera-se que as relações entre humanos e animais sejam tuteladas pelo Direito de forma específica e coerente. Palavras chaves: animais, estimação, família, direitos, sociedade, afeto, evolução, humanos. ABSTRACT This paper discusses the inclusion of pets as members of human families, addressing the legal and social aspects of this new family configuration. In the past, animals were seen as objects of rights, but over time, perceptions have changed, recognizing animals as sentient beings. In recent years, human rights movements have paved the way for the defense of animal rights. As such, the multi-species family is defined as one formed by humans and their pets, based on affective bonds, with Bill 179/23 as a legal perception, proposing rights such as custody, cohabitation and alimony for pets, with the aim of recognizing animals as family members and guaranteeing them legal protection. The evolution of family law highlights human dignity and the protection of animals. Although human dignity is exclusive to human beings, there is an effort to protect animals without compromising this constitutional principle of dignity. Some legal changes have introduced concepts such as divorce, stable unions and single-parent families, evolving to include new family configurations, such as the mosaic family, formed by members of different previous relationships. The inclusion of animals as members of the family has possible legal effects, such as maintenance obligations and inheritance, leading to debate about the legal status of animals as living property with their own interests. It should be noted that Brazilian and Santa Catarina jurisprudence may legally recognize the custody and cohabitation of pets, since there is a growing tendency for pets to be seen and accepted as members of families seeking more “humane” and dignified legal protection. Finally, it is hoped that relationships between humans and animals will be protected by the law in a specific and coherent way. Keywords: animals, pets, family, rights, society, affection, evolution, humans. 1 INTRODUÇÃO AO TEMA Em tempos mais antigos, os animais já foram compreendidos como objetos de direitos. Entretanto, não dependeu de uma compreensão limitada das suas capacidades para cognição e sensação, mas repousava no forte sentido de que, sem a domesticação, os seres humanos não poderiam assegurar seu próprio avanço. Partindo desta premissa, podemos afirmar que as reivindicações atuais para direitos dos animais deveriam assentar na alegação de que o que os animais compartilham com os seres humanos é mais importante do que aquilo que os separam. Esses elementos comuns justificariam, portanto, algum nível de proteção animal. Mais recentemente, os movimentos em favor dos direitos humanos que dominaram a cultura ocidental após a 2ª Guerra Mundial, terminaram por preparar uma estrada para a defesa de direitos básicos aos animais também. Diversos países, como a Áustria, a Alemanha e a Suíça indicam expressamente que os animais não são coisas, bem assim, outros como a França e a Nova Zelândia, vão mais além, indicando que os animais são seres sencientes, aqueles capazes de sentir e perceber através dos sentidos. Os animais de estimação ou pets desempenham um papel significativo na vida de várias pessoas, pelos mais variados motivos: acarretam benefícios econômicos aos médicos veterinários, donos de pet shops, indústria alimentícia e de outros produtos voltados aos animais; promovem engajamento social entre as pessoas, além de melhora no bem-estar físico e mental destes indivíduos; terminam por invocar uma ética de responsabilidade e cuidado, traço distintivo das relações familiares. Os animais de estimação, portanto, passaram a ser enxergados, inclusive pelo Judiciário, de outra maneira como na ocorrência de perdas por companhias aéreas, hipóteses de crueldades e também por lesões ou morte ocasionada por terceiros, ainda que de maneira culposa. Note-se, entretanto, que as discussões circulam no âmbito do direito penal e da responsabilidade civil. Mas foram a partir dessas situações que os aspectos legais da relação entre humanos e animais de estimação passaram a ser analisados com maior profundidade. Recentemente houve o reconhecimento da família multiespécie como entidade familiar e garante o direito de guarda, convivência e pensão alimentícia para animais de estimação. O texto apresentado pelo Projeto de Lei 179/23 do deputado Delegado Matheus Laiola (União), também prevê uma série de outros direitos para os pets. Segundo alguns profissionais da área, a legislação não consegue acompanhar os novos ritmos familiares, como é o caso da família multiespécie. Dessa forma, o projeto de lei é importante, pois garante maior proteção aos animais. Segundo o professor e advogado Natan Galves Santana os animais de estimação “São seres sencientes, ou seja, capazes de amar e de sofrer. Logo, é notória a relevância do mencionado projeto, visto que os animais estão sendo considerados membros da família e não apenas uma coisa”. Assim como Natan, outros profissionais observaram um aumento no número de decisões judiciais envolvendo animais e seres humanos, sobre temas como guarda, direito de visita e pensão alimentícia. Com a aprovação do projeto, os advogados preveem um impacto positivo na legislação brasileira. Diante do tema tratado no projeto, relacionado ao direito familiar, não haverá dúvida sobre a competência das Varas de Família para julgar as demandas envolvendo animais após o rompimento do vínculo conjugal, nem a necessidade de equiparação de outra norma jurídica aplicada aos filhos humanos. Para os especialistas do direito de família, a aprovação do texto demonstra uma evolução do direito brasileiro. Assim como em outros países que recentemente aderiram às propostas de inclusão dos animais domésticos na entidade familiar,está a Espanha, tendo aprovado uma legislação neste sentido. 2 PRINCÍPIOS DO DIREITO O Código Civil brasileiro de 1916 era fruto do individualismo liberal do século XVIII, sob influência do Código de Napoleão e, mais a fundo, de um prestígio da introspecção grega, de sorte haver uma preocupação maior com o indivíduo e com o sentido patrimonial dos direitos e, em plano secundário, com os direitos da personalidade e a dignidade da pessoa humana. Nesse momento, alguns afirmavam tratar-se o código civil da “Constituição do direito privado”. Esse papel sofreu, a pouco e pouco, uma série de adaptações em função das transformações pelas quais passou a sociedade, a economia e a política ao longo das décadas, de modo terem sido sentidos os fenômenos do “dirigismo contratual” (intervenção do Estado na economia), da “era dos estatutos” (como atenção às necessidades de uma sociedade heterogênea e carente de respostas rápidas) e, por consequência, da “descodificação” (substituição do monossistema pelo polissistema ou microssistemas de direito privado), sendo certo que a esta altura faltava unidade no sistema jurídico, pois cada microssistema possuía princípios orientadores próprios. Assim, como forma de se buscar uma unidade do sistema, a Constituição passa a exercer esse papel. Efetivamente, a CRFB/88 marca uma nova era no estudo jurídico e, em particular no Direito Civil, quando elege alguns valores como orientadores da interpretação, de sorte preocupar-se não só com o “ter”, mas também com o “ser”, assim: dignidade da pessoa humana, política nacional das relações de consumo, valorização social do trabalho, função social da propriedade, igualdade e proteção dos filhos, exercício não abusivo da atividade econômica (compatibilidade da iniciativa econômica privada com os valores extrapatrimoniais ou existenciais) entre outros. Como princípio fundamental da Constituição, a dignidade humana prevista no, art. 1º, III da CRFB/88, passa a ter uma interferência crucial nas relações do direito das famílias, de sorte que a própria instituição família dá lugar à dignificação humana, o quê, na disciplina anterior, era quase inconcebível. O caráter da família vem, a pouco e pouco, cedendo à dignificação do ser humano, porque o absolutismo monárquico combatido pela ideia de propriedade individual já sucumbiu, pois permite os efeitos negadores da filiação não geradas pelo matrimônio que resta ultrapassado pelo texto constitucional constante no art. 227, §6º da CRFB/88, uma vez que as relações familiares modernas apresentam uma complexidade desconhecida no passado (famílias monoparentais, união estável, relações homossexuais, etc.). Assim, em razão de uma série de fatores sociais, econômicos e jurídicos, o princípio da dignidade humana fundamentou o novo direito das famílias, de sorte surgirem corolários seus como os princípios da paternidade responsável e da afetividade, pois o afeto não é fruto da biologia, mas antes de sentimentos que geram efeitos sociais que não podem ser desprezados pelo direito, mais conhecida como a parentalidade socioafetiva. A afetividade não é petição de princípio, nem fato exclusivamente sociológico ou psicológico, tendo, portanto, fundamento constitucional originário na dignidade humana (art. 1º, III da CRFB/88) e na previsão do reconhecimento das espécies de entidades familiares (art. 226, §4º da CRFB/88), da proteção à criança e ao adolescente (art. 227 da CRFB/88) e da igualdade entre os filhos (art. 227, §6º da CRFB/88). Outrossim, o novo direito das famílias não se satisfaz apenas com as instituições já conhecidas e sedimentadas. Há uma exigência da participação responsável dos atores sociais na busca da dignidade do ser humano (art. 227 da CRFB/88), de maneira que nenhuma instituição pode servir de óbice à sua concretização, daí novas construções jurídicas como a guarda compartilhada. Em outras palavras, é imposto ao indivíduo o sacrifício de seus interesses individuais em função do coletivo, motivo pelo qual os pais compartilham a guarda pelo melhor interesse da criança e a responsabilidade dos pais pelo convívio como forma de possibilitar um desenvolvimento moral, psíquico e intelectual saudável aos filhos, como, de fato, é dever da família, da sociedade e do Estado colocar a criança e ao adolescente à salvo de toda forma de negligência e do afastamento da convivência parental. 3 EVOLUÇÃO DO DIREITO DAS FAMÍLIAS Quando a relação familiar se restringia à união de fato ou por casamento entre homem e mulher e, por consequência os filhos, utilizava-se a denominação “direito de família”. Contudo, como as relações humanas são complexas, em especial, no seio familiar, algumas alterações na família tradicional foram introduzidas. Entre essas modificações está o desquite (art. 315 do CC de 1916), instituto pelo qual haveria separação de fato, mas proibida a contração de novo casamento. Posteriormente, com a Lei 6.515/1977 (art. 24 e seguintes), introduziu-se o instituto do “divórcio” e revogou-se o “desquite” criando-se a “separação judicial”. A Lei do Divórcio permitia que a pessoa divorciada contraísse novo matrimônio, o que diminuiria o preconceito social, pois dissolvido o casamento válido, ou seja, terminada a sociedade conjugal (art. 1.571, inc. IV, §1º do CC de 2002). Entretanto, para se obter o divórcio era necessário a observância do prazo da separação judicial, o que causava uma série de consequências, pois os separados constituíam novas relações familiares de fato, as quais traziam severos efeitos sociais com a multiplicação dos casos de concubinato, filhos ilegítimos, preconceitos sociais, efeitos sucessórios, efeitos previdenciários etc. A partir da Constituição Federal de 1988 (art. 226 e seguintes), a legislação criou mecanismos jurídicos que facilitaram os casos de separação judicial e, em especial, de divórcio, bem como a “família monoparental” (art. 226, §4º, CRFB/88). Com o advento da Lei 8.971/1994, criada a partir do comando constitucional (art. 226, §§ 1º a 8º da CRFB/88), que regula o direito dos companheiros a alimentos e à sucessão, e a Lei 9.278/1996, regulamentada pelo art. 226, §3º da CRFB/88, as sociedades de fato constituídas por homem e mulher ganharam proteção legal especial, de sorte reconhecer a união estável entre homem e mulher e definir seus efeitos jurídicos. Não obstante, como o Direito é um fenômeno social, e como a sociedade está em constante mutação, novas relações familiares se formaram. Assim, homens e mulheres separados de fato, separados judicialmente ou divorciados, viúvos, ou, ainda, em casos extremos, os casados, foram se relacionando com pessoas fora das relações tradicionais e dessas relações geradas prole, de modo criar-se a “família mosaico” formada dos “meus”, dos “seus” e dos “nossos” filhos da relação atual e de passadas, além dos ex e atuais consortes ou conviventes. No mais recente movimento social familiar, a sociedade está construindo o conceito de “famílias multiespécies”, onde todos os atores anteriormente citados podem conviver em estado de família com seu animal de estimação, agora chamado de “ser” e seu dono, “tutor”, com efeitos jurídicos sendo construídos nas academias e tribunais com a fixação de alimentos, guarda e visitação e, quem sabe, no futuro, efeitos sucessórios para além da possibilidade do codicilo. Assim, modernamente, ao invés de “direito de família”, melhor se referir ao “direito das famílias”, de modo abranger todas as nuances dos fenômenos sociais. 4 FAMÍLIA MULTIESPÉCIE 4.1 As Famílias Não se pretende uma construção densa acerca da “família multiespécie”, pois existem obras especializadas de maior fundamentação científica, por enquanto, a fixação de um conceito básico como sendo suficiente. Nesse sentido, pode-se reafirmar que por “família multiespécie” é aquela formada pelo núcleo familiarhumano e seu animal de estimação (pet), desde que esteja presente o vínculo afetivo entre o humano e o animal. Delineado o conceito, resta averiguar se o conceito está em conformidade com a legislação para o direito da família e com os princípios constitucionais que deram origem a todo o ordenamento jurídico brasileiro e lhe servem de critério interpretativo. Assim, a Constituição de 1988 cuida da família com base nos seguintes dispositivos: dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CRFB/88); solidariedade social (art. 3º, I e art. 230 CRFB/88); isonomia entre homem e mulher e tratamento jurídico igualitário dos filhos (art. 5º, I, CRFB/88 e art. 227, §6º, CC, arts. 1.596 a 1.638); pluralidade familiar (art. 226, §4º, CRFB/88); proteção familiar (art. 227 CRFB/88); e, assistência familiar (art. 229, CRFB/88). Citados por José Afonso da Silva, os princípios fundamentais “constituem por assim dizer a síntese ou atriz de todas as restantes normas constitucionais, que àquelas podem ser direta ou indiretamente reconduzidas”. De maneira que, na lição de Jorge Miranda, a “ação imediata dos princípios consiste, em primeiro lugar, em funcionarem como critério de interpretação e de integração, pois são eles que dão coerência geral ao sistema”, de modo ressaltar sua função ordenadora. Assim, o princípio da dignidade humana é um fundamento da constituição brasileira que se dirige, exclusivamente, ao ser humano. Contudo, não há como estender o sentido de dignidade humana para animais, apesar de, em hipótese alguma, se negar proteção e assistência aos pets, mas aquela prevalece sobre este. De acordo como exposto, incorporar o animal ao seio familiar como membro deste e titular de direito à alimentos, guarda, visitação, sucessão etc., em especial, em detrimento da dignidade do ser humano extrapola o bom senso, sentido universal do Direito e direcionador hermenêutico. Limites razoáveis não são obstáculos ao desenvolvimento, mas mecanismos coibentes de reações violentas em sentido contrário das ações, como a Física ensina. Limite serve para evitar o confronto e não para cercear o direito. As relações sociais e a mente humana são complexas e férteis. Assim disse Murilo Mendes, “só não existe o que não pode ser imaginado”, pois, conforme a Filosofia, o que pode ser imaginado ou pensado, ganha consistência de realidade. Assim, ainda que seja no campo hipotético, como era a questão envolvendo pets, em pouco tempo se formará a família caleidoscópica, aquela tal qual o instrumento óptico constituído de um tubo e fragmentos de vidro colorido, os quais, mediante reflexo da luz nos espelhos inclinados, apresentam, a cada movimento, combinações variadas de efeito visual. Nessa alusão, se revelará as famílias em diversas nuances, dimensões e cores, conforme o movimento querido sem compromisso com a existência humana básica. Assim, também, no futuro e nesse passo multifacetado, as relações familiares, ora constituídas por seres humanos, ora por seres humanos e animais, ora por seres humanos e coisas e, quem sabe, um dia, sem o ser humano. 4.2 Projeto de Lei 179/23 Conforme o esclarecido, a família multiespécie é a comunidade formada por seres humanos e seus animais de estimação como entidade familiar. Animais de estimação são considerados aqueles selecionados para convívio com o ser humano por razões de afeto, assistência ou companhia. Como justificativa do projeto lei, frisa-se que “não se trata, evidentemente, de igualar filhos humanos e filhos não humanos ou de conferir-lhes os mesmos direitos”. O objetivo do projeto apresentado na câmara, é reconhecer que os animais de estimação também são considerados membros das famílias, merecendo a devida proteção nesse sentido. Entre as garantias previstas no texto do projeto, está o acesso dos animais de estimação à Justiça para defesa ou reparação de danos materiais, existenciais e morais aos seus direitos individuais e coletivos. Caberá ao tutor ou, na ausência ou impedimento deste, à Defensoria Pública e ao Ministério Público representar os animais em juízo, como também, o projeto apresenta diretrizes sobre aspectos sucessórios e o aumento de penas para crimes de maus-tratos contra os animais. Por outro lado, percebe-se uma resistência de uma parte da sociedade em reconhecer novas configurações familiares. A maior parte da sociedade brasileira ainda carrega a herança da família, cuja existência de papéis que os membros familiares realizavam já estavam preestabelecidos na sociedade onde estão inseridos. Podemos acrescentar que o surgimento de novos modelos de família, como a multiespécie, podem gerar dúvidas quanto aos conceitos tidos como absolutos e imutáveis. Algumas pessoas acreditam que haverá uma elevação dos animais, com os seres humanos em segundo plano. Se considerar esta afirmativa, o resultado seria a diminuição da procriação humana e a espécie humana entraria em extinção, já que há a substituição de filhos humanos para filhos não humanos. Mas, por outro ponto de vista, outras pessoas afirmam que os animais terão mais afeto, respeito e melhores condições de vida em comparação com outros seres humanos. Assim, implicaria em uma inversão de valores, que fará com que as pessoas tenham menos consideração (afeto e financeiro) com o outro ser humano, pois preferem tratar e ajudar os animais. De acordo com alguns especialistas, o desejo que as novas famílias almejam é reconhecimento e respeito, para que todas as pessoas consigam viver em harmonia, inclusive aquelas que aderiram às outras escolhas. 4.3 Conjecturas Jurídicas Da Inclusão Da Família Multiespécie Caso haja a admissão desta família, importará numa série de efeitos que o sistema jurídico brasileiro desconhece e, em análise profunda, veda sob o crivo da inconstitucionalidade. Uma primeira questão intrigante diz respeito à obrigação alimentar, de modo que, em tese, discutir-se-ia a possibilidade de prisão do tutor alimentante por inadimplência alimentar de pet alimentado. Noutro giro, quanto à visitação, a imposição de multas diárias aplicadas ao tutor visitador por não exercer o poder-dever de visitação ao pet. Quantos aos efeitos sucessórios, o codicilo, que hoje resolveria o problema, seria abandonado, de modo que o pet entraria no rol dos herdeiros ou legatários. E se herdeiro, necessário ou não? Se necessário, e a sucessão se der por via testamentária não citado o pet no instrumento, haverá nulidade da declaração de última vontade? E, dentre outros efeitos destas conjecturas, a possibilidade de o tutor requerer alimentos ao pet, pois se há relação familiar, há também os deveres familiares, entre os quais, a mútua assistência(!). Os efeitos são diversos e as possibilidades se multiplicam, os quais, a toda evidência, não trazem quase nenhum benefício à sociedade, visto que os dispositivos legais existentes, como a legislação de proteção aos animais, ou, o codicilo, para quem se preocupa com o futuro do pet no caso da ausência do tutor, são suficientes e satisfatórios. 5 DOUTRINAS E JURISPRUDÊNCIAS 5.1 Natureza Jurídica Dos Animais Domesticados No decurso da reflexão sobre os animais, sejam eles domésticos ou não, o primeiro pensamento direciona no sentido da celeuma sobre a natureza jurídica deles. Uma das lutas mais apaixonadas e persistentes do nosso tempo se revela na investigação sobre o status dos animais. Há quem os defenda a ponto de se opor a qualquer tipo de discriminação baseada na espécie animal e promover o veganismo, indo contra toda exploração e crueldade contra o reino animal. Há quem os vislumbre como propriedade e não como sujeitos de direito. Há ainda quem sustente que se deve outorgar aos animais em processo de extinção um estatuto básico e aqueles que enxergam a necessidade de que eles devem possuir um status jurídico próprio, que não seriam simples res, mas tampoucosujeitos, caracterizando, assim, uma terceira espécie. Alguma doutrina que abraça a modificação do status jurídico dos animais vale-se de uma analogia, no mínimo, interessante. Alegam que a manutenção do status dos animais de estimação como propriedade se vincula à consideração de uma inferioridade em relação aos humanos e, portanto, a ilegitimidade para uma igual proteção legal. Entretanto, ponderam que apesar de serem humanos, a lei já considerou negros, mulheres e crianças como propriedade no passado e a legislação foi transformada e adaptada de forma a proteger esses grupos até hoje considerados vulneráveis. Analogamente muitas crianças, sobretudo aquelas em tenra idade, os animais de estimação possuem necessidades das quais pode não ser capazes de expressar. Para defender o reconhecimento da personalidade dos animais, há uma corrente que propõe a criação de uma categoria denominada de propriedade viva, que leva em consideração o interesse próprio do animal em sua sobrevivência e felicidade. Em algum ponto, essa categoria iria se expandir para incluir todos os animais, além dos animais de estimação. A longo prazo, uma categoria ainda mais expansiva poderia envolver os animais como suas próprias entidades legais, completamente separados dos interesses de propriedade tradicionais com direito a personalidade jurídica. Essa corrente utiliza o argumento de que se a uma instituição pode ser reconhecida com uma personalidade jurídica, aos animais também deveriam ser dadas as mesmas prerrogativas. Ressalta-se, entretanto, que essa nova categoria incluiria alguns conceitos de propriedade tradicionais, mas que seria adaptado pelo poder legislativo de forma a assegurar o melhor interesse do animal. O que não se pode é insistir em uma classificação que permanecerá durante longo tempo, imutável e enraizada em ideias passadas, sem atentar para a própria evolução da sociedade. Ademais, note-se que, como bem explicitou Helena Telino, a qualificação do animal como mera res esbarra em três limites basilares. O primeiro deles seria a manifesta incompatibilidade entre o direito de propriedade e a proteção da sensibilidade animal: sendo protegido autonomamente, o animal é inclusive protegido contra o seu possuidor. A habilidade do animal em sentir prazer e dor, pode atribuir- lhes interesses e, nesse caso, a restrição da propriedade decorreria do próprio interesse do animal em salvaguardar sua integridade física e própria vida. Ninguém jamais cogitou que o direito de propriedade pudesse ser moderado em favor da própria coisa. O segundo ponto limitante se revela no reconhecimento legal decorrente da capacidade de sentir: não existe qualquer outra coisa que imponha ao seu possuidor uma obrigação legal de proporcionar uma existência digna, desviando qualquer sofrimento prescindível. A última barreira para uma classificação dos animais como coisas seria a percepção pós-moderna do animal pelo Direito, que englobaria novos dados e fatores, antes desconsideradores: o valor mercantil e financeiro do animal, agregado do seu valor afetivo, como já foi referido neste texto. 5.2 Da Jurisprudência Catarinense No tocante à guarda e às despesas dos animais de estimação, tem-se que a doutrina e a jurisprudência vêm superando a regulamentação estrita conferida aos animais de estimação, classificados como bens móveis (semoventes – art. 82 do CC) e sujeitos às regras do direito de propriedade (v.g., arts. 445, §2º e 1.313, inc. II do CC), conforme o Enunciado 11 do IBDFam, segundo o qual: "Na ação destinada a dissolver o casamento ou a união estável, pode o juiz disciplinar a custódia compartilhada do animal de estimação do casal". Os bens semoventes são bens móveis que possuem movimento próprio, tal como animais selvagens, domésticos ou domesticados, que pertençam ao domínio da Administração Pública e que se institui para atender a seus próprios objetivos ou para servir à produção de utilidades indispensáveis às necessidades coletivas. Assim porque, além de sencientes – seres vivos dotados de percepções sensoriais e necessidades biopsicológicas – semelhantes à dos animais racionais, devendo por isso ter o seu bem-estar considerado, conforme estabelece o tratado internacional Declaração Universal dos Direitos dos Animais – Unesco/ONU, Bruxelas/Bélgica, 27 de janeiro de 1978, do qual o Brasil é signatário: Art. 1º – Todos os animais nascem iguais diante da vida e têm o direito à existência. Art. 2º – a) Cada animal tem o direito ao respeito. b) O homem, enquanto espécie animal, não pode atribuir-se o direito de exterminar os outros animais ou explorá-los, violando este direito. Ele tem o dever de colocar a sua consciência a serviço dos outros animais. c) Cada animal tem o direito à consideração, à cura e à proteção do homem. Os animais de estimação ocupam lugar de relevo junto às famílias contemporâneas, inclusive face o vínculo afetivo constituído entre eles e os componentes do núcleo familiar, merecendo tratamento relativo à guarda e à convivência, portanto. 6 CONCLUSÃO Os relacionamentos entre pessoas e animais de estimação sofreram uma grande mutação nos últimos anos. Atualmente, existem lugares no mundo em que os lares possuem mais cães e/ou animais do que crianças e adolescentes. Observada a formação do conceito “das famílias” como fato social regulado pelo Direito, registrou-se o surgimento de movimento no sentido de defesa da “família multiespécie” e, como dedução deste trabalho, da “família caleidoscópica”. Neste sentido, concebe-se como “família multiespécie” aquela constituída pelo núcleo familiar humano e seu animal de estimação, desde que presente o vínculo afetivo entre o humano e o animal, e a “família caleidoscópica”, aquela ora constituída por seres humanos, ora por seres humanos e animais, ora por seres humanos e coisas e, quem sabe, um dia, sem o ser humano. Nesse sentido, o conceito de “família multiespécie” seria inconstitucional, bem como qualquer norma que afronte a dignidade humana em relação à proteção de outros bens ou direitos, sem negar-se a proteção aos animais. E, acrescenta-se, por fazer parte do núcleo rígido da Constituição brasileira, a dignidade humana e a família formada por humanos servem de limite às famílias multiespécies, salvo se novo comando constitucional emergir do poder constituinte. No entanto, é preciso um reparo essencial, antes que os mais corajosos difundam as medidas dessa natureza, uma vez que as relações das famílias exigem uma sensibilidade muito acurada, pois essas medidas podem ter um efeito colateral complexo, qual seja a completa impossibilidade de uma saudável convivência familiar futura entre seres humanos, razão do Estado e da vida em sociedade. Muito embora a legislação apresente um grande abismo em relação à visão da sociedade sobre os animais de estimação na atualidade, pode-se dizer que pouco a pouco, o judiciário vem aceitando a ideia de que os animais de estimação merecem uma proteção legal mais “humana” e digna. Ainda que essa comparação deva ser vista com alguma cautela, pode-se dizer que, em linhas gerais, o crescimento dos direitos dos animais de estimação seguiu um caminho similar ao desenvolvimento do direito das crianças, que deixaram de ser vistos com objetos, propriedade dos pais e passaram a ser sujeitos de direito. A relação entre um humano e seu pet está muito mais próxima da relação de um pai com seu filho, do que da relação entre uma pessoa e o seu computador ou a sua câmera fotográfica. É inegável a importância alcançada pelos animais de estimação e a sua figuração entre os atores que compõem as entidades familiares pós-modernas. Assim, parece que o Direito das Famílias, se socorrendo de elementos de outros ramos do direito, deve começar a estender o olhar para além das suas protagonistas familiares humanos usuais (cônjuges, companheiros,pais e filhos), e a acomodar e proteger os interesses do bem-estar dos pets que compartilham suas vidas com a família humana e são de alguma forma afetados pelo fenômeno da fragmentação do vínculo conjugal ou de convivência. Espera-se, portanto, que em um futuro não distante, as relações entre as pessoas e os membros não humanos das entidades familiares possam ser tuteladas pelo Direito de forma específica e coerente, precisa e harmonizada com o atual aspecto dessas vinculações. A ideia é um afastamento da visão de propriedade pura e simples, mas também se levando em consideração todas as particularidades e originalidades de uma relação entre animais e seres humanos. REFERÊNCIAS AGÊNCIA CÂMARA DE NOTÍCIAS. Projeto regulamenta a família multiespécie, formada por animais domésticos e seus tutores. Publicado em 28/02/2023. Acessado em 25/02/2025. DE REZENDE, Joubert Rodrigues. Família Multiespécie: Uma leitura caleidoscópica. Publicado em 22/02/2024. Acessado em 26/02/2025. ANUNCIAÇÃO, Débora. Projeto regula família multiespécie e prevê pensão alimentícia para pets. Publicado em 02/03/2023. Acessado em 28/02/2025. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 1997. REZENDE, Joubert Rodrigues de. Direito à visita ou poder-dever de visitar: o princípio da afetividade como orientação dignificante no Direito de Família humanizado. In: Revista Brasileira de Direito de Família, n. 28, IBDFAM/SÍNTESE, fev-mar 2005, p. 150-160. RAMOS, Carmem Lúcia Silveira et al (org.). Diálogos sobre direito civil: construindo a racionalidade contemporânea. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Os contornos jurídicos da responsabilidade afetiva na relação entre pais e filhos – além da obrigação legal de caráter material. In: HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes (coord.). A outra face do Poder Judiciário decisões inovadoras e mudanças de paradigmas. Del Rey: Belo Horizonte, 2005. HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Pressupostos, elementos e limites do dever de indenizar por abandono afetivo. Acessado em 05/03/2025. MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada. São Paulo: Atlas, 2002, p. 128-129. BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 154. BERMUDES, Sérgio. Introdução ao processo civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. xi. NEVES, Helena Telino. “A controversa definição da natureza jurídica dos animais”, cit., pp. 87-88.