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Da reforma à sustentabilidade urbana: por um novo modelo de desenvolvimento para São Paulo Nabil Bonduki Nabil Bonduki é docente e pesquisador da Universidade de São Paulo desde 1986. Foi professor de história do urbanismo na EESC-USP (1986-2005) e é professor de planejamento urbano na FAU-USP. Foi Superintendente de Habitação Popular da Prefeitura de São Paulo (1989-92), vereador no município de São Paulo (2001-4), foi relator do Plano Diretor Estratégico na Câmara Municipal (2002-4). Foi consultor de política urbana e habitação em vários municípios e coordenador técnico da consultoria do Plano Nacional de Habitação (2007- 9). É autor de vários livros, como “Origens da Habitação Social no Brasil” (Estação Liberdade, 4ª Edição, 2004) e “Intervenções Urbanas em Centros Históricos” (Iphan/Monumenta, 2012). Atualmente é Secretário de Recursos Hídricos e Ambiente Urbano do Ministério do Meio Ambiente (2011-2012). Resumo Este artigo objetiva mostrar a necessidade de alteração no modelo de gestão de São Paulo, na perspectiva de construir um caminho para garantir um desenvolvimento urbano sustentável para a cidade. Procurar mostrar que essa perspectiva não é um processo simples e rápido, mas que precisa ser construído imediatamente, exigindo persistência e continuidade, com forte apoio da sociedade. O modelo de crescimento e a gestão de políticas públicas na cidade, que há décadas predomina, é insustentável. Baseado, entre outros aspectos, na expansão ilimitada da mancha urbana, na prioridade para o automóvel, na excessiva impermeabilização do solo, no esvaziamento demográfico nas áreas consolidadas, na gestão irresponsável dos resíduos sólidos e na formação de periferias carentes de infra-estrutura, serviços e empregos, a maneira como a cidade vem se “desenvolvendo” já apresenta sinais claros de colapso, observados na situação caótica que já se nota em vários aspectos da gestão urbana. Sem pretender apresentar um programa acabado de sustentabidade para a cidade, busca-se apontar alternativas consistentes que dialogam com a agenda de sustentabilidade ambiental urbana que vem sendo formulada pelo Ministério do Meio Ambiente através da Secretaria do Ambiente Urbano e que se soma aos princípios e propostas presentes no Plano Diretor da cidade, aprovado em 2002, baseados na agenda da Reforma Urbana. Uma agenda de sustentabilidade para as cidades brasileiras O desafio da sustentabilidade urbana passou a ocupar um papel de destaque dentre os eixos estratégicos do Ministério do Meio Ambiente. Não é sem tempo pois, desde os anos 1970, a maioria da população brasileira é urbana. De acordo com o Censo de 2010, cerca de 165 milhões de pessoas, ou seja, 85% dos brasileiros, vivem em cidades e sua qualidade de vida depende, em boa medida, de políticas públicas, de diferentes setores da administração, que levem em conta os aspectos ambientais. Embora temas como o controle ao desmatamento, a aprovação de um código florestal capaz de garantir a recomposição das áreas devastadas, a proteção da biodiversidade, dos biomas e dos recursos hídricos, o patrimônio genético, as mudanças climáticas e o estímulo à agricultura familiar sustentável, combinada com o combate à miséria no campo, são temas prioritários na agenda ambiental, esta não pode mais ignorar a chamada agenda “marrom” e a questão da sustentabilidade urbana. É indiscutível que o lixo e esgoto são dois dos principais problemas ambientais do país. Outras questões urbanas, como a qualidade do ar, profundamente vinculada aos modais de mobilidade e às fontes de energia por eles utilizados, o manejo das águas pluviais e a drenagem urbana, a ocupação dos mananciais e das Áreas de Proteção Permanente, com fortes impactos na ocorrência de desastres naturais, a preservação dos espaços verdes e a construção sustentável são exemplos de forte relação entre temas ambientais e as políticas urbanas. Nessa agenda relacionada com a sustentabilidade urbana, alguns temas estão na ordem do dia, como a implementação da Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), aprovada através da Lei 12305/10 depois de vinte anos de tramitação no Congresso Nacional. São Paulo, como a principal cidade brasileira, precisa se colocar como referencia de uma nova forma de enfrentar a questão, em especial implantar de forma massiva a coleta seletiva, a logística reversa e valorização dos resíduos úmidos, objetivos estabelecidos por essa lei, que são desafios para o setor privado, para o poder público municipal e para a sociedade em geral, visto que requer uma mudança de hábitos, de produção e de consumo. Os desafios da sustentabilidade urbana não formam uma agenda que se contrapõe ao ideário da reforma urbana, embora esta nunca tenha enfatizado a perspectiva ambiental. Pelo contrário, essas agendas são profundamente relacionadas e complementares e devem ser articuladas, até porque sem reforma urbana não existe possibilidade de se alcançar a sustentabilidade. O processo de ocupação habitacional das APPs urbanas, de mananciais e de outras áreas de proteção ambiental é uma das conseqüências da falta de acesso à terra urbana que atinge parte significativa da população pobre, aspecto que está na origem do movimento da reforma urbana. Parte das causas dos eventos extremos e desastres naturais que ocorrem cada vez com maior freqüência nas cidades brasileiras e em São Paulo – fenômenos relacionados com a questão ambiental – somente serão enfrentados em sua profundidade quando for garantida terra urbanizada e bem localizada para a produção de habitação social. Outra grave questão ambiental que afeta os grandes centros, a poluição atmosférica e sonora, resulta, além da dificuldade e morosidade da implementação do programa de redução de poluentes em motocicletas e caminhões, da prioridade que tem sido dada ao automóvel, um dos grandes vilões de ambiente urbano. Com forte impacto na saúde e nas emissões de CO2, a opção pelos automóveis exige, ainda, um enorme espaço viário impermeável, estacionamentos, garagens em subsolo que provocam grandes impactos ambientais. A priorização para o transporte coletivo, que integra a pauta da reforma urbana, é um dos aspectos centrais da mobilidade sustentável que introduz ainda outros elementos como infra-estrutura e segurança para ciclistas, pedestres e pessoas com acessibilidade limitada. Em todos os eixos de sustentabilidade urbana, coloca-se a necessidade de mudança cultural e de hábitos, chave de um processo de transformação que requer uma forte mobilização da sociedade, que apenas poderá ocorrer a partir da implementação de políticas públicas que apontem para alternativas ao modo de vida tão firmemente estruturado na cidade. Urbanismo, sustentabilidade e utopia: um sopro de esperança para São Paulo Desde as cidades ideais do Renascimento, passando pelo socialismo utópico de Owen e Fourrier do início do século XIX e chegando ao urbanismo moderno, das vanguardas à Carta de Atenas e à Brasília, sonhar com ambientes habitáveis livres da desigualdade, com equilíbrio entre o ambiente construído e a natureza, onde pudesse reinar a paz, a solidariedade, a igualdade e a cidadania, sempre foi o motor que impulsionou o debate de idéias novas para impulsionar o desenvolvimento urbano. Nessa trajetória, o urbanismo sempre caminhou na corda bamba, entre ser prática profissional, disciplina científica ou utopia e, nesse equilíbrio instável, gerou idéias, propostas, sonhos e realizações, que impulsionaram novos horizontes urbanos. No final do século XX, porém, parecia que as energias utópicas de caráter socialistas tinham desaparecido do imaginário. O urbanismo foi dominado por uma espécie de marketing, que tentava vender cidades e seus edifícios e lugares destacados como se tudo estivessea serviço do mercado. O desencanto com ideologias transformadoras que empolgaram várias gerações desde o iluminismo, da queda da Bastilha e da Revolução Russa, a predominância do materialismo consumista, o vigor do mercado, regido pelas idéias neoliberais, a falsa crença de que a ciência poderia prever e determinar tudo o que irá acontecer, entre outros aspectos, levaram até mesmo os urbanistas progressistas a uma espécie de apagão de energias utópicas. Passou a vigorar uma descrença de que seria possível reverter, com ações coletivas, processos em curso, levando o cidadão a buscar em soluções individuais as respostas para as questões que os preocupam, situação que é particularmente forte no Brasil. O risco de violência é enfrentado com segregação e confinamento; a precariedade do transporte coletivo com o automóvel individual; a depredação ambiental com a criação de uns microcosmos de verde junto ao condomínio; a poluição do ar, com fins de semana na serra ou a beira mar; a água mal tratada com garrafas pet de mineral. Soluções insuficientes e que apenas os estratos altos e médios podiam ter acesso. Para o restante da população, restava a barbárie. A criação de guetos protegidos dos males da metrópole (condomínios fechados, carros blindados, shoppings policiados, ambientes vigiados) parecia ser a única saída para superar um ambiente urbano pouco acolhedor e agressivo. Nessas propostas, o meio ambiente vinha (e vem) sendo utilizado como parte dessa estratégia de marketing que vendia os elementos da natureza como mercadoria, muitas vezes sem atentar que a reprodução de um processo tradicional de expansão urbana era totalmente incompatível com a sustentabilidade. Este clima modificou-se na primeira década do século XXI, embora mais do que nunca o meio ambiente tenha se transformado em mimo mercadológico. O 11 de setembro de 2001 representou, simbolicamente, a ruína da falsa noção de segurança que os guetos estritamente vigiados pareciam garantir. A onda de assaltos a condomínios e shoppings centers, que se tornou rotina em São Paulo, mostra que a lógica da segregação não garante segurança. A crise mundial do capitalismo de 2008/9 expôs o que já sabíamos, ou seja, que o mercado não pode correr solto, sem uma forte presença reguladora do Estado, o que desmontou os que, no Brasil, ainda defendiam uma maior desregulamentação dos processos urbanos. Os desastres climáticos, por sua vez, vêm mostrando que o “desenvolvimento a qualquer custo”, a orgia consumista e o modo de vida vigente no país, com os padrões impostos pelo mercado e assumidos pela classe média, são insustentáveis no futuro próximo. Novas esperanças ressurgiram. A criação de novas redes globais focadas na transformação, como o Fórum Social Mundial, com sua máxima “Um novo mundo é possível” e a articulação de pessoas através da internet mostram que a sociedade global dá sinais de vitalidade e de inconformismo. Superando formas clássicas de organização, novas redes mobilizam a sociedade, articulando cidadãos antes isolados, e lançam outros jeitos de construir desejos coletivos. De diferentes maneiras, recupera-se o vigor utópico, elemento indispensável para o renascimento do Urbanismo. Pode se dizer que as novas utopias estão profundamente associadas a forma urbanas que buscam um novo equilíbrio homem, assentamentos humanos e meio ambiente. Se, no século XIX e XX, a cidade utópica estava vinculada à busca de igualdade, a superação das precárias condições de moradia e vida urbana da nascente classe operária, no início do século XXI, o sonho dos que não se conformam com a atual situação das cidades tem se dirigido, abandonando ou não os objetivos anteriores, para novos temas, em geral relacionados com um ambiente urbano sustentável e democrático. No Brasil, onde a necessidade de incluir dezenas de milhões de cidadãos excluídos ainda está na ordem do dia, busca-se gerar um processo de desenvolvimento capaz de se equilibrar entre o crescimento, a inclusão e a preservação dos recursos naturais. Se, no passado, utopia se relacionou com o Urbanismo, hoje a noção está vinculada a novos modos de produzir e consumir, baseados no conceito de sustentabildade. A crença de que é possível alterar o atual modelo é indispensável para que se forme um desejo coletivo e mobilização por mudanças. Isto porque é comum ouvir pessoas comuns e, até mesmo, alguns especialistas afirmarem que as grandes metrópoles, sobretudo nos países pobres, não tem jeito. Em São Paulo, é muito comum, particularmente nos dias em que enchentes ou os congestionamentos monstros paralisam a cidade e apavoram os cidadãos, o desalento com a possibilidade das coisas poderem melhorar. Não por outra razão, cerca de 55% dos paulistanos, porcentagem que chegou a 65% em 1999, afirma que deixaria a cidade se pudesse. Superar esta visão pessimista é essencial para que a sociedade possa se engajar na construção de alternativas. Para isto, é necessário recuperar as energias utópicas, uma dimensão passional capaz de convencer os cidadãos que eles podem alterar processos que parecem imutáveis. Somente quando a população da cidade acreditar que é possível uma substancial alteração do quadro atual, será possível construir este caminho, que pode parecer utópico, mas que está ao nosso alcance, desde que se criem consensos sobre alguns aspectos fundamentais da vida da cidade e que se articule o poder público, autônomo dos interesses particulares, para coordenar este processo transformador. Se fosse simples e fácil, não seria uma utopia. Neste artigo, busca-se abrir um debate sobre alternativas para o desenvolvimento urbano sustentável de São Paulo. Ele somente pode ser construído através de um processo de planejamento participativo, onde o poder público tem um papel fundamental, mas que exige o engajamento da sociedade. Não é fácil enfrentar um modelo urbanístico e um modo de vida que sustentam interesses econômicos sólidos; apenas se a sociedade tomar consciência de que eles são insustentáveis, ele poderá ser revertido. A metrópole que temos São Paulo, assim como as outras metrópoles brasileiras, não pode continuar adotando o modelo urbano insustentável que hoje vigora. A cidade, no início do século XXI, caminha para o caos e apenas se alterar este modelo poder-se-á ter esperança de um futuro melhor. A desigualdade urbana, funcional e social se aprofunda, gerando uma cidade partida e segregada. A mancha urbana se expande horizontalmente destruindo as áreas de proteção ambiental e gerando, por um lado, assentamentos precários distantes e carentes de infra-estrutura e, de outro, condomínios fechados de média e alta renda, acessíveis apenas através de automóvel. A migração diminuiu e a população cresceu pouco a partir de 1990 (cerca de 0,7% ao ano no município de São Paulo e 1,65% na região metropolitana nos últimos vinte anos), mas de uma forma muito desigual: as áreas melhor urbanizadas perderam população, enquanto que as regiões mais distantes, as áreas de interesse ambiental e os municípios mais pobres da Região Metropolitana continuam com crescimento elevado. A expansão física é ainda mais grave. O espraiamento horizontal da RMSP tende a criar uma megametrópole quase inteiramente ocupada, reduzindo os espaços verdes ainda não urbanizados entre a Região de Campinas, a Baixada Santista, a conurbação de São José dos Campos e a de Sorocaba. O modelo de condomínios fechados de baixa densidade, embora utilize o discurso ambientalista como marketing, se expande exatamente nesta região, tendendo a eliminar um cinturão verde que ainda existe no entorno da massa urbanizada. O processo colaborará para o aquecimento global, para alterar o comportamento hídrico, com sérias conseqüências no abastecimento de água e no agravamento das enchentes, alémde aprofundar o modo de vida baseado no automóvel individual, única forma de acessar estes assentamentos. Este modelo de urbanismo é incompatível com o transporte coletivo. Os 53 distritos do município de São Paulo melhor urbanizados e dotados de equipamentos e empregos perderam moradores, incluindo os bairros fortemente verticalizados. Áreas dotadas de infra-estrutura e oportunidades, que vivem com o trânsito congestionado, se esvaziam de moradores; equipamentos já instalados, como escolas e postos de saúde, passam a apresentar ociosidade, enquanto o poder público é forçado a construir equipamentos nos bairros distantes que se adensam. Escolas fechadas nas áreas mais consolidadas e “escolas de lata” nas periféricas distantes é a imagem deste fenômeno. A desigualdade territorial tem graves conseqüências para a mobilidade urbana. No distrito da República existe mais de seiscentos empregos para cada cem moradores, índice que na Cidade Tiradentes, no extremo da Zona Leste, cai para oito. O deslocamento pendular dos bairros dormitórios para o centro expandido gera a superlotação do sistema viário e de transporte coletivo. Nestas viagens há quem enfrente terríveis seis horas diárias em coletivos, perdendo, literalmente, um terço de sua vida útil no deslocamento. A prioridade para o automóvel, que marcou a visão de progresso do século XX, marcada pela implantação de via expressas e complexos viários, agrava este problema, pois o sistema viário não comporta os quase sete milhões de veículos cadastrados na RMSP. O trânsito que virou o pesadelo dos paulistanos apesar da prioridade nos investimentos públicos ter se dirigido para a ampliação do viário em detrimento do transporte coletivo. Não por acaso, o único plano integralmente implantado é São Paulo foi o tristemente famoso Plano de Avenidas, uma proposta de abertura de avenidas radiais e anéis perimetrais que orientou, dos anos 1930 ao final dos anos 1960, as insuficientes obras públicas na cidade. Edifícios obsoletos, vazios ou subutilizados povoam o centro antigo, abandonado pela elite, onde mais de 18% dos domicílios estavam vagos em 2.000. Numa outra paisagem, uma grande quantidade de galpões permanece sem utilização ao longo das orlas ferroviárias, área com grande potencial de transporte coletivo de massa, onde empreendimentos imobiliários começam a ser implantados desvinculados de uma estratégia urbana. Embora a partir de meados da década de 2.000, esse processo tenha começado a ser revertido graças ao novo ciclo de investimentos imobiliários, a ausência de planejamento e de uma política urbana capaz de articular inclusão social, desenvolvimento e sustentabilidade mostram que não basta apenas crescimento econômico para reverter pocessos urbanos fortemente consolidados. De fato, os novos empreendimentos imobiliários têm aprofundado problemas antigos, como os desastres naturais. Enchentes são agravadas pela impermeabilização do solo, gerada tanto pela prática oficial, que vigora desde os anos 1930, de implantar avenidas e vias expressas nos fundos de vale – que lamentavelmente não tem sido revertida – como pela ocupação irregular do solo e pelos próprio processo imobiliário. A tolerância ou incapacidade de coibir usos e ocupações irregulares – não apenas as destinadas à moradia popular – marcam um desrespeito às normas urbanísticas e ambientais. Por falta de política e planejamento habitacional, mais de dois milhões de pessoas habitam irregularmente nas regiões de proteção ambiental. Recente levantamento realizado pelo IPT mostrou que existe cerca de 110 mil moradias em áreas de risco, a maioria ocupando faixas de saneamento de córregos e encostas íngremes, ou seja, Áreas de Proteção Permanentes, segundo a definição do Código Florestal. Nas três últimas décadas, a população moradora em favelas cresceu em índices muitos superiores aos da população em geral. Degradação do meio ambiente, desertificação do espaço público e desprezo pela memória urbana e social marcam uma cidade com identidade ameaçada. Calçadas estreitas, obstruídas ou não implantadas, poluição do espaço aéreo, córregos transformados em esgotos e a agressividade dos motoristas tornam ainda mais difícil a vida na cidade. Para garantir acesso às suas garagens, moradores criam degraus nas calçadas e as obstruem com portões que avançam para além do lote privados. Resultado de processos imobiliários formais ou informais, do descaso da prefeitura ou da falta de civilidade dos moradores, o desrespeito ao espaço público é a regra na cidade. Por outro lado, a partir de meados dos anos 2.000, vive-se uma conjuntura inteiramente nova, marcada pela retomada do crescimento econômico, inclusão social de segmento que estavam fora do mercado de consumo, ampliação inusitada do crédito imobiliário, criação de novos programas habitacionais e ampliação do investimento público em obras urbanas. Depois de duas décadas de estagnação econômica, de crescimento da pobreza e de ausência de investimentos na infra-estrutura urbana, não se pode dizer que esse processo não pudesse ser altamente positivo para as cidades e, em particular para São Paulo. No entanto, nessa conjuntura é necessário se ter uma grande precaução, para evitar que esse novo ciclo de crescimento econômico gere uma reprodução do modelo que se mostra totalmente insustentável. Mais recursos pode significar obras desnecessárias ou que poderiam ser evitadas se o investimento se dirige a alternativas mais sustentáveis, como, por exemplo, no caso do alargamento da Marginal do Tietê, que sequer previu um corredor exclusivo para transporte coletivo. A enorme elevação do crédito imobiliário e as novas perspectivas abertas por programas como o Minha Casa Minha Vida e pelo crescimento da chamada nova classe média, gerou um forte processo de especulação imobiliária cuja conseqüência tem sido a exclusão dos mais pobres, processo agravado pela realização de obras púbicas que geram despejos e remoções forçadas. Nesse quadro, é evidente que são necessárias novas estratégias. Será que esta situação pode ser revertida e a metrópole dar a volta por cima, se tornando viável, ambientalmente sustentável, includente, com um novo modelo urbano e um modo de vida mais simples e equilibrado? Construindo um caminho alternativo: é possível construir uma São Paulo mais sustentável no século XXI? A utopia de uma cidade mais justa e sustentável, capaz de garantir qualidade de vida para os seus cidadãos e de se desenvolver de modo equilibrado com o meio ambiente pode parecer distante para muitos. “Esta cidade não tem mais jeito” é uma frase que se ouve com freqüência em referencia ao nosso futuro. A utopia de uma cidade melhor desapareceu do imaginário da população, que preferiria se mudar se isto fosse possível. Mas isto não é fácil: São Paulo oferece um tão amplo leque de oportunidades de trabalho, negócios, lazer e sociabilidade que atraem uma vasta população, incapaz de se desvincular da cidade. Muitos se mudaram para fora da cidade, como, por exemplo, para um condomínio fechado situado num raio de cem quilômetros da capital, situação freqüente na população de renda mais alta, mas permanecem ligados profissionalmente a ela e passam a viver um cotidiano selvagem de deslocamento casa-trabalho, modelo de vida insustentável, que exige horas na estrada e no trânsito e vários automóveis em cada domicílio. Vendido pelo mercado imobiliário como uma alternativa ecológica, esse modelo tem forte impacto negativo, gerando emissões, agravando os problemas de mobilidade e destruindo a sociabilidade própria da cidade. As rodovias perdem seu caráter de facilitar o deslocamento intermunicipal e se tornam verdadeiras avenidas urbanas. As entradas da cidade pelas principais rodovias apresentam, nas primeiras horas damanhã, congestionamentos parecidos com ruas e avenidas mais movimentadas. Os que optam por esta alternativa, perdem a riqueza e a diversidade do cotidiano urbano, “onde se respira o ar de liberdade”, como se dizia na Idade Média, e tem que se contentar com a monocórdia e pacata vida entre iguais num território permanentemente vigiado. A questão básica que precisa ser enfrentada é como reverter o atual modelo de crescimento da megametrópole, baseado na expansão horizontal periférica (de baixa renda) ou dispersa (de média ou alta renda); na verticalização de baixa densidade populacional na área consolidada; no uso intensivo do automóvel; no afastamento entre o emprego e a moradia; na produção exagerada de lixo; na deterioração das zonas mais antigas e de interesse histórico e na ocupação e destruição das áreas de proteção ambiental. Encontrar um caminho que interrompa este processo e que, gradativamente, possa ser substituído por um novo modelo de desenvolvimento urbano que maximize as potencialidades de macrometrópole e, ao mesmo tempo, minimize os gravíssimos impactos sócio-ambientais que hoje tentem a inviabilizar nosso futuro é o grande desafio. O Plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo (PDE), aprovado em 2002, apontou um caminho possível, embora tenha limitações, pois foi resultado de uma ampla negociação com diferentes setores sociais, cujos interesses nem sempre permitem alterações significativa no modelo urbano predominante. Ademais ele foi concebido no início nos anos 2000, quando a questão da sustentabilidade urbana ainda não havia ganhado a importância que lhe é dada hoje. De qualquer forma, é um dos mais avançados planos diretores implantados no Brasil no recente ciclo de planejamento que marcado pela Constituição de 1988 e Estatuto da Cidade (2001), regidos pelos princípios da função social da propriedade, direito a habitação, planejamento participativo e recuperação social da valorização imobiliária gerada pelos investimentos públicos. Os novos instrumentos urbanísticos criados por este dispositivo legal, entretanto, só podem ser aplicados se previstos nos planos diretores e regulamentos por leis municipais específicas, aprovadas pelas câmaras de vereadores, o que dificulta sua implementação. Prevendo a utilização destes instrumentos, o PDE apresentou os eixos fundamentais para uma reversão deste modelo de desenvolvimento urbano que predomina na cidade, cuja implementação tem sido truncada. Embora alguns dos instrumentos previstos e das ações estratégicas por ele previstas tenham começado a ser implantada em 2003, foram interrompida a partir de 2005, com a mudança da administração e, quando foram retomadas parcialmente, não estavam articuladas com uma estratégia global para a cidade. Aos objetivos estratégicos trazidos pelo PDE – em relação aos quais há hoje certo consenso no seio de vários setores da sociedade – é necessário introduzir novos eixos, levando em conta questões novas que surgiram na última década. Para alcançá-los, entretanto, é necessário colocar em prática, no curto prazo, instrumentos, programas e ações estratégicas já previstos, que são indispensáveis para gerar os resultados esperados, o que tem sido postergado. E, por outro lado, introduzir novos temas e eixos de intervenção, que não poderiam ter sido previsto em 2002 mas que, dez anos depois, são fundamentais. Como o Estatuto da Cidade estabelece que, no máximo, em dez anos os planos diretores devem ser revistos, estamos no momento certo para debater essas novas perspectivas. Isto precisa ser feito, inicialmente avaliando-se, de forma participativa, os objetivos e instrumentos estabelecidos dez anos atrás, verificando sua atualidade, e identificando lacunas e novas diretrizes e ações considerando a nova conjuntura da cidade e do país. Os desafios para mudar o modelo urbano de São Paulo Reduzir as desigualdades urbanas é um desafio síntese para tornar a cidade melhor. O modelo de uma cidade segregada, que tenham guetos que se assemelham à Suíça e enormes territórios com imensas carências e precariedade, que se aproxima de países africanos, deve ser combatido com vigor, implicando em priorizar investimentos nas áreas mais carentes e usar os instrumentos tributários e urbanísticos para redistribuir riqueza. A adoção de alíquotas progressivas de acordo com o valor do imóvel, adotada nas regras do IPTU a partir de 2002, é um mecanismo neste sentido, cobrando-se mais dos imóveis mais valorizados e isentando-se os de baixo valor. A criação da outorga onerosa do direito de construir, ou seja, o solo criado através do uso mais intenso da terra, regulamentada pelo PDE é outro instrumento para estimular a descentralização dos investimentos imobiliários privados. Isto se obtém, cobrando-se pelo solo criado proporcionalmente mais das incorporações localizadas nos bairros consolidados, mais valorizados e procurados pelo mercado, privilegiando-se as regiões intermediárias e periféricas. Reduzir as desigualdades também significa aproximar a habitação, inclusive social, dos empregos e equipamentos, através de duas ações estratégicas combinadas: levar a urbanização, a regularização fundiária, empregos e serviços para as áreas periféricas, que devem ser estruturadas e qualificadas do ponto de vista urbanístico, e estimular o uso residenciais, com incentivos e subsídios para as rendas mais baixas nas áreas que concentram os empregos – centro expandido e zona sudoeste. Desta forma, pode-se reduzir a necessidade e o tempo de deslocamento, reduzindo a necessidade de uso do automóvel e meio de transporte motorizados. Uma qualificação menos desigual dos espaços públicos é fundamental. A grande maioria dos parques bem estruturados da cidade está nos bairros de classe média e alta, enquanto que nas regiões de maior exclusão, as poucas áreas verdes existentes estão depredadas. Nestas regiões, favelas ocuparam os espaços livres, gerando um passivo ambiental que precisa ser enfrentado, inclusive para aumentar a permeabilidade do solo na cidade, iniciativa que é indispensável para enfrentar as enchentes. Baseado nessas premissas, é possível estabelecer novas referencias para reestruturar a cidade, do ponto de vista dos aspectos urbano-ambientais, que podem ser sistematizados em onze objetivos-síntese. São objetivos que valem, de uma maneira geral, para a região metropolitana de São Paulo como um todo, pois as questões urbanas e ambientais não se definem por limites administrativos e políticos. São eles: Objetivo 1 – conter o processo de expansão horizontal da metrópole, preservando o cinturão verde, com atividade agrícola no entorno da região metropolitana; Objetivo 2 – reduzir a necessidade de deslocamento, aproximando o emprego da moradia; Objetivo 3 – reestruturar a mobilidade urbana, estimulando modos sustentáveis, como o transporte coletivo com energia limpa, a bicicleta e prática de andar a pé, coibindo o uso de automóvel; Objetivo 4 – reabilitar e repovoar, com inclusão social, o centro metropolitano expandido e bairros consolidados, revertendo o atual processo de esvaziamento populacional; Objetivo 5 – regularizar, urbanizar e qualificar loteamentos irregulares e favelas, recuperando áreas verdes, fundos de vale, APPs urbanas e áreas de preservação ambiental; Objetivo 6 – criar novas centralidades equilibradas do ponto de vista urbano, econômico e ambiental, estimulando a geração de empregos nas áreas periféricas; Objetivo 7 – conter, de forma planejada, o adensamento construtivo e estimular, de forma ambientalmente sustentável, o adensamento populacional na área consolidada; Objetivo 8 – valorizar e qualificar os espaços públicos, ampliar as áreas verdes, a arborização e a permeabilidade do solo; Objetivo9 – implementar a nova Política Nacional de Resíduos Sólidos para reduzir drasticamente a quantidade de lixo disposta em aterros sanitários; Objetivo 10 – criar novos instrumentos capazes de conter o processo de especulação imobiliária e valorização do solo urbano; Objetivo 11 – reformular o sistema de gestão da cidade, garantindo descentralização, participação e controle social e monitoramento, através de indicadores, das metas a serem buscadas em cada um dos objetivos acima enumerados. Como enfrentar estes desafios? O que precisa ser feito para São Paulo alcançar estes objetivos? Como cresceria a cidade? Qual o modo de vida e a sociabilidade que seus habitantes teriam? Como se moveriam? Como se relacionariam com o meio ambiente? Reverter o modelo em curso exige muita determinação do poder público, inclusive para tomar medidas pouco populares, que, certamente, deverão contrariar interesses econômicos e exigir da população a mudança de um modo de vida consolidado. Isto requer que se amplie o apoio da sociedade organizada, obtido a partir de um amplo pacto gerado por um processo participativo, de modo que os cidadãos mais conscientes tornem-se defensores dos principais eixos de transformação que devem ser buscados. Em boa parte, o modelo urbano e ambiental que prevalece hoje foi moldado para atender os setores de renda alta e média, os únicos que tinham possibilidade de acesso ao consumo e à cidade legal. Como, no período de grande crescimento urbano brasileiro, na segunda metade do século XX, eram relativamente poucos os que podiam ser enquadrados nessa categoria, o modelo construído atendia razoavelmente esse contingente, excluindo todos os demais. Eles podiam morar em bairros com boa qualidade de vida, arborizados e bem urbanizados, utilizar seus automóveis com conforto nas avenidas abertas exclusivamente para eles, gerar grande quantidade de lixo a ser disposto em lixões ou aterros, localizados distantes das suas residências, consumir e desperdiçar grande quantidade de água, etc. No Brasil do século XXI, onde se busca incorporar toda a população no mercado consumidor, esse modelo não é mais viável, do ponto de vista urbano e ambiental, pois ele estava baseado na lógica de excluir a maior parte da população para beneficiar uma minoria. Nessa nova conjuntura, impõe-se, por razões de sustentabilidade urbana, limites de toda natureza que não são mais fixados por restrições econômicas, mas pela adesão a um novo modo de vida. A chave para esta verdadeira revolução urbana é dar melhor aproveitamento e distribuição para os recursos que temos, evitando o desperdício, o consumo exagerado e a opulência. Isto significa evitar a expansão horizontal das cidades; utilizar mais e melhor o solo que já está urbanizado e os imóveis já edificados; reabilitar o parque edificado obsoleto; reurbanizar as áreas subutilizadas ou precariamente construídas; misturar usos e classes sociais para reduzir a necessidade de longos deslocamentos; gerar menos lixo e reciclar o utilizado; economizar e reutilizar a água, racionalizar o uso da energia; equilibrar a relação entre o espaço edificado e o meio ambiente; priorizar o espaço viário para veículos com maior capacidade de transportar as pessoas e utilizar modos de deslocamento que não exijam veículos motorizados, como o andar a pé e a bicicleta. Conter o crescimento horizontal da cidade implica em proibir novos parcelamentos a partir de uma linha limítrofe da área já urbanizada, isto envolvendo todos os municípios incluídos na macrometrópole. O objetivo é consolidar um cinturão verde, de baixíssima densidade no entorno da Região Metropolitana de São Paulo, impedindo que ela se conurbe integralmente com as outras aglomerações urbanas, que formam a chamada macrometrópole. Esta diretriz exige que o Rodoanel não se converta em um mecanismo de estímulo a urbanização dispersa, de caráter claramente especulativo, mas em uma barreira para o crescimento urbano, ladeada por um grande parque em forma de anel. Isto requer que se impeçam acessos secundários, inclusive nas estradas a ele ligadas. Sem essa medida, não só as áreas de proteção dos mananciais situadas no entorno da metrópole poderão se ocupadas, como irá se criar uma área urbanizada contínua de duzentos quilômetros de diâmetro, um verdadeiro desastre ambiental. Este cinturão verde precisa ser ocupado com atividades produtivas e rentáveis, de caráter complementar à metrópole, com atividades compatíveis com a preservação ambiental. A criação de mecanismos de pagamento por serviços ambientais precisa ser estudada com seriedade, como mecanismo de compensação pela manutenção de uma vasta área no entorno da metrópole sem ocupação urbana. Mas também devem ser estimulado outras propostas de ocupação deste cinturão. Um exemplo é a Comuna da Terra, projeto em desenvolvimento pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra. Estas comunas são assentamentos organizados em pequenas áreas, implantadas no entorno das grandes cidades e formados por trabalhadores da área urbana, antigos migrantes de zonas rurais. Algumas unidades já estão instaladas, como a Comuna da Terra Dom Tomás Balduíno, no município de Franco da Rocha. Ali se produz e se beneficiam produtos para serem comercializados na própria região metropolitana. Lei federal que exige que 30% das comprar realizadas pelo poder público para a merenda escolar seja proveniente da agricultura familiar pode ser um excelente estímulo para esta atividade, que geralmente sofre pela inexistência de mercado. A agricultura orgânica vem se tornando uma atividade lucrativa e com alta aceitação, podendo se tornar uma alternativa importante nesta área. Assentamentos como as comunas da terra, podem ser alternativas sustentáveis para este cinturão, mantendo-se a atividade rural, agregando-se a população em torno de locais providos de equipamentos coletivos, com uma qualidade de vida e uma sociabilidade bastante diferenciada do que se tinha nas zonas rurais antigas. Atividades de lazer, com manutenção e/ou recuperação da cobertura vegetal e baixíssima densidade construtiva é outra alternativa adequada para este cinturão, considerando a enorme demanda existente na cidade, sobretudo pela população de baixa renda, que vive nas periferias e, portanto, a uma pequena distancia desta região. A criação de alternativas de lazer com qualidade junto à cidade, ligadas por transporte coletivo de massa, é indispensável para São Paulo. Com a melhoria da renda da população, processo inevitável frente ao crescimento da economia e melhor distribuição de renda, toda a população desejará um feriado prolongado fora da cidade. A continuar o atual modelo, ao invés de gozar de lazer, a população urbana passará dias em estradas congestionadas, o que já ocorre em algumas ocasiões. A restrição ao crescimento horizontal exige um melhor aproveitamento e um adensamento da área já urbanizada. Nesse aspecto, o ideário da reforma urbana se combina com a agenda da sustentabilidade. O maior adensamento da cidade é viável do ponto de vista ambiental, pois a densidade de ocupação na RMSP, por incrível que possa parecer, ainda é relativamente baixa. A área urbanizada na região soma 2.200 km2 (sem contar com os condomínios dispersos), onde vivem cerca de vinte milhões de habitantes. Isto significa uma densidade bruta de noventa habitantes por hectare, índice considerado bastante baixo para zonas urbanas. Neste aspecto reside a chave da questão urbana em São Paulo: se a metrópole não deve crescer horizontalmente aonde irão se implantar os empreendimentos imobiliários necessários para abrigar a demanda habitacional futura e os novos estabelecimentos comerciais, serviços e outros usos não residenciais? Acreditamos ser possível dar melhor aproveitamento aos espaços urbanizados,de modo a propiciar melhor qualidade tanto para os usos já existentes como para as necessidades futuras. Como foi mostrado, o crescimento populacional tanto do município como da região metropolitana vem caindo significativamente e tenderá a baixar gradativamente nas próximas décadas. Isto significa que a demanda por espaço pode ser gradativamente menor. No entanto, a expansão territorial da cidade tem sido determinada, em grande medida, pelo abandono do parque edificado, por novos hábitos de consumo do espaço, seja residencial ou de comercio e serviços e, sobretudo, por um modelo de desenvolvimento urbano equivocado. Não é por acaso que muitos bairros tradicionais, que se verticalizam com forte adensamento construtivo, estão perdendo população. O modelo das incorporações imobiliárias, em parte relacionadas com as peculiaridades do Sistema Financeiro da Habitação, é responsável por isto, pois rejeita edificações de uso misto no lote, como existiram no passado, com térreo e sobrelojas com comércio e serviços e residencial nos demais pavimentos. Nos edifícios residenciais, existe uma grande quantidade de espaços ociosos, nos térreos, onde poderiam estar atividades que acabam por ocupar, com baixíssima densidade, outros terrenos muito bem localizados. Ademais, o tamanho médio das famílias vem caindo fortemente; em São Paulo, se prevê que, em 2020, deva alcançar cerca de 2,5 membros, em média. Isto significa que as unidades habitacionais podem ter dimensões mais reduzidas, particularmente nas faixas de renda média e alta, que ocupam áreas extremamente privilegiadas da cidade; são apartamentos que permanecem vazios a maior parte do dia. Por outro lado, novos condomínios criam verdadeiros clubes privados, utilizando exageradamente o espaço urbano ao invés de se optar pela utilização de equipamentos coletivos, privados (clubes) ou públicos. Com melhor aproveitamento das áreas já urbanizadas, a necessidade de expansão seria muito menor. É evidente que estas alternativas exigem alterações tanto no modo de vida e expectativas da população como na ação dos agentes imobiliários. São mudanças necessárias se quisermos garantir sustentabilidade para uma metrópole da dimensão de São Paulo. É claro que a cidade continuará requerendo áreas para novos empreendimentos. A alternativa é crescer para dentro, com a estruturação das regiões subutilizadas ou precariamente urbanizadas. Este processo de reocupação deve ser desenvolvido em um novo tipo de empreendimento, com planejamento e ordenação urbanística. O atual modelo de incorporação imobiliária, geralmente unifuncional, onde cada empreendedor estabelece isoladamente as características de seu projeto, como a volumetria do edifício, dentro de regras genéricas estabelecidas pelo zoneamento, precisa ceder lugar para o planejamento completo de grandes áreas, com desenho urbanístico previamente definido, rompendo com o modelo do condomínio isolado e unifuncional. Por outro lado, é necessário aprofundar radicalmente a proposta, já incorporada ao PDE, de destinar áreas bem localizadas para a habitação de interesse social. Esta chave é chave para o equilíbrio social e ambiental da metrópole, rompendo a tendência de levar a habitação dos setores populares para a periferia da cidade. Inserida nas áreas urbanas já consolidadas, a moradia pode estar harmonicamente associada a usos não residenciais, configurando novos núcleos urbanos, com espaço público aberto para a cidade, onde o trabalho, o consumo e o lazer possam estar próximos à moradia, reduzindo a necessidade de longos deslocamentos urbanos. São Paulo tem inúmeras regiões onde isto poderia ocorrer, algumas demarcadas no Plano Diretor, como as áreas de operações urbanas ao longo das ferrovias, que formam uma ferradura em torno da área mais consolidada da cidade, e as mais de novecentas Zonas Especiais de Interesse Social, áreas vazias, deterioradas ou ocupadas por favelas e loteamentos irregulares, sendo que muitas podem ser inteiramente reurbanizadas. Não devemos temer por processos de reestruturação completa de algumas áreas da cidade, desde que isto não afete o patrimônio urbano e a memória e, o que é muito importante, não desloque, mas ao contrário, atraia moradores de baixa e média baixa renda. Dentre as áreas que requerem reabilitação, uma das mais importantes é o centro histórico e os bairros que ficam no seu entorno. Trata-se de um desafio que exige ações de peso para reverter o processo combinado de subutilização e de exclusão que ela vem sofrendo. É necessário compatibilizar a reabilitação com a produção de habitação, inclusive para a população de baixa renda, objetivando aproximar o morar do trabalhar. Para isso, foram criadas as Zonas Especiais de Interesse Social, mas é necessário muito mais: investimentos públicos ampliar a oferta e ações para baratear os preços de prédios e terrenos para a produção habitacional, combatendo com forte carga tributária, a ociosidade e subutilização de terrenos (inclusive os ocupados por estacionamentos), prédios e galpões industriais vazios. A utilização dos instrumentos previstos no PDE para combater a especulação e dar função social às propriedades precisa ser utilizada em todo o seu potencial. O imposto progressivo sobre imóveis vazios, ociosos ou subutilizados levou quase oito anos para ser regulamentado pela Câmara Municipal, sem que o executivo tivesse tomado qualquer iniciativa para acelerar sua aprovação. A lei, embora positiva, ainda é insuficiente para alcançar os resultados esperados, sobretudo considerando a nova conjuntura vem gerando forte valorização imobiliária, que dificulta ainda mais a produção de habitação social na região, além de promover uma elevação significativa dos aluguéis. Por outro lado, o mecanismo que a municipalidade está utilizando para promover a reabilitação da regiões de Santa Ifigênia (chamada também de “Cracolândia” ou “Nova Luz”), a concessão urbanística, foi adotada sem amplo debate público e sem um projeto urbanístico definido. Por estas razões, tem tido efeito contrário aos seus objetivos, aprofundando a deterioração da região e gerando forte oposição de moradores e comerciantes. Ao invés de se desenvolver um plano com participação da sociedade, mobilizando a iniciativa privada do modo articulado com iniciativas públicas e de organizações locais, busca-se transformar a recuperação urbana de um bairro como um negócio imobiliário. É exatamente o que não se deveria fazer. Nestas regiões mais antigas, marcadas pela memória e indispensáveis para o fortalecimento da identidade da cidade, deve se desenvolver ações mais contundentes para reabilitar e reciclar edifícios verticais construídos entre os anos 1930 e 1970, que logo terão entre cinqüenta e cem anos de vida. São Paulo já foi demolida duas vezes: nos final do século XIX, quando foi derrubada a cidade de taipa, erguida pelos portugueses e tupis; e em meados do século XX, quando foi a vez da cidade de tijolos, edificada pelos imigrantes italianos, portugueses e espanhóis. Construiu-se uma selva de concreto, vertical que, gradativamente, vai virando obsoleta. Esta não será posta abaixo sem um alto custo ambiental e urbano, que precisa ser evitado. A demolição dos edifícios São Vito e Mercúrio, que foi promovida pela prefeitura e gerou grande quantidade de entulhos – que felizmente foram reciclados – para suprimir moradias no centro onde elas são fundamentais para um novo modelo de desenvolvimento urbano, mostra um equívoco que não pode se repetir. Esta opção para enfrentar os edifícios obsoletos deve ser evitada a qualquer custo, posto que, mesmo com reciclagem do entulho, é uma prática insustentável, requerendo uma enorme quantidade de novos recursos naturais e energia para reedificar o que já está construído. Através do desenvolvimentode novas tecnologias de reabilitação e reciclagem de edifícios, a cidade poderá se renovar sem demolir, gerando novos espaços habitáveis, na perspectiva de crescer para dentro, equilibrando melhor os usos urbanos complementares, com maior possibilidade de deslocamento a pé. Outra ação estrutural para equilibrar a relação entre habitação e emprego é a criação de novas centralidades e postos de trabalho nas áreas periféricas da região metropolitana. Sem uma intervenção forte do poder público, através de planos de desenvolvimento econômicos nas diferentes regiões – estimulando a instalação de novas atividades e geração mais empregos onde hoje predomina uma verdadeira cidade dormitório – isto não tem condições de ocorrer. Foi o que começou a ser implementado entre 2003 e 2004, com o Plano de Desenvolvimento Econômico da Zona Leste, previsto no PDE, que objetivou criar uma nova centralidade em uma região onde uma população de mais de seis milhões de moradores não tem alternativas de emprego. Mas em 2005, a proposta foi paralisada pela prefeitura. O desenvolvimento urbano das áreas periféricas, para que elas possam atrair atividades econômicas exige qualificação urbanística e regularização fundiária, articuladas com programas de inclusão social e de economia solidária, capaz de estimular o empreendedorismo na população local. A transformação destes assentamentos periféricos precários em bairros de verdade, com infra-estrutura, áreas verdes, equipamentos, documentação de posse e organização social teria enorme repercussão na redução da violência e mudaria a cara dos bairros dormitórios que caracterizam a região, marcada por uma paisagem indefinida e acinzentada. Com usos melhor distribuídos, é possível reduzir a extrema necessidade de mobilidade que hoje é a regra na cidade. Mais moradia onde existem empregos; melhor distribuição das atividades econômicas, beneficiando áreas carentes de oportunidade de trabalho e, ainda, empreendimentos imobiliários com misturas de uso, contribuem para deslocamentos por distâncias menores. Mas em uma metrópole sempre a questão de mobilidade será sempre um requisito importante. A reorganização do sistema de transportes na cidade, que apenas começou a ser implantado em 2003/4 com a criação do bilhete único e de alguns poucos corredores de ônibus, é uma necessidade essencial. A proposta incluída no PDE precisa ser implementada na sua integralidade, com grande urgência. A proposta está baseada em um subsistema estrutural, composto pelo metrô, trens metropolitanos e corredores de ônibus em faixas exclusivas, e um subsistema de alimentação capilar, com veículos de menor capacidade chegando próximo às áreas de moradia, articulados pelo bilhete único. Com esse novo sistema, busca-se criar uma condição de deslocamento por transporte coletivo capaz de competir com os automóveis. No entanto, desde 2005, nenhum novo corredor de ônibus foi implantado na cidade. Os investimentos no metrô, além de excessivamente elevados, geram resultados apenas no longo prazo. São indispensáveis, mas claramente insuficientes. Maior prioridade deve ser dada à implantação do subsistema de alimentação, que além de veículos motorizados poderia se valer de bicicletas e mesmo do deslocamento a pé, desde que calçadas confortáveis, passarelas e segurança passassem a fazer parte do nossa cidade, é fundamental para que se torne rotineiro as pessoas deixarem seus automóveis em carro. Em contrapartida, tem tido continuidade os massivos investimentos no sistema viário, sem sequer se reservar faixas para o transporte coletivo, como ocorreu recentemente no alargamento da marginal do Tietê, obra de 1,3 bilhões de reais, destinada exclusivamente aos automóveis e que agravou os problemas de transbordamento do rio. É a típica obra marcada pela insustentabilidade pois resume tudo o que deve ser evitado: prioridade para os automóveis; supressão de vegetação e arborização, com impermeabilização do fundo de vale; ausência de ciclovias e de faixas exclusivas para transporte coletivo; processo decisório centralizado e não participativo; grande investimento desprovido de análise da sua sustentabilidade. Para que o transporte coletivo se generalize, é necessário que ele seja, no mínimo, tão rápido, barato e confortável quanto o deslocamento por automóvel. Alcançar esta condição é um desafio fundamental para que um novo modelo urbano, mais sustentável, possa ser implantado em São Paulo. Aspecto que normalmente não tem sido muito considerado pelos urbanistas, e que esteve ausente do ideário da reforma urbana e dos eixos fundamentais do ciclo de planos diretores na primeira década do século, a alteração da maneira como o “lixo” da cidade deve ser tratado é exemplar de novas atitudes que precisam ser tomadas, não apenas pelo poder público, como pelo setor privado e cidadãos em geral. São Paulo gera nada menos do que 15 mil toneladas/dia de resíduos sólidos urbanos, além dos resíduos da construção civil, da indústria, da saúde e dos transportes aéreos. O custo do enfrentamento desse problema é imensa: o município prevê gastar cerca de 2,25 bilhões de reais em 2012, com a coleta e a destinação final apenas dos resíduos urbanos, ao mesmo tempo em que a cidade apresenta índices insignificantes de coleta seletiva e reciclagem. A nova Política Nacional de Resíduos Sólidos estabeleceu as diretrizes para enfrentar a questão, baseadas na responsabilidade compartilhada – produtores, importadores, comerciantes e consumidores finais são responsáveis pelo ciclo de vida útil dos resíduos gerados pelo consumo – e em uma hierarquia onde, antes da disposição final dos rejeitos em aterros, deve se buscar a não geração, reutilização, reciclagem e tratamento dos resíduos que pudessem ser aproveitados. Como o maior produtor de resíduos do país, São Paulo precisa ter uma posição de destaque nessa matéria, em primeiro lugar colocando em prática uma campanha pela produção e consumo sustentáveis, com o objetivo de reduzir a geração de lixo, ao mesmo tempo em que se implanta, de forma massiva, a coleta seletiva, a reciclagem e a logística reversa, com a inclusão social das cooperativas de catadores. Isto significa deixar de levar para aterros sanitários uma enorme quantidade de resíduos que podem retornar ao processo produtivo e serem reciclados, reduzindo a necessidade de extrair recursos naturais. Trata-se de um eixo fundamental da agenda de sustentabilidade urbana, mas que apenas será poderá se viabilizar se estiver previsto no âmbito das políticas públicas municipais. A infra-estrutura e os equipamentos necessários para a coleta seletiva e a logística reversa constituem um novo item a ser considerado nos planos locais, articulado com uma logística até o momento inexistente na cidade. É evidente que a necessidade e a disputa pela terra urbanizada já é e continuará sendo um elemento chave, de qualquer estratégia que busque garantir a sustentabilidade urbana. Pode-se dizer que os instrumentos introduzidos pelo Estatuto da Cidade, embora ainda não tenham sido utilizados em todo o seu potencial, são insuficientes para dar conta do forte processo especulativo que está vinculado ao mercado da terra, posto que o solo urbano é finito e, frente à forte demanda, tende a valorização exagerada, de modo a excluir, sem não forem criados elementos de controle, os usos sociais e públicos. Este é, talvez, o maior obstáculo á construção de uma cidade sustentável. Uma outra cidade é possível? Embora a cidade e o país tenham mudado muito nestes oito anos, as linhas gerais do PDE continuam válidas. São, entretanto, insuficientes. Além da necessidade implementar os instrumentos e as ações do PDE, novos objetivos, instrumentos e ações precisam ser incluídos, sobretudo no que se refere às questões ambientaise relacionadas com mudanças climáticas; outros precisam ser radicalizados. O crescimento econômico e o aumento da maior acesso da população aos bens de consumo (como automóveis), assim como a excepcional elevação do crédito habitacional, processos que em tese são positivos, estão agravando o quadro urbano em São Paulo, pois ele incide sobre uma cidade que continua crescendo com base em um modelo inadequado. Em 2002, quando o PDE foi aprovado, a capacidade de investimento do poder público era muito baixa; de lá para cá, o orçamento do município mais do que triplicou. A prefeitura e o Estado recuperaram a capacidade de investir na cidade e tem condições de reverter este modelo. A revisão do Plano Diretor Estratégico, a ser realizada em 2013, é uma oportunidade que não pode ser perdida; a sociedade precisa se engajar no debate da questão urbana e ambiental e se mobilizar para influenciar nas decisões do poder público. Afinal, a cidade existe para seus cidadãos.
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