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Uma Análise Comparativa da Evolução Histórica do Sistema de Propriedade de Terras no Brasil e nos Estados Unidos Bernardo Mueller Departamento de Economia Universidade de Brasília Introdução Tanto Portugal como Inglaterra enfrentaram tarefas semelhantes, ao ocuparem suas colônias no Novo Mundo. Naturalmente as circunstâncias encontradas por cada nação não eram idênticas e cada uma enfrentou problemas diferentes, com dotações e restrições próprias. Não espanta, portanto, que os caminhos seguidos não foram similares. O que intriga, porém, é que os caminhos não tenham convergido, apesar de um ser claramente superior ao outro, no que toca a propiciar crescimento econômico e prosperidade. Ao analisar os diferentes caminhos tomados pelo Brasil e Estados Unidos, quanto à evolução de um sistema de uso e propriedade da terra, este trabalho busca contribuir para a compreensão de uma importante questão econômica: a persistente má performance de uma série de economias e sociedades ao longo do tempo e através do espaço, mesmo diante de claras evidências da superior viabilidade de outros arranjos econômicos. A primeira seção deste trabalho analisa a evolução do sistema americano de uso e propriedade de terra, enquanto a evolução do sistema brasileiro é analisada na segunda seção. Seção 1 – O Sistema Americano de Prosperidade e Uso da Terra Seção 1.1 – Introdução À época em que os Estados Unidos se tornaram um país independente, após menos de duzentos anos de colonização, um padrão claro de propriedade e uso da terra já havia emergido. Alguns detalhes ainda seriam mudados e havia diferenças regionais, mas praticamente todos os princípios que persistem até hoje já haviam sido estabelecidos quando da Revolução, em 1776. Era um padrão onde predominavam propriedades familiares, mas onde havia também grandes plantações. As condições de propriedade haviam evoluído de formas mais restritas para um sistema livre e igualitário, muito semelhante àquele que existe hoje. Em outras palavras, a terra havia rapidamente completado a transição para uma mercadoria e fator produtivo, de posse e controle privado, para o qual havia um mercado bem evoluído. O fato de o sistema americano ter-se definido desse modo pode levar alguns a concluírem que o processo pelo qual isso ocorreu foi relativamente tranqüilo e sem controvérsias. Poder-se-ia supor que todas as condições — históricas, políticas, religiosas, econômicas, geográficas, climáticas e outras — eram tais que seria quase inevitável que um padrão de pequenas propriedades familiares se tornasse a norma. No entanto, se se examina a evolução do sistema americano de propriedade de terras em detalhe, fica logo evidente que o resultado não se produziu dessa forma, como se não tivesse havido alternativas.1 De fato, um dos principais propósitos desta seção é demonstrar que não foi óbvio nem natural que se tivesse evoluído para um padrão de 1 Segundo North (1990: 98), referindo-se à história do uso da terra nos Estados Unidos: “If, however the foregoing story sounds like an inevitable, foreordained account, it should not. At every step along the way there were choices – political and economic – that provided real alternatives.” 2 pequenas propriedades. Pelo contrário, por vários aspectos é até surpreendente que fosse esse o resultado. Houve, de fato, um processo, em que vários arranjos institucionais se enfrentaram, e por meio do qual emergiu o padrão final, moldado pelas condições da fronteira. Pela análise dos detalhes dessa competição entre diferentes formas de dispor, usar e regulamentar a terra, esta seção mostrará como surgiu o sistema norte-americano. A experiência colonial americana é particularmente rica para o estudo da criação e evolução de instituições, devido à grande variedade de arranjos pelos quais as treze colônias originais foram assentadas. Algumas foram colonizadas diretamente pela Coroa Britânica, enquanto outras foram cedidas a companhias de colonização, e outras mais cedidas a proprietários individuais. Comparações entre as similaridades e diferenças em métodos e resultados da colonização, sob esses diferentes arranjos, bem como a interação entre eles, serão usadas, neste trabalho, para mostrar quais as condições, motivações e restrições que foram mais influentes na determinação do padrão de propriedade e uso da terra que afinal emergiu. Isto servirá de base, na seção seguinte, para se comparar o padrão bastante diverso que evoluiu no Brasil. Mesmo uma descrição superficial dos métodos empregados em algumas colônias americanas é suficiente para demonstrar a grande diversidade de arranjos tentados. A primeira colônia onde se tentou o assentamento foi a Virgínia, no início do século XVII e, portanto quase um século após os primeiro assentamentos no Brasil. A colônia havia sido cedida pela Coroa à companhias de colonização, que tinham a idéia de basear o assentamento em propriedade e trabalho comunitários, com posterior distribuição da terra, de acordo com as ações possuídas por cada membro. Este arranjo logo se mostrou desastroso, levando a muitas dificuldades, fome e mortes. Foi só quando se desistiu do ideal comunitário e se permitiu a possa individual que os assentamentos começaram a prosperar (Hughes, 1976: 61).. Na Geórgia, em contraste, a colônia havia sido montada como uma organização de caridade, cuja finalidade era prover alívio aos pobres e desafortunados da Inglaterra, dando-lhes terra e um meio de obter a subsistência de suas famílias (Hughes, 1976: 79). A colônia foi cedida a uma companhia sem fins lucrativos, que para atingir os seus objetivos estabeleceu regras bastante rígidas para a posse de terra. Havia um limite máximo que cada indivíduo poderia possuir; a escravidão era proibida; a terra só poderia ser herdada pelos filhos homens, revertendo para a corporação na ausência de filhos; os colonos deveriam prestar trabalho público durante quatro anos e servir de soldados quando necessário. Essas restrições e outras tinham o objetivo de evitar que se formassem grandes propriedades, o que atentaria contra os objetivos para os quais a colônia foi fundada. Apesar de ter começado com arranjos tão peculiares, o padrão de propriedade e uso de terra na Geórgia logo convergiu para aquele que evoluiu nas outras colônias. Tanto as condições da fronteira como as políticas adotadas pelas outras colônias fizeram com que, aos poucos, as restrições fossem relaxadas. Seu arranjo inicial era muito excêntrico para sobreviver ao lado de outros arranjos mais vantajosos. Em Massachusetts, a colônia foi cedida pela Coroa ao Conselho da Nova Inglaterra, o qual tinha a liberdade de escolher como dispor da terra no seu domínio. Por meio de uma companhia de assentamento, o modelo escolhido foi a distribuição de terras em pequenas propriedades, geralmente a grupos religiosos coesos que recebiam áreas na forma de vilarejos completos (Harris, 1953:286). Esse não foi um processo tranqüilo, porém, pois durante algum tempo alguns proprietários influentes no Conselho tentaram desenvolver um sistema feudal na Nova Inglaterra, tendo feito várias doações de grandes áreas. 3 As colônias de Maryland e Pennsylvania foram cedidas a proprietários individuais, que tinham ampla escolha de como assentar suas terras, e tentaram estabelecer sistemas feudais e cobrar tributos (Harris, 1953:120 e 220). O fato de que um sistema de propriedade livre dominado por pequenas fazendas tenha evoluído nessas colônias, apesar das intenções iniciais dos proprietários, ilustra o embate que houve entre diferentes arranjos institucionais. A colônia de Nova Iorque foi originalmente assentada pelos holandeses, que estabeleceram um sistema de grandes propriedades (patroons). Esse sistema teve grande influência no padrão que evoluiu nesta região, mesmo depois que os holandeses foram expulsos e um sistema baseado em pequenaspropriedades familiares começou a evoluir (Huges, 1976: 73). Cada uma das outras colônias teve sua própria história de luta entre arranjos institucionais para determinar o sistema de propriedade de terra. Os exemplos mencionados acima, apesar de breves, servem para dar uma amostra da diversidade de tentativas de elaborar regras para o uso e distribuição de terras, ilustrando assim que não havia nada pré-determinado no padrão que veio a predominar. Seção 1.2 – Premissas Comportamentais Para melhor entender o desenvolvimento do sistema de propriedade e uso de terra que evoluiu nos Estados Unidos, convém ser cuidadoso e expressar explicitamente quais as motivações básicas que se supõe terem fundamentado as escolhas feitas pelos atores envolvidos. Estes eram a Coroa, as companhias, os proprietários e os colonos. Embora as motivações tenham variado, mesmo dentro de cada um destes grupos, a premissa neste trabalho é de que o comportamento de todos grupos possa ser explicado pela maximização de riqueza. Que a Coroa tenha sido motivada pela maximização da riqueza significa que ela estaria disposta a usar a colônia da maneira que gerasse o maior fluxo de renda. Uma vez que se constatou a inexistência de metais precisos, era preciso buscar outra forma de derivar renda de sua possessão. Apesar de não haver nenhuma fonte significativa imediata de renda na América, permanecia a crença na eventual descoberta de metais, e a percepção de que, isso feito, apareceriam outras oportunidades de ganho pelo comércio, venda de terra e bens primários, taxação, etc. Essa percepção levou a Coroa a incentivar a ocupação da colônia, para não perder essas fontes futuras de renda para outros países, que já ameaçavam ocupar suas terras. Uma opção seria a Coroa tentar assentar a colônia diretamente, mas esse estilo centralizado já havia sido tentado no século anterior pela Inglaterra e havia sido a base da colonização feita por Portugal e Espanha, tendo claramente demonstrado as desvantagens impostas pela administração à distância. Em vez disso, a Coroa Inglesa optou pela concessão de grandes áreas para companhias e indivíduos, formando as treze colônias mencionadas acima. Embora tal estratégia não representasse nenhuma fonte de renda imediata para a Coroa, essa era a melhor forma de apressar a ocupação da América e possibilitar que oportunidades de renda viessem a surgir. Se tivesse sido possível vender as terras em vez de concedê-las, tal procedimento certamente teria sido adotado. Como será visto adiante, nessa época as terras da colônia americana eram praticamente sem valor, de modo que a única forma de convencer empresários e indivíduos a ocupá-las era através da concessão. As companhias, quase que por definição, eram maximizadoras de riqueza. O surgimento das companhias para exploração, assentamento e execução de serviços havia sido uma inovação institucional do século XVII, nos Países Baixos e na 4 Inglaterra, que permitiu que esses países tomassem de Portugal o monopólio da rota marítima para a Índia (Mueller, 1992). A instituição das companhias criava um capital permanente, através de um mercado de ações, possibilitando um meio pelo qual investidores dispersos pudessem financiar empreitadas específicas, como o assentamento de uma colônia. Este formato foi tremendamente bem adaptado para tal tipo de empreitada, pois, como os empresários diretamente envolvidos com a implementação da tarefa eram possuidores de ações da companhia, eles tinham seus interesses alinhados com o interesse dos demais investidores, tendo, portanto o incentivo a agir de forma a beneficiar a todos os acionistas. Isto evitava os problemas que a administração centralizada costumava criar, onde os interesses dos agentes nem sempre estavam alinhados com os da Coroa. Veremos que, à medida que a terra passa a ter valor, as companhias de assentamento passam a se tornar companhias de venda de terras. Isto demonstra que o interesse das companhias era maximizar renda, e não implementar algum tipo de assentamento preconcebido, ou simplesmente reter controle e poder sobre a terra que lhes foi concedida. Quanto aos proprietários que receberam da Coroa concessões de colônias, já não é tão aparente que tenham agido de acordo com o postulado de maximização de riqueza, dado que poderiam ter sido movidos por motivações pessoais idiossincráticas. No entanto, argumenta-se aqui que quaisquer motivos que tenha havido, esses eram fundamentalmente subservientes à maximização de riqueza. William Penn, proprietário da Pennsylvania, havia planejado sua colônia como um refúgio para exilados religiosos, mas tanto ele quanto seus descendentes esperavam receber consideráveis somas por meio de taxas, aluguel e eventualmente da venda de terra (Gates, 1968:41). Os colonos de suas terras levaram vários anos para quitar suas obrigações, e raros receberam terra de graça. Em Maryland, o proprietário, Lord Baltimore, não possuía os ideais humanitários de William Penn e era ainda mais explícito do que este no uso de sua colônia como fonte de renda (Harris, 1953, p. 121). Finalmente, havia os colonos e migrantes. Durante o século anterior, a Inglaterra havia passado por mudanças estruturais na organização de sua agricultura, expulsando a população do campo e gerando um excesso de população nos centros urbanos, abaixando com isto os salários e gerando desemprego. Embora fugir de tais condições possa ser interpretado como maximização de riqueza, é verdade que havia uma variedade muito grande de migrantes, cada um com sua própria motivação. Aqueles que eram política e religiosamente perseguidos tinham razões que não eram puramente econômicas, assim como os prisioneiros, vagabundos, indesejáveis e escravos, que foram enviados contra sua vontade. Porém, o ponto importante a notar na motivação dos migrantes para a América, que os diferenciava dos colonizadores portugueses no Brasil, era a intenção de residir permanentemente no Novo Mundo. Essa diferença se deve justamente ao excesso de população na Inglaterra, e às resultantes condições de vida que esse excesso criava, gerando incentivos para que grande número de migrantes se dispusessem a enfrentar os riscos e dificuldades de uma terra nova. Nenhuma das outras nações colonizadoras tinha contingentes populacionais suficientemente grandes para possibilitar a ocupação das extensas colônias do Novo Mundo, o que foi um fator central na determinação dos diferentes caminhos tomados na América e no Brasil. Seção 1.3 – A Dinâmica da Colonização dos Estados Unidos 5 Que a Coroa Britânica tenha delegado a colonização da possessão americana às companhias e proprietários, em vez de fazê-lo diretamente, foi uma escolha economicamente racional, que deve ser entendida considerando as dificuldades inerentes a tal tarefa. Essa delegação foi não somente uma forma de financiar a colonização e de evitar os riscos de uma empreitada incerta, mas também foi uma forma de evitar os consideráveis custos de transação e problemas de informação que naturalmente assolariam uma administração centralizada. O caso de Nova Iorque, que foi tomada dos holandeses e administrada diretamente pela Coroa a partir de 1664, ilustra bem os problemas que se queria evitar através da delegação. Embora a Coroa tentasse controlar o processo de concessões e doações de terra, seus agentes na América tinham incentivos para agir contra suas determinações. Estes apressavam-se em conceder e doar terras rapidamente e em grandes lotes, dado que suas rendas eram derivadas das taxas pagas sobre a terra, que eram proporcionais à área concedida. Além disso, grandes áreas de terras foram concedidas a eles próprios. A resultante concentração da propriedade atentava contra o interesse da Coroa, já que as rendas que esta auferia provinham basicamente dos impostos sobre o comércio, que seriam maiores num ambiente de propriedades mais densamente povoadas. Outro exemplo da dificuldadede controlar as colônias a partir do centro deu-se na Virgínia, onde a Coroa tentou proibir a venda de terra nas áreas mais remotas, e manter o sistema de doações de terra, com o propósito de incentivar maior número de colonos a se assentarem nessas áreas e com isso garantir sua ocupação. Apesar das determinações da Coroa, as vendas continuaram, e os colonos, e mesmo os agentes da Coroa, deixaram-se levar mais pela realidade das transações do dia-a-dia do que das imposições de administradores distantes (Harris, 1953: 290). Ao delegar a colonização da América às companhias e proprietários, a Coroa britânica reconhecia os problemas de auferir renda diretamente da venda ou lançamento de impostos sobre a terra, e optava, em vez disso, por um caminho que assegurasse a ocupação mais rápida. Com isto garantiria sua soberania, que já estava sendo desafiada em diversas áreas. Além disso, tal caminho criava as bases para que o estabelecimento do comércio entre as colônias e a Inglaterra, gerando assim um fluxo de renda que poderia ser objeto de taxação, a possibilidade de suprimento de matérias primas para a metrópole e um mercado consumidor para os produtos ingleses. As companhias e os proprietários, por sua vez, dificilmente estariam dispostos a empreender um investimento tão arriscado e incerto, se não lhes fossem oferecidas condições vantajosas. Explicam-se, assim, as extensas liberdades e poderes outorgados àqueles por Cartas de Concessão recebidas da Coroa, permitindo que se apropriassem de toda renda que pudessem gerar no processo de ocupação das colônias. Ao estabelecer tais regras, a Coroa criava incentivos para que as companhias e proprietários promovessem o assentamento rápido das colônias, sendo esse o maior interesse da Coroa — dado não haver outra forma de obter renda da posse de sua colônia. No entanto, tal quadro não era estático. À medida que as colônias se tornavam mais densamente habitadas, cidades surgiam, o comércio se desenvolvia e as terras adquiriam valor. Com isto, as oportunidades para se obter renda, antes escassas, se multiplicavam. Com essas mudanças, os arranjos anteriormente estabelecidos deixaram de alinhar harmonicamente os interesses dos diversos atores, como no período anterior. Isto se deu por duas razões. Primeiro, uma vez que o investimento inicial havia sido feito, que o aprendizado por tentativa e erro havia ocorrido e que as dificuldades iniciais haviam sido contornadas, chegou-se a uma situação em que seria rentável à Coroa envolver-se diretamente no processo de assentamento. Assim, 6 embora nenhuma das treze colônias tivesse sido assentada pela Coroa, esta havia, na época da Revolução (1776), conseguido retomar o controle sobre sete das colônias, e tentado o mesmo nas demais. A segunda razão pela qual houve pressões para reestruturar os papéis desempenhados pelos vários atores envolvidos foi o efeito que a prosperidade das colônias teve sobre os instrumentos de incentivo às companhias, proprietários e colonos. Tal prosperidade se devia, em grande parte, ao fato de o assentamento ter sido feito com base na concessão de propriedade privada, que trazia consigo o direito de participar no governo e na tomada de decisões sobre seus próprios interesses. Embora houvesse variações entre as diversas colônias, em geral o regime de propriedade de terra sem restrições, e o direito de apropriação de todos os frutos de seu trabalho, deram aos colonos o interesse, a motivação e a oportunidade de se envolverem na administração das colônias. À medida que as rendas aumentavam, e as oportunidades se multiplicavam, essa motivação crescia. Dado que também crescia, simultaneamente, a disposição da Coroa de receber uma parte cada vez maior daquelas rendas, a lealdade e submissão dos colonos à Coroa começaram a desintegrar-se. Essa é a história, bem conhecida, da Revolução Americana: a intensificação dos controles pela Coroa, após 1763, numa tentativa de aumentar seu quinhão naquelas rendas em expansão, gerou uma reação por parte dos interesses, àquela altura já bem enraizados, na América; interesses que eram suficientemente fortes para justificar uma luta em sua defesa. A dinâmica da colonização inglesa da América, descrita acima, é de importância central para que se entenda a evolução do sistema de propriedade e uso da terra. Ao deixar a colonização inicial nas mãos de proprietários e companhias, a Coroa incentivou um assentamento rápido, onde prevaleceram propriedades familiares de pequena extensão. Esse padrão de ocupação gerou condições para o desenvolvimento de um mercado interno, o que serviu para atrair mais colonos, fazendo com que a terra gradualmente passasse a ter valor, nas áreas mais centrais. À medida que isto acontecia, porém, não era mais do interesse das companhias e proprietários simplesmente conceder terras, mas sim vendê-las. Com isto, a sincronia com os interesses da Coroa foi se desfazendo, pois a esta interessava manter o rápido ritmo de assentamento, para que o comércio com as colônias continuasse a crescer. Isso resultou em mais de cinqüenta anos de conflitos, período em que a Coroa tentou, com reduzido sucesso, retomar o controle sobre o destino das colônias. A esta altura, porém, o padrão básico do sistema de propriedade e uso de terra já estava bem estabelecido, e não mudaria mesmo após a independência, quando foram estabelecidas as Land Ordinances (1785-87-90), disciplinado a ocupação das imensas áreas ao Oeste, que então começavam a ser ocupadas. Seção 1.4 – A Evolução de um Mercado de Terra Seção 1.4.1 – O Aumento do Valor da Terra Na época da Revolução, já existia um mercado de terra relativamente bem estabelecido. A terra tinha se tornado uma mercadoria amplamente transacionada. Não havia restrições quanto a preços ou ao tamanho das propriedades, e havia, assim, tanto pequenas como grandes unidades. Por definição, um mercado de terras só poderia ter surgido se a terra tivesse passado a ter valor. A relativa rapidez com que isto sucedeu foi crucial para a definição do sistema de propriedade e uso de terra que emergiu. No entanto, não era óbvio que esse teria sido o caminho que os eventos 7 seguiriam. Pelo contrário, seria de se esperar que, dada a grande abundância de terras e a relativa escassez de outros fatores, o processo de valorização da terra tivesse sido mais lento. Tal foi o caso no Brasil, onde a abundância de terras inibiu o aumento do seu valor, por um período muito mais longo do que nos Estados Unidos, dificultando o surgimento de um mercado de terras e propiciando uma distribuição extremamente concentrada. Torna-se necessário, portanto, explicar quais as forças que permitiram, no caso dos Estados Unidos, contornar a tendência contrária ao surgimento de um mercado de terras, dada pela abundância destas. Como foi visto acima, no início da colonização a terra não tinha valor, nas colônias britânicas da América, e portanto não podia ser vendida, mas sim distribuída através de concessões e doações, àqueles dispostos a para lá migrar. Já pelo fim do século XVIII, a terra era o item que melhores oportunidades de ganhos oferecia (Harris, 1953, p.252). A seguir, busca-se mostrar como se deu a transição de uma situação para a outra, e explicar por que esse processo foi tão rápido e bem-sucedido, quando comparado com a experiência brasileira. O argumento se baseia na dinâmica da colonização britânica, analisada acima. Na primeira fase, como a terra não possuía valor e não podia ser vendida, as companhias e proprietários buscaram criar instituições que facilitassem a migração dos colonos e sua colocação na terra, de forma a gerar outras fontes de renda, por meio do comércio e da taxação. Essas instituições foram bem-sucedidas em contornar diversas dificuldades inerentes à migração e assentamento nas terras no Novo Mundo. As instituições analisadas aqui são o sistema de headrights (servidão temporária) e as concessõesem forma de vilas. As companhias também se incluem na lista de instituições que tiveram um papel importante no processo de colonização, mas já foram analisadas acima. Com o sucesso dessas instituições em superar os entraves à colonização, o preço da terra aumentou, o que fez com o que tais métodos de assentamento deixassem de ser os mais apropriados, sendo gradualmente substituídos pela simples venda de terra — a segunda fase de assentamento. A existência de concorrência entre as colônias, para conquista de novos colonos, desempenhou também um papel importante, nesse processo. Tal concorrência teve o efeito de propagar as instituições mais apropriadas e inibir as menos eficientes, e foi um fator central na determinação de um padrão de propriedade da terra onde dominaram as pequenas propriedades familiares. Seção 1.4.2 – O Sistema de Headrights2 O sistema de headrights foi o principal mecanismo através do qual a terra foi concedida, nos primeiros períodos da colonização. Sob esse sistema, a terra era concedida a qualquer pessoa que pagasse sua ida, ou a ida de outro, para a as colônias americanas. Assim, o sistema gerava incentivos não só para que migrantes se dispusessem a enfrentar a travessia, mas — mais importante — fornecia um instrumento pelo qual a migração pudesse ser financiada, por aqueles que tinham os meios de fazê-lo. Como a terra tinha pouco valor, no início, isso por si só propiciava um incentivo para que alguém se interessasse em levar outros. Porém, quando associado a um contrato pelo qual o migrante se obrigava a trabalhar, por um tempo especificado, para aquele que financiasse sua ida, o negócio se tornava bem mais atraente.Estes contratos de servidão temporária geralmente especificavam um período 2 Não parece haver uma boa tradução para headrights, além de “regime de servidão por tempo limitado” usado por Furtado (1982, p.21). 8 de sete anos, durante o qual o migrante trabalharia em troca de transporte, roupa, habilitação; e ainda o direito a um pedaço de terra, no final do termo. Este sistema mostrou-se bastante ágil em fazer com que migrantes fossem trazidos à América, e em promover a concessão de terras. Na Virgínia, por exemplo, três quartos dos migrantes foram levados sob contratos de headrights. A quantidade de terras concedida por este sistema foi ainda maior do que a planejada, dado os muitos abusos que surgiram, distorcendo e evadindo as regras originais (Gates, 1968:35). Um exemplo disso era a manipulação para permitir que o transporte de um migrante gerasse direito a três pedaços de terra; um para o dono do navio, um para o dono da fazenda onde ele trabalharia e um para o próprio migrante ao final do contrato. O sucesso do sistema de headrights estava baseado na sua capacidade de superar restrições que se opunham à migração, restrições que existiam apesar do excesso de população que havia na Inglaterra. Uma delas era o custo da viagem, freqüentemente alto demais para que as famílias pudessem se autofinanciar. Outra restrição eram as incertezas associadas à nova terra. Essas eram mitigadas pelo sistema de servidão temporária, já que o migrante trabalharia por algum tempo sob a supervisão de alguém já estabelecido, e com isto poderia adquirir a experiência e conhecimentos necessários para sobreviver e prosperar, quando recebesse sua própria terra. Sem esse período de adaptação, e sem a recompensa da terra no final do período, muitos daqueles que migraram para a América teriam optado por não fazê-lo, ou não teriam podido fazê-lo, com o que o volume da migração certamente teria sido menor. É verdade que esse sistema permitiu que muitos indivíduos obtivessem grandes áreas de terra. Não havia limites para o número de headrights concedidos, e várias grandes fazendas onde trabalhavam grande número de migrantes, sob esse regime, foram estabelecidas por pessoas que conseguiam aproveitar-se do sistema para obter trabalho e terra a baixo custo. Mas é muito importante notar que o sistema era tal que gerava forças contrárias à predominância de grandes propriedades. Em primeiro lugar, não se tratava de uma concessão gratuita, como no caso das sesmarias no Brasil. Havia um custo para se obter a concessão, dado que era preciso primeiro trazer o migrante e pagar diversas outras despesas. Embora as condições fossem vantajosas, a terra não era gratuita e havia custo de oportunidade em obtê-la, ou deixá- la ociosa. Em segundo lugar, como os próprios migrantes eventualmente deixavam de trabalhar para os outros e se tornavam proprietários, havia uma força que empurrava na direção da existência de propriedades pequenas. Essa força aumentava proporcionalmente ao número de migrantes trazidos sob este regime, e só foi mitigada mais tarde, quando aumentou o uso de escravos na colônia. Finalmente, pode ser constatado que, apesar de muitas grandes propriedades terem sido adquiridos, a partir do sistema de servidão temporária, a grande maioria das concessões foi para pequenos proprietários (Gates, 1968). Devido ao sucesso do sistema de servidão temporária, e dos outros métodos, no que toca à ocupação das colônias e assentamento de migrantes, as terras bem localizadas tornaram-se mais escassas e, portanto, passaram a adquirir valor. Esta foi a segunda fase da dinâmica da colonização dos futuros Estados Unidos, na qual a venda de terra passou gradualmente a predominar, como forma de alocação da propriedade fundiária. Isto ocorreu em épocas diferentes nas diferentes colônias, mas pode-se generalizar que, à medida que a terra começou a subir de preço, os proprietários, as companhias e a Coroa britânica abandonavam os métodos iniciais de concessão de terras, passando simplesmente a vendê-la. Naturalmente, a venda da 9 terra era preferível ao sistema de headrights, pois gerava uma renda mais facilmente apropriável. Em geral, a transição não foi abrupta, e, mesmo antes que a venda de terras se tornasse comum, as condições do regime de servidão temporária foram adaptadas ao aumento do valor da terra. Nas Carolinas do Norte e do Sul, por exemplo, oferecia-se aos servos temporários, depois de 1666, metade da área oferecida aos que haviam chegado em anos anteriores. À medida que o assentamento progredia, diminuía a extensão de terras que era preciso oferecer, para atrair os migrantes ou induzir alguém a financiá-los. A certa altura, as terras nas áreas mais assentadas passaram a valer o suficiente para compensar, então, a sua venda. Seção 1.4.3 – Concessões de Vilarejos As colônias na Nova Inglaterra (no nordeste americano) foram originalmente concedidas à Massachusetts Bay Company, que por sua vez redistribuía a terra através de diversos métodos. O mais comum foi a concessão de terras a grupos específicos, na forma de vilarejos (townships), organizados à base de pequenos lotes para cada membro. Essas concessões podiam ser obtidas por meio de uma petição feita por um grupo junto à Corte Geral das colônias, sendo que, no caso de o pedido ser aprovado, o grupo recebia a terra sem custo algum e estava livre para distribuí-la aos seus membros. A natureza homogênea e de base religiosa da maioria dos grupos que compunham o vilarejo típico foi crucial na determinação do padrão de propriedade e uso da terra que se desenvolveu. A ideologia que orientava esses colonos é um componente importante na análise da escolha dos vilarejos como método de distribuição de terras. Seus ideais de igualdade, moderação, abstinência, poupança, trabalho duro e educação tiveram importantes conseqüências. Porém, além desses fatores, outros foram também importantes no moldar do sistema de posse da terra e, como foi feito no caso do regime de servidão temporária, focalizaremos aqui a capacidade do sistema de vilarejos de superar os obstáculos iniciais ao assentamento. É bastante claro que as concessões por vilarejos tiveram sucesso em facilitar o assentamentodas colônias na Nova Inglaterra. Embora essa região possuísse as terras menos propícias à agricultura, ela logo se tornou a área mais densamente povoada, o que se deveu em parte ao fato desse sistema levar a um padrão de assentamento compacto e ordenado. Isto não era vantajoso somente por que propiciava proteção contra os índios e facilitar a ajuda mútua, mas principalmente por que criava condições para que emergisse um mercado, no qual a produção excedente pudesse ser negociada. A existência de um mercado permitiu a integração dos vilarejos entre si, levando à especialização, divisão do trabalho e, conseqüentemente, crescimento econômico. Isso, por sua vez, atraia mais colonos, aumentava o valor das terras e reforçava o padrão de posse baseado em pequenas propriedades (Turner, 1920). Outra vantagem da distribuição por vilarejos era economizar nos custos de transação envolvidos em fornecer terras a cada colono. Era mais fácil lidar com grupos inteiros, por meio de poucos interlocutores, do que tratar com cada colono individualmente. Além disso, como as expectativas de sucesso nos assentamentos eram maiores para os grupos, devido à sua união e organização, esse método impunha menos riscos às próprias companhias. É interessante notar que as companhias não opunham restrições à auto-gestão dos grupos em suas áreas. Seu interesse não era reter o controle para poder governar, mas sim acelerar o assentamento, de modo a gerar outros fluxos de renda dos quais pudesse se apropriar, como o comércio com a Inglaterra e a eventual venda da terra, uma vez que esta passasse a ter valor. Essa 10 liberdade para decidir seus próprios caminhos foi certamente um poderoso incentivo para que os vilarejos se desenvolvessem, e para que outros grupos requisitassem suas próprias áreas. Com o sucesso desse método de assentamento, foi inevitável que o preço da terra subisse e, como foi o caso nas áreas onde predominou o regime de servidão temporária, a venda da terra gradualmente viesse a substituir os métodos iniciais de distribuir terra. Na colônia de New Hampshire, em 1760, por exemplo, a terra ainda era distribuída em forma de vilarejos, mas agora, em vez de concessões gratuitas, faziam-se vendas a especuladores, os quais revendiam lotes ao grande número de novos migrantes que chegavam, em busca de terra. Essa transição ocorreu em todas as colônias onde se usou a distribuição em forma de vilarejos. Isto ilustra, novamente, a dinâmica da colonização da América do Norte, descrita acima, onde as instituições criadas para superar as dificuldades iniciais de assentamento foram substituídas pela simples venda da terra, à medida que esta aumentava de valor. Seção 1.4.4 – Concorrência O fato de a possessão britânica na América ter sido dividida em treze colônias, e que em cada uma fossem tentadas diferentes combinações de controle sobre a distribuição de terra e de controle político, resultou no surgimento de várias diferentes abordagens quanto aos métodos de assentamento e as formas de superar os obstáculos iniciais. Seria natural esperar que, quando uma colônia desenvolvesse um arranjo particularmente bem-sucedido para fomentar o assentamento, esse arranjo seria, eventualmente, copiado, até certo ponto, por outras colônias. Mesmo que tal arranjo não fosse em princípio desejável para proprietários, companhias ou a Coroa, em muitos casos a competição por novos colonos, entre as colônias, teria o efeito de induzir a adoção desse arranjo. Isto não significa que houvesse tendência a uma completa homogeneização das políticas de terras, já que havia diferenças regionais de geografia, clima, cultura e padrões de referencia dos agentes envolvidos, além de outros fatores. Mas permanece o fato que esses agentes teriam que enfrentar o custo de oportunidade dado pela existência de uma maneira melhor de agir. Se de fato existiu esse efeito de demonstração, ele terá tido um importante papel na determinação do padrão de propriedade e uso da terra. É fácil perceber que tal competição teria o efeito de disseminar formas de posse da terra mais livres e sem restrições, na medida em que as colônias que impusessem condições mais onerosas recebessem menos migrantes, sendo assim incentivadas a mudar sua política. Embora isso seja menos aparente, é possível demonstrar, também, que a competição teria propiciado a prevalência do padrão onde predominavam pequenas propriedades. Poder-se-ia tentar atrair migrantes oferecendo lotes maiores, mas havia um limite para isso, dado existir um trade-off entre o tamanho dos lotes e o número de colonos que poderiam ser assentados em determinada área. Além disso, lotes grandes resultariam num assentamento disperso, o que diluiria as importantes externalidades positivas de aglomeração. Documentos relativos à coleta de impostos na Pennsylvania, no final do século XVIII, mostram que as terras mais cultivadas eram aquelas em propriedades de menor área (Gates, 1969: 41). Era, portanto do interesse do proprietário conceder lotes menores, pois seu ganho dependia do comércio, e era proporcional à produtividade dos colonos. É provável, então, que a competição se desse menos por meio do tamanho dos lotes que por outros fatores, como as regras de posse e os métodos de distribuição. 11 Para que a competição tenha existido, é necessário que os migrantes tivessem tido a opção de escolher entre as colônias, e que existisse a possibilidade de migração interna entre elas, transferindo-se os migrantes para aquelas que oferecessem as melhores condições. Já vimos acima alguns exemplos de que, de fato, essas condições existiram. Em Nova Jersey, as condições liberais de posse visavam não tanto agradar os colonos existentes, mas sim atrair novos migrantes (Harris, 1953: 130). Vimos também que, na Geórgia, cuja ocupação começou norteada por objetivos de caridade, as duras regras iniciais tiveram de ser relaxadas uma a uma, dada a existência de regras mais flexíveis nas colônias vizinhas. Vários outros exemplos podem ser encontrados, na história colonial norte- americana, de que a competição entre as colônias foi, realmente, um fenômeno generalizado e relevante, tendo ocorrido mudanças de política visando atrair migrantes, respondendo estes àquelas mudanças deslocando-se de uma colônia a outra, “votando com os pés”. Harris (1953, p.251), por exemplo, afirma que um dos principais fatores que dificultou a cobrança de impostos sobre a terra, conhecidos como quitrents, foi justamente a existência de concorrência entre as colônias. Esses impostos eram, tipicamente, a única exigência feita aos colonos que recebiam terra na América do Norte, e mesmo essa exigência acabou desaparecendo, na maioria das colônias. Outro exemplo é o caso da Pennsylvania, onde o proprietário verificou que um grande fluxo de migrantes desviou-se para a vizinha Virginia, quando ele tentou cobrar um preço muito alto pela terra, em 1713 (Gates 1968: 41). Seção 1.5 – Plantações e o Sistema Americano de Propriedade de Terra Foi argumentado acima que no padrão de propriedade e uso de terra que emergiu na América do Norte colonial predominavam fazendas familiares, mas havia também numerosas grandes plantações. Argumentou-se também que houve uma convergência nos métodos de distribuição e uso da terra para um sistema relativamente uniforme. Mas é verdade que, em certas regiões das colônias do sul da América do Norte, as grandes plantações se tornaram mais comuns, ao longo do período considerado. A existência dessas plantations, especialmente aquelas baseadas no trabalho escravo, pode levar alguns à conclusão de que o desenvolvimento do sistema de propriedade e uso da terra no Sul dos Estados Unidos tenha sido fundamentalmente diferente daquele do Norte, e que a análise acima só seria válida para este último caso, enquanto nas colônias do Sul outras forças, instituições e motivações estariam atuando. De fato, a existência de grandes lavouras pode atésugerir que o desenvolvimento do sistema de terras no Sul tenha tido mais em comum com as regiões tropicais, como o Brasil, onde a grande lavoura, a monocultura e a escravidão eram a norma, do que com as colônias do Norte. O propósito desta sub-seção é mostrar que tais conjecturas não são sustentáveis. Será mostrado que a história da emergência e evolução das plantações no Sul não diferiu fundamentalmente daquela das outras colônias britânicas, e que apesar das aparentes similaridades, a grande lavoura norte-americana era de natureza muito diferente da brasileiras, tanto no que diz respeito ao seu funcionamento como nos efeitos que pçroduziu sobre os mercados de bens e de terras. As primeiras plantations surgiram logo no início do processo de assentamento das colônias, no século XVII. Grandes propriedades baseadas em trabalho de servidão temporária foram estabelecidas, ao lado das numerosas pequenas propriedades que eram distribuídas. Como foi visto acima, havia uma interdependência entre ambos os tipos de propriedade, já que as plantations traziam migrantes, exploravam seu 12 trabalho por um tempo determinado e depois, quando esses trabalhadores tivessem recebido sua própria terra, traziam outros migrantes. Isso não só tinha o efeito de aumentar o número de pequenas propriedades e de trabalhadores livres, mas também fazia com que o processo de estabelecimento de grandes plantações fosse mais lento do que seria o caso se o uso de trabalho escravo tivesse se generalizado desde o começo. Como conseqüência, as grandes plantações no Sul não surgiram como a forma predominante de organização, como fora o caso no Brasil. Na América do Norte elas evoluíram lentamente, e em conjunto com numerosas pequenas propriedades. A própria Coroa britânica percebia que um padrão baseado em pequenas em vez de grandes propriedades era de seu interesse. Grey (1958, p. 400) afirma que na Virginia, ao redor de 1700, a renda para a Coroa a partir de impostos sobre a produção de fumo, no caso em que houvesse um fazendeiro em cada 50 acres (20 hectares), resultaria num montante arrecadado duzentas vezes maior do que o que seria obtido através da taxação da terra (quitrents), mesmo sem considerar a dificuldade prática de se coletar este último tipo de imposto. Foi somente nas primeiras décadas do século XVII que as plantações passaram a ser predominantemente baseadas em trabalho escravo. Nessa época, o tráfico de escravos pelos ingleses, e outros intermediários, tornou-se uma atividade econômica cada vez mais rentável, e propiciou a adoção da escravidão pela grande maioria das lavouras. Nas regiões onde as condições eram mais favoráveis, as plantations baseadas no trabalho escravo rapidamente suplantaram os pequenos fazendeiros. Uma dessas condições favoráveis era um clima que permitisse a produção de um bem para o qual houvesse grande demanda na Europa. O clima no Sul permitia a produção de bens como açúcar, tabaco, arroz e algodão, para os quais não havia competidores na Europa. As gandes plantações tendiam, portanto a se especializar naquele bem que gerasse o maior retorno. Esta especialização permitia grandes economias de escala para as plantações do Sul, o que permitia que pagassem mais pelos escravos do que os fazendeiros do Norte, atraindo assim praticamente todo o contingente de escravos no mercado. Essas economias de escala se deviam a custos fixos, e aos altos custos de monitoramento que eram exigidos pela natureza do trabalho escravo. Pela sua natureza, a monocultura permitia que esses custos de monitoramento do trabalho escravo fossem minimizados pela organização do trabalho em turmas, supervisionadas por poucos feitores. Até aqui se procurou explicar por que as plantations se localizavam no Sul, por que usavam trabalho escravo, por que se especializavam em um só produto e por que eram relativamente grandes. O objetivo principal de nosso argumento é mostrar que, apesar dessas diferenças, o sistema de propriedade e uso de terra no Sul pode ser considerado como uma variação do sistema norte-americano, em vez de ser um sistema fundamentalmente diferente, mais próximo daquele observado em países tropicais. Para ver isto, deve-se notar que quando as plantações começaram a usar trabalho escravo, tornando-se cada vez mais produtivas, já tinha se passado praticamente um século de assentamento, durante o qual as pequenas propriedades foram a principal forma de ocupação. Ali onde as condições eram apropriadas, particularmente quanto ao clima, solo e política de terras, as grandes plantações suplantaram as pequenas fazendas. Contudo, há dois pontos que restringem a extensão desse fenômeno. Em primeiro lugar, embora as pequenas fazendas tenham sido sobrepujadas pelas grandes em muitas áreas, elas não deixaram de existir. Muitos dos pequenos proprietários mudaram-se para áreas adjacentes, que não eram adequadas 13 para a grande lavoura. Assim, ocorreu um proceso de especialização geográfica, pelo qual as áreas onde se concentraram as pequenas fazendas desenvolveram-se rapidamente, atraindo uma população crescente. As duas regiões se tornaram interdependentes: as grandes plantações se especializaram no produto de exportação e passaram a adquirir produtos de subsistência dos pequenos proprietários. Esses fatos tornam importante verificar qual a real extensão da existência de grandes plantações, no Sul. Muitas áreas no Sul eram, por um motivo ou outro, imprestáveis para a grande lavoura, e nestas as pequenas propriedades foram as principais formas de organização. Pelos dados do primeiro censo dos Estados Unidos, em 1850, mesmo adotando uma definição de plantation que inclua até fazendas com poucos escravos, somente 18 % dos estabelecimentos do Sul (101.335 dos 569.201 estabelecimentos) podiam ser consideradas plantations (U.S. Bureau of the Census. 1970). Isto não significa que as grandes plantações não eram uma das principais forças econômicas da região. Mas esses dados mostram que o sistema de grande lavoura não excluía as pequenas propriedades, e que a importância destas não era pouco significativa. Evidências adicionais sobre a distribuição das propriedades por tamanho podem ser obtidas pela proporção de escravos em cada grupo de área. De acordo com Grey (1958, p.531), em 1790, 30 % dos escravos, no Sul, pertenciam a estabelecimentos com mais de 50 escravos. Esses dados mostram que mesmo entre as plantations, grande parte era de porte reduzido. Quanto à proporção da área sob cada forma de organização, não há dados, mas, de acordo com Grey (1958, p.80), a organização da agricultura sob a forma de pequenas propriedades pioneiras no sul dos Estados Unidos era a regra, “tanto em número quanto em extensão geográfica”. Um ponto final a notar sobre as grandes plantações no Sul era a propensão de seus proprietários a esgotar rapidamente os solos e migrar para o Oeste, na busca de novas terras férteis. A existência de abundantes terras férteis, disponíveis para incorporação ao cultivo, tornava essa estratégia economicamente racional, em comparação com a alternativa de adotar métodos que preservassem e recuperassem a fertilidade da terra original. O efeito desse movimento migratório era deixar para trás grandes áreas de terra que, embora esgotadas para plantação do algodão, eram adquiridas por outros fazendeiros para o cultivo de outros produtos, como o trigo, para o que havia grande demanda. Como esses produtos apresentavam características diferentes, em comparação com os que eram produzidos nas grandes plantações, a distribuição de terras que resultava desse processo tendia a ser consideravelmente menos concentrada. Seção 1.6 – Conclusão Ao analisar a evolução do sistema de propriedade e uso da terra, é importante compreender a natureza de dependência histórica (path dependence) que permeia tal processo. Ao longo do período colonial, as “regras do jogo” estavam sendo definidas pelas ações e escolhasdos agentes. Essas ações e escolhas não eram adotadas num vácuo, pois eram influenciadas e constrangidas pelas ações e escolhas adotadas anteriormente. Ou seja, o caminho seguido até qualquer ponto era importante na determinação do caminho futuro. Assim, é de se esperar que as trajetórias seguidas, sejam elas produtivas ou improdutivas, tendam a se reforçar e persistir. No caso de uma trajetória onde, no regime de propriedade e uso de terra, predomina historicamente um sistema de posse segura e pequenas fazendas familiares, é fácil 14 entender que tal trajetória se reforça. Proprietários são por natureza conservadores e relutantes a mudanças, já que têm algo a perder. Uma vez que um grande contingente de pessoas têm acesso à propriedade de terras, é natural que esses proprietários defendam aquelas políticas e ideais que permitiram que eles adquirissem tais propriedade. Essa posição favorável ao regime vigente pode se difundir precisamente por que o status de proprietários também tende a dar aos indivíduos uma voz ativa no governo da coletividade. Essa participação na administração dos assuntos locais surgiu como conseqüência da forma pela qual o assentamento se deu, e fez parte do mecanismo pelo qual aquele padrão se reforçou e propagou. Um elemento crucial nesse mecanismo foi o fato de que as políticas adotadas logo levaram a um aumento do valor da terra. O valor relativamente alto da terra e a conseqüente existência de um mercado por terra reforçavam o padrão de pequenas propriedades, dado que existia um custo de oportunidade em se deixar grandes propriedades sem cultivo, o que gerava uma pressão para sua fragmentação. Ou seja, a situação era tal que o uso e venda de terra era o melhor caminho para os agentes realizarem o seu valor, em contraposição ao latifundiarismo (Hurst, 1956). Finalmente, o reforço também se deu pelo fato de que, ao tornar-se a terra prontamente disponível aos novos migrantes, mais gente era atraída. Novos colonos vieram em grandes números, e permitiram a reprodução do sistema, dado que demandavam e obtinham terras por meio do das regras que os haviam atraído. Observa-se assim uma endogeneidade básica: o sistema igualitário de propriedade e uso da terra atraia os migrantes, enquanto que o grande número de migrantes favorecia, por sua vez, um sistema igualitário de propriedade e uso da terra. Após a independência dos Estados Unidos, nenhuma mudança fundamental ocorreu no sistema de propriedade e uso da terra herdado do período colonial. Esse sistema foi a base da grande expansão e ocupação das terras para o Oeste que se deu nas décadas seguintes, e certamente teve um papel fundamental em propiciar um ambiente favorável ao espetacular crescimento do país, no século XIX. Seção 2 – O Sistema Brasileiro de Propriedade e Uso da Terra Seção 2.1 – Introdução Ao contrário do que se passou na América do Norte, no Brasil o sistema de propriedade e uso da terra não se encontrava fundamentalmente definido, ao final do período colonial. Na época da independência, não se havia chegado a um padrão claro de posse da terra, e muitas mudanças importantes ainda iriam ocorrer, até que se chegasse a um estágio onde se pudesse dizer que a estrutura básica desse sistema já se havia desenvolvido. Somente ao final do século XIX surgiram as condições que permitiram que o valor da terra passasse a subir a ponto de propiciar o surgimento de um mercado de terras. Durante os quatro séculos precedentes, as atividades produtivas que deram dinâmica à economia eram tais que a terra não se tornou um fator escasso. Esta seção analisa a evolução do sistema brasileiro de propriedade da terra usando a mesma estrutura da seção anterior. A primeira sub-seção trata das premissas comportamentais dos atores envolvidos; a segunda sub-seção examina as instituições específicas que foram desenvolvidas para ocupar o Brasil; a terceira sub-seção analisa a evolução do sistema durante os ciclos do açúcar e do ouro; e a quarta sub-seção usa 15 um modelo de mudança institucional induzida para analisar o processo de aumento do preço da terra, no século XIX. Seção 2.2 – Premissas Comportamentais Como na seção anterior, a premissa quanto ao comportamento da Coroa Portuguesa é a de maximização de riqueza. Contudo, apesar das mesmas motivações, cada chefe de estado enfrentou condições e restrições diferentes, e em conseqüência as escolhas quanto à forma de extração de renda das colônias não coincidiram. A descoberta do Brasil ocorreu quase simultaneamente com a descoberta da rota marítima para a Índia. O monopólio desta rota durou cem anos, e foi a base do rendoso ciclo da pimenta, que substituiu o ciclo português da exportação do ouro africano. Logo nas primeiras jornadas na rota para as Índias, delineou-se uma escolha clara e racional, por parte dos portugueses, de usar tal rota, e a superioridade naval do país, não para fins comerciais, mas sim de conquista (Steensgaard, 1974). Embora o Conselho do Rei estivesse dividido, em 1501, sobre qual caminho tomar, a primeira viagem de Cabral trouxe argumentos suficientes para que se optasse pelo uso da força e pela cobrança de tributos sobre o comércio local, em vez de desviar esse comércio das caravanas para as caravelas. Nesta viagem, os portugueses tentaram o estabelecimento de feitorias e relações diplomáticas, mas logo mudaram a estratégia para a de saques e pirataria, o que rendeu lucros da ordem de cinqüenta vezes o valor investido. Durante todo o século XVI, a estratégia portuguesa foi de desviar as rotas comerciais existentes de modo a capturar a rendosa cobrança de tributos sobre o comércio, ao invés de usar o monopólio da rota marítima para suplantar as caravanas no mercado de especiarias. A curto prazo, essa estratégia foi rendosa, mas os custos de defender esse bloqueio era alto e mostrava retornos decrescentes, à medida que surgiam formas de evasão. Ao redor de 1560, as caravanas já conduziam novamente mais especiarias à Europa do que os navios portugueses. Para entender que a escolha da conquista, em lugar do comércio, foi economicamente racional, dadas as circunstâncias, é preciso entender como estava estruturado o envolvimento Português na Ásia, em particular a relação entre a Coroa e seus agentes nesse empreendimento. A centralização da tomada de decisões em Portugal, associada à dificuldade de monitoramento das ações de seus próprios representantes, levou a uma situação onde esses representantes podiam perseguir seus próprios interesses, mesmo quando isso fosse contrário aos interesses da Coroa. É fácil visualizar os incentivos perversos que devem ter surgido para os envolvidos num empreendimento voltado à pirataria, aos saques e à cobrança de proteção. Godinho (1963) descreve como se cobiçava uma participação nesse empreendimento, em Portugal, dadas as grandes oportunidades de ganho pessoal que tal posição possibilitava. Os cargos, em tal empreendimento, eram geralmente ocupados por três anos, e, com conseqüência do excesso de procura, freqüentemente eram leiloados pela Coroa. Como o envolvimento de cada indivíduo tinha essa duração limitada, havia todo incentivo para que os escolhidos agissem de forma oportunista, buscando extrair o máximo de ganho, em tal período. Era inclusive bem difundido o envio, para Portugal, de recursos obtidos no Oriente por meio de instrumentos financeiros, como cartas de crédito. O fato de que o interesse dos agentes se sobrepusesse ao da Coroa é bem exemplificado pelas quintaladas, o espaço de carga nas viagens de volta. Como esse espaço era escasso, e sua utilização propiciasse enormes lucros, ele era extremamente disputado. Até 1517, as regras para a divisão de quintaladas eram tais 16 que os bens da Coroa eram freqüentemente preteridos, em benefício dos bens particulares (Simonsen, 1937; Godinho 1936). Naturalmente a Coroa tinha ciência da forma como seus negócios eram conduzidos,mas os interesses individuais estavam bem enraizados e estabelecidos, inclusive entre altos oficiais da Corte. Assim, qualquer tentativa de mudança esbarrava na oposição dos próprios agentes que estariam envolvidos em sua implementação. Esses interesses se desenvolveram nos períodos em que os lucros do empreendimento português eram altos, e não compensava efetuar gastos para coibir o comportamento oportunista dos agentes. Pelo contrário, esses ganhos individuais serviam de poderoso incentivo para a solidificação do poder português. Contudo, uma vez que esses interesses estavam estabelecidos, já não era possível fazer as mudanças necessárias, quando os efeitos perversos da forma como o empreendimento estava organizado começaram a se fazer sentir. Assim a Coroa teve que se contentar em apropriar as rendas através de mecanismos como o leilão dos postos, e da taxação dos bens ao chegassem a Portugal. A Coroa havia sido capturada pelos seus próprios agentes, que impunham a manutenção de uma forma de organização ineficiente e que levaria seu domínio a ser rapidamente minado pelas companhias holandesas e inglesas na primeira década do século XVII. Essas companhias, financiadas por ações negociadas no mercado, eram uma inovação institucional estruturada de forma tal a evitar os incentivos adversos que enfraqueceram o empreendimento português. Essa exposição é relevante para o estudo do sistema de propriedade de terra no Brasil por duas razões. Em primeiro lugar as mesmas motivações básicas que nortearam o comportamento da Coroa Portuguesa e seus representantes na Ásia se estenderam ao Brasil. Em segundo lugar, fica claro que, durante o século que seguiu à descoberta do Brasil, havia grandes custos de oportunidade relativos à aplicação de recursos em sua colonização. Com tamanhas oportunidades de ganhos para a Coroa e para indivíduos, na Ásia, a atração que o Brasil exercia devia ser muito reduzida, uma vez que se constatou não haver metais preciosos na colônia. Foi somente em meados do século XVI que se descobriu a possibilidade de produzir açúcar no Brasil. Contudo, a produção desse bem necessitava consideráveis investimentos de capital e gerava, como veremos, poucas oportunidades para a maior parte dos migrantes potenciais. Embora houvesse terra em abundância, sua posse não apresentava atrativo para a população portuguesa, que, ao contrário da inglesa, era muito escassa na época. As motivações dos portugueses que se aventuravam no Brasil eram, em geral, muito diferentes das dos migrantes ingleses, que viajavam com o intuito de fazer da América seu novo lar. Os que migravam para o Brasil não cortavam seus elos com a mãe- pátria, para onde pretendiam retornar após fazerem fortuna, tal como era o caso nas viagens para a Ásia (Moog, 1955). É fácil perceber que as escolhas feitas por imigrantes temporários seriam muito diferentes — e levariam a um padrão de investimento e uso de recursos muito diverso — daquelas tomadas por colonos permanentes. Isto, naturalmente, teria um efeito importante no padrão de evolução do sistema de propriedade e uso da terra, e conseqüentemente no surgimento de um mercado por terras. Seção 2.3 – Instituições para a Ocupação do Brasil Embora as atenções portuguesas durante o século XVI estivessem primordialmente voltadas para seus negócios na Ásia, a expectativa de que eventualmente se descobrissem metais preciosos, e outras fontes de renda, no Brasil 17 impunha que se estabelecesse uma forma de ocupar esta colônia. A descoberta oficialmente atribuía a Portugal direitos sobre o Brasil, mas na prática só a efetiva ocupação asseguraria esses direitos. A ocupação era dificultada pela falta de oportunidades econômicas que justificassem o custo de oportunidade da Coroa, ou de empreendedores privados, de aqui investirem recursos. Como forma de incentivar a iniciativa privada a engajar-se na ocupação do Brasil, uma das primeiras estratégias da Coroa foi a divisão da colônia em quatorze capitanias hereditárias, um sistema que havia funcionando bem na colonização portuguesa das Ilhas da Madeira e São Tomé. Cada capitania foi concedida a um indivíduo que se incumbiria de prover o governo da província e distribuir terras a outros indivíduos, para fomentar sua ocupação. Este sistema, que é freqüentemente confundido com uma tentativa de transplantar instituições feudais para o Brasil3, foi uma estratégia semelhante àquela adotada pela Coroa inglesa para incentivar a ocupação da América do Norte, ao conceder colônias a companhias e a proprietários individuais. Como a terra não tinha valor, ela não podia ser vendida, e alguma outra forma de assentá-la tinha que ser elaborada. Com as capitanias, a idéia era delegar a distribuição da terra a indivíduos dispostos a enfrentar as duras condições brasileiras. As restrições impostas aos donatários eram inclusive mais rígidas do que as colocadas para os proprietários nas colônias inglesas. Lord Baltimore, proprietário de Maryland, tinha a liberdade de determinar o uso e a distribuição da terra em sua colônia quase sem restrições. Já os donatários, no Brasil, eram obrigados a conceder terra gratuitamente a pessoas de “qualquer qualidade ou condição” sem qualquer obrigação a não ser o dízimo da Ordem de Cristo, não podendo tomar para si além de 20% da área da capitania, nem doá-la a seus filhos ou esposa (Simonsen 1937, p.128; Lima 1954, p.33-34). O sistema de capitanias durou somente dezesseis anos, antes de ser substituído, em 1548, por um sistema que envolvia um Governador Geral. O fracasso do primeiro sistema de ocupação deveu-se não a sua fraqueza intrínseca, mas sim à falta de uma fonte de recursos, ou atividade econômica, que tornasse a exploração das terras brasileiras atraente para imigrantes potenciais. Considerando sua pouca duração e limitada influência na determinação do uso da terra no Brasil, fica claro que carece de sentido a visão convencional que atribui a tal sistema a gênese da alta concentração da propriedade de terras no Brasil. Pelo contrário, tendo em vista o efeito benéfico da competição entre as colônias americanas, ressaltado na seção anterior, pode-se conjecturar que, caso as capitanias iniciais houvessem encontrado condições econômicas mais vantajosas e tivessem florescido, tal forma de organização teria pressionado uma desconcentração na posse da terra. Ao longo de todo o período da colonização, a principal instituição adotada para a distribuição de terras foi a sesmaria. Esta era uma concessão por parte do Rei, ou seu representante no Brasil, de um pedaço de terra a um indivíduo, sendo as únicas obrigações seu cultivo e o pagamento de dizimo à Ordem de Cristo. Os termos da propriedade concedidos por uma sesmaria eram seguros e livre de restrições quanto à herança e alienação. Caso a condição de cultivo não fosse observada, a terra reverteria à Coroa. Esse sistema de distribuição de terra já era usado desde o século XIII em Portugal, como forma de incentivar a ocupação do seu próprio território, que em diversas ocasiões teve problemas de escassez demográfica (Godinho, 1963). Seu uso no Brasil foi uma opção natural, dado que a essência do problema a ser resolvido era a mesma, um excesso de terra relativamente à população disponível para ocupá-la e torná-la rentável. As sesmarias eram, portanto uma forma de incentivar a ocupação do 3 Ver, por exemplo, Guimarães, AP. 1968, pp 27-30. 18 Brasil, e não uma tentativa de estabelecer qualquer padrão preconcebido de propriedade da terra. Embora o propósito das concessões fosse tornar a terra produtiva, o monitoramento desta condição, por um governo centralizado, apresentava um custo excessivo. Além do mais a Coroa não podia ser muito restritiva se tencionasse atrair os escassos entrepreneurs que tivessem condições de estabelecer uma unidade produtiva no Brasil. Ambos esses pontos levaram a que a simples posseda terra, sem passagem pelo processo administrativo de requerer uma sesmaria, se tornasse cada vez mais freqüente ao longo da colonização (Lima, 1954). A Coroa não tinha os meios, e freqüentemente nem o desejo, de impedir que posseiros cultivassem a terra que havia sido deixada abandonada pelo proprietário original, que muitas vezes era a própria Coroa. O fato de que as sesmarias eram concedidas de graça e sem maiores restrições de propriedade e uso era uma conseqüência direta do baixo valor da terra. Nas áreas dos engenhos, naturalmente a terra tendia a adquirir mais valor, porém tais áreas não eram extensas; em 1600 havia somente 120 engenhos. Onde o preço da terra se tornava mais alto, a Coroa tentava apropriar parte da renda pela cobrança de foros, mas mesmo essa cobrança apresentava grandes dificuldades, e a principal fonte de renda para a Coroa, derivada do Brasil, provinha de impostos sobre o açúcar que entrava em Lisboa. Como as atividades econômicas que deram dinâmica à economia brasileira, durante a colonização, não tiveram o efeito de aumentar o preço da terra, é natural que não tenha havido nenhuma mudança fundamental na forma de distribuição ou de regulamentação do seu uso. Durante os três séculos até a independência, as sesmarias permaneceram como a única forma usada pela Coroa para esse fim. Pelo final do século XVII, até mesmo as sesmarias estavam caindo em desuso e, por força de costume, a simples posse havia gradualmente se tornado numa forma legítima de aquisição de terra (Lima 1954, p. 47-53; Guimarães 1968, p.73). Seria de se esperar que, caso a terra houvesse adquirido valor, o uso de sesmarias teria evoluído e eventualmente sido substituído pela venda da terra, num processo similar àquele descrito para a América do Norte, na seção anterior. Seção 2.4 Atividades Econômicas e Terra no Brasil O propósito desta seção é analisar o efeito das atividades econômicas que predominaram no período colonial sobre a evolução do sistema de uso e propriedade da terra no Brasil. Durante os primeiros dois séculos da colonização, a produção do açúcar foi a atividade predominante. Como a terra era abundante, o fator escasso para esta produção era o capital, na forma de equipamentos e escravos. Havia significativas economias de escala na produção de açúcar, e somente empresários com grandes quantidades de capital e acesso a crédito estavam em condições de montar engenhos suficientemente grandes para serem rentáveis. Esses retornos de escala se deviam à natureza da tecnologia de produção de açúcar, que envolvia mais de duzentas tarefas separadas e, portanto, permitia ganhos de produtividade pela divisão do trabalho. Os engenhos não eram somente grandes, mas também auto-suficientes em praticamente todos os insumos que consumiam. O equipamento e escravos eram importados, assim como os bens de consumo das famílias dos donos de engenho, e insumos como sal e pólvora. Todos os outros insumos eram produzidos dentro dos próprios engenhos, como a cana, lenha, alimento dos escravos e senhores, velas, produtos de madeira, tijolos, meios de transporte, etc. Assim, a atividade produtiva 19 dentro dos engenhos não se traduziu em oportunidades de desenvolvimento de produção fora dos engenhos, e apesar da grande quantidade de riqueza que era gerada no Brasil, o efeito multiplicador dessa produção sobre o resto da economia era extremamente baixo. É verdade que as fazendas de gado, que supriam os engenhos com animais para alimentação, transporte e força motriz, levaram à ocupação de grandes áreas do interior, desbravando aquelas fronteiras. Mas esse tipo de atividade gerava uma ocupação extensiva que pouco efeito tinha em gerar um mercado interno. A auto-suficiência da indústria do açúcar é um fator central na explicação do sistema de propriedade e uso da terra que surgiu no Brasil. Essa independência significou que as oportunidades econômicas para um imigrante potencial eram muito limitadas. Fora as poucas funções engenhos não exercidas por escravos, restava a possibilidade de requerer uma sesmaria, ou mesmo tomar posse e uma extensão de terras. Tal perspectiva, no entanto, era pouco atraente, pois a auto-suficiência dos engenhos e a ausência de aglomerados urbanos implicavam que o migrante estaria excluído de toda atividade econômica, produzindo simplesmente para sua subsistência. Tal situação não gerou um fluxo de migração para o Brasil e, em conseqüência, a terra não se tornou escassa. Como a demanda por açúcar não poderia crescer suficientemente para permitir a instalação de um número substancialmente maior de engenhos, a pressão sobre o preço da terra no Brasil foi praticamente nula, fora das imediações dos centros produtivos. Em conseqüência, o ciclo do açúcar não gerou nenhuma tensão sobre o sistema de sesmarias através do qual terra era distribuída, e não se observou nenhuma mudança fundamental nesse sistema, ao longo de tal período. Com a quebra no monopólio na produção do açúcar, na segunda parte do século XVII, a colônia só voltou a experimentar considerável atividade econômica com a descoberta de ouro no interior. Durante o século XVIII, grandes contingentes populacionais foram atraídos ao Brasil, com importantes efeitos na economia da colônia. No período de 1700 a 1776, no qual a produção de ouro atingiu seu ápice, o crescimento da população foi de 6% a 8% ao ano, passando de 300 mil para 2,7 milhões de habitantes. Como a migração não requeria necessariamente elevadas somas de capitais, ao contrário do açúcar, essa atividade atraiu ao Brasil muitos indivíduos, em busca de fortuna. Mesmo sem escravos, um migrante poderia tornar-se minerador, embora houvesse grandes empreendimentos mineradores baseados em trabalho escravo. Um importante efeito do aumento populacional e da atividade econômica foi a geração de um mercado para vários bens que poderiam ser produzidos localmente. Como a mineração era em geral migratória, alimentos tinham de ser produzidos em outras regiões da colônia. Isto gerou não somente uma demanda por alimentos, mas também por animais de carga, para o transporte entre o interior, o litoral e as regiões de produção de alimentos. Mas quando produção de ouro declinou, no final do século XVII, essa articulação entre as regiões e o incipiente mercado interno que havia sido gerado rapidamente se decompuseram. O ciclo do ouro, apesar de haver produzido imensa riqueza, deixou poucos centros urbanos, indústria ou outra atividade econômica que pudesse substituir a mineração como centro dinâmico de atividade. Surtos esporádicos de demanda por bens tropicais geravam curtos impulsos em determinadas áreas, mas estas logo voltavam à produção para subsistência, após o crescimento da oferta em outros centros coloniais. Tal como foi o caso com o ciclo do açúcar, a mineração não gerou mudanças no sistema de uso e propriedade da terra. Embora a população houvesse aumentado, a falta de uma atividade econômica que motivasse uma maior utilização da terra 20 significou que seu preço não aumentou e, em conseqüência, as instituições básicas relativas à terra não evoluíram. No final do século XVIII, as sesmarias permaneciam o principal método de distribuição de terras, complementado, cada vez mais, pela posse direta, como meio informal de aquisição de terra. Grande parte das melhores terras haviam sido apropriadas em latifúndios, que eram só marginalmente cultivados. Indivíduos sem terra podiam tomar posse de terras na fronteira de exploração agrícola, ou podiam entrar em contratos de parceria com algum sesmeiro. Como a terra era abundante, porém, esses contratos tendiam a ser pouco restritivos e a gerar pouca interdependência entre as partes, dado que o arrendatário tinha sempre a opção de se mudar para outra propriedade ou para terras desocupadas (Viana, 1982, p.139). Com o baixo valor da terra, freqüentemente não compensava invadir terras alheias ou defender as grandes propriedadesvazias, o que se reflete na imutabilidade das regras concernentes à terra. Seção 2.5 – O Aumento no Preço da Terra Apesar de ocasionais aumentos de atividade gerados por surtos periódicos de melhora de preços de produtos tropicais, e pela mudança da Coroa Portuguesa para o Brasil, nas primeiras décadas do século XIX, o sistema de propriedade e uso da terra não evoluiu além do sistema de sesmarias. Pelo contrário, a falta de uma atividade dinâmica que tornasse a terra um fator escasso levou à abolição desse sistema em 1822, dois meses antes da Independência. O fato que nenhuma regra ou lei alternativa que regesse a distribuição, propriedade e uso da terra fosse colocada em seu lugar, nesta ocasião ou dois anos depois, quando foi elaborada a primeira Constituição brasileira, é evidência da ausência de valor da terra. Durante quase trinta anos, haveria um vácuo institucional, em que prevalecia a simples tomada de posse de extensões de terra. Notar, porém, que, devido à longa decadência do sistema de sesmarias, a generalização das posses não foi uma mudança fundamental, mas sim uma continuação, ou talvez o recrudescimento, de uma prática que já vinha ocorrendo, especialmente nas áreas menos centrais. O processo pelo qual o valor da terra começou a aumentar, no Brasil, ao longo do século XIX, levando a uma evolução das instituições relativas ao direito de propriedade sobre a terra, pode ser analisado por meio de um modelo de mudança institucional induzida. Quando surgem possibilidades de ganho que não podem ser capturadas sob as instituições existentes, é de se esperar que surja uma demanda no sentido da transformação de tais instituições. Em geral, essa possibilidade surge quando ocorre uma mudança nos preços relativos, tal como ocorreria, no caso da terra, com o descobrimento de ouro, ou com um aumento do preço dos produtos produzidos com o uso da terra. O novo arranjo institucional pode tanto aumentar os benefícios como reduzir os custos de ter o direito de propriedade, ou então podem facilitar a aquisição desse direito, por parte dos que demandam a mudança das instituições. Mas tal mudança não ocorre automaticamente, pois vai depender da vontade daqueles com o poder de efetuá-la, e da habilidade de bloqueá-la por parte dos que sairiam perdendo. Portanto, mesmo existindo demanda por um novo sistema de direitos de propriedade, não se espera uma mudança imediata, pois deve-se levar em conta também o lado da oferta dessas novas instituições (Alston e Muller, 2003). Na primeira metade do século XIX, houve de fato mudança nos preços relativos da terra, num período em que a estagnação da economia foi gradualmente superada pela demanda crescente por café, uma cultura para a qual as terras brasileiras 21 se mostraram particularmente adequadas. Logo após a Independência, o café era responsável por 18 % do valor das exportações brasileiras; pela década de 1840, já havia ultrapassado o açúcar e o algodão, atingindo 40% daquele valor (Furtado, 1959). O volume de café exportando passou de 9,7 milhões de sacas, na década de 1830, para 17,1 milhões e 26,2 milhões nas décadas seguintes. Com esse crescimento da atividade agrícola, o preço da terra começou a aumentar. Isso se deu inicialmente na região próxima ao Rio de Janeiro, expandindo-se rapidamente o fenômeno para o interior, e depois para São Paulo. Como o preço da terra ainda fosse baixo, quando comparado com os outros insumos, especialmente a mão-de-obra escrava, havia incentivo ao uso extensivo da terra; com a exaustão da fertilidade nas áreas plantadas, a cultura se deslocava para terras não utilizadas. Assim, grandes áreas foram incorporadas à economia, e o preço das terras, nessas regiões, passou a refletir a crescente escassez de terras aptas ao cultivo e bem localizadas. A questão, portanto, é analisar como esse aumento de valor alterou os custos e benefícios para os possuidores de terras. Como seria de esperar, num contexto em que não existiam instituições de direitos de propriedade para estabelecer regras, conflitos e violência se tornaram um problema de ocorrência generalizada. Com o vácuo institucional legado pela abolição das sesmarias, e sua não substituição por outras regras, os conflitos eram resolvidos na base da força ou de instituições informais. À medida que a fronteira em expansão encontrava posseiros que haviam ocupado terras marginais, vários conflitos surgiam. Estes ou eram resolvidos pelo judiciário (apesar da inexistência de leis específicas regendo o assunto) ou pela violência.4 Antes do aumento no valor da terra, geralmente os benefícios de tomar posse de uma propriedade não utilizada não eram suficientes para justificar os conflitos que poderiam ocorrer, e os posseiros simplesmente procuravam terras vagas na fronteira de ocupação. Analogamente, o custo de expulsar posseiros de terras com pouco valor eram muito altos para justificar tal ação. Contudo, com o aumento do preço da terra, os benefícios de apossar-se alguém de uma propriedade, e os custos de defendê-la se alteravam. Em muitas regiões, passou a ser compensadora a tentativa de tomar uma terra que já tivesse dono, mesmo que as chances de conflito fossem maiores. Da mesma forma, o valor mais alto também compensava os investimentos na defesa de propriedades, e a remoção, mesmo que contenciosa, de posseiros. Naturalmente tal situação gerava consideráveis custos para aqueles que possuíam terras. A existência desses custos criava a oportunidade de ganhos a partir de alterações no sistema vigente de direitos de propriedade, de modo a reduzir tais custos. Pode-se supor, portanto, que tal possibilidade tenha gerado uma demanda por novas regras de propriedade e uso da terra. Mas como a oferta de novas instituições depende não só da existência da demanda, mas também de outros fatores políticos, foi só em 1850 que se promulgou a Lei nº 601, que estabeleceu um novo sistema de propriedade e uso da terra. A Lei de Terras de 1850 foi aprovada num período em que estava por ser abolido, por pressão inglesa, o tráfico transatlântico de escravos; a medida estava, portanto, associada à necessidade de encontrar uma forma de suprir a deficiência de mão-de-obra, que já se manifestava. Naturalmente, a possibilidade de atrair imigrantes europeus para o Brasil envolvia a questão das regras quanto à distribuição e uso da terra. O ponto que se quer acentuar aqui é que de fato a Lei de Terras foi elaborada 4 Ver Stein (1985) p.12 e pg 57 para exemplos de conflitos na região de Vassouras, quando esta cidade era um centro produtor de café, em meados do século XIX. 22 também com a intenção de promover uma alteração nos custos e benefícios de possuir terra, tal como foi antecipado acima. Um dos principais pontos da lei foi estabelecer que a venda seria a única forma de distribuição de terras públicas. Isso marca a transformação da terra em um bem econômico, e reflete o fato de que seu preço havia aumentado, o que mostra que apenas a essa altura o sistema de propriedade e uso da terra no Brasil estava, de fato, se consolidando. Grande parte da lei, que foi debatida durante sete anos, relacionava- se com a preocupação de garantir a propriedade da terra àqueles que a haviam adquirido, como sesmarias ou pela posse direta, até aquela data; e de proibir que, a partir de então, se pudesse obter terras por aqueles mesmos métodos. Isso se conforma com o argumento de que a lei foi promulgada em resposta às demandas daqueles que já haviam adquirido terras, os quais se beneficiariam com uma tal mudança nas instituições de direitos de propriedade. Além de garantir a propriedade das terras já apossadas, a lei reduzia os custos de mantê-las, ao eliminar a possibilidade de outros tomarem, por sua vez, tais terras, por simples posse. Além disso, a lei dificultava a aquisição de terras por parte de novos plantadores, que agora teriam que
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